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1 Demétrio Vieira Diniz HAVERES poesia

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Demétrio Vieira Diniz

HAVERESpoesia

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A Dehuel, irmão,em sua memória e com saudade.

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A lua tá indo com a gentetá erradolua é pra ficar parada.

(Mickael Santos, 4 anos, com quem passeionas tardes de domingo e reaprendo aesquecida linguagem da infância.)

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Poemas da LembrançaDádiva 23Azulão 25Dilma 27Infância 29Roca de fiar 31Cavalo-do-cão 33Passagem 35Lair 37Salete 39Calungas 41Herança 43Acrobata 45Joaquim 47A visita de tio José 49Manduca 51Visitando meu avô 53Beiradeiros 55Missiva 57C.E.M 59Teco-Teco 61Trem fantasma 63A mulher escandinava 65Dernanci 67

Poemas do CotidianoFagulhas 71Apartheid 73Betaflex 75Estória de mavé gepê 77Média classe 79No parque 81Sete mulheres 83Além dos vidros da noite 85Restos 87Haveres 89

Prefácio

Apêndice 91

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Demétrio Vieira Diniz e o

Ciclo Alquímico da Poesia

R. Leontino Filho

“Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo, ando debaixo da pele e

sacudo os sonhos.” (Murilo Mendes)

O poeta sabe, de olhos fechados, o pesoinvisível dos ventos. Conhece, a fundo, alargura oculta das ondas. Experimenta, com

deleite, o sabor múltiplo das sombras. Penetra, em surdina, oreino mítico dos deuses. Encara, sem receios, a grandezaluminosa dos opostos. Acaricia, lentamente, o olhar solícito daspalavras. Transita, sílaba a sílaba, a vertigem da linguagem.Murmura, sem alarde, o barulho infinito dos eus. Espalha, emremanso, o fluxo do verbo. Projeta, sem descanso, a luztranslúcida do fogo. Plasma, com calma, o absoluto poder daágua. Galopa, entre curvas, a intensa força do ar. Preserva, comcarinho, a especial gravidez da terra. O poeta sabe que saber épartilhar afetos, expandir mundos. Para ele, noite e dia fertilizamas mesmas veredas e, em simetria, rompem os diferentes espaçosda treva. Cada gesto do poeta é como flecha veloz disparadaem direção à luz. Um raio que se desloca, célere, penetrando ascamadas da aurora e tecendo a parábola do mistério, aquelaque consegue engendrar os sonhos da Natureza.

O poeta é o geômetra da Natureza. No rito do silêncio, elerecria as imagens ocultas do cotidiano, entre sombras e mistériosdo Ser. O humano coração do poeta é puro movimento, desloca-se no tempo e no espaço, traduzindo a eterna ânsia de ser

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versos. Nesta colheita, o mundo se entreabre sem pudores,porém, com extrema delicadeza, sem as estridências domeramente confessional, sem o alarde choroso da pieguiceamorosa e sem o estardalhaço dos exercícios virtuosísticos dalinguagem. Em sua poética, a Natureza tem coloraçãodemasiadamente humana, o princípio de tudo.

No começo da estrada, a primeira placa demetrianaanuncia Um homem sem poesia (1996), e quanta poesia nestehomem. Mais adiante, nova sinalização para Passarás (1999),outro despiste para quem, com sutileza e competência, assinalou,em definitivo, o seu nome na moderna poesia brasileira.Passarás é um livro de múltiplas leituras, uma vereda deinfinitas travessias, um sertão de variadas visões, um paraísode angulosas entradas, um céu repleto de purgatórios e uminferno de insólitos perdões. Um livro feito de vida,essencialmente, singular para a compreensão do homem. Umlivro, enfim, além do verbo, pois que, perfeitamente, convertidoem cada elemento que compõe o tempo do existir, o tempo quecomeça na infância e para o consolo do indivíduo termina,também, na infância, a despeito ou não de sua vontade. Nesseprocesso de olhar o mundo pela infância, Passarás finca suasraízes no solo fértil da memória e completa o ciclo deperplexidades que embala as recordações e as suas nuances. É,desse modo, uma obra plena, vasta como o universo que aenvolve em sua máxima potencialidade de quereres.

Uma rápida incursão pela matéria sensível de Passarás,revela a grandeza das histórias que entre cheiros, cores, sabores,toques e sons aguçam, ainda mais, os sentidos daqueles quecaminham por esta seara pluridimensional de versos,lapidarmente condensada por mãos tão hábeis. Com palavras-chaves como saudade, inocência e alegria, entre outras, o poeta-narrador, passa em revista o espetáculo do mundo imprimindosua marca talhada pelo frescor e pela sofisticação de nãobanalizar o cotidiano, em momento algum. O fio da meada dePassarás é a infância, com seus encantamentos e suas emoçõestristíssimas. Um tempo pródigo em ambigüidades poéticas, ondeo desejo é servido na bandeja antiespetacular dos sentimentos.

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seu realismo mágico é uma espécie de filme em curta-metragem,do mesmo modo O Fim do Mundo (p. 45), um poema surrealistaque em sua natureza intrínseca deixa transparecer todagrandeza criativa do poeta. De Passarás, pode-se afirmar, semreceios, que o tempo engorda as lembranças e de modo sutil,intensifica a realidade sensível do discurso literário pautado navasta envergadura de versos capturados no chão da existência.

Mas o trem perfura incansavelmente a vida, e já não bastapassar, já não importa saber do apreço merecido, já não interessao que cessou alhures, já não adianta rabiscar o destino, o acaso,a adversidade, a razão e os afetos na sonolência irisada da casa.Em toda casa, há sempre uma carícia bélica a ser cuidada, porisso, na cumeeira da vida, os caminhos se bifurcam e destravamo sono e o tédio das horas. Contemplada na infância, avestimenta do real é quente e luminosa, concreta como a luz e aclaridade do sertão, mineral feito de pedras, conchas, sal e cristaisdo mar, uma natureza de preciosa extração, que somente umexímio Geômetra é capaz de tecer com a serena disciplina dagrande poesia. De posse do pleno domínio metafórico, o poetade Passarás, Demetrio Vieira Diniz, toma o trem encantatórioda palavra e, soberanamente, filtra a essência aromática da vidalapidando imagens, polindo sensações, desfiando carne e sentidodo verbo, sintetizando o espesso volume do tempo perdido nosermos confins do ser. O trem que atravessa o tempo, comdramática comoção, é um mundo fincado no humano, sempre,que traz em seus vagões, a liberdade, a incompreensão, a pátria,o exílio, a exclusão, o amor, a sensualidade e o erotismo, entretantos pedaços repartidos de infância e de memórias silentes.No trem quase tudo é sussurro, mas o tempo de tão escassasvontades soluça nos trilhos da criação. A próxima estação dotrem responde pelo nome de Haveres (2004), título da novaobra poética de Demétrio Vieira Diniz.

Haveres apresenta 33 poemas, distribuídos em dois blocos:Poemas da Lembrança (23) e Poemas do Cotidiano (10). Aclarividência interior do poeta retrata sua extraordináriagrandeza humana. Em nenhum instante do livro ele deixa desublinhar as pequenas e importantes vidas que compõem o seu

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Poemas da Lembrança – intitulado Dádiva, é a própria profissãode fé do poeta, que corajosamente decanta sua cidade, iniciandocom um verso de enganosa simplicidade e de profundaangústia: “Minha terra não me deu nada”, quanto desencantobrilha nestas palavras. Depois de enumerar o destino erráticode homens e mulheres que compõem seu universo etnográfico,o poeta agradece, e diz: “foi tudo o que a minha terra me deu/e assim mesmo recebo como uma dádiva”. Poesia pura, geradapor um coração amplo que sabe, na distância, aquilatar o limitedas perdas. Dádiva é um poema de feição clássica, paradaobrigatória para os apreciadores da verdadeira poesia. O jogometapoético está muito bem registrado em Azulão, com apresença de Coetzee, que desencadeia no poeta a lembrança deuma carta de seu pai comunicando a morte da vaca Azulão, apartir desse acontecimento uma série de questionamentos sobrea vida e a morte passam a figurar na imaginação do autor. Ummomento de grande ternura do livro. Em Passagem, todas aspalavras, em forma de metáfora, repercutem na natureza duplade nomear as coisas, o tempo perdido na distância dos anos,resume-se na elíptica construção dos versos: “Há algum tempoperdi meus óculos azuis/que me deixavam ver o mundo comencanto”. A interioridade mapeada pela sensível intuição deum adulto que nunca deixou de regar os canteiros da infância.

De Roca de fiar, destaque-se a substantiva presença donarizinho de Geíza, em 1958. Um poema delicado e temperadono caldo do riso: humor e infância irmanados na travessiagustativa do poeta. Com Dilma, a total ausência de máscaras,onde o território da melancolia está reservado para aaprendizagem dos sentidos: “Quando ficar escuro, minha irmãDilma/não vai ver o sol apagando o rio”. Sinestesia plena, vigorpoético aceso. Outra irmã surge em Infância, é Diumira, comseu choro enigmático e sua presença luminosa pelas reentrânciasda casa. Salete ressalta o jogo anafórico nos quatro primeiros enos dois últimos versos, o amor adolescente pinçado numprimoroso poema. Cavalo-do-cão retoma a anáfora nos doisprimeiros versos e descreve o trajeto do ancestral besouro voador,um típico guerreiro alado, que faz pensar na solidão dos fortes.

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outra linguagem, mesclaria o estilo límpido, um tanto seco àsvezes, de Michelangelo Antonioni com o tom espraiado, barrocode Luchino Visconti. Um poema de beleza acachapante.Dernanci fecha a primeira parte de Haveres, Os poemas daLembrança. É mais um rito de passagem atravessado pelasensualidade dos amores adolescentes e pela lembrança dascoisas que já morreram.

Com Poemas do cotidiano, segunda parte de Haveres,Demétrio Vieira Diniz fertiliza o campo da poesia com umcuidado meticuloso. Sabe dos caminhos e das perdições quecampeiam o mundo, reconhece as ilusões e os sonhos queficaram para trás, multiplica as volúpias e as inocências quepermeiam as horas e recria os encantos e as viagens quetransmudam a vida – Natureza da poesia.

Média classe, Apartheid, Betaflex e Sete mulheres são poemasque possuem o viço da aventura humana. O aparato reflexivodos textos e o tom, por vezes ensaístico, constituem o diálogocom o mundo e as leis que reordenam a história dos homens. Aparticularidade maior dos poemas está impressa na exposiçãodo indivíduo precário, exposto e vulnerável às tentações de veras coisas todas em sua inteireza, algo impossível, pois a memóriaé um filtro e como tal funciona no instante em que registra oshorizontes submersos do tempo. Demétrio Vieira Diniz modelaas veredas de sua poética aprimorando o filtro da memória,sempre. Por isso, na busca de eus perdidos, o poeta compõe ouniverso imaginário do adulto-aprendiz, com os pendores dalinguagem de pura fruição lúdica, exemplo maior destaafirmação encontra-se na Estória de mavé gepê, uma graciosacanção retirada da cumeeira da inocência. No parque, livre dapressa, o poeta exercita sua grande capacidade de manipularcom habilidade o tempo pretérito, de repente tem sete anos,com isso é um homem novo e diferente, a paciência e o poderde contemplar a vida fazem dele um nômade das lembranças.Um nômade que parte em direção ao íntimo desenho deFagulhas, o universo infantil adquire um caráter nostálgico, nomomento em que o poeta procura compartilhar o relicário devivências que ele acumulou ao longo de suas incontáveis viagens

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geômetra da Natureza. Demétrio Vieira Diniz é um poeta total,autor de uma obra fincada no humano. É um poeta conciliadoconsigo mesmo, é autêntico em toda a sua inteireza artística. Aincursão na infância, pelas mãos de um mestre, justifica a criaçãopoética, como tão bem escreveu Manoel de Barros: “Como ébom a gente ter tido infância para poder lembrar-se dela/E trazeruma saudade muita esquisita no coração”. Demétrio VieiraDiniz, com Haveres, revela-se um mestre na arte de burilarpoemas e um ser humano generoso por compartilhar com aspessoas a síntese dos epigramas certeiros de sua travessia pelomundo. Com Haveres, o poeta se vê e se reconhece em seuspoemas e isso é tudo.

R. Leontino Filhoé poeta e professor de Literatura Brasileira

na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.Autor de Cidade Íntima e Sagrações ao meio, ambos de poesia.

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POEMAS DALEMBRANÇA

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Dádiva

A minha terra não me deu nada.Só um acanhado mundode homens com chapéu de couro e alpercatas de currulepasapateando na terra secapra lá e pra cáatrás de uma cantoria, de uma quermessede um tiro no meio da feira.E mulheres fustigadas pelo mandoa beleza logo se retraindono rosto encarquilhado de sol.

Esses homens e mulheres empoeiradosde destino errático e fala arrevesadasonhos tão pequenoscomo um cavalo cardão ou um vestido de organza

rendadofoi tudo o que a minha terra me deue assim mesmo recebo como uma dádiva.

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Azulão

Ainda não lera A Vida dos Animais, de Coetzeenem me chamara a atenção a carne aos montes na feirao sangue coalhado nos ladrilhos do açougue.A vida, nesse tempo, a gente aceitava do jeito que era.

Soube de sua morte através de uma carta de meu pai.Imaginei-a nervosa ao atravessar a ruaa cabeça como sempre levantadauma dignidade mais que humana no passo animal.Pelo muito que a conheciadobrou a casa da minha irmã sem olhar para os ladostrotando, ante a despedida humilhante, com improvisadas

viseiras.

Uma vez ou outra me perguntava no internatose encurralada, por trás do portão de ferroaceitou seu destino com inocência bovina.Ou se esperou por mimque eu viesse com a minha mão de meninode muito longe, de Cajazeiras do Padre Rolimsalvá-la daquele cheiro de morte.E pelo mesmo portão por onde aflitamente entrousaísse para os lados do Córrego, da Serrota, do Pôr-dos-Mortosacordando as borboletas no mata-pastoenquanto eu, dez anos de vida, me alumbrasse com os pássarosque disparavam de dentro do capinzal, no fundo de um azul

eterno.

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Dilma A Márcio Dantas

Não pinguem azeite nos olhos de Dilma.Melhor assim, do jeito que ora estáde olhos cerrados, no seu pequeno caixão azul.(De que adiantam os olhos de bonecacomo duas contas de vidrorefletindo pela sala um brilho inanimado?)

Já tiraram o retratoos seis irmãos em escadinha (sou o segundo do lado

mais baixo)só os mais velhos têm cara de choro.Também chegaram umas meninas com vestidos de

lacinho , de cor azul e rosa, plissados, orayon cintilando à luz da tarde.

Movem-se com a inquietação de quem vai aum passeio ou uma festa.

Minha mãe, a um canto, derrama umas lágrimas grossas, espaçadas

como pingos de goteira quando acaba a chuva.São mornas e me caem uma a uma sobre o braço.

Dividido entre a sensação de luto e movimentopercebo lá fora uma franja de sombra que desce a calçada.Daqui a pouco será noite.Quando ficar escuro, minha irmã Dilma não vai ver o sol

apagando o rio.

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Infância

Era sempre à tardinha que minha irmã Diumiraia pra casa de Minu.Sentada no batente da calçadaouvia o rádio, que saía por uma janelinha escura e triste.

Com “Coração de Luto”(música que falava de uma mãe que morreu queimada)chorava enxugando os olhos no babado da manga.

Por que chorava minha irmã?Temia que essa tragédia se repetisse na vida real?Que a mãe de novo ensopasse de querosene o seu

vestido longo, de flores graúdas?Ou gostava mesmo era das coisas penosas, do choro

suspirado, que deixava seus olhos molhados e belos?

De volta pra casa, trazido pela sua mãoeu via a noite cairsem nenhum fotograma de alegria.

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Roca de fiar

Meu cinturão dourado, entrançadinho, como se fosse de ouro

Geíza não quis ver(ou fez de conta que não viu).Agora não tem mais importância: com o tempo a roca de

fiar fiou, e dele só restaram esmaecidas lembranças.

O narizinho de Geíza era pequeno e delicado.Quando dez anos se passarama roca de novo havia fiado e dele igualmente só

restaram esmaecidas lembranças.

Esse desencontro amoroso entre um cinturão que compreia prestação, e só paguei a primeira, e onarizinho de Geíza, se deu numa tarde devesperal, em 1958, na calçada do cine Pax de Mossoró.

Vejo agora, com certa resignação, que a roca de fiar,além do cinturão, do narizinho e dessastardes de vesperal, fiou o cadarço de meussapatos, meus lençóis e camisas, os medos e ascontrações, Lana Turner, Edgar G.Robinson e o filme tremido do CineCaiçara - aonde eu ia de noite, sozinho ecom fome, ver o Rei Artur da Távola Redondarasgar nos dentes uma coxa de peru.

Fiou também a roca o melhor que eutinha em mim, que era o riso.

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Cavalo-do-cão

Vinha ronronando o cavalo-do-cão.Vinha como um pequeno motor voadortão calmo e inesperadoquase parado no arenchendo a tarde com seu zumbido.Na rua, uma ou outra porta batia de vez com o

redemoinho súbito.Alguns meninos rangiam uma tábua sobre grãos de areia.

Com um vestido solto, feito de pano ordinário e rosas graúdasminha mãe olhava as horas pela sombra na paredesem se dar conta do marimbondoque dava voltascampeando sua solidão.

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PassagemA Tácito Costa

Do trapiche do rio, onde ao final da tarde me sentonão vejo mais cometas passeando no céua cauda da cor de alumínio.Faz alguns anos perdi meus óculos azuis, que me

deixavam ver o mundo com encanto.

(O dormitório dos menoresGinásio Salesiano Pe. Rolim - Cajazeiras - PBera assim que escrevíamos no cabeçalho da folha de

papel almaço, no ano de 1957trinta camas de um lado, trinta do outropadre Antônio, impessoal, acordava em latimbenedicamus dominum.

Sessenta camas, sessenta criançasseis mil carneiros ainda pastando em seus sonhospouco a pouco tangidos para um lugar de onde nunca

voltariamdeo gracias.

Quando o último carneiro sumiuentre dedos frágeis e olhos desatentosmuros e genuflexõesDom Bosco era para mim um santo triste, de Milãoque me havia cassado a infância.)No trapiche agora o Potengi escoa melancolia.Alguns nomes de travestis gravados nas tábuas

úmidas: Pâmela, Hilda, Giovana, Rafaela...

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Lair

O menino está estendido na cama.Sem sangue, pálido, com a cor de cera dos santos.Morreu de balatinha 15 anos, se chamava Laire sua beleza ainda afronta a morte.

A mãe move de um lado para outro um leque de palhaespanta algumas moscas que zumbem no silêncio datardeajeita no rosto da criança o véu de filó branco.Tem os olhos ressequidos, não chora.Apenas vê o filho, espanta as moscas, torna a ajeitar o filó.Está sozinha na sala, já de preto, conformando-se com o destino.

Ao fim do dia dois homens levam seu filho numa rede.Somem na paisagema rede balançando no crepúsculoantes da hora em que se ouviam as tristes cantigas de ninar.

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Salete A Edson Guedes de Morais

Era um chapéu de palhaera um chapéu de quadrilhaera um chapéu com laços de fita.

Eram duas caixas de chiclete, uma amarela e outra verde-escuro, de marca adams.

Um chocolate em forma de coração, num papel de seda, escarlate

uma carteira de cigarro Globo, que por desvelo nunca abriu

e a aliança de noivado.

No fundo do chapéu vinha tambémdesfeitonaquela tarde de domingoseu amor ainda adolescentetão mal curadotão descumprido.

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Calungas

Na linha de ferro, na estrada, na carroceria de um caminhãoandaram meus calungas.Muitos foram opacos, insignificantes; outros, entorpecidos

de loucura.Volta e meia reapareceminsistindo na função do pano.

Sabaió é um deles .Sarará, de cabelo afogueadotrocou o mamulengopor manuais sujos de óleo, folhas-de-flandres, pedaços de

zinco, polias, parafusos, arruelas, que catou nos entulhos

pra fazer voar um avião.Voou dois ou três metros e caiu, amassando uns pés de milho.

Anos depois, foi visto fazendo santo no Canindé.A barba grande, esquisito, e um ar de místicosem o jeitão mole de calungueiro.

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Herança

A louca tinha mais de 90 anose esses anos todos numa casinha de um vão só, no

fundo do quintal, onde também moravam as galinhas.

Uma grade de madeira, de meio metro, apenas encostadaimpedia a ela e às galinhas de saírem.Ana, era esse o seu nome, chorava muito porque não

podia sair.

Os homens da casa eram sãos , na meia idade, e aindaeram poucas as cãs nas suas cabeças.

Talvez por isso contavam sorrindoa estória de loucuraque herdaram de seus pais e avós.

O jeito de contar era tão banalcomo o angu de caroço que à mesa vinha, todos os dias,

em pratos de barro.

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AcrobataA Socorro de Figueiredo

Já o via por trás do balcãoarrumando, com sua voz de flauta, os bolos amanteigados.Pelas frestas das janelasuma luz que era mais pó do que clarodispersava os restos da madrugadae revelava uma sequidão dentro e fora do trem.

De carro em carro, saltando como um acrobataJonas vendeu por anos os seus bolos com gosto de terraindecifrável por trás de um bigode de pontas arrebitadas e a

fala fina.

Desapareceu um pouco antesde levarem os dormentes, os trilhos, as reservas de lenha,

de destruírem as caixas-d’águae ter ido o trem, como tudo, enferrujar no trevo de uma

estação.

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Joaquim

Muito antes de sua mortequando meu pai esticou o seu corpodobrado de tanto subir e descer a estrada de ferrode Alexandria a MossoróJoaquim Mouco levava às costas a mala do correioe era mais ligeiro que o trem velho e poeirento.

Dezenas de anos depois ainda o vejorasgando o poente, entre dois trilhos:o mesmo chouto, a mesma roupa de saco, a mesma

cara estóica.

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A visita de tio José

Meu tio José Vieira chegara de longe, uns dois dias deviagem, num Ford bigode verde.

Veio com a mulher, uma velha gorda, baixinha, e ofilho demente.

No jantar, meu pai expressava a afetividade passandoa terrina de arroz, a coalhada comaçúcar, o paliteiro, num ritual de passapra cá e passa pra lá

quase formalmenteos dez anos sem se verem.

(“José é o meu irmão predileto”, dissesem saber que em seu peito jaziam encerrados os afetos.)

Sentaram-se na sala de visita, quase dois anciãosum de frente para o outroouvindo a “Voz do Brasil”.Ao pé do rádio cochilaramenquanto em Alexandria se perdiam no ar notícias do

governo Juscelino.

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Manduca

Talvez tenha sido de meus tioso que ficou suave na lembrança.Minha mãe, não sem uma certa ternuralembrava o seu ofício de miopatae suas estórias de mentiroso.

Acho que o vi uma vezna feira de Catolé.No tabuleiro pequeno, sem pernas, arriado no chãoalgumas mezinhas se misturavama folhetos de cordel e ligas de baladeira.

Vestido em roupa de sacocom uma enorme verruga no narize um sorriso moledeixava ver o final de sua vidasem vestígio de aventuras.

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Visitando meu avô

Meu avô José Vieira, quando o conhecitinha 93 anos .Entre as paredes enfumaçadas do quartorestavam-lheuma quartinha, a rede suja, um rolo de fumo e a negra

Cícera.Tem algum catarro e tosse um pouco.

Procuro ver nos seus olhos desfocadosnotícia de um outro homem.O paiol de milho que apostou no “21”o dia em que por pouco não degolou meu paias negrinhas vencidas pelo cansaço no lajedo.

Em vão.Meu avô agora só fuma e dormeprotegido pela fuligem do tempo.

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Beiradeiros

A minha avó paterna havia sumido da lembrança.Surpreendo-me incerto de seu nome, se era mesmo

Antônia.

Vi-a uma só vez, numa das visitas perdidas de meu pai.O cabelo de arapuá, assanhadoatravessando o terreiro com um andar de pato e o vestido

enodoado de mênstruos.

Suportou enquanto vida meu avô, bruto e viciado no jogoe se escondeu numa casa de chão vermelho, ao lado de

uma barragemde onde nunca saiu.

No final da tarde um homem franzino se esforçava com uma manivela.

O motor do carro viroue logo adormeçoembriagado com o cheiro dos marmeleiros e mufumbosque corriam na beira da estrada.

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Missiva

(O padre conselheiro, gordo, vermelho e muito furiosofica sentado no estrado, vigiando os meninos e escarrandonum lenço sujo.Vigia, escarra, e lê a bíblia.Jorge, um menino do meu tamanho, de Uiraúna, contou praele que não estudo nem nada, só fico sentado na carteira,contando os dias e as horas que faltam não sabe pra quê.)

Isso é verdade, é a saudade de casa e também umavontade de sair

sem rumo, navegando num barco fantasmaà deriva do tempo e da realidade.

Às vezes sonho com o Mississippique conheci na leitura do dormitório, sob uma luz apagadinha:o apito das embarcaçõesnegros, ladrões, e prostitutas com seu velho chapéu de penaso bulício da vidahomens enlouquecidos e mulheres desalentadasa roleta da fortunae Mark Twain contando ao maquinista velhas estórias.

Lamento, meu bom pai, que de novo esteja preso à imaginação.De novo vou sonhando.Esse rio não existe mais.

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C.E.M.

O nome Tinindo era pela mania de responder semprecom esse gerúndio

que queria dizer mais ou menos estalando de bom.Morava numa barraca de madeira, por trás do muro,

onde acordava de ressaca, com o sol alto.Uma noite, enquanto dormia, jogaram em sua rede

um cachorro pegando fogo.

(Foi no ano da febre, 1958as notícias correndo soltasos doentes morriam de dia e ressuscitavam de noiteJoão Abrantes voltou pra casa vestindo camisolão de

São Francisco, branco como um defunto.)

No dia seguinte, arreliado, Tinindo voltou a vendero lanche de todos os dias: cocada ebanana da casca verde.

Na Casa do Estudante de Mossoró a miséria estalavae em muitos, como catapora, o abandono cedo se revelava.

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Teco - teco Para Anchella Monte

O aviãozinho de Seu Antônio Pão Docevez havia em que passava perigosamente entre as duas

torres da igreja matriz.Agora voava suavedeslizando no amanhecer do diaa estrada de barro, as cercas de pedra, algumas cabras

encambitadas no lajedo, a cacimba de águabarrenta, o carro de boi com uma roda sóesquecido sob a catingueira, um juazeiroperdido, a flor vermelha e irisante do

mandacarue os capuxus de algodãoque as mulheres catavamestirando tensas na manhão seu velho lençol de carrapichos.

(A terra, na cor ocrechegava aos meus olhoscom uma tristeza adocicada.)

Findou-se em chamas, no campo de pouso de Catolé, oaviãozinho.

Era um monomotor sucateadoa sua estória e a do piloto(um velho birrento como menino)logo dissolvida no azul por onde andaram.

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Trem fantasma A Leontino Filho

Dentro de mim corre um trem.É o mesmo atrasado, se quebrando pelo caminhorepetindo-se em poemas e lembranças.

(A água da torneira sai chiando, quente e aos pingos, dacor de tijolo vermelho. Tenho 12 anos, um caco de espelhoe um frasco de brilhantina. Uma espinha purula no lábioinferior. Lavo o rosto e me penteio para a próxima estação:Senhores pais de família desta abençoada terra do Patu,segurem suas filhas que o poeta Demétrio vai sair.*)

Já rasparam os trilhos, carbonizaram os dormentes,apossaram-se da faixa de terra da União,quebraram as caixas d’água, apagaram osnomes das estações (que lia sonolento nasmanhãs do abandono - São Sebastião, SãoPedro, São Paulo, São Francisco, SantaCruz, mais uma cidadezinha que mandavapara a plataforma meninos nus)

e ainda assim continua a correr dentro de mimo mesmo som do apito, da roda nos trilhos, da máquina

de furar bilhete, do balanço dos carros, aquentura da água , a poeira, os homenscom lenço xadrez no rosto como pobrese atarantados caubóis.

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A mulher escandinava A Sales Felipe

A mulher escandinava eu via por trás das grades domuro, à tardinha, na piscina do HotelReis Magos.

Os pelos amarelos reluziam leve sobre as coxas e eratão bela que cheguei a pensar fosseDiana, a Caçadora, viajando incógnitaem Natal, e com quem me alumbreinum cartaz de cinema meioapagado, meio rasgado, em Mossoró.

Por essa época esperei que à noite ela aparecesse notrapiche do rio, precedida por um feixede luz errático

como no palco surgem as vedetes de teatro outrapezistas de circo.

( Perdão pelas imagens , mas aos 12, 13 anos, não sabiabem o que fazer com as ânsias. E porisso mesmo, por um momento, asolidão arenosa do Potengi setransformava numa floresta deglicínias, gérberas, orquídeas,girassóis se abrindo à luz de um sol deOslo à meia-noite.)

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Dernanci

Sob o arvoredo em copa da Rua do Príncipelutava ao lado de Guevara e Cienfuegosnas encostas íngremes de Sierra Maestra.Uma manhã, os raios de sol perpassavam as copas,

em fachos de luz que tocavam o chãoassisti deslumbrado à rendição de três mil soldados

num quartel de Santa Clara.

(Por esse tempo, 1965, Guevara andava pelo Congo,Camilo desaparecera no Mar das Caraíbas, e a serra erasó a nostalgia dos sítios históricos.)

A par desse mundo bordelineque ouso traduzir como com um pé no abismohouve Dernanci.O colégio suburbano, no longínquo bairro de Cavaleirosua paixão por Elis Regina, Upa Neguinhoo riso constantee o púbis moreno, iluminado à noite pelas luzes amarelas

do Chantecler.

Nunca me esquecerei desse amareloque corria sobre a ponte Duarte Coelhorasteiro e penetrantehumanizando o chão, as grades de ferrome suspendendo e atirando no arleve como os marinheiros que ziguezagueavam tontos

entre o Paratodos e o Moulin Rouge.

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POEMAS DOCOTIDIANO

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Fagulhas Para Magali Melo

Estou longe do trem, da estação, do resto de linha que iaaté as salinas de Porto Franco.

Longe também de uns meninos esquisitos, vendendobolo na plataforma com a cara suja de carvão.

Passaram as carnaubeiras, a ponte de ferro, o leito seco do rio

e os muros descascados que corriam ao lado com velhos letreiros

(o salitre deles corria também nas minhas veias).

Passou da mesma forma o vento nordesteque vinha do mar de Areia Brancaespalhando pela ruas desertas da cidadeàs três da tarde, uma brisa de solidão.

Longe disso tudo, e nem vago nem perdido como antes

ainda sinto as fagulhas da máquina, cobreando agonizantes no ar.

E se não me queimam maisé pelo destemor em não recusar as lembrançasdeixar que venham.

Nas manhãs à toa da infânciaentre imburanas, jatobás e cajazeirasaprendi que a resina é um choro vegetale com ela a gente limpa e cicatriza as feridas.

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ApartheidEm memória de Pastor,16 anos, fuzilado na periferiaao anoitecer de um domingo.

Um cão passeia tranquilamente no jardim.Outros certamente estão ali guardados.Tantos que o cheiro do canil anula o aroma das plantas.

Do outro lado da cidadeÍndio , Turuna e o irmão de Marcinha saem.Lucivânia vem com eles, trazendo a tiracolo seu filho Myke.Caminham pela margem do rio, ponte de Igapó, Quintas,

estação Padre João Mariadispostos a enfrentar o cão.

Dessa guerra rasteira, miúda, sem pirotecniadesse vão embate entre cavaleiros desnudosde pouca arma e nenhum escudotenho notícia todos os dias nos jornais.E com a mesma leveza (ou leviandade)com que descerro as cortinas do meu quartodela me desfaço.Saio pra rua ver o Ano Novo e os anjinhos coloridos que

sobraram do Natale agora se desfazem nos postes, como espantalhos .

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Betaflex

Com a sua inseparável sacola de livrosele aparecia sempre aos domingos, por entre as mesas

vazias.Dessa vez vinha insone e felizpor figurar entre os 2000 melhores escritores do século.

Falou da terra natal, uma estrela de nome Betaflexe a pedido de uma garota traduziu carta de amor da

Finlândia.Fez também, como extraterrestre , sua previsão para a

eleição de Presidente.

Naquela noite fria, quase úmidaa vida me pareceu banal, sem graçaainda que me deparasse com coisas mirabolantescomo um visitante do espaço e um amor tão longínquo.

Perto do Praia Chopp, o vento soprava nas dunas.A monotonia era a mesma de quando os catalinas

encerravam a tarde no Potengihá 50 anos.

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Estória de mavé gepê

“Carolzinha, mia ragazza brasiliana”ele falou assim depois do jantar com o Presidente“leva essa latinha como lembrançaun regalo dal tuo amoree com carinho te peço só abras no Brasil”.

No avião vinte horas voando, a latinha no colo, pintadade amarelo e azul, na tampa um ursobranco com a boca aberta

homem italiano é educado, Migueli é, cientista de camarãodiferente desses brutos daquio último amarrou minhas mãos, tapou minha boca e

me estrupou por trás.

Na latinha?, um chocolate da Suíça, furadinho, fofo, edez notas de cem dólares.

Queria lhe pedir, Rafael, não falasse pra Márcia,nem pra Juma e Patrícia, que elas vãoachar graça, dizer que quando bebofico sonhando, inventando coisa, queisso só podia ser estória da Carolzinha,uma menina da fala tata que mora coma mãe em Macaíba.

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Média classe

Não havia flores na sala(nem mesmo de plástico ou de pano).Os passarinhos do tapete não me alentam.São apenas aves sonhadas, estampas desconformes

tecidas por quem não andou com pássaros.Em nenhum canto ouço sons de criança.A primeira noite no Terra Brasilis é de um silêncio

travado, sem remanso.

Ao meu redor giram móveis de vidro e açotudo branco, tudo clean.Gira também uma fruteira sem frutas, rastejando a penumbraa média luz não tem dois para brindar o amor.

Bebo meio litro de um licor de chocolate com laranjae adormeço sofreando as ilusões.

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No parque A Paulo de Tarso Correia de Melo

Vou ao parque caminhare escuto o vôo das rolinhas.Uma delas, amarronzada, reconheço, é uma caldo-de-feijão.Por baixo das asas a penugem ralao peitinho arfandoo mesmo estremecimento de quando criançaeu as via voando, aos montes, sobre o capinzal amarelo.

De novo tenho sete anose por um momento sem a pressados que passam correndo ao meu redorfechando intocáveis e repetidos círculos.

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Sete mulheres

Sete mulheres estão sentadas à mesa.Uma é avó, outras são só mãe (ainda com cara de

adolescente)e três meninas.

Como posso ler estas sete mulheres sentadas à mesa,sem nenhum homem?

Serão sete mulheres e sete sonhos?Ou sete mulheres e sete desesperanças?Ou nem uma coisa nem outra, sendo hoje tudo tão

insensivelmente?

Toca um celular.Uma delas vai até a praia e atende.Deve ser coisa do cotidianolevando como sempre sua beleza.

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Além dos vidros da noite

Disse por cartaque a sua beleza não tinha preçofoi Deus quem lhe deunada queria de seu pouco dinheiroa vida de outro modo se enrugasse.

Pediu apenas que trouxesse palavras bonitasdessas que não se ouvem maise ele por medo não escreviarecolhidas ao limbo como coisas do passado:

estrelas namorando no céugirassóis que se abrem em delírioum velho cometa que volta cansado pra casae o sol de Oslo, refletindo no céu da meia-noite

a luz de um encantado azul.

Disse ainda que só queria trazer de longe o perdidotempo do enlevo

temperar um pouco de encanto às horasir além dos vidros que adormentam a noite.

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Restos

Meio-dia, sol de um verão amenouma égua pasta na rua, sem cabresto e dono.Mais preciso, uma besta velha longe da cocheira

onde abundaram milho e tortacome restos, plásticos lambidos e untados de detritos.

(A juventude é só um sopro num olho cheio de ciscosos dias de estória e magia não retornamo que passou, passou - preciso repetir?, não volta mais.)

O carro em velocidade, salta ou morresaltei, Dernanci saltou tambéma Ponte Duarte Coelho era de ferro e fogodezessete contra dezoito anosembriagados de desejo e amarelo das luzes do

Chanteclerpor ali mesmo ficaramlavados pelas águas sulfurosas do Capibaribemuito tempo depois descoloridos, da cor de acajue algumas lembrançassem solidez, sem tatomais um retrato feito de cinzas.

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Haveres

Meu pai já teve lojas, fazendas e neurastenias.A partir dos sessenta foi-se aquietando com a leitura da

bíbliacatando na tarde comprida estórias do tempo de Salomão - suas setecentas mulheres e trezentas concubinas.

Minha mãe, entrevada, entre bolos e doces que ainda faziasem sentir deixava escorrer sobre a mesa, coberta por

uma toalha de plástico xadrez, umalinguagem de natural poesia.

Poderia então ter sido um contista ou mesmo um cronista ameno.

Mas, para minha frustração, não sou uma coisa nem outra.Apenas trago algumas estórias, de um mundo distante

como as de meu paique reproduzo arremedando a linguagem de minha mãe.Vou tocando como posso os haveres invisíveis que os

dois me deixaram.

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DEMÉTRIO DINIZ:

Márcio de Lima DantasProfessor de Literatura Portuguesa

do Departamento de Letras da UFRN

A paciência de ter esperado a hora da maturaçãoda poesia - que, como sabemos, oscila entreum poeta e outro -, parece ter sido um dos

méritos a serem ressaltados no segundo livro, Passarás, dasóbria e elegante poesia do escritor Demétrio Diniz. Seencontramos na história da literatura casos de genialidadeprecoce, como a do francês Arthur Rimbaud (encerrou suameteórica carreira literária aos 19 anos), não podemosesquecer, em contrapartida, casos bem perto da gente, comoa publicação de uma poesia, curtida num carbureto morno,aguardando o maturar dos textos, de um poeta como Paulode Tarso de Melo Correia, estreando em livro pouco antesdos 50 anos.

Assim o foi também com Demétrio, que, com a mesmaidade, em 1996, publicou um livro de poemas intitulado Umhomem sem poesia (1996) prenúncio das alvíssarasbenfazejas do livro Passarás. Ainda com a assinatura bastanteindecisa, eivada de sinais de um neo-romantismo poucopalatável ao espírito do nosso tempo. De toda maneira, jádenunciava na forma a simplicidade da metáfora que viria a

de quando a poesia é quase uma etnografia

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de poesia que não pode negar (nem que quisesse lançar dacategoria de eu-lírico) seu substrato autobiográfico. Já umoutro vetor contempla o meio circundante, no qual o sujeitoda primeira força vai constatando, inquirindo, observandocostumes e extraindo metáforas universalizáveis daquilo queé chã e banal.

Muito bem, mas etnografia de quem ou do que? Que osubstrato primeiro repousa sobre a infância do poeta, nãoresta dúvida. Acontece que os eventos observados em suafenomenologia de indivíduos ou de um grupo social não secontentam em se restringir a um lugar e a um tempo. Devidosua natureza formatada em quadros de forte teor imagético,passa a adquirir um valor universal. Estruturados numasintaxe simples, escorreita, descreve com simpatia e acuidadealguns aspectos importantes de uma cultura praticamenteem extinção, contudo, não há o travo piegas do saudosistatentando em desespero reter o tempo. Contenta-se emapresentar os quadros, conservados que foram em algumflanco da memória. Nítidas e expressivas imagens comsugestivo poder fotográfico.

Para Gilberd Durand, a estética pode ser compreendidacomo “um prelúdio da antropologia”. Embora, desde sempre,boas inimigas, literatura e vida formam uma estranhasimbiose, uma não pode prescindir da outra. A literatura,subsidiada desde sempre por todos os domínios doconhecimento, afora seu poder de prenúncio e de vaticinaravant la lettre coisas do porvir, consegue reter magias earcanos que a tornam um discurso específico. A literaturasempre foi um veículo no qual estruturas antropológicas doimaginário encontraram guarida e brechas para emergireme demonstrar as formas pertencentes a uma dimensãohumana que não se dá à vista.

Mais é bom dizer uma coisa. Essa relação entreantropologia e literatura, quando efetivada em práticaestética, ou seja, o que pode parecer anotações de umacaderneta de etnógrafo, é, na verdade uma mirada poéticasobre determinado evento ou paisagem. O olhar etnográfico

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Demétrio escolheu beber noutra fonte, a inesgotável fonteclássica na qual se fartaram os poetas gregos e latinos,consubstanciando o poético a partir da justa palavraformadora das imagens poéticas.

O livro intercala dois registros-olhares diferentes. Um eu-lírico mais centrado na sua subjetividade, como, por exemplo,no poema

A vida eis-me até aquibordada em tempos diversos.Embora num só bordadorno mesmo ponto de cruz.

Outro que observa o mundo como um antropólogo quedescreve:

A casa de Dona Nenzinha era arrumada defazer gosto.Chegava lá e via os copos de alumínio areadoso pote com a boca de pano rendado.

Penso que o poeta, intuitivamente, ao abrir duasvertentes, também se permitiu uma margem de manobrasbastante ampla, na medida em que possibilita a exploração eefetivação de poemas sem se repetir ou fazer um pastiche desi mesmo (como sucede a muitos). Ocorre uma alternância,às vezes confundida num só texto, entre objetividade esubjetividade. Em suma, o que se encontra em jogo é umasimples porém requintada comunicabilidade, levada a efeitoatravés de um estilo simples e nada pedante. Mesmo por queos temas do poeta são aqueles retirados do cotidiano maischã. Forma e conteúdo travam um hábil conluio capaz dedespertar no leitor toda uma empatia, contudo, não pensemque o poeta se atém a uma concepção apenas, digamos,fenomenológica dos eventos que o circundam ou quetestemunha. O poeta busca trazer à tona o sublimeresguardado num ritualizado gesto ou costume da vida de

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Este livro foi composto peloCAMARA3 studio em Book antiquae Tempus sans. Miolo impresso empapel off set 90g/m2 e capa em cartãosupremo 180g/m2.