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Educação em Revista, Marília, v. 14, n. 1, p. 65-78, Jan.-Jun., 2013 65 Educação e cidadania e a crise na educação de Hannah Arendt EDUCAÇÃO E CIDADANIA E A CRISE NA EDUCAÇÃO DE HANNAH ARENDT EDUCATION AND CITIZENSHIP AND THE CRISIS OF EDUCATION IN HANNAH ARENDT Claudio Domingos FERNANDES 1 RESUMO: O presente artigo articula a relação entre os conceitos de cidadania e educação a partir de texto de Silvio Gallo, para quem a tarefa da educação é preparar para a cidadania e de Hannah Arendt que encontra na natalidade, o fato de seres novos nascerem para um mundo já constituído, a essência da educação e promove uma cisão radical entre Educação e Política, combatendo a politização da educação. Dessa relação decorre que a formação para a cidadania é contribuir para que os “recém-chegados” se apropriem desse mundo que lhes é legado, possibilitando assim que futuramente assumam a responsabilidade por ele. Essa contribuição deve escapar a ingerência doutrinaria e ideológica, resguardando a singularidade de cada um que é uma novidade para o mundo e, por isso, é, a princípio, capaz de transformá-lo, começando algo novo. O educador assume papel fundamental, é seu compromisso para com o mundo, traduzido amor pelo mundo, que lhe confere autoridade e pode propiciar às crianças e aos jovens a possibilidade de desenvolver sua singularidade, contribuindo assim para que futuramente possam de fato realizar o dom da liberdade, renovando o mundo que herdaram. PALAVRAS-CHAVE: Autoridade - Natalidade. Hannah Arendt. Educação, Política. INTRODUÇÃO Educar para a cidadania tem sido o apelo dirigido às instancias educacionais seja pública, seja privada, seja de ensino formal, seja de formação informal. “E não são poucos os discursos que colocam para a educação a tarefa de formar o cidadão.” (GALLO, 2001 p. 133). De tal modo, preconiza artigo da LDB: A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por inalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualiicação para o trabalho. (BRASIL, 1996). Desta clareza missionária, porém, emerge a necessidade de tornar claro de que cidadania e de qual cidadão se está falando, pois: Alguns compreendem o cidadão como o individuo que possui direitos políticos, outros, como aquele que possui deveres sociais; outros ainda, como aquele que, no contexto de uma sociedade de mercado, tem acesso aos bens de consumo. (GALLO, 2001 p. 137) 1 Formado em Filosoia pelo Instituto de Filosoia e Teologia Paulo VI. Participa do Grupo de pesquisa em Filosoia da Educação (Grupefe), na Universidade Uninove e do Centro de Estudos Filosóicos (CEFIL), como pesquisador em Educação, da UFVJM.

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  • Educao em Revista, Marlia, v. 14, n. 1, p. 65-78, Jan.-Jun., 2013 65

    Educao e cidadania e a crise na educao de Hannah Arendt

    EDUCAO E CIDADANIA E A CRISE NA EDUCAO DE HANNAH ARENDTEDUCATION AND CITIZENSHIP AND THE CRISIS OF EDUCATION IN HANNAH

    ARENDT

    Claudio Domingos FERNANDES1

    RESUMO: O presente artigo articula a relao entre os conceitos de cidadania e educao a partir de texto de Silvio Gallo, para quem a tarefa da educao preparar para a cidadania e de Hannah Arendt que encontra na natalidade, o fato de seres novos nascerem para um mundo j constitudo, a essncia da educao e promove uma ciso radical entre Educao e Poltica, combatendo a politizao da educao. Dessa relao decorre que a formao para a cidadania contribuir para que os recm-chegados se apropriem desse mundo que lhes legado, possibilitando assim que futuramente assumam a responsabilidade por ele. Essa contribuio deve escapar a ingerncia doutrinaria e ideolgica, resguardando a singularidade de cada um que uma novidade para o mundo e, por isso, , a princpio, capaz de transform-lo, comeando algo novo. O educador assume papel fundamental, seu compromisso para com o mundo, traduzido amor pelo mundo, que lhe confere autoridade e pode propiciar s crianas e aos jovens a possibilidade de desenvolver sua singularidade, contribuindo assim para que futuramente possam de fato realizar o dom da liberdade, renovando o mundo que herdaram.

    PALAVRAS-CHAVE: Autoridade - Natalidade. Hannah Arendt. Educao, Poltica.

    INTRODUO

    Educar para a cidadania tem sido o apelo dirigido s instancias educacionais seja pblica, seja privada, seja de ensino formal, seja de formao informal. E no so poucos os discursos que colocam para a educao a tarefa de formar o cidado. (GALLO, 2001 p. 133). De tal modo, preconiza artigo da LDB:

    A educao, dever da famlia e do Estado, inspirada nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por inalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualiicao para o trabalho. (BRASIL, 1996).

    Desta clareza missionria, porm, emerge a necessidade de tornar claro de que cidadania e de qual cidado se est falando, pois:

    Alguns compreendem o cidado como o individuo que possui direitos polticos, outros, como aquele que possui deveres sociais; outros ainda, como aquele que, no contexto de uma sociedade de mercado, tem acesso aos bens de consumo. (GALLO, 2001 p. 137)

    1 Formado em Filosoia pelo Instituto de Filosoia e Teologia Paulo VI. Participa do Grupo de pesquisa em Filosoia da Educao (Grupefe), na Universidade Uninove e do Centro de Estudos Filosicos (CEFIL), como pesquisador em Educao, da UFVJM.

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    No horizonte da tentativa de se esclarecer o conceito de cidadania, faz se necessrio, tambm, discutir as possibilidades de uma formao instrumentalizada, ou uma politizao do ato educativo. A este ltimo propsito, valemos-nos da contribuio de Hannah Arendt, que promove uma radical separao entre os domnios da educao e da poltica, e recusa vigorosamente qualquer forma de instrumentalizao da educao em favor de propsitos polticos em sentido estrito.

    DO CONCEITO DE CIDADANIA

    A cidadania, segundo Silvio Gallo (2001, p. 135), tem duplo aspecto: um atributo de todo ser humano, e uma condio poltica.

    [...] podemos deinir a cidadania como a relao de pertena a uma comunidade. J Aristteles mostrava que inerente ao ser humano a condio poltica; dele a clebre airmao de que o homem um animal poltico Ora, [...] somos, necessariamente, pertencentes a uma comunidade... Desta forma, podemos airmar que a cidadania inerente condio humana; ou, com outras palavras, ser humano , necessariamente, ser cidado.

    Se, de fato, a cidadania inerente condio humana, nascemos j cidados. Ento, qual a razo de se educar para algo que nos intrnseco?

    que, para Gallo:

    A cidadania nada se no a exercitarmos. Sendo inerente condio de humano, ela depende de nossas aes. [...] a cidadania est em ns, mas s existe de fato quando pertencemos ativamente a uma comunidade da qual tomamos parte que faz de ns cidados de fato (GALLO, 2001, p. 135-136).

    Depois, segundo o mesmo Gallo, o conceito de cidadania, por ser histrico, no unvoco.

    A deinio que melhor agrada a Silvio Gallo, no contexto em que nos encontramos, a seguinte: Em termos mais atuais e mais comuns, poderamos dizer que a cidadania constitui-se em direitos (possibilidades) e deveres (necessidades) dos indivduos articulados numa sociedade poltica, numa comunidade. (Idem, p. 139).

    E

    Para conquistar e construir essa cidadania que almejamos, no basta que nos contentemos em votar uma vez a cada dois anos em pessoas que nos representem na conduo dos destinos da cidade, do estado, do pas; necessrio que cada um de ns, em suas aes cotidianas, esteja participando ativamente da comunidade, assumindo as responsabilidades que lhes so inerentes e agindo coletivamente [...] (Idem, p. 141).

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    Educao e cidadania e a crise na educao de Hannah Arendt

    Dado este passo, nosso autor, se detm em buscar elementos para pensar a construo da cidadania na ao pedaggica nas escolas. Aqui, nos valemos de uma sua observao em nota de rodap para acercarmos da posio arendtiana a cerca da relao entre educao e poltica. Observa Gallo, em nota de rodap: Hannah Arendt (Entre o passado e o futuro, pp. 127-187 e 221-247) nega que a educao seja o espao da poltica, segundo a autora, a escola um espao pr-poltico, que prepara os indivduos para a ao poltica consciente. (Idem, p. 143)

    A SOBREPOSIO DE PBLICO E PRIVADO

    Hannah Arendt no pode ser tomada como uma pedagoga ou mesmo ilsofa da educao. Em sua longa carreira intelectual, seus escritos situam-se num terreno aparentemente alheio educao. No entanto, Hannah Arendt desenvolve um breve e instigante ensaio cerca da educao (A Crise na Educao, in 2003, pp. 221-247), que, pelo volume de estudos a ele dedicados, tornou-se j um clssico. No entanto, a compreenso desta sua modesta e fulcral participao no debate educacional insere-se no contexto de sua produo intelectual e de sua apurada anlise da situao humana de alienao, encontrada em sua principal obra A condio humana (2004) onde ela enfrenta a sobreposio das esferas pblico-privada e a ascendncia da esfera social ao domnio pblico. Em seu esforo terico-crtico da modernidade, ela registra a tendencial despolitizao do mundo moderno, todo voltado a exaltar o trabalho e o consumo e a transformar a esfera pblica onde se deve dar efetivamente a participao dos cidados na vida da polis em uma esfera de pura e simples administrao dos interesses econmicos. inserido em tal diagnstico, que referindo-se crise na educao, Hannah Arendt faz constatar:

    Em parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram to agudos, e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no campo da Pedagogia foram aceitas to servil e indiscriminadamente. Desse modo, a crise na educao americana (que penso caber brasileira), de um lado, anuncia a bancarrota da educao progressiva e, de outro, apresenta um problema imensamente difcil por ter surgido sob as condies de uma sociedade de massas e em resposta s suas exigncias. (ARENDT, 2004, p. 227-228).

    Tendo como referncia o mundo grego, Arendt (2004) estabelece uma distino entre a esfera da vida privada e da vida pblica. Na privacidade os homens viviam juntos, compelidos pela fora compulsiva das necessidades e das carncias; a esfera da famlia. A superao das necessidades e das carncias libera o homem da vida privada; constitu a condio natural para a vida livre na polis.

    De tal modo, para Arendt, o espao privativo, em que a famlia o centro, deinido como fenmeno pr-poltico. Nesse espao, ento,

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    A fora compulsiva era a prpria vida...; e a vida, para sua manuteno individual e sobrevivncia como vida da espcie, requer a companhia de outros..., o labor do homem no suprimento de alimentos e o labor da mulher no parto, eram sujeitas mesma premncia da vida. Portanto, a comunidade natural do lar decorria da necessidade: era a necessidade que reinava sobre todas as atividades exercidas no lar. (ARENDT, 2004, p. 39-40).

    Na polis, o espao da esfera pblica, a liberdade era a condio essencial da eudaimonia, e pressupunha a vitria sobre as necessidades da vida. E s era considerado livre o sujeito que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera poltica, onde todos eram iguais.

    A polis diferenciava-se da famlia pelo fato de somente conhecer iguais, ao passo que a famlia era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre signiicava ao mesmo tempo no estar sujeito s necessidades da vida nem ao comando de outro e tambm no comandar. No signiicava domnio, como tambm no signiicava submisso. Assim, dentro da esfera da famlia, a liberdade no existia, pois o chefe da famlia, seu dominante, s era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera poltica, onde todos eram iguais. (Idem, p. 41).

    No entanto, segundo a autora, a tradio latina, ao traduzir o zoon politikon de Aristteles por animal socialis, perdeu a concepo original grega de poltica. Depois, a ascendncia da esfera social, na Idade Moderna, liquidou de vez a distino entre esfera pblica e privada, e: No mundo moderno, as duas esferas constantemente recaem uma sobre a outra, como ondas no perene luir do prprio processo da vida. (Idem, p. 42-43).

    De tal forma,

    A passagem da sociedade [...] do sombrio interior do lar para a luz da esfera pblica no apenas diluiu a antiga diviso entre o privado e o poltico, mas tambm alterou o signiicado dos dois termos e a sua importncia para a vida do indivduo e do cidado, ao ponto de torna-los quase irreconhecveis. (Idem, p. 47).

    Retrados e/ou assimilados pela esfera social, os espaos pblico e privado na modernidade icam cada vez mais preenchidos pela ideia de um direito social, patrocinado por um Estado social, que tem a funo de zelar pelo bem-estar dos que compem a sua estrutura.

    Destarte, a esfera social, em seu pice, o surgimento da sociedade de massa, [...] abrange e controla, igualmente e com igual fora, todos os membros de determinada comunidade. (Idem, p. 50).

    E a sociedade de massa a indicao de que os vrios grupos sociais foram absorvidos por uma sociedade nica. Isso s se tornou possvel porque o comportamento substitui a ao, gerando conformismo.

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    Educao e cidadania e a crise na educao de Hannah Arendt

    Em sua obra Quem me educa?, em sintonia com Arendt, Dante Donatelli (2004, p. 39) aponta que

    Massiicando o pblico com sua indstria, a sociedade burguesa tambm massiicou os modelos de adeso a ela. Massacrar o pblico em detrimento do privado uma estratgia de homogeneizao que permite uma reverso nos complexos vnculos entre privado e pblico sem retirar do lugar o foco principal que a prevalncia poltica e econmica da vida burguesa.

    contra tal homogeneizao conformista, que Arendt se insurge. Para ela, a politizao da educao a tentativa de transformar a educao num instrumento da poltica que, a seu ver, mata o que h de novo e revolucionrio na criana, e visa apenas a doutrinar e produzir sujeitos previsveis e controlveis. contra instrumentalizao poltica da educao, instrumentalizao que ela observa ocorrer na prpria poltica, que Hannah Arendt postula uma demarcao radical entre poltica e educao no ensaio que passamos a considerar.

    A CRISE NA EDUCAO

    O ensaio de Arendt, A Crise na Educao, compe sua obra Entre o Passado e o Futuro, lanado pela primeira vez em 1954. Nele Arendt insurge contra uma forma de pensar a relao entre educao e poltica, que preconiza a educao como instrumento a servio da poltica.

    Contra tal propenso, atacando nitidamente os partidrios da Escola Nova, Arendt (2003, p. 225) logo vaticina A educao no pode desempenhar papel nenhum na poltica, pois na poltica lidamos com aqueles que j esto educados. De fato, os escolanovistas viam na educao um papel destacadamente poltico, constituindo a escola um instrumento de renovao social e de construo de um novo mundo. Mas, para Arendt, a poltica no pode ser pensada a partir da educao, pois a relao entre os agentes polticos no deve ser concebida semelhana das relaes pais-ilhos ou professor-aluno.

    Arendtobservaque: Na Amrica, indiscutivelmente, a educao desempenha um papel diferente e incomparavelmentemais importante politicamente do que em outros pases. Isto devido a demanda imigratria, pois:

    [...] a fuso extremamente difcil dos grupos tnicos mais diversos [...] s pode ser cumprida mediante a instruo, educao e americanizao dos ilhos de imigrantes dos mais variados grupos tnicos [...]podeapenas ser realizada atravs da escolaridade, a educao, e americanizao dos ilhos dos imigrantes. (ARENDT, 2003, p. 223).

    No entanto, Hannah Arendt identiica duas falhas principais ou perigos nas prticas pedaggicas modernas. Primeiramente, como vimos acima, Arendt identiica

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    uma tentiva de prever e controlar o futuro para moldar as crianas, de tal modo que a sua aes se tornem previsveis, o que caracteriza, para Arendt, uma negao da capacidade de iniciar e fazer o que inesperado, algo fundamental para a sua humanidade.

    Em segundo lugar, Arendt observa haver uma certa rejeio do papel da autoridade na relao educativa, e da renuncia por parte dos educadores por sua responsabilidade de representar o mundo. Em tal situao as crianas so reduzidas ao mero estado de crescimento biolgico, sem histria e sem sentido, como veremos.

    A EDUCAO PRESCINDE DA AUTORIDADE

    O professor Jos Nilson Machado2, embasa uma de suas lies em Hannah Arendt e ensina que a palavra educao comporta duplo aspecto: conservar e transformar, permeados pela ao. Segundo ele

    O que se busca com a educao a ao que conserva e/ou a ao que transforma. Segundo o Aurlio, ao atividade de um sujeito, expresso de uma vontade livre e consciente. Ao, portanto no um simples fazer, a atividade surgida da livre inteno de um agente.

    Continuando ele explica que, a ao remete a duas realidades: reao e coao.

    A cincia, por exemplo, trabalha com o principio que entre ao reao h uma simetria. Nessa dinmica, toda ao gera uma reao. como dizer: bateu-levou. No entanto, quem vive estritamente de reao o animal. A dimenso humana no a da reao e sim a da resposta. O que se espera do ser humano que responda. O fazer consciente que a ao signiica, me leva a dar uma resposta que uma nova ao, um novo fazer que consciente. A expectativa tica em educao de uma ao totalmente assimtrica: Se todo mundo mente eu no minto.

    Nesta perspectiva a coao tem sentido positivo e se estreita com a autoridade.

    Uma coao legtima est associada autoridade. Espera que a autoridade esteja no poder legitimamente. A autoridade consentida tem a posse do poder reconhecido e, por isso, tem o monoplio da fora. Nenhuma autoridade que perde a legitimidade permanece autoridade, no entanto pode manter o poder.

    Para Hanna Arendt (2003 p. 123) o sintoma mais signiicativo da crise da modernidade ela ter assediado a autoridade na criao dos ilhos e na educao.

    2 Reiro-me ao Curso Tpicos de Epistemologia e Didtica, um conjunto de 26 vdeos aulas, promovidas pela Universidade de So Paulo e disponibilizadas no endereo eletrnico http://www.veduca.com.br/play?c=255&a=2. Aqui propriamente, nos referimos s duas primeiras videos aulas, onde Jos Nilson Machada fundamenta sua concepo de educao a partir dos conceito de ao e coao permeadas pela palavra.

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    Educao e cidadania e a crise na educao de Hannah Arendt

    Pois bem, diz ela:

    Sabemos todos como a coisas andam hoje em dia com respeito autoridade. Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema, obvio que, na vida pblica e poltica, a autoridade ou no representa mais nada pois a violncia e o terror exercidos pelo pases evidentemente nada tem a ver com autoridade ou, no mximo, desempenha um papel altamente contestado. (ARENDT, 2003, p. 240).

    De tal modo,

    H uma conexo entre a perda de autoridade na vida pblica e poltica e nos ambitos privados e pr-polticos da famlia e da escola. Quanto mais radical se torna a desconiana face autoridade na esfera pblica, mais aumenta, naturalmente, a probabilidade de que a esfera privada no permanece inclume. (Ibid)

    Segundo ela, o exerccio da autoridade pode estar vinculado a pessoas e cargos. Em ambos os casos a autoridade pressupe o reconhecimento incondicional daqueles que devem obedecer. Por esse motivo, a conservao da autoridade est relacionada garantia do reconhecimento. Mas, segundo seu parecer, a utilizao da fora indcio do fracasso da autoridade. E o visvel crescimento da violncia intra e extra muros escolar, a nosso aviso, sinal desta perca da autoridade, como apontada pelo professor Jos Nilson Machado.

    Para a Arendt, para o sucesso da educao, a autoridade do pai e do professor, perante o ilho/aluno, deve ser preservada pela capacidade de os envolvidos reconhecerem e respeitarem a funo e a importncia de cada um na relao. De modo que, a obedincia no tem a ver com perda de liberdade, mas com sua preservao.

    Em brilhante trabalho a cerca da Educao em Hannah Arendt, Vanessa S. Almeida (2011, p. 43) aponta que:

    Um dos principais equvocos presentes na educao hoje a pretenso de libertar as crianas da autoridade dos adultos, como se fossem uma minoria oprimida, e, por consequncia, isentar os adultos de decises que somente a eles cabem a respeito do processo educativo.

    A autoridade do professor exige uma dupla responsabilidade, e ao assumir estas responsabilidades que ele assegura sua autoridade. A primeira a de apresentar o mundo ao recm-chegados, a segunda a de representar este mundo. Aqui, Arendt, faz uma clara distino entre autoridade e qualiicao proissional.

    Na educao, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma da autoridade. A autoridade do educador e as qualiicaes do professor no so a mesma coisa. Embora certa qualiicao seja indispensvel para a autoridade, a qualiicao, por maior que seja, nunca engendra por si s autoridade. A qualiicao do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porm sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. (ARENDT, 2003, p. 239).

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    FERNANDES, C. D.

    Neste sentido, a coao uma ao necessria na relao educativa. No entanto, quando ilegtima e sob o uso da fora, ela torna-se prejudicial. Em sentido positivo, porm, somos constantemente coagidos e a construo da conscincia passa por um processo de coao. Toda autoridade, todo exerccio de autoridade uma coao consentida, porque considerada legitima. A coao com a fora bruta violncia e sempre indesejvel. Fugir, portanto, questo da autoridade fugir do terreno da educao. preciso construir no espao escolar o espao da autoridade consentida.

    A ESSNCIA DA EDUCAO A NATALIDADE

    Por educao, primeiramente, Arendt signiica duas coisas: a introduo das crianas no mundo atravs daatividade dos adultos, principalmente os pais; as atividades dos professores nas escolaspor meio do currculo.

    Os pais humanos [...] assumem na educao a responsabilidade, ao mesmo tempo pela vida e desenvolvimento da criana e pela continuidade do mundo... [...] A qualiicao do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros a cerca deste [...], sua autoridade assenta que ele assume por este mundo. (ARENDT, 2003 p. 235-239).

    Mas o que d relevncia obra de Hannah Arendt e a inscreve como fundamental questo educacional seu conceito totalmente original.

    Para ela, a educao est diretamente conectada ao conceito de natalidade. A essncia da educao, diz ela, a natalidade (ARENDT, 2003, p. 223) e assume, por isso, duplo aspecto: a criana, objeto da educao, um novo ser humano que chega a um mundo j dado e um ser humano em formao. De tal modo, A criana requer cuidados e proteo especiais para que nada de destrutivo lhe acontea de parte do mundo [...] Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criana a famlia [...] (Idem, p. 235).

    Cabe esclarecer que o conceito de natalidade, para Arendt, est intimamente ligado ao conceito de ao, que ela desenvolve em sua obra A Condio Humana (1989), alinhada entre as principais obras ilosicas do sculo XX. Nela Arendt trata da condio humana dedicando-se vida ativa e estabelece o labor, (geralmente traduzido por trabalho), o trabalho (traduzido geralmente por obra) e a ao como atividades distintas e inter-relacionadas das atividades humanas. Tais atividades e as suas respectivas condies encontram-se estreitamente unidas s condies mais gerais da nossa existncia: a prpria vida, a natalidade, a mortalidade, a pluralidade e a pertena ao mundo.

    Delas, a ao a nica atividade que se exerce sem a mediao das coisas ou da matria. Seu nico requisito a condio humana da pluralidade, que tem duplo aspecto de igualdade e diferena:

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    Educao e cidadania e a crise na educao de Hannah Arendt

    A Pluralidade humana, condio bsica da ao e do discurso, tem duplo aspecto de igualdade e diferena. Se no fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das geraes vindouras. Se no fossem diferentes, se cada ser humano no diferisse de todos os que existiram, existem ou viro a existir, os homens no precisariam do discurso ou da ao para se fazerem entender [...] (ARENDT, 2004, p. 188).

    Agir, de archein, grego: comear, ser o primeiro; e agere, latim: imprimir movimento a alguma coisa, consiste em tomar iniciativa, imprimir movimento a alguma coisa, governar. A ao autentica sempre interao com o mundo, permitindo que a essncia humana seja preservada. , neste ponto que Hannah Arendt desenvolve a noo de natalidade relacionada ao.

    O agir evoca sempre a criao de novas possibilidades. Ele entendido como criao e no como criatividade, porque remete para o surgimento de novidades. com palavras e atos que nos inserimos no mundo e esta insero como um segundo nascimento, no qual conirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento fsico original. (ARENDT, 2004, p. 189).

    Do mesmo modo, o incio, que acompanha o nascimento do ser humano, aigura-se como capacidade de iniciar, tomar iniciativa. Destarte, de acordo com Celso Lafer (2003, p.29: A natalidade signiica que ns nos iniciamos para o mundo atravs da ao. E a natalidade, ento, para Hannah Arendt, que justiica e fundamenta a educao: A essncia da educao a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo. (ARENDT, 2003, p. 223).

    Cada novo nascimento, ento, possibilita um novo comeo, por ser capacidade de agir, de criar o novo. Assim, a permanncia do mundo depende das expectativas que cada novo nascimento porta consigo. Ao educador compete acolher e apresentar este mundo ao recm-chegado a este mundo.

    E o mundo, [...] visto que feito por mortais, se desgasta, e, dado que seus habitantes mudam continuamente, corre o risco de tornar-se mortal como ele. (ARENDT, 2003, p. 243), encontra na natalidade, na vinda a ele de novos seres humanos a possibilidade de permanncia e transformao.

    [...] o novo, comeo inerente a cada nascimento, pode-se fazer sentir no mundo somente porque o recm-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ao e, portanto de natalidade. (ARENDT, 2004, p. 17).

    Aplicada educao, portanto, a condio da natalidade relacionada ao constitui o pilar das teses arendtianas, em que: educar pressupe preservar o que indito, isto , preservar aquilo que, de novo, os jovens introduzem no mundo.

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    FERNANDES, C. D.

    PROTEGER A LIBERDADE

    Retomando o texto de Silvio Gallo (2001 apud PEIXOTO, 2001, p. 143), ele assevera:

    Parece-me que no qualquer ao pedaggica que contribui para a construo da cidadania... uma educao voltada para a legitimao do status quo, para a subjetivao, isto , para a constituio de indivduos incapazes de pensar e decidir por si mesmos, mas presos s malhas de uma teia social que dita o que deve ser desejado, pensado, consumido etc., leva formao de autmatos sociais, de cidado passivos que no exercitam essa condio humana bsica que a de, tomando parte de uma comunidade, ser o construtor da prpria comunidade.

    contra tal instrumentalizao da educao, ao nosso olhar, que Hannah Arendt se insurge ao airmar: A educao no pode desempenhar papel nenhum na poltica, pois na poltica lidamos com aqueles que j esto educados. (ARENDT, 2003, p. 225).

    Para Hannah Arendt, ento, [...] a funo da escola ensinar as crianas como o mundo , e no instru-las na arte de viver. (ARENDT, 2003, p. 246).

    Nesta perspectiva,

    Conhecer o mundo no signiica simplesmente ter acesso a informaes sobre ele. Para isso, hoje no precisamos da escola. O papel do educador , muito mais, o de mediador entre o mundo e os jovens. Isso vai alm de um abrir portas, que poderia ser feito pelo professor de modo mecnico e at indiferente. (ALMEIDA, 2001, p. 39)

    O papel do professor nesta dinmica assume duplo aspecto. Como professor ele responsvel pela educao de seus alunos, mas tambm faz parte de seu papel assumir, diante deles, a responsabilidade pelo mundo. (IBID).

    O mesmo, segundo Almeida, deve ocorrer com a formao juvenil:

    Tambm os jovens no assumem, no mbito da escola, a responsabilidade pelo mundo, isto , no exercem o papel de cidados na escola, mas o cuidado e a proteo que o professor dispensava aos menores vo cedendo cada vez mais lugar apresentao do mundo. Assim, que os alunos vo familiarizando com os saberes e as praticas desse espao comum, tornar-se-o capazes de assumir a sua responsabilidade por ele. (Idem, p. 38).

    Para Arendt, o indivduo previsvel um simulacro de indivduo. Consignado ao privado, o indivduo ica, paradoxalmente, privado daquilo que o faz irrepetvel: a sua capacidade de, pela ao plural, de inovar e de criar. contra tal possibilidade que, a nosso ver Arendt se insurge.

    O que preconiza, ento, Silvio Gallo, que a educao para a cidadania deve, tambm, estar voltada para a singularizao: a articulao entre a identidade

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    Educao e cidadania e a crise na educao de Hannah Arendt

    na diversidade, a individualidade na comunidade, a liberdade na solidariedade, encontra-se, para Arendt no testemunho do adulto que acolhe e insere cada novo neonato neste mundo sua maior eiccia. Este testemunho que se espera do adulto, deine-se amor ao mundo e amor a nossas crianas.

    De tal modo, no a poltica, mas o poltico, o adulto investido de autoridade, que deve, no espao educativo, constituir a instncia que, enquanto promotora de ideais de realizao do humano, recusa ver na educao as funes ideolgica e reprodutora que a transformam num instrumento ideolgico.

    Nesta perspectiva, falando da Educao Libertadora, Paulo Freire (1983, p. 93) a funda no dilogo: Encontro dos homens mediatizados pelo mundo, para pronuncia-lo, no se esgotando, portanto, na relao eu-tu. E, adiante, Freire ressalta que no h dilogo, se no h um profundo amor ao mundo e aos homens.

    No possvel a pronuncia do mundo, que ato de criao e recriao, se no h amor que a infunda. [...] Se no amo o mundo, se no amo a vida, se no amo os homens, no me possvel o dilogo. (FREIRE, 1983, 93-94)

    Encontramos aqui, profunda ressonncia entre Paulo Freire e H. Arendt, para quem, em ltima anlise,

    A educao o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele, com tal gesto, salv-lo da runa que seria inevitvel no fosse a renovao e a vinda dos novos e dos jovens. [...] qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo no deveria ter crianas, e preciso proibi-la de tomar parte em sua educao. (ARENDT, 2003, p. 239)

    CONCLUSO

    Ao estabelecer a natalidade como essncia da Educao, Hannah Arendt coaduna Educao e Ao, que corresponde sempre a um novo incio que se d apenas no espao da inter-relao, isto , incide sobre uma teia de relaes j existentes, com inmeras vontades e intenes conlitantes j institudas. Mas graas a esta insero ativa que a ao produz historia, e a partir da histria de cada um, que o produto de suas aes e seus discursos durante a vida, que se torna possvel identiicar a individualidade do autor de tal histria. Como a ao, a natalidade, no se resume a um fenmeno puramente biolgico; um evento originrio e gratuito: um momento de pura liberdade.

    O educador precisa compreender a criana como nova no mundo e, por estar em formao (vir a ser), ela no um ser acabado, pelo contrario, encontram-se em estado de devir. A criana um novo ser humano e um ser humano em formao e precisa ser protegida do mundo, contra o aspecto pblico do mundo (ARENDT, 2003)

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    Educar, portanto, para Arendt, trata-se de preservar e conservar aquilo que novo e revolucionrio em cada criana. A oferta de segurana s crianas que vivem no mundo e precisam signiica-lo, no consiste, porm, torn-las previsveis, ao contrrio, abrigar-proteger as crianas possibilitar-lhes iniciar algo novo.

    a responsabilidade e o amor ao mundo que confere ao educador e sua prtica, mais que sua disciplina, o veiculo seguro que permitir as crianas e jovens imprimirem algo novo ao mundo. Na educao, essa responsabilidade e este amor, assume a forma de autoridade. Face criana, como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo criana: Isto o nosso mundo. (ARENDT, 2003, p. 239).

    Poltica se torna, portanto a responsabilidade do educador na formao de pessoas livres e conscientes da prpria identidade e existncia, capazes de agir, isto iniciar algo novo e inesperado, garantindo a permanncia do mundo.

    A formao cidad, como a preconiza Silvio Gallo, s se efetivar, se o educador, antes de tudo, for, de fato, cidado, e recusar ver na educao as funes ideolgica e reprodutora que a transformam num instrumento ideolgico-doutrinrio e faa-se poltico.

    FERNANDES, Claudio Domingos. Education and Citizenship and the Crisis of Education in Hannah Arendt. Educao em Revista, Marlia, v. 14, n. 1, p. 65-78, Jan.-Jun. 2013.

    ABSTRACT: his article articulates the relationship between the concepts of citizenship and education from text Silvio Gallo, to whom the task of education is to prepare for citizenship and Hannah Arendt inds that the birth rate, the fact of being born into a new world already constituted the essence of education and promotes a radical split between Education and Politics, ighting the politicization of education. his relationship follows that the citizenship training is to help the newcomers to embrace the world of their legacy, thus enabling future take responsibility for it. his contribution must escape the doctrinal and ideological interference, protecting the uniqueness of each one who is new to the world and, therefore, is, in principle, capable of transforming it, starting something new. he educator assumes a fundamental role, is his commitment to the world, translated love for the world, which gives it authority and can give children and youth the opportunity to develop their uniqueness, thereby helping them realize the future the gift of freedom, renewing the world they inherited.

    KEYWORDS: Authority Birth. Hannah Arendt. Education. Politics.

    REFERNCIA

    ALMEIDA, Vanessa Sievers de. Educao em Hannah Arendt. So Paulo: Cortez, 2011.

    ARENDT, Hannah. A condio humana. Traduo de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004.

    ______. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2003.

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    BRASIL. Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educao nacional. Braslia, DF, 1996. Disponvel em: . Acesso em: 26, 27 /03/2013

    DONATELLI, Dante. Quem me educa?: a famlia e a escola diante da (in)disciplina. So Paulo: ARX, 2004.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1983

    GALLO, Silvio. Filosoia, educao e cidadania. Campinas: Alnea, 2001. (Organizado por PEIXOTO, Ado Jos)

    LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuaso e poder. So Paulo: Paz e Terra. 2003

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    FERNANDES, C. D.