hanciau, nubia jacques. confluências entre os discursos histórico e ficcional.unlocked

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CONFLUÊNCIAS ENTRE OS DISCURSOS HISTÓRICO E FICCIONAL * Nubia Jacques Hanciau História e literatura, duas escritas que, de maneira diversa, compartilham o ambicioso projeto de apreender as sociedades. STELLA BRESCIANI Os significados dos termos, assim como falam de suas origens, orientam o uso corrente. Sob esse ângulo, história quer dizer narração de fatos notáveis, ocorridos na humanidade; numa segunda acepção, enredo, trama, fábula. Ficção identifica-se com fingimento, simulação, invenção de coisas imaginárias. O cruzamento dessas significações apresenta-se, nos moldes da arte, em possibilidade de criar um espaço capaz de simular a verdade da vida social de modo bem mais convincente e esclarecedor do que pode ser alcançado nos relatos factuais. Peter Burke fala de fronteiras instáveis entre história e ficção – o que corresponde à oposição tradicional entre “história” e “fábula” – relacionando-as com as demais fronteiras (lingüísticas, religiosas, culturais ou metafóricas), as quais separam opostos complementares (o sagrado e o profano, o público e o privado, ou a história e a ficção), passíveis de mudanças, interdependentes, cada um fazendo parte do processo pelo qual o outro é constituído. No mesmo artigo Burke aponta a dependência recíproca dos gêneros e suas duas funções contraditórias: a de barreiras à comunicação – fronteira “fechada”; e as regiões de encontro – fronteira “aberta”, esta dependente da primeira, uma vez que o encontro na fronteira só será rico e frutífero se obstáculos anteriores à comunicação tiverem existido. 1 * Professora Titular do Departamento de Letras e Artes – FURG. 1 Peter Burke, “As fronteiras instáveis entre história e ficção”, in Aguiar, 1997, p. 107-115, coletânea que trata das diferenças/confluências entre narrativa histórica e ficcional. A respeito do tema também foram consultados nessa obra: “A questão do romance histórico”, de Valéria De Marco, p. 192-197; “Romance histórico, literatura romanceada”, de Regina Zilberman, p. 179-192; “O que é romance histórico?”, de Edgar De Decca, p. 197-206; “Cruzamento de leituras: José Lins do Rego e Cyro Martins sob o olhar da história”, de Sandra Pesavento, p. 249-254; “Leituras de fronteiras”, de Zilá Bernd, p. 288-291. In Chiappini e Aguiar, 1993, o artigo “Lógica das diferenças e política das semelhanças: da literatura que parece história ou antropologia e vice-versa” de Walter Mignolo, p. 115-161. “Literatura e História: o entrecruzamento de

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Nubia Jacques Hanciau. Confluências entre o discurso histórico e o ficcional.

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  • CONFLUNCIAS ENTRE OS DISCURSOS HISTRICO E FICCIONAL

    * Nubia Jacques Hanciau

    Histria e literatura, duas escritas que, de maneira diversa, compartilham o ambicioso projeto de apreender as sociedades.

    STELLA BRESCIANI

    Os significados dos termos, assim como falam de suas origens, orientam o uso

    corrente. Sob esse ngulo, histria quer dizer narrao de fatos notveis, ocorridos na

    humanidade; numa segunda acepo, enredo, trama, fbula. Fico identifica-se com

    fingimento, simulao, inveno de coisas imaginrias. O cruzamento dessas significaes

    apresenta-se, nos moldes da arte, em possibilidade de criar um espao capaz de simular a

    verdade da vida social de modo bem mais convincente e esclarecedor do que pode ser

    alcanado nos relatos factuais.

    Peter Burke fala de fronteiras instveis entre histria e fico o que corresponde

    oposio tradicional entre histria e fbula relacionando-as com as demais fronteiras

    (lingsticas, religiosas, culturais ou metafricas), as quais separam opostos

    complementares (o sagrado e o profano, o pblico e o privado, ou a histria e a fico),

    passveis de mudanas, interdependentes, cada um fazendo parte do processo pelo qual o

    outro constitudo. No mesmo artigo Burke aponta a dependncia recproca dos gneros e

    suas duas funes contraditrias: a de barreiras comunicao fronteira fechada; e as

    regies de encontro fronteira aberta, esta dependente da primeira, uma vez que o

    encontro na fronteira s ser rico e frutfero se obstculos anteriores comunicao tiverem

    existido.1 * Professora Titular do Departamento de Letras e Artes FURG. 1 Peter Burke, As fronteiras instveis entre histria e fico, in Aguiar, 1997, p. 107-115, coletnea que trata das diferenas/confluncias entre narrativa histrica e ficcional. A respeito do tema tambm foram consultados nessa obra: A questo do romance histrico, de Valria De Marco, p. 192-197; Romance histrico, literatura romanceada, de Regina Zilberman, p. 179-192; O que romance histrico?, de Edgar De Decca, p. 197-206; Cruzamento de leituras: Jos Lins do Rego e Cyro Martins sob o olhar da histria, de Sandra Pesavento, p. 249-254; Leituras de fronteiras, de Zil Bernd, p. 288-291. In Chiappini e Aguiar, 1993, o artigo Lgica das diferenas e poltica das semelhanas: da literatura que parece histria ou antropologia e vice-versa de Walter Mignolo, p. 115-161. Literatura e Histria: o entrecruzamento de

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  • Mas onde est o limite, se que ele existe, da fronteira da histria e da fico?

    possvel traar uma linha divisria ntida entre os dois discursos? Haver uma histria

    verdadeira, que ostente o estatuto de cientificidade, apresentando-se, enquanto episteme

    dentre as formas srias do conhecimento, e diversos tipos de histrias inventadas,

    fictcias ou fantasiosas?

    Entende-se que h por trs das convergncias e divergncias entre uns e outros, de

    um lado o desejo de alguns literatos em defender a liberdade da imaginao enquanto

    qualidade inerente s grandes obras, responsveis por falar em vrias pocas aos mais

    diversos leitores. Do outro, encontra-se a no menos legtima aspirao de certos

    historiadores em defender a verdade como alvo, na tentativa de provar que, assim como o

    escritor, o historiador um autor. Mas um autor cuja imaginao criadora deve-se deixar

    levar, entre outras exigncias, por um severo rigor metodolgico, um aparelho crtico, uma

    constante preocupao com a honestidade intelectual no manejo de suas fontes, que

    incluem a literatura.

    Embora o assunto seja amplo e no se esgote facilmente, em breve retrospectiva

    histrica observou-se na bibliografia consultada que, enquanto a histria consolidava-se

    como cincia, ela procurava demarcar com maior rigor seus limites com relao literatura,

    e esta, son tour, buscava acentuar sua caracterstica inventiva e de gratuidade. Se a

    primeira defendia a adequao de seu discurso evidncia dos fatos, a literatura afirmava a

    sua conformidade descoberta ou desvelamento de verdades gerais, alm dos fatos. Mas

    ambas sustentavam a vinculao com a verdade. Seguindo esta reflexo, a histria se

    ocuparia do que aconteceu, estabelecendo relaes com fatos e seres realmente

    existentes, e a literatura, com o presumivelmente ocorrido, feitos e seres idealmente

    existentes. A histria atendo-se ao particular, a literatura tentando extrair o que geral e

    essencial do particular para ultrapass-lo, uma e outra visando seus prprios interesses.

    Remontando a um passado ainda mais remoto, os historiadores da Antiguidade

    greco-romana no se inquietavam em transmitir uma verso subjetiva dos fatos observados,

    tampouco com o que escreviam, se o que produziam pertencia ou no a um dos ramos da

    discursos, de Carlos Alexandre Baumgarten, in Alves e Torres, 1993, p. 91-94. Littrature/Histoire: regards croiss, os artigos La littrature: une entre dans lhistoire, de Jacques Leenhardt (p.16-25); Quelle histoire, quelle littrature, pour quel type de regard?, de Lgia Chiappini (p. 159-175). Walter Benjamin, Sobre o conceito da histria, 1985. Ainda sobre o tema: White, 1994 e 1995.

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  • poiesis. Nas sociedades ditas comunitrias, os poemas picos e os contos orais integravam-

    se vida prtica de seus narradores e de seus ouvintes, conforme revela Walter Benjamin

    em seu texto O narrador2. relativamente nova a preocupao com o rigor das fontes,

    com a objetividade da narrativa histrica no que concerne noo de fico e literatura

    enquanto trabalho com a imaginao e criao.

    Boa parte das discordncias que ainda hoje se v nos embates sobre o tema

    certamente pode ser explicada em funo da forma estereotipada com que sempre foi

    vislumbrado o trabalho do outro. Vai se distanciando porm a percepo do texto literrio

    como um discurso ornamentado, incompatvel com o discurso cientfico, que foge retrica

    em nome da clareza e da adequao, enfoque que ignoraria o que h de pesquisa, trabalho,

    esforo, objetividade e preciso na linguagem dos poetas e dos autores de fico. Por outro

    lado, se est perdendo de vista o tempo da obrigatoriedade da disciplina histria, que tem

    por objetivo o ensino de datas, nomes dos grandes heris, e que desconhece os debates

    atuais a respeito da narrativa, a preocupao com o simblico, os novos e mltiplos

    conceitos.

    Foi no final do sculo XX que a fronteira reabriu-se e as convenes foram

    questionadas, no que se denomina crise da conscincia histrica. Jean Franois Lyotard3 e

    os novos filsofos franceses, entre eles Paul Ricoeur4, minam ento as bases da narrativa

    histrica contempornea, assim como Descartes5 minara um dia as narrativas de

    historiadores humanistas. As discusses mais recentes em torno da narrativa histrica vs.

    narrativa ficcional implicam refletir paralelamente a respeito das relaes entre formas de

    pensamento e de linguagem, que enquadram os conceitos de narrativa, fico e cincia. A

    2 Jane Marie Gagnebin considera O narrador uma teoria antecipada da obra aberta que, na narrativa tradicional, apia-se na plenitude do sentido, em sua profuso ilimitada. Gagnebin autora do prefcio de Obras escolhidas, de Benjamin, 1985, p. 12. 3 Lyotard, 1979. 4 Paul Ricoeur um dos mais importantes filsofos da segunda metade do sculo XX. Foi professor na Universidade de Estrasburgo, Sorbone, Nanterre, Lovaina e na Universidade de Chicago. Estabeleceu uma ligao entre a fenomenologia e a anlise contempornea da linguagem atravs da teoria da metfora, do mito e do modelo cientfico. Nos trs volumes de Tempo e narrativa, Paul Ricoeur estuda detalhadamente as circulaes, configuraes e reconfiguraes que a narrativa, histrica e fictcia, faz com o tempo. 5 O discurso do mtodo (1637), de Ren Descartes, rejeita a histria como incerta e compara histrias (les histoires) com a fico (les fables). A idia principal da crtica cartesiana a de que a noo dos historiadores em relao dignidade da histria os leva a omitir detalhes triviais (les plus basses et les moins illustres circonstances). O autor deu origem idia do heri tradicional/exemplar (como Cervantes) e valorizou o que chamou de quotidiano, na tentativa de competir com o romance pela ateno do pblico leitor feminino. Descartes, 1997.

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  • historiografia hoje to varivel em suas metamorfoses que se torna impossvel reduzi-la a

    uma s tendncia. Exposio cronolgica, linear, tentativa de fixao de situaes, de

    estruturas, de processos, obra sistemtica ou ensaio, so tantas as formas historiogrficas

    que elas dificultam qualquer conceito que no seja plural.6

    Uma das tendncias vigentes considera que as fronteiras disciplinares se desfazem a

    partir do momento em que se afirma conforme faz Hayden White que a histria no

    mais do que uma fiction making operation, pois, independendo do seu contedo, ela uma

    narrativa que utiliza os mesmos procedimentos da fico. Qualquer conjunto de

    acontecimentos reais pode ser disposto de diferentes maneiras e suportar o peso de ser

    contado em diferentes tipos de relatos, uma vez que nenhuma seqncia de acontecimentos

    reais possui intrinsecamente linearidade ou causalidade, mesmo que, ao impor estrutura aos

    acontecimentos, se possa construi-los com as estratgias da narrativa ficcional.7

    De forma genrica, o que caracteriza os novos historiadores europeus e americanos,

    a despeito das diferenas individuais, uma certa urgncia epistemolgica, ps-

    estruturalista, que promove constantemente o conceito de histria como textualidade ou

    intertextualidade construda. Alfredo Bosi, no Brasil, um dos que enfatiza a necessidade

    de ater-se ao passado histrico e insiste na possibilidade de sua recuperao na memria e

    na linguagem; para ele a memria articula-se formalmente e duradouramente na vida social

    mediante a linguagem. Pela memria, as pessoas que se ausentaram fazem-se presentes.

    Memria e palavra, no fundo inseparveis, so, nessa perspectiva, a condio da

    possibilidade do tempo reversvel. Tericos importantes da historiografia (Hegel, Marx, Nietzche), viam na interpretao da escrita da

    histria a prpria alma da historiografia. Tambm chamados de meta-historiadores ou filsofos especulativos

    da histria8, sua obra difere radicalmente daquela do historiador propriamente dito, que

    6 Desde os gregos e os romanos, ao longo dos sculos, chegando enorme diversidade de quanto se produz hoje, a narrativa na histria assumiu roupagens peculiares. Ver Francisco Iglesias, "Comentrio", in Riedel, 1988, p. 148. 7 Para White, entre literatura e histria h uma diferena de grau. A narrativa histrica, ao contrrio da narrativa tout court, no dissemina falsas crenas sobre o passado, a vida humana, a comunidade, etc., mas testa a capacidade das fices de uma cultura em dotar os eventos reais com os tipos de significado que a literatura revela conscincia, atravs da formao de padres de eventos imaginrios. Embora muitos discordem dessa posio, sua reflexo considerada pelos interessados em melhor especificar o estatuto da histria e o da fico, uma vez que, por fora da presso por uma histria cientfica, os historiadores tm, de modo geral, descuidado o papel que desempenha o imaginrio em seu trabalho. Segundo esse autor, o temor do afastamento da objetividade leva ao desperdcio de parte da riqueza de seu material. White, 1995. 8 White, 1994.

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  • persegue objetivos mais modestos, renunciando ao impulso em decifrar o enigma da

    histria e identificar o plano ou meta do processo histrico como um todo. Este, afirma-se,

    procura explicar o que aconteceu no passado mediante uma reconstruo minuciosa dos

    acontecimentos registrados em documentos, reprimindo, enquanto pode, seu impulso para

    interpretar os dados, ou pelo menos apontando, em sua narrativa, onde est representando

    os fatos e onde os est interpretando. Na meta-histria, as explicaes e interpretaes da

    narrativa costumam andar juntas, confundindo-se at, ao dissolver a autoridade da

    representao do acontecido.

    Atualmente, histria e fico acordam como formas de linguagem no sentido de que

    ambas so sintticas e recapitulativas e tm por objeto a atividade humana. Podem

    selecionar, simplificar, organizar, resumir um sculo em uma pgina. O mesmo veio da

    imaginao e da linguagem que as aproxima, fertiliza a elaborao das teorias cientficas,

    enquanto modelos da realidade. Deixando de ser estanques, cada um dos trs ramos do

    saber interfere nos demais. A histria, como investigao e registro de fatos sociais das

    civilizaes, recorre a leis gerais, prprias cincia, mas no negligencia a fico; a cincia

    pode limitar-se ao registro dos fatos, e a fico, por intermdio do romance, do drama, da

    poesia, alcana um nvel de generalidade semelhante ao pensamento cientfico. O carter de

    cincia conquistado pelo conhecimento histrico no supre todavia a base narrativa, que

    mantm seu nexo com o ficcional.

    Sadas de um tronco comum, ser em funo da elaborao da temporalidade que

    histria e fico, que interessam particularmente neste estudo, entrecruzaro seus diferentes

    ramos. Tudo o que se conta acontece no tempo, toma tempo, desenvolve-se temporalmente,

    e o que se desenvolve no tempo pode ser contado. Esta reciprocidade entre narrativa e

    temporalidade, assim entendida por Paul Ricoeur e explorada em Tempo e narrativa (1994-

    1997), s levar o reconhecimento da fenomenologia temporal como tal na medida em que

    possa ser narrada. A primeira incumbncia da fenomenologia: procurar no prprio texto a

    dinmica interna que presida a estrutura da obra e sua capacidade de projetar-se para fora

    do texto, como produto de cultura. Assim, o texto no oferecer apenas a mediao do

    conhecimento de si mesmo, mas, em ltima instncia, estar proporcionando o

    conhecimento do mundo atravs do mundo da obra.

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  • Logo, se tudo o que se conta no tempo toma tempo, deve-se considerar a relao entre

    narratividade e temporalidade. Como entra o tempo na teoria da narrativa? Para Ricoeur,

    atravs da forma discursiva do enredo, que temporal, integrando os fatos dessa hybris,

    ligando fatos heterogneos num s conjunto. Nessa medida, a narrativa pertence famlia

    das formas simblicas, assentando, em todas as culturas, a experincia do tempo. Diz

    Ricoeur:

    Contando histrias, os homens articulam sua experincia do tempo, orientam-se no caos das modalidades potenciais de desenvolvimento, marcam com enredos e desenlaces o curso muito complicado das aes reais dos homens. Deste modo, o homem narrador torna inteligvel para si mesmo a inconstncia das coisas humanas, que tantos sbios, pertencendo a diversas culturas, opuseram ordem imutvel dos astros.9

    Neste sentido Ricoeur sintoniza com Barthes, para quem pela temporalidade do

    discurso, que tem a natureza de acontecimento, articulando-se de acordo com a dinmica do

    enredo e pelos atos de linguagem, que o tempo se demarca. Barthes por sua vez afirma:

    [...] todo discurso ideologicamente marcado pela seleo que tanto o historiador quanto o romancista realizam no que se refere aos fatos presentes da realidade. Essa seleo cria um segundo sentido, que no corresponde completamente realidade observada, determinando que histria e literatura tenham uma existncia puramente lingstica, cujo efeito a iluso do real.10

    Nessa tica, a suposio simplista da adaptao do discurso ao fato, da

    transparncia do discurso cientfico e da evidncia da verdade foi sobrepujada pela

    concepo do discurso passvel de significao, porque passvel de interpretao. Os

    objetos histricos no so fatos dados, mas sistemas de signos com os quais se pode

    reconstitu-los. Os fatos no se apresentam de forma imediata no discurso histrico,

    tampouco no literrio. Se no se transformarem em feitos que comportam sentidos, capazes

    de circular entre homens e mulheres pela via do discurso, permanecem massa amorfa.

    Se por um lado a narrativa ficcional pode desenvolver o enredo alterando o tempo

    cronolgico por intermdio das variaes imaginativas que a estrutura auto-reflexiva de seu

    discurso lhe favorece, a narrativa histrica, por outro, desenrola o tempo por conta da 9 Introduction, in Ricoeur, 1978, p. 16.

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  • mmesis, que implica a elaborao do tempo histrico, ligando o tempo natural ao

    cronolgico. Da a natureza circular do nexo recproco entre narratividade e temporalidade.

    Mais uma vez a proposio de Barthes aproxima-se daquela de Ricoeur, na aceitao da

    dicotomia lingstica entre enunciado e enunciao.

    Narrar contar uma histria, e contar uma histria desenrolar a experincia

    humana do tempo11, diz Benedito Nunes. , pois, na reconfigurao do tempo que a

    narrativa histrica e a narrativa ficcional se interpenetram sem se confundirem, hiptese

    que sustentada, remete ao que diz Ricoeur:

    [...] podemos dizer que a fico quase histrica, tanto quanto a histria quase fictcia. A histria quase fictcia to logo a quase-presena dos acontecimentos colocados diante dos olhos do leitor por uma narrativa animada supre, por sua intuitividade, sua vivacidade, o carter esquivo da passadidade do passado, que os paradoxos da representncia ilustram. A narrativa de fico quase histrica, na medida em que os acontecimentos irreais que ela relata so fatos passados para a voz narrativa que se dirige ao leitor; assim que eles se parecem com acontecimentos passados e a fico se parece com a histria.12

    A reiterao de Ricoeur no sentido de que o tempo se transforma em tempo

    humano13 por intermdio de sua narrao acaba vinculando-se ao processo ps-moderno

    geral. No ps-modernismo, historiografia e fico so atividades complementares, que se

    interfertilizam e dividem o mesmo ato de refigurao ou remodelamento da experincia de

    tempo por meio de configuraes da trama.14

    10 Barthes, 1982, p. 13-21. 11 Benedito Nunes, Contraponto sua exposio sobre Narrativa histrica e narrativa ficcional, in Riedel, 1988, p. 34. 121997, v. 3, p. 329. 13 De um lado est a ordem imutvel dos astros, em seus movimentos regulares, que suscitou a primeira idia do tempo natural e de sua medida; do outro, as marcas, as articulaes e clarificaes da narrativa, relativas ao curso complicado das aes e das inconstncias das coisas humanas a experincia do tempo humano (tempo vivido) foram investigadas por Santo Agostinho no livro XI das Confisses. Ricoeur analisa esta obra e suas relaes com o tempo no primeiro captulo de Tempo e narrativa (1994, v. 1, p. 15-30). 14 Para Linda Hutcheon, a escrita ps-moderna da histria e da literatura ensina que a fico e a histria so discursos constituintes de sistemas de significao atravs dos quais se d sentido ao passado (aplicaes da imaginao modeladora e organizadora). Em outras palavras, o sentido e a forma no esto nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses acontecimentos passados em fatos histricos presentes, o que no um refgio para escapar verdade, mas um reconhecimento da funo de produo de sentido dos construtos humanos. Da o ps-moderno realizar dois movimentos simultneos: reinsere os contextos histricos como sendo significantes, e at determinantes, e ao faz-lo problematiza toda a noo de conhecimento histrico. Esse mais um dos paradoxos que caracterizam os atuais discursos ps-modernos. Hutcheon, 1991, p. 120-137.

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  • Se histria e fico tm sido vistas freqentemente como gneros indefinidos, a

    linha divisria que poder acentuar a dissimetria entre as duas narrativas anula-se pela

    natureza do passado reconstrudo, quando se d expresso o seu peso ontolgico de

    reconstruo de uma realidade que no mais existe, que deixou de ser. Aqui tem validade

    evocar a afirmao de Raymond Aron, para quem o conhecimento histrico s tem valor

    cientfico se fundar suas afirmaes em dados. O passado vivido no mais e no mais

    ser; o que lhe d atualidade e est presente so os vestgios (traces) das expresses ou dos

    monumentos desaparecidos para sempre.15

    O historiador pra a meio caminho entre a definio inicial do rastro e sua extenso.

    Os vestgios deixados pelos homens do passado e os produtos de sua atividade, suas obras

    (casas, templos, sepulturas, escritos) deixaram marcas. Esta marcao sugere a idia de um

    suporte mais duradouro do que a atividade transitria da humanidade, cuja obra, confiada

    pedra, ao osso, ao papiro, ao papel, fita magntica, memria do computador, sobreviveu

    ao seu trabalho. Embora as geraes passem, seus feitos permanecem. O fenmeno do

    rastro bem como o das runas, dos restos, dos documentos v-se dessa forma deslocado

    do historial para o intratemporal.

    Nessa perspectiva, a realidade histrica to sui generis quanto a irrealidade da

    fico. Nesta, os acontecimentos inventados, ao formarem um mundo fictcio, escapam a

    qualquer espcie de confirmao emprica. Naquela, os dados empricos (documentos),

    signos de um mundo que foi real, remetem a acontecimentos passados, conhecidos por

    inferncia, e que s se confirmam, fora de toda comprovao emprica, pela reconstruo

    desse mesmo mundo. Ao freqentar os arquivos e consultar os documentos marcas

    perceptveis aos sentidos, deixadas por um fenmeno em si mesmo muitas vezes difcil de

    captar o historiador consegue rastrear o passado e imagin-lo tal como foi.

    Essas formulaes afiguram-se necessrias para voltar a dizer que o ponto central

    para a aproximao dos discursos histrico e ficcional, das invenes da literatura e a

    realidade da histria enquanto formas narrativas encontra-se, conforme Ricoeur e Barthes,

    na re/criao do tempo. Ora, essa reconfigurao, tanto para o historiador quanto para o

    escritor de fico, uma operao que reinscreve o tempo vivido sobre o tempo do mundo,

    15 1961, p. 94.

  • dando origem assim a alguma coisa que pretende ser o passado, mas que dele tambm

    difere16. Este procedimento desempenha o papel de representar, atualizar aes,

    personagens e cenrios distantes no tempo e no espao. Mas implica, para tanto, uma

    operao de fico e imaginao, a fim de compor os discursos e as imagens que so

    colocadas no lugar desse passado, irrecupervel em sua integridade; essa operao que lhe

    d uma coerncia de sentido.

    Assim como a histria, a literatura reinscreve um tempo realmente acontecido na

    voz narrativa. Se por um lado a histria de algum modo se serve da fico para refigurar o

    tempo, por outro a fico se vale da histria com o mesmo objetivo, numa concretizao

    recproca, que assinala o triunfo da noo de figura. Entre o tempo da fico e o tempo

    histrico foi garantida certa comensurabilidade pela fenomenologia, que forneceu aos dois

    grandes modos narrativos uma temtica comum, ainda que dilacerada por aporias.

    Cabe apontar para a importncia da teoria da leitura que criou um espao comum

    para os intercmbios entre a histria e a fico, pois ela interessa no apenas recepo do

    texto literrio, mas tambm aos leitores de histria (no menos numerosos que os de

    romances). Todas as grafias e, dentre elas, a historiografia dependem de uma teoria

    ampliada da leitura. Neste sentido, as anlises do entrecruzamento da histria e da fico,

    conforme assegura Ricoeur, so da alada de uma teoria ampliada da recepo17. Se as

    historicidades divergem, o vnculo que ser construdo pela leitura contemporneo e

    falar do ponto de vista da histria de quem l, visto que

    a dinmica da leitura, como interao do texto e do leitor [...] possibilita que essa viso seja catrtica: ela abre os olhos do leitor, revela-o a si mesmo, sua verdade e verdade do mundo. Os efeitos da fico, efeitos de revelao e de transformao, so efeitos de leitura. atravs da leitura que a literatura retorna vida, quer dizer, ao campo prtico e pathico da existncia.18

    O mesmo procedimento dar-se- no processo da recepo da narrativa histrica, uma vez

    que o leitor contribui com suas expectativas e seu presente para conferir significao aos

    acontecimentos histricos. Essa concepo que tem origem nas teorias da esttica da 16Ricoeur, 1985, v. 3. A esse respeito, ver tambm Sandra Pesavento, Chronique: une lecture sensible du temps, in Littrature/Histoire: regards croiss, 1996, p. 92. 17Ricoeur, 1997, v. 3, p. 316.

  • recepo tem sido compartilhada e retomada por crticos que refletem a respeito dos

    entrecruzamentos adequa-se narrativa histrica,

    [...] cujos fatos emergem ao presente tanto pela ao do narrador (historiador) quanto pela ao do leitor, que, ao interagir com o texto, atualiza-o, conferindo-lhe um significado presente. Em outras palavras, a leitura ficcionaliza a Histria, na mesma proporo que historiza a Fico, uma vez que a voz narrativa, tanto num caso como no outro, situa no passado o mundo da obra [...] Assim, tanto o historiador como o narrador do relato ficcional recria o passado, que a narrativa traz de novo ao presente, elemento que o obriga a configurar o mundo prprio da obra, apto a reconfigurar-se, pelo efeito da leitura, numa viso do mundo real e histrico.19

    Esses entrecruzamentos da histria e fico, objeto de detalhada investigao na

    ltima etapa de Tempo e narrativa, levam Ricoeur para alm da dicotomia e da

    convergncia que existe entre o poder que histria e fico tm de reconfigurar o tempo,

    para falar de reconfigurao cruzada, no desejo de mostrar os efeitos conjuntos da

    histria e da fico no plano do agir e do padecer humano; e de revelar como a refigurao

    do tempo pela histria e pela fico se concretiza graas a emprstimos que cada modo

    narrativo toma do outro. Desses intercmbios ntimos entre historicizao da narrativa de

    fico e ficcionalizao da narrativa histrica nasce o referido tempo humano (o tempo

    narrado), onde se conjugam a representao do passado pela histria e as variaes

    imaginativas da fico, sobre o pano de fundo das aporias da fenomenologia do tempo.

    Esses emprstimos consistiro no fato de que a intencionalidade histrica s se efetua incorporando sua inteno os recursos de ficcionalizao que dependem do imaginrio narrativo, ao passo que a intencionalidade da narrativa de fico s produz os seus efeitos de deteco e de transformao do agir e do padecer assumindo simetricamente os recursos de historicizao que lhe oferecem as tentativas de reconstruo do passado efetivo.20

    Assim, as trs amarras de que fala Ricoeur, quase-enredo, quase personagem e

    quase acontecimento, mantm a histria ligada narrativa, com a qual no pode romper

    inteiramente, j que o quase dessas expresses atesta o carter altamente analgico do 18Ricoeur, 1985, v. 3, p. 149, que Benedito Nunes retoma em Contraponto, in Riedel, 1988, p. 33. 19 Carlos Alexandre Baumgarten, Literatura e Histria: o entrecruzamento de discursos, in Alves e Torres, 1993, p. 93-94.

  • emprego das categorias narrativas na histria cientfica. Pelo menos essa analogia exprime

    o lao tnue e dissimulado que retm a histria no mbito da narrativa e preserva, assim, a

    prpria dimenso histrica. 21

    Entre o historiador e a realidade que no existe mais, a relao s pode ser

    analgica, de carter metafrico, o que compatvel com o plano configurativo da

    narrativa. Para conhecer o que j foi atravs de documentos, o historiador deve apelar para

    os recursos tropolgicos da imaginao. Mediante esses recursos ele conhece o inexistente

    e o reconstri; contudo, sua reconstruo uma figurao. Assim, reaparece na verdade

    histrica o elemento ficcional. Sua submisso a reescrever o passado tal como foi, tanto

    para Michelet no sculo XIX, quanto para Ricoeur hoje, significa a busca de saldar uma

    dvida de reconhecimento para com os mortos, que faz do historiador um devedor

    insolvente. Para Michelet, sua posio a do administrador dos bens dos falecidos. A

    histria colhe e renova essas glrias deserdadas, d vida a esses mortos, os ressuscita. Eles

    agora vivem conosco, que nos sentimos seus parentes, seus amigos.

    No cabe ao texto literrio resolver os problemas do passado, profetizar, nem

    efetuar uma viso do mundo ou uma conscincia real. Tal suposio se constituiria em

    procedimento de sacralizao da chamada criao literria. O escritor (ou a escritora) no

    um mero espectador do social; tampouco reproduz uma viso do mundo, pelo simples

    fato de que no existe uma viso de mundo. O que ele ou ela faz captar de maneira

    privilegiada o rumor discursivo, os mltiplos discursos em circulao em seu tempo,

    inclusive os que ficam quase inaudveis, por constiturem o discurso da margem.

    Ao aproximar a histria da literatura, autoras e autores da contemporaneidade tm

    colocado em paralelo e at mesmo entrecruzado os dois campos do saber, tratando de dar

    sentido e coerncia atualidade a partir de uma viso crtica do passado. Muitas vezes a

    histria relida em funo das necessidades do presente, releitura que responde

    freqentemente necessidade de recuperar uma origem, ou justificar uma identidade, uma

    forma de conciliao com os demnios pessoais, uma ajuda a erradicar os coletivos.

    20 Ricoeur, 1997, v. 3, p. 176-177. 21 Ricoeur, 1994, v. 1, p. 327.

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