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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC/SP
Hamilton da Cunha Iribure Jnior
A pronncia no procedimento
do Tribunal do Jri brasileiro
DOUTORADO EM DIREITO
SO PAULO/SP2009
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC/SP
Hamilton da Cunha Iribure Jnior
A pronncia no procedimento
do Tribunal do Jri brasileiro
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada Banca Examinadora como exigncia parcial para a obteno do ttulo de DOUTOR em DIREITO pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC/SP, sob a orientao do Professor Doutor MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA.
SO PAULO/SP2009
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC/SP
Hamilton da Cunha Iribure Jnior
A pronncia no procedimento do Tribunal do Jri brasileiro
_______________________________________________
Professor Doutor MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVAPresidente e Orientador
1. Examinador
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2. Examinador
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3. Examinador
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4. Examinador
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5. Examinador
SO PAULO/SP2009
Compartilhando a densa tristeza da perda, o vertente trabalho um singelo tributo ao professor, incentivador e amigo HERMNIO ALBERTO MARQUES PORTO, ser humano de rara elegncia e perfeita educao. Exemplar, incentivou os maiores valores que o indivduo pode cultivar como a dignidade, a democracia e o direito. Com sua partida faz-se um vcuo entre ns, mas fica tambm o legado, o exemplo de resistncia a todas as iniciativas que possam ameaar a vida e a liberdade. Cada linha aqui escrita homenageia esse emrito jurista, mestre de todos ns, que sempre semeou rosas e alegria em nossos coraes.
Em todo o momento de actividade mental acontece em ns um duplo fenmeno de percepo: ao mesmo tempo que tempos conscincia de um estado de alma, temos diante de ns, impressionando-nos os sentidos que esto virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para convenincia de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepo. Todo o estado de alma uma paisagem. Isto , todo o estado de alma no s representvel por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. H em ns um espao interior onde a matria da nossa vida fsica se agita. Assim uma tristeza um lago morto dentro de ns, uma alegria um dia de sol no nosso esprito. E mesmo que se no queira admitir que todo o estado de alma uma paisagem pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem.
CANCIONEIRO
FERNANDO ANTNIO NOGUEIRA PESSOA(1888 1935)
Para examinar a verdade, necessrio, uma vez na vida, colocar todas as coisas em dvida o mximo possvel.
Os Princpios da Filosofia
DESCARTES, Ren(1596 1650)
Ai dos feitores de tradues literrias que, ao traduzir cada palavra, enfraquecem o sentido! Este bem o caso em que se pode dizer que a letra mata e o esprito vivifica.
Lettres Philosophiques
VOLTAIRE, Franois-Marie Arouet(1694 1778)
O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado. Um determinado indivduo acredita-se senhor dos outros e no deixa de ser mais escravo do que eles.
Do Contrato Social
ROUSSEAU, Jean-Jacques(1712 1778)
Existe uma nica virtude, a justia; um nico dever, ser feliz; um nico corolrio, s vezes desprezar a vida.
Conversas com Catarina II
DIDEROT, Denis(1713 1784)
IRIBURE JNIOR, Hamilton da Cunha. A pronncia no procedimento do Tribunal do Jri brasileiro. So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2009 (Tese de Doutorado em Direito).
Orientador: Professor Doutor Marco Antonio Marques da Silva.
RESUMOAo Direito Processual cumpre a misso de regulamentar o exerccio da funo jurisdicional, atividade fundamental do Estado Democrtico de Direito. Na ordem constitucional vigente o Tribunal do Jri acolhido e reconhecido simultaneamente como direito e garantia fundamental do indivduo. percebido como um direito humano fundamental devido participao do povo nos julgamentos proferidos pelo Poder Judicirio. garantia fundamental na medida em que o indivduo que tenha praticado uma infrao penal dolosa contra a vida somente possa ser condenado pelo veredicto emanado por um Conselho de Sentena do Tribunal Popular. O jri uma provncia em que se observa o exerccio da cidadania, revelando-se na prerrogativa democrtica para que o indivduo seja julgado por um colegiado de cidados. O ordenamento jurdico brasileiro prev o procedimento do jri dividido em fases. Esse escalonamento garante que a formao da acusao do ru se d em duas etapas bem distintas: a instruo preliminar e o juzo da causa. Na primeira fase, conduzida por um juiz togado, discutida a admissibilidade acusatria. No juzo da causa ocorre o julgamento do ru pelo Conselho de Sentena. A deciso judicial que analisa e admite a acusao formulada contra o ru denominada de pronncia, esta que encerra a instruo preliminar e encaminha o acusado para o julgamento no Plenrio do Jri. A pronncia sempre esteve presente na histria do processo penal brasileiro, desde o tempo em que aqui vigoraram as Ordenaes do Reino. Em boa parte dos ordenamentos jurdicos estrangeiros ntida a existncia de um instituto processual com funo similar a que exerce a pronncia no Brasil. Esse ato jurisdicional representa um importante mecanismo de controle da atividade acusatria no procedimento do jri ao assegurar que somente seja enviada fase de plenrio a causa que esteja em rigorosa conformidade aos requisitos estabelecidos em lei. Deve o magistrado que prolata a pronncia cercar-se de redobrada cautela na fundamentao dessa deciso tendo em vista que nessa fase do procedimento do jri no se analisa o direito de punir, mas to-somente o direito de acusar. Por conseguinte, o excesso na motivao desse ato judicial pode acarretar a antecipao do julgamento do mrito para uma etapa indevida do processo. A pronncia, deciso interlocutria no procedimento do jri, o objeto principal de anlise no presente trabalho. Ao instituir o Estado Democrtico de Direito, a Constituio da Repblica de 1988 estabeleceu como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, preceito este que orienta o intrprete na aplicabilidade das normas constantes no ordenamento jurdico. No talante dessa premissa o vertente trabalho est pavimentado com o intuito maior de analisar os princpios e regras processuais incidentes na pronncia luz do citado fundamento constitucional, como forma de se ver assegurado o devido processo legal.
Palavraschave: pronncia, deciso, Tribunal do Jri, processo penal.
IRIBURE JNIOR, Hamilton da Cunha. The pronunciation in the procedure of the Court of the Brazilian Jury. So Paulo: So Paulos Papal Catolic University, 2009 (Doctorate Thesis in Law).
Adviser: Professor Doutor Marco Antonio Marques da Silva.
ABSTRACTProcedural law complies with the task of regulating the exercise of judicial functions, a fundamental activity of Democratic State of Law. In the current constitutional order the Jury Court is recognized and upheld both as law and fundamental individual guarantee. It is perceived as a fundamental human right because people's participation in the trials made by the judiciary. It is the fundamental guarantee that the person who has committed an intentional criminal offense against life can only be condemned by the verdict issued by a People's Court. The jury is a province where there is the exercise of citizenship, revealing itself as a democratic right for the individual to be judged by a board of citizens. The Brazilian legal system provides the procedure of the Jury Court divided into stages. This scaling ensures that the formation of the prosecution of the defendant is given in two very different stages: a preliminary investigation and trial of the case. In the first phase, conducted by a judge, it is discussed the admissibility accusatory. In the trial of the case occurs the trial of the defendant by Peoples Court. The judicial decision that examines and accepts the accusation against the defendant is called jury indictment, that terminating the preliminary investigation and forward the accused for trial in the Plenary of the Jury. The indictment has always been present in Brazilian history of criminal procedure, from the time of the Ordinations of the Kingdom. In most foreign jurisdictions is clear that there is a procedural institute with similar function that jury indictment exercises in Brazil. This judicial act represents an important mechanism to control the accusatory activity on the jury procedure to ensure that the cause is only being sent to the Jury if it is in strict conformity with the requirements established in law. Should the judge that decides the jury indictment works with extra caution in the grounds of this decision because this stage of the proceedings of the jury is not to examine the right to punish, but only the right to accuse. Therefore, the excess on the motivation of this judicial act can lead to anticipation of a merits judgment to an irregular stage of the process. The jury indictment, interlocutory decision in the proceedings of the jury, is the main object of analysis in this work. In establishing the Democratic State of Law, the Constitution of the Republic established in 1988 as one of its grounds human dignity, the rule that guides the interpreter in the applicability of the standards of the legal system. So this work is has the aim of examining the principles and procedures focused on the jury indictment in the light of that constitutional grounds as a way of being assured the due process of law.
Keywords: jury indictment, decision, jury, criminal procedure.
IRIBURE JNIOR, Hamilton da Cunha. Lordonnance de renvoir dans la procdure du tribunal du jury brsilien. So Paulo: Pontificale Universit Catholique de So Paulo, 2009 (PhD. Thse).
Conseiller: Professor Doutor Marco Antonio Marques da Silva.
RSUMAu Droit Processif il accomplit la mission de rglementer l'exercice de la fonction juridictionnelle, activit fondamentale de l'tat Dmocratique de Droit. Dans l'ordre constitutionnel efficace le Tribunal du Jury est accueilli et reconnu simultanment commedroit et garantie fondamentale de la personne. Il est peru comme un droit humain fondamental car la participation du peuple dans les jugements prononcs pour le Pouvoir Judiciaire. C'est garantie fondamentale dans la mesure o la personne qui ait pratiqu une infraction criminelle frauduleuse contre la vie seulement puisse tre condamne par le veredict man par un Conseil de Jugement du Tribunal Populaire. Le jury est une province o s'observe l'exercice de la citoyennet, en se rvlant dans la prrogative dmocratique pour que la personne soit juge par un collgial de citoyens. L'ordre juridique brsilien prvoit la procdure du jury divis dans des phases. Cet chelonnement garantit que la formation de l'accusation de l'accus se donne dans deux tapes bien distincts: l'instruction prparatoire et le jugement de la cause. Dans la premire phase, conduite par un juge, cest discut l'admissibilit accusatoire. Dans le jugement de la cause se produit le jugement de l'accus par le Conseil de Jugement. La dcision judiciaire qui analyse et admet l'accusation formule contre l'accus est appele de ordonnance de renvoi, de celle-ci laquelle ferme l'instruction prliminaire et achemine l'accus pour le jugement dans l'Assemble plnire du Jury. La ordonnance de renvoi a toujours t prsente dans l'histoire du processus criminel brsilien, depuis le temps o ils ici ont tonifi les Rangements du Royaume. En bonne partie des ordres juridiques trangers est claire l'existence d'un institut processif avec la fonction semblable lalaquelle il exerce la ordonnance de renvoi au Brsil. Cet acte juridictionnel reprsente un important mcanisme de contrle de l'activit accusatoire dans la procdure du jury l'assurance que seulement soit envoye la phase d'assemble plnire la cause qui soit dans rigoureuse conformit aux conditions tablies dans loi. Il doit le magistrat qui rend la ordonnance de renvoi s'entourer de redouble prcaution dans le fondement de cette dcision en vue dont dans cette phase de la procdure du jury ne s'analyse pas le droit de punir, nanmoins le droit d'accuser. Par consquent, l'excs dans la motivation de cet acte judiciaire peut causer l'anticipation du jugement du mrite pour une tape indue de la procdure. La ordonnance de renvoi, dcision interlocutoire dans la procdure du jury, est l'objet principal d'analyse dans le prsent travail. l'institution l'tat Dmocratique de Droit, la Constitution de la Rpublique de 1988 a tabli comme un de leurs fondements la dignit de la personne humaine, rgle lequel guide l'interprte dans l'applicabilit des normes constantes dans l'ordre juridique. Dans cette prmisse le coulant travail est pav avec l'intention le plus grand d'analyser les principes et rgles processives incidentes dans la ordonnance de renvoi la lumire du mentionn fondement constitutionnel, comme forme de voir assur la due procdure lgale.
Motscls: ordonnance de renvoi, ordonnance, Tribunal du Jury, procdure criminelle.
SUMRIO
INTRODUO................................................................................................... 18
CAPTULO I
APORTES DOS CLSSICOS SISTEMAS JURDICOS
1.1 Prembulo.............................................................................................. 27
1.2 Anotaes na intitulada pr-histria do direito..................................... 311.3 O surgimento das convenes procedimentais nos povos antigos....... 37
1.4 A contribuio da cultura jurdica grega............................................... 45
1.5 A formao do sistema jurdico romano................................................ 48
1.5.1 As formas processuais na fase da Realeza........................................ 53
1.5.2 A atividade acusatria na fase republicana....................................... 54
1.5.3 O processo penal no Imprio Romano............................................. 56
1.5.4 Influncias de outras culturas no direito romano............................. 58
1.6 O juzo de instruo e a acusao no direito germnico....................... 62
1.7 O mtodo cientfico para a instruo criminal no direito cannico...... 65
1.8 A sistemtica no Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio.................... 71
1.9 Anotaes no direito anglo-saxo.......................................................... 75
1.10 Prticos da formao do jri.................................................................. 79
1.10.1 A Heliia e o Arepago na Grcia..................................................... 81
1.10.2 Os tribunais hebraicos....................................................................... 83
1.10.3 A quaestio romana............................................................................. 851.10.4 O reconhecimento do jri.................................................................. 87
CAPTULO II
ANTECEDENTES NA FORMAO DO
PROCEDIMENTO DO JRI NO BRASIL
2.1 Prlogo................................................................................................... 94
2.2 Contribuies histricas formao de um sistema jurdico............... 98
2.3 As Ordenaes Afonsinas...................................................................... 107
2.4 As Ordenaes Manuelinas................................................................... 113
2.5 As Ordenaes Filipinas........................................................................ 117
2.6 A sistemtica jurdica na transio para o direito nacional................... 124
2.7 A fase do Brasil colonial e sua independncia....................................... 128
2.8 O jri e o Cdigo do Processo Criminal de Primeira Instncia............ 132
2.9 As reformas do jri no Brasil Imprio................................................... 142
2.10 O jri na fase republicana...................................................................... 149
2.10.1 Da Repblica Velha........................................................................... 150
2.10.2 Da transio ao Estado Novo........................................................... 156
2.10.3 O jri na Constituio de 1946.......................................................... 161
2.10.4 O jri na ditadura brasileira.............................................................. 165
2.10.5 A consolidao do jri na Nova Repblica....................................... 167
2.11 Conceito e natureza jurdica do Tribunal do Jri.................................. 169
2.12 Princpios constitucionais do Tribunal do Jri..................................... 170
2.12.1 Da plenitude de defesa (art. 5., XXXVIII, a CR/88).................... 1712.12.2 Do sigilo das votaes (art. 5., XXXVIII, b CR/88).................... 1732.12.3 Da soberania dos veredictos (art. 5., XXXVIII, c CR/88)............ 1752.12.4 Da competncia (art. 5., XXXVIII, d CR/88)............................... 177
CAPTULO III
O CONTROLE DA ADMISSIBILIDADE DA ACUSAO
NO DIREITO COMPARADO
3.1 Contextualizao inicial......................................................................... 181
3.2 A existncia de uma etapa intermediria antecedente ao julgamento.. 183
3.3 A instruo preparatria no ordenamento francs................................ 184
3.3.1 A investigao preliminar.................................................................. 185
3.3.2 A instruo no processo penal francs.............................................. 187
3.3.3 A deciso que encerra a instruo..................................................... 191
3.4 A acusao no sistema processual penal espanhol................................ 194
3.4.1 Caractersticas do sistema misto....................................................... 196
3.4.2 A instruo preliminar (sumario)...................................................... 1993.4.3 A fase intermediria (intermedia)..................................................... 2013.4.4 A fase decisria (juicio oral).............................................................. 2063.4.5 Caractersticas do controle de acusao........................................... 208
3.5 A anlise da acusao no direito processual penal italiano................... 210
3.5.1 As investigaes na fase preparatria (indagini preliminari)........... 2133.5.2 As caractersticas da audincia preliminar (ludienza preliminare). 2163.5.3 A funo essencial no controle da atividade acusatria.................... 221
3.6 O modelo ingls para o controle da admissibilidade da acusao........ 226
3.6.1 Caractersticas da atividade de investigao e persecuo criminal..... 228
3.6.2 A audincia preliminar e o controle da acusao.................................. 230
3.7 A acusao no ordenamento jurdico dos Estados Unidos da Amrica.................................................................................................. 233
3.7.1 O trabalho de investigao criminal e o seu controle....................... 234
3.7.2 A formalizao da acusao no processo penal................................ 236
3.7.3 Providncias judiciais........................................................................ 239
3.8 O controle da admissibilidade acusatria no direito portugus........... 241
3.8.1 Das fases preliminares: o inqurito................................................... 246
3.8.2 Os atos da instruo.......................................................................... 250
3.8.3 A deciso instrutria como um juzo sobre a acusao.................... 253
CAPTULO IV
O JUZO DE ACUSAO E O JUZO DA CAUSA
4.1 Prolegmenos......................................................................................... 258
4.2 Uma dimenso para o processo penal................................................... 261
4.3 A topografia do jri no Cdigo de Processo Penal de 1941................... 264
4.3.1 Alteraes no procedimento do jri pelo Decreto-lei n. 263/1948.... 269
4.3.2 A pronncia e a priso pela Lei n. 5.941/1973................................... 270
4.3.3 A falta da testemunha na sesso do jri e a Lei n. 6.416/1977.......... 271
4.3.4 A presuno de inocncia e a alterao da Lei n. 9.033/1995........... 272
4.3.5 A reforma no procedimento do jri pela Lei n. 11.689/2008............. 273
4.4 O juzo de acusao e o juzo da causa................................................. 280
4.4.1 Da formao da culpa........................................................................ 284
4.4.2 Da preparao do processo para julgamento em plenrio................ 290
4.4.3 Do julgamento do mrito.................................................................. 293
4.5 Da pronncia do acusado...................................................................... 298
4.5.1 A finalidade da pronncia................................................................. 300
4.6 Do afastamento da pronncia................................................................ 302
4.7 Da impronncia..................................................................................... 304
4.8 Da despronncia.................................................................................... 308
4.9 Da absolvio sumria do acusado........................................................ 309
4.9.1 Do cabimento legal........................................................................... 312
4.9.2 A absolvio sumria e a tutela da liberdade individual do ru....... 314
4.10 Da desclassificao................................................................................ 317
4.10.1 Incidncia legal................................................................................. 319
4.10.2 Providncias no juzo competente.................................................... 321
CAPTULO V
PLANOS CARACTERSTICOS DA PRONNCIA
5.1 Ponderaes preliminares...................................................................... 324
5.2 A pronncia e sua natureza jurdica...................................................... 327
5.2.1 No mbito dos diplomas do Brasil Imprio..................................... 328
5.2.2 Na fase republicana........................................................................... 332
5.2.3 Na perspectiva hodierna................................................................... 334
5.3 Aspectos formais da deciso de pronncia............................................ 337
5.3.1 Do relatrio........................................................................................ 340
5.3.2 Da fundamentao............................................................................ 340
5.3.3 Do dispositivo e da autenticao...................................................... 344
5.4 As provas e a motivao do ato decisrio.............................................. 346
5.4.1 O objeto da prova e a pronncia....................................................... 351
5.4.2 A relatividade dos elementos de prova.............................................. 355
5.4.3 A motivao e os sistemas de anlise da prova................................. 359
5.4.4 O livre convencimento do magistrado.............................................. 363
5.4.5 A regra das mximas de experincia do juiz na pronncia.............. 370
5.4.6 A utilizao dos indcios.................................................................... 375
5.4.7 A prova emprestada no juzo acusatrio........................................... 379
5.5 Requisitos para a pronncia.................................................................. 382
5.5.1 A certeza da materialidade do fato.................................................... 385
5.5.2 A qualidade da prova da materialidade delitiva................................ 388
5.5.3 Indcios suficientes de autoria ou participao do acusado............. 391
5.5.4 A prova indiciria na pronncia........................................................ 395
5.6 Os efeitos da pronncia......................................................................... 399
5.6.1 Um panorama histrico dos efeitos da pronncia............................ 400
5.6.2 Efeitos da pronncia na reforma da Lei n. 11.689/2008.................... 404
5.6.3 A precluso........................................................................................ 405
5.6.4 A interrupo da prescrio............................................................... 407
5.7 A intimao da deciso de pronncia.................................................... 412
5.7.1 A intimao da pronncia aps a reforma do rito do jri................. 414
CAPTULO VI
A PRONNCIA NA
ORDEM PROCESSUAL GARANTISTA
6.1 A dignidade da pessoa humana............................................................. 416
6.1.1 A origem e o sentido inicial do princpio da dignidade humana..... 418
6.1.2 A dualidade princpio e norma jurdica............................................. 421
6.1.3 A dignidade como fundamento na ordem constitucional................ 423
6.1.4 Preceito de natureza absoluta e de contedo relativo....................... 425
6.1.5 A incidncia no processo penal......................................................... 428
6.2 A ordem processual garantista............................................................... 430
6.2.1 A natureza garantista do procedimento............................................ 432
6.3 Dos limites da fundamentao da pronncia........................................ 435
6.3.1 A motivao como imperativo legal.................................................. 436
6.3.2 A linguagem utilizada na fundamentao........................................ 440
6.3.3 A motivao e as teses defensivas..................................................... 445
6.3.4 A vedao meno do contedo da pronncia nos debates.......... 448
6.4 As circunstncias qualificadoras na pronncia..................................... 452
6.4.1 A especificao da qualificadora na pronncia................................ 454
6.4.2 Da qualificadora no contida na pea acusatria............................. 456
6.5 As causas de aumento de pena na pronncia........................................ 457
6.5.1 A especificao das majorantes......................................................... 458
6.6 O aforismo do in dubio pro societate.................................................... 4606.6.1 O in dubio pro societate numa perspectiva constitucional.............. 465
6.7 Da correlao entre a acusao e a pronncia....................................... 467
6.7.1 A definio jurdica diversa do fato narrado na pea acusatria...... 472
6.7.2 A nova definio jurdica do fato....................................................... 473
6.7.3 Da circunstncia superveniente precluso da pronncia.............. 476
6.7.4 Da incluso de outros rus no mbito da pronncia........................ 478
6.8 As infraes penais conexas e a pronncia........................................... 481
6.8.1 Da inadmissibilidade da anlise acusatria...................................... 483
6.8.2 Da motivao da pronncia quanto s infraes conexas................ 485
6.9 A priso na pronncia............................................................................ 489
6.9.1 Fundamento e modalidades de priso.............................................. 491
6.9.2 A origem da recomendao da priso como efeito da pronncia.... 493
6.9.3 A priso na pronncia como medida excepcional............................ 495
6.9.4 A durao da priso cautelar na pronncia....................................... 499
CONCLUSO...................................................................................................... 503
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 527
INTRODUO
Na seara da Cincia do Direito uma das instituies que desperta maior
ateno e que tambm se apresenta como palco de verdadeiros e calorosos debates
o Tribunal do Jri. Ao estud-lo tem-se a certeza de estar ingressando nos meandros
de um dos mais antigos basties do direito de pessoas leigas julgarem seu
semelhante.
Divergem os estudos no que tange ao exato momento de surgimento do
Tribunal do Jri no contexto mundial, sendo notada sua prefigurao remota nas
civilizaes grega, romana e hebraica. Por outro lado, parece incontestvel a noo
de que essa instituio, com os contornos que tem hodiernamente, surgiu no seio da
Carta Magna de 1215, na Inglaterra.
Pesquisas voltadas a pocas mais recuadas na histria apontam para a
existncia de procedimentos assemelhados ao do jri antes mesmo do sculo VI.
o que se descortina no contexto de uma compilao de leis romanas conhecida
como o Brevirio de ALARICO, promulgada em 506 d.C. Essa legislao teve
vigncia no reino visigodo de Tolosa e preceituava regras para o julgamento de um
acusado perante juzes leigos.
At a Idade Mdia percebe-se uma grande influncia religiosa incidente no
procedimento do jri, destacadamente quando os cidados reunidos para um
julgamento invocavam Deus como testemunha desse ato e pediam que lhes
orientasse na escolha de um veredicto justo ao caso. Postos os ideais da Revoluo
Francesa, ocorrida em 1789, o Tribunal do Jri tornou-se uma instituio com
procedimento mais tcnico e isso proporcionou sua maior acolhida em boa parte
dos ordenamentos europeus.
19
Em terras brasileiras o Tribunal Popular foi inserido no ordenamento
jurdico por intermdio do Decreto de 18 de junho de 1822 e ratificado como um
rgo do Poder Judicirio pela Carta Poltica imperial em 25 de maro de 1824. A
segunda Constituio brasileira e primeira republicana, promulgada em 24 de
fevereiro de 1891, erigiu o jri ao status de direito dos cidados brasileiros.
Com a Constituio da Repblica de 16 de julho de 1934 retornou o jri ao
patamar de rgo do Poder Judicirio. No Estado Novo foi promulgada uma nova
Carta Poltica em 10 de novembro de 1937 retirando a instituio do jri do seu
texto normativo. O jri foi guindado novamente ao ordenamento jurdico nacional
pelo Decreto-lei n. 167, de 05 de janeiro de 1938, todavia, suprimindo-lhe o
fundamento relacionado soberania dos veredictos.
A Constituio da Repblica, de 18 de setembro de 1946, acomodou o jri
no seio dos direitos e das garantias individuais, fato esse que foi seguido pelo texto
da Carta Poltica promulgada em 24 de janeiro de 1967. A reviso desta Carta
ocorreu pela Emenda Constitucional n. 1, outorgada em 17 de outubro de 1969,
mantendo a instituio do jri, mas alijando-a de seus principais fundamentos, como
a soberania dos veredictos e a plenitude de defesa.
O Tribunal Popular encontra abrigo no texto da Constituio da Repblica
de 1988. Est consagrado na redao do inciso XXXVIII do artigo 5., parte
integrante do Captulo I (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), inserto do Ttulo II
(Dos direitos e garantias fundamentais). Nesta Carta Cidad assegura-se o jri com os
seguintes fundamentos: a plenitude de defesa, o sigilo das votaes, a soberania dos
veredictos e a competncia para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
No referido texto constitucional o jri foi preservado na condio de garantia
fundamental de todos brasileiros e estrangeiros residentes no pas. Uma garantia de
que ser competente para o julgamento das infraes penais dolosas contra a vida,
assegurando-se os preceitos relativos ao devido processo legal. Da a sua condio
de tribunal natural para o processamento desses crimes.
20
A par de ser o jri uma garantia fundamental, tambm considerado um
direito humano fundamental, uma vez que permite a participao do indivduo na
atividade judicial levada a cabo pelo Poder Judicirio. Esse vis proporciona a
integrao do cidado aos temas inerentes ao poder estatal, desenvolvendo nele o
senso de compartilhar a responsabilidade da distribuio da justia.
O dispositivo constitucional que assegura a instituio do jri possui a
natureza de clusula ptrea sendo, portanto, intocvel pelo legislador ordinrio que
deve respeitar essa condio. Ao instituir um complexo sistema de direitos e
garantias fundamentais o legislador constituinte disponibilizou ao operador jurdico
uma sistemtica apta a garantir a harmonia do ordenamento jurdico ptrio,
impedindo interpretaes que levassem subverso dos propsitos maiores do
texto constitucional.
Dita o texto da Carta de 1988 que a organizao do jri seja realizada por
meio de lei ordinria. Nesse compasso, o Cdigo de Processo Penal Decreto-lei n.
3.689, de 03 de outubro de 1941 , regulando a matria do jri, foi recepcionado
pela referida Carta. Nesse ordenamento processual, atualmente, os dispositivos
inerentes ao procedimento do Tribunal Popular esto arrolados ao longo dos artigos
406 a 497 do Captulo II (Do procedimento relativo aos processos da competncia do Tribunal
do Jri) do Ttulo I (Do processo comum) do Livro II (Dos processos em espcie).
Atendendo aos antigos reclames de uma profunda reforma no jri, foi
sancionada em 09 de junho de 2008 a Lei n. 11.689, alterando os dispositivos do
Cdigo de Processo Penal relativos ao procedimento do Tribunal Popular. Essa lei
reformadora manteve a estrutura principal desse rito dividido em fases e introduziu
mudanas pontuais na sistemtica de alguns atos judiciais.
A fase inicial do rito do jri denominada de juzo de acusao iudicium
accusationis ou instruo preliminar, cuja finalidade servir para delimitar a
acusao. inaugurada com o recebimento da pea acusatria denncia ou queixa
e desenvolve-se perante um juiz togado. Os atos processuais dessa etapa
21
destinam-se formao do arcabouo de provas hbil para formar o convencimento
do magistrado acerca da admissibilidade acusatria.
A instruo preliminar encerrada com uma deciso judicial proferida com
base numa das seguintes possibilidades: a-) pronncia do acusado, por considerar-se
admissvel a acusao, remetendo-o ao julgamento pelo jri; b-) impronncia do
acusado, extinguindo o processo sem o julgamento do mrito; c-) desclassificao da
infrao penal para outra que no seja da competncia do jri; ou d-) absolvio
sumria do acusado.
A deciso de pronncia declara a viabilidade da pretenso inicial por
reconhecer comprovada a materialidade do fato e presentes indcios suficientes de
que o acusado seja o autor ou partcipe do ato. Destarte, essa deciso interlocutria
fixa os quadrantes da acusao declarando a norma legal na qual julga incurso o
acusado e especifica as circunstncias qualificadoras e as causas de aumento de pena
que devem ser sustentadas em plenrio.
A pronncia uma deciso interlocutria no procedimento do jri que
encerra a fase da formao da culpa e remete os autos para o julgamento do acusado
diante do plenrio do jri. No julga o direito de punir, mas o direito de acusar.
Sendo assim, essa deciso revela-se como um filtro que separa as causas que devem
ser enviadas ao Tribunal Popular das demais. Ao encerrar o juzo de acusao a
pronncia inaugura o juzo da causa.
Como a pronncia uma deciso que versa sobre o convencimento do
magistrado acerca da existncia dos pressupostos legais da acusao, encerra um
juzo valorativo sobre as provas constantes dos autos no trmino da instruo
probatria. Destarte, vrias cautelas devem ser tomadas pelo juiz pronunciante a fim
de que sejam evitados excessos na fundamentao desse ato processual. A
motivao excessiva ou contundente da pronncia pode antecipar o mrito para
uma fase inapropriada, alm de influenciar indevidamente a formao da convico
do jurado.
22
A pronncia assume tambm um importante vis constitucional. Ao
considerar a Repblica Federativa do Brasil constituda num Estado Democrtico de
Direito, o texto constitucional estabelece como um dos seus fundamentos a
dignidade da pessoa humana, preceito considerado como o de maior amplitude no
mbito da Carta Magna de 1988, alm de ser o inspirador dos demais princpios ali
inscritos.
Esse princpio irradia para todo o ordenamento jurdico um expressivo feixe
de garantias individuais que devem ser observadas pelo operador jurdico quando da
aplicabilidade das regras que regem, fundamentalmente, os institutos do direito
processual penal, como a pronncia no procedimento relativo aos processos de
competncia do Tribunal do Jri.
Conseguintemente, a motivao da pronncia, seus efeitos e as demais
implicncias prticas que a envolvem devem ser analisadas luz dos ditames
pretendidos pelo fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, como
forma de resguardar a aplicao conforme a constituio das regras processuais
inerentes quele ato processual.
cedio que o Estado desenvolve a atividade judicial por intermdio de um
conjunto de garantias constitucionais denominado de devido processo legal. Sua
concepo est atrelada ao fato de que o ente estatal deve proporcionar s partes
que atuam no processo uma segurana para o exerccio de suas faculdades
processuais, sendo, por consequncia, um imperativo ao adequado exerccio da
jurisdio estatal.
Tais garantias no devem ser entendidas somente como prerrogativas das
partes mas fundamentalmente como direitos pblicos subjetivos daquelas de terem
assegurado que suas pretenses sejam submetidas ao transcurso de um processo
judicial sob a conduo de um rgo imparcial, independente e legalmente imbudo
de poderes e competncia para fazer valer a aplicao do direito abstrato ao caso
concreto.
23
Assim a Constituio da Repblica de 1988 ao estabelecer princpios e
normas visando ao adequado desenvolvimento da atividade processual, institui
tambm um poderoso sistema de garantias processuais que permitem ao acusado
exercer sua ampla defesa, assegurando-lhe o acesso ao devido processo legal.
Dessa importante natureza garantista extrada da Carta Poltica de 1988, h
que se repensar a aplicabilidade das regras processuais referentes pronncia, uma
vez que se torna direito do acusado ter plena cincia das razes que levam o
magistrado a admitir a acusao enviando-lhe para julgamento perante o jri. Torna-
se a pronncia um importante e democrtico mecanismo de controle da atividade
acusatria no procedimento do jri.
Na esteira dessas consideraes que se coloca a deciso de pronncia como
o ncleo central que impulsiona o presente trabalho. Para que os objetivos
pretendidos sejam aqui devidamente alcanados a redao do trabalho est
estruturada na forma de captulos, no mbito dos quais se constri sistematicamente
o objeto proposto.
O Captulo I Aportes dos clssicos sistemas jurdicos colaciona a anlise dos
procedimentos destinados formao da culpa do acusado no seio dos principais
sistemas jurdicos da Antiguidade, partindo de uma poca em que inexistiam
convenes. Nesse contexto so destacadas algumas importantes sistemticas
primitivas utilizadas para a produo e avaliao das provas, a forma pela qual se
iniciava a acusao nos procedimentos criminais, o tratamento que era dispensado
ao acusado e as limitaes que eram impostas a sua defesa.
A anlise bibliogrfica realizada aponta que, em boa parte dos sistemas
avaliados, o julgamento se desenrolava sob a inspirao de manifestaes de cunho
religioso, dificultando a defesa do acusado uma vez que a formao da culpa estava
atrelada ao seu sucesso ou insucesso nas provaes a que era submetido. Inobstante
inexistir uma acusao formalizada havia uma dinmica apta a escolher as causas que
necessitavam ser submetidas a julgamento popular.
24
No contexto do Captulo II Antecedentes na formao do procedimento do jri no
Brasil so analisados os preceitos formadores do procedimento do Tribunal do Jri
no Brasil. Para tanto, toma-se como ponto de partida o contexto histrico de
Portugal anterior formao das Ordenaes do Reino, com o objetivo de entender
as influncias sofridas na concepo dessas codificaes que serviram de substrato
para a formao do ordenamento jurdico brasileiro. Ressalta-se aqui o pensamento
jurdico que fomentou o substrato da legislao nos primrdios do Brasil.
So apontadas as caractersticas da poca de transio das regras do processo
penal existentes nas Ordenaes para as primeiras normas jurdicas genuinamente
nacionais, com destaque para adoo do Tribunal do Jri no Brasil. A partir da,
com nfase na pronncia, so arroladas as principais caractersticas dos diversos
diplomas que disciplinaram as regras do Tribunal Popular ao longo da histria
brasileira. Merece destaque tambm a previso desse tribunal no mbito das
constituies ptrias, realando os diversos momentos polticos em que as mesmas
foram concebidas.
Por seu turno, o Captulo III O controle da admissibilidade da acusao no direito
comparado dedicado anlise da admissibilidade acusatria no direito comparado.
Esse estudo permite entender o funcionamento de distintos sistemas jurdicos luz
dos institutos analisados. Para tanto, so eleitos alguns dos principais sistemas
jurdicos estrangeiros na atualidade em que possvel vislumbrar o processamento
das causas que so enviadas a julgamento pelo jri.
O mote desse captulo levantar as caractersticas do processo penal nesses
sistemas, tendo em vista as regras e condies em que se desdobram os mecanismos
de controle da admissibilidade acusatria, para fomentar uma anlise comparativa
com a sistemtica observada no modelo brasileiro, este que adota a deciso de
pronncia como instrumento para o referido controle. Ainda, da anlise do direito
comparado possvel compreender o grau de comprometimento dessas culturas
jurdicas na aplicao do processo penal tendo em vista uma funo garantidora dos
direitos humanos fundamentais.
25
Tendo como lastro o Cdigo de Processo Penal brasileiro e as legislaes que
alteraram o procedimento do jri, o Captulo IV O juzo de acusao e o juzo da causa
analisa as principais caractersticas das etapas deste rito. Sendo considerado um
procedimento escalonado, o rito do jri contempla uma fase inicial destinada
instruo probatria e outra, ao final, destinada ao julgamento da causa. A
pronncia a deciso que proporciona a ocorrncia da fase de julgamento, o iudicium
causae, pela qual a matria remetida apreciao de um conselho de jurados
presididos por um magistrado togado.
Nesse captulo so tambm avaliadas as implicncias prticas que decorrem
da no realizao da pronncia pelo magistrado, sufragando a fase de julgamento do
acusado em plenrio. Isso corre quando o juiz se convence no sentido de
impronunciar o acusado ou desclassificar a infrao penal para outra que no seja da
competncia do jri. Pode, ainda, absolver sumariamente o acusado se ficar
comprovada a ocorrncia de alguma das causas legais autorizadoras. Nestas
situaes no inaugurada a fase do juzo da causa.
O Captulo V Planos caractersticos da pronncia tem por finalidade principal
descortinar as caractersticas da deciso de pronncia. Por se tratar de um ato
judicial prprio do rito do Tribunal do Jri, a pronncia dotada de caractersticas
peculiares, requisitos especficos e inerentes aos fins que se prope. Todavia,
vislumbra-se nessa deciso uma estrutura formal assemelhada quelas das sentenas
de mrito, contendo o relatrio das principais ocorrncias da fase sumarial, a
fundamentao das questes expostas na instruo preliminar, o contedo decisrio
e a parte destinada sua autenticao.
Alm da anlise realizada de cada um dos pressupostos legais da pronncia o
vertente captulo lana um estudo sobre sua relao com o direito probatrio.
Partindo-se da premissa de que a prova o elemento que proporciona ao
magistrado a tomada da deciso, so aferidos os quadrantes em que isso deve
ocorrer, dado que a pronncia no deciso de mrito, mas de admissibilidade
acusatria e, portanto, com implicaes diferenciadas.
26
Na estrutura do Captulo VI A pronncia na ordem processual garantista
adota-se o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana para analisar
alguns dos principais planos que devem estribar a deciso de pronncia. Em nome
do Estado Democrtico de Direito preciso inibir uma atuao jurisdicional que
cometa arbitrariedades ou excessos advindos das heranas ditatoriais que em alguns
casos insistem em se manterem vivas assombrando o processo penal e colocando
em risco os direitos fundamentais. certo que a dignidade humana um
fundamento que ao mesmo tempo justifica a interveno estatal e municia o
indivduo de meios para que possa exercer o contraditrio e a ampla defesa no
devido processo legal.
Ao colocar a temtica que envolve a pronncia na pauta constitucional, o
trabalho pretende delinear alguns contornos imprescindveis para que a atuao
jurisdicional nessa fase do rito do jri seja firme e voltada para garantir o
cumprimento dos preceitos constitucionais. Pela importncia que decorre do tema,
o que no se pode aceitar o desatino de utilizar a pronncia para conduzir o
acusado a julgamento pelo jri sem uma segurana mnima de provas, remetendo a
dvida ou incerteza para a deciso do jurado leigo, expondo a liberdade do acusado
a toda sorte de acontecimentos.
Os pontos cardeais e fomentadores do presente trabalho conduzem, em sua
essncia, Concluso ao final deste. Nessa seo so apresentadas tambm as
tendncias que cercam a temtica, bem como, os principais pontos depurados do
confronto realizado entre as hipteses inicialmente levantadas e os ensinamentos
doutrinrios adquiridos ao longo da trajetria, esta que sempre teve por mvel o
estudo das provncias em que se assenta a deciso de pronncia na ordem jurdica
nacional.
A seo que complementa o vertente trabalho a Bibliografia. Nesta seo
esto inseridos os ttulos em doutrina nacional e estrangeira que fomentam as
premissas aqui tratadas. O rol colaciona somente as referncias aos ttulos em que
h meno expressa ao longo dessa estrutura redacional.
27
CAPTULO I
APORTES DOS CLSSICOS
SISTEMAS JURDICOS
SUMRIO: 1.1 Prembulo 1.2 Anotaes na intitulada pr-histria do direito 1.3 O surgimento das convenes procedimentais nos povos antigos 1.4 A contribuio da cultura jurdica grega 1.5 A formao do sistema jurdico romano: 1.5.1 As formas processuais na fase da Realeza; 1.5.2 A atividade acusatria na fase republicana; 1.5.3 O processo penal no Imprio Romano; 1.5.4 Influncias de outras culturas no direito romano 1.6 O juzo da instruo e a acusao no direito germnico 1.7 O mtodo cientfico para a instruo criminal no direito cannico 1.8 A sistemtica no Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio 1.9 Anotaes no direito anglo-saxo 1.10 Prticos da formao do jri: 1.10.1 A Heliia e o Arepago na Grcia; 1.10.2 Os tribunais hebraicos; 1.10.3 A quaestio romana; 1.10.4 O reconhecimento do jri.
O homem retrata-se inteiramente na alma; para saber o que e o que deve fazer, deve olhar-se na inteligncia, nessa parte da alma na qual fulge um raio da sabedoria divina.
DILOGOS
PLATO (428 a.C. 347 a.C.)
1.1 Prembulo
A tarefa de julgar o ser humano por demais rdua. Compulsando os
manuais que relatam a Histria de diversas civilizaes, em distintas etapas
cronolgicas de sua existncia, percebe-se o quo escarpada foi a pesquisa e
identificao da ocorrncia dos delitos e, em maior grau, o julgamento e a
consequente aplicao da pena ao culpado.
28
O direito apresenta uma origem e uma essncia social1, alm de uma
finalidade, qual seja, a paz2. O resgate das caractersticas histricas permite
compreender a dimenso das instituies, a forma pela qual foram concebidas, suas
lutas, as amarras das quais se libertaram do poder opressor observado na constante
relao de dominao, alm dos mais variados traos comportamentais dos seres do
passado. Isso faz com que seja reconstruda parte da identidade do ser humano em
nexo com o passado3.
Em consonncia a tal raciocnio, vislumbra-se a saga da humanidade enleada
ao problema do conhecimento. Atormentado com a necessidade de justificar sua
existncia e os fatos que o circunscrevem, o ser humano sempre trilhou na busca do
saber e isso perceptvel em vrias incurses histricas.
Pavimentando essa constatao encontra-se o fato da constante busca pelos
elementos que cercam a verdade nas questes que demandam uma deciso4. Uma
leitura dos diversos sistemas existentes desde a antiguidade desvela o emprego de
diferentes metodologias para se atingir um procedimento judicial adequado.
Aliada natureza humana (necessidade de saber), percebe-se no julgamento
de um indivduo, tambm, a necessidade da firmao do poder pela sociedade
constituda (o veredicto soberano), em que direitos e garantias so debatidos
1 O direito ampara o ser humano desde o momento em que concebido e enquanto ainda vive no ventre
materno. E depois o segue e acompanha em todos os passos e contingncias de sua vida [...]. Por isso, que sociedade e direito forosamente se pressupem, no podendo existir aquela sem ste, nem ste sem aquela. [...] Encontra-se, pois, a origem do direito na prpria natureza do homem, havido como ser social [...]. O direito equaciona a vida social, atribuindo aos seres humanos, que a constituem, uma reciprocidade de poderes, ou faculdades, e de deveres, ou obrigaes (RO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. So Paulo: Max Limonad, 1952, v. 1, p. 38-40).
2 A paz o fim que o direito tem em vista, a luta o meio de que se serve para o conseguir. [...] A vida do direito uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivduos. Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta [...]. Por isso a justia sustenta numa das mos a balana em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender (IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Trad.: Joo de Vasconcelos. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 1).
3 A Histria, empolgando o homem no seu esforo secular de atingir a uma mais perfeita humanidade, tambm, por tal razo, o impele a reaver em sua irredutvel originalidade, esta gnese e ascenso de que os acontecimentos so a expresso externa e condensada (PIERANGELLI, Jos Henrique. Processo penal: evoluo histrica e fontes legislativas. Bauru: Javoli, 1983, p. 10).
4 O problema do conhecimento, da cincia demonstra-se, portanto, uma questo filosfica (a necessidade humana do saber), uma questo poltica (o fenmeno do poder, de dominao da realidade) e, por certo, uma questo jurdica: a liberdade do homem e suas limitaes (GARCIA, Maria. Limites da cincia: a dignidade da pessoa humana a tica da responsabilidade. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 33-34).
29
colocando-se em confronto a necessidade de represso social e a tutela jurdica
liberdade legitimamente conquistada5.
Nesse cenrio, revela-se a cincia como instrumental disposio do ser
humano interferindo fundamentalmente nas relaes sociais. O mesmo ocorre no
mbito processual, vez que num Estado Democrtico de Direito h muito se
vislumbra num processo judicial um meio legtimo e seguro de atingir-se um
veredicto6. Contudo, a formao do processo penal no ocorreu de modo isolado
nem suas bases foram concebidas por uma nica sociedade7.
Numa imerso pelos registros histricos percebe-se que no somente os
meios de pesquisa (evidncias e provas), mas os procedimentos (ritos) tambm
foram fundamentais para se estabelecerem critrios que pudessem legitimamente
orientar a formao de um lastro mnimo de segurana capaz de submeter o acusado
da prtica delituosa a um julgamento popular8.
Em condio de arranque, cumpre destacar que a anlise que se faz em
relao aos contornos histricos que permeiam os julgamentos populares (assim
como das demais instituies da cincia do direito) est intrinsecamente atrelada aos
5 Tem-se que o direito um attributo da pessoa. A pessoa uma substancia individual da natureza racional e
social. uma substancia individual, que vive na sociedade, em cujo seio exerce direitos de homem e de cidado. [...] Todos estes direitos so considerados direitos individuaes, porque so attributos da pessoa, isto , da substancia individual de natureza racional e social (ALMEIDA JNIOR, Joo Mendes de. O processo criminal brazileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia., 1911, v. I, p. 5-6, grifo do autor).
6 A necessidade do processo se deve incapacidade de algum para julgar, por si mesmo, sobre o que se deve fazer ou no fazer [...]. O processo serve, pois, em uma palavra, para fazer que entre em juzo aqueles que no o tm. E, posto que o juzo prprio do homem, para substituir o juzo de um pelo juzo de outro ou outros, fazendo do juzo de um a regra de conduta de outros, aquele que faz entrar em juzo, ou seja, aquele que fornece aos outros aquilo de que necessitam seu juzo , o juiz (CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Trad.: Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Lder Cultura Jurdica, 2001, p. 33, grifo do autor).
7 O processo penal no fruto das meditaes dos filsofos, nem das teorias de uma escola, nem dos costumes de um certo povo, nem da poltica dum determinado Estado. Ele essencialmente um produto da necessidade e da experincia sociais, produto que se formou, desenvolveu e aperfeioou atravs dos sculos e em todos os povos civilizados (ROSA, Inocncio Borges da. Comentrios ao Cdigo do Processo Penal. 3. ed. atual. por Angelito A. Aiquel. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 23).
8 Todos os povos, mesmo aquelles que ainda se acho em lugar inferior na escala da civilisao, possuem certas noes sobre a economia da prova, e por consequencia sobre os meios facultados ao accusador ou ao accusado, afim de convencerem os juzes da verdade de suas allegaes sobre os motivos de prova, nos quaes tero de basear a sentena (MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matria Criminal. Trad.: Alberto Antonio Soares. Rio de Janeiro: Livraria do Editor, 1871, p. 20).
30
diversos costumes, aos credos e s obras legislativas que dominaram (e ainda
dominam) vrias culturas ao longo da histria das civilizaes.
Vislumbra-se, sobretudo, um profundo elo entre a poltica e as questes de
ordem processual, em que a carga ideolgica sempre dominou as codificaes,
impondo aos integrantes de suas sociedades verdades perfeitas e acabadas, sufocando,
em diversos momentos, a possibilidade de que meios cientficos e mais precisos
pudessem ser utilizados como condutores do processo. Registra-se que desde a
antiguidade tem-se no processo o meio pelo qual se obtm a reparao do dano9.
Por diversas vezes tal constatao extrada de uma releitura dos
acontecimentos histricos10, estes orientados por verdadeiras motivaes
religiosas11. Nesse contexto, necessrio se faz uma descomprometida lembrana
acerca das principais caractersticas envolventes dos julgamentos populares dentro
de algumas das mais destacadas civilizaes do passado, com vistas compreenso
da mecnica que move atualmente os institutos da cincia processual.
Sem realizar esse breve resgate histrico sobre alguns procedimentos
observados nas principais civilizaes pretritas formadoras de culturas jurdicas,
dificilmente possvel a compreenso satisfatria dos mecanismos que regem,
hodiernamente, as instituies que perfazem o procedimento do Tribunal do Jri.
Da as valorosas lies no sentido de que quando prosseguimos em uma serie de estudos
9 O processo penal da antiguidade no se distanciava muito do processo civil. A idia bsica do processo, em
geral, era a interveno do Estado com a finalidade de obter a reparao do dano ocasionado. [...] na realidade, o processo tinha por escopo a declarao da responsabilidade de um indivduo por parte da assemblia judicante; por isso tendia substancialmente a um efeito dplice: de um lado, o reconhecimento da responsabilidade do ru e, de outro lado, a garantia para a vtima no sofrer ofensas ou vinganas por parte do ru ou de seus familiares (GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades pblicas e processo penal as interceptaes telefnicas. 2. ed. atual. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 26).
10 Notadamente a ntima conexo entre o direito poltico e o processo penal, que se revela atravs dessa luta entre os intersses do Estado e do indivduo, no seria possvel sem uma indagao histrica. sses entrechoques de intersses viveram sempre ao influxo das concepes polticas imperantes. Por vzes, o predomnio exagerado de um dles levou a uma viso unilateral do processo, dando-lhe a feio de um litgio privado e consagrando a passividade do julgador (BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito processual penal brasileiro. So Paulo: Sugestes literrias, 1969, v. I, p. 45).
11 Imperativo no Antigo Testamento, Livro de Deuteronmio, Captulo 1, versculos 16 e 17, preconizam que naquele tempo dei aos juzes a seguinte ordem: Ouvi vossos irmos, julgai com justia as questes de cada um, tanto com o irmo como com o estrangeiro. No deis ateno em vossos julgamentos aparncia das pessoas. Ouvi tanto os pequenos como os grandes, sem temor de ningum, porque a Deus pertence o juzo (BBLIA SAGRADA. 36. ed. Rio de Janeiro: Vozes, s.d., p. 199).
31
necessitamos sempre de um banho de memoria, para que possamos ligar o antecedente ao
consequente12.
o mvel principal do presente captulo o resgate dos destaques observados
nos diferentes modos de administrar a justia penal entre os povos, realando as
questes afetas aos procedimentos utilizados para realizar o controle da acusao e
as remotas fontes que aludem gnese do Tribunal do Jri, lembrando sempre da
impossibilidade de anotar na seara do vertente trabalho todos os pontos histricos
havidos, visto que so inesgotveis.
1.2 Anotaes na intitulada pr-histria do direito
H muito se percebe que a experincia jurdica se entrelaa com uma
experincia normativa desde o incio da existncia humana13. Estudar a relao do
direito com o homem e os fatos sociais por ele proporcionados14 , essencialmente,
estudar o direito frente ao Estado e seus institutos15, uma relao que envolve um
poder constitudo e uma sociedade disciplinada por regras16.
12 Cf. ALMEIDA JNIOR, Joo Mendes de. Direito judicirio brazileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Typographia
Baptista de Souza, 1918, p. 5.13 Com isto, entendo que o melhor modo para aproximar-se da experincia jurdica e apreender seus traos
caractersticos considerar o direito como um conjunto de normas, ou regras de conduta (BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurdica. Trad.: Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2. ed. rev. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 23, grifo do autor).
14 Dessa forma a conscincia jurdica do mundo assemelha-se a uma rvore ciclpica e milenria, de cujos galhos nodosos rebentam os densos ramos e, deles, a florao dos direitos. Quando em vez, as flores legais emurchecem sob o implacvel calor do tempo e a ventania evolucionista e revolucionria, oriunda das carncias sociais, agita as ramagens e as faz rolar para o solo poroso, onde so transformadas em adubo e absorvidas pelas razes poderosas e insaciveis (ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. 6. ed. So Paulo: cone, 1995, p. 9).
15 Pode-se dizer que o direito a armao do Estado. [...] No Estado de direito no podemos ver, pois, a forma perfeita de Estado. Os juristas so vtimas, neste ponto, de uma incrvel iluso. O Estado de direito no o Estado perfeito mais do que possa ser perfeito o arco que os pedreiros o tenha construdo (CARNELUTTI, Francesco. Arte do direito: seis meditaes sobre o direito. Trad.: Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Bookseller, 2001, p. 18-19).
16 A histria do Direito acompanha o evoluir da civilizao, sendo um produto da cultura. Segundo a idia que se faa da origem da autoridade, assim se organizam politicamente os povos. Na antigidade, cuja cultura era eminentemente dista, o direito e a autoridade no poderiam ter outra base seno sacra e sacerdotal. O crime era entendido como ofensa divindade, e o rei ou o sacerdote, eram seus aplicadorescomo representantes de Deus entre os homens (MALCHER, Jos Lisboa da Gama. Manual de Processo Penal brasileiro doutrina, jurisprudncia e fluxogramas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, v. I, p. 23).
32
O estudo das instituies e dos princpios orientadores do direito17 requer
consideraes mais aprofundadas dentro dos sistemas utilizados pelos povos sem
escrita (primeiro momento histrico das relaes sociais). Inegvel que a noo de
direito nasce juntamente com os hbitos em sociedade.
Do surgimento das normas a partir da necessidade dos grupos sociais, ocorre
um ntido momento na histria em que os preceitos individuais comeam a ceder
terreno aos preceitos coletivos, exatamente no instante em que comeam a surgir e
firmarem-se novas castas de domnio e de poder18.
Intitulada como pr-histria do direito19, essa fase muito difcil de ser avaliada
de forma pormenorizada vez que deixou poucos vestgios e elementos que
propiciassem traar um perfil maior20. Decerto que uma avaliao com mais
profundidade em detalhes acerca da identificao de procedimentos e demais ritos
especficos que envolvam os julgamentos populares nessa fase da histria, pode
esbarrar na escassez de informaes.
A caracterstica por demais anotada desse marco inicial e formador das
sociedades assim tidas pelo homem o no conhecimento da escrita. Embora no
houvesse at ento a utilizao de uma simbologia ou codificao para a anotao
das regras e dos ditames sociais, vrios fatores de aceitao social e germinadores de
vrios institutos do direito eram extrados, tais como, o casamento, o antigo ptrio
17 O Direito no mero somatrio de regras avulsas, produto de atos de vontade, ou mera concatenao de
frmulas verbais articuladas entre si. O Direito ordenamento ou conjunto significativo, e no conjuno resultada de vigncia simultnea, coerncia [...] unidade de sentimento, valor incorporado em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor projeta-se ou traduz-se em princpios(MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 1990, tomo I, p. 21).
18 nesse momento que a noo do direito principia a conformar sua vida em sociedade, visto que a hierarquia tribal impe-se a partir da compreenso dos direitos e deveres de cada um, noo captada pela fora dos que governavam os destinos das primeiras comunidades. [...] A pr-histria e o direito pr-histrico terminam no momento em que o foco das divergncias entre grupos nmades e sedentrios evolui para as lutas entre os grandes grupos sedentrios na busca de poder, que so aquelas que j caracterizam a histria narrada (BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentrios Constituio do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. So Paulo: Saraiva, 1989, v. 1, p. 12-15).
19 GILISSEN, John. Introduo histrica ao direito. Trad.: A. M. Hespanha e L. M. Macasta Malheiros. 2. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1995, p. 31.
20 A vida pr-histrica, que se pode reconstruir com os dados ou resduos paleontolgicos nas suas condies elementares de existncia social e individual, no fornece elementos para lhe delinear a forma da justia penal (FERRI, Enrico. Princpios de direito criminal: o criminoso e o crime. Trad.: Paolo Capitanio. 2. ed. Campinas: Bookseller, 1988, p. 33, grifo do autor).
33
poder (poder familiar), os preceitos de propriedade, regras de sucesso familiar,
dentre tantos.
A funo de julgar21 observada com relativa frequncia no meio dos povos
primitivos. Muito embora no utilizassem a escrita, desenvolveram tcnicas
apropriadas ao contexto em que se inseriam, estabelecendo sanes22, nas quais
imperava o claro sentido de vingana23, aos descumpridores dos preceitos estatudos
pela sociedade24.
H que se registrar que tambm no se cogitava nessa poca de um
procedimento probatrio administrado por regras claras e especficas25 ou na
modalidade que se assemelhasse a alguma forma procedimental conhecida26.
Passavam de gerao para gerao seus costumes como a principal inspirao
fonte para seu comportamento, originando o denominado direito
consuetudinrio27, este, por seu turno, observado na formao de vrios sistemas
jurdicos.
21 A funo de julgar remonta aos primrdios da civilizao: ao chefe da tribo, ao pater famlias, aos
sacerdotes, aos primeiros reis. [...] A infrao ou ofensa assumia ento o carter de dano coletivo, que atingia todo o grupo, provocando uma vingana generalizada. [...] A administrao da justia estava ali confiada ao senhor ou batab (SOARES, Orlando. Curso de direito processual penal. Rio de Janeiro: Jos Konfino, 1977, p. 64).
22 O processo penal, na sua origem histrica, no tutelava os fundamentais interesses da vida por meio das sanes punitivas. A ofensa era considerada leso ao cidado privado, o qual reagia por si, e a sua vingana constitua o meio rudimentar e o direito de reao contra o fato delituoso. Vencida essa fase da vingana privada, com o aumento da fora do poder pblico que consolida a sua prpria autoridade, nascem as normas destinadas a estabelecer os fatos, com as penas respectivas (NETTO, Jos Laurindo de Souza. Processo penal: sistemas e princpios. Curitiba: Juru, 2003, p. 19).
23 Desde ento se percebe que os homens, entrementes, tm necessidade de viver em paz. A justia a condio da paz [...]. A paz um estado da alma que extingue o desejo de mudana (CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o direito: seis meditaes sobre o direito. Trad.: Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Lder Cultura Jurdica, 2001, p. 61).
24 A morte, precedida de torturas, era a regra nas punies. O suplcio infligido nas execues no restabelecia a justia nem reparava o dano, servindo somente para reafirmar o poder dos soberanos e dos que detinham privilgios (MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. A pena capital e o direito vida. So Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 34).
25 Sobre a mais antiga forma de prova talvez tenha sido o juramento, que se registra em formas grupais humanas as mais simples (BAPTISTA, Francisco das Neves. O mito da verdade real na dogmtica do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 42).
26 Com o aparecimento do Estado, a administrao da justia, ou seja, o poder de julgar (poder jurisdicional) tornou-se monoplio estatal (SOARES, 1977, p. 65).
27 A passagem do pr-direito ao direito corresponde geralmente passagem do comportamento inconsciente puramente reflexo ao comportamento consciente, reflectido, seno inteligente [...]. Nas sociedades arcaicas, o direito est ainda fortemente impregnado de religio. A distino entre regra religiosa e regra jurdica aqui muitas vezes difcil, porque o homem vive no temor constante dos poderes sobrenaturais (GILISSEN, 1995, p. 35-37, grifo do autor).
34
Tais civilizaes possuam na religio um de seus principais pilares de
sustentao. A crena nas divindades mitolgicas permitia criar um universo de
crendices e balizas utilizadas para cada comunidade, originando uma diversidade de
comportamentos pautados, inclusive, nas foras que acreditavam ser provenientes
do sobrenatural28.
O simbolismo e a divindade eram elementos de grande influncia que se
agregavam no cotidiano pretrito, com amplo destaque para a crena dos aborgines
nos tabus29, estes que se apresentavam de dois modos, quais sejam: como uma
utilidade visvel ou como um imperativo a ser obedecido pela comunidade, cujo
desrespeito se revelava uma forte transgresso ao meio em que viviam, sendo
passvel de uma sano.
O trao religioso dominante nas civilizaes primitivas calcava-se num claro
temor ao sobrenatural, muitas vezes expressado nos fenmenos da natureza, nos
animais e plantas, por exemplo. A f e a confiana residiam em maior grau nos
denominados combates judicirios30, julgamentos31 ou juzos de Deus32 (conhecidos
tambm posteriormente como ordlias, j existentes nas mais remotas culturas
humanas33, conforme atestam os registros histricos.
28 Dessa forma, foram conservados certos poderes especiais ao pater familias, assegurando-se-lhe a condio
de chefe supremo da mulher, filhos e de certo nmero de indivduos livres e de escravos, com direito de vida e morte sobre eles; era o chefe religioso [...]. Em outras palavras: em suas origens, as diferentes civilizaes demonstram a ligao entre o direito e a religio, aparecendo assim o direito marcado pelo carter religioso e mgico (SOARES, 1977, p. 62-63).
29 certo que os tabus correspondem ao produto direto da formao psquica do homem selvagem so os tabus que governam o comportamento individual-social. [...] os primeiros sistemas penais da humanidade se ligam ao tabu (GONZAGA, Joo Bernardino. O direito penal indgena: a poca do descobrimento do Brasil. So Paulo: Max Limonad, s.d., p. 79).
30 Diferiam os processos em que um se iniciava, e o outro no, por clamor ou querimonia; um dispensava de regra, nos primeiros tempos, melhores provas e, no outro, o juiz procedia esquadrinhamento a verdade por meio de testemunhas e instrumentos per esquisa ou decidia pelo combate judicirio ou juzos de Deus(ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princpios fundamentais do processo penal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 48-49, grifo do autor).
31 As ordlias, conhecidas tambm como julgamento ou juzo de Deus, destinavam-se descoberta da verdade atravs da imposio aos acusados de meios penosos, e at mesmo mortais (MORAIS, Paulo Heber de; LOPES, Joo Batista. Da prova penal. Campinas: Julex Livros, 1978, p. 11).
32 Os juizos de Deos constituem meios de prova decididamente formal, obrigando o juiz, embora opponha-se directamente a sua convico ao resultado, a tomar este por base e motivo decisivo da sentena (MITTERMAYER, 1871, p. 21).
33 El vocbulo ordalia no significa otra cosa que decisin, de modo que os expresivo para designar esas pruebas, de cuyo resultado dependia la suerte del proceso (RUBIANES, Carlos J. Manual de derecho procesal penal: teora general de los procesos penal y civil. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1978, p. 14).
35
O julgador cada vez mais se assegurava s ordlias34 para atingir seu
convencimento. Percebe-se que o vnculo entre a razo da divindade e a lea do
grupo sempre foi um trao presente em quase todas as civilizaes da antiguidade35,
principalmente no denominado sistema feudal. Mais tarde, a introduo do duelo como
prova divina fora registrada36.
Com base nas modalidades previstas para as ordlias37, aparentemente havia
uma confuso do que era ou no jurdico. Para assegurar a imposio de regras pr-
determinadas, grupos de pessoas funcionavam como verdadeiros conciliadores na
tentativa de se evitar o embate social mediante concesses de ambas as partes
conflitantes.
Constata-se em todo esse aparato histrico que os grupos sociais,
independente da cultura a qual pertenciam, sempre buscaram meios eficientes para
aplicar a reprimenda do prprio grupo aos fatos que deveriam ser repugnados,
numa clara tentativa de inibir que os mesmos se repetissem. Contudo, no se
vislumbra nenhuma forma de racionalidade na avaliao dos meios de defesa
34 Sob a denominao de ordlias, tambm chamadas julgamentos ou juzos de Deus, incluiam-se certas provas,
rudes, penosas e muitas de carter mortal, a que eram submetidos os acusados ou os litigantes e das quais deviam estes, por graas ou interveno divina, sair com vida, inclumes, ou ilesos no caso de serem inocentes, ou de terem de seu lado o bom direito. Encontra-se o regime das ordlias em quase todos os povos antigos da sia e da frica, e por largussimos tempos vigorou ele no mundo, tendo atravessado muitos sculos e penetrado na Europa, em cujos pases foi geralmente praticado at fins do sculo XI(ALMEIDA, 1973, p. 49, grifo do autor).
A f e a confiana nas ordlias testemunho em alto gro varias tendencias para o principio da verdade formal: o que pde ser considerado como uma consequencia da crena enraizada no povo, de que a voz de Deos acaba por descubrir a verdade e auxiliar o bom direito (MITTERMAYER, 1871, p. 21, grifo do autor).
35 O combate judicirio existiu em quase todos os pases da antiguidade e da idade mdia e vigorou na Europa durante todo o perodo do feudalismo. Fundava-se na crena de que Deus, sendo infinitamente justo, no permitiria que da luta ou do combate travado entre os dois litigantes sasse vencedor aquele que pleiteava uma pretenso infundada e injusta e vencido aquele de cujo lado estavam o direito e a razo. Tendo sido suprimido por S. Luiz, na Frana em 1270, foi o combate judicirio muitas vezes anatematizado pelos papas e, afinal, como as ordlias, completamente abolido (GUSMO, Manuel Aureliano de. Processo civil e comercial. So Paulo: Livraria Acadmica, 1924, v. II, p. 22-27).
36 Ao juramento se seguiu o duelo, outra modalidade de prova divina ou juzo de Deus, fundada na crena de que Deus no permitiria sasse vencedor o litigante que pleiteasse uma pretenso injusta (MORAIS; LOPES, 1978, p. 12).
37 Para os julgamentos pblicos eram previstos at 3 modalidades de provas, quais sejam: a) Ordlios unilaterais [...]; b) Ordlios bilaterais: as duas partes desempenhavam a uma funo [...] O tipo de ordlio bilateral mais espalhado na Europa (de resto, pouco) foi o duelo judicirio [...]; c) O juramento purgatrio uma espcie de ordlio. O acusado ou ru prestava juramento para se desculpar ou provar a sua inocncia (GILISSEN, 1995, p. 715-716, grifo do autor).
36
produzidos na sociedade, confirmando os credos religiosos como lminas
definidoras da vida do acusado38.
Mergulhando ainda mais no julgamento realizado pelos povos pouco
civilizados observa-se que as teorias acerca de uma conduta vlida em matria de
prova e julgamento eram formuladas por indivduos e juzes que em seus
entendimentos formulavam o que seria mais adequado para a possvel verdade dos
fatos39.
Todavia, no se pode concluir pela total inexistncia de uma lgica ou de
uma metodologia suficiente capaz de levar o julgador nessa fase da histria a
entender pela culpabilidade do acusado40. Logicamente que no se pode tambm
negar a enorme carga de influncia moral, religiosa e poltica que permeava o
sistema de prova de ento.
Isso sempre representou relativa segurana para que novas relaes sociais
fossem estabelecidas at mesmo entre grupos sociais de culturas distintas.
Entretanto, no se consegue, na pr-histria do direito, identificar um sistema
escrito com regras formuladas quanto a qualquer tipo de procedimento claro para
analisar fatos, provas e culpabilidade. Sempre certo que, em patamar de destaque,
havia a crena nos fenmenos intimamente atrelados natureza e ao poder
simbolizado pelas divindades. Esses elementos no permitiriam que o indivduo
fosse condenado se no fosse clara sua culpabilidade.
38 Entre os povos primitivos no havia critrios racionais para a demonstrao dos fatos, a qual se fazia
empiricamente, atravs das impresses pessoais. Por influncia da Religio passaram a ser adotados mtodos de apurao da verdade, ainda rudimentares, sempre sob a invocao da proteo divina: as ordlias, o juramento e o duelo (MORAIS; LOPES, 1978, p. 11).
39 No sistema da prova judiciria feudal trata-se no da pesquisa da verdade, mas de uma espcie de jogo de estrutura binria. O indivduo aceita a prova ou renuncia a ela. Se renuncia, se no quer tentar a prova, perde o processo de antemo. Havendo a prova, vence ou fracassa. No h outra possibilidade. A forma binria a primeira caracterstica da prova. A segunda caracterstica que a prova termina por uma vitria ou por um fracasso. [...] A sentena, portanto, no existe; a separao da verdade e do erro entre os indivduos no desempenha nenhum papel; existe simplesmente vitria ou fracasso (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Trad.: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1996, p. 61-62).
40 Observando que nos povos da fase da pr-histria do direito, embora houvesse uma aparente confuso em suas regras de julgamento pode-se atestar que existe no fundo destas idas uma especie de logica de instincto dirigindo as suas investigaes (MITTERMAYER, 1871, p. 21, grifo do autor).
37
A escrita representou um verdadeiro divisor de guas. Com a sua apario41
surgiram os primeiros textos jurdicos em algumas civilizaes antigas que detinham
riquezas, poder blico e conhecimento das artes e das cincias primitivas. Com esses
documentos escritos, permitiu-se avaliar algumas modalidades procedimentais,
dentre elas a forma pela qual poderia ser analisada a culpabilidade do acusado em
mtodos mais lgicos, estruturais e objetivos, assim como, houve um exemplar
desenvolvimento de certos institutos jurdicos na antiguidade.
A pr-histria do direito, sobremodo, apia-se na ausncia das convenes
de regras escritas, nos cultos a divindades, valoriza os fenmenos naturais, apela
simbologia dos deuses, obrigando o infrator a submeter-se s provaes fsicas e s
intempries como forma de provar sua inocncia ou deixar claro atravs de suas
fraquezas sua culpabilidade, fazendo jus condenao por seus pares.
1.3 O surgimento das convenes procedimentais nos povos antigos
Uma resposta ao surgimento da escrita como uma conveno basilar entre os
grupos da antiguidade observada atravs da sua organizao cultural e social,
fazendo emergir novos mecanismos que influenciaram enormemente os
procedimentos de julgamento das infraes e das quebras de regras de conduta
nesses meios.
A cultura do povo egpcio um desses claros pontos de constatao de uma
cultura baseada no domnio e no poder exercido pelos faras, tementes s
divindades. No entanto, a ttulo de registro, cumpre observar que nem sempre tal
41 medida que crescem as necessidades, que os negcios se complicam, que as luzes se estendem, a
linguagem muda de carter, torna-se mais apropriada e menos apaixonada, substitui as ideias aos sentimentos, no fala mais ao corao mas razo. [...] A escrita, que parece ter de fixar a lngua, precisamente o que a altera; ela no muda suas palavras mas seu gnio; ela substitui a exatido expresso. Expressam-no os prprios sentimentos ao falar e as prprias ideias quando se escreve. Ao escrever, somos obrigados a tomar todas as palavras na acepo comum, porm aquele que fala varia as acepes atravs dos tons, determina-os como deseja (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das lnguas. Trad.: Fulvia M. L. Moretto. Campinas: UNICAMP, 1998, p. 123-128).
38
poder foi uma caracterstica nica ou constante da estrutura social desse povo e seu
sistema jurdico variou muito por quase quarenta sculos42.
Por viverem os egpcios em sociedade extremamente organizada, sua cultura
primria43 se inclinou pela grande necessidade de dever cvico e, aps o advento da
escrita, passou a adotar a instruo processual pblica em que o julgador se
convencia atravs do que lhe era apresentado sobre os fatos, sendo observada uma
ampla movimentao das partes.
A administrao da justia no Egito dessa poca era confiada aos
sacerdotes44. Destaque nessa poca para o desenvolvimento dos atos jurdicos
inspirados em verdadeiras leis emanadas da sabedoria dos nobres egpcios. Isso
significou para a comunidade uma espcie de equilbrio quando as decises dos
tribunais eram inspiradas em tal ensinamento45.
O processo no direito egpcio era escrito e cercado de solenidades. O
magistrado, geralmente sacerdote por vocao, aferia a culpabilidade do ru
submetendo as provas da acusao ao crivo das divindades e aguardava por algum
sinal indicativo geralmente um evento da natureza para dar seguimento ao
feito46. Para levar a cabo esse ritual aplicava risca o procedimento previsto nos
regulamentos aprovados por um Conselho de Legislao47.
42 Em regra a civilizao antiga era desta: todas as coisas, materiais e imateriais, eram atribudas, em suas
fontes e exterioridades, divindade (MALCHER, 1980, v. I, p. 24-25).43 A alta cultura primria s margens do rio Nilo consagrava as disposies jurdicas sob forma de pressgios
ou previses (de sano). [...] As penas eram extremamente severas e aplicadas a inmeras hipteses [...]. Admitiam-se as ordlias (BATALHA, Wilson de Sousa Campos. Introduo ao estudo do direito: os fundamentos e a viso histrica. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 476).
44 Aqui, o princpio dominante era o da purificao da culpa mediante a expiao, e a esta finalidade se podia chegar, nos casos de crimes particularmente graves, atravs de um procedimento escrito e secreto, pelo qual se apurava a responsabilidade do ru. Aqui tambm, se quisermos nos referir s modernas definies, encontrar-se-ia em embrio o procedimento inquisitrio; e a explicao poltica do fato evidente, quando se considere que a Constituio egpcia apresentava um governo absoluto, de inspirao e de domnio sacerdotal (GRINOVER, 1982, p. 28).
45 Cf. BARROS, 1969, p. 46-47.46 No processo egpcio adotavam-se como princpios: a acusao era tida como dever de todos que tivessem
conhecimento do crime; polcia repressiva e a cargo das testemunhas; instruo pblica e escrita, desenvolvida nas provncias por um sacerdote que exercia a funo de juiz; julgamento secreto e solene (MALCHER, 1980, v. I, p. 25, grifo do autor).
47 Cf. GILISSEN, 1995, p. 54.
39
linha do desenvolvimento da cultura egpcia, qualquer um poderia queixar-
se da ofensa a um direito, a que se seguia uma consulta ao regulamento para denotar
quanto veracidade ou no do fato alegado, vez que se acreditava piamente na
justia vinda do regulamento. Quem julgava o fazia com base nas instrues que
recebia para faz-lo.
Outro perodo diz respeito formao do direito cuneiforme, este que
vislumbrado como uma coletnea de direitos relacionados grande parte dos povos
que habitavam a parte oriental do mundo antigo, os quais fizeram o uso das
primeiras convenes escritas, atravs de uma simbologia especfica e prtica para os
fins da poca48.
O direito cuneiforme teve lastro num conjunto de sistemas jurdicos
elaborados em distintos momentos histricos e comunidades variadas,
representando um verdadeiro marco para os procedimentos judiciais at ento. A
administrao da justia ficava a cargo dos sacerdotes que detinham legtimo poder
de comando nas questes jurisdicionais49.
O apogeu da consolidao de um sistema jurdico na antiguidade alcanado
com o advento da Codificao de HAMURABI50 (1728 1686 a.C.). Este diploma
considerado um dos mais antigos conjuntos de leis j encontrados e um dos
exemplos mais bem preservados deste tipo de documento da antiga Mesopotmia.
Junto a esse documento observou-se o desenvolvimento de um sistema de
codificao para o registro dos direitos cuneiformes atravs do agrupamento de
48 Nessa via tem-se o direito cuneiforme como o conjunto dos direitos da maior parte dos povos do
Prximo Oriente da antiguidade que se serviram de um processo de escrita, parcialmente ideogrfico, em forma de cunha ou de prego (GILISSEN, 1995, p. 58).
49 No direito egpcio, em face do seu carter religioso, a Justia era administrada pelos sacerdotes, escolhidos pelas principais cidades das trs regies em que se dividia. Caso a deciso no mbito penal fosse condenatria, os considerados culpados eram mantidos na priso at que o Fara decidisse qual a punio a ser imposta (MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. So Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 13).
50 Observe-se, de incio, que os 282 artigos do cdigo exumado em Susa, onde foi levado como confisco de guerra pelos cassitas, foram precedidos por um prembulo justificante da doao sobrenatural, muito do agrado da poderosa classe de sacerdotes. [...] Desta maneira, justifica-se que os dspotas mesopotmicos, 2.000 anos antes de CRISTO, usassem tais prolquios, impelidos pela sua vaidade e pela estrutura teolgica de suas leis (ALTAVILA, 1995, p. 38-39).
40
textos jurdicos que tiveram uma larga inspirao no instinto social dessas
civilizaes51.
Esse compndio forneceu um indicativo de como os juzes deveriam pautar-
se nos seus julgamentos, atravs de ensinamentos preconcebidos e analisados como
as primeiras regras de direito escritas que surgiram numa sociedade organizada. Em
matria de procedimento judicial, um avano mais significativo foi observado pelo
registro de uma expressiva variedade de atos judiciais.
Atravs do disposto nessa codificao possvel certificar-se da existncia de
uma prtica judicial que analisava a culpabilidade do infrator pelo lastro das provas
apresentadas perante o sacerdote-juiz. Cabia a quem alegasse o fato o nus de
prov-lo publicamente perante o conselho de juzes. Em seu contexto era previsto
um eficiente sistema de nulidades de atos procedimentais que incidia sobre toda
atividade que no seguisse o previsto nas escrituras que compunham o corpo dessa
legislao.
Para realizar uma anlise segura quanto culpabilidade do ru, o Cdigo de
HAMURABI previa uma categrica demonstrao prtica dos fatos, sendo a qualidade
da prova associada a um sacrifcio fsico, um verdadeiro desafio a ser ultrapassado
por aquele que se defendia de uma acusao formalmente realizada diante do
conselho de magistrados.
Enfrentar a adversidade imposta pelo desafio e sair ileso (ou pelo menos
vivo) possua um determinado significado. Caso contrrio, denotar-se-ia outra
possibilidade, fato esse que gerava apreenso naqueles que enfrentavam a sorte
desse verdadeiro jogo para alcanar-se a justia, provando ou no serem
merecedores da absolvio pelo fato que lhes era imputado.
51 O Cdigo de HAMURABI (rei da Babilnia) organiza a sociedade babilnica com base na propriedade
privada, em uma ordem hierrquica de base feudal e trata o crime de tal forma, que por ele se percebe uma cultura solidamente disciplinada. Todos os atos do processo nele so escritos e tudo nulo se praticado sem o auxlio da es