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GUERREIRO Ivan Almeida da Silva, o "Ivan Piro" ([email protected]) I – O lenhador incomodado O machado arqueou e se deixou cair preciso sobre a tora, rachando-a em duas. A ferramenta ficou presa no resto de árvore e seu dono aproveitou para limpar o suor do rosto. Diek era um homem forte: braços grossos como troncos, mãos calosas e também grosseiras, corpo compacto e rijo, tal qual os arvoredos. As copas peneiravam o sol cinzento, raios hesitantes em fitar a calvície grisalha e os traços decididos e maduros como os frutos caídos nas folhas secas. A expressão de seus escuros olhos manchados de cansaço ou desilusões adiantou o monólogo preocupado: – O inverno está chegando. – disse, e respirou fundo. Os onipresentes cricris, pios e o cheiro de mato eram-lhe agradáveis, embora ainda não acostumado às sombras constantes da atmosfera pesarosa. Era um cenário comum em Tollon, nação dominada pelo verde das florestas – agora alaranjado – e preto das barbas dos anões. Esses pequenos podiam ser facilmente encontrados nessa parte do continente, talvez porque se sentissem à vontade em meio à negritude, ecos do subterrâneo. Mais do que isso, as matas fechadas como os pêlos dos rostos rabugentos atrapalhavam as viagens, tornando o lugar ideal para reclusão. Línguas bêbadas retrucavam que eram fugitivos de uma catástrofe sob a terra, ao que os anões argumentavam compartilhar o amor pelo machado e o trato do quindarkodd, espécie de madeira de qualidade superior e principal artigo do reino. Quanto a Diek, alheio a tais discussões, apenas almejava escapar de choro e ranger de dentes. Pegou o pedaço de madeira e lançou ao amontoado próximo. Ela não pesava, mas uma pontada na coluna respondeu ao esboço de esforço. Vergou-se sob o peso da dor, apoiando-se no cabo, abafando gemido e uma imprecação.

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GUERREIRO Ivan Almeida da Silva, o "Ivan Piro" ([email protected])

I – O lenhador incomodado

O machado arqueou e se deixou cair preciso sobre a tora, rachando-a em duas. A

ferramenta ficou presa no resto de árvore e seu dono aproveitou para limpar o suor do rosto.

Diek era um homem forte: braços grossos como troncos, mãos calosas e também

grosseiras, corpo compacto e rijo, tal qual os arvoredos. As copas peneiravam o sol

cinzento, raios hesitantes em fitar a calvície grisalha e os traços decididos e maduros como

os frutos caídos nas folhas secas.

A expressão de seus escuros olhos manchados de cansaço ou desilusões adiantou o

monólogo preocupado:

– O inverno está chegando. – disse, e respirou fundo.

Os onipresentes cricris, pios e o cheiro de mato eram-lhe agradáveis, embora ainda

não acostumado às sombras constantes da atmosfera pesarosa. Era um cenário comum em

Tollon, nação dominada pelo verde das florestas – agora alaranjado – e preto das barbas dos

anões.

Esses pequenos podiam ser facilmente encontrados nessa parte do continente, talvez

porque se sentissem à vontade em meio à negritude, ecos do subterrâneo. Mais do que isso,

as matas fechadas como os pêlos dos rostos rabugentos atrapalhavam as viagens, tornando

o lugar ideal para reclusão.

Línguas bêbadas retrucavam que eram fugitivos de uma catástrofe sob a terra, ao

que os anões argumentavam compartilhar o amor pelo machado e o trato do quindarkodd,

espécie de madeira de qualidade superior e principal artigo do reino.

Quanto a Diek, alheio a tais discussões, apenas almejava escapar de choro e ranger

de dentes.

Pegou o pedaço de madeira e lançou ao amontoado próximo. Ela não pesava, mas

uma pontada na coluna respondeu ao esboço de esforço. Vergou-se sob o peso da dor,

apoiando-se no cabo, abafando gemido e uma imprecação.

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– Até quando vou pagar pelo que fiz? – sussurrou, quase um rosnado. Nesses

momentos, deixava transparecer um fulgor e uma ferocidade indomadas sob as

sobrancelhas grossas.

– Vem, pai! O almoço está pronto. – controlou-se quando ouviu a voz gentil do

pequeno Tristão.

Ele correndo para abraçá-lo, cabelos e roupas bagunçadas, braçinhos e coração

abertos.

"Ele não há de ser como eu." – concluiu, abandonando machado e se limpando na

encardida camisa. Espremendo os olhos em dúvida, obteu foco, e arregalou perigo.

Um anão correndo para matá-lo, armadura e elmo ensangüentados, escudo e martelo

de batalha preparados.

Surpreendido desarmado, recuou e tropeçou, ao passo que o inimigo aproveitou a

fraqueza e apertou a carreira.

– Me deixe em paz! – suplicou, ofegando terra e folhas.

– Pai! Tá bem? – a voz anã era de Tristão, inclinando-se.

– Sim, estou, filho... – olhar ziguezagueando exclamado. "Onde está ele?" – Vamos,

me ajude a me levantar. Isso, Tristão... Mas que braço forte, heim, garoto! Vai ser um bom

lenhador...

– Como o senhor, pai! – sorriu.

Sua introspecção foi perfurada pelas farpas da portinhola do cercado, assim como o

cheiro cozido que vinha da cozinha humilde. A fumaça subia rodopiando devagar o

pequeno caldeirão balançado por colher de pau, círculos menos perfeitos que seus cachos

ruivos. Mãos suaves deixaram-no e se esfregaram no avental, para logo em seguida

erguerem-se às prateleiras.

– Eu te ajudo, amor. – Diek tirou carinhoso os pratos de ferro e roubou um beijo nas

bochechas rosadas e úmidas. Ela retribuiu com um olhar azul afetuoso.

O homem puxou uma das três cadeiras (a última estava cheia de roupa) da mesa

quadrada que consertaria um dia e se ajeitou após mulher e criança. Molhou a boca com a

visão do pão caseiro, mergulhando-o em pensamento na carne. Então se lembrou da oração

e seu rosto assumiu um tom solene, tal qual um clérigo a passar sermão. Deteve-se sem

querer na faca enfiada na comida.

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Sermão. Faca. Espada...

...A espada é a maior pregação que um padre da guerra faz! – ecoou uma voz

autoritária. Obedecendo ao comando, sua mão foi inconscientemente lenta e firme à faca.

– Bem? Estamos esperando. – disse Madeleine, estranhando o fato dele tê-la pegado

sem rezar.

– Ah, sim, claro... – respondeu desconcertado. Largou a lâmina e assumiu uma

postura e tom profundos.

– Lena e Marah, deusas da vida e paz. Agradecemos a dádiva do alimento generoso

e rogamos por vida longa e paz. Que assim seja.

– Assim seja. – seguiu as duas vozes e seguiu a cacofonia dos talheres.

– Não me vá derrubar a floresta toda, querido! – brincou Madeleine, voz doce entre

pedaços salgados de galo.

Diek esboçou um sorriso que parecia fora de lugar naquele rosto sofrido. Sua

mulher interpretou como simples cansaço, afinal, o outono dava seus últimos suspiros e era

imprescindível o ajuntamento de lenha para aquecê-los na estação vindoura. Por isso seu

marido se esforçava e podia lhe permitir um ou outro desânimo.

– Diek?

– Oi? – levantou a cabeça.

– Querido, os Grandes Jogos estão chegando. Não te faz lembrar de algo?

Ele sorriu novamente, desta vez com um pouco de ternura.

– Como não? – mas não queria continuar a conversa. O frango escapou da garfada e

escorregou no pano de mesa com motivos floridos. – Foi quando nos conhecemos.

À visão do antebraço rude, Madeleine resgatou a imagem do homem encostado em

uma árvore enquanto assistia de braços cruzados aos arremessos de troncos, demonstrações

de força e orgulho dos tollonienses, durante as festividades do fim da primavera. Ele não

vestia o sahurim, o tradicional poncho xadrez dos nativos e, apesar de não participar das

disputas, alguns lhe lançavam olhares de desafio à compleição guerreira.

Ela nunca havia visto aquele estrangeiro atraente. Pediu para Gilden, seu amigo (e

protetor) acompanhante em todos os festivais, que o apresentasse, de acordo com o

costume. Finalmente encontrara alguém mais interessante que os homens peludos e suados.

Lembrava-se da reação sóbria e calma dele à medida que lhe era rosnado em

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segredo a intenção. Então, suas pernas tremeram e seu coração bateu mais forte quando lhe

percebeu o olhar penetrante. O andar simples e a postura ereta sem afetação davam a

impressão de uma energia serena, que se confirmou quando ouviu a voz viril.

Madeleine conjeturava se ele era como os outros machistas, que super-protegiam as

mulheres de Tollon, num resquício dos modos antigos sempre presentes naquelas matas.

Não sabia que este comportamento era, na verdade, fruto podre dos estupros cometidos

pelos ancestrais às bárbaras que habitavam tais paragens antes da colonização.

Diek catou a coxa, meteu-a na boca e limpou a mão escondido na toalha de mesa.

Alguns encontros às escondidas, e a primavera durou um pouco mais naquele ano.

– Brr, mas que vento frio! – Madeleine, arrepiando-se despertando das

reminiscências.

– É o inverno. – Diek, seco. – Vou fechar a janela.

Ninguém o notou levantar apoiado um pouco mais que de costume nas costas da

cadeira. Segurava firmemente a dor enquanto caminhava até a janela, agradecendo os

rangidos do assoalho, mais altos que um eventual murmúrio.

Folhas murchas dançavam ao sabor do ar sussurrante e uma ou outra se aventurava

para dentro, uma no rosto de Diek, que a afastou displicente. Logo se juntavam ao tapete de

relva já não tão macio que adentrava a floresta.

Elas não encontravam obstáculo, pois era em cima das árvores, altas como gigantes,

que o cotidiano acontecia. Geralmente onde a vista se erguesse, havia a cena incomum:

escadarias se emendavam nos troncos à semelhança de trepadeiras ou cobras, terminando

em habitações construídas entre os galhos, todas ligadas com pontes de cordas. As vidas

suspensas eram o modo de Tollon.

Diziam que havia coisas perigosas ao nível do chão, onde Diek erguia sua casa. Ele,

como reinol de Petrynia, lugar que abrigava tantas histórias a ponto de se tornar impossível

acreditar em todas, conhecia o valor dos contos de fadas e, assim, preferiu manter-se no

solo. Por um momento, permitiu-se rir mentalmente dessas narrativas, mas uma olhada

atenta para fora o fez morrer.

Distante, na estrada de terra batida, divisava duas, três figuras negras, andando a

passo lento e certo até sua direção. Mesmo longe, identificava o símbolo costurado nas

capas ou mantos em que se cobriam. Reconheceria em qualquer lugar o medo e a escuridão

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que invocavam. Seu sangue gelou.

– Está vendo alguma coisa, amor?

– Vá para o quarto. – ordenou friamente, pisando forte e atrapalhado; apanhou a

faca. – Leve a criança.

– O que foi? – ergueu-se preocupada, buscando Tristão. – Outro troll?

– Vá para o maldito quarto, mulher! – meteu a arma no cinto.

Ela respondeu magoada um monossílabo, mas que soou como um “vá para a

tormenta!”, e empurrou o filho assustado. Ora, ele que resolvesse!

Tardiamente arrependeu-se do azedume ao ver o marido arrastar-se para fora.

Diek sentia o cheiro de chuva iminente, gotas que lhe eram vermelhas, pesadas e

que o angustiavam. Jogou uma cusparada e esfregou a boca para espantar o medo. Eriçava-

se, revolvendo a terra como um touro enquanto as botas se aproximavam lentamente,

inexoráveis...

II – O outro lado das águas

O pequeno bote deslizava vagarosamente na escuridão, moroso sobre as águas geladas do

Rio dos Deuses. Apesar do ar brumoso impedir a visão, os cinco clérigos continuavam. O

jovem Diek Braço Forte, silencioso, estava entre eles, sustindo cabisbaixo o leme, tal qual

um barqueiro da morte.

De fato, havia um clima de fatalidade. Eles iriam matar.

Entre uma remada e outra, de repente ouviu-se um baque metálico. Ao perceber a

armadura de Tusk Dois Machados ajeitando-se inquieto, Diek deixou escapar uma bufada

de cansaço e raiva, lembrando-se de como fora inútil tentar convencer o grandalhão a não

vestir o peitoral de aço. “Nunca se sabe quando alguém vai jogar uma bola de fogo!”,

respondera, afivelando as tiras.

O lutador teimoso era de Wynlla, torrão estranho possuidor do maior número de

usuários de magia em todo o continente. Todavia, o físico bruto, a argola no nariz, bem

como a ausência de pêlos (mas não de letras) ironizavam sua origem.

Se Diek era um touro, Tusk era um górgona.

Nesse momento, como que por mágica, a névoa se esvaiu. No entanto, não tinham

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motivos para se preocuparem, pois fardavam-se com a cor do luto. Sabiam da necessidade

de cobrirem-se com o mínimo de couro, dado o caráter rústico dessas “missões especiais”,

nas palavras de Justifer Espada Mortal. Este yudeniano, para quem a guerra corria nas

veias, comandava aquele grupamento, a Segunda Lâmina de Keenn, do Templo da Primeira

Espada em Petrynia.

Ainda assim, Bradeken Late Sangue (apenas coturnos, calças, uma faixa na cabeça e

pinturas guerreiras) não deixava de se incomodar com o volume da proteção do

companheiro, mesmo que ele tomasse o cuidado de não a polir. Rosnou, lobo das

Montanhas Sanguinárias:

– Por que você não tira essa droga? – uma catarrada.

Como já soubessem a resposta, Justifer interveio, ríspido:

– Quietos. – sussurrou firme, e foi obedecido. Inclinou-se para a borda da

embarcação, farejando à procura de desgraça. Em seguida, virou-se para Solog Morte Uma

Vez e assentiu calado.

Mesmo na treva, adivinhava a visão do rosto severo de seu comandante, marcado

por um rasgo no olho leitoso e sem expressão, em um contraste com as faces de rosas que

haviam perfumado sua vida anterior em Ahlen. Solog agora estava no meio de espinhos.

Perfurou Bradeken, que grunhiu um “filho do Nimb”, ruminando e babando expectativa

assassina.

Então, olhos adestrados na penumbra, logo podiam distinguir melhor no outro lado

das águas a fronteira de Tapista, o lar dos minotauros. Os lampiões das casas de madeira

pontilhavam e roçavam nos campos de cereais que dominavam a paisagem, rodeados por

ocasionais bosques, cujas copas iam dar no horizonte azul marinho. O cenário campestre

terminava abruptamente no barranco às margens do rio, onde rapidamente se esconderam.

– Já sabem o que fazer. – ofegou Justifer, água até os joelhos e empurrando o batel.

Viraram-no de cabeça pra baixo e começaram a cobri-lo toscamente de relva.

– Me ajude com a terra aqui, Solog!

Ele vigiava pendurado na beira do barranco quando o pedido incômodo de Diek

diminui-lhe as forças. Deixou-se cair sem muita elegância, respingando em Bradeken, que

esquivou um atrapalhado rolo de cordas nos ombros. Não queria aumentar a carga, que de

peso bastava sua maça.

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Quando julgou tudo pronto, Justifer gesticulou atenção e disse:

– Muito bem. Vamos em dois grupos: eu e Tusk; Bradeken, Solog e Diek. Avancem

pelo campo, libertem os escravos e, se encontrarem resistência, já sabem o que fazer.

– Deixa eu ir sozinho. – disse Bradeken. – Eles só vão atrapalhar.

– O bárbaro e suas esquisitices de animal... – bocejando forçadamente, relevou

Solog. Diek mantinha-se calado, em sinal de respeito ao pretérito do montanhês. Não lhe

havia comentários maldosos por se solidarizarem com a morte de seu irmão gêmeo, o qual

tivera que matá-lo em duelo ritual para se sagrar sacerdote.

– Já te fiz o favor de levar o górgona aqui. – dois tapinhas no metal opaco. – Agora

cale a boca e vão com Keenn.

Assomaram a elevação e se espalharam soturna e furtivamente pelo campo,

misturando-se ao trigo.

III – Não ao passado

Diek cuspiu a boca seca querendo cerveja e que tudo aquilo fosse a droga de um sonho.

Empertigou-se.

– Não são bem-vindos. Que querem? – outra cusparada.

Foi Solog quem respondeu o convite:

– Ora, isto são modos de receber velhos amigos?

O lenhador iria se desfazer em mais injúrias, porém o olhar de Morte Uma Vez,

mais turvo do que se lembrava e agora tão distante de seu passado aristocrático, deixou-o

sem reação.

Nunca havia entendido por que Solog se ordenara na Igreja de Keenn. Afinal, todos

conheciam a reputação dos habitantes de Ahlen, avessos à violência explícita. Cogitavam-

lhe dívida de jogo, falência ou desengano amoroso, mas o homem de aparência frágil e

modos patrícios encontrara apenas ódio e sofrimento. No fim, fora um verdadeiro escândalo

de armas quando milagrosamente sobrevivera aos treinamentos, conquistando o direito de

ostentar orgulhosamente sobre as finas roupas o símbolo do escudo cruzado por espada,

martelo e machado. Por isso, haviam-no apelidado de Morte Uma Vez.

Se a primeira baixa de Solog fora sua vida na corte, os outros cortes haviam sido

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uma reação do seu sabre de prata – uma arma bela e brilhante – que foi-se manchando com

o passar do tempo, juntamente com o fidalgo decaído, seus cabelos loiros empalidecendo, e

logo os olhos azuis de um céu romântico tornaram-se um lago morto – olhos de morte,

várias vezes.

Como que adivinhando seus pensamentos, atalhou:

– Nós não mudamos tanto assim. Veja: o Justifer ainda não encontrou a fada que o

picou o olho. – piscou-lhe um, referindo-se ao caolho.

A coluna chiou e Diek rilhou os dentes. “Talvez sejam as sombras, sombras demais.

Não mudamos – nós somos as sombras.”, suspirou tristemente.

“Não, não sou mais um clérigo. Não envergo a batina suja de sangue.”

– Não sou mais um clérigo... – mais para si que para os outros.

– Que disse? – perguntou Solog, arqueando a sobrancelha, embora tivesse ouvido.

– Não é da sua conta.

O lenhador examinou os três que já não conhecia tão bem, todos cobertos pelas

capas de viagem à semelhança de ponchos. Podia adivinhar que, sob os panos grosseiros,

Tusk, coçando a careca e com algumas cicatrizes (ou rugas?) a mais, ainda envergava o

colete metálico, além dos machados que lhe davam a alcunha.

Um trovão riscou o céu, reverberando melancolicamente pela floresta.

– Vai chover. – concluiu Tusk, o rosto em leve desânimo para o tempo de ocaso. –

Deixe-nos entrar Diek, que não quero me molhar novamente.

– Já disse que não são bem-vindos. – sacou lentamente a faca, torcendo para que as

gotas caíssem logo e se misturassem ao seu suor frio.

– Abaixe isso, guerreiro. – a voz tranqüila e grave de Justifer foi acompanhada por

outro trovão.

Diek deteve-se no flanco do clérigo, cujo manto avolumado sugeria a mão que

descansava no cabo de Pacificador, sua espada bastarda. Esquecera-se de que ele sempre

estava em guerra.

– Não sou mais um clérigo. Não devo nada a vocês. O que fiz está feito.

“Está feito...”

IV – Anátema

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... – Vamos, faça, Diek! – o rosnar gemido escapou de Bradeken, atracado com um

minotauro, raça meio homem meio boi, em uma rinha mortal. Os lutadores tropeçaram nos

vasos de palha cheios de grãos e rolaram até tremerem a parede de madeira.

As coisas corriam mal. Braço e cabeça bovina jaziam a alguns passos de seus dois

cadáveres, as poças empapando a palha. Os clérigos não esperavam que fossem legionários

disfarçados de agricultores-feitores, incumbidos justamente de fazer cessar tais agressões

clandestinas. A Legião – força de segurança do império – sabia dos danos que a falta de

controle num caso desses podia causar à política escravista do reino. E, caso essas

informações sigilosas continuassem escapando, a falta de controle generalizada para um

costume que as outras nações mal toleravam, temia que nem mesmo o hábil corpo

diplomático conseguisse evitar uma guerra.

Justifer Espada Mortal e sua Segunda Lâmina certamente queriam a guerra. Foram

ações como essa que semearam o clima de insatisfação para que, anos depois, debelasse a

guerrilha em Hershey.

As espadas curtas dos mortos tremiam nas mãos de um par dos seis escravos,

acuados no fundo da choupana que lhes servia de senzala enquanto esperavam aflitos o fim

da refrega, separados dos clérigos por um fogo de chão.

– Mate-os logo. – disse firme Solog, vigiando a entrada. A falta de sutileza do

cavalheiro traía seu receio de, a qualquer momento, aparecerem reforços. Os gritos enchiam

a noite.

Braço Forte não entendia por que devia matá-los. Afinal, não tinham ido até ali para

dar-lhes a liberdade? A corda que seu companheiro havia trazido não era para amarrar-lhes

as cinturas e guiá-los?

– Por quê? – ousou, incrédulo.

Solog arrepiou-se rápida e involuntariamente de perplexidade. O que ele estava

fazendo?! Teria tempo para resolver tal conduta depois que sobrevivessem. Pouco

acostumado a justificar seus assassínios, ainda assim lançou as palavras mais simples

possíveis:

– Fracos; as armas.

– O quê! – perguntou-se sem acreditar no que ouvira. A resposta em sua mente

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veio-lhe com uma simplicidade aterrorizante: eles são fracos e estão armados.

Maldição! Se não tivessem apanhado as malditas espadas, tudo seria diferente. Mas

agora representavam ameaça – esta era a doutrina de Keenn.

“Se encontrarem resistência, já sabem o que fazer.”

– Não. – disse, e abaixou a espada longa. – Está errado.

– Seu covarde! – vociferou Bradeken, erguendo-se com dificuldade, corpo e olhos

sangrentos.

Não sabia por quê, mas o bárbaro sempre antipatizara com ele. Seu rosto se fechava

ao se lembrar de como o havia saudado com um arroto quando passara pelo portal, trazido

pelo pai ferreiro. O jovem queria aprender a usar o aço, procurando disciplina e esperança

na Primeira Espada. Mas ele seguia um caminho reto demais, tal qual o gume da lâmina

que se adestrara habilmente. Até que – blasfêmia! – de súbito recusara-se a matar.

No começo, os escravos, duas mulheres e quatro homens, cujos trapos sumários mal

escondiam as magrezas, exclamaram felicidade quando os algozes foram mortos pelos

homens de preto. Depois, não tiveram tempo de expirar gratidão, pois que o sobrevivente

atirou-se sobre o guerreiro de juba e se bateram. Nesse ínterim, dois deles alcançaram as

espadas curtas, caso houvesse necessidade de defesa.

Quando perceberam que também iam ser vítimas da sanha assassina, nenhum se

arriscou a passar pelo loiro, uma vez que ainda acorrentados pelos pescoços, enfraquecidos

demais para desafiar homens tão fortes. Apenas apertaram as espadas com resignação e

olhos úmidos.

– Eu te esconjuro. Tu não és meu irmão. – ofegou Bradeken, caminhando aos

condenados, indiferente às lágrimas e gritos de receio e clangores de ferrugem.

Sua maça ultrapassou terror e afundou no tronco de um inimigo antes que reagisse.

Esquivou-se desprendendo a arma com o pé, desenhando um sorriso maligno à tentativa de

corte do outro. Seu globo cheio de cravos voou atingindo o queixo e o gorgolejo

acompanhou o gládio batendo na terra.

E foi no chão que Diek manteve o olhar, evitando encher seus pesadelos com as

imagens do massacre covarde dos casais restantes. Mas os ganidos de dor o perseguiriam.

– Eu te esconjuro. – suspirou, passos vermelhos.

A essas palavras, somente agora Solog desviou-se da vigília, pois que aquele era um

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momento grave – se o sacerdote Bradeken Late Sangue repetisse aquela litania, Diek seria

excomungado da Igreja da Guerra, conforme o Regulamento talhado no altar de pedra

maciça localizado no templo-fortaleza da Primeira Espada. Ele seria o primeiro a receber

tal punição desde os tempos de Chirakg Meio-Orc.

– Anátema... – sussurrou para si o clérigo.

Apesar de não ter ouvido, Diek se defendeu:

– Eles eram inocentes.

– Então por que não os protegeu? – provocou o ahleniano.

Inútil responder.

O dom de Keenn era diferente para cada combatente. A uns, concedia-lhes a

ausência de medo; outros, o destemor de ferimentos, assim como a fúria selvagem no

campo de batalha. O bárbaro dos montes pertencia a esta categoria. Para Bradeken, a névoa

continuava e só havia violência além.

Inútil tentar impedir.

Diek manteve-se em silêncio, encarando os sacerdotes.

“Não tenho medo.”

Mas já havia sido um covarde.

Bradeken eriçou-se e sentenciou, tremendo de ódio, tom de frase solene:

– Eu te esconjuro! – a respiração profunda foi a mesma de quando o irmão lhe

morrera. Dando vazão à raiva, catou a cabeça desgrenhada e, com um arremesso, bateu-a

em Diek. Ele manteve-se inalterado, embora explodisse de vergonha e revolta e seu deus o

abandonando. Tudo o que conseguiu fazer foi caminhar até a saída e, enquanto Solog lhe

flanqueava a passagem, ainda ouvia:

– Nós não precisamos mais de você!

V – É o destino do combatente

– Nós precisamos de você. – disse Justifer, molhado de chuva. As gotas alisavam seu

cabelo curto crespo e clareavam sua pele parda, pesando no manto. No entanto, ele não se

curvava.

Na verdade, Justifer era o único que chegava perto de entender Diek, não porque

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fosse mais veterano, mas simplesmente às vezes também sentia remorso em matar,

esforçando-se por reprimir esse sentimento, escondendo-o de si e dos outros.

No entanto, com o passar de vítimas e tempo, o semblante se carregava de

sofrimento. Esta era a primeira etapa da sina do combatente: muitos os chamados, poucos

os escolhidos.

Para os que continuavam, havia a tristeza suave e depois prolongada... Então o

vazio. Esta era a fase mais dura do guerreiro, quando suas convicções postas em jogo.

Alguns não agüentavam o fardo e desistiam. Justifer estava há tempo demais no caminho

da espada para se entregar.

Não podia haver arrependimentos. Somente resignação e, logo, os que

perseveravam alcançavam a distinção e a sobriedade. Mas nunca a paz. Nunca a paz.

Para Justifer, Diek errara ao pretendê-la. Sua alma pedia a guerra pois, quando esta

acaba, o guerreiro sente o vazio.

Para o Espada Mortal, a guerra era um destino. Sua história era um conflito.

Criminoso e vítima ao mesmo tempo, sua imolação vinha na forma do preconceito

para com sua etnia, herança dos antigos habitantes de Svalas, matas anexadas pelo belicoso

Yuden. Viver em uma nação de soldados significava não perdoar derrotados, mas era duro

sofrer por uma batalha que nem lutara, pois que o sangue desses primitivos pavimentara a

expansão séculos antes dele ter nascido.

A desgraça de sua pele cor de terra também atingira os pais, enviados

arbitrariamente para a Fortaleza Hardof, conhecida por abrigar presos políticos, e as duas

irmãs, desaparecidas misteriosamente. Justifer ainda tentara se juntar ao exército

convencional, mas este o escorraçou. Então, como só sabia ser soldado, decidiu ingressar

na Ordem de Keenn e se desterrar, que os padres-em-armas sempre precisavam de alguém

para pregar a palavra do aço adiante.

E foi com um aço sem orgulho e honra que peregrinara até a Primeira Espada.

Longe da terra natal, a própria dor doía menos. Só sabia fazer guerra.

Antes que o ex-clérigo Diek pudesse dizer algo, uma voz feminina saiu da entrada:

– Tudo bem, amor?

Solog também ficou curioso e espiou o canto.

– Ora, e eu pensando que Braço Forte fosse um ermitão, sentindo prazer na

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solidão...

– Entre, mulher! – voltou-se. – Não façam nada com ela. – firmou a bota.

Madeleine surgiu vagarosamente pela metade, encostada de dentro da cozinha, seu

vestido claro de chita amarrotado de encontro à lateral bem talhada, sugerindo curvas

formosas.

– Diabos, entre!

Justifer ergueu a manopla em paciência.

– Acalme-se, Diek.

A faca amoleceu-lhe na mão, pois algo de muito grave havia acontecido.

Servos de Keenn nunca pediam por paz.

Em sua cólera contida, somente agora notara que o barbudo Bradeken Late Sangue,

seu excomungador, não os acompanhava.

– Onde está? Resolveu voltar para as montanhas?

– Ele morreu. – respondeu Tusk, um tanto mal humorado pela chuva, cujo

murmurar pesado desabava as copas e caía grosso.

– Então estamos quites. – jogou uma cusparada, deixando a saliva escorrer junto

com as gotas pelo queixo duro.

– Nunca a compaixão... – sussurrou Solog balançando levemente a cabeça, sorriso

de satisfação melancólica. “Ele ainda vive seu próprio abismo, ainda arrasta sua mancha de

sangue.” Adiantou-se e disse:

– O que aconteceu naquele capoeirão é passado. Não há mais ódio.

– Não me venha com palavras pomposas!

Sem aviso, Tusk iniciou andar até a porta, sacudindo a capa.

– Mais um passo e vou matá-lo. – faca novamente em riste.

– Espere que me seque, pelo menos. – reclamou o grandalhão continuando.

O restante da Segunda Lâmina o acompanhou, rostos escuros entediados pela

bravata vazia. E, à medida que sumiam para dentro, Diek ensaiou outro cuspe, mas este

saiu desconcertado como ele.

– É a chuva. – tentou se desculpar.

Logo devoravam restos de galinha e cerveja e Diek de pé ruminando pensamentos,

bebendo amargo. Madeleine um enfeite de canto entre os bonequinhos de madeira da

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parede, olhando receosa para as roupas espalhadas no chão úmido, o filho indeciso calado

entre os braços. Velas em pratinhos de cerâmica perto do lavatório, junto às cabaças e na

entrada do quarto suavizavam a tristeza.

O arrastar das botinas barrentas e as gargalhadas sarcásticas feriam Diek mais do

que um talho de lâmina. E foi com dor que se lembrou de sua cicatriz nas costas, de quando

salvara Justifer durante as tentativas fratricidas em 1384, quando a Terceira Lâmina e seu

líder trovador Caithax tivera visões de sangue. Aqueles eram tempos ruins, uma vida

errante e incerta em que a única certeza era matar ou morrer. Ia pousar a faca, mas teve uma

idéia melhor.

Tusk entornava quando uma perfuração repentina e violenta na mesa fez os

petrechos pularem, derramando sua bebida amarela e desenhando seu antigo ferimento que

quase havia deformado o queixo. Grunhiu uma insatisfação, mirando rapidamente a faca de

Diek e depois terminando o copo. Mas a mão foi no cabo do machado, só por precaução.

– Acabou a piada, seus bufões, acabou minha comida, acabou a chuva. Acabou

minha hospitalidade.

– Muitas coisas encontraram o fim. – sussurrou suavemente Solog, massageando a

boca.

Justifer suspirou fundo e disse:

– Aguça tua espada novamente, Diek, e venha conosco. Mais uma vez houve

dissidência no Templo, houve dissidência, e eles chacinaram todos.

– Não há mais espaço para receios. Se não agirmos, a Igreja de Keenn não existirá

mais em Petrynia. – afirmou Tusk.

– Ora, pro inferno você e Keenn! Eu é que não preciso de vocês.

O Espada Mortal encarou o comandado, que se calou. Conhecia o suficiente do

Braço Forte para saber que não lutaria mais por seu deus. Continuou:

– Dizem haver uma nova ordem da guerra em Petrynia. Eles se denominam os

Arautos, mas são hereges. Mataram todos os sacerdotes da Primeira Espada como uma

espécie de eucaristia profana. Seu líder, Erup Filho da Guerra, proclama possuir a Espada e

Armadura Negras, artefatos de nossa Igreja.

– Esse Erup pertencia à Sexta Lâmina juntamente com o elfo Enssiê, o pequeno

Pindio e o Odi Sorriso na Guerra, portanto, são traidores. Bradeken estava no

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aquartelamento quando eles atacaram, mas conseguiu nos deixar um sinal em sangue. E

nós, que estávamos em incursão, ao chegarmos nos deparamos apenas com morte. – uma

pausa proposital.

– Eles defendem a morte, Diek. Esta não é a iluminação, este não é o caminho de

Keenn. Por isso nós o procuramos além-reino e estamos aqui para lhe pedir que saia na

chuva mais uma vez.

Enquanto explicavam confusões, o lenhador lhes ficava de costas, olhando o

exterior pela porta aberta. Ele estava depois das tempestades e agora lhe queriam nas

sombras novamente.

Mas isto ele não podia recusar. Desta vez, não se tratava apenas de homens

perturbados ou evangelhos de sangue. Desta vez, inocentes podiam ser feridos. Os escravos

mortos lhe pediam a redenção pela espada. No fundo, Diek pensava simples como um

soldado.

Afinal de contas, ainda era um guerreiro. E, em sua concepção simplória e lógica,

guerreiros guerreiam.

– O que querem que eu faça?

Lágrimas negras brotando e escorrendo de Madeleine.

VI – Peixes, cheiros e bobos

A madeira molhada do píer rangeu com o pisão das alpercatas de Diek. Junto com o

desconforto veio o fedor de peixe e fábulas velhas.

– Isto aqui não mudou desde que saí, 10 anos atrás. – refletiu, passando a visão em

panorama pelo porto de Malpetrim, cidade costeira de Petrynia.

Logo caminhava entre os vendedores, que continuavam sujos como suas barracas,

oferecendo a fungadas e berros uma diversidade de mercadorias tais quais frutos do mar,

cacarecos, temperos e artesanatos dispostas em tabuleiros de madeira. Injúrias que

misturavam aos cheiros confusos e se confundiam com as sagas sobre Cyrandur Wallas, o

maior herói do reino, desbravador dessas terras fantásticas nos tempos antigos da

colonização.

Assim, a energia perene e onipresente do errante-santo impregnara o ar com a

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expectativa de aventura, característica epítome sempre atraindo tipos exóticos dos três

cantos do mundo.

E, junto com tudo, as narrativas. Séculos de declamações marcavam com um traço

de credulidade indefinida cada rosto de mal imberbe carregador, donzela de magote ou

baixo burguês afundado no colarinho torto.

Braço Forte, um chapisco entre as casas caiadas, passava por esse mosaico de

mesma cor de rosto fechado pelo sol já forte da manhã, remexendo inquieto o bolso do

colete e a outra apertada no fecho do saco de ombro. Seguia solitário pois, a fim de não

chamar atenção, fora decidido que tomariam caminhos diferentes até o subúrbio, onde se

supririam.

Enquanto sem perceber criticava o polimento da parede de tábuas de certa

estalagem, deteve-se distraidamente no paradoxo de Justifer, usando a desculpa de “tática

de guerra irregular” para a separação. Justo o yudeniano, que crescera admirando as

grandes e vistosas formações de combate comuns em seu terreno pátrio.

Eles haviam mudado, mas será que Diek mudara?

– Um tibar, meu senhor.

Alcançou por instinto a espada na cintura, até perceber que a voz trêmula não tinha

sido uma ameaça.

– Um tibar de cobre, mestre-guerreiro, para um bobo caído na sarjeta.

A entonação deixava entrever um hálito ébrio pelos dentes amarelados, em contraste

com o rosto pintado de cal, assim como os lábios e nariz rubros. Garrafas vazias (algumas

quebradas) eram uma platéia silenciosa para a sanfona torta ao lado e as roupas

espalhafatosas de cores malcheirosas. Apenas um beco escuro úmido, comum em

localidades litorâneas.

A figura bizarra soergueu-se com dificuldade para escapar do cão desgrenhado que

lhe tentava lamber o rosto em manchas e, quando um sorriso entre o cômico e o trágico,

interrompeu-se com uma careta seguida de um arroto.

– Tome. – deixou cair algumas moedas na poça ardendo a mijo.

– Muito obrigado, meu senhor. – uma mesura desajeitada de cabeça. Soluçou,

saltando o chapéu de várias pontas, imediatamente furtado pelos dentes do cachorro,

grunhindo e rosnando satisfeito com o novo brinquedo.

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Diek passava em meio aos tinires dos guizos, quando foi interrompido:

– Para onde vais? – num tom quase ingênuo.

Braço Forte quase escorregou um pé no paralelepípedo, descontente. Ao pensar que

embarcara justamente para evitar passar pelas terras vizinhas de Lomatubar e Fortuna, com

suas pragas e superstições idiotas, a pergunta inconveniente daquele palhaço bêbado

carregara-lhe o cenho. Mesmo assim, respondeu entre seco e ameaçador:

– Para o templo da Primeira Espada de Keenn. – esperando que o assustasse, pois o

credo possuía uma reputação de medo.

– Ó, sim, mestre! – exclamou, batendo palmadas irregulares de uma satisfação

infantil mas não inocente. – A Primeira Espada, o matadouro!

Sem saber o que responder pela reação, Diek apenas confirmou com a cabeça um

tanto atrapalhado. Grunhindo um monossílabo, deu de ombros, continuando a andar.

Então, algo aconteceu. Se não estivesse ali, onde o limite entre realidade e fantasia

era constantemente desafiado – pelo menos na boca de qualquer daqueles reinóis – e,

principalmente, se não fosse também um conterrâneo, julgar-se-ia vítima de um embuste.

Estava em um beco escuro com um palhaço de cheiro bêbado, apenas um "cabra bicho

insólito" (conforme o dissera Praticus, mago da Academia Arcana que ganhara no baralho

meio metro de sabre no estômago, quando em jogo com Solog). Estava na escuridão,

condição em que coisas esquisitas aconteciam.

O homem no lixo começou a esboçar movimentos espasmódicos, remexendo-se

como um boneco de pano, derrubando garrafas, chiando com um esbarrão a sanfona,

assustando o cão, que começou a latir em desafio. A respiração grave e entrecortada

ondejava do agudo doentio ao grave...

– Possuído pelo demônio... – sem perceber, disse baixo o lenhador, a espada saindo

devagar da bainha.

A fim de enfrentar esse acontecimento, Diek pôs-se a agarrar de volta suas

reminiscências, imagens de treinamentos na floresta noturna, onde clérigos sentavam-se a

volta da fogueira e ouviam o druida, o fogo desenhando formas bizarras, quando o velho,

num estado alterado de consciência, servia de mensageiro para as vozes do Outro Reino. E

foi com uma voz gutural que o bobo ou demônio grunhiu:

– Cuidado com o credo assassino, homem de arma. As histórias não mentem: o

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Filho da Guerra despertou e está solto, pronto para devorar criancinhas indefesas. – mal

terminou e ruidosamente afundou-se numa gargalhada macabra, o cãozinho fugindo em

carreira.

O Filho da Guerra, dito em meio à cacofonia e à profecia, fê-lo lembrar de que era

esta a alcunha de Erup, quando na Sexta Lâmina de Keenn. Justifer havia contado que o

comando do templo nunca sentira-se à vontade com o fanatismo do insurgente, tanto que o

haviam enviado, juntamente com os outros clérigos do grupo, para "resgatar" a Espada e

Armadura Negras.

Diek fora excomungado bem antes dessa história, desconhecendo as intrigas. Para

ele, haviam simplesmente transformado um sacerdote dado como morto em um anjo-

guerreiro, bem ao gosto de Petrynia. Achando graça no seu pensamento, soltou uma

imprecação para se livrar do receio e acompanhou a risada ruidosa do mendigo.

Mas a alegria fugaz pereceu tão rápida quanto surgiu, porque o lenhador,

concluindo não um conluio, intuiu morte. Ainda iria sangrar, e esta perspectiva encheu-o de

reflexões soturnas, enquanto abandonava nas sombras a figura em êxtase, pronto para

passá-la na espada ao menor descuido.

Dentro em breve chegava ao lugar acordado, uma mistura de taverna e armazém,

cujas três grandes janelas engorduravam-se pelo movimento de refeição. A Segunda

Lâmina o esperava perto dos cavalos, abrigados sob um telheiro rústico. Entre relinchos e

estrumes e respingos de água suja, preparavam as trouxas.

Muito embora tentasse Diek dissimular sua preocupação, Solog, acostumado a

decifrar as emoções alheias, notou-lhe e perguntou:

– E então, que achou de Malpetrim? – ergueu a mão com uma rudeza delicada,

oferecendo-lhe um fardo.

Diek tomou-o indiferente à provocação, querendo mudar de assunto, mas não

deixou de revidar:

– Poupe-me de seu veneno, ou o farei morrer mais uma vez.

O ex-fidalgo Morte Uma Vez retribuiu com um sorriso condescendente e irônico.

– Não se preocupe, meu amigo bruto. Para onde iremos, certamente hás de

encontrar a morte. – amarrou seu equipamento a tiracolo com uma nobreza quase afetada,

não percebendo que, enquanto o fazia, o companheiro em pé reprimia um esgar de nojo,

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resolvendo não gastar mais palavras.

– Ah! Já ia me esquecendo. – ainda agachado, alcançou um terçado com bainha de

couro e o lançou a ele, que o apanhou sem reclamar. Para onde iriam, decerto precisariam.

Tão logo quis examiná-lo, chiou:

– Diabos! Gastaram mais com ração que com armas! Com essa ferrugem, nem é

preciso envenenar a lâmina!

– Sempre reclamando, Diek... – sorriu Tusk recém-aprestado, apoiado num

garanhão castanho. Era estranho ver um traço de contentamento naquela figura grande

como o cavalo, marcada por cicatrizes. Se lhe soubesse ler os sentimentos como o

ahleniano, identificaria uma alegria comedida, comum a pessoas ponderadas ou

experientes. Tusk era um matador experiente.

– Guarde seu chanfalho com cuidado, que ele ainda pedirá por inimigos. – por seu

vocabulário apurado, o petryniano suspeitava que ele já tivera passado de mago.

"Sei disso, filho do aço." – retrucou mentalmente, uma ponta de tristeza. "Sei disso."

– Muito bem! – chamou Justifer, alertando os guerreiros. Seu facão de mato também

já descansava ao lado de Pacificador. – Vamos.

O último guerreiro enfiou a arma de volta e terminou de amarrá-la na cinta.

Inconscientemente, ainda o obedecia.

"Sempre de poucas palavras, Justifer..."

A conclusão despertou-lhe a curiosidade e o fez esquivar um rápido exame no

clérigo, entre um nó e outro dos suprimentos. O Espada Mortal passara por invernos

suficientes para que o branco lhe tomasse os cabelos e, no entanto, apenas alguns fios de

neve riscavam a cabeça penteados para o lado, em estilo militar yudeniano. O semblante

continuava grave, como se estivesse sob o peso de uma dor constante mas, ao mesmo

tempo, tranqüilo. Um cão velho, ainda com dentes fatais, ainda um cão de briga.

Logo empoeiravam suas botas na estrada batida que se perdia no horizonte

aventureiro. Mesmo assim, a terra continuava calma, com algumas reses abocanhando a

grama e evitando flores como sardas, vagarosas de irem até o conforto das árvores esparsas.

Às vezes um mugido escapava e pulava a cerca ladeando o caminho.

Provavelmente reclamações do calor, que logo também castigava a procissão,

cuidando por embaralhar os pensamentos de todos (em verdade, somente os de Diek, pois

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os outros calavam as mentes), até que uma última reflexão o assaltou antes de se fechar em

si:

"Então aqui é onde as palavras terminam, e nós começamos. Nós somos a guerra."

Sombras silenciosas da guerra.

VII – Sombras da guerra

Um ambiente verde, sufocante de umidade e falta de sol. Mas o calor persistia, pontilhado

pelos cimos das árvores. O descontentamento era externado a cada golpe de facão, abrindo

caminho na mata fechada. Aquela era a grande área florestal ao norte de Petrynia conhecida

como os Bosques de Allihanna e, de todos os lugares do mundo, aquele agora era o último

que Diek gostaria de estar.

Muito embora a grande extensão das matas não permitisse que os mapas a

chamassem de bosque, a deusa da natureza fora generosa ao enchê-la com seus favoritos:

pios, cricris, gorgolejos, uns raros mourejares formavam o concerto da floresta, numa

profusão de vida que orgulhava sua amiga Lena.

Diek sabia que a desapontava assim como o fizera com a esposa, porque mais uma

vez iria matar. Havia dormido com ela na última noite da partida, e ainda sentia o toque

macio de seus seios, bem como o prazer de suas pernas envolventes, sensações que agora

apenas faziam por deixá-lo excitado e nervoso. Ao jogar o alforje sobre o ombro, ordenara

a Tristão que a protegesse. Ela nunca entenderia: a espada é o bem mais precioso que um

homem possui.

Desceu novamente o braço com força num galho teimoso, irritadiço por saber não

haver ali nenhuma seiva, porque sede e fome avassaladoras tomavam-lhe conta. As

provisões haviam acabado ainda nas regiões de fazenda ao sul. Se pudesse, beberia seu suor

e engoliria as frutinhas espinhudas espalhadas pelas folhas e barro, uma terra viscosa que

grudava na alma. Sem contar os ferrões dos insetos, que zumbiam pra lá e pra cá, em todos

os tamanhos e formas da vegetação tropical.

– Meu reino pra me livrar desses parasitas malditos! – exclamou Diek, tapeando um

intruso no rosto, desfazendo-se numa mancha vermelha.

– Ora, já está em casa, companheiro. – disse Tusk.

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Errado. Sentia que aquele não era mais seu lar. O ambiente voltara a lhe ser hostil.

Os galhos arrastavam-se, prendendo e esfolando Braço Forte. Em cada arranhão, a

confissão da relva: “estrangeiro, não pertences mais aqui, a esta selva. Matá-lo-ei, como

meus filhos silvestres o fizeram com seu pai e minhas frutas, sua mãe. Dar-te-ei uma morte

verde, para que estes portadores de espadas não o levem à perdição.”

“Não queres um túmulo da natureza, minha criança? Um lugar sob mortalha de

flores que marcará nossa comunhão eterna... Mas não se zangues com os carinhos de meus

braços; ao contrário, agradeça a graça, e seja em harmonia.”

Tapeou o rosto molhado para despertar. Abatendo-se também pelo cansaço, apoiou

a mão num tronco. Foi com dificuldade que ergueu a vista para diante, onde um leve

farfalhar de folhas.

"Musa da Natureza, quer me pegar? Pois bem, aqui estou, eu e minha espada, que é

a única coisa que me resta." Fez menção de a desembainhar, ao que Justifer disse:

– É Solog com as notícias. – enquanto ele chegava.

Em momentos, o clérigo se recompôs da marcha furtiva e, ajeitando os cabelos em

rabo-de-cavalo, respirou:

– O templo está ocupado. – ignorando o olhar preocupado de Tusk, continuou. –

Não consegui observar mais, sob pena de ser descoberto, mas, até onde pude, as guaritas de

espreita estão vazias e há somente um homem no portão principal, armado de espada e

escudo. Podemos pegá-lo, embora dentro dos muros o barulho acuse muito movimento.

– Então faremos disciplina de ruídos. – disse Justifer. – Eles são clérigos? São os

Arautos? – nessa hora, uma fagulha maliciosa brilhou em seus olhos.

– Não sei dizer... talvez apenas um homem armado.

"Como todos nós.", retrucou mentalmente o petryniano.

E fora justamente por amor às armas que Diek estava ali. No fundo, pressentia uma

leve intuição de que gumes, cravos, setas, fios, eram somente desculpas para a destruição.

De fato, alguns que se distinguiam no uso das armas chegavam perto de alcançar essa

iluminação, a verdade de Keenn ser e pregar pura e simplesmente aniquilação.

Hierarquia, disciplina, honra, glória... apenas pretextos. No fim, o objetivo da

cátedra-guerreira era tornar o clérigo e a destruição apenas uma força da natureza, tais quais

a guerra e a morte. Desconfiava que os homens se agarravam a esses conceitos para não

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sucumbirem ao caos e se perderem.

Para Diek, os Arautos significavam a resposta divina a fim de devolver à Igreja

guerreira sua pureza primitiva, quando os primeiros missionários batiam-se com pedras e

pedaços de pau. Provavelmente Justifer tivesse consciência disso e justamente se opusesse

para evitar as mazelas, não para ele, não para os clérigos, mas talvez para outras famílias.

“É o que eu faria.”

– Senhor, faça-nos instrumento da tua vontade. – rogou Justifer, antes de partir.

Eles continuaram a marcha para o combate, como nos velhos tempos, fluindo pela

floresta e horizonte fechados. Súbito, a mão pesada do comandante do grupamento se

ergueu com uma energia calma, ordenando silêncio.

E silenciosos eles seguiram novamente, pois estavam chegando perto. A cada passo

enlameado, uma muda expectativa, a tensão.

– Atenção. – falou baixo o Espada Mortal, espremendo-se contra uma árvore.

Diek torceu o rosto para o peitoral metálico de Tusk, ao que ele apertava

diligentemente seus dois machados, com a naturalidade de um adestramento.

Solog, também sabre na mão, espreitava o mato com olhos de caçador, assumindo

seu papel na formação.

De repente, o ex-clérigo envergou-se de maneira acentuada, quase um gemido.

– Que foi? – Tusk, inclinando-se.

– Só estou cansado. – murmurou, fingindo despreocupação. Mas era mentira,

porque sua coluna doía mais uma vez. – Vai, vai, vai. – meio gesticulando, meio

empurrando para afastá-lo.

Breve, dentre as árvores, podia-se avistar o cinza das muralhas.

O templo de Keenn erguia-se em uma clareira, uma ferida no meio da floresta.

Raízes e trepadeiras fracassavam em se infiltrar nas pedras escurecidas pela tentativa do

tempo (e da deusa da natureza) em torná-las esquecidas. Porém, uma argamassa de agonia

as juntava, num lembrete de que a guerra era a única verdade, expressada por meio da

arquitetura simples, de traços retos e marciais.

A um gesto, eles se dividiram em duplas (Diek e Justifer, Tusk e Solog) para

contornar os flancos da fortaleza, com passos cuidadosos para as ervas daninhas no

caminho e se encolhendo instintivamente ao contato do sol.

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Justifer estacou ao alcançar a borda, tendo que entortar a cabeça para que seu olho

bom pudesse ver de relance o vigia, bocejando e tentando sustentar o rosto sonolento oculto

sob uma barba espessa. No segundo plano, rápida e furtivamente veio a careta assassina de

Solog com seu sabre, aproveitando a oportunidade.

Antes que o caolho pudesse focalizar, uma ponta sangrenta surgiu com uma

violência de relâmpago, arrombando um pouco abaixo da cabeça, ouvindo-se um estralo

agonizante e repulsivo para os não acostumados à morte. A lâmina do clérigo foi puxada ao

chão pelo osso quebrado do homem gorgolejante, de onde não se moveu mais.

Somente a poça de barro misturado com sangue que lhe servia de cova ainda

pulsava, ecoando as pisadas restantes dos clérigos, enquanto se aproximavam.

Solog desprendia com cuidado sua espada para não atrapalhar os ouvidos de Tusk,

espremidos na grande porta grosseira a fim de captar afiadamente os ruídos interiores. Pôde

distinguir gritinhos agudos e estridentes e irritantes, risos, martelares, fungadas, o ladrar de

cães. Sons incompatíveis com um ambiente guerreiro.

“Não são guerreiros.”, surpreendeu-se Diek, alisando o queixo, quase abaixando a

guarda. Esbarrou o pé sujo no corpo, por pouco não caindo. Não. Tinha que se manter

desconfiado, porque mais uma vez estava em guerra, estava vivo.

– Eu te amo, meu amor. – sussurrou Madeleine em seu ouvido, antes de consumar

seu prazer, em meio aos cobertores.

– Vamos abrir. – sussurrou Justifer, sorriso sombrio.

Morte Uma Vez tremeu de prazer.

Muito longe dali, na praça de Malpetrim, sentado em um caixote, o palhaço bêbado

sorriu, tremeu e iniciou a tocar sua sanfona, arrancando sons melancólicos e moedas dos

transeuntes, largadas sobre seu chapéu engraçado no chão. Após aplausos, pediram-lhe

mais músicas, e ele continuou a tocar...

VIII – A lei do aço

No chão de terra coberta com feno, duas crianças brincavam lutando com espadas de

madeira, sob o olhar atencioso de um velho que limpava com uma faca alguns pés-de-cana,

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ajudado por sua senhora.

Nas exclamações finas de alegria, elas desejavam enfrentar os monstros e toda sorte

de criaturas que o mundo de Arton oferecia. Pois, graças às histórias, os filhos de Petrynia

confiavam em sua imaginação, sabedores de que muitas das ameaças em seus sonhos

realmente existiam.

Sem aviso, a porta monstro se abriu violentamente com um estrondo, e criaturas

negras surgiram.

Um dos pequenos (na verdade, pequena) correu gritando de medo em direção do

ancião, abrigando-se sob seus braços magros por pouco tempo; uma batida da cana ordenou

que se escondesse em casa. Ela obedeceu, não querendo mais brincar hoje.

O outro, um garotinho de nome Ghake, ergueu sua pequena tábua torta, mas

prestava mais atenção nos dois, três (?), quatro monstros que tinham aparecido, olhando

ameaçadoramente para os lados e segurando espadas (sim, eram espadas, tinha certeza)

grandes e feias diante de todo mundo, das mulheres saídas da horta junto com a mamãe (ele

estava com fome), do vovô e da vovó. Tinha que defendê-los, era a sua chance de mostrar

que já era homem grande. Sem se dar conta, já estava na frente deles.

– Nem mais um passo,... monstro! – vozinha fina quase chorando.

Solog já ia avançar irritado, quando o braço de Diek o impediu, olhos arregalados

de incredulidade e horror. Amaldiçoava Keenn, pois era dele a fúria divina que começava a

dominar o ahleniano.

– Deuses, abaixe essa espada, homem! É uma criança! – embora Braço Forte tivesse

pouco mais dessa idade quando levantara uma espada de verdade pela primeira vez.

– Filho, não!!! – o berro deseperado veio da mãe, toda desgrenhada e coberta de

lágrimas, feno, terra, deixando-se ajoelhar diante daqueles bandidos.

– Por Marah! Somos apenas agricultores, daremos o que quiserem, mas nos deixem

em paz!

– Ali, Tusk. – Justifer ordenou alheio à choradeira, apontando com a cabeça a

construção central do templo, mais parecida com uma caixa robusta de pedra e sem janelas,

cujos dois andares, nos tempos guerreiros, sediavam o salão principal e o altar.

Diek observava em volta que tudo mudara: não havia mais a arena (suas cordas

esticadas em varas improvisadas, servindo para que trapos secassem), a casa de ferreiro

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espremida no lado leste estava com a caldeira apagada e ocupada por hortaliças. A horta

ocupava agora um espaço maior nos fundos, num verde mais cheio de vida onde antes só se

falava de morte.

Perto dali, porcos e galinhas se agitavam em seus currais e chiqueiros, numa

cacofonia frenética de cacarejares e sons estranhos contra o repentino excesso de

movimento, acompanhados pelos latidos desesperados de um cachorro preso.

Justifer entrou na grande sala, imediatamente assaltado pelas lembranças de sombra.

As tochas nas paredes queimavam ainda nos mesmos lugares tentando em vão aquecer o ar

parado, mas muitas das relíquias que antes exaltavam a história e glória bélicas haviam tido

modificada destinação. O tapete no qual a criança fugitiva de momentos atrás se encolhia

tecia uma batalha há muito esquecida, empoeirado como alguns catres de estopa (tirados do

alojamento) amontoados num canto.

Havia ali um grande vazio, pois não encontrava as armas e as tapeçarias que antes

cobriam aqueles blocos. As mesas e cadeiras estavam afastadas perto da estátua do Senhor

da Guerra – um homem gigante talhado em mármore –, que permanecia em sua atitude

solene de entregar a espada a servos invisíveis, atrás do trono vazio do alto sacerdote, no

fim do salão. Uma oferta vazia para o altar servindo de mesa.

Tusk subia lentamente de machado nas mãos para o outro andar e, ainda embaixo, à

visão de toda a mudança, Justifer apenas conseguiu sussurrar:

– Blasfêmia. – mas então lembrou-se de que haviam abandonado o templo em

sangue há alguns meses, após ter enterrado os clérigos. Foi até a cadeira de alto espaldar

toda cravejada de pedrarias.

Sua ambição foi despertada por elas, passando a mão pelos riscos criminosos no

metal das tentativas de furto. Afinal de contas, uma vez que todos estavam mortos, de

acordo com a hierarquia, era ele quem devia assumir o templo como novo Lorde de Guerra.

Quem sabe podia até mesmo treinar essas mulheres (e algumas certamente lhe dariam

favores) em novos destacamentos operativos, tudo pela glória de Keenn.

Tomado desses pensamentos, o yudeniano sentou-se no trono, assistido num

silêncio de lágrimas pela garotinha.

Diek, abraçado à espada, rondava tranqüilamente o templo, percorrendo o caminho

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das ameias, de onde podia contemplar a floresta e respirar profundamente seu cheiro

selvagem.

Deitou de esquiva o olhar em Solog, com sua velha retórica no pátio à frente de

todos aqueles pobres camponeses, apenas velhos, mulheres e crianças maltrapilhas.

Provavelmente seus maridos – certamente uns fracotes preocupados somente em sobreviver

– estavam caçando; quando voltassem, tudo estaria em paz novamente.

Foi com um sorriso tímido que o lenhador encarou Azgher, interpretando que o dia

árido se iria deitar, como uma árvore que não agüenta mais o próprio peso. Porém, ainda

sentia o clima indefinível de violência e tristeza pairando.

– Este lugar sempre foi mal assombrado... – explicou-se.

E então, observando a tudo, relembrou que havia voltado ao campo de batalha não

para honrar a Keenn, mas para obedecer ao imperativo da justiça rude, da lei do aço. Mas

ela chegara antes dele.

Por isso, intimamente divertia-se com Justifer e Tusk vasculhando preocupados

cada palmo da fortaleza, enquanto Solog ainda vigiava a turba. Em uma rápida contagem,

concluiu que podia facilmente pertencer a mais ou menos umas dez famílias. Ironicamente

as imaginava enfileiradas e aprontadas para o combate, na defesa do templo ou para

marchar contra um inimigo comum.

Balançou repetidas vezes a cabeça para espantar a brincadeira insólita, percebendo

finalmente o chamamento de Tusk lá embaixo.

– Não há homens aqui!

– Eu sei. – respondeu, meio enfadado apesar de tudo.

– E também não há armas.

"Keenn, seu desgraçado!", e chutou um pedregulho, que caiu da muralha e se

espatifou no chão morto.

Estranha e irônica justiça.

IX – Invasão

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À medida que Diek se pendurava no muro para se deixar cair, em baixo Solog voltou-se

para Justifer, aparecendo irritado pela conclusão da inspeção. Observou de volta as pessoas

à sua frente, trocando olhares preocupados, como se soubessem o que ele descobrira.

– Tranque as crianças. – ordenou rudemente o comandante, arrancando com um

puxão um garotinho dos braços da mãe aos prantos, acalmada após ameaça de espada.

– Que vai fazer, Justifer? – perguntou Diek, acompanhando-o enquanto o clérigo

caminhava até a construção principal.

– Separe os velhos – largou jogado o pequeno lá dentro – ...fique quieto, moleque! e

ajude Solog a enfileirar as mulheres.

O ex-clérigo lançou um olhar entre confuso e hesitante para o aglomerado que

começava a se organizar, sob exclamações de Dois Machados e os gestos firmes de Morte

Uma Vez.

Em momentos perfilavam-se duas colunas, uma de frente para a outra, assustadas

pelas crianças trancadas. Agora se podiam contar as mulheres nos dedos de duas mãos e

meia, e os velhos em uma.

– Muito bem! Quero saber onde eles estão. – desafiou Justifer, enquanto marchava a

passos firmes no meio, à guisa de inspeção militar.

– Nós não sabemos não, seu homem. – ousou uma senhora, encolhida em um

vestido de burel, o tecido grosseiro de lã amarrotando-se como suas rugas de medo à

aproximação dele.

– Nós não sabemos. – repetiu uma mulher ao lado dela. – Nós não sab...

Seus cabelos encaracolados foram puxados com violência. – Ah, não sabe, não é! –

rosnou, trazendo-a para si. Ela chiava como uma galinha antes do abate, enraivecendo-o

ainda mais.

Os anéis de cabelo fizeram Diek lembrar-se de Madeleine. Desejo.

– Como se parece com ela... – sussurrou em devaneio, admirando a mulher nas

mãos do Espada Mortal. Então, de volta à loucura, deu-se conta da situação, prenunciando

mais dor.

– Que vai fazer, Just... – foi interrompido pelo ombro de Solog.

– Quando você terminar com ela, eu também quero. – sorriu alto o ahleniano,

observando-o arrastá-la até sumir nos fundos.

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As pessoas enfileiradas quase não conseguiam reter mais o desespero. Estavam em

vantagem numérica, mas impensável reagir sem um banho de sangue. O céu já estava

borrado e o cachorro voltou a latir.

No fim da luz, no fim da vida, o pranto de mais uma das mulheres se fez ouvir, pela

boca de uma rapariga com jeito de camponesa e beleza simples, suas bravatas confundindo-

se com os gritos distantes:

– Quando eles voltarem, vocês vão morrer. – as lágrimas lavando o rosto doce.

Tremendo, fungou, molhou as costas das mãozinhas e encarou o loiro, que devolvia um

olhar e gestos de deboche perturbado.

– Pode trazê-la, Justifer! – respondeu ele chamando, e riu de maneira mentirosa.

Depois falou satisfeito:

– Obrigado, donzela. – mas não obteve resposta da ironia, pois que ela se deixou

ajoelhar, entregue à própria tristeza ao perceber o erro cometido.

"Keenn, não!", de repente protestou Diek ao mesmo tempo em que um velho

revoltado se aproximando para golpear com as mãos Solog. Mas o que era aquilo perto

dele?

Dois casais vestidos com pedaços de pano surrados cercavam o ex-nobre, o qual

parecia não lhes notar a presença e nem o tinir das correntes enferrujadas pendendo de

pescoços e braços delgados. Imagens que apareciam mais devagar, a friagem mais palpável

e os sons da natureza mais vivos.

Vida.

Uma mosca pousou numa folha do canavial ali atrás, mexendo suas perninhas e

depois voltando a voar.

– Por que você tem que partir, Diek? – perguntou mais uma vez Madeleine.

Ele apenas a olhou, perdido em si. Um pássaro num galho levantou vôo.

“Adeus, meu amor.”, pensou.

– Eu não quero que você vai, papai. – pediu Tristão.

A mão pesada pousou em seu ombro.

– Mantenha a disciplina da espada, filho, e proteja sua mãe.

Ela enxugou discretamente uma lágrima; o seu marido nunca falava daquele jeito de

guerra. Seu olhar era aflição...

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...Os olhares das duas mulheres eram de lágrimas e aflição. Os braços dos homens

os acompanharam; Diek seguiu-os apontando até o velho na iminência de violência.

Nesse momento, tudo ficou claro.

Quando deu por si, sua espada se atracava, grudando em faíscas na de Morte Uma

Vez.

X – Sua vez de morrer

– Que está fazendo, Diek? – rugiu Solog. Sua inflexão lembrou-lhe a de Bradeken durante a

excomunhão.

– O que devia ter feito há muito tempo! – cuspiu.

– Blasfêmia! – a revolta saiu sem pensar. Tentou afastar seu sabre do idiota, mas

não conseguiu. – Justifer!

Porém, foi Tusk quem atendeu ao chamado, avançando decidido, brandindo

machado, enquanto Braço Forte, com um empurrão, se desvencilhava do cavalheiro e, com

a outra mão, sacava facão para fazer frente aos chifres do touro espumante.

Morte Uma Vez tornava ao equilíbrio, erguendo sua espada mais uma vez,

umedecendo os lábios querendo experimentar sangue, quando sua cabeça foi machucada

contra uma pedra, tão rápida que mal teve tempo de gritar para as presas fugindo às pressas

em direção das crianças.

O velho passou por Justifer, que lhe entregou rudemente sua vítima, descabelada e

chorosa. Nos breves momentos, a experiência do ancião fizera-o perceber que fora um

prazer falso: ela não havia sido deflorada. Apesar do vestido rasgado, pétalas amassadas,

até onde podia ver, não havia o rubro de tapas no rosto e nem marcas nas pernas. O

estratagema do homem soturno havia dado certo.

O golpe de Tusk fez o terçado de Diek voar longe e, no impulso do movimento,

rodeou o machado em volta de si e o desceu sobre ele, que o deteve desajeitadamente com

sua espada longa restante, olhos arregalados e perdendo a posição firme, o pé ardendo pela

força.

O lenhador sabia que ia cair, violento e implacável o machado de Tusk. Só lhe

restava fazer uma coisa: num átimo de reflexo e raiva, chutou entre as pernas do clérigo,

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antes de alcançar o chão sem bravatas.

Recuando, o gado mugiu com ódio, cedendo para Solog mais uma vez. Ainda no

solo, Diek sacou uma faca da cintura com meia coragem, como um rato acuado ao gato que

vinha com garras afiadas.

Então, pêlos eriçados diante do pequeno bravo, rápida e inesperadamente qual golpe

de espada, uma imagem obscura invadiu o ex-aristocrata, uma cena que há muito havia se

entocado dolorosamente em sua escuridão.

E, sem perceber, a terra sob seus pés de repente transformou-se em pedras de

mármore aos seus passos oscilantes, refletindo suas roupas patrícias mas desajustadas... a

porta no fim do corredor... uma ânfora pesando na mão e a claridade dos vitrais pesando

nos olhos... sua mão delicada abrindo o portal branco. Dentro, o dossel bagunçado, com

lençóis de seda vinho perfumados cheirando a sensualidade... o olhar aterrorizado de sua

mulher e o volume embaixo das cobertas se mexendo...

Morte Uma Vez viu vermelho, e Diek viu morte. Contra ela, sua mente rodopiava

em raios confusos, momentos moribundos.

“Eles defendem a morte, Diek. Esta não é a iluminação, este não é o caminho de

Keenn.”

“Ora, pro inferno você e Keenn! Eu é que não preciso de vocês.”

“Pois bem, aqui estou, eu e minha espada, que é a única coisa que me resta.”

“...A espada é a maior pregação que um padre da guerra faz!”

“Deuses, abaixe essa espada, homem!”

“Filho, não!!!”

O palhaço bêbado gargalhando de histeria e se desfazendo em tosse.

“O Filho da Guerra despertou e está solto, pronto para devorar criancinhas

indefesas.”

“Nem mais um passo,... monstro!”

“Quando você terminar com ela, eu também quero.”

“Keenn, não!”

...Destruição.

“Não me vá derrubar a floresta toda, querido.”

“Vamos, faça, Diek!”

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Destruição.

“Senhor, faça-nos instrumento da tua vontade.”

...Redenção.

“Dar-te-ei uma morte verde, para que estes portadores de espadas não o levem à

perdição.”

“Mantenha a disciplina da espada, filho...”

Redenção pela espada.

Espada. Guerreiro.

“Sou um guerreiro. E guerreiros guerreiam.”

Um mosquito zumbiu na cicatriz do rosto de Justifer, que o afastou com um

movimento incômodo.

Diek viu vida.

– Mata! – exclamou à meia voz Tusk, ainda lutando contra o mal estar.

Para Solog, não houve nenhum sorriso ou ameaça arrogante antes do golpe, apenas

o movimento impiedoso e instintivo do punhal sobre a cama.

Mas a lâmina encontrou determinação hostil, com braços fortes que a trombaram,

desviando-a. Em coragem de aço Diek encarava-o e foi sem desespero que, livrando-se do

sabre, se atirou com faca no apóstolo da destruição.

– Sua vez de morrer. – murmurou.

O olhar de Morte Uma Vez, que até antes se turvava, agora era vago, perdido entre a

raiva da traição e o prazer da vingança. O ex-clérigo viu e, num momento, notou as

sombras n´alma.

Por uma maldita ironia, assim como há aqueles que se regozijam na dor, Diek foi

eleito por ela, traído por um espasmo fortíssimo da coluna, torcendo-se sem força para

perfurar.

Era o que Tusk, recuperado e apertando seus dois machados, queria. Sorriu de

satisfação maligna e avançou, erguendo fúria pela poeira e palha que se levantavam e a

escuridão caindo.

Diek abaixou a cabeça resignado e cerrou os olhos e Solog de pé parado, apinhado

em sua epifania, seu próprio mundo – um mundo de traição.

O machado sedento por punição.

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“Pode vir, desgraçado.”, num sorriso resmungado, pensou Braço Forte.

Quando então as mandíbulas se fechando, quando descreveu-se o arco de aço, no

momento do sublime desprezo pela vida, finalmente a reação.

Num esforço supremo, Diek girou-se meio ao tropeço e sua faca afundou-se na

jugular do prelado.

Com o impacto desesperado, o touro esboçou passos para trás, com as mãos na

lâmina, babando engasgado no próprio sangue, tentando entender o acontecido e o machado

no chão. Fugia-lhe um olhar arregalado de raiva e sofrimento, que fazia Diek sentir-se

como se tivesse assassinado o próprio Keenn.

Sem reação, restou-lhe apenas assistir ao górgona cair-se desengonçado de joelhos e

engolir em seco ao vê-lo retirar a faca do ferimento antes de desabar, borrando o metal do

peitoral em vermelho.

Silêncio.

Solog, à imagem da mulher, perdida no fainal rubro, aterrorizou-se. O sabre escapou

da mão, e o som da queda foi o único ouvido.

Quanto a Justifer (que assistira a tudo calado porém não indeciso), findo o embate,

um suspiro fugiu-lhe, meio boquiaberto, como se quisesse confirmar a Keenn que a vida

era, de fato, uma guerra, cuja situação podia mudar num piscar de seu único olho. Mas era a

escuridão a cada vez.

Um salto na sombra.

– Diek, Diek... por que nos persegue? – disse, sua voz soando calma mas firme.

Adestrado na fé da dor, o yudeniano não prantearia a baixa de Tusk, nem o estado de Solog.

Mesmo assim, quase chegava a se arrepender de ter convocado o lenhador a

abandonar as árvores. Esperava que, chegando à Primeira Espada, o inimigo estaria lhe

esperando de arma na mão e, então, era só lutar. Afinal, esta era a vida do soldado, uma

vida simples. Justifer sempre gostara dela.

O clérigo aproximou-se do corpo de Tusk, agachou-se e, sentindo a pele fria,

fechou-lhe os olhos, deitando-o em treva eterna.

A noite escura.

Encorajados pela quietude, as mulheres, velhos e crianças surgiram, dessa vez um

pouco menos receosos. Detiveram-se perto, num meio círculo, como se compartilhassem a

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tristeza.

Com as lágrimas já secas, Solog recuperou sua espada e intentou chacinar todos,

também querendo compartilhar sua revolta. Porém, a voz potente de Justifer se levantou

acima dos ganidos de dor antecipada:

– Já chega, Solog! – retomando novamente o controle. Virou-se para Diek.

– E você, o que pretende agora?

Havia chegado até ali, mas não sabia mais como continuar. Alcançara sua redenção,

mas e agora?

– ?

– Vamos, que pretende agora? – havia um certo rancor na pergunta.

Os escravos haviam sumido.

Finalmente vislumbrou uma chance de arrebentar seus grilhões, de voltar para sua

amada e continuar a lidar com madeira em paz. Ao menos tentaria evitar as lembranças

amargas novamente. Suspirou, respirando com dificuldade:

– Só quero ir embora. Deixe-me partir ao amanhecer. – voz cansada.

Pareceu-lhe que o clérigo parou para pensar mas, em esquivando o olhar para o

cadáver de Tusk, o sangue regando a terra, fungou. Diek também sentia o fedor do vigia

morto lá fora.

– Não. – disse, desembainhando a espada.

O fio de Pacificador refletiu a lua em foice – uma bela visão. Diziam os

companheiros de templo que a lâmina fora forjada em Werra, lar planar do próprio deus-

guerreiro, o lugar onde, segundo os ensinamentos da Igreja combatente, seus servos caídos

travam batalhas eternas. O lugar em que Tusk provavelmente devia estar.

Se tudo isso era verdade, o lenhador não sabia. Porém, a idéia de que aquela arma

vinha de outro mundo, um mundo em armas, constituía-se em algo aterrorizante.

A espada de Justifer era guiada pela doutrina de Keenn, cujo preceito ensinava a

nunca recuar de uma oportunidade de combate. Enquanto outros se perdiam no frenesi

agindo como animais, o comandante da Segunda Lâmina controlava seus impulsos. Um frio

predador.

Solog, um misto de raiva e orgulho, acompanhava de braços cruzados a luta

iminente. Seu sabre descansava na cintura porque já sabia quem ia viver. Por isso, pôde

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divagar sozinho sobre o porvir.

Para o ahleniano, agora que o grupamento estava desfeito, restava apenas a

vingança, tal como no passado. Primeiro contra esse Braço Forte; depois, contra os outros

traidores, os chamados Arautos da Guerra.

Sorriu.

Vendo as pessoas esfarrapadas às suas costas – e como se enojava e se excitava

delas! – chegara à conclusão de que o mundo era um lugar feio e escuro, cheio de traidores,

hereges, enganadores e infiéis. Assim era (contavam os outros reinóis) em Ahlen, assim era

em todo o resto. Não poderia haver piedade.

– Sinto ter que matá-lo. – disse Justifer sem paixão, e ergueu a espada em

cumprimento.

– Tusk e Diek foram enterrados numa cova rasa, e não se derramaram lágrimas ou

flores.

O bobo, que não estava bêbado, sentava no mesmo velho caixote, desta vez rodeado

por quatro crianças que ouviam atentamente a narrativa. O sol brilhava forte em Malpetrim,

obrigando-o a se proteger com uma das mãos, lançando leve sombra sobre seus olhos

escurecidos e misteriosos.

Um dos garotos, vestido com seu chapéu de guizos, perguntou:

– Acabou? Só isso?

O homem sem nome sorriu pequeno, como se esperasse aquela pergunta, e

respondeu:

– O que mais você queria? Diek tinha espada; é normal que morresse pela espada.

Mas, se quer mais alguma coisa, o Justifer, o caolho escuro, ao largar a pá no chão durante

a aurora, chegou a dizer que “ele morreu com honra”...

– Ora, essa é só a história chata de um covarde! Cadê as mulheres e os tesouros? –

indignou-se outro.

– Não. – retrucou, sério. – Esta é a saga trágica de Diek, guerreiro que lutou,

perdeu-se e morreu lutando. Ele era um bravo.

– E os camponeses do templo? Quem eram?

– Esposas de bandoleiros, talvez. Não sei. – deu de ombros.

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– Elas não interessam! E os outros clérigos? E os Arautos, realmente existem? – os

olhinhos brilharam de curiosidade infantil, quase esperando que os personagens saltassem

fora da boca pintada do contador.

– Os servos de Keenn, o deus da guerra, infelizmente existem, meus amiguinhos.

Rezem para nunca encontrá-los: são figuras rudes e sofridas que só trazem desgraça. – foi

difícil ouvir o seu murmúrio. Aprumou-se e sentenciou, com tom sóbrio:

– Estes homens sombrios, Solog, Justifer, a Sexta Lâmina, os Arautos ou seja lá o

nome que se dêem e às suas armas, podem facilmente ser encontrados.

– Onde, tio bobo, onde? – as vozinhas se amontoando.

– Basta olhar para a guerra. – disse, levantando-se.

Enquanto deixava os jovens maltrapilhos de rua xingarem-no pelo final,

caminhando tranqüilamente em direção do mesmo píer onde Diek desembarcara, uma

silhueta o acompanhava. Todavia, somente uma sombra era projetada na madeira e uma

presença refletida pelas águas sujas. Ela não se moveu enquanto o palhaço se sentou e,

virando a cabeça, riu-lhe debochado para o braço forte, a cabeça calva e a espada

embainhada ao lado do corpo rijo. O mar murmurava, mas entre os dois só um silêncio de

vazio, na contemplação do horizonte.

“Basta olhar para a guerra...”

FIM