guerra em exú

53

Upload: jorge-palma

Post on 27-Mar-2016

289 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Guerra em exú
Page 2: Guerra em exú

Guerra em Exu

Jorge de Palma

Page 3: Guerra em exú

O autor Jorge de Palma é filho de Carmo de

Palma e de Adelina Candian de Palma.

Nasceu em Iracemápolis-SP, Brasil, em

20 de dezembro de 1952. Trabalhou

muitos anos como jornalista, atuando

nos jornais Diário de Limeira, Diário de

Pernambuco, Diário de Americana, O

Liberal (Americana) e Tododia

(Americana), entre outros.

Reside em Americana-SP, Brasil Contato pelo e-mail: [email protected]

Page 4: Guerra em exú

Guerra em Exu

No dia 31 de outubro de 1977,

cheguei ao Recife, após uma viagem de

três dias. Vinha desiludido com a vida e

ao mesmo tempo com novas

esperanças, uma vez que em São Paulo

tivera dissabores.

Recife representava algo novo.

Mesmo com pouco dinheiro no bolso

tinha expectativas de conhecer aquilo

que já vira nos calendário turísticos:

Recife das igrejas seculares, dos velhos

sobrados e modernos edifícios, do

Page 5: Guerra em exú

sarapatel, da galinha-de-cabidela, da

carne-de-sol, do Pátio de São Pedro, da

Praia de Boa Viagem, das cirandas, do

frevo, do Carnaval enfim, todo um

mundo novo para mim.

Desembarcando no então Terminal

Rodoviário de Santa Rita, percorri pela

primeira vez a rua do mesmo nome,

pela qual passaria milhares de vezes. Ali

decidi entrar em uma das inúmeras

pensões. Severino, um jovem magrinho

e que depois se mostraria um bom

amigo, olhou-me por detrás de um

pequeno balcão e sorriu me atendendo

servilmente.

Depois de cobrada a importância de

três dias de pouso ele indicou-me o

quarto, um cubículo, dividido por

madeira, com apenas um metro e meio

Page 6: Guerra em exú

de largura, por três de comprimento,

onde cabia uma cama de solteiro e uma

pequena mesa. Naquele quartinho

comecei vida nova. Só não imaginava a

estranha história com a qual acabaria

me deparando.

Nas próximas horas, aproveitei para

conhecer as proximidades da pensão.

Estive no famoso Mercado de São José,

que guardava, ainda na época, os traços

originais de sua construção. Planejado

pelo arquiteto francês Luiz L. Walter,

foi construído à imagem e semelhança

do Graniele de Paris. Com 377

compartimentos, era formado por dois

pavilhões, onde se vendia de tudo desde

alimentos, utensílios até artesanato e

outras expressões da arte folclórica do

Nordeste.

Page 7: Guerra em exú

Quando voltei à hospedaria, encontrei

Severino conversando com um rapaz

alto e magro, de cabelos encaracolados,

pele morena, barba bem feita e um

bigode bem aparado.

-Este é o Carlos Amaro, ele é seu

vizinho de quarto – disse Severino.

Estendi a mão para Carlos e ele

retribuiu, falando no sotaque

nordestino, acentuando as primeira

sílabas e reforçando os “erres”.

-Muito prazer, espero que fique bom

tempo por aqui. Assim terá

oportunidade de conhecer bem o Recife.

-Pretendo ficar mesmo! - respondi. E

ele replicou:

-Pois então, se precisar de mim para

qualquer coisa, pode contar comigo.

Ficamos por ali conversando mais

Page 8: Guerra em exú

algum tempo e depois, enquanto subia

para meu quarto, ele continuou

conversando com Severino. Pela nossa

conversa fiquei sabendo que ele

trabalhava nos escritórios de uma firma

exportadora. Era solteiro e se

encontrava no Recife há alguns anos.

Mais tarde, no pequeno quarto, passei

a ler o jornal que havia comprado

durante o passeio pelo bairro São José e

uma reportagem chamou-me a atenção.

Segundo o texto, o prefeito de Exu, José

Aires de Alencar, ou Zito Alencar ,

como era mais conhecido, defendia-se

de uma série de acusações de crimes e

acusava membros da família Sampaio

de serem os provocadores e praticantes

dos crimes a ele imputados.

Mal sabia eu que dentro de alguns

Page 9: Guerra em exú

dias estaria pesquisando o assunto. Mas

foi exatamente o que aconteceu. Em

busca de um emprego, acabei entrando

no prédio do velho Diário de de

Pernambuco, o jornal mais antigo em

circulação na América Latina. Ao sair

dali já fazia parte de seu quadro de

repórteres.

Mas voltando ao dia primeiro de

novembro, quando o futuro ainda era

incerto para mim, encontrava-me no

quarto, preparando-me para dormir,

quando ouvi ruídos no quarto ao lado.

Era Carlos chegando.

Revivendo as emoções do dia, o sono

demorou a chegar e, de vez em quando

ouvia Carlos remexer-se na cama, pois a

divisão de madeira não isolava os sons

do quarto ao lado.

Page 10: Guerra em exú

Já era mais de meia noite quando ouvi

Carlos resmungando: “Você de novo!”,

pareceu-me ouvi-lo dizer. Várias outras

palavras foram pronunciadas a seguir,

mas ele falava baixo e eu não pude

entender o sentido.

Porém, depois ele ficou mais exaltado

e elevou a voz:

-Vai embora seu demônio. Eu já disse

que tenho nada com você.

Naquele momento ouvi forte ruído,

como se ele tivesse dado um murro na

divisão de madeira. Assustei-me, porém

fiquei quieto e depois tudo se tornou

silêncio, até que adormeci.

No dia seguinte encontrei Carlos na

hora do almoço. Ele me convidou para

almoçarmos numa lanchonete nas

proximidades e lá fomos nós.

Page 11: Guerra em exú

Conversamos sobre diversos assuntos

como as festas de fim de ano no Recife,

o carnaval, que já tinha sido rotulado

como o melhor do mundo, mas agora

estava em decadência, apesar de manter

ainda as suas tradições, etc.

Pareceu-me que ele não se referiria ao

fato ocorrido durante a noite contudo,

depois de algum tempo disse:

-Espero que você não tenha se

assustado ontem à noite. Tive um

pesadelo e acabei esmurrando a parede.

-Ah sim – repliquei – confesso que

me espantei um pouco, mas isso não

tem importância porque eu tenho sono

pesado e logo adormeci.

Ele sorriu e não disse nada.

Então, para continuar o assunto

perguntei:

Page 12: Guerra em exú

-Mas que sonho foi esse? Parece que

você viu o diabo...

O sorriso morreu em sua boca. Por um

momento ele ficou tenso e nada disse

como se tivesse receio de falar. Depois,

um tanto forçado, sorriu novamente e

comentou:

-Pois é, a gente tem cada sonho besta.

Eu sonhei mesmo com o bicho. Sabe eu

acho que não é bom assistir muitos

filmes de terror.

Concordei com ele e logo em seguida

mudamos de assunto.

Nos dias seguintes não encontrei-me

mais com Carlos. Ele havia viajado para

Alagoas, a serviço da firma e só voltaria

em dezembro.

Famílias em guerra

Page 13: Guerra em exú

Um mês depois, trabalhando no

Diário de Pernambuco, e sentia

ambientado em meu local de trabalho e

numa quinta-feira à noite, o chefe de

reportagem me chamou e e apresentou a

um homem dizendo:

-Este moço é membro da família

Sampaio. O pessoal dele está reunido e

quer fazer algumas declarações para a

imprensa. Vá com ele e leve bastante

papel, porque vai ser uma reportagem

arretada.

E foi assim que, de repente me vi em

um automóvel, rumando pela Avenida

Conde da Boa Vista, para meu primeiro

contato com a família Sampaio.

O carro não rodou muito porque o

encontro seria em um bar-restaurante na

Page 14: Guerra em exú

própria avenida. Os Sampaio estavam

bebendo e conversando mas tão logo

fomos apresentados, todos se dirigiram

a um apartamento onde poderiam falar

com mais liberdade.

Expulsos de Exu, eles estabeleceram-

se no Recife, onde possuíam

estabelecimentos comerciais. Agora,

depois de uma entrevista de José de

Alencar à imprensa pernambucana os

Sampaio estavam exaltados e queriam

contar as suas versões dos fatos.

Na realidade, aproximavam-se as

eleições e Zito Alencar que em 1949

havia iniciado a guerra entre as duas

famílias, ao assassinar o patriarca da

família Sampaio, regressara a Exu

depois de ficar muito tempo escondido

em outros estados nordestinos. Ao se

Page 15: Guerra em exú

pronunciar à imprensa, ele provocou

novamente a ira dos Sampaio.

E foi assim que tomei meu primeiro

contato com aqueles que participavam

de uma guerra que já havia feito

dezenas de mortos de ambos os lados.

Naquela entrevista em que

participaram Maurício Sampaio, Avelar

Sampaio, Vitor Bacoral Soares e outros

integrantes da família Sampaio, eles me

contaram coisas horríveis como por

exemplo o caso de um membro da

família que foi assassinado e enterrado

em uma cova rasa no município de Exu.

O crime só foi descoberto porque um

cão, farejando comida, acabou

aparecendo com um braço do defunto

na boca.

Aquela entrevista me fez também

Page 16: Guerra em exú

procurar mais dados sobre Exu. Foi

quando fiquei sabendo que a povoação

a se formar com a amizade entre

vaqueiros da Fazenda Torres, que ficava

na circunvizinhança e a tribo Ançu.

Onde os ídios viviam, no outro lado da

encosta do Araripe, havia fontes e o

terreno era propício à agricultura.

Mudaram-se os fazendeiros para o local

e logo depois os padres e jesuítas

instalaram-se fundando um abrigo e

uma capelinha em homenagem ao

senhor Bom Jesus dos Aflitos. Em

1734, estava constituído o núcleo da

população. Outro dado, só para ilustrar,

é que em Exu nasceu o rei do baião,

Luiz Gonzaga.

Em primeiro de dezembro a

reportagem foi publicada e foi

Page 17: Guerra em exú

justamente naquele dia que voltei a

encontrar Carlos.

-Fiz a pergunta porque sabia que ele

nascera em Exu e acompanhara de perto

certos acontecimentos convivendo

mesmo com alguns membros das

famílias envolvidas.

-De fato – comentou ele – muitas

coisas aqui são verídicas, mas é lógico

que os Sampaio tentaram mostrar-se

santos, pois só falaram dos crimes

imputados aos Alencar, mas não citaram

nada do que eles também fizeram.

Tive que concordar com ele e

continuamos a falar sobre o assunto.

Já fazia alguns dias que Carlos tinha

voltado mas eu ainda não tivera

oportunidade de conversar com ele.

Entretanto, em noite anteriores ouvira

Page 18: Guerra em exú

estranhos ruídos em seu quarto. Conclui

que o seu demônio continuava

perturbando-o em seus sonhos, mas

como ele não tocou no assunto, achei

melhor não falar também.

Estávamos no momento sentados a

uma mesa de um bar do Pátio de São

Pedro, assistindo às tradicionais

cirandas pré-natalinas. Eu estava

admirado, pois em São Paulo só

conhecia as cirandas infantis. Mas

Pernambuco é um dos poucos estados

do Brasil onde a gente vê esta dança

folclórica em que participam os adultos.

Ali, no Pátio de São Pedro, crianças

pobres e ricas, velhos, moças e rapazes

dão-se as mãos e durante horas dançam

em círculo, enquanto o cirandeiro canta

bonitos versos populares. Lembro-me

Page 19: Guerra em exú

de uma composição que ouvi naquele

dia:

“Hoje cedo no Recife

Um moço me perguntou

Se na ciranda qu´eu estou

Tem muita moça bonita

E eu lhe respondi

Tem loira, mulata, morena

Que a morte mata

E depois fica com pena”.

Carlos olhava para tudo aquilo como

quem já se acostumara a ver a mesma

coisa ano após ano. Mas eu notei que

ele não estava muito calmo. Parecia

inquieto e ao mesmo tempo sonolento.

Vendo que os estava observando,

comentou:

Page 20: Guerra em exú

-Sabe, Jorge, já que você está mesmo

interessado e Exu, eu me lembrei de que

há muitos anos li uma boa reportagem

sobre o assunto. Não sei mesmo se foi

no Diário que eu vi, mas lembro-me que

o jornalista contava resumidamente toda

história ocorrida lá nos últimos 30 anos

. Seria bom você procurar no arquivo

por esta reportagem e assim já teria

meio caminho andado.

-De fato é uma boa ideia – disse eu –

acho que amanhã mesmo vou fazer isso,

mas tem mais uma coisa que eu queria

falar com você. Eu queria saber como é

Exu, pois ainda não tive oportunidade

de ir até lá.

-E nem vale a pena – retrucou ele – a

viagem é uma tristeza e lá só há um

punhado de casas e tristes recordações.

Page 21: Guerra em exú

Não, não vale a pena...

Notei que ele ficou pensativo e ao

mesmo tempo uma pergunta nasceu em

meu cérebro: “Tristes recordações...

para todos ou só para ele?” Mas não

disse nada a respeito. Ficamos por ali

bebericando mais um pouco e assistindo

as

cirandas.

De repente Carlos ficou pálido. Segui

seu olhar e notei que ele dirigia os olhos

esbugalhados para a roda de ciranda.

Balbuciou algumas palavras que não

entendi; olhou para mim em seguida e

vendo meu espanto, perguntou:

-Você acredita em demônio?

-Acho que não – respondi.

-Pois eu estou vendo um...

-Mas é o diabo mesmo ou você está

Page 22: Guerra em exú

falando figurativamente?

-Acho que estou maluco, mas é o

diabo mesmo.

Olhei para a mesma direção que ele,

mas não vi nada de anormal. O

cirandeiro continuava cantando e as

pessoas dançavam em círculos de mãos

dadas.

-Onde está o diabo – perguntei

incrédulo.

Bastante assustado ele respondeu com

outra pergunta:

-Você está vendo aquele rapaz de azul

e aquela moça de amarelo?

-Sim, estou vendo mas não vejo nada

de espantoso.

-Eles estão de mãos dadas com

alguém?

-Com pessoas normais, ora bolas, ela

Page 23: Guerra em exú

está segurando a mão de um velho e

com a direita tenta alcançar o moço que

lhe estende a mão esquerda.

-Quer dizer então que há um espaço

entre eles?

-Sim – repliquei – mas não estou

entendendo onde você quer chegar.

-Neste espaço caberia outra pessoa? -

continuou perguntando ele.

-Sim.

-Pois então, ali está o diabo que eu

estou vendo. É ele que segura a mão

direita da moça e a esquerda do moço.

Ele está brincando de ciranda.

-Quase dei uma gargalhada, mas me

contive. Ainda não conhecia Carlos

profundamente e não saberia dizer qual

a sua reação se zombasse do que ele

estava falando. No entanto fiquei

Page 24: Guerra em exú

olhando para ele com uma expressão

que por certo, denotaria dúvida ou

incredulidade. Depois disse:

-Você não está zombando de mim?

Ele me olhou sério.

-Não, não estou, mas agora já não tem

importância. Ele foi embora.

Olhei para a roda de pessoas que

brincavam e agora havia uma diferença.

O moço de azul e a moça de amarelo

estavam de mãos dadas...

Voltamos a seguir para a pensão e

naquela noite, pelo menos até 3 horas

da madrugada, a visão do diabo não

mais perturbou Carlos, pois durante

todo o tempo eu fiquei ouvindo uma

história incrível que ele me contou e

que confesso, meu deu muito o que

pensar.

Page 25: Guerra em exú

Na tarde seguinte eu estava

novamente na redação do Diário. Lá

mais de 30 repórteres e fotógrafos

aguardavam as pautas do dia para

iniciar o trabalho. Lembro-me que um

deles comentou algo sobre um incêndio,

mas não dei maiores atenções. Tinha,

para aquele dia, uma boa reportagem

sobre os favelados do Coque um dos

mais pobres e problemáticos bairros do

Recife e estava apenas aguardando a

escala de um fotógrafo para me

acompanhar. Tão logo isso foi

resolvido, saí a trabalho e só voltei

mais tarde, quando me pus a escrever o

que havia apurado.

Lembro-me que naquele momento um

colega escrevia apressadamente uma

nota sobre um incêndio que destruíra o

Page 26: Guerra em exú

depósito de uma firma exportadora e

cujos prejuízos remontavam a mais de

10 milhões de cruzeiros, conforme o

dinheiro da época. Durante a tarde

também ouvira no rádio da perua do

Jornal, algo a respeito deste incêndio.

Conforme a note havia uma vítima que,

até aquele momento, não havia sido

identificada.

Para inteirar-me do assunto perguntei

ao colega ao lado:

-Já identificaram a vítima?

-Sim - respondeu-me ele – é um tal de

Carlos Amaro, funcionário da empresa.

O que senti naquele momento foi

inexprimível. Pensei ter ouvido mal e

repeti a pergunta. Devia ter uma

expressão angustiada porque meu

colega parou de escrever e deu-me mais

Page 27: Guerra em exú

atenção.

-Carlos Amaro – repetiu e perguntou –

era amigo seu?

-Sim, era meu amigo, mas como

aconteceu isso?

-As causas do incêndio ainda não

foram apuradas. Pode ter sido um curto-

circuito, como ocorre sempre.

-E ele, como pode ser morto assim?

-Ele estava no depósito, conferindo

uma lista de mercadorias. O incêndio

deve ter inciado do lado da porta e o

encurralado. O interessante é que o

corpo ficou quase que totalmente

queimado, com exceção do peito e da

mão direita onde ele apertava um

crucifixo. Deve ter passado momentos

horríveis este seu amigo.

Senti-me mal. O que tinha comido na

Page 28: Guerra em exú

hora do almoço parecia não querer mais

parar no estômago. Levantei-me

apressadamente e sai correndo. Não

voltei mais ao jornal naquele dia. Fiquei

vagando como um bobo pelo centro da

cidade, até que entrei em um barzinho e

tomei uma bebida forte. Depois fui para

a pensão.

Ali o ambiente era constrangedor.

Carlos era muito conhecido e amigo de

todos. Os comentários eram os ais

diversos e Severino, além de triste

parecia mesmo meio assustado.

-Dá para entender uma coisa destas? -

perguntou olhando para mim.

-A morte é sempre um mistério –

repliquei.

-Sim – disse ele – mas é que estou

com umas ideias na cabeça. Um dia ele

Page 29: Guerra em exú

me contou uma história estranha e agora

ela não me sai do pensamento, pois

acho que pode haver uma relação, mas

ao mesmo tempo julgo que é uma

idiotice minha.

-Eu também sei da história, Severino,

mas estou em dúvida e não sei o que

pensar.

-Então ele lhe contou?

Sim, Carlos havia me contado sua

história na noite passada e agora eu a

estava reconstruindo mentalmente. Não

posso afirmar que suas palavras foram

exatamente estas, mas tentarei dar uma

visão global de tudo o que ele me

contou.

A história de Carlos

Page 30: Guerra em exú

Há anos este medo me acompanha.

Vejo em cada sombra, em cada chama,

o rosto zombeteiro desta criança a me

ludibriar, a me amaldiçoar a caçoar de

mim. Vejo chispas de fogo em seus

olhos, palavras obcenas saírem de sua

boca e me contraio, fujo mas para

onde? Ele me persegue a cada instante e

se torna bonito, às vezes. Tem então a

aparência de um anjo e seu sorriso é

algo celestial, mas de repente se torna

malicioso, seu rosto se transfigura e eu

me perco em desespero. Ele gargalha,

dá saltos, cambalhotas e me xinga de

“cabra safado”. Depois lança-me

chispas de fogo que a cada dia são

maiores, parecendo querer me engolir.

Eu já tentei agarrá-lo, mas ele sobe

pelas paredes pendura-se no telhado e

Page 31: Guerra em exú

fica rindo de mim. Depois desaparece

em qualquer sobra para reaparecer,

quando menos espero, em qualquer

outro lugar.

Há anos isso ocorre. Tudo por causa

daquele dia em que fui fraco e deixei

que o desejo me dominasse.

Era uma tarde ensolarada como tantas

outras em Exu e eu aguardava

ansiosamente por Mariana a bela

morena que morava na mesma rua onde

nasci e cresci.

Ela apareceu de repente, toda de

amarelo, com um vestido leve e um

alvo sorriso, mostrando uma fileira de

dentes perfeitos. Seu sorriso tinha

mesmo um leve toque de sensualidade e

eu não podia vê-la sem ficar excitado,

com uma vontade louca de beija-la

Page 32: Guerra em exú

inteirinha.

Tão logo se aproximou beijei-a

apaixonadamente, mas ela se afastou

dizendo:

-Cuidado Carlos, estamos no meio da

rua.

De fato estávamos no meio da rua e

sorrindo de mãos dadas fomos até o

calçamento de minha casa.

Já há mais de um mês estávamos de

namoro e eu sabia que naquele dia teria

de acompanhá-la a uma sessão de

Umbanda.

A mão dela metera-lhe na cabeça que

ela tinha mediunidade, ou sei lá que

outro dote religioso e, por ser muito

mística, Mariana ia, todas as sextas-

feiras até um “terreiro” num local ao sul

da pequena cidade, para ali receber as

Page 33: Guerra em exú

entidades.

Naquele dia fui com ela e o que vi não

gosto nem de comentar. Durante

algumas horas foi um tal de baixar

espíritos em uns e outros e as mais

diversas cenas aconteceram, como

pessoas rolando pelo chão, falando

coisas inteligíveis . Instrumentos de

couro, atabaques ou pandeiros, não sei

bem, marcavam o ritmo durante todo o

tempo. Eu olhava para tudo bastante

interessado e ao mesmo tempo cético. O

que queria realmente é que acabasse

logo para que pudesse passar mais uns

momentos a sós com Mariana.

Quando a sessão terminou já devia

ser mais 23 horas e resolvemos voltar

para casa. As pessoas foram saindo

todas e nós ficamos ainda mais um

Page 34: Guerra em exú

pouco enquanto Mariana se despedia de

seus amigos. Depois, em vez de se

dirigir para a porta da frente, ela saiu

pelos fundos, que dava para um

descampado e ali, a sós, pude abraçá-la

e dar-lhe um longo beijo.

Estávamos abraçados quando, de

repente, ela estremeceu. Revirou os

olhos e começou a balbuciar palavras

estranhas enquanto gesticulava como se

conversasse com alguém. Depois jogou-

se para trás e só não caiu de costas ao

chão porque amparei-lhe a queda.

Tentei levantá-la, mas ela tinha uma

força incrível. Deitada no chão, tremia-

se toda, mostrando as penas morenas,

bonitas e bem torneadas.

Tentei ajudá-la a levantar-se mais uma

vez, mas ela deu-me um de seus

Page 35: Guerra em exú

sorrisos, que desta vez pareceu-me mais

sensual do que nunca e recusou-se a

levantar. Recomeçou a contorcer-se.

Lutei, lutei comigo mesmo para não

me aproveitar dela durante o que

julgava ser um ataque doentio, ou

induzido por sugestão pelo que ocorrera

durante a sessão do “terreiro”.

Mas naquele momento ela passou a

tremer e a retorcer-se mais agarrando-

me com força. Rolei com ela no chão do

sertão.

Não tenho noção exata de quanto

tempo ficamos ali. Quando acordei ela

estava chorando para suas roupas

rasgadas e sujas. Devia se mais de meia

noite, mas o ambiente estava claro, pois

do céu, uma lua cheia e límpida

iluminava tudo.

Page 36: Guerra em exú

-O que aconteceu? - perguntou-me

com voz embargada

-Você não se lembra – retruquei.

-Não, não me lembro.

-Mas faz uma ideia, não – disse

zombeteiro.

-Eu só me lembro de quando ele

chegou – disse ela , séria.

-Ele quem?

-Exu – respondeu e, levantando-se,

saiu correndo.

Tentei alcançá-la, mas ela continuou

correndo e gritando: “Vá embora”.

Desisti da perseguição e fui andando

para casa. Lá, meus pais dormiam

sossegadamente. Tomei um banho e fui

para cama. Porém, naquela noite não

consegui mais dormir, pois a visão do

que acontecer repetia-se milhares de

Page 37: Guerra em exú

vezes no meu cérebro.

No dia seguinte levantei-me cedo e

bastante preocupado. Estava fazendo

testes para obter emprego em uma

empresa do Recife e teria que viajar.

Procurei ver Mariana, mas não

consegui. Defronte à sua casa tudo

estava quieto, e embora eu esperasse

por mais de meia hora, nem ele e nem

sua mãe saíram à rua.

Por fim resolvi bater à porta e a mãe

dela atendeu.

-Bom dia, Carlos.

-Bom dia, dona Ermínia -

respondi e continuei – olha, eu vou

viajar hoje e gostaria de saber como está

a Mariana. Ontem à noite nós tivemos

um problema e gostaria de saber se ela

está bem.

Page 38: Guerra em exú

-Ah sim, ela me contou que recebeu a

visita de uma entidade espiritual

enquanto estava com você, mas agora

ela está bem. Ela está dormindo.

-Está bem, eu vou tomar o ônibus

daqui a pouco, mas a senhor diz pra ela

que daqui a alguns dias estarei de volta

e venho procurá-la.

Viajei para Recife mais tranquilo, pois

certamente Mariana não contara para

sua mão tudo o que acontecera e isso,

talvez não tivesse maiores

consequências.

Mas estava enganado. Na semana

seguinte ela não mais quis me ver e

depois disso comecei a passar mais

tempo no Recife do que em Exu, o que

tornou difícil o nosso encontro. Uma

única vez que a encontrei na rua, ela

Page 39: Guerra em exú

passou a correr tão logo me viu. Eu não

entendia sua atitude e passei a sofrer

muito, pois o que sentia por ela era um

grande amor, tanto que, depois disso

nenhuma mulher me interessou.

Três meses depois soube que ela

estava grávida e numa noite, enquanto

tomava um aperitivo num boteco, um

amigo aproximou-se de mim e disse:

-Escuta Carlos, acho que tu precisa

tomar cuidado. Andam comentando por

ai

que a Mariana tá prenha e que foi tu

quem fez ela porque era com você que

ela saia. Eu não tenho nada com isso,

mas como sou seu amigo, vim te avisar

porque o irmão dela é u pistoleiro

desses contratados para fazer serviço de

morte. Dizem que ele estava refugiado

Page 40: Guerra em exú

na Paraiba e agora está vindo para cá

porque a mãe dela o chamou. Se eu

fosse tu me mandava daqui, logo ,

logo”.

Fiquei aturdido e depois me decidi.

Fui até a casa de Mariana. Dona

Ermínia abriu a porta e logo em

seguida fechou. Logo depois ouvi

Mariana gritando:

-Vai embora daqui. Vai embora daqui

eu não quero ver você. A criança não é

sua.

Vendo que não adiantava insistir, fui

embora e, no dia seguinte embarquei

para o Recife. Agora já estava fixo no

meu emprego, e não podia voltar a Exu

constantemente, pois muitas vezes

viajava para a firma, indo mesmo até o

sul do país.

Page 41: Guerra em exú

Procurei esquecer Mariana, mas

nunca consegui. Os meses passaram-se

e uma noite estava dormindo, no quarto

de hotel, em São Paulo quando tive um

pesadelo incrível. Revi novamente Exu

com suas casas pobres e as ruas de terra.

Havia gente correndo e um homem

dava tiros para todos os lados como se

estivesse louvo. Ao mesmo tempo outra

imagem aparecia. Era a de um menino

deitado num berço, sorrindo e seus

olhos brilhavam como fogo. Mariana

olhava para ele assustada. De repente

saiu correndo também e ao atingir a rua,

uma bala disparada pelo pistoleiro a

atingiu no peito. Naquele momento eu

revi seu rosto lindo como sempre fora e

parecia que ela queria dizer alguma

coisa. Fez várias tentativas e depois,

Page 42: Guerra em exú

num sopro de voz,murmurou:

-Carlos, Carlos, volte e mate o menino.

Ele é filho do diabo.

Naquele momento acordei assustado.

Meu corpo estava totalmente molhado

de suor e as imagens do sonho estavam

bem nítidas na minha mente. Eu

fechava os olhos e revia novamente

toda a cena: o tiroteio, os olhos de fogo

e Mariana implorando a morte da

criança.

Continuei o meu trabalho fazendo

contatos com várias firmas, mas durante

todo o tempo que estava em São Paulo,

não tive mais sossego. A cada instante

revia Mariana à beira da morte.

Voltando para Recife, pedi uns dias de

licença e fui para Exu. Precisava saber a

verdade e se tudo não passara de um

Page 43: Guerra em exú

simples pesadelo.

Mas não fora. Mariana realmente

estava morta e os comentários na cidade

eram os mais desencontrados. Uns

diziam que seu irmão se embriagara e

depois de muitos tiros acertara-lhe o

peito, matando-se a seguir. Outros,

porém, disseram que ele não tinha

bebido nada naquela noite, mas que

gritava ter visto o demônio e ficara

como um louco, tendo os olhos

totalmente queimados, dando tiros às

cegas.

Procurei o delegado e a explicação

dele também não foi satisfatória:

-O que sabemos – disse ele – é uma

declaração de dona Ermínia. Ela disse

que seu filho se queimou com o

fogareiro ficando cego e depois, louco e

Page 44: Guerra em exú

enraivecido, saiu atirando pela rua e

uma das balas atingiu Mariana. Depois

ele deu cabo de sua vida, com um tiro

na cabeça. O que aconteceu dentro da

casa , realmente nós não sabemos, mas

a morte de Mariana e o suicídio isto

sim, foi testemunhado por várias

pessoas”.

-E dona Ermínia e a criança? -

perguntei.

Ora, eles continuam morando na

mesma casa, mas dona Ermínia está

muito abatida. Ela quase não sai mais à

rua e parece ter muito medo de tudo e

de todos. Quando à criança, é muito

bonita. Eu mesmo vi quando estive

fazendo as diligências necessárias para

arquivar o caso.

Nada mais tinha a comentar com ele.

Page 45: Guerra em exú

Sai da delegacia e me dirigi para a casa

de dona Ermínia. Ao me atender ela

tentou bater a porta, mas eu a impedi.

Ela estava com uma aparência horrível.

Parecia ter envelhecido muito desde a

última vez que a vi.

-Vai embora – gritou – você não tem

nada a ver com a nossa vida.

-Tenho sim, o menino é meu filho –

retruquei para ver a reação dela. Ele não

é é seu filho, é filho do... - mas sua voz

morreu na garganta e ela não disse mais

nada.

-Filho de quem ? - peguntei

-Não interessa, mas ele não é o seu

filho.

Estávamos discutindo, mas eu jã havia

tomado uma resolução. Queria ver o

menino. Precisava tirar aquela dúvida

Page 46: Guerra em exú

que me atormentava. Dona Ermínia

tentou impedir a todo custo que eu me

aproximasse do berço, mas eu a

empurrei com força e avancei em

direção a um pequeno quarto.

Ali estava ele! Era lindo, o mais lindo

menino que já vi. Era meu filho, eu

tinha certeza. Seu olhos negros vivos e

brilhantes pareciam me reconhecer.

Senti uma vontade imensa de acariciá-

lo, de beijá-lo e de embalá-lo em meus

braços.

Mas naquele instante dona Ermínia

aproximou-se de mim, como uma fera

lutando para defender seu filhote. Tinha

uma faca na mão...

-Vai embora, já disse, esse menino é

meu neto e você não tem direito algum.

Vai embora, senão o mato.

Page 47: Guerra em exú

Bastante a contragosto retirei-me da

casa. Estava confuso. Eu revia o menino

lindo e robusto como um anjo e ao

mesmo tempo via Mariana morrendo e

pronunciando aquelas palavras

horríveis. Revia também aquela noite

enluarada e a canção ao som de

atabaques voltava aos meus ouvidos.

Afastando-me da casa ouvi um riso

estranho. “Essa mulher deve estar

louca”, imaginei e rumei para minha

casa. No dia seguinte enviei algum

dinheiro para dona Ermínia, para ajudá-

la nas despesas e voltei para o Recife,

mas daí o inferno começou.

Desde então o menino me persegue.

Já se passaram sete anos e embora no

início eu pensasse que tudo não passava

de uma alucinação agora sei que não é

Page 48: Guerra em exú

isso. É algo muito mais real do que

sonhos e imaginação.

Voltei muitas vezes a Exu e perguntei

pela velha e o menino, mas as

informações eram imprecisas. Uns

diziam que eles deixaram a cidade.

Outros, que estão pelas redondezas, mas

ninguém sabia ao certo.

Uma vez encontrei um velho que me

disse coisas horríveis. Contou-me que

viu certa vez a velha e o menino

andando pelo sertão e enquanto a

criança carregava uma cobra nas mãos,

alguns animais ferozes os seguiam.

-De outra feita – disse ele – enquanto

havia um tiroteio entre membros de

duas famílias em uma fazenda das

redondezas, eu vi o menino dando

horríveis gargalhadas. Parece que ele

Page 49: Guerra em exú

gosta de fogo e sangue...

Procurei esquecer tudo isso e colocar

um manto no passado, mas ele não

deixou. De início, raramente, durante as

noites. Aparecia de repente, quando eu

menos esperava e senta-se aos pés da

cama. Sorria para mim como se fosse

um menino bonzinho e depois me dava

cutucões nos dedos dos pés. Depois

dava uma gargalhada e desaparecia.

Uma noite apareceu com uma cobra e

jogou-a em minha cama. Seus olhos às

vezes serenos e límpidos, mas depois se

tornavam duas bolas de fogo e com tal

intensidade que um dia, uma toalha que

eu tinha nas mão incendiou-se. Várias

vezes tentei agarrá-lo mas ele

desaparecia gargalhando. Agora passou

a aparecer até mesmo durante os dias

Page 50: Guerra em exú

em qualquer lugar. Não me dá mais

sossego. Está me enlouquecendo. O que

ele quer de min, não sei, mas tenho a

impressão que ele quer me matar...

De volta à guerra

Isto foi o que Carlos me contara na

noite anterior e agora estava morto.

Pensei muito no assunto, mas confesso

que não cheguei a conclusão alguma.

Quis continuar pesquisando o caso de

Exu, porém depois de alguns dias houve

mudanças no meu horário de trabalho e

meu tempo livre passou a ser escasso.

Depois, aos poucos fui perdendo o

interesse, uma vez que já tinha uma

visão global sobre o assunto e, talvez

até soubesse demais...

Page 51: Guerra em exú

O que aconteceu com o filho de

Carlos nunca fiquei sabendo, mas

alguns repórteres, meus amigos, que em

Exu estiveram tempos depois, me

informaram que lá não estava

acontecendo nada de anormal, isso se

assassinatos pudessem ser considerados

como fatos dentro da normalidade.

Soube também que Zito Alencar foi

morto com dois tiros na cabeça no dia

12 de maio de 1978, defronte a uma

farmácia, no centro de Exu. Segundo os

jornais, naquela sexta-feira, ele se

encontrava em uma caminhonete C-10,

acompanhado de José Adilsom de

Souza, João Alves Bezerra e Fernando

Alencar, quando apareceu um sujeito

moreno, forte e baixo, trajando calça

preta e camisa azul, empunhando um

Page 52: Guerra em exú

revólver calibre 38. Ele fez dois

disparos atingindo o prefeito no ouvido

e no rosto, matando-o instantaneamente.

Chovia muito e não foi possível

reconhecer o pistoleiro, que correu para

uma matagal distante 50 metros

perseguido pelos acompanhantes de

Zito, que deram-lhe 12 tiros. O

pistoleiro reagiu, atirando três vezes e

atingindo em uma das orelhas de João

Alves.

Quase dez dias depois, um pistoleiro e

presidiário, Gerson Ferreira, o “Joinha”

foi acusado como o homem que matou

Zito Alencar. Entre 40 detentos,

colocados em fila no presídio de

Juazeiro (BA) ele foi reconhecido por

pessoas que presenciaram o assassinato.

Recolhido em regime de prisão

Page 53: Guerra em exú

albergue, o pistoleiro apenas dormia no

presídio e na sua ficha constava que ele

se ausentou na quarta-feira, dia 10 de

maio, somente apresentando-se na

segunda-feira, dia 15.

Além destas mortes e de muitas

outras, resquícios da guerra entre as

duas famílias nada de sobrenatural

aconteceu em Exu. Pelo menos que eu

saiba.