guerra da mentira - portal puc-rio digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/10 - guerra da...

3
cada dia torna-se evidente que o go- v e rno americano manipulou infor- mações sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. A equipe de ins- petores do Iraq Survey Group, grupo de 1400 pessoas organi- zado pela CIA e pelo Pentágono para achar armas de destruição em massa, não encontrou indí- cio algum. O correspondente da Folha de S. Paulo na Guerra do Iraque, Sérgio Dávila, lamenta ter comprado máscaras anti- resíduos atômicos, biológicos e químicos para fazer sua cober- tura. “Nos custou 500 dólares a propaganda enganosa de Ge- orge W. Bush”, reclama o jor- nalista, que testemunharia di- versas tentativas de censura e de forjamento de fatos por parte do governo de Saddam Hussein. Paul Wolfowitz, arquiteto da chamada “Doutrina Bush”e hoje presidente do Banco Mundial, disse à revista Vanity Fair de 30 de maio de 2004 que o governo americano realmente mentiu. Confessou que a decisão de divulgar a existência dessas armas para justificar uma guerra preventiva contra o Iraque foi tomada “por motivos burocráticos”. Diante da contrariedade da ONU de aceitar os argumentos de Bush para a aprovação da guer- ra, Colin Powell, Secretário de Estado dos Estados Unidos durante a Guerra do Iraque, declarou perante o Conselho de Segurança da ONU que “Saddam Hussein desenvolveu pesquisas sobre dúzias de agentes biológi- cos que provocam doenças como gangrena gasoso, peste, tifo, cólera, varíola e febre hemorrá- gica”. “Levará tempo para achá- las”, disse Bush sobre as su- postas armas químicas e biológicas do Iraque. “Sabe- mos que elas existem e pre- cisamos saber se Saddam as removeu ou as destruiu. Uma coisa é certa: Saddam não ameaça mais os EUA com ar- mas de destruição em massa” afirmou. Julho/Dezembro 2005 40 CAROLINA BENJAMIN, DIEGO MEDEIROS, FREDERICO CHIMELLI E GUILHERME BOTELHO Guerra da mentira Paul Wolfowitz criou a mentira “burocrática”

Upload: ngokien

Post on 17-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

cada dia torn a - s eevidente que o go-v e rno americanomanipulou infor-

mações sobre a existência dea rmas de destruição em massano Iraque. A equipe de ins-p e t o res do Iraq Survey Gro u p ,g rupo de 1400 pessoas org a n i-zado pela CIA e pelo Pentágonopara achar armas de destru i ç ã oem massa, não encontrou indí-cio algum. O correspondente daFolha de S. Paulo na Guerra doIraque, Sérgio Dávila, lamentater comprado máscaras anti-resíduos atômicos, biológicos equímicos para fazer sua cober-tura. “Nos custou 500 dólares ap ropaganda enganosa de Ge-o rge W. Bush”, reclama o jor-nalista, que testemunharia di-versas tentativas de censura ede forjamento de fatos porp a rte do governo de SaddamH u s s e i n .

Paul Wolfowitz, arquiteto dachamada “Doutrina Bush”ehoje presidente do BancoMundial, disse à revista Va n i t yF a i r de 30 de maio de 2004 queo governo americano re a l m e n t ementiu. Confessou que adecisão de divulgar a existênciadessas armas para justificaruma guerra preventiva contra oIraque foi tomada “por motivosb u ro c r á t i c o s ”.

Diante da contrariedade daONU de aceitar os argumentos deBush para a aprovação da guer-

ra, Colin Powell, Secretário deEstado dos Estados Unidosdurante a Guerra do Iraque,declarou perante o Conselho deSegurança da ONU que “SaddamHussein desenvolveu pesquisassobre dúzias de agentes biológi-cos que provocam doenças comog a n g rena gasoso, peste, tifo,cólera, varíola e febre hemorrá-gica”.

“Levará tempo para achá-las”, disse Bush sobre as su-postas armas químicas ebiológicas do Iraque. “Sabe-mos que elas existem e pre-cisamos saber se Saddam asremoveu ou as destruiu. Umacoisa é certa: Saddam nãoameaça mais os EUA com ar-mas de destruição em massa”a f i rm o u .

Julho/Dezembro 200540

CAROLINA BENJAMIN, DIEGO MEDEIROS, FREDERICO CHIMELLI E GUILHERME BOTELHO

Guerra da mentira

Paul Wolfowitz criou a mentira “burocrática”

O papel da mídia na guerraEssas versões oficiais foram

repetidas pelas diversas redes detelevisão como Fox News e CNN,além de jornais de pre s t í g i o ,como o Washington Post e o WallStreet Journal. Para o professorda PUC-Rio Arthur Ituassu, ex-editor de internacional do Jornaldo Brasil, “a mídia americananão influenciou a guerra, poisexistem 200 mil empresas decomunicação nos Estados Unidose cada uma delas tem umaopinião diferente. O poder que amídia tem é o de constituir reali-dades e o governo se aproveitadesse ambiente midiático”.

Durante a guerra, hospedadono hotel Palestine, em Bagdá, oj o rnalista Sérgio Dávila, únicore p ó rter brasileiro na guerr a ,também sofria sanções. “Nóséramos bem quistos ao nos iden-tificar como brasileiros e con-seguíamos fugir de uma censurapouco rigorosa, que o governoiraquiano tentava impor aos jor-nalistas. No entanto, eles erammuito burocratizados e desorga-nizados. Além disso, estavammais preocupados com o NewYork Times e a BBC, não com aFolha de S.Paulo”. Ele conta que,a partir da Guerra do Vietnã, amídia passou a ser vista comoinimiga. “Na guerra do Iraque, acabeça de cada jornalista valiacinco mil dólares. Só nesse confli-to foram mortos 16 jornalistas, oque dá quase 10%. É quase comose fôssemos mais inimigos naguerra do que os próprios inva-sores, do que os próprios invadi-dos”, afirma Dávila.

O jornalista lembrou da fraseutilizada por Philip Knightley,

um veterano correspondente deguerra que diz: “a primeira víti-ma da guerra é a verdade”. Paraele, é fundamental a coberturaj o rnalística na guerra, mesmoque os chamados “embutidos”,que acompanham unidades mi-l i t a res. “Você deve ser muitoprofissional para se livrar do con-flito de interesses. As guerras hão,haverão e hão de haver. E omenos pior é que haja jornalistascobrindo a guerra. Não só gentedefendendo as informações ofici-ais “, sustentou.

O lado iraquiano da mentiraNo governo de Saddam havia

uma figura caricata: o vice-p r i m e i ro - m i n i s t ro Tariq Aziz,que, mesmo com Bagdá invadi-da, insistia em dizer aos órgãosde imprensa que a cidade estava“sob controle”. Outro episódio foiquando o governo iraquiano jun-tou todos os jornalistas que con-seguiram em Bagdá e levaram aum hospital que abrigavasupostas vítimas do bombardeio.Segundo Sérgio Dávila, haviaprovas incontestáveis de vítimas,mas também muita arm a ç ã o .“Para citar só um caso, nós fomostodos levados a entrevistar umsujeito que estava ali numamaca com os dois pés enfaixadosaté o joelho. Muito articulado, elefalava inglês e respondia as per-guntas como devia. Pare c i amuito suspeito. Sabia responder

como o governo queria. Re-solvemos ficar na saída do hospi-tal, para ver se flagrávamos algo.De repente, sai uma enfermeiracom esse sujeito, que disse queteve os pés queimados pelaschamas de uma bomba. Ele tirouas faixas que protegiam seus pés,entrou em seu Passat e foi dirigin-do até sua casa”, contou.

Sérgio Dávila ganhou o PrêmioEsso de Reportagem em 2003,pela cobertura da guerra eescreveu o livro: Diário de Bagdá –A guerra do Iraque segundo os bom-bardeados.

É tudo mentira!41

“Na guerra do Iraque, a cabeça de cada jornalista valia

cinco mil dólares”Sérgio Dávila

Tariq Aziz, o farsante iraquiano

Julho/Dezembro 200542

Em uma guerra fundamentada em cima de umamentira, não é de se espantar que surjam casos comoo falso resgate da soldado Jessica Lynch. Em 2 de abrilde 2003, foi feito um vídeo da missão que salvou a sol-dado quando ela estava seqüestrada por tro p a siraquianas. O dramático filme, em que os americanosa p a recem entrando com armas e gritando “go, go, go”no hospital onde Jessica era mantida como refém, foiforjado por uma equipe de produção do exército dosEstados Unidos.

A militar, que virou heroína nacional, serviu comopersonagem para uma boa notícia dada a um povoque começava a perceber que as armas de destru i ç ã oem massa iraquianas não existiam, e que americanosestavam morrendo por uma guerra sem razão.

Segundo a história contada pelo governo ameri-cano, confirmada por Jessica, e divulgada em todo omundo através do vídeo do resgate, a soldado haviasido capturada por tropas iraquianas numa embosca-da em que 10 dos seus 30 companheiros morre r a m .Após a sua captura, um violento membro da tro p airaquiana teria batido e dado tiros na americana, quediz não lembrar muito bem destes momentos, poisestava desacordada. Antes disso, a soldado teria ten-tado combater os inimigos até que sua munição teriaacabado.

As tropas iraquianas teriam levado Jéssica a um hos-pital onde ela possivelmente teria sido violentada.Uma semana após o seu seqüestro, as tropas ameri-canas invadiram este hospital, aniquilaram os solda-dos iraquianos que tomavam conta da refém, e a re s-gataram heroicamente, conforme o vídeo relatou.

A história foi divulgada no mundo inteiro, JessicaLynch assinou contrato de um milhão de dólares comuma editora, que publicou um livro com a sua história,e até um filme intitulado Saving Jessica Ly n c h foi pro-duzido pela rede de TV americana NBC. A soldado set o rnou celebridade quando voltou aos Estados Unidos.

A exploração do assunto pela mídia americana teriasido exagerada se o caso fosse verd a d e i ro, e se torn o uescandalosa quando a rede BBC divulgou que deixouevidente que todo o resgate e sua história anteriorforam falsos e inventados pelo governo americano.

O que realmente aconteceu com Jessica Lynch foimuito menos dramático e glamuroso. Na verdade, elanão apanhou e nem levou tiros de soldadosiraquianos. Seus ferimentos foram causados por umacidente com o jipe de mantimentos em que ela esta-va, durante um conflito com tropas inimigas. De acor-do com a história oficial, Jessica teria sofrido maustratos no hospital, e teria sido salva por um bondoso

advogado iraquiano que a teria visto sendo esfaquea-da por um soldado inimigo.

Após a investigação da BBC, descobriu-se que elaficou internada na CTI de um hospital bem equipado,e os próprios médicos do hospital tentaram entre g á - l aaos americanos. Além disso, quando os soldados dosEstados Unidos invadiram o hospital atirando contraos supostos inimigos, as tropas iraquianas já haviamdeixado o local há dois dias. Portanto, os soldadosamericanos gravaram imagens atirando contra ovazio, para dar a impressão de que estavam tentandoabrir seu caminho a tiros, para o salvamento. Tu d onão passou de um show de propaganda de guerra. Ost i ros eram falsos, as metralhadoras não tinham balas,as portas não foram arrombadas e não havia inimigoscombatendo.

O vídeo parece um filme hollywoodiano. Todo oh e roísmo dos bravos soldados foi recompensado com oresultado da operação: nenhum americano morto e asoldado Jessica sendo transportada para o helicópteroem uma maca. As cenas foram gravadas, com umacâmera que filma no escuro, por um ex-assistente deRidley Scott que trabalhou com ele no filme La chutedu Faucon Noir, de 2001. Segundo Robert Scheer, do jor-nal Los Angeles Times, as imagens foram editadas soba supervisão do comando central do exército nort e -americano, no Catar. Após passarem pelo controle doPentágono, foram divulgadas e enganaram o mundoi n t e i ro .

Além da falsa exploração do assunto por parte dog o v e rno americano, a mídia daquele país embarc o unesta versão sem apurar o fato. O livro e o filme feitoss o b re o caso tiveram grande apelo popular, e a solda-do Jessica Lynch se tornou celebridade. No filme, elaa p a rece como uma pobre garota do interior dos EUA,que se alistou no exército para poder cursar a facul-dade e acabou nas mãos dos malvados iraquianos.

O caso da soldado Jéssica Ly n c h

Jessica Lynch