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I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos 23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES 1999 GT 10 - IDENTIDADE, MEMÓRIA E TRANSMISSÃO DE SABERES Coordenadores: Prof.ª Dr.ª Aissa Afonso Guimarães (UFES) Prof. Dr. Osvaldo Martins de Oliveira (UFES)

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I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos

23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES

1999

GT 10 - IDENTIDADE, MEMÓRIA E TRANSMISSÃO DE

SABERES

Coordenadores:

Prof.ª Dr.ª Aissa Afonso Guimarães (UFES)

Prof. Dr. Osvaldo Martins de Oliveira (UFES)

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2000

TRADIÇÃO E MEMÓRIA: LINGUAGEM POÉTICA NA ESCULTURA DE

IRINEU RIBEIRO

Abinair Maria Callegari CAR/UFES

Resumo: Ressalta o processo artístico do escultor e ceramista Irineu Ribeiro que tem como a matéria

prima, de grande parte de sua produção, a argila do Vale do Mulembá, jazida denominada barreiro,

localizada no bairro Joana D’Arc, no município de Vitória, ES. No passado essas argilas, assim como

o processo de queima, eram utilizadas pelos índios tupis-guaranis, habitantes do litoral capixaba, na

confecção de seus utensílios. Esse costume foi passado para os escravos africanos que mantiveram a

herança ancestral, chegando aos dias atuais com o trabalho das paneleiras, do bairro de Goiabeiras,

na confecção de um dos maiores patrimônios da cultura do estado, a panela de barro. Irineu empresta

sua linguagem poética como meio para a circulação e manutenção dos elementos contidos nessa

tradição. Este estudo propõe contribuir para o registro e memória da cultura capixaba e foi subsidiado

por entrevista com o próprio artista e por narrativas de autores como Jacques Le Goff, Marina de

Andrade Marconi e Zélia Maria Neves Presotto, que abordam o tema nos aspectos histórico,

antropológico, material e da memória coletiva, dentre outros que se dedicaram e se dedicam à causa

da negritude e suas contribuições para a formação da identidade capixaba.

Palavras-chave: tradição; memória; identidade capixaba.

Abstract: It emphasizes the artistic process of the sculptor and ceramist Irenaeus Ribeiro whose raw

material of his works is the clay from Vale do Mulembá, deposit called “barreiro”, located in the

neighborhood of Joana D’Arc, in Vitória, ES. In the past these clays, as well as the firing process were

used by the Tupi-Guarani Indians, inhabitants of the Espírito Santo coast, in the making of its utensils.

This custom was passed to the African slaves who maintained the ancestral heritage reaching today with

the work of the potters from the neighborhood of Goiabeiras in the making of one of the largest state’s

cultural asset, the mud pot. Irineu lends his poetic language as means for running and maintenance of the

elements contained in that tradition. It aims to contribute to the record and memory of Espirito Santo’s

culture and was subsidized by interviews with the artist himself and with narratives of authors like Le

Goff, Marina de Andrade Marconi and Zélia Maria Neves Presotto, that address the subject in historical,

anthropological, material, collective memory aspects and among others who dedicated and devoted to the

cause of blackness and its contributions to the formation of capixaba identity.

Keywords: tradition; memory; capixaba identity.

Introdução

Este trabalho apresenta um dos aspectos tratados na pesquisa realizada como Trabalho

de Conclusão de Curso de Graduação em Artes Plásticas/Bacharelado, da Universidade Federal

do Espírito Santo (UFES), cuja temática se enquadra na linha de pesquisa História e Teoria da

Arte. Foi feito um estudo teórico sobre os trabalhos escultóricos do artista capixaba Irineu

Ribeiro, com o intuito de aprofundar o conhecimento sobre suas obras, no que se refere à relação

de seu fazer artístico com a tradição, a memória e a identidade capixaba.

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A opção pelo artista Irineu Ribeiro se deu pelo interesse em contribuir para

incrementar a pesquisa sobre a linguagem da cerâmica, sendo esta pouco abordada em

pesquisas realizadas na Universidade, tanto na licenciatura, como também no bacharelado

em arte. E, sobretudo, por esta ocorrer nos trabalhos de um artista que utiliza a matéria prima

e o método ancestral de queima e tingimento das peças, similarmente às paneleiras de

Goiabeiras na confecção das panelas de barro, elementos estes constitutivos do Ofício das

Paneleiras de Goiabeiras, Patrimônio Cultural do Brasil1. Com isso Irineu estabelece uma

ligação visceral com sua cultura, uma amálgama de memória e contemporaneidade em um

processo de ressignificação de saberes tradicionais para suas manifestações no presente.

Para Celso Perota (1997), a cerâmica arqueológica encontrada no Espirito Santo2 está

classificada em três tradições, cada uma representativa de uma cultura indígena distinta: a

tradição UNA, a tradição Tupi-guarani e a tradição Aratu. E acrescenta: “Pela análise técnica

da atual cerâmica produzida na região de Goiabeiras, podemos afirmar que essa é uma

mistura de técnicas das tradições cerâmicas pré-históricas Tupi-guarani e UNA,

sobressaindo as usadas pela tradição UNA” (PEROTA, 1997, p. 14).

Para que essa tradição pré-histórica chegasse até nós, foi de fundamental importância,

nesse processo de transmissão, o papel daqueles que, mesmo não pertencendo ao grupo que

detinha esse saber originalmente, tomou-o por empréstimo3 e o fez circular mantendo-o vivo,

possibilitando que pudesse ser passado de geração para geração. Não obstante a condição ágrafa

desses grupos, a história não deixou de ser contada, pois em seus alicerces está a memória.

Jacques Le Goff (1990) defende que a memória coletiva não é uma característica

intrínseca de todas as sociedades, mas uma forma característica dos povos sem escrita. Porém,

Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva (2006) alertam: “Não que a escrita seja um

marco entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos” (SILVA; SILVA, 2006). Por isso,

esses mesmos autores citam Jan Vansina, grande africanista, que defende que a oralidade é

uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade, no caso a de escrever.

1 O Conselho Consultivo apreciou e aprovou o pedido de Registro do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras na

sua 37º reunião, em 21/11/2002. A inscrição no Livro de Registro dos Saberes foi feita em 20/12/2002,

inaugurando mais que o Livro, o próprio instrumento do Registro. Em consequência, o Ofício das Paneleiras

foi declarado Patrimônio Cultural do Brasil. Conforme IPHAN Dossiê Iphan 3 – Ofício das Paneleiras de

Goiabeiras. Brasília: Iphan, 2006. p. 45. 2 Registro de cerâmica no Sítio arqueológico de Areal, localizado nas proximidades do morro Mestre Álvares,

na divisa dos municípios de Vitória e Serra, comprova que populações pré-históricas ceramistas estiveram na

região litorânea há cerca de 2.500 anos AP (Antes do Presente) (PEROTA, 1997, p. 13). 3 O sentido do termo “empréstimo”, neste contexto, significa não ter origem no próprio grupo, ou que foi

inventando por outrem (MENDONÇA, 2010, p. 38).

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Dessa forma pretendeu-se estudar as referidas obras para conhecê-las, oportunizando a

difusão desse conhecimento, dando-lhe visibilidade, não só entre o público no âmbito acadêmico

e social do estado, mas também para além de suas fronteiras. Mostrar a importância da obra de

Irineu Ribeiro no cenário artístico capixaba, evidenciando elementos que se conecta com a tradição

e a memória, como sendo uma contribuição para a formação de uma identidade estadual, foi nosso

principal objetivo nesse trabalho. E assim, justificar sua inserção na contemporaneidade, por

serem, tais elementos, pertencentes aos estudos culturais, sendo estes, conforme pontua Corassa e

Rebouças (2009), um dos aspectos ressaltados pela arte contemporânea.

1. Lugar, celeiro de memórias, tradição e pertencimento

Teóricos como o geógrafo chinês, Yi-fu Tuan e Mauro Guilherme Pinheiro Koury,

pensam o homem considerando sua relação com o lugar e com a cultura. Assim, inicialmente,

procuramos definir o termo “lugar”, que de acordo com Tuan (1980), a Geografia de

abordagem humanística, o meio ambiente e a visão de mundo estão estritamente ligados. Para

esse autor, o lugar é marcado por três palavras chaves: percepção, experiência e valores.

Considera o lugar como espaço vivido e onde com ele se estabelece uma relação afetiva. Em

seu livro Topofilia, o autor define o termo criado por ele como “o elo afetivo entre a pessoa e

o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vívido e concreto como experiência

pessoal” (TUAN, 1980, p. 5), numa referência à importância desses valores para motivação

daqueles que possuem a emoção do pertencer para realização de objetivos.

Portanto, é de grande relevância para a sociedade que sejam envidados esforços no

sentido de valorizar e divulgar toda manifestação artística produzida em seu interior, e que

esta, não apenas se torne conhecida, mas que cada sujeito, independentemente de sua origem

étnica e de sua posição social, se sinta representado por meio dela.

Este trabalho de pesquisa se reporta a questões que falam mais de perto de situações

significativas para muitas pessoas, e seu mérito está principalmente nisso, no despertar, ou mesmo

reforçar, o sentimento de pertença que segundo Koury (2004) “[...] está relacionado à aproximação

e à ligação com o local de origem. É uma ideia de enraizamento, em que o indivíduo constrói e é

construído, planeja e se sente parte de um projeto, modifica e é por ele modificado”.

Conhecendo melhor sua história e as manifestações artísticas de seu entorno, em

especial as que se propõem recuperar lembranças do cotidiano de um grupo (Fig.1), o sujeito

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se torna mais apto e capaz de com elas interagir, sem subestimá-las, e em uma relação

dialógica compreender melhor a si mesmo e também ao mundo que o cerca, atribuindo o

devido valor ao que lhe é estrangeiro, sem, contudo, se submeter a ele. Le Goff (1990, p.

411) escreveu a respeito: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,

procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que

a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.

Assim, essa pesquisa pretendeu contribuir para tornar o artista e seus trabalhos ainda

mais conhecidos, não só para o público acadêmico, mas também para a sociedade no âmbito

desse estado e quiçá para além de suas fronteiras.

2. Ludicidade na gênese da criação

Penso que não posso negar o meu passado.

O meu passado é a minha verdade, e por isso eu estou presente.

Irineu Ribeiro

Em depoimentos do próprio artista, por meio de entrevista ocorrida do dia 20 de janeiro de

2014, além dos diversos aspectos envolvendo seu trabalho, como trajetória, motivações e referências,

foi possível apreender particularidades de sua afável, porém forte personalidade e desenvolvida

espiritualidade, o que nos auxiliou na compreensão de suas escolhas no campo da arte.

Irineu afirma que a origem de tudo que faz hoje está nas brincadeiras da infância.

Considera que tenha sido uma criança solitária, e buscou, instintivamente, a companhia e o

prazer de modelar o barro produzido pelas águas das chuvas, numa demonstração precoce

de sua resiliência e leveza diante das adversidades. Em companhia das tias que coletavam

mariscos, o menino conheceu o manguezal4 quando aqui chegou, vindo do interior do estado

e se estabelecendo no município de Cariacica juntamente com a família. Com certa alegria

saudosa, relembra seu primeiro contato com esse ambiente:

Eu achava aquele universo todo muito gostoso... Para uma criança aquilo era

uma alegria! As brincadeiras com o barro das chuvas que quando eu vi que tinha

liga, que tinha plasticidade, eu pegava aquilo e fazia um monte de coisas:

bichinhos para presépios, construía casinhas... (CHISTÉ; SABINO, 2005, p. 4).

4 É uma região de transição entre o rio e o mar. É uma zona úmida característica de regiões tropicais e

subtropicais. Um dos ecossistemas mais importantes do Brasil, e muito presente no litoral do Espírito Santo. É

um ambiente que fornece alimento e proteção a inúmeras espécies de seres vivos. Disponível em:

<http://www.colmagno.com.br/Mostra/7_B.pdf>. Acesso em: 10.11.2014.

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Mais tarde, em busca de apoio financeiro, Irineu resolveu trabalhar com artesanato

recorrendo a esses momentos de ludicidade, e de forma comprometida com sua

sobrevivência, viu emergir de suas memórias o socorro necessário também para esse outro

momento de sua vida. Com a resina epóxi, produzia seu trabalho modelando e pintando

imagens de lembranças de sua tenra infância.

3. Críticas transformadoras e felizes encontros

Sou detentor de uma essência, tenho uma verdade.

[...] encontro uma maneira de situar essas verdades dentro do contexto contemporâneo.

Irineu Ribeiro

Dando seguimento à vida, viu que a academia era uma possibilidade, mas Irineu não podia

esperar, e já homem feito, aos trinta anos de idade, quando resolveu ingressar nesses estudos, já

havia feito muitas escolhas com relação à linguagem que queria trabalhar, o que agilizou seu

processo nesse período. Isso lhe possibilitou, antes mesmo de sua conclusão do curso, ocorrida no

ano de 2000, ter em seu currículo algumas exposições realizadas e seu trabalho conhecido.

Mas apesar das muitas coisas positivas ocorridas durante o período em que passou

pela Universidade, o artista não esconde certa insatisfação por não ter tido seu trabalho com

epóxi bem aceito por alguns membros da comunidade artística, no início da vida acadêmica.

[...] a pessoa tem que ser muito forte, resistir e mostrar que aquilo tem seu

valor. A filosofia é única, agora as verdades e as poéticas são individuais.

O que se tem que fazer é enquadrar o fazer de cada um dentro da filosofia.

E é possível isso, é só ter boa vontade! (RIBEIRO, 2014).

Contudo, Irineu se abriu a novos aprendizados e aceitou o apoio dos que quiseram

lhe apresentar novos caminhos a partir dos seus já percorridos. Desses, Irineu lembra com

carinho e gratidão. Em seu Trabalho de Conclusão de Curso, A estética do manguezal, Irineu

apresenta alguns dos trabalhos realizados nesse período.

Num desses trabalhos (Fig. 2) está representado um de seus temas preferidos, o manguezal,

que além de ressuscitar memórias da infância, faz parte da escolha do artista por trabalhar questões

ecológicas com a finalidade pedagógica, colocando-as no contexto artístico para levar a uma

reflexão sobre o assunto. Comentando sobre esse trabalho, Yili Maria Rojas afirma:

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Irineu traz do mangue crustáceos de barro e ferro, esculturas instaladas em

que prevaleceu a relação genuína do artífice com seu espaço geográfico e

a familiaridade nata com as formas de que se ocupa. A “Caranguejada”

surge através da parede vinda do território onde falta espaço para sua

sobrevivência (RIBEIRO, 2000).

Figura 2 - Irineu Ribeiro, Caranguejada, 1999, modelagem, queima, tintura e coloração

(argila Mulembá, ferro, pintura acrílica), Instalação 40cm x 4m. Coleção particular.

Fonte: RIBEIRO, 2000.

Outra temática marcante em sua produção artística é a questão racial. Mote para o

trabalho concebido por ocasião do momento histórico brasileiro, quando, no ano 2000, se

comemorou os quinhentos anos do descobrimento do Brasil.

O artista utilizou elementos simbólicos como cor e mechas de cabelo para representar

as três etnias: o índio, o negro e o branco em sua pintura em quatro telas. Na quarta tela em

branco escreveu seu questionamento: “500?”, para levar à reflexão sobre a consistência dessa

afirmação, pois quando os portugueses aqui chegaram, comenta Irineu, já encontraram

habitantes com situação cultural definida, porém isso não foi respeitado (RIBEIRO, 2000),

fazendo referência ao eurocentrismo praticado pelos colonizadores.

Sem abandonar suas verdades, mas caminhando por essas novas experiências no

campo da conceituação, Irineu declara ter saído da academia muito satisfeito por ter

conseguido colocar seu trabalho dentro de uma visão contemporânea da arte.

4. Materialidade e técnica, questões práticas e afetivas

Ao conhecer a argila das paneleiras me encantei, me adaptei bem a ela e não parei mais de utilizar.

É o fato que estou pegando um valor cultural próprio nosso e estou colocando no contexto das artes.

Irineu Ribeiro

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Como já trazia no bojo de sua experiência o contato com a argila, foi na disciplina

de cerâmica que o artista aprofundou suas pesquisas e conheceu a argila das paneleiras.

Quando perguntado sobre a razão de optar por esse material como o instrumento principal

de seus trabalhos, Irineu disse: “A primeira questão é aquela de dar ênfase a um valor

cultural, genuíno nosso. Depois é que me apaixonei por ela, me identifiquei apesar dela ser

bastante rústica. Eu gostei porque me dá muitas possibilidades” (RIBEIRO, 2014). O

artista explica essas possibilidades assim:

É mais porosa, me dá mais sustentação, me possibilita construir. As

outras exigem mais cuidado, mais técnica, enfim, mais custo também. Ela

tem componente arenoso, ali naquele meio tem uma graxa que se

assemelha à formação do petróleo. É encontrado nela pedacinhos de

conchas pré-históricas, fósseis marinhos... quer dizer, houve ali uma

decantação de moluscos, em processos geológicos criou-se um veio. É

um material que tem muita plasticidade, é mais acessível, e o principal:

é uma coisa nossa! (RIBEIRO, 2014).

O que Irineu descreve sobre essa argila, pode ser verificado por meio de pesquisa

científica realizada com o objetivo de diferenciar cinco tipos de argila do Vale do Mulembá,

que visou contribuir tecnologicamente para a continuidade do Ofício das Paneleiras de

Goiabeiras. Foi realizada a caracterização química, mineralógica e física das argilas, cujos

resultados mostraram serem cauliníticas5 e altamente plásticas. De acordo com as autoras

dessa pesquisa, Mariane Costalonga de Aguiar, Bolsista de Iniciação Científica, Licenciatura

em Química, do Centro Universitário São Camilo - ES; e Mônica Castoldi Borlini,

Orientadora, Engenheira Química, D. Sc.:

A Companhia Espírito Santense de Saneamento (CESAN) realizou

sondagens a trado na área de expansão da ETE Mulembá6, e as amostras

obtidas foram enviadas ao CETEM-ES (Centro de Tecnologia Mineral -

Campus Avançado de Cachoeiro de Itapemirim). Destas amostras foram

definidas três, além de outras duas, amarela e cinza (argilas “padrão”,

utilizadas pelas paneleiras como argilas apropriadas para a confecção das

panelas), para serem caracterizadas (AGUIAR; BORLINI, 2005, p. 243).

5 A caulinita é um argilomineral de alumínio hidratado responsável pelo desenvolvimento da plasticidade em

mistura com água e ainda apresenta comportamento refratário de queima. 6 Estação de tratamento de esgoto existente no Vale do Mulembá.

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2007

As matérias-primas utilizadas na fabricação das panelas de barro são: as argilas

extraídas de jazida no Vale do Mulembá7 e as cascas de rizóphora mangle8, coletadas no

manguezal, com que é feita a tintura de tanino. A técnica cerâmica utilizada é caracterizada

pela modelagem manual, queima a céu aberto e aplicação da tintura de tanino, que produz a

cor escura das panelas de barro.

Embora se encontre nesses materiais motivos práticos para utilizá-los, o artista deixa

claro seu interesse em inserir em seu fazer artístico as referências locais, elegendo como a

matéria prima a argila do Vale do Mulembá, numa demonstração de bairrismo, amor e

respeito pelas coisas de sua terra. Mas nesse sentido, Irineu não para por aí, pois além dessa

matéria, também utiliza o mesmo processo de queima usado pelas paneleiras do Espírito

Santo, que por sua vez reproduz um processo herdado da cultura indígena tupi-guarani, e

repassado aos negros africanos que se incumbiram de manter viva a tradição.

Esse processo consiste em construir uma fogueira de lenha de acordo com a direção do

vento. As peças são forradas e cobertas por esta lenha. Quando as peças estão incandescentes, são

retiradas com uma vara de madeira comprida. Depois disso, cada uma delas passa pelo processo

de pintura similar ao das panelas de barro do Espírito Santo. As paneleiras batem nas peças com

uma muxinga, uma vassourinha/açoite feita com galhos finos da rizophora mangle. Essa

vassourinha é molhada no tanino, uma substância extraída da casca dessa mesma árvore.

Para a obtenção dessa substância utilizada na coloração e também na

impermeabilização das peças, é preciso deixar as cascas de molho na água e em poucos dias

elas soltam a tinta que pigmenta o líquido com uma tonalidade vinho escura, o qual em

contato com a peça quente se modifica tingindo-a de preto.

Sobre o porquê de também utilizar essas práticas, Irineu declara: “[...] modelo as

esculturas com as feições de negroide, e aquele negro que dá nas panelas eu pego emprestado

para a pele negra das mulheres”. Já a queima a céu aberto tem como principal motivação o

fato de ser ela uma técnica herdada da cultura indígena, sendo esta também a razão para

açoitar as peças no seu tingimento, além de não existir possibilidade de ser utilizado um

7 O Vale do Mulembá fica no bairro Joana D’arc, em Vitória, entre a Pedreira Rio Doce e o loteamento São

José. Possui formato em “U” alongado nas duas pontas, com largura variável de 100 a 180 metros e

comprimento de cerca de 700 metros. Disponível em: <http://www.morrodomoreno.com.br/materias/vale-do-

mulemba.html>. Acesso em: 18.11.14. 8 Mangue é o tipo de vegetação predominante nos manguezais. O Mangue-vermelho (rizóphora mangle),

também conhecido como sapateiro, é uma espécie típica de manguezal. O nome da árvore é assim dado, pois,

quando sua casca é raspada, apresenta uma coloração avermelhada típica da espécie. Disponível em:

<http://www.colmagno.com.br/Mostra/7_B.pdf>. Acesso em: 10.11.2014.

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pincel, pois pela temperatura alta necessária para a aplicação do tanino, seria impraticável o

uso desse instrumento. Ou seja, por trás desses objetivos prático e estético, estão também

outras razões mais nobres, como “[...] originalidade, ancestralidade, valorização de aspectos

da cultura, da brasilidade, da negritude. Todas essas coisas juntas” (RIBEIRO, 2014).

Com a inserção do processo similar ao das paneleiras, denominado Ofício das Paneleiras

de Goiabeiras, em seu trabalho, além do alcance de seu propósito quanto ao aspecto formal da sua

linguagem artística, Irineu Ribeiro também fomenta a demanda, a circulação e a permanência

desse bem imaterial, tendo declarado serem estas ações a mola propulsora e central de sua obra.

5. Ecologia e alteridade como substâncias

[...] porque eu gosto muito de modelar animais também. Eu sempre pego aqueles que estão em

extinção pra falar da preservação, sempre focando a questão dos valores culturais que nós temos

[...] para levar a uma reflexão.

Irineu Ribeiro

Para o artista, seu trabalho contém elementos característicos do manguezal, da

negritude e da atividade artesanal e ancestral das paneleiras, sendo esses temas os mais

recorrentes em sua produção artística, também por se complementarem e estabelecerem uma

relação estreita entre si: “Os temas são vários, referências à minha experiência de vida

enquanto ser percebedor e intérprete do mundo a minha volta” (RIBEIRO, 2000).

Um dos muitos exemplos do envolvimento do artista com as causas raciais pode ser

verificado no trabalho mostrado na figura 3, em que, por ocasião do Seminário Internacional

Universidade, Arte, Cultura e Desenvolvimento-UACD9, Irineu produziu esculturas de cada

uma das doze mulheres negras, paneleiras e congueiras do Espírito Santo, protagonistas do

filme, Cinema na panela de barro: mulheres negras, narrativas de amor e afeto. Esse filme

foi produto de pesquisa da tese de doutorado da professora Edileuza Penha de Souza, da

Faculdade de Educação (FE/UnB) e ministrante da disciplina Pensamento Negro

Contemporâneo. O filme dirigido por Edileuza, seguido de debate, foi a atividade de

encerramento da programação do referido evento.

9 O Seminário Internacional UACD foi uma realização do Decanato de Extensão (DEX), por meio da Casa da

Cultura da América Latina (CAL/DEX) e do Centro Cultural da Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG), com o apoio da Fundação Darcy Ribeiro e patrocínio da Fundação Palmares. Ocorreu no dia 17 de

dezembro de 2013, no memorial Darcy Ribeiro, no campus da UnB da Asa Norte, Brasília (DF). Disponível

em: <http://www.unb.br/administracao/decanatos/dex/noticias_dex_antigas.html>. Acesso em: 16 set. 2014.

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Figura 3 - Irineu Ribeiro, Paneleiras e congueiras do Espírito Santo, 2013,

modelagem, queima, tintura e coloração (Argila Mulembá tanino e engobe), tamanho

variados aproximadamente 25x18x15 cm. Coleção particular

Disponível em: <http://www.unb.br/administracao/decanatos/dex/noticias_dex_antigas.html>.

Desdobramento do tema racial, nas Paneleiras Irineu aborda a questão étnica focando

na herança cultural indígena, na manutenção dessa atividade pelos afrodescendentes, dentre

outros elementos característicos de nosso Estado, como o congo (Fot.1), a religiosidade

(Fig.4), a agricultura (Fig.5), o manguezal, dentre outros, num ecletismo de formas,

materialidades, dimensões e linguagens encontradas no montante de suas criações.

Fotografia 1 - Irineu Ribeiro, O tocador de

congo, 2012, modelagem, queima, tintura e

coloração (Argila Mulembá tanino e

engobe), 48x20x22cm. Acervo do artista.

Figura 4 - Irineu Ribeiro, Nossa Senhora

da Penha, 2013, modelagem, queima e

tintura, argila Mulembá, 86x32x28.

Coleção particular.

Disponível em: <https://www.facebook.com/pages/Irineu-Ribeiro-Artista-

Pl%C3%A1sticoCapixaba/179266052164076>. Acesso em: abr. 2014.

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2010

Figura 5 - Irineu Ribeiro, Café, 2005, modelagem, queima e tintura, (argila Mulembá,

tanino) Grão 10x8x6 cm Instalação 60x128x8 cm. Coleção Palácio do Café.

Disponível em: <http://www.cccv.org.br/fique-por-dentro/espaco-

cultural/galeria/barro_nosso/abertura/foto.php?foto=foto3.jpg>. Acesso em: out. 2014

6. Tanino e açoite: tradição cultural como poética

[...] a lealdade aos elementos da cultura tradicional já tomou sentido religioso.

Egon Shaden

Ao adotar o processo de trabalho das paneleiras, tomou por empréstimo esse fazer não

apenas por razões práticas, mas principalmente por motivos que as ultrapassam. Para o artista

isso não representou comodidade em não querer buscar solução para algum problema, mas sim

apropriar-se intencionalmente desses processos com o propósito de enaltecer, preservar

costumes, quase ritualísticos, de seus ancestrais. Dessa forma, numa espécie de totemismo,

ligou-se a esse processo centenário (Fotografias 2 e 3) como um símbolo de valor emocional.

Fotografia 2 - Queima de uma peça a céu

aberto

Fotografia 3 - Açoitada, com tintura de

tanino, a peça queimada anteriormente.

Fonte: Fotografia de Eder Freitas.

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2011

A descoberta do tanino é milenar. Referindo-se à vestimenta paleolítica, Miriam da

Costa Manso Moreira de Mendonça afirma que estas eram confeccionadas com peles que

precisavam se tornar mais maleáveis, e que isso era conseguido por meio da fricção de óleos

e pela constante maceração, até que, com a descoberta do tanino foi possível, ao homem

desse período, obter peles mais macias e também impermeáveis (MENDONÇA, 2010).

Nesse sentido, Irineu também não descartou a aplicabilidade prática do tanino, ao

afirmar ter associado a cor produzida por ele, e presente nas panelas de barro de Goiabeiras,

à cor negra do elemento africano representado em suas esculturas.

Considerações Finais

Na expressividade das suas esculturas de figuras humanas, Irineu Ribeiro realiza a

fusão de princípios arcaicos, realismo e naturalismo aproximando seu fazer artístico com

obras que vão desde artistas locais a outros de nível nacional e internacional, como o

capixaba Elpidio Malaquias, o cearense Efrain Almeida, o francês Auguste Rodin, as

americano-africanas Alison Saar e Karen Seneferu, com os quais dialoga em algum ponto.

Também foi possível verificar pontos importantes no que se referem às substâncias

temáticas: ampla gama de questões que refletem as condições da vida, da esfera íntima e da cidade

na qual se insere. São relações entre cultura, identidade e vida em geral, como a sustentabilidade

ambiental, o cotidiano, a transmissão de saberes tradicionais, o que faz com que suas obras estejam

sempre em constante interação com a comunidade como um todo (Fig. 6 e Fig. 7).

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2012

Figura 6 - Irineu Ribeiro - Pietá de

nossos dias, 2012, modelagem, queima e

tintura, (argila Mulembá) 56x30x28 cm.

Coleção particular

Disponível em:

<https://www.facebook.com/pages/Irineu-

Ribeiro-Artista-Pl%C3%A1stico-

Capixaba/179266052164076>.

Figura 7 - Irineu Ribeiro - Pescador com

peixes 1, 2013, modelagem, queima, tintura e

coloração (argila Mulembá, tanino engobe)

48x30x12cm. Acervo do artista.

Disponível em:

<https://www.facebook.com/media/set/?set=a.5

20766281347383.1073741826.1792660521640

76&type=1>. Acesso em: mar. 2014.

Apesar de se auto definir como realista, Irineu não se preocupa em se situar em

nenhum rótulo que aprisione sua criação artística, haja vista o ecletismo no montante de suas

criações. Nem mesmo cede às pressões por voos contemporâneos que venham impedir que

sua obra reflita sua essência, que transmita suas verdades. Tem autonomia, é senhor de sua

criação impingindo em seu trabalho, não apenas o realismo, o primitivismo ou Naif, mas

também o expressionismo, o idealismo... todos esses, conforme lhe dita a alma. Se é passado,

se torna presente por meio de memórias, suas e do coletivo, de lugares e de tempos, estes e

outros, que lhe intui para criações e produções no aqui e agora.

Assim, puderam ser confirmadas as expectativas iniciais dessa proposta que foi conhecer

melhor os elementos constitutivos da obra de Irineu, buscando justificativas para considerá-la de

valor dentro dos preceitos que regem os códigos, não somente da arte originária, como também

nos permite considerar sua inserção no contexto contemporâneo da arte.

Referências

AGUIAR, Mariane Costalonga de; BORLINI, Mônica Castoldi. Estudos de

Caracterização de Argilas do Vale do Mulembá visando contribuir para a

Sustentabilidade da Confecção de Panelas de Barro do Espírito Santo. In: Jornada de

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2013

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2014

REIS DE BOI: PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES

Fabiane Vasconcelos Salume Zimerer Mestranda do PPGA da UFES. E-mail: [email protected].

Ana Rita Vitor de Assis Zordan

Graduada em Artes Visuais pela UFES. E-mail: [email protected].

Resumo: O Reis de Boi é uma expressão da cultura popular capixaba presente no norte do Espírito

Santo. Atualmente a quantidade de grupos em atividade está diminuindo a cada ano. A falta de

interesse dos mais novos, a intolerância religiosa e a ineficácia na transmissão dos saberes são apenas

alguns dos problemas apontados pelos mestres nas entrevistas durante a pesquisa de campo. A

preocupação com a extinção dessa prática cultural devido a esses e outros fatores permeia o discurso

de todos os mestres entrevistados. Nossa pesquisa busca identificar as permanências e

transformações ocorridas nessa prática cultural e os fatores responsáveis por esse processo, para

tentar entender que lugar ocupa essa e outras práticas culturais populares nesse mundo atual,

dominado pela cultura de massa.

Palavras-chave: Reis de Boi; memória; cultura popular capixaba.

Abstract: The “Reis de boi” is an expression of capixaba popular culture present in the northern region

of the state of Espírito Santo. Currently, the number of groups at work is decreasing every year. The lack

of interest from the younger generations, religious intolerance and ineffectiveness in the transmission of

knowledge on this ritual are just some of the problems highlighted by the masters during fieldwork

interviews. The concern about the extinction of this cultural practice, due to the aforementioned motives

and other factors, permeates the discourse of all the masters who were interviewed. Our research seeks to

identify the continuities and transformations which occurred within the “Reis de Boi” rites and the

elements that were responsible for this process, in order to understand what position these and others

cultural practices occupy in the current world, dominated by mass culture.

Keywords: Reis de Boi; memory; capixaba popular culture.

Introdução

São Mateus, cidade localizada ao norte do Espírito santo, possui um Patrimônio

Cultural material e imaterial de grande relevância. Entre os bens imateriais encontram-se

práticas culturais que em sua maioria são ligadas à religiosidade de seu povo, seja esta

católica, trazida pelos portugueses, ou de religiões praticadas pelos outros elementos

constituintes da formação racial do povo de São Mateus, como índios e negros. Várias dessas

práticas já foram extintas, restando apenas o Jongo e o Reis de Boi.

Apesar de ser uma das poucas expressões culturais remanescentes na região de São

Mateus e de possuir características bem peculiares que a tornam singular no Brasil, o Reis

de Boi é pouco reconhecido pela sociedade local em geral, ficando mais restrito à periferia

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2015

e às comunidades rurais, tendo na Festa de Santos Reis, que acontece todos os anos no bairro

Pedra D’água, o momento de maior abrangência e visibilidade. Essa festa também é o ponto

de partida das apresentações, que acontecem no período de seis de janeiro, dia de Santos

Reis e se estende até três de fevereiro, dia de São Brás.

Essa pesquisa buscou mapear os grupos de Reis de Boi em atividade em São Mateus,

delinear o perfil dos seus componentes, encontrar antigos mestres ainda vivos para

entrevistá-los, entender os processos de manutenção e renovação ocorridos nessa prática

cultural. Em nossas idas a campo durante o processo de pesquisa, nas entrevistas com os

mestres, percebemos uma enorme preocupação com a sobrevivência do Reis de Boi, uma

vez que na região várias expressões da cultura popular já foram extintas. De fato, ao levantar

dados sobre a festa de Santos Reis, constatamos um número cada vez menor de grupos que

se apresentam, ano após ano. Vários foram os motivos apontados pelos mestres para essa

preocupação, entretanto, percebemos que é quase unânime a esperança depositada nos mais

novos, geralmente membros da família, de perpetuação dessa prática cultural, considerada

por eles “tradição de família” e, portanto, deixada como herança aos mais jovens. “A tradição

é a força que dá unidade às gerações, mantendo o grupo vivo no curso do tempo, fazendo

com que a sociedade perpetue-se” (ROCHA, 2004, p. 15).

Observa-se então que a garantia da preservação, para os mestres, está na transmissão

dos valores, de geração a geração. Segundo Joel Candau: “A eficácia da transmissão, quer

dizer, a reprodução de uma visão de mundo, de um princípio de ordem, de modos de

inteligibilidade da vida social, supõe a existência de “produtores autorizados” da memória a

transmitir: família, ancestrais, chefe, mestre, preceptor, clero etc.” (CANDAU, 2011, p.

124). Apesar dessa esperança, identificamos certa incerteza de que esses jovens de hoje

possam garantir a permanência desses rituais no futuro. Os mestres, ao falarem dos jovens

de hoje, estão também se referindo ao mundo de hoje e expressando sua preocupação com o

espaço reservado para a cultura popular nesse mundo.

Com o mapeamento constatamos um número cada vez menor de grupos em atividade,

segundo os mestres entrevistados, que relataram um quantitativo de vinte e dois grupos só

em São Mateus há poucos anos atrás. Atualmente, encontram-se ativos cerca de quatorze

grupos, sendo nove grupos em São Mateus e cinco em Conceição da Barra.1 Esse número

1 Os grupos identificados em São Mateus: Reis de boi dos Barros, Reis de boi de Luiz Laudêncio, Reis de boi de

Antônio Galdino, Reis de Boi de Benedito Machado, Reis de boi de Valentim, Reis de boi de Benedito Assis, Reis

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pode variar de um ano para o outro, pois às vezes um grupo não sai num ano por algum

problema interno, mas levamos em consideração os grupos que se apresentaram com certa

frequência, nos últimos cinco anos.

1. Reis de Boi

O Reis de Boi é uma prática cultural popular bastante peculiar que incorpora em seu

ritual duas partes distintas: “Uma a semelhança das Folias de Reis, faz o pedido de abrição

de portas, louvações sagradas e saudações aos moradores; outra lúdica e dramática, com

apresentação de entremeios como um Bumba-meu-boi” (PASSARELLI, 2006). Essas

semelhanças, apontadas por Passarelli, fazem com que muitos se refiram ao Reis de Boi

como Folia de Reis, porém basta assistirmos a uma única apresentação para entendermos as

diferenças2. Neves (2008) relaciona o Reis de Boi com o auto do Bumba meu boi:

O Reis de boi que vimos ali representado assemelha-se aos Bumbas-meu-

Boi do norte e do nordeste. Claramente se verifica que a Catirina deve ser

a mesma Tia Catarina do Bumba baiano e a Mãe Catarina do Bumba do

Maranhão. Mas o ponto de referência mais estreito está no Boi – figura

central nos dois autos populares. Como nos Bumbas-meu-Boi, o animal do

Reis de boi entra em cena, dança, cabrioleia, dá marradas e, lá pras tantas

morre. [...]. Num e noutro folguedo, o Boi ressuscita, e torna a dançar e a

dar marradas nas figuras e nos assistentes (pp. 102-103).

As semelhanças são muitas, mas há diferenças importantes que não nos permitem

dizer que o Reis de Boi seja apenas uma nomenclatura dada, no Espírito Santo, ao Bumba-

meu-Boi. Neste ponto, é importante frisar que segundo Passarelli (2006), ao contrário de

tantas outras manifestações que recebem diferentes nomenclaturas em diferentes regiões do

país, o Reis de Boi não possui sinonímia, ou seja, não existe outra denominação para esta

manifestação em nenhuma parte do Brasil.

de boi Mirim de Pedra D’água, Reis de boi do Paixão. Em Conceição da Barra: Reis de boi de Mestre Nilo, Reis de

boi de Mestre Nenem, Reis de boi das Barreiras, Reis de boi de Antonio Conceição e Reis de boi de Tião de Véio. 2 O período de apresentação da Folia de Reis ocorre de 24 de dezembro a 6 de Janeiro, o do Reis de Boi começa

6 de janeiro e vai até 3 de fevereiro. Outra diferença é que o Reis de boi tem a ‘brincadeira do boi’ que embora

o vaqueiro também use máscara, não tem relação nenhuma com a significação do palhaço da Folia. Além das

diferenças nos instrumentos, vestimentas e no próprio ritual.

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2. Os grupos

Os grupos trazem consigo a tradição do Reis de boi, transmitida de geração em

geração, através da oralidade e da prática.

A minha história vem do meu bisavô. Do meu bisavô passou pro meu avô,

do meu avô passou pra meu tio, essa...festa de Reis-de-boi, né, passou pro

meu tio, do meu tio aí passou pra mim (Benedito Machado).

Dos avôs, de pai pra filho, de filho pra neto já, que eu já tenho neto já, já

brincando (José Antonio dos Santos conhecido por Zeca Laudêncio).

Esta transmissão de conhecimento e de prática começa geralmente quando ainda são

crianças, que vão crescendo dentro do grupo e aprendendo com os mais velhos até se tornar

adulto e assumir a condição de Mestre.

Até meu avô eu acumpanhei, eu vim acumpanhando, despois meu bisavô

já num acumpanhei, mas tinha a mesmas histórias, eles contavam a mesma

história, era do mesmo jeito. Então quando chegou no meu tio, aí que eu

cumpanhei o meu tio, então, hoje eu tenho 60 anos de cumpanhamento de

Reis-de-boi. [...] quando eu cumecei acumpanhá meu tio eu tava com 12

anos [...] (Benedito Machado).

Eu tava com doze ano quando cumeço, [...] nos somos em cinco irmão, só

que os outro se afastaram, um bucado já morreu e aí num tem mais. Aí

ficou eu mais meu pai e fomos cumeçando, os outro acabando (se referindo

a outros grupos) e eu fiquei, tô com 73 anos agora, entendeu [...] Quer

dizêr, tô com 73, com 12 eu tô com 61, 61 anos que eu luto com esse grupo

de folclore (Zeca Laudêncio).

Os participantes dos grupos em sua maioria são pessoas de uma mesma família: avôs

e avós, pai, mãe, filhos (as), netos (as), sobrinhos (as), noras e genros entre outros, que no

nosso entendimento, é fator primordial e determinante para a perpetuação do Reis de Boi.

Todos participam ativamente, contribuindo de diferentes maneiras. Existem aqueles que

atuam diretamente e aqueles que dão suporte exercendo atividades como: a confecção e

conserto do uniforme, a produção ou reforma dos chapéus, a organização da festa de

encerramento, entre outras. “[...] e no preparativo de chapéu, eu que enfeito o chapéu, né,

boto as flor, as fita, a ropa, a gente enfeita a ropa, né, do Pai Francisco, [...]” (Dona Mateolina

Cruz Machado, esposa de seu Benedito Machado).

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A quantidade de participantes por grupo pode variar entre 14 e 30 integrantes. Além

do Mestre, outros personagens que compõem o grupo são: O Violeiro, o Sanfoneiro, os

Marujos, o Vaqueiro, o Boi, a Catirina e os Bichos.

Grupo de Reis de boi dos Laudêncios 2, a ‘brincadeira do boi’ - 2014

Fotografia: Fabiane Salume.

O Sanfoneiro e o Violeiro são os responsáveis pela harmonia das músicas.

Posicionam-se um de frente para o outro, em par, no início das filas. O sanfoneiro e o violeiro

têm que estar afinados um com o outro. Todos os mestres nos relataram a importância da

afinação e do “casamento sonoro” entre estes dois instrumentos. O som dos dois é como o

som das vozes dos Marujos, que devem se equilibrar num encontro entre vozes mais graves

e mais agudas, as quais eles chamam de primeira e segunda voz. São eles também que fazem

as “evoluções”, sendo seguidos por todos os marujos. Há de se ressaltar a importância dos

músicos como personagens indispensáveis para a existência e prática do Reis de boi. A

ausência de um dos músicos já é suficiente para que o Reis não se apresente. “Se não tiver o

sanfoneiro, não tem Reis” (Sr. Jose Luiz Barros).

Durante nossas entrevistas, todos os grupos deixaram registrados a sua preocupação

com a formação de novos “tocadores”, principalmente de sanfona de oito baixos. A escassez

de sanfoneiros leva um mesmo sanfoneiro a tocar para diferentes grupos.

Os Marujos tocam os instrumentos de percussão e cantam as marchas, ocupando

funções de guia, “contra guia” e coro. Depois do par formado pelo sanfoneiro e pelo violeiro,

vem o par de guias, seguido pelo par de “contra guias” e por fim, seguido do restante dos

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2019

marujos, sempre aos pares. São os guias que puxam a marcha, geralmente os dois primeiros

versos de uma quadra, respondidos pelos “contra guias”. Os pares seguintes formam o coro

que repetem os “contra guias”.

O Vaqueiro é personagem da “brincadeira do boi”. Este personagem misterioso se

esconde atrás de uma máscara e durante a brincadeira é ele quem conduz a venda, a morte e

a ressurreição do boi. Nesse ponto é bom ressaltar que muitos mestres nos relataram que

atualmente muitos vaqueiros não fazem mais a repartição do boi como acontecia

antigamente, segundo eles porque muitos vaqueiros não sabem mais rimar e improvisar,

habilidade imprescindível para o bom desempenho do personagem. Segundo Aguiar (2005,

p. 103), antigamente, acontecia assim:

Dentre os personagens, o Pai-Francisco [sic], também conhecido como

vaqueiro, ocupa lugar de destaque na preferência do povo que acompanha

com entusiasmo as apresentações do Reis-de-Boi, onde ele vira atração da

festa, aproveitando a ocasião para “vender o boi” para o dono da casa,

sapateando ao som da melodia contagiante, falando em versos hilários e

provocativos e, principalmente, “repartindo o boi” – oferecendo-o aos

“fregueses”, sempre cobrando pelo seu “serviço” e satirizando os

acontecimentos de desagrado da comunidade.

A repartição do boi, citada acima, acontecia quando o dono da casa não queria mais

comprar o boi que estava morto, o vaqueiro então, vendia as partes separadas e cantava em

versos como descrito abaixo por Aguiar (2005, p. 116):

Escrevi uma carta,

cobrei de Joaquim,

me manda o dinheiro

Escrevi uma carta

do peso do fucim...

para Seu Antônio Pife,

Escrevi uma carta,

me manda o dinheiro

cobrei do Teorfe,

do peso do bife...

me manda o dinhêro

do peso do bofe...

E assim continuava rimando até que todas as partes do boi fossem vendidas. Era

enorme a quantidade de versos, todos guardados na memória e inclusive alguns improvisados

na hora, com os nomes de algumas pessoas presentes. Essa habilidade de improvisar foi

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apontada como uma das causas, do desaparecimento da “repartição‟ do boi. Sr. Paixão3, nos

diz “[...] antigamente eles faziam isso, hoje quase ninguém faz, porque muitas das vezes nem

sabe reparti um boi mais. Tem muitos vaqueiros que não sabe”. Também sobre essa

dificuldade, Sr. Benedito Machado nos relata: “Mais num é todos Pai-Francisco que sabe fazê

essa não, precisa ser um Pai-Francisco muito sabido, que sabe fazê isso”.

A Catirina, personagem que é encontrado em quase todos os folguedos do boi e faz

o contraponto cômico, é a esposa do vaqueiro, sendo sempre representada por um homem

vestido de mulher. Também aparece de máscara, quando entra em cena, diverte a todos

tirando os homens pra dançar, causando ciúmes no vaqueiro que exige o dinheiro de quem

dança com ela. “Cada pessoa que ela arrasta pra dançar, ela faz uma cobrança, aí a pessoa

dá aquilo que tem [...] todos que dançar com ela tem que dá alguma coisa, uns paga dois

reais, uns paga cinco, outros paga dez reais” (Sr. José Luiz Barros)4.

O Boi é o personagem principal da “brincadeira”. Aparece sempre acompanhado do

Cachorro e do Vaqueiro. É constituído por uma cabeça confeccionada em papel machê,

pintada e adornada e no lugar do corpo, coloca-se um tecido preso à cabeça, que esconde o

brincante na hora da apresentação. Embora traga em si um aspecto brincalhão e profano dentro

da manifestação, é importante relembrar que o boi se relaciona com o momento sagrado do

nascimento do menino Jesus, que segundo as Escrituras Sagradas, nasce em um estábulo

cercado por animais, inclusive o boi. Esta relação nos foi descrita pelo Sr. Benedito Machado:

Quando Jesus nasceu ele nasceu numa manjedôra, e você entende o que é

uma manjedôra hoje? [...] é um curral que hoje tem e nesse curral tinha um

cocho [...] e ali, Nossa Senhora ficou iscundida e ganhou esse menino. [...]

então foi aonde nasceu o Reis de boi, por isso que eles botaram o boi,

botaram a loba que é a égua e botaram o cachorro que tava chegando na hora

e ficaram “aquentando” (esquentando, aquecendo) Jesus na quentura ali.

Os Bichos variam em quantidades e tipos, de acordo com o grupo. Além de animais,

há também a presença de seres fantásticos, do imaginário popular. A entrada dos bichos é

revestida de grande euforia, um misto de curiosidade e medo toma conta de todos que

acompanham a apresentação, principalmente as crianças. Os bichos investem contra as

pessoas assustando e divertindo os presentes. Não existe um quantitativo de bichos pré-

3 Mestre do Reis de boi do Paixão. 4 Mestre do Reis de boi dos Barros.

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determinado, variando de acordo com o grupo, porém, de acordo com seu Valentim Pereira5,

“quanto mais Bicho melhor é o Reis”.

3. Os instrumentos musicais

Os instrumentos utilizados são o violão, a sanfona de 8 baixos e os pandeiros. Porém,

pode haver variações como no caso do Reis de boi dos Laudêncios, onde encontramos o

afoxé, o reco-reco e o tamborim. Os pandeiros são responsáveis pelo ritmo das marchas. A

batida dos pandeiros é basicamente dividida em três tipos: o tempo forte marcado por uma

batida com o polegar, uma base que varia segundo a marcha e a batida final com um repique.

A sanfona e o violão são responsáveis pela harmonia da música, por isso, ser de boa

qualidade é fundamental. Segundo o Sr. Paixão, não é qualquer sanfona que dá conta de

acompanhar o Reis, tem que ser de oito baixos e ter boa sonoridade. Antigamente os

instrumentos eram produzidos artesanalmente. Sobre a feitura dos pandeiros, Sr. Benedito

Machado assim nos relata: “[...] e aí fizeram o pandêro, num era esse pandêro de tarracha,

foram no mato tiraram uma madêra, fizeram a ripa, o alco (arco) do pandêro, pegaram o coro

do boi fininho, fizeram o pandêro”.

4. As marchas

Santos Reis estão me chamando

pra com eles passeá

onde eles estiver

eu também vou estar6.

As Marchas, assim como os demais elementos compositivos e participativos do Reis

de boi, ocupa seu lugar de destaque com uma variedade de ritmos, letras e melodias que

animam e dão sentido a cada momento vivido e representado nesta manifestação.

A composição das Marchas geralmente é feita pelos mestres ou por integrantes do

grupo, e muitas vezes de forma coletiva, feita na hora dos ensaios, ou ‘tirada’ antes e

melhorada na hora para adaptar ao violão e à sanfona, “pra ficar tudo encaixadinho”.

Segundo Sr Antonio Galdino “[...] Cada um tira e vai juntando né [...] A gente ensaia e vê:

5 Mestre do Reis de boi do Valentim. 6 Trecho do ‘Som de Reis’ citado pelo Sr. Paixão.

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essa tá boa?”. Assim também nos relata Sr. Valentim: “É, porque é o seguinte, chega lá

talvez a gente tá cantando uma marcha, num pega na sanfona e no violão, o cara tem outra

melhor, bota ela, num tem problema não”.

Seu quantitativo é variável. Alguns Mestres falaram em 12, 16 e houve quem nos

relatasse até 25 marchas ao todo. Esta variação ocorre dependendo do lugar onde o Reis se

apresenta. “Quando a gente apresenta numa casa, numa comunidade, que já chega ali no

horário certo, então a gente apresenta as musicas todas. Quando a gente chega lá nos Santos

Reis (referindo-se a Festa de Santos Reis) então, porque é muito Reis que vai pra lá, então,

são marcada (contadas) as musicas” (Sr. Benedito Machado).

Apesar da flexibilidade no quantitativo de marchas, existem aquelas que estão sempre

presentes, são obrigatórias e apresentadas seguindo uma ordem, são elas: O Som de Reis (Reis

da Porta), o Descante, a Marcha de Entrada, a Marcha de Ombro, o Baiá, a Marcha do

Vaqueiro, a Marcha do Boi, a Marcha dos Bichos, a Marcha de Despedida e a Marcha da

Retirada. Cada marcha possui suas características e seu momento de apresentação.

Vale ressaltar dois fatos curiosos: o primeiro é a ausência de registro escrito das letras das

Marchas, delegando ao Mestre e aos guias a responsabilidade do ensinamento, que é feito de forma

oral e repetitiva nos ensaios, até que todos memorizem. O segundo é que as Marchas são sempre

inéditas, ou seja, todos os anos novas marchas são escritas. Esta singularidade faz com que os

temas utilizados na escrita das letras das marchas, abordem, além das temáticas religiosas, clássicas

e habituais, também, atualidades de cunho político, social e econômico. É a tradição permitindo-

se mesclar e interagir com o meio circundante, confirmando o dinamismo da cultura.

Eu fui lá em Brasília

Visitei Sarney nosso Presidente

A promessa que ele fez

Ele não cumpriu e enganô muita gente

5. O ritual

O ponto de partida para o início das apresentações é a Festa de Santos Reis, que

acontece na comunidade de mesmo nome situada no bairro Pedra D’água, um dos mais

antigos de São Mateus. Essa festa acontece tradicionalmente todos os anos no dia 6 de

janeiro, dia de Santos Reis, ou no sábado mais próximo a esta data. As festividades têm

início com uma procissão em devoção aos Santos Reis, saindo da igreja e percorrendo um

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pequeno trecho até às margens do Rio Cricaré. Todos os grupos de Reis que irão se

apresentar participam da procissão, juntamente com a comunidade e com várias pessoas que

vem para prestigiar, inclusive turistas. À beira do rio é feita uma oração pelo Pároco presente

e depois todos retornam à praça em frente à igreja para uma missa campal.

As apresentações de Reis de boi, na festa, acontecem em dois momentos: o sagrado,

dentro da igreja e o profano, fora, na praça em frente à mesma, onde acontece a “brincadeira”

do boi. Após o primeiro grupo se apresentar na igreja, este vai para a rua apresentar a segunda

parte, que é a do boi. Enquanto isso o segundo grupo, apresenta a primeira parte na igrejinha

e assim sucessivamente, até que todos os grupos tenham se apresentado dentro e fora da

igreja. Os grupos que não estão se apresentando prestigiam a apresentação dos demais.

A apresentação do grupo começa na porta de igreja, que fica fechada e se mantém

assim até terminar o pedido de “abrição” de portas. O grupo se posiciona formando duas

filas, começando pelo Sanfoneiro e o Violeiro, seguido pelos guias, contra guias e o restante

dos Marujos, sempre aos pares. As Marchas cantadas na porta são: O Som do Reis e o

Descante, ambas cantadas apenas pelo guia e “contra guia”. Aqui notamos uma mudança no

modo de apresentação. Segundo Sr. Antônio Nascimento7, além dele, os grupos de Reis de

boi que ele conhece, não cantam mais os 25 versos do Som de Reis. Ele diz que muitos nem

sabem mais os versos, que ele garante, aprendeu com o pai e são versos que narram o

nascimento do menino Jesus e a visita dos três Reis Magos. Realmente observamos que os

outros grupos não mantém essa tradição, somente o Reis de boi de Mestre Nilo ainda canta

o Som de reis ou Reis de porta integralmente.

Aberta a porta, o Reis entra cantando a Marcha de Entrada, que é o pedido de licença,

a saudação. Os grupos ajoelham-se diante da imagem dos Santos Reis, guiados pelo Violeiro

e o Sanfoneiro. Dentro da Igreja, os grupos de uma forma geral, apresentam outras duas ou

três marchas e se retiram. Neste ponto termina a parte sagrada da manifestação com a

participação apenas dos músicos e dos Marujos.

Do lado de fora da Igreja começa a “brincadeira do boi”, aos músicos e marujos juntam-

se os demais personagens. Após a Festa, os grupos se apresentam em locais onde são convidados,

no período de seis de janeiro até três de fevereiro, dia de São Brás. Sobre estas apresentações,

mais transformações, alguns Mestres nos relatam que antigamente brincavam de Reis por três

dias e três noites seguidas pra cada santo: Santos Reis, São Benedito e São Brás.

7 Mestre de Reis de boi da comunidade são Cristóvão.

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[...] saía todo mundo a pé [...] era quatro noite rolado, saía do dia três ao dia seis,

então num vinha em casa não [...], você saía dia 3 e chegava dia 7 em casa [...]

aí pegava dia 18 e chegava dia 21 em casa também, então onde você cantava,

por ali você dormia, amanhecia e ia pra outro lugar [...] (Sr José Luiz Barros).

Quem convida não paga nada, a não ser que ofereça uma ajuda para a locomoção do

grupo, mas a tradição é a de oferecer um jantar ou um lanche caprichado para todos os

integrantes do grupo e os que com eles forem. O transporte do Grupo é particular e feito com

recursos próprios. A despesa é dividida igualmente entre os membros do grupo, que apesar

dos custos, fazem o possível e o impossível para festejar e brincar o Reis. No dia 03 de

fevereiro, dia de São Brás, ou no sábado mais próximo desta data, acontece a festa de

encerramento organizada por cada grupo isoladamente ou em grupo como no caso do Reis

do Valentim e dos Barros. De acordo com a tradição é neste dia que acontece a “bendição

das gargantas” que segundo os brincantes “é prá gente podê cantá ano que vem”.

6. Permanências e transformações

Como podemos perceber várias mudanças ocorreram no ritual do Reis de boi ao

longo desses anos. Sabemos que a cultura é dinâmica e não temos uma visão purista a

respeito dessas transformações. O que nos interessa nessa pesquisa é entender quais foram

essas mudanças, como elas ocorreram, por quais motivações. Também nos interessa saber

de que forma essas mudanças são sentidas e entendidas dentro do grupo, por seus

participantes, a visão dos mais velhos e a dos mais jovens. Por outro lado, o que permaneceu,

quais os fatores influenciaram ou não essas transformações ou permanências.

Mais do que as mudanças no ritual, apontadas anteriormente – mudanças nas

vestimentas, modos de fazer instrumentos, de cantar o Reis, de partir o boi – desejamos

entender as mudanças nas relações sociais no interior dos grupos. Quem são as pessoas que

hoje mantêm essa tradição? Quais fatores foram responsáveis pela manutenção dessa prática

cultural até os dias de hoje? Como era esse tempo passado onde essas práticas culturais

ocupavam um espaço central na vida da comunidade? Quais medidas são necessárias para a

salvaguarda dessa expressão da cultura popular? Qual o perfil dos sujeitos aos quais caberá

a missão de perpetuar essa tradição? Quais os processos de transformação a cidade, a

comunidade e as pessoas sofreram em seus modos de pensar, de agir, em suas relações com

a religiosidade, com a família, enfim com o mundo?

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Acreditamos que ao tentar responder essas perguntas nos propomos um entendimento

dessa prática cultural de uma maneira mais profunda, que busca descobrir qual o lugar, na

atualidade, reservado às culturas populares? Como essas práticas culturais se relacionam com a

contemporaneidade e da cultura de com o mundo tão influenciado pela cultura de massa. Será

que essas transformações que ocorreram no Reis de boi são fruto dessas relações? São muitas

perguntas que ainda precisam ser respondidas. Porém esperamos que, ao dar voz àqueles que

mantiveram viva essa prática cultural até os dias de hoje, essa pesquisa possa contribuir para o

reconhecimento e a manutenção dessa belíssima manifestação da cultura popular.

Referências

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo:

Contexto, 2011.

PASSARELLI, Ulisses. Reisados Brasileiros: tipologia. 2003. Disponível em:

<http://www.docstoc.com/docs/105294613/TIPOLOGIA-DOS-REISADOS-

BRASILEIROS>. Acesso em: 25.04.2013.

ROCHA, Henrique. Refletindo os conceitos de Folclore, Cultura Popular e Tradição.

In: MARTINS, Clerton (Org.). Antropologia das Coisas do Povo. São Paulo: Roca, 2004.

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MEMÓRIAS EM FORMA DE CANÇÃO: A VELHA GUARDA DA PORTELA E A

TRANSMISSÃO DE SABERES EM OSWALDO CRUZ

Fábio Oliveira Pavão Fundação CECIERJ / SEEDUC-RJ

Resumo: Em Oswaldo Cruz, zona norte do Rio de Janeiro, as narrativas hegemônicas no campo das

representações sobre o bairro remetem a um passado idealizado que vincula o samba, especialmente a

formação do G.R.E.S. Portela, ao processo de formação da própria localidade. Isso confere,

primeiramente, uma identidade peculiar, capaz de distinguir Oswaldo Cruz dos demais subúrbios que

estão ao seu redor. Também confere vantagens e prestígio para os sambistas, que podem, por exemplo,

gerenciar suas particularidades culturais como um recurso, conseguindo benefícios junto ao poder

público. Todavia, na complexa realidade de nossos dias, os jovens, como em qualquer grande cidade,

mesmo em suas áreas periféricas, encontram práticas culturais mais atrativas, fazendo surgir novas

narrativas sobre o bairro. Diante do bombardeio de informações do mundo globalizado e das novas

tecnologias, o grande desafio que se coloca em Oswaldo Cruz, assim como em outras comunidades

historicamente vinculadas ao samba, é promover a transmissão dos saberes. Neste contexto, a velha

guarda da Portela, formada por senhores com uma história de vida dedicada ao samba, tem lugar de

destaque. Nos relatos do passado, muitas vezes em forma de belas canções, gerações se encontram para

exaltar a memória, estabelecendo um diálogo entre o presente e o passado.

Palavras-chave: memória; sociabilidade; cultura popular.

Abstract: In the district of Oswaldo Cruz, in Rio de Janeiro, the hegemonic narratives of the locality

representations idealize a past that attaches the history of samba, especially the foundation of the GRES

Portela, to the process of the formation of its own locality. This raises, primarily, a peculiar identity that

distinguishes Oswaldo Cruz from the others neighborhoods around. It also gives advantages and prestige

to the “sambistas” (samba musicians), which can, for example, manage their cultural particularities as a

resource, obtaining benefits with the government. However, in the complex reality of our days, young

people, as in any big city, even in its peripheral areas, find more attractive cultural practices, giving rise

to new narratives about the neighborhood. Considering the bombardment of the information in a

globalized world and new technologies, the great challenge faced by Oswaldo Cruz, as well as in other

communities historically connected to samba, is to promote the transmission of knowledge. In this

context, Portela’s old school, formed by gentlemen with a history of life dedicated to the samba, is very

important. In past’s accounts, often in the form of beautiful songs, different generations come together to

exalt the memory, establishing a dialogue between the present and past.

Keywords: memory; sociability; popular culture.

1. O bairro e seus mitos

Distante cerca de vinte quilômetros do centro da cidade, o subúrbio de Oswaldo Cruz é

parte da 15ª Região Administrativa do Rio de Janeiro, também conhecida como “Grande

Madureira”. A história deste bairro, assim como de seus vizinhos, está diretamente associada à

construção de novas estações na Estrada de Ferro Central do Brasil. No final do século XIX,

mais precisamente em 1898, é inaugurada a estação Rio das Pedras, localizada no vale do rio

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com o mesmo nome. Ao longo das primeiras décadas do século XX, milhares de imigrantes,

proveniente das áreas centrais do Rio de Janeiro, fugindo das transformações urbanas impostas

pelo poder público, desembarcaram nesta estação. Em 1917, em homenagem ao famoso

sanitarista morto naquele ano, ela seria rebatizada com a sua denominação atual.

Além destes imigrantes, outro contingente populacional chegava à região

proveniente das zonas rurais do Sudeste. Esta mistura entre elementos rurais e urbanos,

formando um verdadeiro caldeirão cultural suburbano, vai distinguir Oswaldo Cruz, e a

“Grande Madureira” de uma forma geral, de outras áreas da cidade. As terras que hoje

formam este pedaço do subúrbio carioca pertenciam a Fazenda de Campinho, que dominava

a região, e ao Engenho do Portela, propriedade de Miguel Gonçalves Portela. Após o

loteamento das terras do velho engenho, o topônimo Portela sobreviveu na principal via que

ligava o bairro a Madureira, a Estrada do Portela (VARGENS e MONTE, 2001, p. 25). É no

entorno desta estrada que os imigrantes, com suas múltiplas origens, vão se estabelecer.

Entre os jovens que chegaram ao bairro nas primeiras décadas do século XX está Paulo

Benjamim de Oliveira, mais conhecido como Paulo da Portela. Nascido na Saúde, Zona

Portuária do Rio de Janeiro, próximo ao centro da cidade, ele foi a principal liderança

comunitária do bairro, lutando pela dignidade dos sambistas e pela aceitação de sua prática

cultural pela sociedade, atuação que fez Silva e Santos, suas biógrafas, definirem-no como

“traço de união entre duas culturas” (SILVA e SANTOS, 1980). Juntamente com Antônio

Caetano, desenhista da marinha mercante que vivia em Quintino Bocaiúva, e Antônio Rufino,

natural do interior de Minas Gerais, integrou o triunvirato que fundou e administrou a Portela

em seus primeiros anos. Os três, com origens e experiências de vida distintas, personificam a

própria heterogeneidade da população suburbana naquele período, além da riqueza cultural

que esta mescla entre o rural e o urbano era capaz de produzir. Paulo da Portela faleceu em

1949, aos 48 anos, mas seus ensinamentos se perpetuaram através dos anos, lembrados e

servindo de referência até os nossos dias. Antônio Caetano e Antônio Rufino faleceram no

início da década de 1980, mas a Portela, legado principal da união dos três ainda na juventude,

permanece pujante para a cultura popular, conhecida no Brasil e no exterior.

Segundo Silva e Santos, em 1923, ano de fundação da Portela, Oswaldo Cruz era

conhecido como a “roça”. A descrição do local inclui elementos tipicamente rurais, como a

existência de currais em toda parte, a inexistência de serviços públicos, como falta de

calçamento, luz e água encanada, além de dificuldades como a existência de valões nas vias

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públicas (SILVA e SANTOS, 1980, p. 39). Com efeito, para as narrativas que hoje destacam

o feito dos sambistas no passado, estas adversidades teriam sido superadas pela força da

coesão social, virtude que também explicaria o sucesso de sua escola de samba. Assim, a

formação de Oswaldo Cruz e da Portela se une como elemento central da narrativa, de forma

que a história do bairro se confunde com a do samba na região. Neste contexto, naturalmente,

os sambistas possuem posição privilegiada nas representações sobre Oswaldo Cruz. Estamos

diante do que, em outra oportunidade, definimos como “mito de fundação da Portela”, que

destaca a saga de pessoas diferentes, de origens distintas, que, com a força da coesão social,

seguindo o exemplo de mestres como Paulo da Portela, superaram as adversidades

encontradas em um subúrbio em formação e construíram uma instituição reconhecida

internacionalmente. Uma instituição que, ao longo das décadas, ajudou a gravar alguns dos

estereótipos que definem a própria noção de “brasilidade” (PAVÃO, 2010, p. 305).

Ao longo dos anos, este mito foi ratificado pela ascensão da Portela, que, após

conquistar seu primeiro triunfo no carnaval de 1935, tornou-se, nas décadas seguintes, a

escola de samba mais vitoriosa do Rio Janeiro. Os símbolos criados pelos fundadores, como

as cores azul-e-branca e a águia, idealizadas por Antônio Caetano, passaram a representar o

próprio bairro. O sucesso dos sambistas do bairro, que deixaram sua marca na música

brasileira, sendo gravados por alguns de nossos principais intérpretes, também evidencia a

importância da cultura do samba para a região. Todavia, alguns fatores contribuíram para o

surgimento de novas narrativas que, na prática, põe em risco a hegemonia do samba no

campo das representações sobre o bairro. Podemos citar três específicos.

Em primeiro, o afastamento entre a Portela e seu núcleo comunitário original. Este é um

processo que, longe de estar restrito à agremiação de Oswaldo Cruz, caracteriza as escolas de

samba de uma forma geral. Ele está diretamente associado à participação de novos grupos sociais

nas agremiações carnavalescas, promovendo significativas alterações estéticas, rituais e estruturais

que, como consequência, encarece o espetáculo e afasta a população de baixa renda. Isso ocorre a

partir das décadas de 1960 e 1970, e, apesar de ser um processo que afeta o carnaval de uma forma

abrangente, tem na Portela uma das protagonistas destas transformações.

Em segundo lugar, está o processo de transformação do próprio bairro. Ao longo dos

anos, Oswaldo Cruz cresceu, chegaram novos moradores, sem nenhuma identificação com

as antigas relações do passado. Durante a década de 1970, por exemplo, a construção de um

conjunto habitacional da COHAB recebeu um grande contingente populacional oriundo de

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antigas favelas removidas em outras partes da cidade, de forma que a população local, assim

como o bairro, também se transformou neste processo.

Em terceiro lugar, mas não exatamente desassociada dos dois primeiros, embora bem

mais abrangente, estão às transformações na própria sociedade. A ascensão das “culturas

juvenis”, como o funk e o hip-hop, afastou as novas gerações das velhas práticas culturais de

seus antepassados. A este cenário se junta o advento das “novas tecnologias”, que, como

veremos mais adiante, dificulta a boa e velha transmissão oral, típica das manifestações de

cultura popular. Neste contexto, em algumas narrativas que, já na década de 1980, ignoraram

a presença do samba e dos sambistas da região, tentava-se fomentar uma nova memória

urbana e moderna (BARATA, 2006, p. 02).

Para os sambistas e lideranças comunitárias, contudo, os vínculos históricos com o

samba conferem a Oswaldo Cruz uma identidade peculiar, distinguindo-o dos demais

subúrbios que estão ao seu redor. No cenário atual da região, podemos compreender a cultura

como um campo de disputas e embates, em que é necessário, para os sambistas, ratificar a

condição hegemônica de suas narrativas. Se tomarmos como referência autores como Stuart

Hall, podemos entender que a hegemonia é um momento específico e temporário da vida em

sociedade, que precisa ser constantemente ratificada, mesmo depois de conquistada, pois não

existe qualquer garantia de que ela permanecerá inalterada pelos anos seguintes. Elas

precisariam, portanto, ser construídas e mantidas, resultando a conquista de um grau

substancial de consentimento popular (HALL, 2006, p. 293).

Todavia, para além da existência de embates culturais, da necessidade de ratificar a

hegemonia do samba nas representações sobre o bairro, está o que George Yúdice definiu como

“usos convenientes da cultura”, que é a sua capacidade de ser gerenciada. Podemos

compreender, por este prisma, a promoção de culturas nativas e patrimônios nacionais. Neste

contexto, a reivindicação das diferenças culturais é conveniente na medida em que, em suas

relações cotidianas, dão poder a uma determinada comunidade (YÚDICE, 2006, p. 454). Assim,

para as lideranças comunitárias, além aferir uma identidade peculiar a Oswaldo Cruz, a cultura,

transformada em recursos, confere vantagens para os moradores do bairro, por exemplo, nas

reivindicações feitas junto ao poder público. Um obstáculo difícil de superar, contudo, é a já

citada dificuldade para garantir a transmissão dos velhos saberes tradicionais para os mais

jovens, o que, para além das dificuldades de Oswaldo Cruz, podemos verificar, de uma forma

geral, em vários patrimônios culturais imateriais, inclusive em outras comunidades de samba.

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2. Desafios na transmissão dos saberes

Em sua tese de doutorado em educação, intitulada “A escola é o silêncio da batucada?

Estudo sobre a relação de uma escola pública no bairro de Oswaldo Cruz com a cultura do

samba”, Augusto César Gonçalves e Lima realizou uma rigorosa pesquisa de campo em uma

escola da região, buscando compreender a relação entre a cultura escolar e a cultura do

samba, tendo como referências as representações sobre o bairro. O pesquisador partiu da

hipótese inicial de que os alunos, vinculados a uma escola situada em um bairro com longa

tradição de samba, teriam alguma relação com esta cultura. Contudo, ao longo de seu

trabalho, Lima constata que as iniciativas voltadas para a “cultura referência do bairro”,

conforme ele mesmo classificou, tanto por parte da instituição de ensino quanto pelos alunos,

limitava-se a organização de um desfile ecológico para discutir a questão ambiental. Assim,

contrariando sua hipótese, o pedagogo se defrontou com a diferença entre representação e

realidade, percebendo a heterogeneidade de Oswaldo Cruz e as multiplicidades de narrativas

sobre o bairro. Em sua conclusão, Lima justifica tal discrepância entre suas expectativas

iniciais e o resultado final pelo sucesso das “novas culturas juvenis” e a “impossibilidade do

local se fechar à influência do global” (LIMA, 2005, p. 230).

Esta pesquisa é especialmente importante por ter como foco o ambiente escolar, isto

é, local frequentado pelos moradores mais jovens. É exatamente nesta parcela da população

que estão as maiores dificuldades para a transmissão dos saberes tradicionais, pois,

bombardeados por informações e expostos a novas práticas culturais mais atrativas, o contato

entre gerações, permitindo a transmissão oral, torna-se um hábito em extinção. É exatamente

visando incentivar a transmissão dos saberes tradicionais junto aos jovens que o Centro

Cultural Cartola conseguiu, em 2007, junto ao IPHAN, o reconhecimento de três vertentes

do samba carioca como “patrimônio cultural imaterial” do Brasil.

Localizado na Rua Visconde de Niterói, via pública que margeia o morro da

Mangueira, a poucos metros da quadra de ensaios da famosa agremiação verde-e-rosa, o

Centro Cultural Cartola é referência na valorização da memória do samba carioca. Para obter

a chancela de patrimônio cultural imaterial, conferida pelo IPHAN ao partido-alto, ao samba

de terreiro e ao samba-enredo, o Centro elaborou o chamado “dossiê das matrizes do samba

carioca”, formulado por renomados pesquisadores ligados ao samba. A Portela consta deste

documento como uma das seis escolas de samba mais representativas para as “matrizes do

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2031

samba”, ao lado de Império Serrano, Acadêmicos do Salgueiro, Estação Primeira de

Mangueira, Unidos de Vila Isabel e Estácio de Sá. O documento ressalta a formação do

subúrbio de Oswaldo Cruz e a importância dos sambistas neste processo, em especial o

legado de Paulo da Portela, ratificando a hegemonia das narrativas dos sambistas e lideranças

comunitárias. Todavia, em Oswaldo Cruz, assim como nas demais localidades destacadas,

todas associadas aos núcleos mais tradicionais de samba, a transmissão dos saberes para as

novas gerações encontraria obstáculos (PAVÃO, 2010, p. 251 e 252).

É neste sentido que o documento faz sugestões de salvaguarda. Entre elas, está a

necessidade de se incentivar as pesquisas de campo e históricas nas comunidades de

sambistas, fazendo levantamentos sobre a produção musical e estimulando a gravação. Este

trabalho é especialmente importante porque, sem gravação, muitas obras sobrevivem apenas

na memória dos mais velhos, estando sob o risco iminente de desaparecimento diante das

dificuldades da transmissão oral. Seguindo o dossiê, este enfraquecimento dos processos

tradicionais teria favorecido o surgimento de espaços formais de aprendizado, centrado na

separação entre professor e aluno. Esta característica se tornou padrão em vários aspectos

rituais de uma escola de samba, substituindo a velha oralidade, ou seja, a participação em

um ambiente familiar comunitário, em que adultos e crianças se misturam. Para o

desaparecimento da figura do “versador”, mestres do improviso, típicos da cultura popular,

que, no samba, é um personagem essencial para a vertente “partido alto”, o dossiê reivindica

a valorização de espaços para a prática compartilhada entre os mais velhos e os jovens. Desta

forma, a sugestão é a realização de encontros de versadores nas próprias comunidades,

contando sempre com a presença dos mais jovens e o registro em áudio e vídeo, ajudando a

difundir e revitalizar a prática (PAVÃO, 2008, p. 10).

Contudo, o cerne do problema parece passar ao largo das propostas do dossiê. Como

fazer os jovens, bombardeados diariamente por novas informações, submetidos aos lançamentos

da indústria cultural, que convivem diariamente com as novas tecnologias, abdicarem de toda

novidade oferecida pela modernidade e se interessarem pela boa e velha tradição oral de seus

pais e avós? A questão é complexa e os organizadores do dossiê não oferecem respostas. O

próprio fato destas comunidades de sambistas estarem inseridas em uma grande região

metropolitana, onde vivem cerca de 12 milhões de pessoas, aparece apenas em uma passagem

do material, em que, brevemente, a “globalização” e a “crise urbana” são apresentadas como

motivos para o afastamento dos moradores de “seus” valores tradicionais (PAVÃO, 2010, p.

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255). Desta forma, a questão permanece: como garantir a transmissão de saberes, mesmo com o

aumento de recursos financeiros, diante de um cenário tão adverso? Em Oswaldo Cruz,

sambistas e lideranças comunitárias optaram por um caminho bem original.

3. A festa como exaltação à memória

Em meados de 1990, lideranças comunitárias e sambistas já haviam percebido que era

necessário reagir para ratificar a hegemonia de suas narrativas sobre o bairro. É neste momento

que surge o movimento “Acorda Oswaldo Cruz”, embrião de todos os projetos culturais e

sociais que foram desenvolvidos nos anos posteriores. A Associação dos Moradores do bairro

(AMOC), com a maioria de seus membros integrando partidos de esquerda, tem papel

fundamental nas ações que foram desenvolvidas. Em 1998, a AMOC, cujo símbolo une a linha

férrea e uma águia, dois símbolos do bairro, inaugura o Centro de Capacitação Profissional

Paulo da Portela, oferecendo cursos e qualificação profissional. Fazer com que os jovens

moradores conheçam suas narrativas sobre a história do bairro, como a referência ao principal

fundador da Portela sugere, foi, desde o início, um dos objetivos das lideranças comunitárias,

cujo nome mais conhecido é o de Marquinhos de Oswaldo Cruz.

Marcos Alcântara Sampaio, nome de batismo de Marquinhos de Oswaldo Cruz,

personifica as figuras do sambista e do líder comunitário. Embora, de fato, os projetos tenham

sido ações coletivas, ele é sempre lembrado como o principal responsável pelas bem sucedidas

iniciativas que vão procurar transmitir, através de festas e eventos que deram visibilidade ao

bairro, a memória dos velhos sambistas. Ele é o principal idealizador do “trem do samba”, ou

“pagode do trem”, o primeiro e mais famoso projeto posto em prática na região. A ideia inicial

era bem simples. No dia 02 de dezembro, data em que se comemora o dia nacional do samba,

os sambistas e líderes comunitários pegariam um trem na gare Central do Brasil, terminal

ferroviário do centro do Rio de Janeiro, e cantariam sambas ao longo do percurso até Oswaldo

Cruz. No bairro suburbano, fariam um show com o repertório exclusivamente compostos por

sambas. As primeiras edições foram sucessos tão grandes que, com o passar dos anos, o evento

se tornou cada vez mais complexo. Com o apoio da Supervia, concessionária do serviço

ferroviário do Rio de janeiro, os organizadores conseguiram, inicialmente, uma composição

exclusiva, o que se transformou, poucos anos depois, em quatro composições exclusivas que

faziam o trajeto em horários marcados, em que cada vagão era ocupado por um grupo de samba

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específico, especialmente os que fazem o chamado “samba de raiz”. Até a saída da última

composição, vários shows aconteciam em um palco montado na Central o Brasil. Em Oswaldo

Cruz, o número de palcos aumentou na proporção em que novas atrações participavam do

evento, totalizando três no final dos anos 2000.

Sucesso absoluto, o evento passou a atrair, anualmente no dia 02 de dezembro, uma

multidão de frequentadores para Oswaldo Cruz, muitos deles se aventurando pela primeira

vez no subúrbio. Na prática, o “trem do samba” colocou oficialmente o dia nacional do

samba no calendário de festividades da cidade, inspirando outras iniciativas, como a “Barca

do samba”, que, cantando sambas, cruza a Baía da Guanabara, entre o Rio de Janeiro e

Niterói. O sucesso foi tão grande que, para não atrapalhar a rotina da cidade, passou a ser

realizado no primeiro sábado de dezembro. Além dos palcos montados, os bares do local

também criaram suas próprias rodas de samba, de forma que a localidade, neste dia,

recebendo gente de várias partes da cidade, vivencia o samba em cada esquina, reforçando

as narrativas que privilegiam os sambistas. Para os moradores, a história dos sambistas locais

é aprendida de forma lúdica. Pela primeira vez em suas vidas, muitos jovens que possuem

outros hábitos assistem a uma animada roda de samba, promovendo o encontro entre

gerações que o já mencionado dossiê das matrizes do samba carioca considera em vias de

desaparecimento. Naturalmente, os organizadores exigem que o repertório seja

exclusivamente composto por sambas. Todavia, na periferia dos locais onde o grande

público se aglomera, podemos perceber os jovens ouvindo funk, charme, hip-hop e outros

gêneros musicais que fogem ao controle dos organizadores.

Um aspecto importante neste evento é a tentativa de se estabelecer uma continuidade

histórica. Segundo Silva e Santos, Paulo da Portela costumava reunir seus amigos no trem

que partia às 18h04 da Central do Brasil, em direção ao subúrbio de Oswaldo Cruz.

Aproveitando que a maioria dos portelenses trabalhava no centro da cidade, era uma

oportunidade para discutir assuntos de interesse da agremiação, transformando o trem em

uma espécie de sede móvel da Portela (SILVA e SANTOS, 1980, p. 43). Apesar de

Marquinhos de Oswaldo Cruz, incialmente, ter negado a relação entre o fato do passado e o

evento do presente, a continuidade histórica se impõe com a força da ancestralidade,

escrevendo nas ações dos sambistas pioneiros a inspiração para o sucesso em nossos dias. É

impossível não nos lembrarmos das “tradições inventadas” de Hobsbawm e Ranger, para

quem esta “continuidade histórica”, que formariam os componentes subjetivos de uma

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nação, em grande parte seriam construções “inventadas”, resultados de elaborações recentes

fundamentadas em um propósito (HOBSBAWM e RANGER, 2002 p. 22 e 23).

Outro evento que procura estabelecer uma continuidade histórica com o passado é a

“feijoada da família portelense”, também organizada por Marquinhos de Oswaldo Cruz, desta

vez juntamente com a velha guarda da Portela. Realizada pelo G.R.E.S. Portela, com

periodicidade mensal, a ideia inicial era realizar uma roda de samba tradicional, em volta de uma

mesa, remetendo às antigas rodas de samba realizadas pela escola. Além do “samba de raiz”, os

visitantes poderiam degustar um bom prato de feijoada, comida típica dos sambistas e do

universo afro-brasileiro de uma forma geral. Isso também remetia ao passado, ao famoso “feijão

da Vicentina”, eternizado em uma das mais famosas canções de Paulinho da Viola. Agora, a

tarefa de preparar o quitute caberia a “Tia Surica”, herdeira das tradições culinárias do grupo.

De 2003, ano da primeira edição, até os nossos dias, a “feijoada da família

portelense”, assim como o pagode do trem, cresceu bem mais rápido do que seus

idealizadores haviam planejado. As rodas de samba informais foram substituídas por

verdadeiros shows, em que a velha guarda recebe convidados especiais, que também fazem

o “samba de raiz”, com ampla divulgação na mídia. Em pouco tempo, o evento trouxe um

grande público, muitos vindos da zona sul da cidade, para curtir uma agradável tarde de

samba no subúrbio, degustando uma suculenta feijoada. O sucesso foi tão grande que as

demais escolas também passaram a realizar feijoadas mensais, criando um calendário mensal

para que as datas dos eventos fossem conhecidas pelos frequentadores. Assim, todos sabem

que a feijoada da Portela é realizada sempre no primeiro sábado de cada mês.

O terceiro evento que valoriza o samba em Oswaldo Cruz é a chamada “feira das Yabás”,

outra idealização de Marquinhos de Oswaldo Cruz. Também realizado com periodicidade

mensal, o evento, além de um palco montado na Praça Paulo da Portela, que recebe convidados

especiais para uma tarde de samba, reúne várias barracas com quitutes associados ao samba,

como galinha com quiabo, feijoada, caldo verde e outros. É uma verdadeira “feira gastronômica

do samba”, nome que aparece em algumas divulgações direcionadas para um público mais

amplo. Contando com o apoio da prefeitura do Rio de Janeiro e outros patrocinadores, o evento

exalta a memória do samba em praça pública, reforçando a hegemonia deste gênero musical.

O último evento, na verdade, trata-se de um projeto chamado “perímetro cultural de

Oswaldo Cruz”. Ele foi idealizado pelo professor Rogério Rodrigues, hoje um dos diretores

culturais da Portela. Em linhas gerais, ele pretende sinalizar os lugares de Oswaldo Cruz que

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remetem diretamente à fundação da Portela, como as ruas em que viveram os fundadores, as

casas em que aconteciam as rodas de samba tradicional etc. Para concretizar a iniciativa, o

idealizador, juntamente com jovens fãs da Portela, fizeram reuniões com parlamentares e

com secretários municipais, encontrando sempre como obstáculo a necessidade de que

alguma empresa privada ajude a financiar o projeto. Eles se encontraram, também, com a

Associação de Moradores, que, embora tenha apoiado o projeto, posicionaram-se contra

algumas iniciativas, como a ideia de tombar a estação de trem. Esquecida pelas reformas nas

estações ferroviárias promovidas pela Supervia e pelo governo do Estado do Rio de Janeiro,

os moradores reivindicavam exatamente a reforma do espaço. Assim, evidencia-se que, além

das bem intencionadas propostas de preservação do passado, estão os interesses de quem

vive quotidianamente os problemas do bairro, pouco importando, para eles, o fato da estação

preservar as características arquitetônicas da primeira metade do século XX.

Apesar da iniciativa pouco ter avançando, esbarrando na burocracia pública e no

interesse dos moradores, o professor Rogério Rodrigues organizou um passeio cultural para os

fãs da Portela que o apoiavam no projeto. Denominada de “viagem sentimental a Oswaldo

Cruz”, consistia em um passeio orientado pelo bairro, seguindo um roteiro minuciosamente

preparado com os lugares históricos para os sambistas do bairro, especialmente para a Portela.

Assim, andando pelas ruas, contrastando com o vai-e-vem de pessoas em suas vidas diárias, o

grupo recria os espaços físicos do passado, a partir de uma arqueologia imaginária que revive os

primeiros anos da Portela. Para esta iniciativa, assim como para as demais festas que exaltam a

memória, um grupo de pessoas assume a condição de protagonista na tarefa de recordar o

passado, recriando no presente os valores que orientaram a fundação da Portela e a formação no

bairro, de acordo com a narrativa dos sambistas. Este grupo é a velha guarda da Portela.

4. A velha guarda da Portela

Nas escolas de samba, a velha guarda é formada por um grupo de pessoas da terceira

idade que possuem uma história de vida dedicada à agremiação carnavalesca. Além das

atividades ligadas ao samba, uma velha guarda de escola de samba realiza uma série de outros

eventos sociais e culturais, como festas, encontros e passeios. A Portela tem dois grupos

denominados de velha guarda. O primeiro deles, a “galeria da velha guarda”, é formado por

senhores que exerceram várias atividades na agremiação. Eles se reúnem na “Portelinha”,

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antiga sede da Portela, construída na década de 1950 e desativada em 1972, com a construção

da quadra atual, o “Portelão”, localizado na Rua Clara Nunes. Além deste grupo, há a “velha

guarda show”, um conjunto musical formado por iniciativa de Paulinho da Viola, em 1970. O

grupo permanece em atividade, tendo uma alta rotatividade entre seus membros. Em alguns

casos, algumas pessoas mais jovens, filhos ou filhas de ilustres sambistas da região, são

convidados a fazer parte do grupo. O Conjunto musical da Velha Guarda da Portela faz enorme

sucesso, sobretudo entre aqueles que gostam do bom “samba de raiz”. Eles se apresentam em

todo o Brasil e no exterior, lançando álbuns, inclusive, em terras japonesas. O sucesso nos

palcos, contudo, contrasta com a humildade de suas vidas diárias, de senhores da terceira

idade, com todas as dificuldades inerentes a esta condição, que moram no subúrbio carioca.

Nos dias de hoje, em que as escolas de samba estão cada vez mais associadas às novidades

tecnológicas, com espetáculos cada vez mais complexos que necessitam de especialistas em várias

áreas, com a obrigação de gerar cada vez mais lucros, parece não ter mais lugar para o saber

tradicional dos senhores da velha guarda. Com efeito, pelo menos desde a década de 1970, com a

presença dos banqueiros do jogo do bicho, não apenas a velha guarda, mas os próprios sambistas

foram progressivamente excluídos dos postos de comando. Todavia, como definiu Ecléa Bosi, ao

deixarem de ser o propulsor da vida presente da comunidade, resta-lhes a obrigação de lembrar,

de ser a memória do grupo e da instituição (BOSI, 1979, p. 23 e 24).

Em todos os projetos mencionados anteriormente a velha guarda da Portela possui lugar

de destaque. No trem do samba, o vagão mais disputado é o da velha guarda, assim como o palco

de shows mais concorridos. Na “feijoada da família portelense”, eles são os anfitriões, recebendo

os convidados. Na “feira das Yabás”, além de participar dos shows, seus integrantes, especialmente

as senhoras, vendem quitutes para os visitantes. Na “viagem sentimental a Oswaldo Cruz”, foi a

partir da descrição deles que o roteiro do passeio foi elaborado. Para usarmos um termo de Giddens

(1997), a velha guarda é a “guardiã da tradição”, ou da memória coletiva. Eles conviveram

diretamente com os fundadores, de forma que, nas reuniões da Portelinha ou sobre o palco, os

portelenses enxergam valores que devem ser seguidos pelo grupo, como a organização e a

elegância, uma herança, sobretudo, dos ensinamentos de Paulo da Portela.

São os ensinamentos da velha guarda, portanto, que revitaliza as narrativas dos

sambistas, incentivando a criação dos projetos no bairro de Oswaldo Cruz. A história da

Portela pode ser compreendida como uma ação coletiva, unindo, de forma atemporal, os

fundadores, que a construiu, a velha guarda, que a interpreta e transmite, e os jovens, que

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também a interpreta de acordo com as suas visões de mundo. Este processo ocorre, além do

contato entre gerações, pelas letras de suas músicas, que revivem, em grande parte, um

período distante, rememorando histórias que, transformadas em canções, atravessam o

tempo e são interpretados pelas novas gerações.

5. Memórias em forma de canção

Em geral, as músicas que integram o repertório da velha guarda show da Portela

foram compostas por sambistas de Oswaldo Cruz, sejam atuais ou do passado. Neste

segundo grupo, estão as composições de sambistas já desaparecidos, com músicas que,

graças ao sucesso do grupo, embora antigas e já tendo feito sucesso entre os sambistas,

conseguiram pela primeira vez gravação e divulgação. Em relação à temática das letras, a

grande maioria deste repertório é formada por músicas que revelam desilusão amorosa, o

que, por sinal, pode ser visto como uma característica do samba de uma forma geral, não

apenas dos veteranos da velha guarda. Outras letras revelam a nostalgia pelo próprio

passado, externando uma reflexão diante do envelhecimento, o que é perfeitamente

compreensível, tratando-se da obra de senhores que enfrentam as dificuldades da terceira

idade. O que nos interessa aqui, contudo, é outro grupo de composição. São as obras que

procuram lembrar o passado, recordando histórias e personalidades que, graças às canções

da velha guarda, são revitalizadas e aprendidas pelas novas gerações. Para concluir este

artigo, apresento alguns exemplos destas canções.

Uma constatação inicial é que Paulo da Portela é o personagem principal das canções

que exaltam as memórias do passado, embora outros sambistas também mereçam destaque.

A exaltação ao passado vitorioso da Portela também é o tema de várias canções,

evidenciando, assim, os dois eixos que monopolizam a “temática da memória”: os

ensinamentos de Paulo e as conquistas da Portela. Neste sentido, podemos citar, por

exemplo, a canção “corri pra ver”, de Monarco, Chico Santana e Casquinha:

Ouvi cantando assim

A majestade do samba

Chegou chegou

Corri pra ver

Pra ver quem era

Chegando lá

Era a Portela

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Era a Portela do seu natal

Ganhando mais um carnaval

Era a Portela do Claudionor

Portela é meu grande amor

Era rainha de Oswaldo Cruz

Portela muito nos seduz

Foi mestre Paulo seu fundador

Nosso poeta e professor

O samba acima destaca o papel fundamental de Paulo da Portela como compositor

(poeta) e líder (professor). Cita também a figura de Claudionor, considerado um dos maiores

passistas da história do carnaval. Outro personagem lembrado é Natalino José do

Nascimento, o famoso Natal da Portela, um líder que, comandando a agremiação na maioria

dos seus títulos, entre as décadas de 1950 e 1970, tornou-se um mito entre os moradores do

subúrbio. Estas mesmas referências históricas se repetem em outras obras, como no samba

“Portela, passado de glórias”, uma composição de Monarco:

Portela, eu às vezes meditando,

Quase Acabo até chorando

Que nem posso me lembrar

Teus livros têm tantas páginas Belas

Se for falar da Portela,

Hoje não vou terminar

A Mangueira de Cartola,

Velhos tempos do apogeu

O Estácio de Ismael,

Dizendo que o samba era seu

Em Oswaldo Cruz,

Bem perto de Madureira

Todos só falavam

Paulo Benjamin de Oliveira

Paulo e Claudionor quando chegavam

Na roda de samba abafavam

Todos corriam para ver

Pra ver, se não me falha a memória

No livro da nossa história tem

Conquistas a valer Juro que

Não posso me lembrar se eu for falar

Da Portela hoje não vou terminar

A obra relembra, mais uma vez, Paulo da Portela e Claudionor. Vale destacar que,

ao contrário de Paulo, que é sempre exaltado como liderança, possuindo, inclusive, um busto

de bronze em sua homenagem, exposto numa praça pública que também leva o seu nome,

Claudionor é praticamente desconhecido. As músicas da velha guarda, cantadas em coro

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pelo público nos eventos da região, são uma das poucas lembranças de sua passagem pelo

bairro, de seu sucesso como grande sambista. De certa forma, são as composições da velha

guarda que ainda mantém vivo o legado de Claudionor Marcelino, permitindo que seu nome

e feitos continuem sendo lembrados. Nesta composição específica, além da exaltação ao

passado vitorioso da Portela, também é possível notar, mesmo que de forma implícita, um

desconforto com o atual momento da agremiação nas disputas carnavalescas. Há mais de

trinta anos sem triunfar, o passado é o “livro de páginas belas”, em contraste com os

problemas do presente. Temos, assim, uma característica tipicamente romântica, que é a

“fuga da realidade”. Podemos verificar de forma mais evidente esta característica em

“vaidade de um sambista”, composição do compositor Chico Santana:

Um dia um sambista em sua vaidade

Disse que vitória pra Portela é

Banalidade

Mais tarde outro dizia

Mesmo derrotados

Cantaremos com alegria

Ganhar todo mundo sabe,

Sorrir e sente prazer

Mas o bonito é saber perder

A Portela enfrenta

Derrota como vitória

O seu passado é repleto de glória

O seu azul e branco quando desce é

Pra valer Só a Portela sabe

Ganhar e perder

Seguramente, a maior parte das “memórias em forma de canção” foi composta por

Hildemar Diniz, o mestre Monarco. Aos 82 anos, ele é o líder do conjunto musical da velha

guarda show, a voz mais conhecida do grupo. Sua figura é a própria imagem dos ensinamentos

dos velhos mestres, a elegância que serve de espelho para os portelenses. Em “Portela desde

que nasci”, ele lembra mais uma vez os feitos de Paulo da Portela, desta vez ao lado dos outros

dois principais fundadores da agremiação: Antônio Caetano e Antônio Rufino.

Eu sou Portela

Desde os tempos de criança

Ainda guardo na lembrança

Algo e vou revelar

Me lembro o Paulo

Quando sorrindo dizia

Ao sambista que surgia

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O segredo e o seu modo de Cantar

Ficava alegre quando ouvia

O entoar de um hino

Lá vem Rufino, novidades ele vem

Apresentar

Abriu-se o pano surge o mano Caetano

Abelardo fracassou

Seu chapéu caiu na linha

Seu terno melhor rasgou

É assim, nas festas que tomam conta das ruas de Oswaldo Cruz, em suma, que a

história vivida pelos fundadores é reinterpretada e transmitida pela velha guarda da Portela,

de acordo com o olhar do presente sobre o passado. A disputa pela hegemonia das narrativas,

na realidade de embates culturais que caracteriza nossos centros urbanos, é ininterrupta,

fazendo-se e desfazendo-se diariamente, nas ruas e praças. Neste subúrbio singular, que faz

e refaz sua identidade no ritmo do batuque do samba, os ensinamentos dos velhos mestres

se atualizam na forma de belas poesias, no passado descrito entre notas musicais. São, pois,

reminiscências transformadas em arte, singelas memórias em forma de canção.

Referências

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da 25º Reunião de Brasileira de Antropologia, V. 1: Goiânia, 2006.

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2042

O “SER QUILOMBOLA” EM (RE)CONSTITUIÇÕES TERRITORIAIS

Fernando Bueno Oliveira Mestrando do PPPGICSH: Territórios e Expressões Culturais no Cerrado - TECCER.

Resumo: O presente artigo pretende ensaiar, a partir das contribuições das Ciências Sociais, uma

interpretação das representações sociais e políticas de comunidades quilombolas, bem como das

formas que elas influenciam na apropriação de espaços rurais e urbanos mediante seu

autorreconhecimento. Inicialmente, perpassamos por novos entendimentos acerca do conceito de

quilombos; após, apontamos que a autoatribuição de identidades étnicas tem se tornado uma questão

de extrema relevância nos últimos anos no Brasil, por meio da organização e atuação política de

grupos que reivindicam o reconhecimento dos territórios que ocupam. Entretanto, o reconhecimento

do Estado brasileiro da existência dessas comunidades, não garantiu que seus direitos, principalmente

aqueles ligados à terra e/ou moradia, fossem acatados, o que é demonstrado pela pequena quantidade

de terras de comunidades quilombolas rurais tituladas desde 1988. No caso dos chamados quilombos

urbanos, esses se configuram como grupos sociais de resistência contra um sistema de exclusão: suas

segregações espaciais são proporcionadas pela marginalização por parte das políticas públicas.

Palavras-chave: quilombolas; territórios rurais; quilombos urbanos.

Abstract: This article intends to rehearse from the contributions of social sciences, an interpretation of

the social and political representations of quilombo communities, as well as the ways in which they

influence on the appropriation of rural and urban spaces through its self-recognition. Initially, we go

through new understandings about the concept of quilombos; then, we point out that the self-attribution

of ethnic identity has become a matter of extreme importance in recent years in Brazil, through the

Organization and political action groups that claim the recognition of territories they occupy. However,

the recognition from the Brazilian’s State of the existence of these communities, did not guarantee their

rights, especially those linked to land and/or housing, were respected, which is demonstrated by the

small amount of land of Quilombola communities since 1988 which is titled rural. In the case of so-

called quilombos urbans, these are configured as social groups of resistance to a system of exclusion:

its spatial segregations are proportionated by the marginalization from the public policies.

Keywords: quilombolas; rural territories; urbans quilombos.

Considerações Iniciais

O presente artigo pretende ensaiar, a partir das contribuições das Ciências Sociais –

notadamente da História, da Antropologia e da Geografia Cultural –, uma interpretação das

representações sociais e políticas de comunidades quilombolas, bem como das formas que elas

influenciam na apropriação de espaços rurais e urbanos mediante seu autorreconhecimento.

Para isso, tendo por base os estudos de Almeida (2000), perpassamos por novos

entendimentos acerca do conceito de quilombo, a partir dos quais nos levaram a defender a

visão de que os textos acadêmicos deveriam trabalhar com o conceito de quilombo

considerando o que ele é no presente e não numa versão ainda “frigorificada”.

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A partir de noções do conceito de quilombo, tratamos sobre os sujeitos quilombolas,

com o propósito de evidenciar que tanto sujeitos quanto os seus territórios são indissociáveis,

não podendo ser entendidos isoladamente. Dessa forma, a autoatribuição de identidades

étnicas tem se tornado uma questão de extrema relevância nos últimos anos no Brasil, por

meio da organização e atuação política de grupos que reivindicam o reconhecimento dos

territórios que ocupam. Essas “construções” identitárias se relacionam diretamente com as

especificidades de tempo e lugar, o que fez (e tem feito) que diversas comunidades se auto-

reconheçam como quilombolas com o objetivo de garantir seus direitos assegurados pelo

poder público, via políticas governamentais.

O reconhecimento do Estado brasileiro da existência dessas comunidades, não

garantiu que seus direitos, principalmente aqueles ligados à terra e/ou moradia, fossem

acatados. Diante disso, com olhar atento à apropriação efetiva de seus territórios,

transcorremos pela situação atual de comunidades de quilombolas rurais, que vivenciam a

burocracia dos órgãos responsáveis pela expedição das titulações, o que tem deixado o

procedimento de titulação muito lento. Juntem-se a esse impasse, os impedimentos judiciais

que tornam ainda mais complexo o procedimento de conquista dos títulos das terras de

quilombos e a concretização integral do artigo 68 da Constituição Federal.

Quanto às cidades, voltamos o nosso olhar à identificação de territórios étnico-

raciais: os chamados quilombos urbanos. Não é apenas a predominância negra na

comunidade que define étnica ou racialmente um território e sim um conjunto de códigos e

símbolos compartilhados, enfim, um modo de vida. Referimo-nos aqui, aos grupos que, em

meio a um contexto urbano multicultural, fragmentado e em eterna dinâmica, demarcam sua

identidade mobilizando critérios étnico-raciais.

A nossa pesquisa, em nível de mestrado, junto à comunidade quilombola urbana

Jardim Cascata, situada na cidade de Aparecida de Goiânia-Goiás, região metropolitana de

Goiânia-Goiás, nos direciona a pensar que a escolha de “ser ou tornar-se” quilombola, além

de demonstrar a lógica que permeia as ações reivindicativas dos integrantes de uma

associação quilombola, permite uma maneira de pensar seu território como algo constituído

por sujeitos que possuem trajetórias “semelhantes”, que não seja somente a ancestralidade

africana. As identidades dos quilombolas do Jardim Cascata se aproximam em certos pontos,

principalmente naquele que se dizem “sujeitos de direito”.

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Esperamos que o nosso estudo sirva de referência para as futuras gerações de

pesquisadores que queiram trilhar nos estudos direcionados aos quilombos brasileiros, e que

contribuamos com a própria comunidade pesquisada no sentido de resgatar, de certa forma,

as memórias relativas à construção de sua identidade e de sua representatividade diante de

situações adversas, mas, também, favoráveis.

1. Pela reinterpretação crítica do conceito

Alfredo Wagner Berno de Almeida (2000) discute a estrutura agrária brasileira, a

partir do reconhecimento de áreas rurais de acordo com categorizações pré-estabelecidas

pelo Incra e pelo censo Agropecuário do IBGE. A partir dos desdobramentos em torno do

conceito de “quilombo”, e com o intuito de discutir as dificuldades de reconhecimento das

chamadas “terras de preto”, Almeida (2000) nos indica as formulações inerentes a tal

conceito, haja vista que, muitos autores se baseiam, ao que ele denomina, num conceito de

quilombo ainda “frigorificado”.

Segundo o autor, o conceito, ainda atrelado ao passado de escravização dos africanos

em terras brasileiras, é composto de elementos descritivos e foi produzido em decorrência

de uma “resposta ao rei de Portugal”, em virtude de consulta feita ao Conselho Ultramarino,

em 1740. Para Almeida (2000), quilombo foi formalmente definido como “toda habitação

de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos

levantados e nem se achem pilões nele” (Conselho Ultramarino, 1740).

Numa análise dessa definição, Almeida (2000) considera a existência de cinco elementos:

O primeiro é a fuga [...] a situação de quilombo sempre estaria vinculada a

escravos fugidos; o segundo é que quilombo sempre comportaria uma

quantidade mínima de ‘fugidos’, que tem que ser exatamente definida [...];

o terceiro, uma localização sempre marcada pelo isolamento geográfico, em

lugares de difícil acesso e mais perto de um mundo natural e selvagem do

que da chamada ‘civilização’ [...]; no quarto refere-se ao ‘rancho’, ou seja,

se há moradia habitual, consolidada ou não, enfatizando as benfeitorias

porventura existentes; e o quinto seria essa premissa: ‘nem se achem pilões

nele’. O que significa ‘pilão’ neste contexto? O pilão [...] representa o

símbolo do autoconsumo e da capacidade de reprodução (p. 165).

Em consonância com o autor, podemos considerar que o pilão, nesse momento,

representa a relação dos quilombos com localidades próximas, o que desmitifica a visão de

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que eram isolados e reforça a ideia de que foram estas transações comerciais da produção

agrícola e extrativa dos quilombos que ajudaram a consolidar suas fronteiras físicas,

tornando-as mais viáveis porquanto acatadas pelos segmentos sociais com que passavam a

interagir. Daí a importância de relativizar esses cinco elementos ao se tecer considerações

sobre quilombos, até porque, em muitos casos, ainda são percebidos como algo isolado,

confinado numa suposta autossuficiência e negando a disciplina do trabalho.

Numa abordagem atual, em conformidade com as considerações de Almeida (2000),

julgamos a necessidade de se trabalhar com conceito de quilombo, considerando o que ele é

no presente, “em outras palavras, tem que haver um deslocamento: não é discutir o que foi,

mas sim, discutir o que é, e como esta autonomia foi sendo construída com o tempo” (p. 170).

No Brasil escravista, os quilombolas eram vistos como indisciplinados, revoltosos,

refugiados e avessos à disciplina do trabalho, então, medidas governamentais se efetivaram no

sentido de promover movimentos de caça e busca por quilombolas (tais movimentos, dependendo

da época e da região, eram compostos por capitães do mato, por quilombolas que agiam mediante

a promessa de ganho de terra e por militares oficiais do governo), resultando na captura de

escravizados e no seu retorno ao domínio das grandes propriedades. Sobre isso, digno de nota é a

exposição de Almeida (2000) ao se referir à dinâmica atual que envolve as comunidades

quilombolas, quando diz que “antes era trazer para dentro do domínio, essa é que era a lógica

jurídica, e hoje é expulsar, botar para fora ou tirar do domínio da grande propriedade” (p. 173).

Essa exposição nos remete à situação contemporânea das comunidades quilombolas rurais

brasileiras, as quais, em sua esmagadora maioria, vivenciam dificuldades nos procedimentos de

tramitação pela conquista da titulação de suas terras, motivos que expomos adiante.

É com fundamento nestes instrumentos que se pode reinterpretar o conceito e

assegurar que a situação de quilombo existe onde há autonomia, onde há uma produção

autônoma que não passa pelo grande proprietário. O significado de quilombo não se esgota

numa definição de arqueólogos; a mobilização transformadora e de afirmação étnica não

está passando por consanguinidade, por pertencimento à tribo e por sinais exteriores que

tradicionalmente marcaram as diferenças.

A reinterpretação crítica do conceito de quilombo deve perpassar pela noção de novas

solidariedades, pelas construções conjuntas que se baseiam em formas de resistência que se

consolidaram historicamente e pelo advento de uma existência coletiva capaz de se impor às

estruturas de poder que regem a vida social. Ora, as relações sociais são dinâmicas e o

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“quilombo” hoje deve ser entendido como um lugar de recriações, ele não é o lugar do

isolamento, onde, necessariamente estão os agentes sociais que tem uma mesma origem ou

um “passado comum”. Antes de materializada, a presença da ancestralidade é traduzida nas

práticas, no compartilhar de crenças e formas de territorialidade.

2. A necessidade da autoatribuição

Pelos objetivos do presente estudo, podemos inserir os sujeitos quilombolas na

temática da etnicidade. Foi com esse propósito que buscamos no estudo de Eliane Cantarino

O’Dwyer (2011) o conceito de etnicidade, que, para a autora, significa ser

Um tipo de processo social no qual os grupos orientam as ações pelo

reconhecimento territorial das áreas que ocupam, com base em signos

étnicos carregados de metáforas, inclusive biológicas, referidos a uma

afirmação positiva dos estereótipos de uma identidade étnica e racial, para

reivindicar os direitos de uma cidadania diferenciada ao Estado brasileiro

(O’DWYER, 2011, p. 112).

Da citação acima, compreendemos que a reivindicação dos “sujeitos de direito”

quilombolas está totalmente atrelada à sua etnicidade, ou seja, a sua autoatribuição se

configura como o acesso na busca de seus direitos. Para a autora, “no Brasil, a autoatribuição

de identidades étnicas tem se tornado uma questão importante nos últimos anos, por meio da

organização política de grupos que reivindicam o reconhecimento dos territórios que ocupam”

(Op., cit, p. 111). As contínuas (des)construções identitárias, tal como se vê nos estudos de

Stuat Hall (2000), produzem identidades que podem, inclusive, ser contestadas politicamente.

Em seu estudo sobre os quilombolas do bairro Pérola do Maicá, Santarém-PA, Judith

Costa Vieira discute a maneira como um grupo específico repensou sua identidade para

responder a nova realidade territorial por ele construída e também como este grupo define

esta realidade e luta para tê-la regularizada. Em seu artigo, a autora descreve uma situação

de mobilidade de parte dos quilombolas de um grupo que migra da zona rural para a urbana.

Antes viviam no quilombo rural de Arapemã e, em 2007, época da pesquisa, passaram a

viver em bairro urbano de Santarém-PA.

Conforme Vieira (2010), numa situação de dificuldade de serem reconhecidos pelo

poder público e diante da necessidade de reformular a maneira como era compreendida a

categoria quilombo no interior da própria Federação das associações de comunidades

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quilombolas de Santarém-PA, a fim de contemplar o novo grupo que surgia, os quilombolas

de Arapemã que passaram a residir no bairro de Peróla do Maicá se mobilizam e criam a

Associação de moradores Remanescentes do Quilombo do Arapemã residentes no Maicá

(AMRQAM), obtendo o reconhecimento da Fundação Cultural Palmares (FCP).

Portanto, como escreve a autora,

A complexidade da denominação da associação não se deve a qualquer

fator impreciso, mas sim a um complexo processo de disputas territoriais

e identitárias cujos símbolos de pertencimento e união ora vão sendo

criados, ora reinterpretados, conforme os interesses dos grupos e as novas

relações estabelecidas por eles (VIEIRA, 2010, p. 183).

Nesse aspecto, os novos contornos na questão foram redesenhados pelos sujeitos

quando (re)construíram sua identidade e passaram a lutar pelo reconhecimento do território

ocupados por eles na cidade. Configura-se, dessa forma, a desvinculação do discurso de

origem que sempre relaciona áreas de quilombos atuais com espaços historicamente

ocupados por antepassados.

Um dos elementos que os faz acionarem o dado étnico como de pertencimento é o

critério político organizativo. O “étnico não está circunscrito a uma língua comum, a uma

ancestralidade, a uma origem comum e sim a uma forma de mobilização que expressam

formas de agrupamento político em torno de elementos comuns” (MARIN; ALMEIDA,

2006, p. 06). Além disso, os movimentos sociais estão trabalhando os quilombos como

categoria ressemantizada, acionada contemporaneamente para garantir direitos ancestrais,

afirmada não em função de uma invenção e sim de uma percepção de suas especificidades.

A identidade quilombola perpassa então pela construção coletiva de um território e

pela defesa desse frente a outros grupos ou próprio Estado, que, por sua vez, tenta impor

outras formas de apropriação e uso do espaço, onde o poder de decisão é retirado do grupo.

Assim, a identidade étnica pode vir a ser uma reação política consciente a esse processo de

expropriação do espaço e do poder de decisão sobre ele, permitindo o acionamento de

aspectos culturais e históricos enquanto argumentos de legitimação.

Para desenvolver essa ideia, retornamos à O’Dwyer (2011) que considera ser a noção

de território a que ajunta todas as temáticas que envolvem os direitos atribuídos aos sujeitos

quilombolas, sendo, enquanto categoria, uma referência prevalente na geografia, “mas é

antes de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por certo tipo de poder”

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(FOUCAULT, 1979 apud O’DWYER, 2011, p. 112). Tal conceituação, segundo a autora,

traz o sentido de um campo de disputas [território(s) disputado(s)], em que os atores sociais,

conjuntamente, acionam o seu autorreconhecimento para a conquista de direitos, dentre eles,

os territoriais. Segundo a autora, o processo identitário tem ainda se caracterizado, até

mesmo, pelo uso de nomes próprios pelos grupos (etnônimo) que reivindicam o

reconhecimento dos territórios que ocupam.

Já que O’Dwyer (2011) relaciona o uso de nomes próprios para a reivindicação de

territórios, julgamos que, quando grupos humanos relembram nomes, fazem isso porque

acionam memórias, individuais ou coletivas. O professor de Antropologia Joel Candau questiona

a passagem de formas individuais a formas coletivas da memória e identidade. Para ele,

Nenhuma sociedade come, dança ou caminha de uma maneira que lhe é

própria, pois, apenas os indivíduos, membros de uma sociedade, adotam

maneiras de comer, dançar ou caminhar que, ao se tornarem dominantes,

majoritárias ou unânimes, serão consideradas como características da

sociedade em questão (CANDAU, 2014, p. 24).

Para o autor, os membros de um grupo, ao acionar sua memória, farão isso de maneira

individual, ou seja, mesmo inconscientemente, produzirão a respeito de uma memória que

supostamente é comum a todos os membros desse grupo. No caso da categoria identidade,

o autor a coloca numa aproximação de semelhança ou de similitude, haja vista que, segundo

aponta, o termo identidade nunca pode designar com rigor uma “recorrência”. Para ele, “em

um momento preciso de uma observação um indivíduo é idêntico a ele mesmo, mas duas

pessoas – mesmo que se trate de gêmeos – jamais são idênticas entre elas” (CANDAU, 2014,

p. 25). Nesse sentido, para o autor, a identidade nada mais é que uma representação.

Trouxemos a abordagem de Candau (2014) para relacionarmos a categoria memória com

a categoria identidade, num sentido de demonstrar que as identidades coletivas só existem por

conta de memórias individuais. Exemplificamos o que seriam as duas facetas da análise sobre

identidade: a que a posiciona como identidade coletiva, aprendida, apreendida e “inventada” por

um grupo; e, a que a considera somente como representação, isto é, a soma de representações

individuais acerca das formas individuais que foram predominantes no passado. De certa forma,

consideramos que uma faceta não elimina a outra, até porque, a nosso ver, isso seria praticamente

impossível, entretanto, se complementam. O fato é que, quando os grupos identitários, no caso

os grupos de sujeitos quilombolas contemporâneos, acionam suas memórias individuais e

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coletivas o fazem dentro de um contexto coletivo, identitário e político de pertencimento

territorial. Esses grupos acionam suas memórias para justificar tal pertencimento.

Sobre isso, Hobsbawn (1997) indica que complexos simbólicos e rituais podem ser

(re)criados dependendo da finalidade que se almeja numa sociedade e dentro de um período

histórico. Ao analisar o sentido do passado, o autor alerta que a tradição pode ser forjada,

principalmente, se o contexto aponta para a possibilidade de ganhos políticos e materiais.

Porém, Hobsbawn (1997) adverte que nas “sociedades tradicionais” há também uma

necessidade de inovar, ou seja, para legitimar o novo, inventa-se o velho. Tal inovação pode

ser disfarçada como retorno ou redescoberta de alguma parte do passado “erroneamente”

esquecida, acontecendo, assim, uma “invenção da tradição”1.

Além disso, assim como demonstra a geógrafa Maria Idelma Vieira D’Abadia, ao

estudar as representações espaciais e simbólicas de festas religiosas em Goiás, a identidade

coletiva imprime no espaço suas marcas e territorialidades na perspectiva da dinâmica

geográfica. Para a autora, a identidade coletiva influencia na organização territorial

(D’ABADIA, 2012). Seguindo nesse viés, em que território e identidade são categorias

indissociáveis para o estudo das comunidades quilombolas, notamos que o simples ato do

autorreconhecimento não lhes garantiu (e nem lhes garante) que seus direitos,

principalmente aqueles ligados à terra e/ou moradia, fossem (sejam) acatados pelo Estado.

3. Comunidades quilombolas rurais: passos e (des)compassos

Em direção a um sentido estritamente territorial, como algo palpável, percebido e

delimitado, a realidade das comunidades quilombolas (notadamente as rurais) nos faz concordar

com Bonnemaison (2002, p. 108), quando afirma que a perda de um território pode se configurar

em um “etnocídio”, pois, a “esperança das pessoas gira em torno de determinados lugares

carregados de história e símbolos”. Do mesmo autor, absorvemos que as identidades individuais

e coletivas são fortemente vinculadas à consciência territorial, isto é, à territorialidade do grupo.

Em outros termos, dentre os sujeitos quilombolas sempre haverá a perspectiva de se viver e de

pertencer a um território, onde haja a mínima possibilidade de sentir-se em casa, de poder efetuar

suas trocas materiais e espirituais e de promover o exercício da vida.

1 Ver introdução do livro: HOBSBAWM, N. E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1997.

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Para o autor,

O território apela para tudo aquilo que no homem se furta ao discurso

científico e se aproxima do irracional: ele é vivido, é afetividade,

subjetividade e muitas vezes o nó de uma religiosidade terrestre, pagã ou

deísta. Enquanto o espaço tende à uniformidade e ao nivelamento, o

território lembra as idéias de diferença, e etnia e de identidade cultural

(BONNEMAISON, 2002, p. 126).

As ideias do autor nos permitem dizer que uma comunidade quilombola, através de

seu território, estabelece suas práticas identitárias e reconstrói outros significados para as

dinâmicas socioespaciais. Dessa forma, pela necessidade do território, em seus mais variados

sentidos (de lar, de “pausa”, de “lugar-mundo-vivido”, abstrato, entendido por meio de

experiências, signos e símbolos, dentre outros), os sujeitos quilombolas, levando-se em conta

as suas mais diversas experiências, têm reivindicado a manutenção de seus territórios, a

conquista de partes de seus territórios que foram apossados por não quilombolas e/ou a

conquista de territórios específicos, ocasionando, geralmente, em situações de conflitos.

Em Goiás, por exemplo, o que se tem até o momento são fragmentos de uma composição

geral que indicam disputas territoriais e ambientais, assim como aspectos do racismo institucional,

vistos como fenômenos recorrentes que compõem um quadro adverso às populações quilombolas

no território goiano. À semelhança do que ocorre por todo o país, as comunidades quilombolas em

Goiás formulam reivindicações com vistas à garantia de direitos de usufruto do território e

manutenção de vida. No entanto, ainda que existam legislações federais e estaduais, há lacunas ou

omissões na sua aplicação, implicando num lento procedimento de titulação das terras quilombolas

que se coaduna com a rígida estrutura agrária brasileira.

Observa-se que foi principalmente com a Constituição Federal de 1988 que a questão

quilombola entrou na agenda das políticas públicas. Conforme já dito, fruto da mobilização

do movimento negro, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

(ADCT) diz que: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando

suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os

respectivos títulos” (BRASIL, 1988). Frente a isso, as comunidades quilombolas se

mobilizaram (e têm se mobilizado) a fim de serem reconhecidas2.

2A Emissão da certificação da Fundação Cultural Palmares (PCP) segue os procedimentos definidos na portaria

FCP no 98 de 2007 que incluem a apresentação da ata da assembleia onde a comunidade aprova o seu

reconhecimento como quilombola e relato sintético da trajetória comum ao grupo (história da comunidade); a

declaração de autodefinição de que são quilombolas, base territorial, dados da sua origem, número de famílias,

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Os procedimentos para a identificação e titulação das terras quilombolas são

orientados por legislação federal e por legislações estaduais. As legislações estaduais são

seguidas quando a titulação é conduzida por um órgão do governo do Estado. Na esfera

federal, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o órgão responsável

por titular as terras de quilombo, seguindo os procedimentos estabelecidos no Decreto

Federal no 4.887 de 2003 e na Instrução Normativa Incra no 57 de 2009, o que torna o

processo de titulação ainda mais burocratizado.

Na realidade, o primeiro passo na longa caminhada para a obtenção da titulação de

um território quilombola é a certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares (FCP).

Atualmente, no Brasil, 2.607 comunidades já foram reconhecidas oficialmente como

quilombolas (dados da FCP atualizados até setembro de 2015). Conforme os dados

disponibilizados pela Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPISP), o Incra, em 2014, titulou

somente sete terras quilombolas, todas parcialmente. As demais foram regularizadas por

governos estaduais. De acordo com a CPISP, com as titulações de 2014 sobem para 154 as

terras quilombolas tituladas no Brasil sendo que, ao menos, 29 delas apenas foram

parcialmente regularizadas. Segundo a mesma instituição, permanecem no aguardo de

conclusão pelo Incra mais de 1.400 processos.

4. Breves considerações sobre “quilombos urbanos”: o caso do Jardim Cascata

Na análise dos territórios urbanos de quilombolas, foi em Raffestin (1993, p. 144)

que encontramos o aporte necessário para abarcarmos o espaço do qual os grupos étnicos se

apropriam “concreta ou abstratamente pela representação”. Nas expressões adequadas desse

autor, trata-se de “um território visto e/ou vivido”, “um local de relações” e, enfim, “o espaço

que se tornou uma relação social de comunicação” (RAFFESTIN, 1993, p. 144-147).

Estudos voltados ao espaço urbano permitem uma transitoriedade sobre noções de

espaço vivido e de reprodução das relações sociais numa perspectiva em que possam ser

reveladas “as práticas sociais dos diferentes grupos que nele produzem, circulam,

consomem, lutam, enfim, vivem e fazem a vida caminhar” (CORRÊA, 2005, p. 32). É na

cidade que se configuram as relações sociais (CAVALCANTI, 2001), que se fragmentam a

jornais, certidões. A área certificada é submetida a um rigoroso laudo antropológico, que dá origem ao

Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Esse procedimento vale para os quilombos rurais e

urbanos (Dados da Fundação Cultural Palmares, consulta em setembro de 2014).

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sociedade por meio de aspectos sociais, culturais, raciais e de gênero, portanto, a nossa

pesquisa não pode se ausentar do espaço urbano para enfocar contradições, espacialidades

vividas diferenciadas por quilombolas que se apropriam do território.

Dessa forma, ao nos referirmos aos chamados quilombos urbanos, referimo-nos aqui,

aos grupos que, em meio a um contexto urbano multicultural, fragmentado e em eterna dinâmica,

demarcam sua identidade mobilizando critérios étnicos. Veja-se, nesse sentido, a definição

weberiana de grupo étnico enquanto aqueles que compartilham uma crença subjetiva em origens

presumidamente comuns, costumes que a distinguem e destinos comuns (WEBER, 1994). É o

próprio Max Weber que identifica que as relações políticas são, muitas vezes, propulsoras do

que denomina “comunhão étnica”. Em muitos casos, cita o autor, tal propulsão advém de

diferenças étnicas preexistentes que ganham força diante de certas circunstâncias políticas.

Para diferentes comunidades quilombolas urbanas, as relações tensionais com outros

grupos sociais – que notadamente se apresentam como risco de desapropriação,

desterritorialização e dissolução dessas comunidades – catalisam o fortalecimento de

identidades coletivas como ponto nevrálgico da resistência comunitária. As diferenças

raciais que motivam a discriminação e não realização completa da cidadania entre esses

grupos são repensadas, quando de seu autorreconhecimento, enquanto comunidades

remanescentes de quilombos. As identidades sempre se constroem na relação entre os grupos

sociais – posição esta que nos direciona o olhar sobre os processos sociais, algo que garante

o afastamento de perspectivas essencialistas acerca das culturas e identidades.

Neste sentido, os assim chamados quilombos urbanos contemporâneos configuram-se

como grupos sociais de resistência a um sistema de exclusão, comunidades de ascendência

marcadamente negra – mas não exclusivamente –, no geral empobrecidas, com ethos e costumes

diferenciados dos grupos que lhes circundam. Um confinamento espacial é proporcionado pela

marginalização por parte das políticas públicas. A ausência de políticas específicas para um

contingente dotado dessa peculiaridade histórica e a precariedade das políticas universalistas

conformaram os quilombos urbanos como espaços socialmente distantes.

É nesse campo de discussão que se situa a comunidade do Jardim Cascata, situada na

cidade de Aparecida de Goiânia - Goiás, região metropolitana de Goiânia - Goiás. Podemos

afirmar que a chegada da família Francisco (família da líder comunitária), trouxe novas

dimensões identitárias à comunidade, haja vista que a sua autoatribuição como quilombola

trouxe ao coletivo a possibilidade de reconhecimento oficial pela Fundação Cultural Palmares

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(FCP) em 12 de fevereiro de 2007. Para a comunidade, a escolha de “ser” ou de “tornar-se”

quilombola, além de demonstrar a lógica que permeia as ações reivindicativas dos integrantes

de uma associação quilombola, permite uma maneira de pensar seu território como algo

constituído por sujeitos que possuem trajetórias “semelhantes”, que não seja somente a

ancestralidade africana, mas que lhes permitem ser percebidos como “sujeitos de direito”.

Antes mesmo de sua certificação pela FCP, e com a necessidade de desenvolver

programas e projetos voltados à raça negra e afrodescendentes, e, talvez, como estratégia

para que houvesse o reconhecimento pela FCP, o grupo decidiu pela criação da Associação

Quilombola Urbana Jardim Cascata (AQUJC), oficializada em 21 de maio de 2006, com

vistas a “solucionar e/ou amenizar os problemas socioeconômicos e as desigualdades”

(constante na ata de fundação da AQUJC).

A AQUJC tem, em certa medida, adquirido visibilidade frente à atual gestão

municipal e, inclusive, à nacional: por intermédio da articulação política, efetivada,

principalmente, por parte da liderança do grupo, setenta e três famílias de associados que

receberão, ainda esse ano (a Caixa Econômica Federal prevê a entrega em outubro de 2015),

casas advindas de políticas de habitação para famílias quilombolas3. Essas casas foram

edificadas em território específico na Vila Delfiori (bairro vizinho ao Jardim Cascata), em

Aparecida de Goiânia-Goiás. Conforme dito, mediante tal acontecimento, setenta e três

famílias quilombolas conviverão num mesmo território, constituindo um lugar e, talvez,

consolidando uma identidade territorial (os futuros estudos poderão nos indicar). Esse

território é denominado de “Quilombo II” pela AQUJC.

Assim, os quilombolas do Jardim Cascata vinculam o seu território específico (o

chamado “Quilombo II”) ao sentido de lar, haja vista que, para eles, é o lugar onde criarão

os seus filhos, promoverão as suas festividades, os eventos culturais e religiosos, a realização

de projetos sociais e a consolidação de uma vida em comunidade.

Considerações Finais

Falar de comunidades quilombolas atuais não é tecer considerações

descompromissadas com a realidade desse grupo social: é evidenciar, dentre outros sentidos,

3 Ver programa do Ministério das Cidades para quilombolas <http://www.cidades.gov.br/habitacao-

cidades/habilitacao-de-entidades>.

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a trajetória de formação e de resistência de grupos etnicamente diferenciados, os quais,

enquanto comunidades assumem uma postura de afirmação perante uma sociedade ainda

fortemente marcada por diferentes práticas discriminatórias.

São notórias as dificuldades enfrentadas pelas comunidades quilombolas rurais ao se fazer

cumprir o que já é garantido pela Constituição Federal, o que pode ser observado no lento processo

de reconhecimento e de titulação de suas terras. Quanto à construção de suas territorialidades, tais

comunidades assumem a importância de seus territórios e reproduzem, por meio de trajetórias de

ancestralidade africana, mas não exclusivamente, práticas de autoafirmação, mantendo suas

relações sociais e, dependendo das circunstâncias, (re)definindo suas identidades.

Quanto aos denominados “quilombos urbanos”, a partir do momento em que

indivíduos, mesmo que inconscientemente, (re)pensam a lógica do ordenamento urbano,

tem-se o desenvolvimento de condutas comunitárias da periferia em busca de melhorias

sociais. Nesse viés, as comunidades quilombolas urbanas também tem se organizado em

Associações Comunitárias para a conquista de direitos sociais e, de certa forma, para a

aquisição de “empoderamento”, este aqui entendido como o fortalecimento dos sujeitos nos

espaços de participação social e democratização política.

Em relação ao nosso estudo, esperamos que sirva de referência para as futuras

gerações de pesquisadores que queiram trilhar nas análises sobre os quilombos urbanos no

estado de Goiás. Pretendemos, ainda, que a nossa pesquisa contribua com a própria

comunidade pesquisada no sentido de resgatar e/ou preservar, em certa medida, as memórias

relativas à formação territorial e identitária daquela comunidade.

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EDUCAÇÃO EM ARQUIVOS MUNICIPAIS: O CASO DO ARQUIVO

MUNICIPAL DE VITÓRIA

Fabíola Pereira Costa UFES

Guilherme Alves da Costa UFES

Resumo: Constituídos de fundos documentais remanescentes de evidências e manifestações

culturais, os arquivos públicos municipais possuem um papel social relevante para o trabalho

educacional, voltado ao patrimônio cultural por razão de sua potencialidade de uso para a promoção

de experiências com documentos, e a utilização dos mesmos, como fontes primárias de conhecimento

individual e coletivo. A intenção de se diversificar os instrumentos de ensino é a de aproximar o

aprendizado por intermédio de elementos do cotidiano, fazendo com que o conhecimento se

apresente como algo mais compreensivo. Diante disso, o escopo deste trabalho busca dialogar com

o Arquivo Público Municipal da cidade de Vitória. Além disso, circunscreve a importância dos

acervos municipais à luz do processo de ensino- aprendizagem.

Palavras-chave: arquivos; educação; fonte didática.

Abstract: Made up of remaining documentary funds of evidence and cultural events, the municipal archives

have an important social role in the educational work aimed to cultural heritage by reason of its potential

use for promoting experiences with documents, and the its use, as primary sources of individual and

collective knowledge. The intention to diversify teaching tools is to approach learning through everyday

elements, so that the knowledge is presented as something more comprehensive. Thus, the scope of this

study seeks to dialogue with the Municipal Public Archives of the city of Victoria. In addition, limited the

importance of municipal collections in light of the teaching-learning process.

Keywords: archives; education; didactic source.

Introdução

Quando tratamos do ensino, discutimos inicialmente sobre metodologias tradicionais

para se chegar ao conhecimento. Porém, o ensino contemporâneo tem se mostrado mais

aberto a mudanças capazes de incorporar aos seus métodos instrumentos que auxiliem no

enriquecimento do processo de ensino-aprendizagem, tornando-o cada vez mais dinâmico.

A inserção de ferramentas diversificadas ao ensino tem por propósito aprimorar o

aprendizado por intermédio de elementos do cotidiano do aluno, fazendo com que o

conhecimento se apresente de maneira mais compreensível. Alguns desses novos elementos

já são velhos conhecidos dos alunos, mas se apresentam de forma mais tímida quando

inseridos em sala de aula, como jornais, revistas e o uso orientado dos computadores.

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Os arquivos ainda não alcançaram a visibilidade e a importância que precisam ter,

mas a partir de ações pedagógicas, ou até mesmo culturais, a sociedade consegue

compreender a importância que o arquivo possui. Essas ações não precisam estar ligadas

apenas ao desenvolvimento do arquivo. Diante disso, o ponto central reside em abrir

discussões a respeito da instituição de arquivo no processo de ensino-aprendizagem no

âmbito do Município de Vitória.

1. O Arquivo Público Municipal de Vitória

A Lei Municipal de n.º 4/1909, que fez a reorganização administrativa do Município

de Vitória, já mencionava um setor para a guarda e a preservação de documentos. A partir daí,

teve-se o início do Arquivo Público Municipal de Vitória, no período de governo Ceciliano

Abel de Almeida. Em 1941, já no período da administração de Américo Poli Monjardim, o

Arquivo Público Municipal de Vitória foi regulamentado pelo decreto 967/41, dando início a

um período de transformações no setor que seria o custodiador da memória municipal.

O Arquivo Público Municipal reúne em seu acervo vasta quantidade de documentos

do município, tais como jornais dos séculos XIX e XX, ofícios, petições, requerimentos,

documentos contábeis, além de fotografias, filmes e negativos de vídeo, dentre outros que

foram acumulados durante a vida administrativa de Vitória. No local também podem ser

encontrados processos administrativos, documentos de pessoal como folha de ponto e

frequência, documentos relativos a óbitos, informações de imóveis, mapas, plantas, projetos,

leis, decretos, resoluções e autógrafos de lei. O acervo é constituído de obras raras e tem

cerca de 2.550 metros lineares de documentos, não incluindo aqueles que estão

acondicionados em caixas de arquivo, como livros, mapas e plantas, entre outros.

A missão do Arquivo Público Municipal é coordenar e desenvolver a política e a

gestão arquivística de documentos da prefeitura, agilizando o acesso às informações

produzidas pela administração municipal, contribuindo para a eficiência administrativa.

Além disso, destina-se a preservar a memória institucional para servir como referência,

informação, prova ou fonte de pesquisa.

Entre as suas atividades, estão o atendimento ao cidadão e à Prefeitura, o apoio

à gestão documental, a elaboração de instrumentos de pesquisa, a higienização e a

conservação de documentos, a transcrição de manuscritos. As consultas podem ser feitas no

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local com equipamentos de proteção individual disponibilizados pela instituição. O

Arquivo Público da cidade de Vitória é aberto ao público em geral.

2. Os arquivos e suas possiblidades de interação com a educação

Definida como técnica de ensino ou arte de ensinar, a didática é a área da

pedagogia que trata das metodologias de ensino. Os elementos que ela envolve são: o aluno,

o professor, a disciplina e as estratégias metodológicas. Por se tratar de uma ferramenta

presente no cotidiano do professor, a mesma encontra-se em frequente mudança,

principalmente no que envolve suas estratégias metodológicas que variam de acordo com o

conteúdo e com o contexto da aprendizagem propostos.

De acordo com Libâneo (1990):

A ela cabe converter objetivos sócio-políticos e pedagógicos em objetivos

de ensino, selecionar conteúdos e métodos em função desses objetivos,

estabelecer os vínculos entre ensino e aprendizagem tendo em vista o

desenvolvimento das capacidades mentais dos alunos. [...] trata-se da teoria

geral do ensino (LIBÂNEO, 1990, p. 25-26).

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), “aprender é uma tarefa

árdua, na qual se convive o tempo inteiro com o que ainda não é conhecido” (PCN, 1998,

p. 94). E, por esse motivo, o ensino precisa mostrar-se flexível ao adotar novas formas de

interação com o educando.

Quando falamos de ensino, devemos pensar que não há uma única forma de

apresentá-lo e que a escola não é o único ambiente em que ele acontece. Para Brandão

(2006, p. 9), “o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o

seu único praticante”. Temos conhecimento de que outras instituições, além das escolas,

acumulam experiências humanas e conhecimentos no decorrer dos tempos que podem

contribuir na formação e desenvolvimento dos indivíduos como seres sociais. Porém, ter

conhecimento apenas não basta, é preciso haver intervenção no processo de assimilação

desses conteúdos, como também instituições que possibilitem aos indivíduos a formulação

do aprendizado. Inicialmente, essa intervenção fica por conta da pedagogia, que cria

meios para sua aplicação no âmbito do processo de ensino-aprendizagem, mas que em

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conjunto favorece a aplicação nas mais diversas formas de assimilação de conteúdo,

interagindo assim com novas áreas do conhecimento.

A cooperação do Arquivo Público Municipal de Vitória com escolas de nível

fundamental e médio pode ocasionar um ensino de grande valia. De acordo com Payne (apud

Bellotto, 1991, p. 231),

O desenvolvimento de laços entre os arquivos e a educação não depende só da

compreensão do papel que a educação deve exercer no mundo

contemporâneo; são igualmente importantes o reconhecimento do verdadeiro

valor dos arquivos como fonte educativa e a vontade de transformar o valor

educativo potencial dos arquivos em programas positivos e realistas.

Para que os objetivos educacionais sejam atingidos é preciso que os conteúdos

deixem de ser estáticos, e que, em lugar de gerarem a aceitação passiva daquilo que é

ensinado, passem a ser conteúdos que permitam a produção do conhecimento como algo

dinâmico e em constante redescoberta. Se assim feito, o ensino passará a ser visto pelos

alunos como algo atraente, satisfatório e prazeroso. Para Libâneo (2004, p. 157),

[...] a prosperidade das escolas não depende somente de sua tradição

pedagógica, mas depende muito do esforço criativo das pessoas que hoje

fazem parte da organização educativa para torná-la capaz de atender às

exigências do contexto atual.

O processo de ensino-aprendizagem não depende exclusivamente do professor, por esse

motivo torna-se crucial uma abordagem minuciosa a respeito da importância da inserção de novas

ferramentas como contribuintes dentro desse processo. Os recursos didáticos servem para

multiplicar a potencialidade de envolvimento dos discentes na construção do saber. O arquivo

surge como um incentivador na compreensão dos conteúdos propostos pelo docente.

O processo de mediação do arquivo traz consigo o objeto de ensino sob diferentes

possibilidades de compreensão. Assim, o professor e o profissional que vierem a atuar

sobre tal mediação detêm o papel de selecionar e organizar as informações de modo que a

mesma seja próxima à realidade do aluno, visando além da construção do saber, fomentando,

assim, o incentivo para o exercício da cidadania, que é possível por intermédio do espaço e

das informações que são disponibilizadas pelo arquivo.

Ao professor cabe a tarefa de desenvolver em seus alunos o desejo de produzir

pensamentos independentes e a capacidade de reflexão própria ao dispor de novos métodos no

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processo de aprendizagem. No conjunto de estímulos para a construção desse desejo, qualifica-se

o arquivo como um espaço alternativo para o desenvolvimento de aulas tanto expositivas quanto

dinâmicas, oferecendo ao educando atividades que favoreçam sua aproximação ao conhecimento.

Essas atividades possuem mais sentido quando enquadradas à história regional,

devido à especificidade dos documentos dispostos nos Arquivos Públicos Municipais. No

âmbito da história regional, o Arquivo Público Municipal se apresenta como um grande

cooperador ao levarmos em conta os diversos documentos que possui sob sua guarda, nos

quais grande parte da história do município é preservada desde sua fundação até sua

cultura e o modo de vida da sociedade em que está inserido.

Assim, um documento redigido em homenagem ao “fundador” da cidade pode ser uma

referência à história da própria, bem como pode relacionar-se ao legado da sua cultura regional,

portanto, por meio deste exemplo, subentende-se que o arquivo pode ser tomado como um espaço

de educação e cultura, como também de lazer, emergindo assim, como um lugar da memória.

Ao apresentar o documento ao aluno, convém apresentar também o contexto no qual

o mesmo foi produzido. Para isso, cabe ao profissional de arquivo enquadrá-lo ao conteúdo

a ser ministrado pelo professor com base nos programas curriculares estipulados. A

interpretação do documento se dará a partir de um roteiro elaborado e apresentado ao aluno

para que o documento e seu contexto possam ser analisados. Segundo Bittencourt (2008, p.

332), esse roteiro pode ser dividido em três fases:

Sobre a existência do documento: o que vem a ser o documento? O que é

capaz de dizer? Como podemos recuperar o sentido do seu dizer? Por que

tal documento existe? Quem o fez, em que circunstâncias e para que

finalidade foi feito?

Sobre o significado do documento como objeto: como e por quem foi

produzido? Para que e para quem se fez essa produção? Qual é a relação

do documento com o seu contexto histórico? Qual a finalidade e o que

comanda a sua existência?

Sobre o significado do documento como sujeito: por quem fala tal

documento? De que história particular participou? Que ação e pensamento

estão contidos em seu significado? O que fez perdurar?

Ao seguir o roteiro e de posse das respostas, o aluno poderá expressar sua

interpretação sobre o documento e relacioná-la ao conteúdo proposto pelo educador,

produzindo assim o conhecimento.

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3. O Arquivo Público Municipal de Vitória e as práticas pedagógicas

Independente de sua natureza, os documentos são antes de tudo a materialização de

uma memória cultural. Os registros depositados em instituições de arquivos evocam o

patrimônio cultural de um povo. Segundo o Dicionário de terminologia arquivística (1986,

p. 5) os arquivos são “conjuntos de documentos que independentes de sua natureza ou

suporte físico, são reunidos por acumulação natural por pessoas físicas ou jurídicas, públicas

ou privadas, no exercício de suas atividades”.

Há uma dualidade entre a gestão administrativa e a função histórica nas instituições

arquivísticas. De fato, é necessário pensar os arquivos em uma perspectiva da administração

moderna, como tem sido feito por correntes de estudos da Arquivologia.

Todavia, os arquivos exclusivamente como um apêndice da administração moderna

não corresponde a todas as suas funcionalidades.

Segundo Delmas (2010), os arquivos possuem a função de provar, compreender,

identificar-se e lembrar-se. No que se refere à primeira, entende-se que os arquivos

correspondem a provar direitos como uma utilidade jurídica e judiciária. Ao abordar o campo da

compreensão dos arquivos, o autor considera que há uma utilidade científica de conhecimento,

à medida que aponta que a funcionalidade de identificar-se corresponde pela transmissão da

memória, ficando essa como uma utilidade social. Lembrar-se como uma utilidade de gestão,

assim, entende-se que essa função se dá por meio e para além dos documentos. Por isso, a

memória composta nos arquivos possibilitaria a constituição da identidade.

Alberch Fugueras (2001) entende que os arquivos são depósitos de memórias, em

sua função, os arquivos seriam um dispositivo que possibilitaria o incentivo, como também,

a recuperação da memória coletiva. Sendo os documentos produtos do ser humano, a

utilização da memória vem contribuir para o fortalecimento da identidade regional, quando

falamos de arquivos públicos municipais.

Os arquivos públicos municipais podem ser mediadores na formação e na construção do

conhecimento, bem como da memória por meio do patrimônio documental sob sua custódia.

Assim, precisa-se ter em mente que o arquivo constitui-se de uma memória da sociedade, que

deve ser amplamente compartilhada e que, desse modo, a possibilidade de aproximação de

fontes de conhecimento desenvolve uma nova postura do público envolvido, tanto em relação

ao acervo e sua importância quanto em relação ao conhecimento construído a partir do mesmo.

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Bellotto (2014) compreende que os arquivos possuem um sentido de serem

instrumentos, de serem ferramentas. “Os arquivos permanentes públicos são centros

armazenadores do patrimônio documental, da archivalia, que é parte do patrimônio histórico

e cultural de uma comunidade, de uma cidade, estado ou país” (BELLOTTO, 2014, p.

8). Assim, o Arquivo Público Municipal de Vitória – composto por fundos remanescentes

de uma cultura material – pode ser utilizado como uma ferramenta que venha servir à

cidadania, integrando o contexto social da instituição. No entanto, a elaboração e

implantação de uma política pública e de leis de arquivo em âmbito municipal ainda

requerem atenção das autoridades para que haja incentivo e condições concretas para o

desenvolvimento de ações didático-pedagógicas nestas instituições.

Cabe aqui retomar as considerações de Garbinatto (2000, p. 45): “O patrimônio é

uma construção social coletiva, pertence a todos e todos os cidadãos devem ter o direito

e o dever de preservá-lo, como possibilidade de resgate de sua identidade social”. Ao

passo que o conceito de patrimônio documental está diretamente ligado aos documentos que

já cumpriram suas funções precípuas, ou seja, aqueles que já passaram pelo seu ciclo

corrente e foram avaliados para guarda permanente devido a sua densidade informacional,

servindo, assim, como testemunho para gerações futuras.

Nesse sentido, é importante compreender a utilização da informação registrada que

melhor atenda às demandas para a execução das práticas educativas no Arquivo Municipal

de Vitória, de modo que os alunos se tornem sujeitos ativos no processo de construção do

conhecimento, e não meros objetos.

Segundo Guitard (2014), os documentos de arquivo despertam emoções e certas

condições são intrínsecas a esses documentos e outras, extrínsecas. A emoção é uma

parte dormente, esperando por um olhar, uma apresentação: são as circunstâncias que

permitem ao arquivo tomar forma e manifesto. Os arquivos e os documentos podem

estabelecer laços emocionais e intelectuais com as pessoas e os acontecimentos de épocas

anteriores, por terem a capacidade de evocar, fazer lembrar as coisas esquecidas. Neste

sentido, o patrimônio documental local contribuiria para o fortalecimento dos laços de

identidades regionais. Cumpre frisar que inclusive a dimensão material dos arquivos e os

vestígios da passagem do tempo são suscetíveis de suportar uma experiência emocional.

A partir da compreensão de que os documentos de arquivos são ricos, muito pode ser

feito para fomentar e viabilizar o seu acesso ao público. As instituições arquivísticas, com

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toda sua pluralidade, possuem um vasto acervo, que, se tratado de forma correta, certamente

atrairá a sociedade, pesquisadores e outros para conhecer um pouco da sua história. A

inexistência de um respaldo político/legal por meio de políticas públicas de difusão

educativa em arquivos no âmbito do Município de Vitória se coloca até então como

um conjunto de fatores que devem ser analisados em seus contextos, e não apenas

isoladamente. José Maria Jardim considera que:

De forma sintética, entende-se por políticas públicas arquivísticas o conjunto

de premissas, decisões e ações – produzidas pelo Estado e inseridas nas

agendas governamentais em nome do interesse social – que contemplam os

diversos aspectos (administrativo, legal, científico, cultural, tecnológico, etc)

relativos à produção, uso e preservação da informação arquivística de

natureza pública e privada (JARDIM, 2003, p. 39).

A estreita relação entre arquivos, educação e cultura ainda é pouco explorada em

uma perspectiva teórica e prática da Arquivologia brasileira, porém é consolidada na

legislação arquivística, pois se relaciona frequentemente à temática da preservação do

patrimônio documental.

De acordo com Jardim (2008), as leis que versem especificamente sobre o arquivo

e sua atuação cultural podem contribuir significativamente para área, mas para que isso

aconteça, suas diretrizes precisam ser reconhecidas e executadas pelos arquivistas. Desse

modo, o Arquivo Público Municipal da cidade de Vitória, ao se conceber como um órgão

intermediador para a aplicabilidade da política pública arquivística ligada à educação e

cultura, tem que se colocar de forma prudente ao se deparar com casos em que haja a

necessidade de se fazer uma autocrítica das legislações e práticas vigentes na instituição,

no intuito de que as mesmas não se tornem obsoletas. Convém circunscrever que é

consensual a eclosão internacional de profissionais que vislumbram a natureza didático-

pedagógica dos arquivos, como destaca Aldabalde (2011, p. 2-3):

O arquivo é local para a aprendizagem da cidadania tendo em vista seu

interesse público como lugar de desfrute didático-pedagógico do

Patrimônio Arquivístico e do direito humano à memória e a verdade.

No século XX, a educação nos arquivos ganhou vulto após a Segunda

Grande Guerra Mundial quando teóricos como Tate, Pernoud, Bautier e

Duchein produziram bases e diretrizes para adoção dos arquivos enquanto

materiais didáticos, bem como para implantação de serviços educativos

nas instituições arquivísticas.

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2065

No que diz respeito às políticas municipais direcionadas ao patrimônio cultural e à

cidadania, subentende-se que as atividades dos serviços de difusão cultural e de ação

educativa nos arquivos sejam um recurso viável, pois a mesma configura-se como um

modo de divulgar o patrimônio documental em uma perspectiva voltada ao munícipe,

tornando-o um sujeito partícipe em seu contexto social local, fazendo assim com que o

cidadão compreenda que ali estão depositadas suas heranças identitárias.

É relevante sublinhar que, se as instituições de arquivo assumirem sua postura

no âmbito administrativo, assegurando o seu papel no contexto social, divulgando o seu

patrimônio documental arquivístico junto ao cidadão, de fato estarão cumprindo as suas

funções primordiais em uma perspectiva democrática. Se o Arquivo Municipal de Vitória

incorporar-se a programas de cooperação com escolas, no intuito de expor e aprofundar o

ensino da história e da cultura regional, estará contribuindo para formar um cidadão capaz

de compreender a realidade social e cultural na qual está inserido. Nesse sentido, as

práticas educativas nos arquivos públicos municipais se tornariam um poderoso recurso, uma

vez que são esses arquivos os mais próximos do cotidiano dos cidadãos.

No que concerne aos profissionais de arquivo e às práticas educativas, convém

esboçar algumas considerações: o profissional deve participar de todo o processo. Isso

consiste em interesses intrinsecamente relacionados às práticas educativas, no intuito de que

esse conhecimento seja mediado de forma inteligível. Uma das finalidades fundamentais do

arquivo é a disseminação da memória. Sendo assim, o interlocutor dessas informações

seria o arquivista, ao preservar os documentos, dar-lhes voz e transmitir tais informações.

O profissional de arquivo seria quem busca um posicionamento estratégico sob o horizonte

do contexto informativo, seria o responsável por pensar ações prospectivas para o tratamento

da informação cultural no âmbito da instituição, para que assim o conhecimento não se

restrinja à prática pedagógica escolar, permeando também a sociedade de um modo geral e

tornando os alunos sujeitos ativos no processo de disseminação do conhecimento

adquirido/construído. Desse modo, repensaria a organização com um viés educativo, junto

ao professor facilitador do processo. Por meio de um programa pré-estabelecido e planejado

com base nos planos curriculares, os professores seriam capazes de promover aulas fora das

escolas, proporcionando o enriquecimento do aprendizado com o contato de diversos tipos

de linguagens dispostas nos documentos de arquivo.

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2066

Esse trabalho promove a aproximação dos estudantes com a instituição e a

prática arquivística, ao mostrar um lugar de descobertas, de busca de novos

conhecimentos, melhorando a compreensão sobre a importância daquele espaço

no contexto histórico-cultural da cidade, do país (CABRAL, 2012, p. 38).

O Arquivo Público Municipal da cidade de Vitória dispõe de inúmeras fontes de

linguagens que, se aliadas ao processo pedagógico com as escolas da região, poderão

contribuir com o processo de ensino/aprendizagem de matérias como história, português,

ciências e geografia, ao desfrutar de um contingente de documentos que compõem seus

fundos de arquivo. Para além das questões educacionais citadas, as instituições arquivísticas

são capazes de exercer fascínio sobre o público de um modo geral, pois o arquivo instrui,

diverte e é culturalmente testemunhal. É uma entidade social culturalmente construída e

recriada pela sociedade na qual está inserida capaz de colaborar para ações interativas.

Com base nos estudos preliminares que envolvem as instituições arquivísticas e seu

caráter social, infere-se que o arquivo é capaz de assumir um papel além do já estabelecido.

Desse modo, dentro de suas funções administrativas, é possível que o arquivo contribua para

a formação social. Para que o Arquivo Público Municipal de Vitória alcance um considerável

nível de visibilidade voltada à educação, faz-se necessária a criação de um departamento em

seu eixo organizacional, de modo que este ficaria responsável por contatar-se com o público

externo, bem como promover eventos de marketing das atividades desenvolvidas.

Por fim, este trabalho teve por intuito abrir espaço para discussões que norteiam as

instituições arquivísticas e suas possíveis interações com educação, cultura e sociedade.

Podemos analisar as práticas educativas por dois vieses. Primeiro, ao participarem de tal

processo esses usuários – até então incursos dentro de uma política arquivística educacional

– provavelmente voltarão ao arquivo em algum momento, ainda que esse não esteja dentro

de um projeto pedagógico. Segundo, a partir dessa participação – ainda que

involuntariamente – o aluno contribuirá para o processo de marketing da instituição de

arquivo. Logo, tornar-se-á um sujeito ativo no processo de disseminação da informação e

do conhecimento construído no ambiente de arquivo.

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CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NAS MIGRAÇÕES

BRASIL - PARAGUAI - BRASIL EMPREENDIDAS POR PEQUENOS

AGRICULTORES BRASILEIROS1

Jissela Fernanda Pineda Gomezcoello Graduanda em Ciência Política e Sociologia - UNILA. Bolsista de Iniciação Científica da

Fundação Araucária. Agradecemos o apoio da UNILA e da referida Fundação.

Silvia Lima de Aquino Professora Adjunta de Sociologia. Ciência Política e Sociologia - Sociedade, Estado e Política na

América Latina - UNILA.

Resumo: O objetivo deste trabalho é o de estabelecer uma reflexão sobre o processo de construção

e reconstrução identitária por parte de pequenos agricultores brasileiros, que viveram no campo

paraguaio e retornaram ao campo no Brasil, tendo em vista a entrada em um pré-assentamento de

reforma agrária. Para tanto, por um lado, consideraremos as percepções dos mesmos sobre as

experiências pessoais e sociais vivenciadas nestes deslocamentos e, por outro, analisaremos a

influência dessas experiências na construção de representações e significados relacionados ao Brasil

e ao Paraguai e aos termos brasiguaio, brasileiro e paraguaio, uma vez que entendemos que

identidades são relacionais, o que contribui para um permanente processo de construção e

reconstrução das mesmas. O referido trabalho se fundamenta em pesquisa bibliográfica e em fontes

secundárias, bem como em informações coletadas por meio de trabalho de campo, com observação

participante e aplicação de entrevistas semiestruturadas a agricultores brasileiros retornados do

Paraguai e, atualmente, residentes no Pré-assentamento Nelson Mandela, localizado no município de

Lindoeste, pertencente ao estado do Paraná.

Palavras-chave: identidade; migração; brasiguaio.

Abstract: The purpose of this study is to establish a reflection on the process of construction and

reconstruction of the identity, by small Brazilian farmers who lived on Paraguayan field and returned

to the field in Brazil, having as an objective the entry to a Pre-settlement of land reform. To do so,

on the one hand, we will consider their perceptions about their own personal and social experiences

while on these settlements and, on the other hand, we will analise the influence of those experiences

on the construction of representations and meanings related to Brazil and Paraguay and to the terms

Brasiguayan, Brazilian and Paraguayan, once we understand that identities are relational, which

contributes to their permanent process of construction and reconstruction. This work will build on

bibliographic research and on secondary sources, as well as on collected information obtained while

doing fieldwork with participant observation, and application of semi-structured interviews to

Brazilian farmers that returned from Paraguay and, currently, living on the Pre-settlement Nelson

Mandela, located in the municipality of Lindoeste, that belongs to the estate of Paraná.

Keywords: identity; migration; brasiguayan.

1 Esta pesquisa é apoiada pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), através do Programa

de Auxílio à Integração de Docentes e Técnicos Administrativos às Atividades de Pesquisa (PAIP). A apresentação do

trabalho é apoiada pela UNILA a partir do edital de financiamento à participação de discentes em eventos científicos.

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Introdução

O presente trabalho integra um estudo maior chamado “Entre partir e voltar: uma

análise das migrações de saída de agricultores brasileiros para o Paraguai e de retorno dos

brasiguaios ao Brasil”, que tem como objetivo principal a análise da trajetória migratória de

pequenos agricultores brasileiros em direção ao Paraguai e do retorno de agricultores

conhecidos como brasiguaios ao Brasil, a partir do ingresso em acampamentos de

agricultores sem terra ou em assentamentos de reforma agrária. Dentro dessa investigação,

emergiram algumas questões relacionadas à construção e reconstrução das identidades dos

agricultores que fizeram esse trajeto migratório. Estas questões deram origem ao objetivo

deste trabalho, que é o de, por um lado, analisar e compreender, mediante as histórias de

vida dos próprios agricultores, que percepções têm eles sobre a trajetória que fizeram e, por

outro, como, nesse processo, são construídas identidades como a de brasileiro, paraguaio e

as representações sobre o termo brasiguaio.

O referido trabalho se fundamenta em pesquisa bibliográfica e em fontes secundárias,

bem como em informações coletadas por meio de trabalho de campo com observação

participante e aplicação de entrevistas semiestruturadas a agricultores brasileiros retornados

do Paraguai e, atualmente, residentes no Pré-assentamento Nelson Mandela, localizado no

município de Lindoeste, pertencente ao estado do Paraná.

Na primeira parte do trabalho apresentamos um breve debate teórico sobre

identidades e migração, conceitos que nos ajudam nas reflexões sobre a trajetória dos

referidos agricultores. Em seguida, à luz destes conceitos, analisamos, a partir dos relatos

transcritos, as percepções dos pequenos agricultores sobre suas trajetórias e como estas

percepções se vinculam à construção e reconstrução de suas diferentes identidades, bem

como na sua percepção sobre o termo brasiguaio. Por fim, apresentamos algumas

considerações finais a respeito das nossas reflexões.

1. Falando de migração

O significado de migrar é o movimento de se deslocar de uma região para outra, de

uma cidade para outra, de um país para outro. Trata-se de uma movimentação geográfica

dos indivíduos para outros lugares diferentes do lugar de nascimento. O processo de

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migração é capaz de desencadear vários efeitos ou problemas para determinadas sociedades

e para os sujeitos que migram, tais como: pobreza, rupturas familiares, desemprego e

conflitos culturais no lugar de chegada. As migrações são motivadas por vários fatores, como

por exemplo, a tentativa de melhorar as condições de vida e, em muitos casos, se dá por

dificuldades econômicas e privações no lugar de origem.

A migração é um processo composto por duas facetas: a emigração (saída do

território de origem) e a imigração (chegada ao novo território). Conforme Sayad (1998):

[...] O que chamamos de imigração, e que tratamos como tal em um lugar

e em uma sociedade dados, é chamado, em outro lugar, em outra sociedade

ou para outra sociedade, de emigração; como duas faces de uma mesma

realidade, a emigração fica como a outra vertente da imigração, na qual se

prolonga e sobrevive, e que continuará acompanhando enquanto o

imigrante, como duplo do emigrante, não desaparecer ou não tiver sido

definitivamente esquecido como tal [...] (SAYAD, 1998, p. 14).

Estes processos podem ocorrer de duas formas, assim, por um lado, pode ser legal, isto

é, se dá a partir do respeito à legislação, e por outro, pode ser ilegal, o que comumente ocorre no

caso das migrações internacionais, onde indivíduos decidem migrar para um novo território para

melhoria de suas condições de vida, mas possuem escassos recursos e conhecimentos

necessários para providenciar toda a documentação exigida, além de não serem “desejáveis” no

lugar de destino, como percebemos na maioria dos casos a serem analisados neste trabalho.

Abdelmalek Sayad (1998) estabelece interessantes reflexões sobre processos

migratórios. Uma delas repousa na contradição forte entre o caráter provisório e permanente

da condição de migrante, onde: “não se sabe mais se se trata de um estado provisório que se

gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrário, se se trata de um estado mais duradouro,

mas que se gosta de viver com um intenso sentimento de provisoriedade” (SAYAD, 1998,

p. 45). Para este autor, analisar o tema das migrações e dos imigrantes passa por entender,

em primeiro lugar, o que é ser um imigrante, que características esse sujeito tem. Sayad

(1998) ressalta o papel que os migrantes têm frente ao mercado de trabalho, e explica que

sua permanência no lugar de destino depende de até quando se configuram como úteis para

o incremento da economia deste local, devido à sua mão de obra barata, uma vez que não

possuem documentos que os permitam aceder a direitos que os respalde.

As migrações se dão tanto entre cidades como também do campo para a cidade, ou

de uma região rural para outra. Assim, um dos segmentos sociais que comumente migram

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são os agricultores. Este é o caso dos pequenos agricultores brasileiros que, com fins de

melhorar a situação econômica, imigraram para o Paraguai entre os anos 1950 e 1970. Estas

migrações foram impulsionadas pela penetração do capitalismo no campo, no Brasil, a partir

de um processo de modernização de sua agricultura, onde a oferta de créditos e incentivos

para a atividade agrícola se restringiu aos grandes latifundiários, excluindo, deste modo,

diversos grupos sociais, como os pequenos agricultores (MULLER, 1989). Muitos destes,

sem condições de se manterem em suas regiões, começaram a buscar terras em outro lugar,

como no caso de Paraguai, que no mesmo período, oferecia terras a bom preço para os

estrangeiros colonizarem o território. “Consequentemente, a migração aparece para os

camponeses como uma estratégia de sobrevivência, como uma forma de escapar da

exploração do latifúndio” (CADERNOS DE MIGRAÇÃO, 1989, v. 4, p. 47).

Em efeito, muitos dos fenômenos que se agudizaram nestas décadas

refletem a intensificação do domínio do capital [...] crescentemente

globalizado: a difusão crescente do trabalho assalariado; a precarização do

emprego rural; a multiocupação; a expulsão de médios e pequenos

agricultores do setor; as contínuas migrações campo-cidade ou através das

fronteiras; [...] todos esses fatores podem ser relacionados com processos

de globalização e com processos tecnológicos associados a eles, incidindo

sobre a exclusão social [tradução própria] (TEUBAL, 2001, p. 46-47).

As pessoas que migram saem com a ideia de algum dia retornar a sua terra natal, por

isso, o caráter de provisório mencionado por Sayad (1998), embora, quando transcorre o

tempo, a estadia destas pessoas vai-se alongando e estes, em muitos casos, acabam

acostumando-se com a nova terra, ou quiçá a situação econômica melhora. Entretanto, em

outros casos, pode ter ocorrido o contrário, a economia pode ter piorado e aqueles que

migraram acabam por ter que retornar a seu país, cidade ou lugar do qual saíram. O fenômeno

da migração se torna cíclico, é dizer: sair, permanecer, voltar e assim sucessivamente.

Além disso, existe outro aspecto que caracteriza a migração: o papel que tem o migrante

dentro da sociedade que ingressa. Este deve comprovar que a estadia dele no país está

contribuindo, de algum modo, para o desenvolvimento da região de destino, caso contrário “o

próprio imigrante, desaparece no momento em que desaparece o trabalho que os cria a ambos [...]

só tem razão de ser no modo provisório [...] ele só esta aqui e só tem sua razão de ser pelo trabalho

e no trabalho” (SAYAD, 1998, p. 55). Portanto, o imigrante deve permanecer em ocupação e

contribuindo para o crescimento da economia do país receptor. Em contrapartida, se o trabalho

desaparece ou torna-se escasso, e o desemprego emerge, o imigrante perde ainda mais do que um

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próprio cidadão do país, porque ao ser provisório e estar respaldado pela existência do trabalho,

quando este desaparece, desaparece consigo a necessidade da mão de obra imigrante.

Outro aspecto, derivado de processos migratórios, é a ameaça que o migrante

representa para o nacional do outro país, falando em termos culturais, o migrante ao deslocar-

se para outro lugar não perde as caraterísticas e qualidades que lhe dão sentido de pertença

a uma nação ou país de nascimento. Então no momento de estar em outro território, o que

fará este migrante é reproduzir a cultura, costumes, e atividades que sabia fazer

anteriormente no seu lugar de origem. Mas no lugar de destino, os sujeitos também tem a

própria cultura, sendo alguns de seus aspectos vinculados a características nacionais. É neste

ponto, entre os dos lugares e culturas, que se dá um choque cultural. Onde se podem produzir

dois fenômenos: por um lado, sobrevivem ambos os sujeitos no mesmo espaço,

compartilham e trocam aspectos de sua cultura, alterando-as, e, por outro, mesmo que haja

trocas, ainda que não percebidas, a cultura dominante procura quitar da outra sua

legitimidade e reconhecimento, desqualificando-a.

Nesse sentido, as migrações terminam sendo não só um câmbio de território ou um

simples deslocamento de um espaço para outro, uma vez que estes fenômenos implicam e

influenciam também a construção identitária dos indivíduos. Portanto, impactam no campo

subjetivo e cultural desses. Assim, ao migrar, além de procurar melhorar sua condição

econômica, o indivíduo precisa passar por um processo de adaptação ao lugar de destino, já

que, em muitos casos, terá que conviver com uma cultura diferente, aprender como se portar,

as formas de falar, terá que tentar se integrar com os cidadãos da região para qual emigrou.

Ademais, até mesmo o indivíduo que migra e retorna ao lugar de origem, depois de um

tempo, também passa por esse processo, uma vez que dadas as experiências derivadas dos

deslocamentos, não será o mesmo, terá aprendido outras coisas, se acostumou a outros ritmos

de trabalho, a outras formas de falar, comer, etc.

Desse modo, segundo Antunes (1981), os migrantes têm dois problemas

contraditórios: primeiro este migrante está numa sociedade presencialmente na qual não se

reconhece e não é reconhecido, não tem direito a ela; e segundo este migrante não está

presente de corpo na sociedade a qual pertence e na qual não pode então reclamar direitos.

As duas situações tem limitações que terminam numa questão de identidade para o indivíduo

que não sabe já qual é seu papel, lugar, o que fazer e receber. Em qualquer um dos casos o

sujeito está situado numa etapa provisória e insatisfatória. Deste modo, a categoria

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identidade, torna-se fundamental, quando analisamos a imigração a partir de uma perspectiva

subjetiva, em que situações como as mencionadas tornam-se centrais nas reflexões.

2. Falando de identidade...

A identidade é aquele fator que permite um indivíduo posicionar-se de várias e

diferentes formas na sociedade, além disso, é um conjunto de características que definem

uma pessoa e a diferencia de outra. Esta identidade pode ser cultural, nacional, social, e é

formada por vários aspectos. Para Colognese (2012):

O conceito de identidade deriva da raiz latina idem, que evoca os sentidos de

igualdade e de continuidade. Porém, como as identidades não são únicas e

exclusivas, elas se definem relacionalmente umas em relação as outras. […]

a identidade cultural é assumida como um dos componentes da identidade

social. Enquanto tal, as diferenças culturais constituem um dos ingredientes

no processo de categorização das distinções nós/eles. […] concepções

objetivistas e subjetivista da identidade. A concepção objetivista remete a

identidade dos indivíduos às suas raízes, como o fundamento de toda

identidade autêntica. […] já a concepção subjetivista reduz a identidade a

um sentimento de vinculação/ identificação a uma coletividade imaginária,

sendo decisivas as representações e as escolhas que os indivíduos fazem no

processo de classificação social (COLOGNESE, 2012, p. 146).

A identidade então pode ser vista como um fator simbólico que pode ser objetivo

como à nacionalidade que representa e dá caráter de pertencimento ao indivíduo, ou

subjetivo, que será o conjunto de qualidades e características que a pessoa ao longo da sua

vida vai se apropriando, ao ter que conviver com outros indivíduos. Desta forma, a

identidade de um sujeito se constrói sempre com base em outro ou outros. Segundo Stuart

Hall (1992): “[...] nossas identidades surgem de nossa “pertença” a distintas culturas étnicas,

raciais, linguísticas, religiosas e, sobretudo, nacionais” [Tradução própria] (HALL, 1992, p.

1). O autor postula que a identidade é o caráter de pertencer a algo, seja o que for que

diferencie o indivíduo de outro. Hall (1992) entende que, em tempos mais remotos, a

identidade era uma só e única, tendia a permanecer estática como o caso das nacionalidades.

Contudo, com o passar do tempo e surgimento de outros fenômenos, como a globalização,

há ocorrido um desequilíbrio nessa identidade única, provocando uma crise identitária.

O problema da crise de identidade se funda nesse ponto de quebra, descentralização

e divisão da identidade. No entanto, essa crise às vezes tem pontos positivos, onde, como

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fala Hall (1992), se produz um jogo de identidades, no qual elas são definidas para todos os

momentos e circunstâncias, dependendo dos interesses de seus portadores, já que identidades

são móveis, fluídas e se constroem e reconstroem continuamente. Um exemplo deste jogo

de identidades repousa no caso dos agricultores brasileiros ou brasiguaios, em que em alguns

momentos se autodenominam brasileiros, outras vezes, paraguaios, isto dependendo do lugar

e momento no que se encontrem. Portanto, de acordo com Hall (1992):

A identidade se converte numa “festa movível”, visto que é formada e

transformada continuamente com relação aos modos em que somos

representados ou chamados nos sistemas culturais que nos rodeiam [...] o sujeito

assume diferentes identidades em momentos distintos, identidades que não estão

unificadas em torno a um “eu” coerente [tradução própria] (HALL, 1992, p. 3).

O autor sugere que a identidade em todo caso não é algo que apareça do nada, pelo

contrário é uma construção contínua e cambiante nos sujeitos sociais. “Em realidade, as

identidades nacionais não são elementos com os quais nascemos, sim não que são formadas

e transformadas dentro de e em relação com a representação” [Tradução própria] (HALL,

1992, p. 14). Deste modo, em nossa perspectiva, o indivíduo se constrói e reconhece a si

mesmo quando observa, conhece e se relaciona com o outro. Do mesmo modo, nos

fundamentando em Hall (1992), pensamos que a identidade nacional tem o papel de criar

um protótipo ou uma série de caraterísticas peculiares, que diferenciam as pessoas que

nascem em um determinado território frente as que não pertencem. No entanto, muitas vezes

esta identidade nacional pode ser imaginada ou não tão rígida. Isto porque, se por um lado a

nacionalidade representa a identidade da pessoa que nasceu no país, por outro lado, há casos

de pessoas que não nasceram em determinado território, mas que se identificam com as

costumes e atividades do país para o qual imigram.

De modo geral, então, a questão da identidade sempre transpassa os limites e

fronteiras colocados pelos territórios e nações, devido ao fato do indivíduo estar em

constantes transformações. Nesses câmbios, o indivíduo vai se adaptando e adaptando seu

cotidiano a uma série de características e situações novas e alheias, numa permanente relação

com outros na sociedade de destino. “As diferentes identidades somente podem se manifestar

nas fronteiras onde elas se opõem e se separam” (COLOGNESE, 2012, p. 148). Graças à

presença das fronteiras entre os territórios é que se pode diferenciar várias e múltiplas

identidades que podem conviver entre si, e que também podem surgir novas identidades.

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Este é o caso do termo que apareceu depois dos processos migratórios entre Brasil e

Paraguai, que é o brasiguaio, conceito muito complexo de definir de um só jeito, pelas várias

formas que se conhece, sendo o mais comum é que brasiguaio seja usado para identificar

aqueles agricultores brasileiros que vivem no Paraguai, ou também seus filhos que nasceram

lá. Então, essa nova identidade resultou do convívio de brasileiros no território paraguaio,

essa identidade foi a forma de diferenciar este grupo de pessoas dos cidadãos paraguaios.

3. O que é ser brasiguaio...

Após uma revisão bibliográfica sobre o termo brasiguaio, mencionamos algumas das

formas em que se pode defini-lo. Autores como Sprandel (2005), Souchaud (2008), Vaz da

Costa (2013), abordam o contexto brasileiro e paraguaio da década dos 1950 e 1960,

períodos que representam o auge das migrações e ingresso dos brasileiros no Paraguai, desde

então e com essa presença estrangeira é que se vai formando um grupo de indivíduos que,

mais tarde, serão denominados brasiguaios: “campesinos sem terra, vítimas de abusos e

violências conjugadas das autoridades civis e militares de ambas nações” [tradução própria]

(SOUCHAUD, 2008, p. 107). Essa seria uma das definições para o termo brasiguaio.

Entretanto, conforme Souchaud (2008):

O termo brasiguaio se limitava até então a uma conotação estritamente

política, mas se projetou a outra social e sociológica, quando chegam ao

conhecimento da opinião pública brasileira e paraguaia as desventuras às

vezes trágicas desta franja da população. Estes brasiguaios que se

encontram incapazes de inserir no sistema agrário que encontram no

Paraguai se veem obrigados a voltar ao Brasil. Rechaçados na fronteira,

organizam seu retorno clandestino ao Brasil firmemente decididos a fazer

valer seu direito à terra, através da ocupação de terras improdutivas

[tradução própria] (SOUCHAUD, 2008, p. 134).

O que nós queremos ressaltar é que, como fala Vaz da Costa (2013), um nome não basta

e não é suficiente para caracterizar e definir tudo o que um objeto ou situação pode representar,

e um exemplo muito claro é o caso dos brasiguaios, uma vez que esta categoria tem múltiplas

definições dependendo da pessoa, momento e lugar em que se fale. O termo brasiguaio foi

mencionado pela primeira vez por um deputado, na década de 1980, quando as migrações de

retorno dos pequenos agricultores para o Brasil tiveram início (SPRANDEL, 1996).

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No entanto, os paraguaios utilizaram este termo para diferenciar essa comunidade de

brasileiros que chegaram como colonos no campo de seu país e lá ficaram por muitos anos.

Os paraguaios usam este mesmo termo para se referirem aos filhos desses migrantes que

nasceram no Paraguai. O que se deve ter em consideração é que o termo brasiguaio, na

maioria das vezes, não é utilizado pelas próprias pessoas que recebem a alcunha, senão pelos

outros. Portanto serve como forma de identificar uma comunidade diferente. Mas, também

são chamados assim aqueles sem pátria, porque não são nem paraguaios nem brasileiros,

devido ao fato de que não podem reclamar direitos de nenhum dos dois países.

Portanto, o termo brasiguaio não tem uma definição única e simples, e não se refere

a apenas um segmento de brasileiros que vivem ou viveram no Paraguai, porque por um

lado, abarca aqueles pequenos agricultores brasileiros que migraram para melhorar as

condições de vida, mas sem resultados voltaram para o Brasil e, por outro lado, serve também

para denominar, sobretudo, pelos paraguaios, aqueles agricultores brasileiros que migraram

para o Paraguai e se transformaram em grandes fazendeiros. Assim, torna-se tarefa difícil

saber quando os paraguaios ou mesmo outros sujeitos estão falando na primeira conotação

ou na segunda, quando utilizam o termo brasiguaio. Uma vez dialogado e interpretado um

pouco da teoria e dos principais conceitos que se abordam no trabalho, entramos numa

segunda parte que é o trabalho empírico.

4. Percepções dos pequenos agricultores brasileiros retornados sobre sua trajetória

migratória e o termo brasiguaio

O trabalho empírico que fundamentou este artigo foi realizado no Pré-assentamento

Nelson Mandela, situado no município de Lindoeste, que se localiza na região Oeste do

estado do Paraná. Este Pré-assentamento tem origem em acampamento fundado em 2006.

Possui 34 famílias, cuja maioria é originária dos três estados do sul do Brasil (Paraná, Santa

Catarina e Rio Grande do Sul), tendo também vivido no campo paraguaio antes do retorno

ao Brasil. A escolha da área repousa no fato de se constituir em um pré-assentamento, onde

a maioria dos agricultores teve uma experiência de vida e trabalho no campo do Paraguai,

antes de decidir retornar ao país. Além da observação participante, no trabalho de campo,

realizada entre os meses de maio e setembro de 2015, foram aplicadas 12 entrevistas

semiestruturadas com os integrantes pré-assentamento.

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Para este artigo, devido à semelhança entre os relatos e trajetórias e, sobretudo,

devido ao espaço, nos centraremos na análise de quatro das 12 entrevistas aplicadas. Dentre

os temas trabalhados nas entrevistas, destacamos: Os motivos que favoreceram as migrações

dos entrevistados ao campo paraguaio, as condições de vida antes e depois de migrar para o

Paraguai, e também no retorno, as impressões sobre o local de destino, e os motivos que

conduziram ao retorno para o Brasil e ao ingresso na luta pela terra.

5. Vida, família e partida

E.S.2 é uma mulher casada de 37 anos de idade, que nasceu em Santa Catarina, tem

dois filhos nascidos em Paraguai. Estudou até o terceiro ano lá no Paraguai. Ela migrou para

o Paraguai quando tinha seis anos de idade e voltou para o Brasil aos 28 anos de idade, mas

alguns de seus familiares ficaram lá.

[...] Diz que lá [Paraguai] era melhor né, de aí meu pai achou que ia ser

bom, daí foram para trabalhar lá com menta. Ele arrendava a terra, daí

plantava menta, daí vendia, trabalhando muito tempo lá a seu jeito. [...] Foi

bastante gente naquele tempo, pois o irmão de meu pai, uns três o quatro,

até hoje acho que tem uns dos morando lá [no Paraguai], e o resto voltou

faz tempo já. [...] Eu ajudava meu pai, na roça também, nós íamos à roça

direto. Eu e meu irmão e mais três nascemos aqui no Brasil o resto, os

outros quatro nasceram no Paraguai. A maioria se considera paraguaio,

falam espanhol, até aprenderam a falar um pouco em guarani, os outros

não. Eu para mim, eu era brasileira, porque minha mãe e meu pai eram

brasileiros. [...] Para mim sei lá, aqui [no Brasil] é igual que lá [no

Paraguai] não acho diferença (E.S, 2 mai. 2015).

N.S. é uma mulher casada, tem 53 anos, nasceu no Rio Grande do Sul, tem duas filhas.

Daí já tinha parentes no Paraguai, daí eles sempre falam pra mim para morar

no Paraguai, e eu sempre me negava não queria, era longe demais do pai né.

Nós fomos passear lá primeiro. Daí nós tínhamos um vizinho lá que era da

minha mãe, que ele estava morando lá, que era vizinho de nós não é, daí,

então, nós fomos lá visitar ele. Daí ele falou que tinha terra barata para

comprar, daí nós compramos, trabalhamos mais era muito difícil já naquela

época, porque já acabou já passou né, já estava entrando a crises no Paraguai,

nessa época que nós entramos, Já não era aquele Paraguai que você, que eles

falam para ti pra entrar. Nós começamos plantar soja, milho, arroz. [...] o que

nós tínhamos no meio nos fazíamos. [...] Plantando, limpando os lotes que

2 Para manter a privacidade e segurança das pessoas entrevistadas, optamos por ocultar o nome e utilizar

somente as iniciais dos mesmos.

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eram dos outros, plantando mandioca, batata, melancia e nos arrendamos

essas terras, bom não era renda, nos só pegamos para plantar milho e deixar

limpo (N.S, 2 mai. 2015).

G.E. é uma mulher de 56 anos, casada, tem cinco filhos dos quais quatro ficaram no

Paraguai e uma mora junto dela. Esta agricultora nasceu no Rio Grande do Sul, mais foi

criada no Paraná.

Vieram [os pais] sim, sempre em busca de melhora né, sempre em busca

de melhora, mas toda a vida como pobre nunca alcançou nem sequer um

pedacinho de terra, não conseguiu. Daí eu me criei e casei e fomos pro

Paraguai com a esperança de conseguir um pedaço de terra. Nós tínhamos

lá uma terrinha assim pra plantar, mas terra assim documentada nunca. [...]

Nós fomos em 79 ou 78 acho que nós fomos pro Paraguai, [...] já tinha um

irmão que estava lá, tinha um irmão meu lá, tinha um cunhado lá e nós

fomos também. [...] Foi bem sofrido, meu Deus do céu, chegamos lá

encostamos lá com meu cunhado, meu irmão, daí já arrendemos um pedaço

de terra e já fomos morar separado, fomos lutando, lutando. Compremos

um pedacinho, eles falavam direto de terras, sem documento não é? E aí

fomos indo, fomos indo. Nós nunca tivemos terra documentada, é muito

difícil documentar a terra no Paraguai, a gente é migrante já é mais difícil,

precisava a pessoa ter bastante dinheiro né, pra comprar a terra já legal né,

pra gente pobre já era difícil (G.E, 6 jun. 2015).

Esses três relatos nos permite perceber como é difícil para um imigrante sair de seu

país para ir em busca de melhores condições de vida e, ao mesmo tempo demonstram uma

das estratégias dos migrantes, que contribuem para a manutenção de sua identidade no

campo paraguaio, como brasileiro: viver junto a seus familiares, chamá-los para migrarem.

Esta também é uma forma de sentir-se protegido. Dessa estratégia se fizeram várias colônias

brasileiras no Paraguai, onde o convívio se dava quase que restritamente entre brasileiros

com brasileiros, de modo que estes não sentiam estar fora, nem percebiam diferenças da vida

no Paraguai da vida em seu próprio país. “Não, nós sempre morávamos na região de

brasileiro, sempre em meio de brasileiro agora [...] bem por último como os piás eram já

registrados lá né, nós fomos e compremos direitos do assentamento Paraguai” (G.E., 6 jul.

2015). Outro dado interessante mencionado pelos entrevistados é o de que as terras onde

trabalhavam eram arrendadas para plantar, sendo que aqueles que conseguiam comprar

algum pedaço de terra não possuíam documentação, apenas um direito, que mais tarde

culminaria em desapropriação, o que contribuirá para o desejo de retornar ao Brasil.

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Os filhos que nasceram no Paraguai se convertiam em estratégia ou arma para poder

sobreviver de forma mais tranquila no Paraguai: “sim, então não é caro assim registrar um filho

no Paraguai, depois que ele é registrado fazer a identidade não é caro, mas o difícil é o

[documento de] imigrante. Sim, nós tivemos e obriguemos registrar eles Paraguai pra poder

viver” (G.E., 6 jun. 2015). Como dona E.S. fala: “[...] mas tínhamos uma filha paraguaia, a mais

nova era paraguaia, ela tinha seis anos, ela era documentada completo. Facilitava pra nós, era a

arma que nos tínhamos [...] arma seria o documento que você tem” (E.S. 2 mai. 2015). Terem

alguém da família com nacionalidade paraguaia: Esta é uma das maneiras que os migrantes

brasileiros no Paraguai encontraram para estar mais seguros no território estrangeiro.

6. Das coisas da vida e condições (saúde, educação, transporte, idioma) e retorno

A maioria dos entrevistados conta que o fator que mais motivou o retorno era o fato

do atendimento à saúde não ser muito bom no Paraguai e, sobretudo, por terem que pagar

para serem atendidos.

Não tem condições de pagar, porque a saúde lá era cara, [...] 100 mil

guaranis eu acho, era muito dinheiro naquela época, era um monte de

dinheiro, com vinte mil guaranis nos fazíamos um rancho por mês. [...] E

a saúde é o principal, é muito difícil, era muito longe, imagina nós do

interior tínhamos que sair cem quilômetros no chão batido, pra chegar [ao

médico] em dia de chuva (N.S. 2 mai. 2015).

Quando eu morava no Paraguai minha mãe tinha uma criança pequena

[…]. Daí como a gente é brasileira e o recurso lá é difícil né, ela morreu

mesmo porque a gente não tinha condições de socorrer ela né. […] Mas eu

acho que se fosse aqui no Brasil, que uma criança começa a chorar, que

você vê que chora assim sem parar, não precisa nem três horas e você leva

ali e já descobrem que o que está acontecendo (M.V. 1 ago. 2015).

Além do custo, o acesso à saúde era dificultado também pela distância. Em relação à

educação no Paraguai, os entrevistados relatam que era boa: “Difícil! Era tudo longe, só que

a escola era perto, a creche era perto, o resto o médico era tudo longe daí meu marido direito

tomando remédio, mas do Brasil” (L.S.3, 6 jun. 2015). Uma das contradições enfrentadas

pelos brasileiros no Paraguai em relação à educação era a de que os filhos iam à escola no

3 L.S. é uma senhora de 78 anos de idade, que nasceu em Santa Catarina, é casada e têm cinco filhos que

nasceram lá no Paraguai.

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Paraguai e tinham que falar em espanhol, depois chegavam à casa e falavam português e

quando retornaram ao Brasil, de novo passaram por essa mudança na língua: “a menina

chegou ao colégio, aí o professor passava e ela falava meio em espanhol, meio em português

né, tentava porque eles lá falavam todo em espanhol” (N.S. 2 mai. 2015).

O interessante também é que alguns dos entrevistados viveram anos no Paraguai, mas

ainda assim não aprenderam o espanhol. E quando perguntados onde preferem e querem

viver são vários os relatos como o que apresentamos abaixo, onde enfatizam que desejam

viver para sempre no Brasil. Até nessa reflexão, os retornados destacam a importância do

atendimento à saúde no seu país de origem:

Porque aqui é meu país né, aqui é minha origem, eu tenho que estar aqui, e o

custo de vida, eles te dão oportunidade, você vai para ganhar uma criança você

vai até hospital você é bem atendida não precisa ter nada, aqui morrer só se é a

hora da gente mesmo, o que eles podem fazer eles fazem. Aqui é muito melhor,

não sei se é porque é meu país, mas é bem melhor (M.V.4 1 ago. 2015).

Como se percebe na fala anterior, os brasileiros retornados defendem o sentido de

permanência do lugar no qual nasceram, neste caso no Brasil, apesar de ter morado muito

tempo no Paraguai.

7. Quanto ao termo brasiguaio

Em relação ao termo brasiguaio, em nossa pesquisa, a partir dos relatos dos

entrevistados, percebemos que este era utilizado pelos paraguaios para diferençar os

brasileiros, mas também eram chamados de brasiguaios os filhos de brasileiros nascidos no

Paraguai. Um dado interessante, é que quando este filho nascido no Paraguai completa os 18

anos, deve decidir que nacionalidade quer ter, e a expectativa é que assuma a nacionalidade

de brasileiro: “Quando ele fizer os dezoito anos, daí ele tem que decidir né, se ele vai ser

paraguaio ou brasileiro, daí ele vai assumir a identidade brasileira [...], mas tem que esperar

os dezoito anos para primeiro decidir [...]” (G.E. 6 jun. 2015).

Quando indagada sobre o significado do termo brasiguaio, a senhora N.S., explica:

4 Senhora de 31 anos, casada, tem dois filhos. Foi ao Paraguai duas vezes, a primeira quando era criança levada

pelos pais, e a segunda quando era adolescente com o namorado que agora é o esposo.

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É um brasileiro que foi morar no Paraguai e tem filho de lá, tem um filho nascido

lá, daí depois quando sim tu voltas essa criança já fica assim. E o brasiguaio só

fica porque o filho é de brasileiro ou nasceu no Paraguai, por isso é que tem o

nome BRASIGUAIO porque ele é BRASILEIRO aí pra não dizer brasileiro e

paraguaio, aí as pessoas foram práticas porque cortam a palavra do Brasil e

colocaram a metade do Paraguai. [...] A brasiguaia é mistura, vamos dizer que

fosse uma mistura, só que é uma mistura só pelo nome, porque pela pessoa ah,

é brasileira, porque é filha de brasileiros (N.S. 2 mai. 2015)5.

Em relação à decisão de retorno, percebemos que é tomada de forma semelhante a

decisão de partida, onde o que motiva é o desejo de melhorar as condições de vida, que, por

sua vez, passa também pelo desejo de adquirir um pedaço de terra. Assim, para o retorno,

muitos dos agricultores foram convidados pelos familiares a voltarem para o Brasil via

acampamento de agricultores sem terra. Esta decisão também é motivada por escutarem pelas

rádios, pelos jornais, que a situação econômica no Brasil estava melhor que a do Paraguai.

Considerações Finais

Devido ao fato da investigação estar em andamento, apresentamos resultados

preliminares a partir das primeiras entrevistas coletadas. Depois de ter feito um trabalho

divido em dois blocos, o primeiro abordando os termos e conceitos importantes como

migração, identidade, brasiguaios, e um segundo bloco empírico, contando e analisando um

pouco as histórias e entrevistas feitas junto aos agricultores brasileiros que migraram para o

Paraguai, percebemos que na maioria dos casos as migrações foram realizadas desde o Rio

Grande do Sul para outras partes do Brasil e depois para o Paraguai. Estes deslocamentos

empreendidos pelos entrevistados se deram pela busca de melhores condições de vida, fator

que anos após lhes farão retornar a seu próprio país.

Essas migrações se configuraram em decisões difíceis, já que os migrantes tiveram

que deixar suas raízes, cultura, costumes. Entretanto, o fato curioso é que para que pudessem,

de algum modo preservar seu “lar”, os agricultores migravam em grupos maiores, e se

instalavam em colônias brasileiras, o que fazia que não sentissem muito a falta da terra natal.

Então, essa migração para colônias brasileiras acaba fazendo com que não exista na verdade

uma integração intensa dessas duas culturas (paraguaia e brasileira). Desta forma, o que se

5 O relato da senhora N.S deve-se ao fato da mesma ter uma filha brasiguaia, como ela mesmo nos explica:

“Ela é paraguaia, mas os pais dela são brasileiros, então com essa mistura se chamam brasiguaio”. Sua filha,

aos 18 anos optou pela nacionalidade brasileira.

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nota fortemente é a defesa da identidade nacional de brasileiro. Assim, mesmo que tenham

morado no Paraguai por muitos anos, os agricultores entrevistados nas entrevistas

procuraram afirmar a sua identidade brasileira.

As motivações do retorno ao Brasil repousam no fato de entenderem que o Paraguai já

não era o mesmo que antes, ou seja, não oferecia mais as oportunidades das décadas anteriores,

o que nos permite inferir que os indivíduos se deslocam para o lugar onde percebem a

possibilidade de obtenção de melhores condições de vida, que passam por ter acesso à saúde,

educação, alimentação. É neste momento e em relação a estes serviços que os brasileiros

retornados defendem muito o Brasil como seu país, onde podem realmente ter acesso a vários

direitos, é também neste momento que relatam o que é sentir-se estrangeiro no Paraguai.

Quanto ao termo brasiguaio, esse tem vários significados. Percebemos que para os

entrevistados, brasiguaio é um termo utilizado para falar dos brasileiros que estão no

território paraguaio, ou seja, brasiguaias são aquelas pessoas que estão lá vivendo durante

muito tempo. Para eles brasiguaios são também os filhos dos migrantes brasileiros. Em todo

caso, brasiguaio não representa uma mistura, mas apenas um termo provisório, durante o

tempo que o migrante brasileiro está em território paraguaio.

Referências

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hipóteses sobre o caso português, [S.I.: s.n.], v. XXII (65), p. 17-27. 1981.

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“VEIO A ORDEM DE ANDAR”: ESPAÇO E IDENTIDADE ENTRE CIGANOS

CALON, MUNICÍPIO DE CARNEIROS/AL

Leila Samira Portela de Morais Mestranda do PPGS da UFAL.

Resumo: No contexto brasileiro, é recente a inclusão dos grupos étnicos ciganos nos estudos

antropológicos. A emergência de temas como etnicidade e identidade étnica têm feito com que os

estudos sobre esses grupos se tornem cada vez mais atrativos, pois eles nos colocam diante de um

importante desafio: a desconstrução dos essencialismos que pairam sobre esses grupos. O presente

trabalho é fruto da realização de um trabalho de campo, com observações e entrevistas, junto a

ciganos que se autodenominam de etnia “Calon”. Esses Calon estão “parados”, cerca de 8 anos, no

município de Carneiros, sertão do Estado de Alagoas, distante 246 km da capital, Maceió. O foco

está nas relações espaciais que esses Calon empreendem em Carneiros e nas cidades vizinhas,

questionando a ideia de nomadismo que termina simplificando o modo Calon de ver o mundo em

detrimento de uma dicotomia (nômade/sedentário) que, na maioria das vezes, despreza as categorias

nativas. Apreender como os Calon que se encontram naquele município se diferenciam da população

local e como se apropriam do espaço em que vivem, mas especificamente, de Carneiros e das cidades

vizinhas, através das relações que constroem nesses referidos espaços.

Palavras-chave: ciganos; espaço; identidade.

Abstract: In the brazilian context, it’s recent the inclusion of gypsies ethnics groups in the

anthropological studies. The emergence of themes like ethnicity and ethnic identity, have done the

studies about these groups became more attractive, because they put us in front of an important

challenge: the deconstruction of essentialisms that hover on these groups. The present study is

product of a fieldwork, with interviews and observation, performed with gypsies who call themselves

of “Callon” ethnicity. These calons are located there, about eight years, in the county of Carmeiros,

in the wilderness of State of Alagoas, 246 km far from the capital Maceió. The focus is in the space

relations which these Calons launch in Carneiros and nearby cities, asking the idea of nomadism,

that ending simplifying the calon way of see the world, to the detriment of a dichotomy

(nomadic/sedentary) that, mostly, despises the native categories. Learn about how these calons

distinguish themselves of local population and how they adapt themselves to the space where they

live, but, specifically, to the Carneiros and nearby cities, through the relations built in these spaces.

Keywords: gypsies; spaces; identity.

Introdução

No contexto brasileiro, é recente a inclusão dos grupos étnicos ciganos nos estudos

antropológicos. A emergência de temas como etnicidade e identidade étnica têm feito com que

os estudos sobre esses grupos se tornem cada vez mais atrativos, pois eles nos colocam diante

de um importante desafio: a desconstrução dos essencialismos que pairam sobre esses grupos.

O presente trabalho é fruto da realização de um trabalho de campo, com observações

e entrevistas, junto aos ciganos que se autodenominam de etnia “Calon”. Esses Calon estão

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“parados”, cerca de 8 anos, no município de Carneiros, sertão do Estado de Alagoas, distante

246 km da capital, Maceió. Esses grupos são vistos, pelo senso comum e também por alguns

discursos científicos, como portadores de uma identidade fixa que os liga essencialmente ao

nomadismo. A relação dos ciganos com o espaço e a construção de sua identidade acaba por

ser reduzida à dicotomia nômade/sedentário, o trabalho de campo mostrou que essa visão

pouco explica o modo como os ciganos veem o mundo, o que nos faz acreditar que os

mesmos têm sido analisados levando em consideração a perspectiva daqueles que os estão

observando e não a dos próprios. A partir disso, tentamos apreender como os Calon, que se

encontram naquele município, se diferenciam da população local e como se apropriam do

espaço em que vivem, mas especificamente, de Carneiros e das cidades vizinhas, através das

relações que constroem nesses referidos espaços.

Aqui no Brasil, de acordo com o que pude observar, há a presença de três etnias

ciganas: Calon; Rom (pertencentes ao subgrupo Kalderash, Machwaia e Rudari, originários

da Romênia; aos Horahané, oriundos da Turquia e da Grécia e aos Lovara) e Sinti (chegaram

ao país principalmente após a 1ª e 2ª Guerra Mundial).

De acordo com dados da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade

Racial), os Calon são a etnia cigana com maior número de famílias espalhadas pelo Brasil, vivem

em acampamentos, em sua maioria, deixados à invisibilidade, discriminados e distantes das

políticas públicas. Quadro que tem se alterado nos últimos anos, devido, principalmente, à

inclusão dessas famílias em programas do governo (SEPPIR, 2013). Os ciganos começaram a

ter acesso a serviços básicos como atendimento nos postos de saúde, mas ainda esbarram no

preconceito e falta de informação das pessoas sobre sua cultura, seu modo de viver.

Segundo a referida Secretaria, os estados com maior concentração de acampamentos

ciganos são: Bahia, Minas Gerais e Goiás, falam uma língua própria, conhecida como calé

ou chibi, que é fruto da mistura entre o romani (língua falada pelos ciganos de etnia Rom),

o espanhol e o português. Apesar dos dados oficiais sobre esses povos serem ainda muito

incipientes, estima-se que há mais de meio milhão de ciganos no Brasil (SEPPIR, 2013).

No Estado de Alagoas a situação de exclusão não é diferente, temos conhecimento

da existência de pelo menos dois acampamentos ciganos Calon, situados nos municípios de

Carneiros e Delmiro Gouveia, e em Penedo e Marechal Deodoro existem comunidades

ciganas sedentárias, vivendo em bairros denominados de “bairros ciganos”, sem falar nos

grupos itinerantes advindos da Bahia que vêm em caravana e acampam por tempo limitado

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nos municípios de Arapiraca e Santana do Ipanema, esses grupos sofrem preconceito,

discriminação e violência, inclusive policial.

1. O município de Carneiros/AL - um pouso em meio aos juron1

O município de Carneiros se localiza no sertão alagoano, a 246 km da capital Maceió.

Com 52 anos de emancipação política de Santana de Ipanema, possui população estimada de

8.758 habitantes numa área de 113,061 km2. O município faz parte da microrregião de Santana

do Ipanema e sua história é bastante recente. Os primeiros registros históricos datam de 1923

que relatam a existência de uma propriedade com uma única casa, pertencente a João Francisco

que a batizou de Cacimba de Carneiro que, de acordo com moradores, recebeu esse nome por

que nesse local uma cacimba foi aberta por um carneiro sedento revelando a existência de água

no local e propiciando a permanência do primeiro habitante e sua família (IBGE, 2008).

A maior aproximação entre ciganos Calon e os não ciganos, na cidade de Carneiros,

se dá nas feiras, entre os grupos religiosos, na escola e com os comerciantes locais. Chefiada

por Francisco Ferraz, o homem mais velho do rancho (77 anos), atualmente, residem na

comunidade cerca de 200 pessoas, em grande parte vindas do estado da Bahia. Na

comunidade existe em torno de 50 crianças.

Devido às condições financeiras e ao preconceito que ainda é forte, como também por

diversas características culturais desse povo, eles vivem de pequenos negócios como, por

exemplo, trocas, leitura da sorte em feiras, venda de patuás e amuletos, bolsa família, doações.

Atualmente, eles encontram-se lutando pela construção de casas na área onde vivem.

O acampamento fica situado dentro da cidade. Na frente da praça principal, onde fica

a Igreja Católica da cidade (Igreja Nossa Senhora da Conceição), há uma entrada que, em

menos de 6 metros de caminhada, dá acesso ao rancho. Cada família nuclear mora em uma

barraca e no centro do terreno há uma espécie de “palhoça”, local coberto, espaço de

socialização do grupo e onde também as visitas são recebidas.

Durante o dia, enquanto as mulheres realizam os afazeres domésticos, os homens

ficam reunidos, na maioria das vezes, nessa palhoça. Marido e mulher só ficam juntos na

1 Como os ciganos se referem aos não ciganos moradores da cidade. A palavra “brasileiro” também possui o

mesmo sentido. 2 Censo Populacional 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (29 de novembro de 2010).

<http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=270180#>.

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hora de dormir, em torno das 20 horas. Durante o dia, há o intenso fluxo de entrada e saída

das barracas, mas os espaços fora das barracas são os mais ocupados pelos Calon. A sombra

das árvores certamente constitui um dos mais recorrentes espaços de socialização. São

poucas as barracas que possuem fogão, geladeira, mesa, armário, guarda-roupas. TVs, DVDs

e aparelhos de som são comuns na maioria.

Buscando entender as relações não só internas do rancho Calon de Carneiros, mas também

suas relações com o entorno, realizei entrevista com alguns moradores de Carneiros na própria

cidade, em Maceió e durante o trajeto de Maceió até o município. Durante as entrevistas, alguns

moradores de Carneiros, se mostraram favoráveis à permanência dos Calon na região. Um

morador me conta as impressões que as pessoas da cidade possuem em relação aos ciganos:

Tem gente que tem preconceito... o povo tem muito... e eles também não

tem muita aproximação com o povo da cidade... que falam que eles deviam

já ter ido embora, que não era pra ter deixado eles ficar, que o prefeito

acolheu eles num sei porque, que não era pra ter vendido terreno pra eles...

mas eu mesmo, não tenho nada contra eles não... nesses dias eu comprei

um som de carro a um deles, tinha vendido o meu, fui e comprei um dele...

eles sempre tão em Tapera numa feira de troca que tem lá... eu fui pra lá

pra ver se aparecia um sonzinho melhor daquele que eu tinha, aí ele

apareceu vendendo e eu comprei... sempre compro alguma coisa a eles na

feira... eles vendem de tudo... (E. S. - morador de Carneiros).

A fala desse morador revela as constantes negociações nas feiras entre calon e

brasileiros “a maioria do povo fala... mas uma hora ou outra sempre fazem algum tipo de

negócio com cigano”, completa ele. Como pude perceber as relações com as pessoas da cidade

de Carneiros revelam, como já esperado, alguns conflitos. Nos dias que passei no rancho

percebi que os Calon evitam “andar à toa” pela cidade, nos momentos em que deixam o rancho

estão sempre em grupo, comportamento considerado regular quando falamos dos Calon.

Entrevistando algumas pessoas da cidade, pude descobrir alguns dos “costumes” ciganos

que mais incomodam os moradores: o “nomadismo”; a prática da cartomancia e quiromancia

(atividade na grande maioria das vezes praticada por mulheres), associada à mentira e enganação;

o imaginário do “cigano ladrão”, que gosta de levar vantagem; o costume de andarem sempre

juntos, em família, fato este que em situação de repressão fazem com que sejam associados a uma

“quadrilha” nos termos penais; a visão dos ciganos como preguiçosos e desocupados. Notei como

é grande a influência de representações negativas em torno dos ciganos, fazendo com que seu

comportamento seja, quase sempre, associado a algo desviante e suspeito.

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Para Erving Goffman (1963), a sociedade estabelece os meios para classificar as pessoas

através de atributos tidos como naturais, comuns e desejáveis. Alguns indivíduos ou grupos não

se encaixam nessas categorias, em virtude disso, são considerados indesejáveis, por isso, lhes

são atribuídos uma série de estigmas. Esses estigmas são atributos essencialmente depreciativos

pelo qual esses indivíduos ou grupos “indesejáveis” são identificados.

O momento que os ciganos, tanto homens quanto mulheres, mais circulam pela cidade é

no domingo, dia de feira. Eles também frequentam feiras em outros municípios próximos, como

em São José da Tapera e Santana do Ipanema. Durante minha pesquisa só tive a oportunidade

de acompanhar algumas Calin na feira em São José da Tapera, pois em Carneiros elas evitam

pedir e ler a sorte. As crianças também costumam andar juntas, vão e vêm juntas da escola.

2. Relações espaciais e deslocamentos na microrregião de Santana do Ipanema

Considerando que o espaço é feito de relações sociais, procuramos, na medida do

possível, conhecer como os Calon que estão em Carneiros se relacionam com o espaço a

partir dessa relação construída no cotidiano. As relações sociais entre esses Calon são

marcadas por uma forte divisão entre gêneros, dessa forma, durante a minha estada em

campo, percebi que a grande parte dos deslocamentos no rancho são realizados pelos

homens, por isso, não pude acompanhar melhor e tive dificuldades em entrevistá-los,

portanto, tudo que relatarei a seguir são informações dadas pelas mulheres, algumas

entrevistas com Seu Francisco (chefe do rancho) e Gilberto, seu filho, e observações minhas.

O município de Carneiros faz parte da microrregião de Santana do Ipanema que compreende

os municípios de: Canapi, Ouro Branco, Maravilha, Senador Rui Palmeira, Santana do

Ipanema, Olho d’água das Flores, Olivença e Dois Riachos.

De acordo com as informações que tive junto às Calin, me parece que a morte de um

dos filhos de Seu Francisco fez com que esses Calon resolvessem ir embora da Bahia,

“andando de animal” em direção ao Estado de Alagoas (a família de Seu Francisco arranchou

a bastante tempo no município de Feira de Santana e faz parte de uma rede de parentes que

abrange pousos em Salvador e Camaçari). De acordo com Seu Francisco, eles passaram por

Arapiraca e continuaram caminhando em direção ao sertão. Quando chegaram nessa região,

pousaram em alguns lugares; o primeiro foi no munícipio de Senador Rui Palmeira, depois

passaram por Carneiros, Santana do Ipanema, Olho D’água das Flores e Dois Riachos (nesse

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último eles chegaram a passar mais de 2 anos, “parado” lá). Seu Francisco lembra alguns

detalhes de cada um desses pousos:

Andamos de animal isso tudo aqui... nós passava, ficava um tempo num

canto, um tempo no outro... ficamos um tempo na estrada de Senador... não

era bom não... não tinha água e era difícil demais de ficar ali... depois

passamos por aqui, por Tapera e Carneiros... foi rápido demais aqui...

paramos em Santana... a feira lá é boa, grande, dava pra fazer rolo bom,

leitura, baralho... mas lá foi difícil, difícil a proteção... foi melhor ir embora

de lá... nós vamos na feira até hoje, mas, parar lá não prestou... fomos

embora, passamos por Olho D’agua e ficamos em Dois Riachos...

passamos 2 anos lá... aí voltamos de novo e viemos pra cá.

Da fala de seu Francisco podemos ver que antes de “pararem” em Carneiros, no atual

pouso, eles tiveram mais 3 pousos por períodos relativamente grandes. Em senador Rui

Palmeira, eles pararam, mas a falta de água e localização (segundo Seu Francisco na beira

da estrada) fizeram com que eles fossem embora, passando por São José da Tapera e

Carneiros. Pararam um tempo em Santana do Ipanema. Turista, cigana Calin é uma das

minhas informantes no campo, ela me falou que até hoje eles fazem rolo na feira grande lá:

“fazer rolo lá é bom... tem gente demais... fazer rolo, ler mão, tudo lá era bom...”. Eu

perguntei tanto a Seu Francisco quanto à Turista porque eles haviam saído de lá já que o rolo

era tão bom, já que dava dinheiro, eles responderam que foi porque tiveram que sair mesmo,

que é assim mesmo “melhor sair e ir pra outro lugar e ir lá só pra fazer negócio”.

Microrregião de Santana do Ipanema.

Assim, podemos entender que os Calon fazem uma distinção dos lugares que são

para fazer negócio e os lugares que são para parar. Quando falava com as Calin sobre a

leitura da sorte, elas me disseram que evitavam “ler a mão e pedir nas portas” lá em

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Carneiros, de acordo com elas, fazer isso não é bom, porque podem ficar visadas e arranjar

problemas com as pessoas da cidade.

Quanto a ideia de “proteção” mencionada por Seu Francisco, observei que Batista,

seu filho, vem “assumindo” o papel de mediador com o mundo externo, pois é a pessoa que

mais mantém relações com os moradores da cidade: “o Batista conhece todo mundo na

cidade e todo mundo conhece ele... qualquer problema na cidade, a gente chama o Batista

por que ele conhece bem os juron, sabe conversar, faz negócio”, conta Sielma. Essa

capacidade de fazer alianças e negociações com o mundo externo – “ele conversa bem” –, é

imprescindível num momento de pouso, de parada.

A falta de documentos – visto que até hoje ter documentos é requisito para se ter

confiança (residência fixa) e conquistar direitos – era aliviada pela proteção de um coronel

ou político. Goldfarb (2010) conta que em Souza/PB, a sedentarização de grupos ciganos foi

um misto da capacidade dos líderes de fazer alianças, somada a um poder paternalista com

atitudes assistencialistas, é importante ressaltar que as áreas ocupadas pelos ciganos no

município pela autora estudada foram doações feitas por esses políticos.

Em Carneiros, os Calon mantêm boa relação com alguns vereadores, com o prefeito

e sua família e empresários da região. A amizade com pessoas influentes na cidade também

é muito importante. Siqueira (2012) que fez seu campo em Souza/PB afirma que o quadro

não é diferente quando ressalta que:

Por isso, justifica como estratégia de convívio social harmônico a

importância de estabelecerem relações aproximadas com pessoas de

respeito na sociedade, pois, quando esses personagens cumprimentam um

cigano em público ou mesmo os convidam para as festas nas quais

geralmente fazem apresentações musicais em voz e violão,

automaticamente outros passam a simpatizá-los, relegando o preconceito

ao segundo plano. Isso também alimenta o papel dos protetores,

principalmente os de atuação política, que têm sido apoiados por grupos

ciganos por apenas cumprirem suas obrigações de assisti-los, mesmo que

esporadicamente (SIQUEIRA, 2012, p. 82).

Os homens fazem bastante rolo em Santana do Ipanema, lá tem feira grande,

movimentada e é comum irem fazer rolo lá; além das feiras também é possível encontrar

esses Calon em cidades do sertão, próximo às instituições bancárias que existem nos centros

das cidades. A ideia de se retirar da cidade pode ter sido uma estratégia para proteger a

atividade econômica Calon.

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Em minha primeira, e única, ida a uma feira no município de São José da Tapera

ficamos lá por um tempo, depois fomos para frente do Banco do Brasil. Eu comentei que

pensava que a gente só circularia pela feira, então Nega me respondeu que não, que as feiras

e os bancos localizados no centro das cidades também são utilizados por eles pra fazer

negócio e a leitura da sorte: “a gente anda é isso tudo... e conhece esse povo tudinho aqui

que trabalha perto... que vende coxinha, relógio, radinho... conhece todo mundo...”.

Os Calon possuem mapas mentais desses lugares em que circulam. Feiras, praças e

instituições bancárias são os espaços de negócio, do rolo. Nesses espaços, os Calon circulam

e mantém uma atividade econômica diferenciada da exercida pelo não cigano, não é raro

ouvir ciganos se gabando de que não está submisso “preso”, “fechado” a um emprego formal,

mas “vive melhor que muito juron por aí...”. Em todo o espaço que passaram, os ciganos

construíram relações que os ajudaram a desenvolver seu modo de vida. Eles negociam e se

apropriam do espaço; as relações e redes de solidariedade formada no espaço parecem ser

mais importantes do que o próprio espaço em que estão “fixados”. Essa postura os ajuda a

manter sua mobilidade, seu movimento.

3. Relações espaciais em Carneiros

Entre os não ciganos, o espaço no rancho é bem delimitado: existe uma área vista

como cigana dentro da cidade “no terreno em frente a Igreja e a Praça, por trás do

Mercadinho Santo Antônio”, dizem os moradores. Como já mencionei anteriormente, o

fluxo de parentes, indo e vindo, intriga e incomoda alguns moradores. O terreno onde o

rancho se encontra, situado no centro da cidade de Carneiros perto da Praça da Igreja de

Nossa Senhora da Conceição, é hoje um pouso onde os parentes espalhados em ranchos no

Estado da Bahia fazem constantes viagens “a passeio”, “pra visita”, “pra fazer rolo”.

Ouvi tanto por parte de Seu Francisco quanto por parte das calin sobre a importância

de terem comprado o terreno na cidade, mesmo assim, como já ressaltado anteriormente, é

latente a possibilidade de saída a qualquer momento. A impressão que trás as falas dos Calon

é que eles andaram por toda a região, escolherem o lugar, conseguiram “proteção”, e o

rancho se constituiu em um lugar estratégico onde podem fazer negócio com as cidades

vizinhas e onde conseguiram fazer um pouso que é referência para os parentes.

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Quando conheci Rafaela, prima da Sielma e também sobrinha da Nega, minha

principais informantes e interlocutoras no campo, ela estava arranchando com os parentes

em Carneiros faziam 5 meses, contudo me comunicou que era “por pouco tempo”, que a

“qualquer dia” voltariam a Bahia. A impressão que dá é que Salvador, Feira de Santana,

Camaçari e Carneiros constituem um só espaço, onde esses Calon construíram uma rede de

solidariedade forte entre esses parentes que estão em comunicação constante pelos

deslocamentos, mas também por telefone e através das notícias e fofocas entre os pousos.

Cada vez que alguns parentes chegam, trazem notícias de primos que foram presos,

de quem “destruiu a vida indo morar com uma jurin”, que o tio tá bem de vida, que a filha

tá sendo judiada. Na maioria das vezes, são essas notícias que fazem com que outros parentes

se desloquem para “vê o que tá acontecendo lá”, “pegar a filha de volta”, “ficar com os

parentes enquanto o primo tá na cadeia”, etc. A procura por notícias dos parentes é grande e

são sempre recebidas de forma entusiasmada. Em umas das minhas visitas ao rancho, Nega

contou que estava preocupada esperando um telefonema, pois sua irmã com o marido e os

sobrinhos tinham ido para a Bahia buscar a filha que estava sendo “judiada” pelo marido:

“se chegar lá e for verdade ela volta aqui pra ficar com nós... ela vem que seja pelos

cabelos...” A mesma coisa acontece por lá, Sielma me conta que a família de Madalena,

casada com seu irmão Michel, veio passar uns tempos porque souberam que ela havia sido

agredida pelo marido “se Michel não se orientar, eles levam Madalena de volta”.

As brigas entre parentes também são motivos para os deslocamentos. Um simples

telefonema sobre uma briga entre parentes causa o imediato deslocamento de uma família

nuclear para defender ou para repreender o responsável pela discórdia.

Desses movimentos são trazidas mais e mais notícias que os fazem ligar uns para os

outros para saber se o que foi contado é verdade e, com isso, essa rede de parentes fica cada

vez mais unida. “Tem briga demais aqui... mas parece que depois das briga... se entende e

fica tudo até melhor... é coisa de parente... isso tudo aqui é parente”, diz Nega.

Esses deslocamentos demonstram-se movidos por essa rede de solidariedade entre

parentes, que aumenta a sensação de pertencimento e a construção de um espaço que parece

não ter fronteiras, dando a impressão que para os Calon Feira de Santana, Salvador,

Camaçari e Carneiros são um só espaço.

Em Carneiros eles evitam algumas práticas como pedir dinheiro na rua e a leitura da

sorte, como já falado anteriormente. Já o rolo ocorre normalmente tanto fora quanto dentro

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do rancho. Eles mantêm ótimas relações com o prefeito e com alguns empresários locais.

Todos esses “juron amigos” visitam o rancho em dias de festa; “o prefeito vem prá cá...

come, bebe com nós... conversa, dança...”, conta Nega.

Tive a oportunidade de ir para o maior supermercado da cidade, fazer umas compras

para a barraca de Nega. Foram conosco Sielma, Mirele e o menino Darlan. Nega me falou:

“o dono desse mercado é muito nosso amigo”. Então, conheci Abadias que disse que ficou

amigo dos ciganos desde o tempo em que chegaram na cidade. Ele me contou que vai

frequentemente ao rancho e já foi padrinho de um casamento lá, “o único defeito deles é

pechinchar muito na hora de comprar”, conta rindo.

Outro comerciante da localidade que tem amizade direta com os ciganos e também

frequenta o rancho é Seu Antônio, que tem um comércio de galinhas na cidade. Os ciganos

tanto compram lá, quanto vendem também as galinhas que são criadas no rancho: “as

galinhas boa, de capoeira daqui, a gente entrega logo a ele... ele abate lá mesmo... o dinheiro

é negociado lá na hora quando as galinha é levada... umas tão grande, outras mais pequena

[...] antes nós vendia na feira aqui... só que a amizade com ele ficou melhor... é só levar as

galinha pra lá e ele vai vendendo...” (Nega).

Existem amizades com outros comerciantes, como por exemplo, “o homem dos DVD”,

que não tive a oportunidade de conhecer. Existe também a costureira D. Nê, “ela costura pra nós

desde o tempo que chegamos aqui... tem outra, mas só fazemos roupa com ela”, conta Nega.

Depois de muitas negociações sobre o preço dos vestidos, Nega me conta que hoje em dia

qualquer vestido sai no valor de R$ 50, “ela não faz menos que isso... tá vendo como é caro?

Ainda tem que levar o pano, os bico, as fitas... por isso que só encomenda roupa nova quando

tem casamento”. D. Nê faz os vestidos e também já foi para casamentos no Rancho.

Vemos que o juron mesmo visto como “o outro”, “o prostituído”, “sem moral” (que

se definem pelas ações e comportamentos) integra diretamente as relações comerciais,

econômicas e afetivas dos Calon. Faz-se rolo com juron, ele está no rancho sendo padrinho

de casamento, comendo e bebendo.

Os Calon se constroem em meio a mundo construído pelo não cigano. Fazem um uso

Calon das estradas, do comércio, das praças, das feiras. Ferrari (2010) fala sobre um mundo

dado (mundo gadje3) e um mundo construído (o mundo Calon):

3 Gadje ou gadjo é um dos termos usados por ciganos para se referirem aos não ciganos, na maioria das vezes

usados por ciganos de etnia Rom. Entre os Calon são mais usados os termos juron, gajon ou brasileiro.

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[...] o mundo dado é o ambiente gadje, de onde os calon extraem seus

“recursos”. Os calon se servem das redes de água e esgoto, e das

instalações elétricas, pagando ou “fazendo gatos”. A “primeira língua”

aquela que será a base para a introdução do repertório lexical chibi, é a

língua portuguesa, dada pelo gadje. A comida é brasileira, mas não se come

como os brasileiros. Os nomes oficiais são tipicamente brasileiros, mas

sobre estes atuam os apelidos. A música é sertaneja local, mas não se escuta

“som” como os brasileiros [...] As estradas, as cidades, as ruas em que

circulam, o terreno para acampar, o mundo em que vivem é pensado como

um mundo gadje dado, a partir do qual se cria um mundo calon (p. 299).

Quando pergunto sobre a cidade, os Calon nunca mencionavam o acampamento

sempre falavam na feira, no centro, nas praças, são desses lugares que os Calon sobrevivem,

se fazem Calon no mundo juron e, a partir dele se difenciam e mantem seu movimento.

Ao Perguntar a Gilberto sobre a cidade de Santana do Ipanema, aonde vai com frequência,

ele me fala da praça onde fazem rolo, do celular que trocou com o juron, dos melhores dias de feira

lá, da estrada, da polícia, dos comerciantes, onde é melhor para as mulheres ler a sorte, os

empréstimos negociados em frente ao Banco do Brasil, etc. As referências à cidade são a partir do

uso que fazem dos lugares. Seu movimento no espaço é feito de acordo com “sintomas e avaliações

antes que de medidas e de propriedades” (Deleuze e Guattarri, 1980).

Pensadas um pouco como se estabelecem as relações dos ciganos Calon de Carneiros

e o entorno do rancho e da região, passarei, no próximo capítulo, a tratar sobre como se

estabelecem as relações dentro do rancho e quais são suas dinâmicas cotidianas do grupo.

4. Espaço, identidade e nomadismo

Ao me debruçar sobre os estudos dos povos ciganos percebi a necessidade de elaborar

algumas reflexões acerca de noções que têm sido utilizadas para estudar estes grupos de modo

essencializadas. Uma delas é a ideia de “nomadismo”, vista por muitos enquanto uma

característica quase que intrínseca ao modo de ser cigano. Deste modo, considero que, estudar

ciganos é desconstruir noções essencialistas, pois o “nomadismo” é naturalizado como um

estilo “autêntico” de “ser cigano”. Essas ideias se chocam com a realidade social brasileira,

onde os ciganos estão cada vez mais engajados politicamente e exigindo cidadania e direitos,

tentando dialogar com o Estado, reivindicando terra e construção de casas, endereço fixo.

Nesse contexto, poderíamos nos perguntar: a “identidade cigana” estaria se “perdendo”? Essa

naturalização do “nomadismo” como definidor do ser cigano, também se choca com o trabalho

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de campo por mim empreendido, pois nele descobri que os ciganos estabelecem outros tipos

de fronteiras culturais que os diferenciam dos não ciganos, além desta ideia de nomadismo.

Durante todo o trabalho, tentamos nos livrar dessas noções simplistas e fixas de

identidade que não dão conta da complexidade das relações sociais, ou seja, que cristaliza e

naturaliza essas relações e, muitas vezes, caem na dicotomia nômade/sedentário impondo

uma visão de mundo do pesquisador e ignorando o sentido e vivido pelos nativos.

Do ponto de vista do gadje, as caravanas passam, os acampamentos

aparecem e desaparecem; em relação a eles, os ciganos se movem [...] Nessa

concepção, se o cigano se move, ele é “nômade”, se ele se fixa, se

“sedentarizou” e está perdendo sua tradição. Mas será essa a melhor maneira

de descrever a relação do cigano com a terra? (FERRARI, 2010, p. 260).

Insistir na dicotomia, se viajando é “nômade”, se está parado é “sedentário”, pouco

nos esclarece sobre a visão de mundo dos ciganos em relação ao espaço em que ocupam,

pois essa dicotomia só encontra lógica nos olhos dos não ciganos, procuro apreender o que

o cigano pensa e sente quando nos fala que é “nômade”, que é “livre”.

A ideia de “nomadismo” para os Calon vai além da nossa dicotomia simplista que consiste

em “sedentário/nômade”, “parado/em movimento”, “ter endereço fixo/viver viajando”, etc.

A fala de Turista é reveladora nesse sentido, ao falar sobre o desejo deles de verem

suas casas construídas: “quem disse que uma casa foi feita pra prender?... casa é casa...

cadeia é cadeia...”, diz ela e ainda completa: “o juron é preso na casa... preso nas coisas... o

cigano não... é livre... a gente fica onde tá contente, onde tá a família... se estamos juntos tá

bom, se acontece coisa ruim e não dá pra um... não dá pra nenhum...”.

A sensação de “estar indo” é latente; o “cigano” se vê na mobilidade, no

deslocamento, no ir e vir: “cigano não nasceu pra tá preso, nós é livre, sempre foi assim...

vem de ordem... nós não tá aqui? Se precisar... arrumo as bombas e vai simbora...” (Nega).

Então, em Carneiros, mesmo pleiteando a construção de suas casas, os ciganos não

veem o lugar como algo permanente, pois, ele depende das relações, alianças, afetos e

situações nele construídas, sem a família o lugar não existe, dessa forma, eles se veem

inclinados a abandonar o local diante de acontecimentos.

Dentre esses acontecimentos está a morte, como revela seu Francisco ao ser perguntando

sobre a morte de seu filho: “foi dada a ordem de andar... simbora da Bahia... andando por meio

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dos outros sertão... chegamos aqui... passamos... voltamos e paramos aqui de novo... chegou a

ordem de parar... nunca mais voltei pra Bahia... não ando mais por aquelas banda... até hoje”.

Outra hipótese de largar o rancho que encontrei durante a entrevista foi: “nós temos que

procurar nossa paz né? Se ali tem inimizade num chega nem perto... se tem cigano diferente...

também não... cada um com cada um”, diz Nega. Outra hipótese seria “a vergonha”, ou seja, se

algum Calon fizer algo que envergonhe o grupo. Compartilho com Ferrari (2010) a ideia de que:

O parar/morar não significa fixação, o viajar/andar tampouco significa

“errância”, o movimento, sendo absoluto, não se define em relação ao

espaço físico, o território, mas sim a rede afetiva de relacionalidade –

parentes, inimigos, estranhos, gadjes (p. 273).

Seu Francisco explica sua relação com o espaço do rancho, com o lugar onde estão

“arranchados”:

Aqui é um pouso... nós juntamo e compramo... é nosso, mas não tamo preso

aqui... aqui nós arrancha, recebe a família... um cuida do outro... como

Jesus e Maria ensina pros cigano... e aqui tem liberdade... tem sim... cigano

é livre... entende?... entende não né?... deixa eu dizer, é assim, um

passarinho... um passarinho... ele é livre num é? Mas ainda assim ele num

tem um pouso? É a mesma coisa de nós.

Assim, entre os Calon de Carneiros, o rancho não é pensado como algo fixo: “se não tá

bom mais aqui... a gente sai pro meio do mundo... vem os outro e fica no lugar” (Seu Francisco).

Ferrari (2010) entende que o movimento Calon é, sobretudo, uma recusa em se fixar

e só nesse sentido o cigano pode ser definido como “nômade”. Segundo ela, a noção de

nomadismo, visando descrever a relação do cigano com a terra, só deve ser usada se for

reconceitualizada, nos termos do que Deleuze e Guattarri chamam de “desterritorialização”,

pois ele não cria uma relação com a terra, de propriedade, de pertencimento, isto é, “andando

ou morando, sua relação com a terra não muda, pois o movimento para eles não é relativo,

mas absoluto. Levam-no dentro de si, mesmo que parados” (p. 267).

Conclusões

Tentei entender os sentidos existentes por trás das viagens e dos constantes

deslocamentos desses Calon. Minhas observações no rancho me fizeram concluir que os

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Calon possuem um modo específico de se relacionar com o espaço, baseado nas relações de

afeto entre parentes. Através dos deslocamentos, eles mantêm o afeto necessário a sua rede

de parentes e constroem relações e laços com os não ciganos que possibilitam a manutenção

do seu modo de vida. Pois eles se constroem e se apropriam do espaço, através das

negociações e alianças com um mundo juron.

Com a pesquisa, pude perceber que as praças, os espaços próximos às instituições

bancárias, as feiras etc. são também espaços Calon. Os seus deslocamentos constroem essas

redes. Se deslocar não é algo aleatório e sem propósito como podem julgar os olhos “fixos”

do não cigano, esses trajetos podem revelar muito mais sobre o modo de viver Calon, eles

têm um sentido vivido por eles. Assim, considero que os Calon transformaram não só o

rancho em Carneiros em um espaço seu, mas todo o caminho que percorrem e estabelecem

relações comerciais e de amizade, em Carneiros e nas cidades vizinhas.

Referências

FERRARI, Florência. O mundo Passa: Uma etnografia dos Calon e suas relações com os

brasileiros. São Paulo, 2010. Tese (Doutoramento em Antropologia Social) - Universidade

de São Paulo. 2010.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ª ed.

Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1963.

GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Nômades e Peregrinos: o passado como elemento identitário

entre os ciganos calons na cidade de Sousa - PB. In: Cadernos de Campo, SP, n. 19, 2010.

SEPPIR. Brasil Cigano - I Encontro Nacional dos Povos Ciganos, 20 a 24 de maio de

2013, em Brasília-DF. Disponível em www.seppir.gov.br.

SIQUEIRA, Robson Araújo de. Os calon do município de Sousa/PB: dinâmicas ciganas e

transformações culturais. Recife, 2012, 164 f. Dissertação (dissertação de mestrado).

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Programa de Pós-Graduação em

Antropologia, 2012.

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A CLASSE TRABALHADORA PAULISTA ENTRE 1920 E 1940 E A EDUCAÇÃO

NÃO-FORMAL: O CASO DO PCB

Lilian Zanvettor Ferreira UNICAMP

Resumo: O presente trabalho procurou compreender os espaços de participação política dos

trabalhadores paulistas das décadas de 20 a 40 enquanto espaços de educação. Nos debruçamos mais

precisamente sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB), local de convergência de lutas dos

trabalhadores na época e que alternou períodos de legalidade e ilegalidade. A pesquisa sugere que o

espaço do partido pode ser considerado como um espaço agregador de diversos saberes, aprendizado,

debate e crescimento entre os trabalhadores paulistas. Mais especificamente buscamos compreender a

experiência do jornal A Classe Operária, órgão oficial do partido, e que tinha como intenção ser um espaço

de divulgação das lutas operárias, também de participação operária e construção de conhecimento.

Palavras-chave: educação; PCB; A Classe Operária.

Abstract: The present study sought to understand the spaces of political participation of paulistans

workers in the decades of 20 to the 40, while educational spaces. We looking for, specially, about

the Brazilian Comunist Party (BCP), local of struggle convergence of works at the time and that

alternated periods of legality and illegality. The research suggests that the party’s space can be

considered as a space that adds diverse knowledge, learning, debates and growth between the

paulistans workers. More specifically, we seek to understand the experience of the newspaper “The

Working Class”, official party organ and which had as intention be a disclosure space of workers

‘struggles and also, working participation and knowledge building.

Keywords: education; BCP; The Working Class

O pintainho humano mal abandona a casca atraca-se aos livros e a resmas de cadernos.

Eu aprendi o alfabeto nos letreiros folheando páginas de estanho e ferro.

Maiakovski

Introdução

Uma questão pessoal suscitou o desejo desta pesquisa: quando da primeira eleição

do presidente Lula no país, em 2002, o Brasil se dividiu entre os que o queriam no governo

e os que o designavam de “analfabeto”, por não ter frequentado a escola formal1- incapaz,

portanto, no dizer de alguns, de ser um governante. Particularmente isso me foi bastante

incômodo, pois me debruçava sobre a pesquisa biográfica do Sr. Basílio Zanvettor2, militante

1 No ideário brasileiro ainda paira a diferença de valorações entre aquele que é intelectual e aquele que é

trabalhador. Por sua característica de trabalhador sindicalista e nordestino, o senso de alguns grupos de

interesse atribui a Lula a insígnia de analfabeto. Lula, no entanto, frequentou o ginásio e o curso técnico de

torneiro mecânico no SENAI. Fonte: Instituto Lula. Disponível em: <http://www.institutolula.org/biografia>. 2 Basílio Zanvettor, militante do Partido Comunista Brasileiro, avô materno da pesquisadora.

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do Partido Comunista, preso juntamente com Carlos Marighella, Annita Axelrud, Samuel

Kleiman e outros, por participação na reorganização do comitê regional do partido na zona

leste paulistana em 1938 e encarcerado durante oito anos no Presídio de Ilha Grande. Através

de sua história de vida, que se imiscuía por meio de fatos, contos e histórias, sabia que Basílio

Zanvettor não havia frequentado a escola formal. Conhecia a biblioteca pessoal que ele

mantinha no porão de sua casa na zona leste paulistana e entendia que a falta de escolarização

formal não estava relacionada a pouco estudo, ou mesmo à pouca compreensão do mundo.

Assim, a pesquisa tomou um novo rumo: em que medida os estudos, as leituras de obras

básicas socialistas, de revistas, boletins, e mesmo as discussões ocorridas no partido

poderiam ser consideradas como um processo educativo? Durante a pesquisa pude me

debruçar sobre a questão da hegemonia em Gramsci, o que me fez entender o porquê da

desvalorização desse tipo de estudo e consequentemente de coletivos por ele frequentado. O

intelectual orgânico, no entanto, se fazia presente, nos estudos, nas discussões, na

organização das células e na luta contra os governos autoritários.

Para o presente artigo, procuramos nos ater à experiência do jornal A Classe Operária,

órgão oficial do Partido, inspirado na formulação leninista de um jornal colaborativo que fosse

formador, além de informador. Nesse jornal, os trabalhadores eram incitados a escrever,

debater, fomentar questões e se aprofundar nas obras teóricas do socialismo.

Pudemos aferir também, pela leitura do jornal, que a educação formal não é

desvalorizada, é presente na vida desses trabalhadores, através de todo tipo de tentativas de

certificação e frequência ao ensino formal.

1. Os jornais operários

Os jornais operários constituíram experiências concretas e vívidas da classe

trabalhadora no Brasil, desde fins do século XIX. Com a chegada dos imigrantes, muitas

foram as experiências de imprensa que tinham por intenção propagar os ideais anarquistas,

denunciar condições de vida, estadia e trabalho no Brasil. Na cidade de São Paulo, no início

do século XX, circularam inúmeros folhetins, muitos publicados nos dialetos italianos.

São Paulo, uma cidade economicamente importante para o escoamento da produção

cafeeira para exportação, passou por forte processo de urbanização e aglomeração de

trabalhadores, especialmente nos bairros periféricos, em torno das estradas de ferro, e dos

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terrenos alagadiços e baixos, onde se instalaram as fábricas e indústrias criadas para suprir

as necessidades da urbanização brasileira (ROLNIK, 2001).

A historiadora Maria Guzzo Decca traz, em sua pesquisa sobre o cotidiano operário

paulista, que, na década de 1920-1930, 87% da população na cidade de São Paulo era de

imigrantes. Essa população, alguns egressos do trabalho nas fazendas, outros vindo diretamente

para a cidade, veio, na maioria das vezes, com as primeiras letras adquiridas na pátria natal. Aqui,

encontraram condições de vida e trabalho bastante precárias. Entre 1917 e 1922, esse último ano

de fundação do Partido Comunista, as greves e aglomerações de trabalhadores por melhores

condições de trabalho eram intensas e constantes. A organização dos trabalhadores se fazia cada

vez mais forte e a luta por direitos, através de greves, sindicatos e comícios era constante. “Os

jornais de tendência anarquista, anarco-sindicalista, comunista, ou jornais de sindicatos, dos

pequenos grupos socialistas ou antifascistas, eram parte integrante do cotidiano da cidade e do

ponto de vista de como os trabalhadores viam seus problemas” (DECCA, 1987, p. 97).

Os jornais e boletins operários tinham circulação intensa entre a classe operária e

eram vistos como uma instância não só de informação, mas também de formação política.

Segundo Saviani:

Os ideais libertários difundiram-se no Brasil na forma das correntes

anarquista e anarcossindicalista. Aquela mais afeita aos meios literários e

está diretamente ligada ao movimento operário. Seus quadros provinham

basicamente do fluxo imigratório e expressavam-se por meio da criação de

um número crescente de jornais, revistas, sindicatos livres e ligas operárias

(SAVIANI, 2010, p. 182).

Em 1925, três anos após a fundação do Partido Comunista Brasileiro, inicia-se a

publicação do jornal A Classe Operária, com a intenção de ser um órgão de divulgação e reflexão

oficial do partido. É preciso, como afirma Mattos (2009), compreender o alcance de um jornal

operário à época. Para um jornal que ia contra o pensamento hegemônico, A Classe Operária

tinha enorme tiragem. Com o auxílio do partido, dos próprios trabalhadores e simpatizantes, o

jornal era editado e distribuído para leitura, desde o interior das fábricas até o campo.

Além da leitura, esses trabalhadores eram chamados a contribuir com o jornal, em

especial na denúncia de condições de vida e trabalho, o que faz da Classe Operária um

documento interessante para compreensão do cotidiano desses trabalhadores. Segundo

Lacerda (1938), citado por Dainis Karepovs: “Até abril de 1937, editou-se A Classe Operária

em São Paulo (mensal, com tiragem de cinco mil exemplares), Salvador (quinzenal, 2,2 mil

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exemplares) e no Rio de Janeiro (de janeiro a março de 1937, mensal com dois mil

exemplares)” (LACERDA, 1938 apud KAREPOVS, 2002. p. 154).

A Classe Operária não tinha sede e tipografia próprias e se utilizava de gráficas

emprestadas ou doadas pela imprensa comum. Tornou-se ilegal em 1929, e assim permaneceu

por 16 anos, ainda publicando com extremas dificuldades (BRANDÃO, 1978). Em 1931, a

pedido do partido, Otávio Brandão retoma os trabalhos do jornal e reforça a intenção clara de

que ele deveria ser um órgão, não somente de divulgação, mas também de caráter colaborativo

e educativo entre os trabalhadores e trabalhadoras. “O PCB inspirou-se no Plano de um Jornal

político para toda a Rússia, publicado no livro de Lênin, Que fazer?, e fundou, em 1925, sob

estado de sítio o jornal legal das massas A Classe Operária” (BRANDÃO, 1978, p. 220).

Em um trabalho sobre a representatividade feminina na política, Bernardes (2007) estuda

o papel de Laura Brandão, esposa de Otávio Brandão, na militância política. Nesse trabalho

podemos entrever que Laura Brandão, apesar de não aparecer, não ter o nome figurando em

nenhum local, foi fundamental nas atividades do jornal. Em alguns artigos, Laura Brandão já

passa a figurar como co-fundadora de A Classe Operária, ao lado de Brandão e Astrogildo

Pereira. A pesquisa de Bernardes aponta que uma das funções de Laura era editar e corrigir as

cartas dos operários, o que reforça a colaboração constante dos trabalhadores como parte

intrínseca das atividades do jornal e o seu papel de diálogo com e entre esses trabalhadores.

2. A colaboração, a leitura e a educação dos trabalhadores

A discussão sobre educação perpassa pela questão do jornal colaborativo de duas

maneiras: a colaboração em si, como um processo de aprendizado e empoderamento de escrita e

de apropriação do veículo de imprensa e, num segundo ponto, o processo de aprendizagem que se

possibilita com a leitura propriamente dita do jornal. Nesse segundo sentido, o jornal parecia

consciente da sua possibilidade em promover, entre as massas, leituras de cunho reflexivo.

Pensamos numa relação entre a apropriação do trabalhador pelo jornal e a reflexão a

respeito do seu conteúdo, ou seja, entendemos que a relação que o trabalhador tem com os

diversos textos e escritos, se retroalimentando para compreender o mundo e novamente

colaborar, será maior na medida em que se identifica com o veículo ou identifica o veículo

como parte de sua atuação. Em vários números consultados, pudemos observar que a

participação, a escrita, o envio de notícias pela parte dos trabalhadores é instigado pelo órgão.

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Figura 1 - Aos trabalhadores das fazendas de café. Jornal A Classe Operária, Rio de

Janeiro, 1925.

No jornal de 4 de julho de 1925 (Ano I), contamos vinte e cinco pequenos artigos de

trabalhadores, todos em tom de denúncia das condições de vida, trabalho e salário.

As denúncias variam desde descumprimento às leis por parte dos patrões, até a

insalubridade no ambiente de trabalho (falta de janelas, de local para alimentação, falta de

ventilação, intoxicação por gases tóxicos), passando por denúncias de excesso de trabalho

dos “juvenis”, além de violência por parte dos patrões e encarregados da fábrica, inclusive

violências de gênero.

Em 1925, apesar do estado de sítio decretado pelo Presidente Artur Bernardes desde

1922, e as difíceis condições para a luta operária, o jornal está em legalidade. Os nomes dos

artigos, em sua maior parte, estão assinados. Alguns artigos são identificados por grupo ou classe

(“Trabalhadores dos Trapiches”, “Um grupo de Vassoureiros”, “Os pequenos operários da

estamparia Bonavita”). Já no Ano XII, 1936, nenhum artigo é assinado, apenas as iniciais são

grafadas. “Em 1929 o jornal A Classe Operária foi fechado [...] boicotado pelas tipografias,

mergulhou na vida ilegal durante 16 anos de combates heroicos” (BRANDÃO, 1978, p. 362).

Em seu livro de memórias, Brandão afirma que o jornal continuou a ser editado após

1929, apesar das dificuldades e de maneira irregular. Não foi possível, no entanto, encontrar

a série de jornais dos anos 30. Para a historiografia tradicional, o Brasil passou por uma

ditadura após o golpe dado por Getúlio Vargas em 1937. Sabemos, no entanto, que

recrudescem as perseguições e aprisionamento dos militantes desde muito antes. O

Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP), por exemplo,

foi criado em 1924. No depoimento de Elvira Boni, militante anarquista e colaboradora do

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PCB, é possível compreender que a perseguição era sentida vivamente pelos militantes desde

muito antes da implementação oficial do estado de exceção.

3. O ensino formal

Em 1920, o ensino e a alfabetização da população pobre já era alvo de políticas

públicas nacionais e de intensa preocupação das elites. Inspiradas pelos ideais higienistas,

várias foram as reformas e decretos voltados para a ampliação do acesso à educação formal.

A reforma de 1920 apresentava-se de forma muito mais ousada, pois já não

bastava dar instrução completa para alguns, urgia alfabetizar todos.

Tratava-se então de regenerar a república, nacionalizar o país, e para isso,

a escola poderia ser mais simples e rápida – dois anos eram suficientes para

o ensino primário. Sim, por que Sampaio Dória entendia a alfabetização

do povo como “questão nacional por excelência” do que decorreria a

formação do caráter nacional, a integração dos migrantes e a subordinação

à ordem e ao trabalho (MACHADO, 2009, p. 54).

Segundo dados do Censo, colhidos através de documento do INEP, em 1920, 65% da

população brasileira era analfabeta. No trabalho de Machado (2009) levanta-se, na São Paulo

de 1920, a existência de apenas um ginásio público mantido pelo governo, contra 40 escolas

privadas. A classe trabalhadora paulista vivia pobremente. Segundo Decca (1987), os salários

eram consumidos quase em sua totalidade pelos aluguéis das habitações precárias, deixando

pouco para alimentação, vestuário e higiene. Toda a família, de pais a crianças, ingressava

para o trabalho insalubre das fábricas, não atingindo, mesmo assim, o mínimo para

subsistência. É fato, portanto, que, mesmo alfabetizados (e muitos dos imigrantes já aportaram

alfabetizados) o acesso à escola e à escolarização era vetado a essas camadas populares.

Retomamos Willis ao refletir que a escola, para a classe trabalhadora, nem sempre é

uma opção, e deixar de frequentá-la pode não ser também um problema:

O abraçar o trabalho manual não é uma experiência de absoluta incoerência,

na qual os indivíduos deixam de ter uma visão lúcida por causa de

influências culturais perversas, assim como não é uma experiência de atávica

inocência, profundamente marcada por ideologias pré-estabelecidas. Ela tem

a natureza profana de si própria: ela não se apresenta nem sem significado,

nem com o significado dos outros (WIILIS, 1991, p. 210).

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Para esses homens e mulheres do trabalho, nessa época, o partido acaba por ser o

local de encontros, estudo, lazer, de construção de ideias e de aprendizado.

Ao nos debruçarmos entre os números do jornal dispostos no Arquivo Edgard

Leuenroth da Unicamp, pudemos notar que as falas e escritos sobre a educação são

recorrentes. Além das chamadas para a colaboração escrita do trabalhador, indicações de

leituras e modos de compreender o contexto político também se fazem presentes.

Figura 2 - Jornal A Classe Operária, Rio de Janeiro, 1925.

Figura 3 - Jornal A Classe Operária, Rio de Janeiro, 1925.

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Os artigos às vezes vinham explicitar o problema da falta de instrução das crianças, às

vezes divulgar cursos noturnos e associações de ensino. Pôde-se observar também, a valorização

das iniciativas educativas dentro das prisões (Presídio Maria Zélia e Colônia Correcional de Ilha

Grande. Não foram achados registros sobre o presidio de Fernando de Noronha) e entre os presos

políticos que, ao montar bibliotecas e grupos de estudo, no dizer dos jornais, resistiam.

Para além do jornal como experiência educativa per si, em seu fazer colaborativo, o

discurso e a reflexão sobre educação, no periódico, foi uma constante. As falas sobre o

assunto da educação são recorrentes, variadas e perpassam diversos artigos. Em 27 de junho

de 1925, lê-se sobre a educação das mães operárias:

É preciso que os companheiros ensinem as primeiras letras às companheiras,

caso ellas não o saibam. A mulher analphabeta é um sério obstáculo à obra

de transformação [...]. Desde que a companheira saiba ler, é tratar de iniciá-

la imediatamente na theoria proletária. Aliás, ela poderá desenvolver a

leitura nos próprios livros marxistas (A Classe Operária, 1925).

Em maio de 1928, um artigo procura levantar questões para o jovem proletário. Nesse

artigo, fica implícito que o emprego, na condição de aprendiz, é remunerado de maneira

inferior: “Jovem proletário. Onde trabalhas? Tem muitos companheiros? Quantas horas

trabalhas? Qual é o teu salário? Quantas horas dormes? Como é a tua cama? Os pagamentos

são pontuaes? És aprendiz, ou, és apenas roubado como aprendiz?” (A Classe Operária, 1928).

Em janeiro de 1938, no Manifesto de Convocação para o IV Congresso do PCB, que foi

lançado como folha suplementar ao jornal, entre outras propostas, figuram ideias sobre a educação

da juventude: “Um programa que abrisse a mocidade brasileira maiores horizontes, para a

concretização de suas sentidas aspirações deveria compreender uma campanha juvenil pela cultura

popular ampla, pela proteção, a recreação e ao esporte dos jovens” (A Classe Operária, 1938).

Ao folhear o jornal, é visível uma valorização do ensino em todas as suas formas.

Associam-se aos artigos e reflexões sobre educação, notas de divulgação sobre

oportunidades educativas como associações de ensino mútuo, escolas noturnas e de

aprendizado técnico - metalurgia, alfabetização nos sindicatos.

Há ainda, as chamadas para leituras de base e para a conscientização da importância

do debate entre companheiros no lar e na fábrica.

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Figura 4 - Jornal A Classe Operária, Rio de Janeiro, 1925.

Pudemos perceber, portanto, que a educação em seu sentido escolar não era

desvalorizada e estava presente na vida desses trabalhadores do partido, através de todo tipo

de tentativas de certificação e frequência ao ensino formal. Percebeu-se, no jornal, um

constante retorno ao assunto da necessidade de alfabetização, alfabetização das mulheres e

crianças, escolarização da juventude e ensino especializado, voltado à profissionalização.

4. Contradições

Embora declarada por Otavio Brandão a intenção de escrita coletiva, ao observarmos

a publicação, notamos que a colaboração dos trabalhadores mostra um recorte bastante

restrito e utilitário. Dos artigos de trabalhadores publicados no jornal do dia 4 de julho de

1925, todos eles se referiam às condições de vida, de trabalho e emprego. Mesmo que o

discurso de desejo de libertação dos trabalhadores pelo jornal seja frequente, na prática, os

artigos de opinião, as reflexões literárias, as discussões sobre política se mostram vedadas

ao trabalhador comum, sendo feitas prioritariamente pela chamada vanguarda operária.

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Figura 5 - Jornal A Classe Operária, Rio de Janeiro, 1925.

Como exemplo, temos a resposta publicada no jornal de 1945 a Valdomiro Ramos

Pacheco. Ao que parece o texto de caráter literário não encontra abrigo no jornal, diminuindo

assim, ao nosso ver, a possibilidade educativa e colaborativa do mesmo.

Figura 6 - Jornal A Classe Operária, Rio de Janeiro, 1945.

Numa rápida busca, pudemos achar o nome Valdomiro Ramos Pacheco na Biblioteca

de Literatura Digital da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), atribuindo a ele a

profissão de poeta, jornalista, professor e filósofo. A resposta dada pelo jornal a Pacheco

contém em si uma contradição: ao mesmo tempo em que o jornal se pretende um órgão

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coletivo, tem um espaço restrito de contribuição desses trabalhadores cujo corte parece ser

mais político ideológico e menos educativo e cultural.

5. Resultados

O artigo sugere que os espaços de luta política entre os trabalhadores paulistas das décadas

de 20 a 40 se configuraram como espaços de educação. Compreendemos que para os homens e

mulheres do trabalho, na São Paulo da época, o partido era o local de encontros, estudo, lazer, de

construção de ideias e também de aprendizados. Entendemos aqui que na luta desses trabalhadores

ocorreu um processo educativo que pensamos ser significativo. Os processos de educação aqui

sugeridos, em seu intermeio com a luta dos trabalhadores, podem ser compreendidos ao pensarmos

a educação em uma gama maior de práticas sociais que ultrapassam aquilo que acontece dentro

dos moldes escolares. Como vemos em Mazza, a educação entendida no seu sentido mais amplo.

Em tais situações, o aprendizado não tem estreita relação com os bancos da escola

formal e as diversas lições apreendidas sugerem uma escola da vida que vai inscrevendo, no

corpo, algumas relações (práticas sociais) de conhecimento (MAZZA, 1989). Toda a

possibilidade educativa que vislumbramos no jornal, vem, porém, da prática da militância,

das greves, das discussões dos trabalhadores e de seu envolvimento no pensamento político

transformador. É a prática política a priori que torna, ou pode tornar um jornal operário vivo,

é a lide do trabalhador que o faz compreender a importância das discussões ali apresentadas,

da necessidade de submissão de artigos, da importância de um espaço de publicação.

A escolha de uma orientação – política, por exemplo – se faz por uma

maneira de fiat, de “golpe existencial”, sem nenhuma garantia teórica. Por

sua vez, a prática e os interesses a que está ligada impulsionam a

curiosidade teórica em tal ou qual direção, mas não influenciam a própria

natureza da démarche teórica, pelo menos quando esta permanece fiel às

exigências que a definem (DEBRUM, 2001, p. 79).

A instrução certificada não foi, para muitos, alcançada, mas as experiências não

formais, informais e formais não escolares, a escrita de artigos, leitura de livros, criação

coletiva de células do partido eram espaços de educação, embora uma educação não

reconhecida pelo Estado e mesmo negada em seu direito, já que os tempos de ilegalidade do

partido são, na verdade, maiores que os tempos de legalidade.

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O JAZZ COMO LUTA CRIATIVA

Mattheus Vinicius Rosa UFMG

Resumo: Este artigo se propõe a estudar o jazz como uma resposta do negro às condições de opressão

e violência da sociedade ocidental branca. Mais precisamente, procuro estudar o jazz como sendo

uma forma criativa do negro denunciar seu modo de vida em um E.U.A com fortes heranças da

escravidão. A esta denúncia chamo de luta criativa, uma vez que entendo que a música foi uma das

formas que o negro encontrou para se situar e afirmar sua identidade no contexto social, econômico

e cultural do ocidente. Para isto, busco nos elementos mais característicos do jazz – como a

construção do som e o fraseado, a improvisação, o blues, o spiritual e o ritmo –, seus fundamentos

africanos. Entretanto, reconheço a importância de outras culturas para a formação do jazz. O jazz

contém a força expressiva da cultura africana e, por meio desta, é que o entendo como um

instrumento de luta, de denúncia – pois, o jazz não convoca uma revolução, mas manifesta a realidade

social de um povo oprimido. Neste sentido, a história do jazz é, em certa medida, a história social do

negro e sua busca por uma sociedade mais igualitária e livre.

Palavras-chave: jazz; luta criativa; consciência negra.

Abstract: This article looking for study the jazz as a answer of black people to the oppression and

violence conditions in the white and occidental society. More precisely, I looking for study the jazz

as a creative way of black people denounce them way of life in a USA with strong slavery heritage.

About this denounce, I call creative fight, once that I understand the music as a way founded by the

black people to place and state their identity in the social, economic and cultural context of occident.

For this, I search in the elements more characteristic of jazz – as a building of the sound and the

phrasing, the improvisation, the blues, the spiritual and the rhythm –, their Africans elements.

Perhaps, I recognize the importance of other cultures to the jazz formation. The jazz have the

expressive strong of African culture and, thus, I understand it as an instrument of struggle, of

denounce – because the jazz not convoke a revolution, but expresses the social reality of oppressed

people. In this way, the history of jazz is, in a certain way, the social history of black people and their

search for a more equal and free society.

Keywords: jazz; creative fight; black consciousness.

1. Comentários gerais sobre o jazz

Este capítulo possui a intenção de preparar o leitor para certos aspectos do jazz que são

fundamentalmente importantes. O são não somente naquilo que diz respeito a sua pré-história,

mas, igualmente, nos elementos que fazem deste estilo um estilo muito singular. Neste sentido,

é essencial que o leitor entenda, mesmo que brevemente, as características mais marcantes,

segundo Berendt e Huesmann (2014), desta música, isto é, o que faz do jazz o jazz.

Para falar de jazz é necessário voltar aos seus fundamentos. Não exatamente penetrar

em seu modo de vida e em seus valores anteriores à escravidão, uma vez que isto seria um

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empreendimento que fugiria bastante do que é proposto aqui. Por mais que seja verdade que

o principal núcleo, isto é, os aspectos fundamentais do jazz sejam de origem negra, não é

verdade que o jazz seja um estilo musical puramente negro. Aliás, se existe algo sobre o jazz

que podemos afirmar com grande certeza é de que ele jamais foi uma música pura. Pelo

contrário, o jazz é o resultado de uma hibridização musical.

Pensar que o jazz é um estilo musical inteiramente africano é um erro de cálculo que

desvaloriza seu próprio caráter agregador. Mesmo porque pouca coisa da organização social

dos negros da África Ocidental – de onde saiu, segundo Eric Hobsbawm (2012), a maioria

dos escravos – sobreviveu à escravidão. A não ser por certos cultos religiosos, como o vodu

na Louisiana, pouca coisa havia de africanismo nos Estados Unidos. É importante dizer que

este africanismo existia mais e de maneira mais pura em áreas de domínio francês, pois, por

serem de maioria católica, permitia-se um maior grau de paganismo do que entre os donos

de escravos protestantes. “Música africana razoavelmente pura sobreviveu, nos Estados

Unidos, em parte como música ritual, pagã e mais ou menos cristianizada e em expressões

como works songs e hollers” (HOBSBAWM, 2012, p. 61).

O jazz pode ser entendido, então, como resultado da fusão entre a “música negra”

com alguns componentes da “música branca”. Hobsbawm (2012) nos diz que o nascimento

do jazz se deve, basicamente, à presença de três culturas europeias: a espanhola, a francesa

e a anglo-saxã. Cada uma delas viria formar uma fusão musical afro-americana diferente: “a

latino-americana, a caribenha e a francesa [...] e várias formas de música afro-anglo-saxã,

das quais, para as nossas finalidades, as mais importantes são as canções gospel e os country

blues” (HOBSBAWM, 2012, p. 61). A região do Delta do Mississippi é normalmente

reconhecida como o principal centro do jazz, justamente por sua rica concentração cultural.

De interior anglo-saxão protestante, com parte do território se estendendo até o Caribe

espanhol e de cultura francesa nativa. Ora, o Delta Mississippi possuía as condições

necessárias para o surgimento de uma música como o jazz.

Dessas culturas europeias, a francesa foi a que mais contribuiu musicalmente,

“principalmente por ter sido assimilada por uma classe especial de escravos libertos que

crescia em New Orleans: os créoles” (HOBSBAWM, 2012, p. 62). Não é por acaso que os

créoles possuíam conhecimento e possibilidades musicais maiores do que os outros negros,

que nem por isso produziram músicas de má qualidade. O conhecimento teórico musical, a

instrumentação do jazz de primeira fase, a técnica instrumental, a presença dos instrumentos

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de sopro e o estilo dos repertórios (marchas, valsas e polcas) são de origem francesa. Não só

este aspecto da cultura musical francesa, mas, não menos importante, as festas públicas, os

carnavais, as confrarias, e os desfiles são de herança francesa e contribuíram enormemente

para o desenvolvimento do jazz.

De acordo com Hobsbawm (2012), a partir do final do século XIX, os créoles

levaram esta sabedoria especial aos outros negros de posição socioeconômica inferior, uma

vez que, como aumento da segregação racial, os créoles foram rebaixados de sua posição

relativamente privilegiada.

Das heranças anglo-saxãs, a língua inglesa foi a mais importante. “Ela forneceu as

palavras para o discurso negro e para as canções” (HOBSBAWM, 2012, p. 63). Com o inglês

os negros desenvolveram uma linguagem jazzística e as emocionantes letras de blues,

considerada por “alguns críticos, na linha de Jean Cocteau, como a única contribuição

essencial no domínio da poesia autenticamente popular do século XX” (BERENDT,

HUESMANN, 2014, p. 199).

Mas, para Hobsbawm (2012), o principal fator da expansão da música negra norte-

americana e, consequentemente do desenvolvimento do jazz, foi a não inundação de padrões

culturais das classes socioeconomicamente superiores dentro desta música. Este fato

propiciou um desenvolvimento forte e resistente da linguagem musical ligada ao povo, em

uma sociedade cada vez mais capitalista.

Entretanto, o mais importante disso é o fato de que a formação do jazz não ocorreu

por exigências vindas de cima, mas de maneira espontânea e vinda de baixo, de quem

realmente era praticante e vivenciava a música negra. Consequentemente, o componente

africano da música não foi subordinado ao componente europeu.

[...] Todos os elementos musicais – ritmo, harmonia, melodia, timbre e as

formas básicas do jazz – são essencialmente africanos em seus

antecedentes e derivação. E por que haveria de ser de outro modo? Afinal,

as tradições de séculos, que não são meros cultos artísticos, senão parte

inseparável da vida diária, não são abandonadas tão facilmente. Houve

aculturação, porém, só no sentido de que o negro permitiu que elementos

europeus se integrassem às de sua própria música. Por isso, pode-se dizer

que dentro do vasto marco de tradição europeia o negro americano foi

capaz de conservar um núcleo significativo de sua tradição africana. E é

esse núcleo o que tem feito do jazz a linguagem tão singularmente cativante

que é (SCHULLER apud CALADO, 2007, p. 66).

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Esta conclusão é importante em dois sentidos. Em primeiro lugar, ela confere à cultura

africana seu lugar marcante e essencial na constituição do jazz. Em segundo, ela nos permite fazer

uma reflexão reveladora. Ora, se existe um núcleo africano no jazz e se este núcleo é fundamental,

é possível pensar que alguns elementos componentes das representações musicais de algumas

culturas da África Ocidental estejam presentes no jazz. Bom, não é por acaso que o spirituals, o

blues em menor medida, constitui a principal fonte criativa e vital para o jazz. É, principalmente,

nos spirituals que o jazz encontra a força emocional de sua música. As igrejas, de fato, foram o

principal refúgio do afro-americano, uma vez que este foi o local que encontraram para a

manifestação relativamente livre de suas heranças rituais e do sentimento de grupo.

De certo modo, isto se explica pela natureza da música africana, que é basicamente

funcional. Mais precisamente, “esta música se presta fundamentalmente a determinados

propósitos sociais e religiosos” (CALADO, 2007, p. 68). Não há, portanto, uma separação

entre arte e vida, música e cotidiano, músico e público. O fundamental é que a música seja

um fenômeno coletivo e imerso na vida cotidiana. Quando os africanos chegaram aos E.U.A

o lugar em que este fenômeno musical se desenvolvia, isto é, o espaço reservado para a

prática coletiva da música eram as igrejas batistas.

De acordo com Carlos Calado (2007), a proximidade existente na cultura africana

entre a linguagem e a música é uma explicação possível para o acurado senso rítmico e

musical do negro africano. Isto porque, em muitas comunidades africanas, a linguagem é

tonal e qualquer inflexão – mudança de acento, por exemplo – implica na alteração de

significado da palavra. “Lo fò (Vá e lave aquele prato) torna-se com uma mudança do acento

na palavra fo: Lo fó awo nyen (vá e quebre aquele prato). Olorun lo dà mi (Deus me fez)

torna-se, com uma mudança do acento sobre a palavra da: Olorun lo dá mi (Deus me traiu)”

(CALADO, 2007, p. 69). Neste sentido, os instrumentos são capazes de reproduzir as

palavras. O “dundun1” era usado em algumas ocasiões de certas comunidades da África

Ocidental com o objetivo de emitir pensamentos e mensagens sem a necessidade do

pronunciamento da voz. Através da pressão ou relaxamento do braço no couro do

instrumento o executante conseguia alcançar a afinação desejada. É claro que para

compreender esta linguagem era necessária certa destreza auditiva, capaz de reconhecer

certos elementos como: altura, ritmo e timbre. Neste contexto, as crianças são introduzidas

desde cedo nesta educação do ouvido, uma vez que ela faz parte da assimilação da língua.

1 Tambor falante da África Ocidental.

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Entretanto, “mesmo que os negros não mais pudessem usar os tambores durante a

escravidão nos EUA, proibidos pelos senhores receosos de seu poder de comunicação e

incitamento, substituem-nos pelas palmas e batidas de pé, que assumem função semelhante

na busca de preservar essa linguagem” (CALADO, 2007, p. 71).

Ora, o que mais objetivamente distingue o jazz da música clássica europeia é a

construção do som e do fraseado. Elementos estes que estão de acordo com a própria

natureza da música africana – de música coletiva e funcional. Ao contrário de uma orquestra

sinfônica, onde cada músico procura executar de maneira excelente as partes destinadas a

ele, sem, no entanto, deixar de buscar o máximo de homogeneidade dentro do conjunto, o

jazzista procura desenvolver seu próprio som. “Os critérios deste estilo de som são de ordem

mais expressiva e emocional que normativa” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 185).

Enquanto na música clássica orquestral o objetivo é um mesmo ideal sonoro a fim de

produzir um som belo, no jazz a finalidade é desenvolver uma signature sound. Mais

precisamente, no jazz o músico espelha-se em si mesmo e, por isso, os sons são duros e

francos – a voz produz uma gama de sentimentos possíveis e verdadeiros que vão de

encontro com a personalidade do músico; o mesmo vale para o som expressivo, eruptivo e

liberto dos instrumentos. Aqui, o som não segue preceitos normativos a não ser a própria

realidade que assola o músico. “Um jazzista – mesmo numa big band – percebe e sente,

compreende e visualiza aquilo que toca”, de modo que, “a beleza da música jazzística tem o

caráter mais ético que estético” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 186). LeRoi Jones em

“Black Music: Free Jazz y Conciencia Negra (2010)” provoca alguns críticos de jazz que se

preocuparam mais em atestar sobre a qualidade da música do que sobre sua motivação –

sendo que esta consiste na principal chave para se compreender o que é jazz.

“Na cultura africana o ‘belo’ só se justifica enquanto expressão do cotidiano”

(CALADO, 2007, p. 29). No jazz, o som, os efeitos e a expressão valem mais do que a

palavra ou a beleza da nota produzida. O fraseado jazzístico é responsável por passar uma

informação vinculada aos sentimentos e à personalidade do artista. Neste sentido, o

instrumento é, na verdade, um prolongamento do corpo e da voz do jazzman.

Por ejemplo, un saxofón, que fue hecho por un alemán, y que cuando se lo

toca, como dicen los blancos, ‘legítimamente’ suena como la difunta Lily

Pons en un funeral, es transformado por Ayler, o por los miembros de

cualquier iglesia de los negros, en un aullante espírito de invocación, como

si estuviera atado al cuello del negro ‘enloquecido” (JONES, 2010, p. 188).

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Disto decorre que “a construção do som e do fraseado de jazz são os elementos mais

negros da música jazzística” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 187). Bom, isto é muito

bem exemplificado pela dicção cantante do inglês no sul dos Estados Unidos. Fato que está

relacionado à influência dos negros. Algumas gravações de Allan Lomax revelam este

fenômeno, ao observarmos a facilidade com que cantores de blues passavam da fala para o

canto – às vezes é possível, inclusive, confundir estes dois momentos, da fala e do canto.

Ironicamente, como acentua Berendt e Huesmann, os brancos desta região falam de modo

parecido. A própria palavra “nigger – que em sua origem nada mais é que a forma dos negros

falarem negro” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 187).

Além da construção do som e do fraseado, o improviso é uma das principais marcas

do jazz. Por mais que na maioria das culturas musicais, em que o sentido de criação prevalece

ao da imitação, a improvisação seja um recurso, foi no jazz que ela encontrou sua melhor

expressão. Uma vez que o jazz possui uma relação benévola com a espontaneidade,

preservando-a na possibilidade de cada músico se representar no som que executa, o

improviso em jazz alcançou possibilidades infinitamente mais ricas. Entretanto, como é de

se esperar, as formas mais antigas de jazz utilizavam-se de improvisações menos complexas.

É de se esperar porque o jazz é uma música em constante renovação e a improvisação é um

procedimento estrutural desta música. Com exceção do free jazz da década de 1960 e das

formas mais complexas de canções que foram utilizadas nas décadas posteriores, o

improviso em jazz é baseado em um tema. O músico de jazz sobrepõe à harmonia dada da

canção ou do blues – que, na maioria das vezes, é de 32 ou 12 compassos – novas linhas

melódicas que ocorrem em dois sentidos: no primeiro caso, onde está situado o jazz mais

antigo – como estilo New Orleans –, a canção ou o blues era sutilmente modificada e

embelezada, ornamentada; no segundo caso, no jazz moderno – grosso modo, de 1940 a

1980 –, as linhas melódicas são novas – em um elevado grau – e infinitamente mais ricas.

Seja lá como for, o importante é reconhecer que “a harmonia é o princípio de controle

estrutural no jazz” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 188). Mais do que isso, “o criador

de um chorus de jazz é simultaneamente improvisador, compositor, intérprete e arranjador

[...] caso contrário a música se torna duvidosa” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 191).

Neste sentido, partindo do pressuposto de que o improviso é dizer algo muito particular

de forma estruturada, criativa e elegante, é possível encontrar paralelos entre o ato de falar e

de improvisar. Algo que os músicos de jazz sempre souberam e que a crítica e os intelectuais

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foram perceber só posteriormente. Pois bem, assim como a fala, o improviso é organizado e

executado de modo inteligível de acordo com cada contexto. O músico deve saber a hora exata

de “dizer algo” em uma música, de dar sua opinião, e para isso é fundamental que ele possua

um vocabulário, uma noção de sintaxe musical e um discurso. Não é sem motivo que grandes

músicos de jazz criam chorus completamente diversos sobre um mesmo tema. Cada um faz

uso do vocabulário, da sintaxe e do discurso de uma maneira extremamente particular, “pois

um improviso de jazz é a expressão pessoal do improvisador e de sua condição musical,

emocional e espiritual” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 191).

Além da própria individualidade do músico, a coletividade, como é possível perceber

melhor neste ponto, é uma das marcas do improviso e do jazz. Ora se para “se falar em jazz”

é preciso conhecer e respeitar a estrutura, isso quer dizer que existe uma preocupação com o

conjunto em jazz. “O jazz é provavelmente a única forma de arte hoje existente em que a

liberdade do indivíduo não colide com o sentimento de comunidade” (BERENDT,

HUESMANN, 2014, p. 196).

Até este ponto é necessário que se destaque duas coisas: em primeiro lugar o peso da

cultura negra na construção do jazz; em segundo lugar a liberdade de expressão inerente a

este estilo musical. Ora, o jazz nada mais é, como entende Amiri Baraka (2010), que a reação

do negro ao mundo ocidental branco. E esta reação possui raízes muito profundas que partem

da África – principalmente seu lado ocidental – aos Estados Unidos.

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2. O jazz como luta criativa

O jazz, dentro de seu próprio desenvolvimento, ofereceu, ao afro-americano, uma

possibilidade de luta (criativa) contra uma sociedade de heranças escravagistas. Entretanto,

reconheço que há um risco muito grande em se falar de “luta”, isto é, de um conflito. E este

risco só aumenta se colocarmos o jazz como o agente desta luta.

Bom, o interesse aqui é buscar resolver com o maior cuidado possível isto que chamo de

“luta criativa”. Criativa, pois, se trata de um conflito diferente do que estamos acostumados a

presenciar nos noticiários de TV, jornais etc. Trata-se de um conflito que acontece no nível da

cultura ou, mais precisamente, no nível da criação musical – que se fundamenta, como dito mais

acima, em um conjunto de experiências herdadas e vividas. Trata-se, basicamente, de uma luta

contra as expressões mais imediatas do racismo, da miséria e de seus desdobramentos: a violência,

a opressão, a segregação, a injustiça, o sofrimento e assim por diante.

Para este fim, parto basicamente do livro “Antropologia da Escravidão: o ventre de

ferro e dinheiro” de Claude Meillassoux (1995). Acredito que Meillasoux oferece os

fundamentos necessários e suficientes ao meu interesse: de mostrar que o jazz – e suas raízes

– oferecem um meio para o negro se afirmar como um indivíduo social, particular, ou seja,

como um integrante completo – sexualizado, socializado e possuidor de uma particularidade

– da sociedade do mundo ocidental.

É importante dizer que o livro não se refere em nenhum momento sobre o jazz. Mas

fala sobre o escravo, como um ser “dessocializado, despersonalizado, dessexualizado e, por

fim, descivilizado”2. Ora, a música afro-americana é, como vimos, a resposta do negro – que

fora escravizado e (continua sendo) marginalizado – para a sociedade branca ocidental.

Meillasoux nos fala que, nas sociedades escravagistas, o escravo era um “estranho

absoluto” (MEILLASOUX, 1995, p. 78). Isto quer dizer que “o estado dos escravos era o

resultado de uma sucessão de transformações que contribuíam para fazer deles indivíduos

sem laços nem parentesco, afinidade ou vizinhança, e, por conseguinte, aptos à exploração”

(MEILLASOUX, 1995, p. 79).

A primeira destas transformações, de que fala o autor em questão, é a

dessocialização. Esta palavra expressa, grosso modo, o fato de que o escravo só assumia esta

condição ao ser retirado de sua sociedade de origem e, posteriormente, introduzido a uma

2 Estas são expressões usadas pelo próprio Claude Meillasoux, 1995.

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outra, sem que a ele fossem destinados alguns direitos básicos. O escravo assumia, portanto,

uma condição negativa em relação ao gentio3, que possuía um status positivo. Ora, o escravo

só se encaixava em uma posição negativa porque existia seu oposto, o gentio. “A escravidão

nos remete, pois, necessariamente, à sociedades estatutárias e de classes” (MEILLASOUX,

1995, p. 80), como é o caso dos Estados Unidos da América.

A noção de estranho, neste sentido, se opõe a noção de cidadão, de indivíduo munido

de direitos civis ou, em outras palavras, de prerrogativas sociais que, de uma forma ou de

outra, insere o indivíduo no meio social. Assim, o escravo era privado de uma possível

inserção no conjunto das relações econômicas e sociais. “Em sua solidão, o estranho estava

destinado à escravização” (MEILLASOUX, 1995, p. 83). Ao ser introduzido na sociedade

escravagista, o estranho era um morto social4, um não-nascido, pois, “nascer, bem mais do

um fato biológico, é um fato regido pelas leis humanas” (MEILLASOUX, 1995, p. 83).

Mas o que privaria o indivíduo dessocializado de reatar os laços sociais perdidos ou,

inclusive, de criar novos laços, seja com o gentio ou com outros escravos? “Pela

despersonalização, que operava no seio da sociedade escravagista, o indivíduo perdia essa

faculdade” (MEILLASOUX, 1995, p. 84). De uma maneira geral, as sociedades

escravagistas consideravam os escravos como mercadorias, isto é, objetos nas mãos dos

comerciantes e, posteriormente, propriedade de algum senhor de escravos. Há, portanto,

neste contexto, a reificação do sujeito. Em outras palavras, o escravo perde agora sua

individualidade para se voltar como coisa comercial.

Sua ressocialização era, para ficarmos no aspecto jurídico, improvável e

efetivamente desconhecida de fato, pois ela supunha não o reatamento dos

laços com outros cativos igualmente despersonalizados, mas admitir a ter

com os gentios as relações de que dependia a pessoa social

(MEILLASOUX, 1995, p. 85).

E um dos aspectos de se considerar o escravo como uma propriedade de alguém implica,

simultaneamente, sua descivilização. Uma vez que o corpo e o espírito deste estranho estava sob

o controle de um único indivíduo, ele deixava de se definir socialmente, passava a se localizar

fora do sistema legal que rege a sociedade e que concede certos direitos civis – de respeito à

liberdade individual, por exemplo. É dizer que ao escravo nenhum sacrilégio cometido seria

3 Expressão utilizada por Meillasoux para se referir aos indivíduos “de boa raça” – do latim gentilis. 4 “[...] ele só tinha as prerrogativas que lhe eram dadas, e sempre a título precário” (MEILLASOUX, 1995, p. 83).

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visto como imoral ou criminoso. O escravo possuía, então, um estado de vida nua – contra a qual

qualquer coisa é cabível de ser cometida. Ele era um ser neutro5 cujo estado era permanente e

natural – firmado pela lei. Consequentemente, “com exceção das funções do poder, eles podiam

ser designados para qualquer emprego, de acordo com as necessidades múltiplas e variadas da

sociedade escravagista, e permanecer sempre escravos” (MEILLASOUX, 1995, p. 89).

Neste cenário de coisificação e de marginalização do elemento estrangeiro, a

reprodução ganha um sentido puramente mercadológico. Isto, pois, segundo Meillasoux

(1995), nas sociedades escravagistas a captura de novos escravos possuía uma função

reprodutora, no sentido de reconstituírem a classe explorada. À escrava era, geralmente,

negada a função reprodutora, uma vez que o principal interesse que ela despertava para a

sociedade em questão estava em sua própria força para a lida. Na escravidão o mais importante

para o escravista é a força de seu rebanho, ou seja, a capacidade de seus escravos de

desempenharem o serviço ao qual foram designados. E não era diferente com a mulher: ela era

valorizada simplesmente por ser capaz de desempenhar as funções exigidas – dessexualização.

E a função de mãe não era uma destas. Pelo contrário, caso as escravas engravidassem, elas

seriam rebaixadas ao nível de genitoras somente, e “sua progenitura pertenceria ao senhor e

podia ser-lhe arrancada a qualquer momento” (MEILLASOUX, 1995, p. 87).

Assim, a dessocialização, a despersonalização, a dessexualização e a descivilização

formam o cenário geral das sociedades escravagistas. Ao ser retirado de sua sociedade ou

comunidade, o escravo é forçado a passar por um processo que o transforma em indivíduo

neutro, descivilizado. E é justamente este processo que o negro precisará superar no contexto

dos Estados Unidos escravista e pós-escravista – a sociedade pós-escravista não livrou o

negro do preconceito e da segregação. A busca por uma sociedade onde a cor não seja uma

barreira é, infelizmente, um processo lento.

A parte deste processo de libertação no qual o jazz – junto com a música negra de um

modo geral – está inserido, chamo de luta criativa. Criativa porque se trata de uma resposta,

de uma reação, de natureza diferente das que geralmente permeiam as lutas contra a opressão,

por exemplo. A música, grosso modo, é a expressão da consciência sobre o meio em que vivem

5 “A civilização de um indivíduo é o reconhecimento jurídico da socialização, o fato de pertencer à sociedade

civil, à cidade; é a capacidade de recorrer, em caso de desacordo com aquele de quem depende diretamente, à

arbitragem de uma autoridade que supera ou iguala as partes implicadas” (MEILLASOUX, 1995, p. 88). Bom,

e este estado de descivilazado coloca o estranho, o escravo, em uma condição de indivíduo neutro, isto é, que

não está contido dentro dos preceitos que consideram alguém como parte integrante da sociedade. Mais do que

um ser descolado, o escravo era um ser explorado por sua posição.

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os músicos. E uma das mais importantes heranças africanas para a música negra é que esta

deve, primeiro, ser expressiva. Ora, é flagrante as precárias condições de vida em que os negros

viviam – entender os fundamentos da escravidão, como fizemos mais acima, nos ajuda neste

sentido. É de se esperar, portanto, que, se por um lado, “la suavidad y el llamado bienestar del

ambiente del hombre blanco son descritos en su música (arte) [...]” (JONES, 2010, p. 181),

por outro, o homem negro expressaria a dureza de sua vida e de suas relações cotidianas; os

amores desfeitos tragicamente; os guetos; os vícios do submundo; a violência policial; a

discriminação; a morte precoce de seus equivalente sociais6; a busca por uma sociedade mais

justa, igualitária e inclusiva etc. Por exemplo: “el mundo accionado por las imágenes de James

Brown es el lugar más bajo (el más extraño) en el orden social americano blanco” (JONES,

2010, p. 181). Além disso, “el uso de la música hindú, de los viejos spirituals, o de blues

marcadamente rítmicos [...] por parte de los nuevos músicos” (JONES, 2010, p. 183-4) se

mostra (manifesta) como uma música inclusiva, que envolve o mundo inteiro.

Deste modo, se coloco o jazz como uma música de luta criativa é porque seu

conteúdo manifesta, de um modo ou de outro, um conjunto de imagens sobre o modo de vida

do negro no contexto em questão. E porque esta música foi um dos fenômenos que ajudou a

criar uma identidade afro-americana e a situar o negro no mundo ocidental. O próprio

desprezo, que os músicos do novo jazz nutriram sobre as coisas do mundo branco, colaborou

com isto: os músicos do free jazz buscavam a libertação do espírito, ou melhor, uma eterna

busca em direção ao espírito livre. “De esto se trata la New Black Music: encuentren al yo,

y luego mátenlo” (JONES, 2010, p. 170).

Hobsbawm dedicou um capítulo inteiro de seu livro “História Social do Jazz” (2012)

a fim de registrar e estudar este caráter do jazz: de se posicionar contra qualquer coisa que

signifique castração da liberdade ou opressão. Segundo ele, é mais fácil dizer contra o que o

jazz é contra, do que dizer do que ele é a favor. E a luta que o jazz inicia é, claramente, contra

o legado escravista. “O jazz não é simplesmente música comum, ligeira ou séria, mas

igualmente uma música de protesto e rebelião” (HOBSBAWM, 2012, p. 328).

Em outras palavras, o jazz, enquanto expressão criativa funcionou, dentre outras

coisas, como um meio de libertação e inclusão do negro na sociedade norte-americana. É

claro que este processo foi demorado e doloroso ao se considerar o que os músicos deste

6 Nos capítulos que Berendt dedica aos músicos de jazz e em outras consultas desta natureza um dos fatos mais

relevantes é a morte prematura dos músicos negros: entre 30 e 40 anos, geralmente.

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estilo sentiam, mas o simples fato do jazz perturbar emocionalmente – como diz Hobsbawm

– a sociedade branca da época é de extrema importância. Afinal, de que outra maneira a

música poderia operar uma mudança? Pois bem, a mudança que o jazz operou foi a de incluir,

gradativamente, seu executante negro dentro do mundo ocidental.

Dizer que o jazz operava uma perturbação no emocional da sociedade conservadora

é fundamental, mas não completa os impactos gerais do jazz sobre esta sociedade. Uma das

características que colaboram com isso, quero chamar de “luta criativa” – e Hobsbawm

chama de protesto –, é que o jazz “é uma música democrática” (HOBSBAWM, 2012, p.

329). Isso quer dizer que este estilo, ao contrário da música clássica, não afeta somente os

músicos, mas a população de maneira geral. Mais acima foi dito que, nos primórdios do jazz,

muitos músicos sem formação formal poderiam contribuir, de alguma maneira, com sua

carga criativa. Mais precisamente, “o jazz era originalmente uma música para ser

contemplada pelos menos intelectuais ou especialistas, pelos menos privilegiados, menos

educados ou experientes [...]” (HOBSBAWM, 2012, p. 330).

Os primórdios do jazz são marcados por uma expressividade – para usar as palavras

de Hobsbawm – “forte, áspera [...] com as cores da vulgaridade” (HOBSBAWM, 2012, p.

330) que acabava por conquistar as camadas mais populares. E esta é uma das maiores

conquistas do jazz, a saber: o de se constituir como uma conquista popular sobre a cultura

de minoria. O jazz permitiu que seus ouvintes mais modestos pudessem efetivamente criar

música, enquanto, a música clássica permitia, no melhor dos casos, que seu ouvinte a

reproduzisse. Ora, disso incorre o fato de que o jazz “foi a arte que mais perto chegou de

derrubar as barreiras de classe” (HOBSBAWM, 2012, p. 331).

No jazz moderno a expressividade ganha mais força e o jazz se marca, mais do que

nunca, como música negra, “pois seu principal elo com a cultura europeia – a organização

harmônica – havia sido completamente partido” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 48).

Neste contexto, os músicos de jazz já possuíam um nível de conhecimento musical que não

se vê normalmente na população, de modo que o “fazer jazz” deixou de ser coisa popular.

Entretanto, os músicos modernos e intelectualizados de jazz se lançaram ao descobrimento

e inclusão de novas culturas musicais não europeias. E isto quer dizer que o jazz não perdeu

seu caráter agregador, inclusivo, coletivo etc.

Jazz significa coletividade, convivência, partilha, presteza, acordo. Numa

palavra: capacidade de comunicação [...]. Em seu poder de diálogo

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esconde-se um elemento emancipador. [...] O impulso comunicativo que

os afro-americanos transmitiram ao jazz agregou um novo princípio à

história da música: a transposição para a linguagem dos sons e dos ritmos

de conceitos como individualidade, igualdade de direitos, dignidade e

liberdade (HUESMANN, 2014, p. 27).

Neste sentido, por conta da própria natureza e das origens do jazz, é que ele se presta

a expressar um discurso de protesto, de heterodoxia e democrático. Às vezes, o próprio ato

de escutar música de povos e classes oprimidas, em meio a uma sociedade conservadora,

pode significar um gesto de discordância social. E “o jazz não é somente música de pessoas

comuns, mas música de pessoas comuns em seu nível mais concentrado e emocionalmente

mais poderoso” (HOBSBAWM, 2012, p. 339).

De um modo geral, o jazz não é consciente politicamente, isto é, seus músicos não

se posicionavam a favor da direita ou da esquerda; não organizavam uma revolução social

ou um protesto qualquer. “As vozes que gritam ‘Não gostamos disso’ não devem ser

confundidas com ‘Isso não pode continuar’” (HOBSBAWM, 2012, p. 340). E é por isso que

é mais fácil reconhecer o que o jazz combate do que o que ele apoia. O protesto em jazz se

manifesta na expressão do ressentimento, da repugnância à desigualdade, à falta de

liberdade, à infelicidade etc. – e isto não implica militância. O protesto em jazz está no ritmo7

e na força emotiva de dizer:

Southern trees bear strange fruit,

Blood on the leaves and blood at the root,

Black bodies swinging in the southern breeze,

Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant south,

The bulging eyes and the twisted mouth,

Scent of magnolias, sweet and fresh,

Then the sudden smell of burning flesh.

Here is fruit for the crows to pluck,

For the rain to gather, for the wind to suck,

For the sun to rot, for the trees to drop,

Here is a strange and bitter crop8.

7 “O mais forte dos dispositivos musicais de indução de emoções físicas poderosas, o ritmo, como nenhuma

outra música conhecida em nossa sociedade. Ele não é somente uma voz de protesto: é um alto-falante natural”. 8 “Strange Fruit” é uma canção cuja versão mais famosa é a de Billie Holiday. Condenando o racismo americano,

especialmente o linchamento de afro-americanos que ocorreu principalmente no Sul dos Estados Unidos.

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IDENTIDADE, ANCESTRALIDADE E POLIFONIA EM CANTARES

QUILOMBOLAS

Michele Freire Schiffler UFES, Bolsista de Pós-Doutoramento em Linguística - Fapes/Capes.

Resumo: A presente comunicação tem por objetivo investigar os mecanismos linguísticos e discursivos

por meio dos quais se articulam a identidade, a memória e a ancestralidade em performances culturais

de comunidades marcadas por processos escravistas no Estado do Espírito Santo, Brasil. Como corpus

discursivo é utilizada a performance cultural do Ticumbi de Conceição da Barra, base de observação

do processo de construção discursiva de sujeitos históricos, a partir das diversas vozes constituintes do

ato performático. São mobilizados os conceitos de dialogismo e polifonia, aplicados à análise dos

trajetos de sentidos inerentes a práticas discursivas identitárias e plurais.

Na composição identitária, a força da ancestralidade se afirma pela representação de antigos

impérios, contínuas lutas e pelo tempo cíclico da memória. A temporalidade da performance conecta

o passado africano, a diáspora Atlântica e o trauma da escravidão ao presente marcado pela

desigualdade social e pelo preconceito. Na espiral do tempo performático, passado e presente unem-

se ao porvir, em uma perspectiva de luta identitária, social e política para a construção de uma

realidade mais justa. O Ticumbi é signo de afirmação identitária, lutas, territórios e heróis do passado

que, revividos no presente, contribuem para a construção híbrida e plural da identidade quilombola.

Palavras-chave: ticumbi; identidade; polifonia.

Abstract: This Communication aims to investigate the linguistic and discursive mechanisms through

which articulate the identity, memory and ancestry in cultural performances of communities marked

by slave processes in the state of Espírito Santo, Brazil. The discursive corpus is a cultural

performance of Conceição da Barra, named Ticumbi. In this popular theatre are analyzed the

discursive construction of historical subjects and the various constituent voices of the performative

act. The concepts of dialogism and polyphony are mobilized, applied to the analysis of paths of

meaning inherent in identity and plural discursive practices.

In the identity composition, the strength of ancestry is claimed by the representation of ancient

empires, ongoing struggles and the cyclical memory time. The temporality of performance connects

the African past, the Atlantic diaspora and the trauma of slavery to the present – a time marked by

social inequality and prejudice. The spiral of performative time, past and present come together to

the future in a perspective of identity struggle, social policy and to build a more fair reality. The

Ticumbi is a sign of identity affirmation, fights, territories and heroes of the past, relived in the

present, contribute to the hybrid and plural construction of the quilombo identity.

Keywords: ticumbi; identity; polyphony.

1. O diálogo discursivo

A comunicação humana é estabelecida por intermédio da linguagem, em suas

diferentes formas de expressão, verbal e não verbal. A linguagem é atravessada por uma

dualidade, que a inscreve formal e socialmente, sendo, segundo Maingueneau (1997, p. 12),

“integralmente formal e integralmente atravessada pelos embates subjetivos e sociais”.

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2129

Assume-se, portanto, a dimensão social da linguagem, tendo em vista que os sentidos

são negociados em um processo de interação social. No jogo discursivo, as vozes

enunciativas estão em contato e interação, mobilizando a língua para comunicar formações

discursivas que trazem em si formações ideológicas engedradas.

Bakhtin (2014) considera a linguagem enquanto código ideológico, proveniente da

interação social entre enunciadores pertencentes a uma mesma comunidade linguística. Para

o autor, o sistema linguístico também tem sua história e evolui conforme as transformações

de uma determinada comunidade linguística, sendo a língua inseparável do fluxo histórico.

Postula-se que “na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um

processo evolutivo contínuo” (p. 111).

A língua apresenta-se, pois, como um fato social, sendo indicativa das ideologias e

dos conflitos da sociedade ao longo do tempo. Desde a perspectiva enunciativa é que se

afirma a natureza dialógica da língua, uma vez que o discurso proferido por meio da

enunciação é proveniente da interação social. Nesse terreno, múltiplas vozes discursivas são

enunciadas, em situação de polifonia.

Na enunciação é que os sentidos são negociados em uma réplica do diálogo social.

Materializada na palavra é que se manifesta a psicologia do corpo social, com ideologias

expressas em uma comunicação socioideológica.

Toma-se por princípio, portanto, que a linguagem é dialógica, em concordância com

a filosofia da linguagem proposta por Bakhtin, pois:

[...] sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura

onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória.

A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como produto da

interação viva das forças sociais (BAKHTIN, 2014, p. 67).

O trabalho de análise linguística requer considerar as tensões desempenhadas na

arena social. Envolve, portanto, questões complexas, principalmente no que se refere às

comunidades sobre as quais se articula esse estudo: comunidades remanescentes de

quilombos e senzalas, cuja existência é atestada pela Constiutuição brasileira, mas cujos

direitos sociais não são garantidos pelo Estado.

Segundo a legislação nacional, são consideradas remanescentes de quilombos as

comunidades formadas por grupos étnico-raciais que, por critérios de auto-atribuição,

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demonstrem relação histórica com o território, em que seja possível presumir a “ancestralidade

negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL, 2003).

O foco de análise sobre o qual se desdobra esse texto trata de enunciações

performatizadas de comunidades quilombolas no Norte do Estado do Espírito Santo, onde o

tráfico Atlântico e também o tráfico interno de seres humanos foi intenso. Como forma de

resistência, há registros de motins, revoltas, fugas e aquilombamentos de escravos e seus

descendentes na referida região.

Quanto ao termo “comunidade”, ele é problematizado por Hall (2009), na perspectiva

de entendimento da questão multicultural. Segundo o autor, o vocábulo traz em si forte senso

de identidade do grupo. Nas comunidades culturais, estão presentes costumes e práticas

sociais distintas da vida cotidiana, que mantêm elos com os locais de origem, expressos,

sobretudo, nos contextos familiar e doméstico. Tais fatores contribuem nas autodefinições e

na autocompreensão dessas comunidades.

Existem diversas manifestações culturais que são performatizadas pelos membros

das comunidades remanescentes de quilombos. Dentre essas manifestações destaca-se o

Ticumbi, um auto popular realizado nas ruas da cidade de Conceição da Barra. O conteúdo

da dramatização e a linguagem empregada pelos performers são indicativos das múltiplas

matrizes culturais que constituem os sujeitos históricos participantes da encenação.

2. Ticumbi de Conceição da Barra

O Ticumbi é uma representação popular, um teatro de rua, que funde diferentes

gêneros literários, compondo uma representação linguística e tematicamente híbrida. Sua

apresentação é composta de diferentes etapas, que envolvem as comunidades e conferem a

elas sentimento de coletividade e pertença.

As apresentações ocorrem ano a ano, sempre nos dias 31 de dezembro e 1 de janeiro.

No entanto, o processo de construção performática tem início meses antes, inicialmente

centrada na figura do Mestre, responsável pela composição dos versos que serão enunciados e

tratarão do cotidiano das comunidades. Por volta do mês de outubro têm início os ensaios, que

envolvem os brincantes que compõem o coro de congos e os personagens protagonistas, que

revivem antigas tradições dos reinos africanos: os reis de Congo e de Bamba e seus secretários.

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Antes da apresentação, há, ainda, um ensaio geral, no dia 30 de dezembro, que se

configura em momento de grande celebração no encerramento de mais um ciclo. A festa em

homenagem ao santo tem início com uma procissão pelas ruas da cidade de Conceição da

Barra, no último dia do ano, em que os congos tocam pandeiros e viola, cantando junto com

a audiência louvor a São Benedito e à Virgem da Conceição. No percurso, seguem duas

imagens de São Benedito: a da comunidade de São Benedito e uma pequena imagem do

santo, feita em madeira e guardada na comunidade de Barreiras como símbolo de resistência

e luta contra a escravidão (é o chamado São Bino ou São Biniditinho das Piabas).

No dia 1 de janeiro, logo pela manhã, na frente da Igreja da Comunidade de São

Benedito, tem início a dramatização popular. No meio da rua, é encenada a história dos reis

africanos, intercalada pelo canto do coro, com versos e toque de pandeiros que levam a audiência

a acompanhar com o corpo o ritmo cadente e o gingado dos brincantes, chamados congos.

O enredo encenado diz respeito à disputa entre os reis de Congo e de Bamba pelo

direito de celebrar a fé em São Benedito por meio de um “Baile de Congos”. O rei de Congo,

tradicional no ofício, toma ciência pelos congos de que um rei forasteiro tem interesse em

realizar a celebração. Diante disso, o rei de Congo manda seu secretário em uma embaixada

ao rei de Bamba, a fim de dissuadi-lo da ideia, respeitando o poder da espada do rei de Congo

e o fato de ser ele o rei mais velho (incorporando, portanto, a autoridade da ancestralidade).

Como não há acordo, são travadas duas guerras, uma por meio de desafios verbais

propostos entre os reis e os secretários, que seguem a cadência da oralidade e assumem

características de improviso, algo típico da performance cultural. Após a guerra verbal, há a

guerra bailada, representada pelo toque das espadas e por movimentos que simulam o

gingado da capoeira e o enfrentameno físico entre os reis.

O vencedor da guerra travada é o rei de Congo, que impõe aos vencidos o batismo católico

e convida a todos para que se juntem em um grande baile, dançando e cantando o Ticumbi,

juntamente com o povo devoto, o público, que os acompanha, encerrando a dramatização.

O enredo evidencia o hibridismo constitutivo da performance, envolvendo elementos

culturais de matrizes africanas, como as roupas e os adornos empregados (capacetes

totênicos, mpus, roupas e saiotes brancos) e a história de luta inerente ao Antigo Reino do

Congo, que protagonizou a disputa entre o mani Congo e o mani Bamba, nos longínquos

anos de 1614, em que, segundo M’Bokolo (2003), houve uma crise de sucessão e rebelião

por parte do duque de Bamba.

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Somam-se às matrizes africanas, as histórias de luta das comunidades marcadas pelo

escravismo e pela consequente segregação e desigualdade social historicamente estabelecida

em terra brasileira. A religiosidade católica, assim como a estruturação do auto popular

estabelece fortes laços com a tradição cultural Ibérica, cujo contato remonta ao imperialismo

sobre as sociedades africanas e brasileira.

As origens históricas e míticas do Ticumbi auxiliam no entendimento da

potencialidade da linguagem como forma de representação da realidade e das demandas das

comunidades e dos povos que as engendraram, constituindo e articulando esses elementos.

2.1 Ticumbi: origens históricas

As possibilidades de atribuição das origens do Ticumbi são múltiplas. Remetem ao

passado africano, à realização das tradicionais congadas no Brasil e à tradição oral das

comunidades onde se realiza o auto popular.

Os ecos se fazem sentir em diversos níveis, desde o plano geográfico, passando pelo

linguístico e se firmando em nível antropológico pela celebração de ritos de passagem

realizados na região Nordeste de Angola, coincidindo com a referenciação geográfica

indicada em mapas do antigo Império Lunda.

Etimologicamente, Lyra (1981) e Neves (1976) atribuem o significado do nome

Ticumbi a diversas origens, havendo incertezas quanto a seu significado:

O nome parece ser corruptela de cucumbi. O cucumbi, cuja origem banta

foi posta em relevo por Nina Rodrigues, parece ter sido uma forma mais

primitiva e essencial de congada [...] a diversidade dos nomes se deve

apenas a denominações regionais e considerando a todos como danças que

acompanham a coroação do Rei de Congo (LYRA, 1981, p. 37).

A busca pelo termo “Cucumbi” levou à identificação geográfica da região Nordeste de

Angola que, segundo divisão política anterior à Independência, tinha por posto administrativo,

no distrito de Cacolo, a localidade de Cucumbi, conforme observado na Figura 1.

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Figura 1 - Mapa da antiga divisão administrativa de Lunda.

Fonte: MARTINS, 2008, p. 385.

A variedade kicumbi também foi referenciada por Lyra (1981), estando atrelada à

atividade ritual. A partir dessa linha de investigação, foram encontradas duas referências a

ritos de passagem femininos, ambas vinculadas a comunidades angolanas.

A primeira referência parte da tradição oral e é registrada pelo periódico angolano

Cultura: Jornal Angolano de Artes e Letras. Na edição de novembro de 2013, há referência

ao Txicumbi, rito de passagem feminino ainda hoje existente em Angola.

Segundo Kamuanga (2013, p. 4):

Txicumbi, na língua Cokwe, que em português significa iniciação

feminina, é um ritual tradicional orientado por uma Txilombola (tia ou

madrinha), visando à preparação de qualquer jovem antes do casamente,

registrado o primeiro ciclo menstrual.

Ao analisar ritos e divindades angolanas, Ribas (1975) faz referência ao Kubala o Kikumbi,

ritual referente à “transgressão da primeira regra”. Nesse caso, o kikumbi está associado ao não

cumprimento do período que deve ser guardado pela mulher que presenciar a primeira regra de

uma jovem, sob o peso de que malefícios sejam vinculados durante toda a sua vida.

Quando uma mulher surpreende a primeira regra de uma jovem, deve

guardar continência durante o período que durar essa manifestação. A

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quebra desse preceito – kubala o kikumbi – origina o malefício de Hito e

Solongongo, os quais prejudicam a moça na sua procriação, pois os filhos

morrem na tenra idade ou nascem já mortos (RIBAS, 1975, p. 91).

Caso ocorra a transgressão, os agravos serão revelados por sonhos e a “vítima”

deverá passar por tratamento especial, a fim de reverenciar os seres espirituais, ficando

isolada do convívio social por oito dias. Além disso, deverá ter o acompanhamento da mãe-

de-umbanda, que a auxiliará em tarefas rituais e deverá estar presente no dia do parto. O

agravo é tão severo, que o ritual deverá ser repetido até o segundo ou terceiro filho. O caráter

mágico e místico enuncia-se a todo o momento na tradição da memória.

Do ponto de vista linguístico, o vocábulo Ticumbi guarda relação com a língua

cokwe, falada na região Nordeste de Angola e correspondente ao território Lunda-Cokwe,

ponto de convergência das referências geográficas e ritualísticas do Ticumbi.

A luta por liberdade foi profundamente marcada pela condição escrava do africano

no Brasil, bem como pela luta por reconhecimento e por direitos constitucionais que ainda

hoje são negados a comunidades tradicionais como as de Sapê do Norte, que protagonizam

e não deixam morrer a celebração do Ticumbi.

Ainda no que se refere às origens etimológicas da palavra Ticumbi, Lyra (1981) faz

referência a uma cerimônia que ocorre na região do alto Zaire, chamada Kicumbi, uma dança

executada durante o período de iniciação das moças na vida sexual, que tem por característica o

“toque”, assim como nas danças de roda de diversas tribos africanas da bacia do Zaire. Ambas as

designações são referenciadas por Nei Lopes (2012) em seu Novo Dicionário Banto do Brasil.

O toque é também um traço constitutivo do Ticumbi, seja durante o toque de ombro

ou a dança dos congos, seja pelo recorrente toque de espadas que marca o ritmo das

embaixadas entre secretários e reis de Congo e de Bamba.

Assim como nos rituais africanos, a dança dramática aponta para uma fusão, a qual

também ocorre no Ticumbi: o mundo religioso e mítico mescla-se ao social do contexto. Sua

força é inquestionável.

Na dramatização, é possível observar a participação dos reis de Congo e de Bamba

(representados por suas coroas totêmicas, capa colorida, espada na cinta, e peitoral vistoso,

com espelhos, flores e papel brilhante) e também: a) seus secretários (que trazem capa e

espada como os reis e, na cabeça, enfeites em forma de animais); b) os Congos (com suas

tradicionais roupas brancas, flores coloridas na cabeça e pandeiros); c) o violeiro (que dá o

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tom com seu violão e as vestes brancas, acompanhados do colorido chapéu de flor, como os

dos Congos); e d) o Mestre (que comanda a todos com seu apito e o som de seu pandeiro).

No Ticumbi, mesclam-se: dança, gingado dos guerreiros, cantos entoados em

conjunto pelos congos e diálogos proferidos pelos reis e seus secretários. Além disso, a

musicalidade é comandada pelo violeiro e pelos pandeiros dos Congos. Estruturalmente, é

evidente que a literatura oral do Ticumbi também é híbrida, revelando a diversidade e a

riqueza da cultura local.

2.2 Origens Míticas: a história de Benedito Meia-Légua

No que se refere ao caráter mítico do Ticumbi, a origem está relacionada às crenças

e narrativas orais das comunidades quilombolas de Sapê do Norte. Segundo a tradição

popular, os festejos em homenagem a São Benedito remontam a um personagem lendário e

guerreiro: Benedito Meia-Légua.

A história desse líder está na memória dos integrantes das comunidades de Sapê do

Norte e registrada, assim como outros “causos” dos remanescentes de quilombos, nas

páginas do escritor Maciel de Aguiar (2005).

A partir de 1820, Benedito Meia-Légua iniciou uma luta pela libertação dos escravos

que perdurou por quase 60 anos. Benedito vinculava a fé em São Benedito à revolução, uma

vez que carregava em seu embornal uma pequena imagem de São Benedito.

As ações de Benedito envolviam invadir as fazendas, saquear e libertar escravos que

se uniam a um exército de revolucionários atuando em sequenciais invasões. Organizavam

grupos que atacavam ao mesmo tempo em diferentes lugares. Nesses ataques, sempre havia

um homem no grupo caracterizado como Benedito Meia-Légua, levando um embornal com

um toco de madeira para representar a pequena imagem de São Benedito.

Desse fato veio o mito, começava-se a espalhar a ideia de que o líder revolucionário

era onipresente e imortal, tendo em vista que era sempre uma surpresa desagradável para os

senhores descobrir o falso Benedito no tronco central do mercado de São Mateus.

Gradativamente, a união do povo negro foi sendo alcançada, de modo que a saudação

entre eles era: “Viva São Benedito! Viva o negro liberto!”, em uma clara demonstração de união

entre a fé e a política. O líder lutou até aproximadamente os 80 anos, quando, já velho e doente,

retirou-se para o sertão de São Mateus, vivendo em um tronco de árvore na região de Angelim.

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Mais uma vez vítima de delatores, foi encontrado e queimado dentro do tronco que, segundo

relatos, ardeu por três dias. Nas cinzas, algo sobreviveu: a imagem de São Benedito, chamada

pelos devotos de “São Biniditinho das Piabas”, o São Bino, carregado ainda hoje envolto em

fitas e flores nos braços de sua protetora durante a encenação do Ticumbi de Conceição da Barra.

Nas representações do Ticumbi, a hereditariedade é de fundamental importância para

a perpetuação da tradição. Tertolino, o Mestre Terto, como é conhecido, ouviu de seu avô

que ele era nagô, dizem que seu nome era Silvestre. Silvestre Nagô foi secretário do

quilombo do Negro Rugério, grande líder quilombola, que, segundo Aguiar (1995), foi o

primeiro a introduzir a brincadeira para homenagear São Bino e levar a diversão ao povo do

Quilombo do Morro de Nossa Senhora de Sant’Ana. A memória e os “causos”, que circulam

entre as comunidades de Sapê do Norte, atestam um passado escravo marcado por uma

história de fé, luta e resistência. O Ticumbi concretiza e celebra todas essas histórias.

3. A enunciação: ancestralidade, atualização e memória

A análise, como audiência, da performance, assim como observação atenta de versos

e cantares apresentados pelos brincantes quilombolas, permite entrever formações

ideológicas que marcam o local discursivo de seus participantes.

Os versos transcritos a seguir trazem marcas da identidade e da ancestralidade, as

quais são guardadas na memória e atualizadas no momento da enunciação. Por intermédio

deles é possível notar o caráter dialógico e social da língua, que articula os sentidos na

interação entre os participantes do ato performático (SCHIFFLER, 2014).

Secretário do Rei de Congo: Licença, senhor paciência!

Eu peço que a excelência o povo cala

Enquanto o Rei de Congo

Chega nesta praça e fala!

Me vala valoroso Rei de Congo

Rei de Congo assim chamado,

Que foi rei em Costa d’África

E que em Guiné foi apresentado.

Me vala o valoroso Rei de Congo!

Hoje aqui neste dia,

Que vós sois o Rei mais velho

E de grande soberania.

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Rei de Congo: Sacretário, sacretário!

Secretário do Rei de Congo: Rei senhor, para que chamastes?

Rei de Congo: Hoje será um dia próprio,

Para nós chegar com nossa gente,

Para festejar São Benedito,

Que é o nosso onipotente?

Secretário do Rei de Congo: É sim senhor, senhor meu Rei.

Neste primeiro fragmento, o texto “Me vala valoroso Rei de Congo / Rei de Congo

assim chamado, / Que foi rei em Costa d’África / E que em Guiné foi apresentado” localiza

o antigo Impériodo Congo na costa africana e seu contato aberto para o Atlântico. A

referência à Guiné pode ser metonimicamente interpretada como a região do Golfo da Guiné

e indicação da diáspora Atlântica.

A multiplicidade de vozes que constitui a híbrida cultura das comunidades

quilombolas é expressa aqui pelas matrizes africanas, de vozes que remetem a antigos

impérios africanos, somadas à tradição ibérica do catolicismo, pela homenagem a São

Benedito, e à representação do momento presente nas comunidades remanescentes de

quilombos, conforme enunciado nos versos “Pra nós chegar com nossa gente / pra festejar

São Benedito”, demonstrando sentimento de pertença e fé.

A necessidade de união dos membros da comunidade é destacada em outros momentos

enunciativos, em que se ressalta o perigo da desunião e da perda das tradições que os unem. O

discurso aqui está vinculado ideologicamente à constituição identitária do grupo.

A separação do grupo é um perigo real. Não só os versos do Ticumbi atestam tal fato, mas

também o testemunho da senhora Natalina Florentino dos Santos, registrado nos estudos de

Osvaldo Martins de Oliveira (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2008, p. 21): “Só que a metade das

casas aí pra frente é tudo crente, aí eles não quer receber mais São Benedito. Aí eu recebo, porque

eu não vou deixar ele nunca, porque eu não posso, porque já é nossa tradição. Eles quer acabar...”.

Outro momento em que se observa o valor de reconhecimento identitário aparece na

terceira estrofe, que carraga em si o valor da tradicionalidade, da ancestralidade e da soberania,

representada pelos versos: “Que vós sois o Rei mais velho / e de grande soberania”.

Outra estrofe relevante para o entendimento da relação entre a expressão linguística,

seu caráter dialógico e sua construção social e ideológica diz repeito ao bilinguismo. Há

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vários momentos em que, no auto, as vozes africanas ecoam por meio do léxico proveniente

de línguas do tronco linguístico banto, conforme destacado a seguir:

Rei de Bamba: Então, venere ele com alegria,

Mas pergunte a ele

Por que é que a gente não pode

Festejar São Benedito

Hoje aqui neste dia.

Se acaso ele ensimesmar,

Grandes guerras vão andar

Ou há de morrer todos

Ou São Benedito adorar.

Secretário do Rei de Bamba: Ô senhor meu rei

O senhor sabe muito bem

Da minha malcriação

Só posso ajoelhar em vossos pés

E tomar a minha bênção.

Ô povo devoto,

Toque o pandeiro e “canziqui”

Tomo a bênção de meu rei

Pra poder seguir.

Nesse segundo fragmento, pertencente ao outro eixo da performance, protagonizado pelo

Rei de Bamba e por seu secretário, está representada a contra-palavra, pelo embate discursivo

que entre os dois reis se opera. O princípio dialógico da linguagem é observado pelo embate

entre as vozes discursivas dos reis, que são também exemplares das tensões sociais vivenciadas

pelas comunidades. Dentre essas tensões estão a luta pela posse de terras, em função da pressão

exercida pela monocultura do eucalipto, e a busca por reconhecimento jurídico e social.

A dialogia está presente nos diálogos que atravessam o discurso, entre o Rei de Bamba e seu

secretário; e, de fundamental importância no ato performático, na troca que os performers estabelecem

com a plateia. Os versos “Ô povo devoto, / Toque o pandeiro e “canziqui” / Tomo a bênção de meu rei

/ Pra poder seguir” são demonstrativos da relação dialógica estabelecida com a audiência.

É nessa fala do Secretário do Rei de Bamba que se observa um dos exemplos de uso

de palavras provenientes do tronco linguístico banto, “canziqui”. Tal palavra seria corruptela

de “canzuci” que, segundo Lyra (1981), indica o canzá. Segundo Ney Lopes (2012), seria

um chocalho usado nos antigos cucumbis (do quimbundo kikumbi, festa da puberdade, cujo

folguedo era a recriação de ritos de passagem para a adolescência, na África Subsaariana).

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Os fragmentos assinalados são pequenas mostras do grande potencial ideológico proferido

pelos brincantes quilombolas durante a prática enunciativa performatizada. A performance do

Ticumbi, rica e diversa em sua composição e temática, é testemunho de remanescências culturais

oriundas de diferentes agentes formadores da identidade plural brasileira.

O canto e a voz são os intrumentos utilizados há gerações para se veicular tradições,

transmitir saberes e construir a identidade, de modo que o acesso à memória ancestral

permite a sobrevivência performática de geração a geração.

4. Discurso e identidade

Participar como audiência da performance cultural do Ticumbi é ser testemunha da

história de diferentes povos reunidos no cotidiano de comunidades culturalmente

hibridizadas. O discurso enunciado pelos brincantes traz narrativas de nações africanas e

aspectos da história brasileira que escapam aos conhecimentos difundidos canonicamente.

Os saberes e a memória coletiva que se articulam no jogo discursivo fazem parte da

narrativa de nação em uma perspectiva descentralizada e deve ser considerada ao tratar da

história, da literatura e da concepção de linguagem envolvida na enunciação performática.

Tratar da língua portuguesa em sua dimensão histórica e cultural, a partir das

interações sociais por ela mediadas é algo deveras instigante. Suscita reflexões quanto à

pluralidade e à diversidade das identidades culturais quilombolas. Nesse momento,

compartilho do questionamento proposto por Hilário Bohn (2013, p. 89):

Por que precisamos propor identidades enraizadas, monolíticas,

homogêneas e linguagens de significados permanentes? Por que, apesar de

extremismos religiosos, da luta desesperada de sobrevivência de etnias

ameaçadas pela globalização, não procuramos os entrecruzamentos, a

mistura, a mudança, a hibridez constitutiva das culturas e das línguas num

mundo orientado para a diversidade e a multiculturalidade?

Buscar o hibridismo como fator de reconhecimento e pertença é um desafio para os

falantes e aqueles que, em diferentes palcos, com diferentes atores sociais, se representam e

se constituem como sujeitos por intermédio da linguagem.

Mesmo que de maneira descentralizada, é nas regiões limítrofes do contato

linguístico e social que as pessoas e as culturas em fluxo se entrecruzam e se misturam. Não

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são simples binarismos, mas complexas negociações que se articulam em comunidades

linguísticas que reúnem em si a diversidade e a herança de diferentes povos e tradições.

Segundo Bhabha (2008, p. 27):

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o ‘novo’ que não

seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo

como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o

passado como causa social ou precedente estético ela renova o passado,

refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe

a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade,

e não da nostalgia, de viver.

As reflexões de Bhabha reúnem o princípio da instabilidade e da pluralidade de

culturas híbridas construídas a partir do choque e do contato entre diferentes civilizações ao

longo dos séculos. Decorrente desse processo, os falantes quilombolas expressam liguística

e esteticamente a ancestralidade que os une, reunindo diferentes matrizes culturais.

A beleza da língua viva, comunicada por sujeitos construídos pela interação social e expressa

na performance do Ticumbi, constitui um patrimônio cultural material e imaterial de inestimável

valor. As ruas tornam-se palco da difusão e do compartilhamento de saberes e tradições guardados

na memória coletiva e atualizados no momento presente de celebração e fé das comunidades.

Essa pluralidade é também um desfio para aqueles que estudam, pensam, interagem

e ensinam a língua portuguesa. Conhecer sua diversidade deve fazer parte da prática

discursiva dos falantes da língua, que têm por pátria uma irmandade linguística ao redor do

globo, mas com registros próprios de sua historicidade.

O Ticumbi traz para a cena discursiva a dimensão social e dialógica da língua,

representando suas lutas e ancestralidade. Fazem parte desse cenário as matrizes africanas e

ibéricas que, por intermédio da língua e de sua diversidade, se interconhecem e compreendem em

diferentes espaços culturais. Valorizar a pluralidade cultural e promover o sua difusão, a partir de

sua perspectiva multicultural, deve ser um imperativo para a promoção do respeito entre os

homens, a partir da expressão artística e performática, visando a um porvir mais justo e igualitário.

Referências

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POVO DE AXÉ: MEMÓRIAS E IDENTIDADES EM CASAS DE CANDOMBLÉ (ES)

Milena Xibile Batista Mestra em Ciências Sociais - UFES.

Resumo: Em terras americanas e brasileiras, trouxeram mais que seus corpos, os africanos reconstruíram

e transmitiram no Novo Mundo uma bagagem e herança cultural extremamente rica, implantando

dialetos, memórias, crenças e um panteão de Orixás, Inquices e Vóduns. Entender a autodefinição de

membros de “comunidades de terreiro” enquanto pertencentes às nações de candomblé nos impele a

retomar parte de fragmentos da história dos africanos antes de sua chegada ao Brasil e compreender como

ocorreram as primeiras manifestações em terras brasileiras. Como ponto de partida, a presente etnografia

e a literatura sobre o assunto requerem adentrar em análises de categorias nativas do povo de santo e, em

seguida, passar a questões teóricas sobre esses temas. Na cidade de Serra encontram-se as quatro casas

de santo onde a pesquisa de campo foi realizada com sacerdotes, que dividem suas memórias e

experiências religiosas compondo um exercício teórico sobre a história e a formação do candomblé no

estado. Suas preocupações são de transformar parte das tradições orais em produção escrita. Reconstroem

a ligação com uma comunidade imaginada que remonta à África e desenvolvem relações de parentesco

ficcional entre os membros das comunidades de terreiro, formando uma família de santo e de axé.

Palavras-chave: candomblé; memória; identidade.

Abstract: In American and Brazilian soil they brought more than their bodies, African people rebuilt

and passed in the New World a background and extremely rich cultural heritage, deploying dialects,

memories, beliefs and a pantheon of Orixás, Inquices and Vóduns. Understanding the self-definition

of members of “communities place of the Candomblé” as belonging to Candomble’s nations leads

us to recover part of African history fragments prior to their arrival in Brazil and understand how the

first manifestations in Brazilian territory occurred. As a starting point, this ethnography and literature

about the subject, requires entering into the analysis of the native categories of the people of Saints,

and then go over the theoretical questions on these topics. In the Serra City are the four holy places

where the field research was conducted with priests who share their memories and religious

experiences composing a theoretical exercise about the history and the formation of Candomble in

the state. Their concerns are to transform part of the oral traditions into writing production. Restores

a connection with an imagined community that dates back to Africa and plays fictional relationships

among members of communities place of the Candomblé and form a family of Saint and axé.

Keywords: candomblé; memory; identity.

Introdução

Em terras americanas e brasileiras trouxeram mais que seus corpos, os africanos

reconstruíram e transmitiram no Novo Mundo uma bagagem e herança cultural extremamente

rica, implantando dialetos, memórias, crenças e um panteão de Orixás, Inquices e Vóduns.

Analisar memórias e identidades das casas de santo, comunidades e nações de candomblé

capixabas foi o cenário de uma pesquisa maior, da qual parte se desdobrou nesse ensaio sobre uma

religião de matriz africana. Um diálogo com pessoas que são referências religiosas no candomblé

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e sobre essa religião de matriz africana no contexto externo a esse universo religioso e ainda mais,

pessoas e comunidades que se definem a partir da fé, isto é, tomam a fé como símbolo delimitador

de suas identidades. A partir da análise das histórias de vida dos entrevistados1, foi possível

entender como, apesar de todos os desafios, dedicam-se há mais de vinte anos a defender o que

acreditam ser uma herança de seus ancestrais religiosos, pois entendem que o candomblé é uma

religião que, para realizar suas celebrações, remonta sempre às suas origens africanas.

O período colonial brasileiro foi marcado pela escravização de africanos. Os “filhos

da diáspora africana” trazidos para cá eram de distintas regiões da África, o que nos permite

entender a diversidade cultural que marca esses grupos. As religiões de matriz africana, por

exemplo, existem de norte a sul do país, em meio a diferentes processos de hibridização

entre elas próprias e o cristianismo (religião dominante), bem como entre elas e as doutrinas

espiritualistas. Essas hibridizações de crenças e rituais são tão evidentes que já não dizemos

no Brasil religiões africanas e sim religiões afro-brasileiras.

O continente africano pode ser dividido em duas partes, cortando-o com uma linha

demarcatória à altura do Golfo da Guiné. Dessa linha para cima, as tradições culturais negras

são chamadas sudanesas e desse paralelo para baixo, chamadas de bantos2. Dos negros

sudaneses, as culturas que mais influenciaram no Brasil foram a nagô (nàgó)3 e a jeje4,

provenientes da Nigéria e do Daomé respectivamente.

1 Os iniciados no candomblé costumam chamar os sacerdotes de zeladores, mãe e pai-de-santo, baba, ya, babalorixá

(bàbálórìṣà), sacerdote de culto às divindades denominadas Òrìṣàs (orixás). Nesse trabalho, foi entrevistado o senhor

Rogério de Iansã, o único babalorixá. E no caso de iyalorixá (iyálórìṣà) –sacerdotisa do culto aos Òrìṣàs (mãe que tem

conhecimento de orixá), foram entrevistadas as senhoras Edinéa de Iemanjá, Dezinha da Oxum e Rita de Oxum. 2 Bantu: compreende Angola e Congo; é uma das maiores nações do Candomblé, uma religião afro-brasileira.

Desenvolveu-se entre escravizados que falavam a língua quimbundo e a língua kikongo. No panteão dos povos

de língua kimbundu, originários do norte de Angola, o Deus supremo e Criador é Nzambi ou Nzambi Mpungu;

abaixo dele estão os Minkisi (do kimbundu Nkisi ou (plural) Minkisi ou Mikisi receptáculos), divindades da

mitologia Bantu. O Deus supremo e Criador é Nzambi ou Nzambi Mpungu; os Jinkisi/Minkisi, divindades da

Mitologia Bantu. Essas divindades se assemelham a Olorum (deus supremo) e correspondem aos Orixás da

Mitologia Yorubá, e Olorum e Orixá do Candomblé Ketu. Na hierarquia de Angola o cargo de maior

importância e responsabilidade é: o Tata Nkisi (homem) ou Mametu Nkisi (mulher). LOPES, Nei. Novo

Dicionário de Banto do Brasil. São Paulo: Pallas, 1999, p. 23. 3 Nàgó – uma forma de definir o povo yorubá. Ànágó. Todas as palavras em yorubá foram retiradas do

dicionário de BENISTE, José. Dicionário de yorubá-português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 538. 4 jejes: os jejes ou daomeanos são um povo africano que habita o Togo, Gana, Benin e regiões vizinhas,

representado, no contingente de escravos trazidos para o Brasil, pelos povos denominados fon, éwé, mina, fanti e

ashanti. O apogeu desse tráfico foi durante o século XVIII, durando até 1815, no chamado “Ciclo da Costa da

Mina” ou “Ciclo de Benin e Daomé”. Candomblé Jeje é o candomblé que cultua os Voduns do Reino de Daomé,

levados para o Brasil pelos africanos escravizados em várias regiões da África Ocidental e África Central. Essas

divindades são da rica, complexa e elevada Mitologia Fon. Introduziram o seu culto em Salvador, Cachoeira e

São Felix, na Bahia. Também em São Luís, no Maranhão e, posteriormente, em vários outros estados do Brasil.

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Dessa maneira, realizei um estudo etnográfico, a fim de entender a autodefinição dos

integrantes das comunidades de terreiro ou casas de santo5. Retomei parte da história dos

africanos antes de sua chegada ao Brasil para compreender como ocorreram as primeiras

manifestações em terras brasileiras.

Tendo a memória social dos integrantes das casas de santo como ponto de partida, a

reconstrução da história do candomblé no Espírito Santo não deve ser analisada como uma

narrativa homogênea. Como sabemos, a memória e as narrativas orais são múltiplas e marcadas

por versões variadas (POLLAK, 1989 e 1992). Além do mais, os saberes a respeito dos orixás,

até a década de oitenta do século XX, eram revestidos do maior sigilo, pois, além das

perseguições, havia muito preconceito e pouca liberdade (para todos os cidadãos). Os dados

estatísticos demonstram que nos anos 1970 a umbanda foi uma das religiões que mais cresceu

no país e o candomblé não sofreu com o fechamento significativo de casas, diferentemente de

outros períodos, sendo a Constituição Federal Brasileira de 1988 o marco legal para a liberdade

religiosa, estabelecida por lei para os integrantes das religiões de matriz africana.

Os dados apurados relativos à memória e ao processo de construção da identidade

dos integrantes das comunidades de terreiro no Espírito Santo remontam, em suas

genealogias imaginadas, ao surgimento do candomblé no Brasil, sobretudo na Bahia. As

diversas narrativas afirmam que, após a libertação dos escravizados, começaram então a

surgir as primeiras casas de candomblé, tornando-se um fato que esse segmento religioso,

desde o seu surgimento, tenha incorporado diversos elementos do cristianismo. Por muito

tempo, crucifixos e imagens foram exibidos nos templos, assim como os orixás (òrìṣàs) eram

frequentemente identificados com santos católicos. Algumas casas de candomblé também

incorporaram entidades caboclas, que eram consideradas pagãs, assim como os orixás.

Escravizados e quilombolas foram forçados a mudar situações que não mudariam se

não submetidos à pressão escravocrata e colonial, mas foi deles a direção de muitas dessas

mudanças, pois não permitiram se transformar naquilo que os senhores desejavam. Nisso,

aliás, reside a força e a beleza da cultura que os escravizados e quilombolas legaram à

posteridade. Sendo assim, não podemos negar que a construção a partir da resistência foi

uma resposta à situação opressiva existente na colônia. Além do mais, foi o meio encontrado

5 Ao longo de todo o texto foram utilizadas as categorias nativas em itálico. Para designar os templos de culto

de candomblé, podem aparecer termos como: casas de santo, casas de axé, terreiro, roça de candomblé, ile,

barracão de candomblé.

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para a construção de uma nova identidade, a de brasileiros descendentes de africanos ou de

integrantes de comunidades religiosas de matriz africana.

A etnografia se propôs a descrever os processos de construção de identidades e de

visibilidade dessas religiões de matriz africana e desconstruir as concepções estereotipadas

e preconceituosas em relação a esses segmentos religiosos, sobretudo as que associam as

práticas ritualísticas à realização de malefícios. Discutir comunidade de terreiro nos remete

ao exercício etnográfico de analisar o contexto e seus sujeitos. Para isso, a pesquisa se valeu

do referencial teórico de Barth (2000), a partir do qual as identidades dessas comunidades

foram analisadas. Tal escolha teórica se justifica pelo fato de a presente dissertação se propor

a construir um saber antropológico sobre essas comunidades a partir do trabalho de campo

etnográfico. Um estudo sobre o candomblé nagô, usando o referencial teórico de grupos

étnicos e etnicidade, foi realizado por Dantas (1998), que escreve:

[...] os estudiosos que, como Fredrick Barth e Abner Cohen, têm analisado a

etnicidade como uma forma de organização no presente, insistem que, sendo

a etnicidade uma categoria relacional, a cultura do grupo em contato com

outros não desaparece ou se funde, simplesmente, como afirmavam os teóricos

da aculturação, mas será utilizada para estabelecer o contraste. Nestas

circunstâncias não será conservada a cultura como um todo, mas serão

ressaltados alguns traços, justamente para mostrar sua distinção. A escolha dos

tipos de traços culturais que irão garantir a distinção do grupo, enquanto tal,

depende dos outros grupos com que está em contato com a sociedade em que

se acha inserido, uma vez que os sinais diacríticos devem poder opor-se, por

definição, a outros do mesmo tipo (Cunha, 1970:37). Deste modo, ao

apresentar a herança cultural africana nagô não me proponho fazer a etnografia

completa do terreiro, o que neste caso, seria irrelevante, nem testar através de

comparações com a África, se o que é apresentado como legítima tradição

africana encontra paralelo entre os povos iorubas. Para os objetivos deste

trabalho, pouco importa se são realmente africanos os estoques culturais

apresentados como tais. No limite, poderiam até ser forjados. Importa que o

grupo os considera como africanos e que foram escolhidos, pelo próprio

grupo, como significativos, sendo usados como sinais da diferença em função

das quais se afirma a ‘pureza nagô’ (DANTAS, 1988, p. 91).

Buscou-se elucidar o problema da organização e da formação das comunidades de terreiro,

bem como analisar os sinais diacríticos e símbolos eleitos como demarcadores da identidade dos

integrantes do candomblé. Os desafios e as dificuldades serão destacados nesse ensaio.

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1. Lugares de oferendas, recursos naturais e propostas de cartografia social

Usar só o necessário, não predar as coisas que Deus colocou na natureza.

Ter cuidado com o que se faz pra não danificar a natureza e o ambiente.

Nas oferendas eu não deixo nada que vai agredir a natureza, nós não

deixamos. E se a gente vê, a gente recolhe. Nós não deixamos. Isto é uma

coisa da gente, nós não agredimos a natureza (Edinéa de Iemanjá, 2013).

2. Lugares de oferendas e usos de recursos naturais

Os noviços, vestidos de panos esfarrapados, uma jarra contendo infusões

de folhas dirigem-se a uma lagoa situada numa floresta sagrada e voltam

vestidos com um pano branco para ser levados a um lugar escondido, atrás

de um muro de panos (VERGER, 2002, p. 51-52).

O cuidado e a preocupação com a natureza são princípios do candomblé, visto que

as divindades estão diretamente mescladas à natureza, isto é, são partes dela. Nesse sentido,

para as comunidades religiosas do candomblé, além da reverência à natureza há uma questão

de autopreservação. Seus integrantes ressaltam a importância da relação entre os cuidados

com o meio ambiente e as práticas religiosas dos terreiros, observando que os lugares

demarcados para realizações de oferendas se tornam cada vez mais restritos e, em função de

perseguições, os cuidados com eles precisam ser redobrados.

Eu não faço nenhum tipo de oferenda que tenha vidro, louça... Não faço de

forma alguma. Eu acho lindo você oferecer, fazer uma oferenda dentro de

uma folha. Quer ver um Omolocum mais lindo montado dentro das folhas

do abebé? Fica belíssimo. Então eu não tenho que agredir a natureza. Se é

da natureza que eu extraio toda a energia pra manter as nossas tradições,

então eu não posso destruir a natureza (Rogério de Iansã, 2013).

Diversos rituais acompanhados de oferendas são realizados em lugares como rios,

cachoeiras e matas. Esses lugares podem coincidir com propriedades privadas e a

intransigência de seus proprietários vem dificultando o acesso de integrantes das religiões

de matriz africana aos locais propícios para os rituais.

Muita dificuldade, as cachoeiras estão fechadas e não tem lugar pra fazer as

oferendas. As ruas nós não podemos usar que somos apedrejados, até o mar está

difícil pra ser usado. Ervas muito mais ainda, porque na minha casa a gente usa

muitas ervas, folhas e coisas da natureza. Todos os lugares estão fechados e não

temos onde colher uma erva, aí muitas vezes você arrisca de levar um tiro no pé

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(risos). Porque a gente passa debaixo dos arames e você sabe que não pode

passar. Nós fomos à beira do rio, igual outro dia nós fomos e aí eu tive que brigar

com um italiano lá em Biriricas, porque ele falou que nós estávamos fazendo

macumba, xingando tudo em qualquer coisa e gritando que o Brasil é dele. Eu

falei: ‘Sou mais brasileira que você e vou fazer macumba aqui. Tira o rio daqui,

arranca daqui’ (risos) (Edinéa de Iemanjá, 2013).

Para as lideranças do candomblé, alguns recursos naturais como rios, cachoeiras, matas e

ervas não deveriam ser de propriedade individual e privada, pois expressam energias de divindades

que são forças que se manifestam coletivamente e em diferentes lugares. Deveriam ser

considerados recursos e lugares públicos que pudessem ser usados para a realização de cerimônias

e oferendas por todas as religiões. Para que isso possa ocorrer, esses recursos naturais necessitam

de cuidados, valorização e dispensam agressões, pois têm relação com o direcionamento que esses

líderes religiosos imprimem às suas vidas e ao ensinamento de seus filhos de santo.

A gente cultua cada elemento da natureza. Pra gente tem um valor, tem

uma diretriz. Então, hoje em dia, quando a gente vai fazer uma oferenda

fora, a gente leva nas vasilhas, a gente chega lá, apanha as folhas, que é

uma coisa da mata, pra deixar as oferendas nos rios, na natureza. A gente

não é mais como antigamente que arriavam tudo [...]. Hoje, a gente faz o

possível pra poder melhorar isto cada vez mais e estamos passando para os

nossos filhos deixarem para os que vierem aí depois (Rita de Oxum, 2013).

Apoiados nos debates sobre sustentabilidade, estão ocorrendo movimentos das

comunidades de terreiros, em conjunto com outros povos e comunidades tradicionais, para a

criação de políticas públicas que amparem essas comunidades que estão engajadas na luta pela

preservação ambiental, pela sustentabilidade6 e pelo mapeamento social (ou cartografia social)

de lugares considerados sagrados, como os lugares de oferendas e de cultos.

3. Desafios às propostas de demarcação social de lugares de cultos e de oferendas

Os entrevistados estão dispostos a aderir ao movimento da cartografia social dos povos

e comunidades tradicionais do Brasil, tendo em vista que Rogério já é parte dele, mas 50% ainda

estão presos a uma visão saudosista e romântica das relações políticas internas e deles com as

agências do Estado, visto que esperam por um trabalho “tranquilo” e “sem conflitos”. Essa

6 Segue o I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz

Africana, disponível para download: <http://www.seppir.gov.br/arquivos-pdf/plano-nacional-de-desenvolvimento-

sustentavel-dos-povos-e-comunidades-tradicionais-de-matriz-africana.pdf>.

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ausência de conflitos é pouco provável, sobretudo quando se trata de assegurar o direito ao

reconhecimento da identidade e da demarcação de lugares de rituais desses agrupamentos que

sempre enfrentaram intransigências, intolerâncias e rejeições para terem o direito de realizar seus

cultos e oferendas. Algumas lideranças, de forma isolada, tentaram iniciar essa atividade de

mapeamento dos terreiros nos anos 2012 e 2013, mas as iniciativas não obtiveram sucesso por

falta de pessoa jurídica legalizada para captar e administrar os recursos.

A partir das entrevistas, organizei em ordem numérica crescente algumas dificuldades e

desafios para realizar a demarcação social dos lugares de culto e de oferendas, como segue:

1º) O maior problema para levar adiante um projeto de mapeamento social dos

terreiros está na dificuldade de reunir seus zeladores. Verifiquei que, conforme o relato de

Rogério de Iansã, diversos zeladores têm dificuldade de entender suas casas de candomblé

como parte de um projeto coletivo e, às vezes, falam em negócio de fulano para se referirem

a uma casa que está sob a liderança de uma determinada pessoa. Nessa concepção, o

entrevistado afirma que “baixa logo o barraco” e diz: “Por acaso a gente tá falando de religião

só pra um? Não é pra todo mundo?” A força política que os terreiros poderiam ter se

enfraquece, porque diversos zeladores não têm a consciência de que devem participar da luta

e, segundo Rogério, entendem que basta um lutar por todos.

2º) Outra dificuldade está relacionada à expansão urbana. As casas de candomblé,

que estavam em lugares afastados dos bairros das cidades e que ainda são denominadas

roças, tornaram-se imprensadas e exprimidas por residências, praças, comércios e igrejas.

Em dias e horários de festas – que ocorrem na maioria das vezes à noite –, os integrantes de

casas de santo tocam seus instrumentos musicais e cantam, sendo eles denunciados por meio

da legislação sobre o silêncio, sob acusação de transgressores da ordem e da lei. Em outras

situações, os moradores vizinhos a essas casas têm feito abaixo-assinados exigindo que elas

saiam do bairro, como ocorreu com a casa de Mãe Edneia de Iemanjá, a qual teria respondido

aos assinantes: “Quando eu cheguei, não tinha nenhuma casa em volta. Eu cheguei primeiro,

os incomodados que se mudem, eu não mudo não” (Edinéa de Iemanjá, 2013).

Na busca de alternativas para permanecerem nos bairros, os líderes religiosos têm

mudado os horários de seus rituais, sob o argumento de que não pretendem ferir o direito

dos outros. Em outros casos, como relatou Rogério de Iansã, o terreiro de sua mãe-de-santo,

em função do imprensamento, saiu da cidade de Salvador e foi para um bairro do interior,

do meio rural. O ogã Valdecir, da casa da Sr.ª Dezinha, destaca o caso de Pai Wilson, que

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quando instalou sua roça de santo no bairro Laranjeiras, no município da Serra (onde

atualmente os moradores têm alto poder aquisitivo), no local existiam poucos moradores e

sua casa de santo era aceita. No entanto, com o crescimento urbano e as edificações de

mansões, a casa de santo passou a ser pressionada pelos moradores, que desde então

recorrem à legislação sobre o silêncio. O referido pai de santo colocou sua casa à venda.

Desse modo, os líderes entrevistados viabilizam a alteração nos horários das festividades.

Agora com este horário eu não toco mais à noite. Eu não posso fazer uma

festa a noite. No máximo dez, onze horas, o máximo. E quando meu pai

fica empolgado, quando ele vem, ele se empolga, ele adora e quando vemos

é duas horas, uma hora e meia: “pai, pelo amor de Deus”, porque já bateram

na minha porta para impedir, querendo que eu parasse com o toque, com

tudo por causa do horário, porque vizinho fala e atrapalha [...]. Eu estou

praticamente encurralada, preciso de espaço, mas não tem como, porque o

vizinho do lado é crente não vende, não abre mão, ele está ali, ele é sozinho,

sem família, mas está ali (Dezinha de Oxum, 2013).

Então, leva pra cachoeira, porque tem que existir a natureza. A gente não vai

fazer isto com um balde, com uma mangueira no fundo do quintal. Eu tenho

todas estas facilidades, a minha roça, a minha casa que a gente chama de

roça, o meu barracão fica perto de uma mata, perto de uma praia, perto de

uma lagoa. Nós temos tudo ali perto, mas não se sente à vontade. Eu fui fazer

uma coisa pra uma filha de santo minha, que o orixá dela virou ela, saiu com

um balaio lindo na cabeça, mas juntou tanta gente que parecia que eu estava

fazendo uma peça teatral. E todo mundo assim apavorado, tinham

evangélicos e começaram a gritar, e era Oxum que saiu pulando aquela coisa

maravilhosa. As dificuldades estão aí, mas eu me sinto muito feliz. O que eu

fiz até hoje eu acho que eu fiz o certo (Rita de Oxum, 2013).

3º) Os lugares de cultos na natureza, matas, praias, rios, cachoeiras e encruzilhadas, assim

como as ervas usadas para as cerimônias e tratamentos estão cada vez mais poluídos e escassos

(em função dos desmatamentos), requerendo, assim, a viabilização de alternativas.

Quando eu vim pra aqui, eu escolhi esse local, porque não tinha

absolutamente nada aqui [...]. Hoje, ali onde tem uma vala, quando eu

cheguei, era uma nascente. Uma água limpíssima! Era uma água que até

tinha mandado analisar na época, podia beber a água. Cansei de oferecer

presentes pra Oxum ali, lavar a cabeça de filho de santo, pra eu. Hoje já não

tem mais isso, né. Na época era tudo aberto, cheio de mato [...]. Essa parte

da frente aqui do morro era erva pura. Erva que a gente saía pra colher folha

aqui, era um luxo. Tinha tudo! Fiquei encantado quando eu vim pra cá.

Comprei por isso. Hoje não tem mais nada. É uma grande demanda das

comunidades. É uma grande dificuldade, porque a gente precisa criar, ter um

espaço. Estamos batalhando com relação a isso. Mas criar um espaço aqui

no município que, pra preservar a mata, pra gente ter, lá em Queimado. De

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ser construído um espaço cultural, pra receber as pessoas, para o povo de

terreiro, pra dentro do projeto. A ministra esteve aqui, sabe, já tá até

tramitando isso em Brasília, a gente já conseguiu que isso fosse tombado.

No governo Dilma nós já tivemos mais de uma visita aqui. Isso já tá sendo

encaminhado. É uma vitória. Eu talvez não colha esses frutos, mas não pode

ser tão egoísta de pensar que os próximos não colherão. Estou trabalhando

pra isso. Estou dando a minha contribuição (Rogério de Iansã, 2013).

4º) Argumentam que o alto custo dos bens (materiais e simbólicos) para a

manutenção das casas de santo e a realização dos rituais, assim como a falta de união

(federações fracas e com poucos trabalhos), estão entre os maiores desafios a serem

enfrentados pelos praticantes das religiões de matriz africana para que as mesmas se

consolidem no mercado dos bens religiosos de alta concorrência.

5º) Superar a noção da falta de tempo que os atuais adeptos do candomblé se

queixam, dividindo-se entre trabalho e estudos, e esse é um dos grandes desafios. Afirmam

que no passado as pessoas ficavam mais tempo recolhidas em seus rituais de iniciação e de

obrigação, chegando, no caso da nação jeje, há seis meses e a um ano de recolhimento. Essa

falta de tempo afetou os rituais, pois tiveram seus tempos de duração reduzidos e os

integrantes de algumas nações, com uma visão menos flexível acerca dessa questão, não

conseguem repensar parte de suas tradições e falam das dificuldades para mantê-las. Parte

dos entrevistados entende que algumas adaptações têm sido necessárias, não só na questão

do tempo das obrigações religiosas, mas também em termos de modernização e de questões

financeiras, pois ficar muito tempo cuidando de um iaô implica aumento de despesas e tanto

o iniciado quanto o iniciador têm que trabalhar e têm famílias para tomarem conta.

6º) Esse desafio, segundo a visão de uma iyalorixá, consiste em administrar as

diferenças em termos de educação moral, pois para a tradição do candomblé, mesmo na

atualidade, as pessoas de procedências sociais e de formação moral distintas devem conviver

dentro da mesma casa, como se fossem uma família. Essas pessoas foram criadas em lares

distintos e com diferentes tipos de orientação moral. Nesse sentido, a Sr.ª Rita entende ser uma

grande dificuldade liderar pessoas com índoles morais e problemas de caráter tão diversos,

causando certo desconforto, pois nessa tradição religiosa o iniciado deve tornar-se parte da

família de santo e conviver dentro da mesma casa, criando relações de confiança e afinidade.

Dificulta também, sabe o que é? Você ficar mexendo muito com o ser

humano, você precisa ter estrutura pra isto. Ultimamente as pessoas estão

muito maltratadas, muito desgastadas, os maiores problemas que estão

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mais em evidência desgastam muito a gente e que não nos levam a grandes

resultados. São problemas com drogas, com o caráter da pessoa. Alguns

problemas me trazem muito medo: uma pessoa viciada, uma pessoa que

tem a tendência à promiscuidade, uma pessoa que não tem uma moral

muito forte, ficar vigiando menina sem juízo que fica depois que todo

mundo está deitado, que fica pelos cantos namorando os outros. Isto

acontece não é só em casa de orixás não, isto acontece nas igrejas também,

isto acontece em qualquer lugar, eu não tenho paciência. Eu sou zeladora

e não tenho paciência mais e nem tenho idade nem tolerância pra aguentar

estas coisas. Então, a primeira coisa que eu vou fazer é mandar ir embora.

Então, eu não quero muita gente, eu não quero quantidade, eu quero é

qualidade e está difícil qualidade, está muito difícil [...]. Eu tenho uma casa

que é de família, é um ambiente em que qualquer pessoa pode chegar, eu

não quero arriscar de colocar muita gente lá dentro. Então tudo isso

dificulta realmente (Rita de Oxum, 2013).

O mapeamento ou cartografia social é uma vontade daqueles que acreditam que isso

poderá facilitar o acesso às políticas sociais do governo para os povos e comunidades

tradicionais do Brasil, entre os quais, o povo de santo. Contudo, as dificuldades e a falta de

convergência são notórias, pois o desenvolvimento de um trabalho criterioso acerca da

localização das casas e dos lugares de oferendas necessita de recursos, sobretudo do

sentimento de pertencimento às comunidades religiosas que têm projetos políticos a serem

compartilhados no presente e no futuro entre os adeptos das religiões de matriz africana.

No início de 2015, um projeto de extensão da Universidade Federal do Espírito Santo

começou a realizar a cartografia dos terreiros, uma grande conquista para os integrantes do

candomblé e para a história do nosso estado.

Considerações Finais

Alguns temas foram analisados no decorrer do texto, com foco especial em

identidades e preconceitos a partir do candomblé no Espírito Santo. Apresentei como os

zeladores entrevistados definem o candomblé: como uma religião de matriz africana,

denominada a partir da construção de suas memórias e genealogias nas famílias-de-santo.

Os zeladores defendem que se trata de uma tradição em que os saberes são transmitidos pela

memória e oralidade. Na definição do candomblé por seus integrantes, analisei os símbolos

e sinais diacríticos delimitadores de fronteiras de comunidades de terreiro, casas de santo,

axés e nações de candomblé e demarcadores do pertencimento dos seguidores a elas.

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As lembranças sobre o axé – forças, energia e lutas dos ancestrais –, compartilhadas e

vivenciadas nos rituais, possibilitam que as pessoas iniciadas incorporem essa força por meio da

possessão. Por ser criado por africanos e seus descendentes escravizados no Brasil, o candomblé

é uma religião que, ao longo da história, tem passado por diferentes processos de demonização,

perseguição e discriminação, não apenas em função de sua origem em segmentos étnicos

dominados, mas por não excluir as pessoas por causa de suas condições e opções sexuais. Nele,

a opção sexual não é importante e, em muitos casos, o sacerdócio é exercido por pessoas do sexo

feminino e por homossexuais, o que não é compartilhado pelas religiões cristãs no ocidente.

Assim, as mulheres, por serem dotadas de sentimentos e capacidade de maternidade, transferem

esse sentimento e força para suas famílias-de-santo, ajudando, desse modo, na condução da vida

dos seus e redescobrindo sua força e seu papel social.

Os rituais de oferendas e sacrifícios de animais, que muitas vezes são mal

interpretados por pessoas não iniciadas, são feitos de forma bastante ordenada e a carne

desses animais é aproveitada para a alimentação, principalmente durante as funções e em

dias de festa. Ao término dessas festas públicas, um banquete é oferecido aos convidados e

aos membros da religião.

Os animais sacrificados como oferendas a que se referiu uma das iyalorixás no

decorrer do trabalho, sobretudo o carneiro e o cabrito, são usados para demarcar o corpo do

iniciado escolhido pelas divindades. Esse corpo é a morada de uma nova consciência e um

lugar de memória onde os ancestrais e as divindades africanas se manifestam, principalmente

no decorrer dos rituais festivos, não para punir e castigar, como fizeram os senhores de

escravizados, mas para celebrar a passagem, sempre, para novas vidas.

A partir de então, esses corpos enquanto totalidades são convocados à busca de uma

nova visão de si, não mais a partir de uma moral cristã e senhorial que os açoitava, que

explorava sua força de trabalho e condenava suas práticas sexuais (ao mesmo tempo que se

beneficiava delas). Essa corporalidade enquanto totalidade não apenas física, mas sim

culturalmente demarcada por uma comunidade que ali imprime consciências, memórias,

valores e jeito de se manifestar estará para sempre convocada a se reinventar para além dos

determinismos homogeneizadores das ideologias e doutrinas dos colonizadores.

Os desafios a serem enfrentados para a superação dos preconceitos em relação às

religiões de matriz africana têm como primeiro passo o investimento na produção de

conhecimento sobre o assunto, sobretudo por pessoas iniciadas.

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O avanço dos preconceitos dos neopentecostais cria situações constrangedoras e

criminosas em relação às práticas religiosas do candomblé, em um regime político democrático

em que a liberdade de expressão religiosa é garantida por lei. Em função da concorrência acerca

do monopólio dos bens religiosos advindos do avanço dos neopentecostais, combater o

preconceito que desqualifica o candomblé enquanto religião que se insere no universo do

sagrado é um dos desafios atuais dos seguidores e defensores do candomblé.

Os babalorixás e iyalorixás lembram que o povo de santo já foi alvo de muitas

perseguições por parte da Igreja Católica no passado e que, atualmente, os terreiros se

tornaram o foco da perseguição das igrejas neopentecostais, que crescem cada vez mais em

número de integrantes e na perseguição aos afro-religiosos. Observam que a aversão às

religiões afro, principalmente pelos denominados crentes, está apoiada no preconceito

arcaico da sociedade de modo geral, que já deveria ter sido superado. Uma iyalorixá afirma

que gostaria de entender qual é o motivo de tanto incômodo por parte dos neopentecostais,

visto que a maior parte de suas igrejas, sobretudo nos bairros de periferia, onde estão também

as casas-de-santo, já está lotada de gente.

Nesse sentido, os zeladores ressaltam a necessidade de tomada de consciência do

direito à liberdade religiosa e à expressão dessa consciência, como uma das estratégias de

defesa contra a intolerância e a perseguição religiosa.

O candomblé é um produto cultural das diásporas africanas no Brasil. Para cá vieram

africanos de diversas nações e povos daquele continente, que praticavam múltiplas formas de

crença, resultando, desse modo, em uma religião que nunca foi una e pura, mas resultado dos

processos de trocas e interações não apenas entre os africanos e seus descendentes, mas com os

próprios colonizadores. Por isso, o candomblé é um produto da diversidade e, portanto, muito

mais rico e complexo do que pode parecer. O processo de interação e hibridização, no entanto,

não é uma mistura confusa, inconsciente e massificadora, ao contrário, pois é na interação que

os integrantes das diferentes nações do candomblé estabelecem as fronteiras não apenas entre

elas, mas delas com a umbanda, com as igrejas evangélicas e com a igreja católica.

Dentre os diversos demarcadores sociais das diferenças culturais, empregados pelas

casas e nações de candomblé, retomo alguns apresentados pelos entrevistados: a) a tradição

oral, seguida da senioridade e do respeito à hierarquia na transmissão dos saberes como

uma de suas peculiaridades, visto que ali tempo é posto, não se tratando de qualquer tempo,

mas daquele que transcorre acompanhado da aprendizagem acumulada na memória e

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transmitida nas práticas ritualísticas do candomblé; não é qualquer mais velho que ocupa

posto na hierarquia, mas aquele que consegue assimilar e transmitir os saberes tradicionais

relativos aos rituais; b) fidelidade (denominada mojuba) às casas, ao axé, às nações, à

tradição e às autoridades que ocupam postos superiores aos iniciados; c) uso de línguas

rituais (ioruba, kibundo ou jêje) nos cantos, onde se transmitem os mitos, como segredos do

povo do axé; d) as indumentárias e símbolos que vestem e diferenciam as divindades entre

si e são empregadas(os) pelos próprios adeptos para demarcarem seu pertencimento ao

candomblé; e) a aprendizagem no preparo das oferendas, muitas vezes apresentadas como

alimentos às divindades que se expressam em lugares e forças da natureza.

A pesquisa também verificou que os trabalhos produzidos na academia, no teatro, na

música e nas imagens sobre o candomblé vêm sendo apropriados por diferentes atores sociais

ligados a esse universo religioso, como meios de registros e de divulgação das casas, axés e

nações do candomblé.

Por fim, frente aos processos políticos de reconhecimento de práticas, valores e saberes

tradicionais, tem ocorrido uma reação aos encolhimentos das religiões de matriz africana diante

do crescimento de igrejas neopentecostais. Essas igrejas legitimam e transmitem suas doutrinas e

práticas em teologias da prosperidade e da vitória, de forma contrária às tradições afro-brasileiras,

que são classificadas por essas igrejas concorrentes pelo monopólio dos bens religiosos como

arcaicas, vencidas e derrotadas na guerra do bem contra o mal. Engajados em movimentos sociais

de povos e comunidades tradicionais do Brasil, alguns babalorixás, iyalorixás e zeladores(as)

propõem a demarcação por meio de mapeamentos sociais ou de cartografias sociais de lugares de

rituais e de oferendas, tendo por objetivo o reconhecimento como novos sujeitos de direitos e de

políticas públicas destinadas aos povos e comunidades tradicionais do Brasil, bem como a

demarcação, acesso e preservação de lugares de rituais e oferendas e de recursos naturais como

raízes, ervas, folhas, rios, lagoas e cachoeiras. Tudo isso – associado às propostas de construção

de uma unidade (ou união) política dos denominados como povo de santo, povo do axé e

comunidades de terreiros – é apresentado como um conjunto de desafios às religiões de matriz

africana da atualidade. Nesse sentido, como um dos militantes da causa dessas religiões, o

babalorixá Rogério de Iansã, afirma: “as pessoas de nossa religião devem parar de criticar tudo o

que é feito e passar a fazer algo. Essa é uma grande contribuição para a nossa religião”.

O trabalho sobre candomblé no Espírito Santo não está definitivamente concluído,

pois há muito ainda para se produzir sobre esse tema por aqui. Deixo minha contribuição,

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mas há ainda um caminho enorme para os próximos irmãos de axé e pesquisadores, que

podem adentrar e vivenciar, mas dificilmente desvendar completamente esse universo do

sagrado no candomblé. Axé, povo de santo!

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A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE HELVÉCIA E O USO DA MEMÓRIA

COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA

Renato Pasti Graduado em licenciatura - UNEB

Resumo: Os movimentos quilombolas surgiram como espaço de resistência e luta pelos direitos políticos

e sociais. Essas lutas por reconhecimento de direitos dos grupos quilombolas atravessaram as vicissitudes

dos regimes políticos brasileiros e se instrumentalizaram nas relações de identidade, memória e de posse

da terra. Nesse contexto de disputas contínuas se insere o distrito quilombola de Helvécia, que se localiza

no município de Nova Viçosa, no Território de Identidade do Extremo-sul da Bahia. Em meados do

século XX, essa região foi impactada pelo avanço da monocultura do eucalipto e a desterritorialização e

marginalização dessa comunidade tradicional. Para frear o avanço da monocultura, em 2005, a

comunidade de Helvécia buscou seu reconhecimento como remanescente quilombola. Ao utilizar suas

vias de memória, para alicerçar a resistência contra a invasão do grande capital, a comunidade fez uso dos

costumes, lugares enlaçados em sua memória que figuram como elementos ancestrais de sobrevivência.

Justaposto estes enredos, o presente trabalho de pesquisa bibliográfica busca analisar, à luz das vias da

memória coletiva, as práticas de resistência da comunidade frente a marginalização e as violações de seus

sentimentos de pertencer à terra e a posse da memória.

Palavras-chave: memória; resistência quilombola; monocultura do eucalipto.

Abstract: The quilombos movements emerged as space of resistance and struggle for political and

social rights. These struggles for rights’ recognition of quilombo groups crossed the vicissitudes of

Brazilian political regimes and instrumentalised in identity relationships, memory and land tenure.

In this context of continuous dispute falls within the quilombo district Helvécia, located in Nova

Viçosa, at the Identity territory of the Far South of Bahia. In mid- twentieth century the region was

impacted by eucalyptus monoculture forward and dispossession and marginalization of this

traditional community. To stop monoculture breakthrough in 2005, the Helvécia community sought

recognition as quilombo remaining. When using your memory pathways in support resistance against

the invasion of big business, the community made use of customs, snared places in your memory that

figure as ancestral elements of survival. Thus, the present bibliographical research study, seeks to

analyze at the light of the way of the collective memory, the community resistance practices, front

of marginalization and the violations of their feelings of belongs to earth and memory possession.

Keywords: memory; quilombo resistance; eucalyptus monoculture.

1. A comunidade de Helvécia entre a desterritoriaização e a reterritorialização

A comunidade de Helvécia está localizada no extremo sul da Bahia, mais

especificamente no município de Nova Viçosa e, no ano de 2005, foi reconhecida pela

Fundação Palmares como área remanescente quilombola. Seu passado está ligado à Colônia

Leopoldina, uma sesmaria de posse suíço-alemã, fundada em 1818, originalmente destinada

ao povoamento, mas que se constituiu como colônia agrícola, com grande número de

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escravos. Ao histórico de Helvécia agrega-se a expansão do eucalipto, que teve início no

meado do século XX, no Extremo sul da Bahia.

O sistema escravista e a monocultura do eucalipto deixaram marcas profundas

ligadas às características étnicas e culturais da população e, evidenciaram formas identitárias

e de resistência da comunidade em relação ao espaço, suas histórias e sua gente.

Com a expansão da produção de eucalipto na região e o estabelecimento da indústria

de papel e celulose, os espaços onde anteriormente imperavam as atividades tradicionais da

agricultura familiar deram lugar à monocultura. A dominação hegemônica das terras pelo

grande capital da empresa de celulose realinhou as relações sociais, desarticulou as

organizações econômicas e por consequência, provocou a reelaboração das relações da

população local com a sua própria memória no/do espaço.

Gradualmente a compra de terras e a invasão do eucalipto mobilizaram a população

local negra. A partir de confrontos com as empresas do agronegócio e disputas políticas

internas na comunidade, levaram o grupo a se organizar e iniciar a luta pelo reconhecimento

do distrito de Helvécia como espaço remanescente quilombola.

Nesse contexto de relações ambíguas de poder, algumas vozes e silêncios, que

permeiam discursos na comunidade, trouxeram à tona questionamentos sobre os bastiões da

memória coletiva, na perspectiva da posse da terra e desterro, que definiram/definem a

organização e vivência da comunidade de Helvécia. Assim também, é pertinente

compreender a utilização dos subterrâneos da memória e evidenciar seus lugares

reminiscentes para tornar visível a luta da comunidade contra a infiltração desagregadora do

capital latifundiário das empresas de celulose.

Portanto, para analisar os conflitos ligados ao direito, à memória e a terra neste lócus é

preciso salientar algumas questões norteadoras: A) De que forma a expansão do domínio de

terras pelas empresas de agronegócio, no extremo sul da Bahia, desarticulou os vínculos de

memória na/da comunidade? B) De que forma a Memória coletiva contribuiu/contribui para

que a comunidade resista às consequências da invasão da cadeia produtiva do eucalipto? C)

Como a busca do reconhecimento como comunidade remanescente quilombola reelaborou a

memória coletiva ou fez emergir suas memórias subterrâneas, e qual a relação entre o

território, ritos, performances e a memória coletiva de Helvécia? Pouco a pouco, essas

problemáticas corporificaram-se em tema para a análise do binômio memória/resistência na

comunidade remanescente quilombola.

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No intuito de alcançar resultados na pesquisa, que visassem perceber os alicerces nos

lugares de memória que dão sustentação às práticas tradicionais, foram analisados dados,

documentos e fontes orais no sentido de compreender a formação da memória coletiva na

comunidade de Helvécia. Sendo assim, objetivando também, compreender como os sujeitos

e o grupo, na comunidade, se valem da memória coletiva, conferindo-lhe novas

configurações e se instrumentalizando essa como elemento de resistência contra os impactos

da monocultura de eucalipto.

2. A memória e a terra como alicerces do sentimento de pertença

O distrito quilombola de Helvécia, localizado no Território de Identidade1 do

Extremo-sul da Bahia apresenta configurações sociais e econômicas típicas do contexto do

Brasil imperial. Sua formação está ligada ao início do século XIX, mais especificamente no

ano de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Nesse período a demografia

brasileira ainda era insipiente, motivo pelo qual o rei português D. João VI decretou que

fossem doadas sesmarias para colonos estrangeiros que se interessassem na formação de

povoados e exploração de terras no Brasil (Gomes, 2009, p. 39). Durante todo o século XIX,

a comunidade de Helvécia2 se envolveu na produção de café, sendo que “a principal

propriedade que garantia o crédito aos produtores de café era o escravo”, como afirma Carmo

(2010). A utilização da mão de obra escrava se fazia presente em muitos dos ramos de

produção, assim estabelecendo um número significativo de escravizados na região, como

assevera Alane Fraga do Carmo sobre os primeiros momentos da colônia de Leopoldina:

Os vários relatórios dos presidentes das provinciais e os documentos do

consulado da Suíça na Bahia discutem a questão da mão de obra empregada no

cultivo do café na Colônia de Leopoldina. São quase exclusivamente braços

escravos, africanos e crioulos em número muito superior ao de estrangeiros. É

difícil, entretanto, precisar a exata população escrava na colônia ao longo dos

seus quase setenta anos de existência (CARMO, 2010, p. 31).

1 Regionalização recentemente estabelecida pelo atual governo da Bahia constituída a partir da especificidade

dos arranjos sociais e locais de cada região, onde a divisão vem sendo utilizada para a implementação de

políticas públicas no Estado, segundo a SEPLAN (2013). 2 As sesmarias da colônia de Leopoldina foram doadas a grupos de colonizadores suíços e alemães, por esse

motivo a colônia foi rebatizada de Helvécia, em homenagem aos grupos de colonizadores suíços.

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2160

Carmo evidencia que, logo, junto ao aumento da produção, também se fazia necessário

a demanda por uma maior quantidade de mão de obra cativa, o que marca a intensificação das

ações escravagistas. Proporcionalmente como resposta ao sistema opressivo da escravidão,

emergia a prática de insubordinação, ligada aos projetos de resistência e liberdade (MATTOS,

2008). Quase sempre, estes projetos de liberdade estavam vinculados à posse da terra, aos

vínculos de parentesco e pertencimento com a comunidade, geralmente reforçados pelas práticas

dinâmicas de sociabilidade3 que reafirmavam os laços de identidade do grupo.

A posteriori, nos desenlaces do sistema escravista, a abolição correspondeu para população

cativa de Helvécia a possibilidade de articular novas trajetórias, através do distanciamento dos

miasmas da condição escrava. Segundo Fraga (2006), o processo da possessão de terras4 gerou

possibilidades de melhoria de condições econômicas e sociais, e sobretudo, a possibilidade de se

distanciar do estigma da submissão do cativeiro, ou seja, o acesso à liberdade.

Gomes (2009) assevera que a gestão desses pequenos lotes de terra pelas famílias dos ex-

cativos se baseava na coletividade do trabalho, forma mais eficiente de sobreviver às adversidades.

Nessa coletividade, o grupo buscava também fortalecer sua identidade como forma de resistência.

Portanto, essa coletividade era evidenciada em várias situações: para lavrar a terra,

construir casas ou comemorar a colheita, a comunidade se reunia em atividades como danças

e festejos que reforçavam os laços do grupo (SANTANA, 2014). Portanto, há indícios que a

identidade dos ex-escravos se ancorava na memória coletiva. Nessa perspectiva de análise

Michael Pollak (1992) concorda com Halbwachs sobre a memória quando afirma que, esta

é um elemento constituinte do sentimento de identidade tanto individual quanto coletiva.

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo

relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos

anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também,

ou sobretudo, como um fenômeno coletivo social, ou seja, como um

fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,

transformações, mudanças constante (POLACK, 1992, p. 201).

3 As dinâmicas de sociabilidade a que se faz referência são os elementos das danças como o bate barriga (dança

de tradição africana), festejos como o samba de viola, as religiosidades de matriz africana, trabalhos em grupo

na construção de casas como o embarreiro, entre outros. Assim, as práticas agregadoras do grupo que

reafirmam o sentimento de pertence e colaboração, embasam a resistência do grupo frente às adversidades do

contexto (SANTANA, 2014). 4 Sobre a posse de terra em Helvécia, pesquisas não deixam claro como os ex-escravos chegaram à obtê-las. Contudo,

nas narrativas de antigos moradores a posse da terra é justificada como uma doação da Princesa Isabel. Os moradores

afirmam que receberam aproximadamente 25 braças por família. A pesquisadora da UNEB Liliane Mª Cordeiro Gomes

(2009), em sua dissertação de mestrado, afirma que há uma lacuna nesse episódio histórico e que o grupo utiliza a

memória como forma de preencher tal “hiato”, ela assevera: “talvez este hiato tenha sido preenchido na memória das

pessoas de Helvécia buscando um fio condutor entre o fim do cativeiro e a posse das terras”.

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Nesse sentido, quanto a construção e vicissitude coletiva da memória, Beatriz Sarlo

(2004) complementa que esses sujeitos, marginalizados durante tanto tempo, e ainda hoje

relativamente ignorados buscam novas exigências e tendem a fortalecer o movimento de

resistência recorrendo aos discursos da memória. No caso de Helvécia, a memória é

referenciada em práticas como a dança do Bate-barriga, as Festas de Terreiro, Samba de Viola,

o Embarreiro, entre outras práticas sociais, que possibilitam a sobrevivência da memória do

grupo, pari passo, que essas memórias são os esteios dos movimentos de resistência.

Assim, a sociabilidade presente no espaço de Helvécia, proporcionava aos sujeitos

(individualmente) e ao grupo a reafirmação da identidade e a garantia de que as memórias

construídas não desapareceriam, sendo evocadas nas ações coletivas, nos festejos, nos

féretros e etc. Sobre isso, Maurice Halbwachs (2012) afirma que lembrar não é meramente

reviver, e sim, refazer com imagens e ideias de hoje as experiências do passado e estas, tem

o poder de unificar e até aproximar. Ocorre, segundo o autor, que a memória individual é

fortalecida pela memória coletiva, desde que as lembranças tenham significados para o

sujeito, como se faz transparecer em Helvécia. Acerca disso ele assevera:

Talvez seja possível admitir que um número enorme de lembranças

reapareça porque os outros nos fazem recordá-las; também se há de convir

que, mesmo não estando esses outros materialmente presentes, se pode

falar de memória coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar

na vida de nosso grupo [...] (HALBWACHS, 2012, p. 48).

Contudo, as relações tradicionais que emergiram da posse da terra pelos negros de

Helvécia, como foram supramencionados, esbarram um século depois em fatos que

desarticulam a vivência da comunidade: o advento da cadeia produtiva do eucalipto no

Extremo-sul da Bahia, que fraturou as estruturas concebidas nas relações de sociabilidade

da comunidade com o espaço.

A produção do eucalipto e o estabelecimento das indústrias multinacionais (Suzano

Celulose e a FIBRIA) têm desestruturado os modos de vida tradicionais, marginalizando,

gerando subempregos e violentando a memória do grupo e a sua relação com a terra. A posse da

terra pelas empresas de celulose aumentara significativamente no final dos anos 80, deslocando

os pequenos produtores rurais de suas terras e em virtude disso rompendo os laços de memória

e produção tradicional existente entre estes que lhe conferia significados de pertencimento. Ao

passo que o latifúndio da monocultura se expandia, a comunidade de Helvécia era marginalizada

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dos dividendos de sua produção. Sobre o domínio das terras empreendido pela FIBRIA e os

impactos sociais sobre a população de Helvécia, Gomes salienta:

Diante desta situação, a comunidade viu-se obrigada a deslocar-se de seu lugar

em busca de alternativas de emprego e sobrevivência. Esses deslocamentos

ocorrem tanto para destinos próximos do distrito, como a cidade de Nova Viçosa

e Teixeira de Freitas, como para centros mais distantes, entre os quais Vitória,

Salvador, São Paulo e Belo Horizonte (GOMES, 2008. p. 96).

É possível perceber nesse relato que as terras foram gradualmente ocupadas pela

monocultura, ilhando a comunidade, provocando migrações, interferindo diretamente e

indiretamente nas ações coletivas, desagregando o sentimento de grupo e ferindo as

memórias que durante tanto tempo conferiram identidade à comunidade. Sobre a perspectiva

do desterro dos lugares de memória, Pierre Nora laça olhares buscando perceber a

reciprocidade entre a destruição da memória coletiva e a sobrevivência dessas através de

espaços que encarnam suas reminiscências, como afirma Nora (1984):

A curiosidade pelos locais onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada

a este momento particular da nossa história. Momento de articulação onde a

consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma

memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória

suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O

sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória

porque não há mais meios de memória (NORA, 1984. p. 7).

É possível que através das palavras de Pierre Nora, entenda-se que a comunidade

quilombola tenha recolhido a memória coletiva em lugares de memória (as próprias práticas

de sociabilidade e locais físicos como terreiros, igrejas, cemitério e etc.) e que também são

bombardeados por ações destrutivas do grande capital.

Contudo, é latente o possível esfacelamento de lugares de memória de Helvécia em

detrimento da ocupação territorial do eucalipto, e tal fato, pode ser exemplificado, observando o

cemitério da comunidade que se encontra sitiado pelos “pés de eucalipto”, e atualmente está

engolfado pelo mato e isolado da cidade, em outras palavras, depredado pela monocultura. Neste

fato, se evidencia uma violência física e também simbólica5 que tal produção promove.

5 O conceito de simbólico foi utilizado no texto com base em: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 7 Ed.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

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Todavia, como um evento de resistência à disseminação do eucalipto, que sufoca e

marginaliza a comunidade de Helvécia, para garantir a sobrevivência do grupo surgiu a iniciativa

de pleitear a oficialização de suas raízes quilombolas, buscando desta forma, subsídios para

conter as lacerações causadas pela monocultura sobre as raízes identitárias da comunidade. A

partir dessa ação, o que fica implícita no “emquilombamento”6 é uma tentativa de resistir às

dominações contemporâneas do grande capital. Assim, no ano de 2005, Helvécia foi

reconhecida pela Fundação Palmares como área remanescente quilombola7.

As condições contemporâneas e externas à comunidade referida abalaram/abalam as

condições materiais e sociais de existência do grupo, ao passo que se desagrega a consciência

sobre o pertencimento a essa comunidade, proporcionalmente também, se ergue o desejo de

manutenção da memória. Nora afirma que “a memória emerge de um grupo que ela une”,

portanto, “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”

(NORA, 1993). Nesse sentido, ao passo que a comunidade sofreu a invasão do eucalipto,

esta buscou renovar a resistência nas vias de suas próprias memórias.

Consonante a essa prática de reafirmação, a memória coletiva aferiu ao grupo a

função de alicerce e de forças centrípetas aos indivíduos da comunidade. Jacques Le Goff

(1994) corrobora com Halbwachs ao afirmar que:

[...] a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades

desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes

dominantes e das classes dominadas, lutando, todas, pelo poder ou pela

vida, pela sobrevivência e pela promoção (LE GOFF, 1994, p. 469).

Assim, a memória do grupo ascende sobre as circunstâncias de conflito, buscando na

coletividade e na ancestralidade raízes profundas suficientes para resistir a invasão

imperativa da cadeia produtiva do eucalipto. Ao passo que se reconhecer quilombola aferiu

ao grupo a dimensões de memória e identidade que outrora eram subterrâneas, sob

circunstâncias de opressão, o reconhecimento encarnou a funcionalidade da resistência.

Sobre a disputa entre as memórias, ditas, oficiais e as memórias subterrâneas ou

marginalizadas, Pollack afirma que:

6 Emquilombamento refere-se a semantização do ato de resistência, das comunidades tradicionais com origem

étnica africana, de se tornar quilombo ou se reconhecer como quilombola; 7 Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003.

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[...] Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu

trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível

afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A

memória entra em disputa (POLLACK, 1985, p. 3).

Nesse campo de disputa, as memórias subterrâneas que emergiram sob uma

conjuntura de conflitos ganham contornos de contestação, a partir do contexto que as

reelaboram, e que por vias destas instrumentalizam as lutas por direitos da comunidade. Se

se declarar ex-escravo denotava sistema simbólico de opressão, ou mesmo atrair sobre si

olhares de discriminação, agora para a comunidade de Helvécia as memórias que foram

silenciadas se tornaram instrumentos de luta e resistência.

Assim, concebendo a memória como eixo norteador, esta breve análise buscou a

articulação metodológica a partir das fontes orais, recorte etnográfico e análise

historiográfica. Nesse recorte metodológico, as fontes orais foram norteadoras no processo

no sentido de articular a análise e dar voz à população do distrito. Thompson (1998) e Portelli

(1997) consideram que a história oral ao trazer evidências sobre o passado convertem as

falas dos narradores em instrumentos com os quais podemos interpretar e escrever a história.

Assim, sendo uma comunidade ligada a grupos africanos e de tradição oral, as narrativas dos

moradores de Helvécia contribuíram com a observação sobre alguns impactos provocados

pelos movimentos recentes do grande capital, assim como disputas ainda em curso. Contudo

as fontes revelaram que mesmo após o distrito ter sido reconhecido pela Fundação Palmares,

como comunidade remanescente quilombola, os desafios e conflitos ligados às empresas de

celulose, ou aos agentes de seu capital, são uma realidade presente, tornando o campo da

memória nesse local um palco cotidiano de disputas de poder.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 7. ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

CARMO, Alane, Fraga. Colonização e Escravidão na Bahia: A Colônia de Leopoldina

(1850-1888). Dissertação apresentada o Curso de Mestrado em História Social,

Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: Histórias de libertos e escravos

na Bahia (1870-1910). Campinas: Ed. Unicamp, 2006.

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GOMES, Liliane Maria Fernandes Cordeiro. Helvécia: homens, mulheres e eucaliptos

(1980-2005). Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciências Humanas, Universidade

do Estado da Bahia, Santo Antônio de Jesus, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2 edição - 6

Reimpressão, 2012.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.

MATTOS, Wilson Roberto. Negros Contra a Ordem: Astúcia, resistência e liberdades

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NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História,

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_____. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a

ética na História Oral. Projeto História 15. São Paulo, 1997.

SANTANA, Gean, Paulo, Gonçalves. Vozes e versos quilombolas umas poética identitária

em Helvécia. Tese de doutorado interdisciplinar, Programa de pós-graduação em estudos e

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SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva; tradução Rosa

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THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1998.

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A COMUNIDADE DE ALTO IGUAPE: DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA DE UMA

COMUNIDADE QUILOMBOLA TRANSLOCAL

Roberto Izoton PGCS/UFES

Resumo: Este trabalho faz uma apresentação etnográfica da comunidade quilombola de Alto Iguape,

que se situa na região montanhosa do município de Guarapari, no estado do Espírito Santo.

Inicialmente contextualiza a comunidade, argumentando que ela é uma comunidade quilombola

translocal. Em seguida, analisa suas relações de parentesco, destacando seus arranjos de casamentos.

Depois aborda suas atividades econômicas e relações de trabalho desenvolvidas e estabelecidas na

roça, na rua e no mar. Por fim, trata de sua religiosidade, focalizando seu caráter popular e negro.

Palavras-chave: memória; identidade; comunidades quilombolas.

Abstract: This work is an ethnographic presentation of the Alto Iguape quilombo community,

located in the mountainous region of Guarapari, in the state of Espirito Santo. Initially, it creates a

context for the community, arguing that it is a translocal quilombo community. Then, it analyzes

their kinship relations, highlighting their marriage arrangement. Hereafter, discusses their economic

activities and working relationships developed and established in the countryside, on the street, and

at sea. Finally, it deals with their religiosity, focusing on its popular and black ethos.

Keywords: memory; identity; quilombo communities.

Introdução

A comunidade quilombola de Alto Iguape situa-se na localidade das Goiabas, na

região montanhosa de Guarapari, no Espírito Santo. Ela teve sua certidão de autodefinição

como remanescente de quilombo emitida pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2012.

De acordo com uma de suas narrativas de origem, a comunidade teria sido formada por

descendentes dos ex-escravizados, oriundos de duas fazendas que existiam em Guarapari e

que, em meados do século XVIII, pertenciam ao padre Antônio Siqueira de Quental: a

fazenda Engenho Velho e a Fazenda do Campo. Essa narrativa, que é apropriada por alguns

membros da comunidade e da Associação Remanescentes do Quilombo Alto Iguape

(ARQUI), se baseia em pesquisas realizadas por José Amaral Filho (2009), historiador

residente no município, que parte de relatos contidos no livro Viagem ao Brasil, do príncipe

Maximiliano Wied-Neuwied (1940). Em sua obra, o naturalista austríaco descreveu a

república negra que estava estabelecida sobre aquelas fazendas em 1815.

O relato sobre o “refúgio” de ex-escravizados na região está presente na memória

dos membros mais antigos da comunidade, como o senhor Emílio Borges de Almeida, de 94

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anos de idade, que contava a seus filhos e netos histórias que costumava ouvir de seu pai.

Essas histórias, que me foram passadas com mais detalhes por João de Almeida, presidente

da ARQUI e filho de seu Emílio, dão conta de que o avô deste senhor, que se chamava

Gustavo Pinto Ribeiro, teria sido escravizado na Fazenda do Campo, de onde fugiu com sua

esposa Maria Vicente da Conceição para se abrigar nas Goiabas. Foram as histórias de seu

Emílio que impulsionaram os processos de constituição da identidade quilombola e de

reconhecimento da comunidade de Alto Iguape.

É possível dizer que a comunidade quilombola de Alto Iguape é uma comunidade

translocal (SAHLINS, 1997), pois, desde o final da década de 1940, algumas de suas famílias

fizeram um movimento de saída da localidade das Goiabas em direção à região litorânea de

Guarapari, com o intuito de morar mais próximo dos núcleos urbanos do município, em

busca de melhores condições de trabalho. Mesmo assim, essas famílias, que se estabeleceram

nos bairros chamados Samambaia, Banqueta, Jabaraí, Kubitschek, São Gabriel, Paturá e Elza

Nader, dentre outros, mantêm forte vinculação com seus parentes das Goiabas e seus

membros se sentem pertencentes à comunidade. Neste trabalho, estou me detendo no núcleo

das Goiabas, que compreende a comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural

Palmares, e no núcleo de Jabaraí, que abriga o maior número de membros da comunidade

fora das Goiabas, e no qual, assim como nas Goiabas seus membros reproduzem o esquema

da família extensa (AUGÉ, 1978), vivendo uns próximos dos outros.

Nas seguintes seções deste trabalho, focalizarei as relações familiares, as atividades

econômicas e relações de trabalho e as práticas espirituais e religiosas estabelecidas e

desenvolvidas pelos membros da comunidade translocal de Alto Iguape. Esta comunicação é

um recorte do terceiro capítulo da dissertação que estou elaborando para o Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (PGCS-UFES).

1. Relações familiares na comunidade de Alto Iguape

Ilka Boaventura Leite (2000, p. 344), ao tratar sobre a ressemantização do conceito,

escreve que “de todos os significados de quilombo, o mais recorrente é aquele que remete à

ideia de nucleamento, de associação solidária em relação a uma experiência intra e

intergrupos”. Para esta autora o direito quilombola se remete, então,

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à organização social, diretamente relacionado à herança, baseada no parentesco;

à história, baseada na reciprocidade e na memória coletiva; e ao fenótipo, como

um princípio gerador de identificação, onde o casamento preferencial atua como

um valor operativo no interior do grupo (LEITE, 2000, p. 345).

A importância das relações de parentesco, ou das relações familiares, para as

comunidades quilombolas pode ser observada na comunidade de Alto Iguape, que nos dois

núcleos em que me detenho neste trabalho é formada principalmente pelas famílias Santana,

Rangel, Borges de Almeida, e Mendes da Vitória. Os membros dessas grandes famílias

casaram-se entre si, constituindo assim vários núcleos familiares menores. Outras famílias

também vieram a se agregar a essas quatro por meio de casamentos, como os Pereira

Barcelos, os Marcelino, os Santos, os Cristóvão e os Albertino. Das grandes famílias

mencionadas, os Santana e os Borges de Almeida descendem respectivamente de Cláudio

José de Santana e de Deoverdino Borges de Almeida, que são filhos de Gustavo Pinto

Ribeiro e de Maria Vicente da Conceição. A memória dos Rangel, por sua vez, se remete

mais remotamente ao seu antepassado Luiz Pinto Rangel, que é da mesma geração de

Cláudio José de Santana e de Deoverdino Borges de Almeida.

Seu Emílio, que é filho de Deoverdino Borges de Almeida, explica que a diferença

nos sobrenomes dos filhos de seu avô se deve ao antigo hábito da adoção dos sobrenomes

dos padrinhos das crianças na ocasião do batismo. Ele conta que seu pai era casado com

Valentina Maria do Sacramento, com quem teve quatro filhos. No mesmo período, de acordo

com seu Emílio, Deoverdino também mantinha relações conjugais com Ana Maria do

Sacramento, que foi morar com o casal quando tinha 12 anos. Deoverdino e Ana Maria

tiveram seis filhos, um dos quais é seu Emílio. Depois que suas duas mulheres faleceram,

Deoverdino passou a morar com Lidurgéria Maria da Conceição, com quem adotou uma

menina chamada Benedita Vitória, em virtude do falecimento de sua mãe durante o parto.

O senhor João Cláudio Santana era filho de Cláudio José de Santana com Aurélia

Maria da Conceição, que era irmã de Luiz Pinto Rangel. Ele casou-se com Benedita Vitória,

com quem teve 14 filhos, dentre os quais estão algumas de meus principais interlocutores do

núcleo das Goiabas, que são Benedita Santana, Rosa Aparecida Santana dos Santos e Maria

das Dores Santana, mais conhecida como Dorinha. Seu João faleceu durante minha pesquisa,

aos 90 anos. Seu Emílio, por sua vez, casou-se com dona Alicia Santana, irmã de seu João,

e com ela teve 16 filhos, dentre os quais figura João de Almeida, presidente da ARQUI.

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A família Santana, que descende de Cláudio José de Santana a partir de seu João, e a

família Rangel, que descende de Luiz Pinto Rangel por meio de seu filho Angelino Pinto

Rangel, são as principais famílias do núcleo das Goiabas. A família Borges de Almeida, que

descende de Deoverdino a partir de seu Emílio, é uma das principais do núcleo de Jabaraí.

Além dela, compõem este núcleo outro ramo da família Santana e a família Mendes da Vitória.

O primeiro é formado pelos descendentes de Inácio Santana e Idelfina Mendes Santana; a

segunda é constituída pelos descendentes de Maria Santana Mendes e José Mendes da Vitória.

Vale destacar que Inácio Santana e Maria Santana Mendes são filhos de Cláudio José de

Santana. José Mendes da Vitória e Idelfina Mendes Santana também são irmãos.

Observei entre os membros da comunidade de Alto Iguape dois arranjos de casamento

que chamam a atenção: 1) casamentos entre primos, não importa de que grau; e 2) casamentos

nos quais dois irmãos de uma família se casam com dois irmãos de outra família, sejam esses

irmãos biológicos ou adotivos, promovendo assim o que chamo de troca de irmãos. Ambos os

arranjos, na minha perspectiva, têm como objetivos reforçar a endogamia da comunidade e

estabelecer ou estreitar alianças entre os sujeitos. Se considerarmos as narrativas segundo as

quais Gustavo Pinto Ribeiro era um ex-escravizado, que se libertou da escravidão na Fazenda

do Campo e que as Goiabas eram um “refúgio” para ele e para outros indivíduos em igual

situação, vemos que tais objetivos se justificam. Desse modo, os arranjos de casamentos

mencionados podem ser considerados uma herança transmitida entre as gerações de membros

da comunidade (THOMPSON, 1993), que são descendentes do Gustavo.

Os casamentos entre seu Emílio e dona Alicia e entre seu João e Benedita Vitória são

exemplos tanto de casamentos entre primos quanto de troca de irmãos. Nesse caso

específico, o estabelecimento e o estreitamento de relações entre os membros da comunidade

foram acompanhados de uma transmissão de herança material. De acordo com relato de

Dorinha, a casa em que ela e seus irmãos moravam com seus pais anteriormente foi

derrubada pelo vento, por ser uma construção de estuque coberta de palha. Depois desse

evento, a família foi viver na casa onde o ancião das Goiabas morou até falecer. Já seu Emílio

contou que seu João morava em outra parte das Goiabas, e que a casa em que este senhor

morava no início da minha pesquisa pertencia a Deoverdino Borges de Almeida. Segundo a

narrativa do ancião de Jabaraí, seu João passou a morar naquela casa em virtude de seu

casamento com Benedita Vitória, que fora criada por seu tio.

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Outro exemplo de troca de irmãos ocorreu na geração dos anciões1 das Goiabas, entre

os irmãos Inácio Santana e Maria Santana Mendes e os irmãos José Mendes da Vitória e Idelfina

Mendes Santana. Ambos os casais desceram das Goiabas e compuseram o núcleo de Jabaraí da

comunidade de Alto Iguape. O primeiro casal que se estabeleceu mais próximo da área urbana

de Guarapari foi aquele formado por José e Maria. Ele foi seguido pelo casal formado por Inácio

e Idelfina, devido ao estreitamento entre as relações já existentes entre famílias Mendes da

Vitória e Santana, em virtude dos casamentos endogâmicos de seus membros.

Membros da geração intermediária da família Mendes da Vitória também realizaram

trocas de irmãos com outras famílias da região litorânea de Guarapari, como é o caso dos

Monteiro, que são uma família de pescadores da aldeia de Perocão2. Nesse caso, Maria da

Penha Mendes da Vitória e Valdete Mendes da Vitória casaram-se respectivamente com

Orestes Monteiro e João Monteiro. Aqui a troca de irmãos não reforçou a endogamia da

comunidade, mas atuou no sentido de estabelecer alianças entre as famílias envolvidas.

2. Atividades econômicas e relações de trabalho na comunidade de Alto Iguape

Três tipos de atividades econômicas foram desenvolvidos ao longo do tempo na

comunidade translocal de Alto Iguape: o trabalho na roça, que compreende as atividades

agrícolas; o trabalho “na rua”, ou seja, na cidade, principalmente em seus setores de comércio

e serviços; e o trabalho no mar, que se refere à pesca e à cata de mariscos. Essas atividades

econômicas se distribuem entre os membros da comunidade de acordo com suas gerações.

Os anciões dedicavam-se principalmente ao trabalho na lavoura. Todos os membros

da geração intermediária exerciam atividades agrícolas, sendo que hoje se dividem entre o

trabalho na roça, que é realizado por Valdemar Santana, José Aníbal Santana e Gerônimo

Santana, filhos de seu João, e por Paulino Rangel e Manoel Adilson Rangel, filhos de

Angelino Pinto Rangel; e o trabalho na rua, exercido por Dorinha, que faz faxinas e já foi

cuidadora de idosos e por João de Almeida, que é porteiro. Maria das Graças Santana –

também filha de seu João – é aposentada, mas relatou que trabalhou como empregada

doméstica. Já os membros da geração mais nova atuam nos setores de comércio e serviços,

1 Chamo de geração dos anciões da comunidade de Alto Iguape aquela formada pelos netos de Gustavo Pinto

Ribeiro. Geração intermediária é como classifico os filhos dos anciões, e geração mais nova é como designo

os filhos e netos dos membros da geração intermediária. 2 Perocão é uma antiga e importante vila de pescadores do litoral norte de Guarapari, que se localiza próximo à Jabaraí.

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como Rosana Santana dos Santos – filha de Rosa – e Luzinete Almeida Rangel – filha de

Manoel Adilson Rangel e Celina Almeida Rangel –, que respectivamente trabalham em um

restaurante no centro de Guarapari e em uma padaria em Buenos Aires; Jossemar Santana

dos Santos – neto de Inácio e Idelfina, mais conhecido como Polaco –, que trabalha com

comunicação visual; e Adriano Albertino da Vitória – neto de José Mendes e Maria –, que é

professor de História da rede estadual de ensino e atua como diretor do SINDIUPES.

Adriano e Polaco foram os únicos membros da geração mais nova que, até o presente

momento da minha pesquisa, afirmaram ter trabalhado na roça.

Benedita, Dorinha e Rosa relataram que as filhas de seu João também trabalhavam

com este senhor na roça, que ele plantava na parte mais elevada das Goiabas e nas terras de

outros proprietários do entorno. Benedita lembrou que ela e suas irmãs faziam uma escala

segundo a qual, a cada semana, uma delas ficava em casa cuidando dos afazeres domésticos

e preparando o almoço para os demais membros da família que trabalhavam na lavoura.

Benedita afirmou que preferia ir para a roça, pois lá o serviço era pesado, mas tinha hora

para acabar, o que não acontecia quando ela ou suas irmãs ficavam em casa.

Paulino cultiva bananas no terreno que herdou de seu pai, onde também cria gado à

meia com outros proprietários que não têm pasto em suas terras. Além disso, também planta

café à meia em uma fazenda do entorno, mas disse que assim que acabar o contrato, na última

colheita, não fará mais isso e se dedicará exclusivamente à sua propriedade. Manoel Adilson,

por sua vez, trabalha a dia produzindo hortaliças na horta da família Machado, em Buenos

Aires3. Trabalho a meia, ou meação, é uma relação de trabalho agrícola por meio da qual, no

final do processo, o trabalhador entrega 50% da produção ao proprietário do terreno ou do

gado. A meação é realizada tanto na terra dos empregadores – por exemplo, quando estes

são proprietários do terreno em que se cultiva o café – quanto na terra dos empregados – por

exemplo, quando a eles pertence o pasto em que o gado é criado. No final do processo, o

trabalhador vende a sua parte da produção. Trabalho a dia, ou diária, é uma relação de

trabalho agrícola por meio da qual os lavradores diariamente recebem dinheiro pelos

serviços prestados a outros proprietários nas terras destes.

Darcy Ribeiro (1977), quando trata do patrimônio fundiário brasileiro, divide os

camponeses em dois escalões básicos, que são os parceiros e os assalariados. O escalão dos

parceiros é formado pelos meeiros e pelos terceiros – que recebem a terça parte da produção

3 Localidade da região montanhosa de Guarapari próxima das Goiabas e fundada por imigrantes italianos.

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no final do processo. É interessante que, segundo o autor, a parceria é contemporânea dos

engenhos de açúcar do período colonial e absorveu muitos negros forros, no interior regime

escravista, e ex-escravizados, depois da abolição. Assim, os fazendeiros fixavam os negros

em suas terras, mas não os tornavam trabalhadores assalariados. Já o escalão dos assalariados

é formado por um contingente de trabalhadores, em grande parte temporários, e por seus

familiares, que não são remunerados por suas atividades.

A partir da categorização dos trabalhadores rurais trazida por Ribeiro, entendo que

enquanto a meação está para uma relação de trabalho não assalariada, devido à natureza da

sua remuneração, a diária é uma relação de trabalho assalariada, mesmo que temporária, por

ser remunerada em dinheiro. Mesmo assim, de acordo com relatos dos membros da

comunidade de Alto Iguape, a meação traz mais estabilidade aos trabalhadores, por ser

regida por um contrato assinado com os proprietários. O trabalho a dia, por sua vez, não é

registrado na Carteira de Trabalho e Previdência Social nem é regulado por um contrato

formal, pois os lavradores estabelecem tal relação com os proprietários apenas para “ganhar

o dia”, conforme expressou seu Emílio.

João de Almeida contou que, antes de descer para Jabaraí, também exerceu atividades

agrícolas no terreno de sua família e nas fazendas do entorno das Goiabas, sendo algumas

delas pertencentes a descendentes de imigrantes italianos. É interessante que ele relatou que

chegou a trabalhar um dia no que restou da Fazenda do Campo. O filho de seu Emílio conta

que, nessa época, percebia que as relações que os fazendeiros tinham com ele e com outros

trabalhadores era análoga à relação entre senhores e escravizados.

Era aquela, aquela coisa de, realmente, de escravidão mesmo, não era uma

coisa de, de, de um ser humano chegar e... E de valorizar como um

trabalhador. Não, eles queriam te usar como escravo. Ainda tinha em

mente deles que a gente ainda era escravo, [...] aquele povo que pagava a

dia pra gente. Eu trabalhei, eu trabalhei com um cidadão, eu trabalhei com

um cidadão, aqui mesmo na Fazenda do Campo, isso aí depois que já havia

liberado, né? Que segundo dizem, não existia mais escravo, mas de uma

forma ou de outra existia, camuflado. Eu trabalhava descalço, dentro de,

de uma área enorme, assim, que só tinha juá – é aqueles espinho, chama de

juá. Entendeu? Então, o que que eu fazia? Eu roçava, e limpava o lugar pra

botar o pé. Quando eu acabava de cortar aquilo dali e olhava pra trás, eu

não tinha mais por onde passar. E era espinho puro! Então, tudo o que eu

cortava era espinho, quando olhava não tinha. Então, o cara, ele ficava

vigiando a gente. Ele botava uma sete légua, cruzava os braço e ficava

assim, ó. O tempo todo te olhando na cara pra você não parar de cortar,

entendeu? (Entrevista do autor com João de Almeida, Guarapari, 2014).

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De acordo com João de Almeida, outra herança transmitida (THOMPSON, 1993)

entre as gerações da comunidade de Alto Iguape que se remetia ao período do cativeiro era

o modo mais embrutecido e mais extenuante de trabalhar, bem como a realização de

atividades agrícolas que exigem mais esforço físico.

Então, o povo que trabalhava era um povo revoltado, um povo que não tinha,

assim, paciência de trabalhar. Era um povo que trabalhava se matando,

entendeu? Essa coisa de... De pegar peso demais! Essa coisa de... de rasgar

qualquer coisa na unha lá. Entrava no mato e saía cortando, e saía

derrubando. Aquilo dali já não era nem tanto, é... Pela mentalidade deles,

mas era daquilo que eles sofreram lá e foram passando pros outros que tinha

que ser assim (Entrevista do autor com João de Almeida, Guarapari, 2014).

Narrativa parecida foi apresentada por seu Emílio. Ele contou que, na sua juventude,

trabalhava tanto no terreno de sua família, com cultivo de subsistência, e em outras

localidades do interior do município, como Rio Calçado e Barro Branco, para a produção de

café à meia. Segundo o ancião de Jabaraí, suas filhas também trabalhavam com ele, e a sua

família era conhecida pela realização de serviços difíceis.

Nós começemos a trabaiá na roça com oito ano, as minhas fia também

começaro a trabalhar com oito ano. Trabalhava no negócio de... Mas elas

roçava, elas derrubava, elas pintava e bordava comigo! Rapaz, fazia tudo!

Trabalhava fora. Nóis num tinha serviço ruim pra nóis, não! Nosso nome

era o povo do arranque! Nosso nome mesmo, era o povo do arranque. Todo

o serviço encravado eles, eles tava chamando nóis (Entrevista do autor com

Emílio Borges de Almeida, Guarapari, 2015).

A diária e a meação são relações de trabalho hierárquicas, em que há um patrão e um

empregado, que os membros da comunidade de Alto Iguape mantinham principalmente com

os descendentes de imigrantes de italianos da área rural de Guarapari para a obtenção de

dinheiro, com o qual compravam aquilo que não produziam em suas roças. João de Almeida

observa, porém, que estas relações nunca se davam no sentido contrário, e que os membros

da comunidade nunca a estabeleciam entre si nem com outros negros do entorno. Neste

último caso, era estabelecida outra relação de trabalho: o mutirão, que é coletiva e horizontal.

Presenciei um mutirão realizado nas Goiabas, em abril de 2015. Nessa ocasião,

membros dos dois núcleos da comunidade se reuniram para limpar um dos córregos que

cortam a região e que fornece água principalmente para a casa de Manoel Adilson e Celina.

Devido à seca que se abateu sobre o Espírito Santo nesse verão, as fontes de água da

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comunidade tiveram seu volume drasticamente reduzido, e todos os córregos que elas

alimentam praticamente secaram. O objetivo desse mutirão foi retirar o barro e o húmus que

se acumulou sobre a superfície do referido curso d’água, para facilitar a queda da fina lâmina

do líquido que resistia a seca. Foi muito interessante observar a divisão sexual do trabalho

realizada nesse mutirão. Enquanto as mulheres ficaram reunidas na casa de Manoel Adilson

e Celina, e com ela prepararam o almoço, os homens, junto com Manoel Adilson, se

dirigiram ao córrego para trabalhar na sua limpeza.

Outra atividade econômica outrora desenvolvida pelos membros da comunidade de Alto

Iguape é a pesca e a cata de mariscos, realizada no litoral de Guarapari. Como indiquei acima, essa

atividade era complementar para aqueles que realizavam atividades agrícolas nas Goiabas, mas se

constituiu na principal ocupação de alguns membros do núcleo de Jabaraí. De acordo com

Adriano, estes últimos foram introduzidos à pesca em decorrência de relações estabelecidas com

membros de famílias de pescadores de Perocão, como os Cristóvão e os Albertino, relações essas

que inclusive fomentaram casamentos entre as famílias de Jabaraí e as de Perocão.

Inicialmente, os membros que desceram das Goiabas conciliaram as atividades agrícolas

com a pesca, até que a maior rentabilidade da segunda ocupação fez com que alguns deles se

dedicassem exclusivamente a ela, como foi o caso de Antônio Mendes da Vitória, filho de José

Mendes da Vitória e Maria Santana Mendes, que morreu em um naufrágio em alto mar enquanto

pescava. Adriano lembrou que, quando os membros da comunidade que permaneceram nas

Goiabas desciam para pescar e catar mariscos, era comum que eles se juntassem com os

membros do núcleo de Jabaraí, num movimento chamado por eles de “ajuntamento”. Então, eles

iam juntos para as pedras da Praia do Morro pescar e catar mariscos e eram abrigados no final

do dia por José Mendes da Vitória e Maria Santana Mendes. Seu Emílio e João de Almeida já

tinham me contado que, quando ainda moravam nas Goiabas, desciam a pé para pescar e catar

mariscos no litoral e que dormiam na praia quando isso acontecia, o que destoa dos relatos de

Adriano em relação ao abrigo fornecido por seu núcleo familiar, mas corrobora sua narrativa da

prática da pesca pelos membros da comunidade.

3. Práticas religiosas e espirituais na comunidade de Alto Iguape

Pude observar que os membros da comunidade quilombola de Alto Iguape de todas as

gerações e em ambos os núcleos onde estou pesquisando são bastante religiosos. Em sua maioria,

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eles professam o catolicismo em sua vertente popular (FREYRE, 2006), pois os sujeitos de

minha pesquisa de mestrado veem Deus e os santos praticamente como membros da família, se

sentindo próximos deles e por eles amados. Além disso, o catolicismo popular praticado por

esses sujeitos é também negro, o que se vê pela centralidade da devoção a São Benedito.

São Benedito é um santo negro, nascido na vila de São Fratelo, na Sicília, e filho de

africanos etíopes escravizados que foram vendidos naquela ilha italiana. Tendo sido liberto

junto com seus pais, serviu como religioso em conventos de Palermo, também na Sicília,

nos quais exercia atividades de faxineiro e cozinheiro. Devido à sua ascendência africana e

à sua condição inicial de escravizado, São Benedito é bastante cultuado pelos negros

brasileiros. No Espírito Santo existe a narrativa segundo a qual o navio Palermo, que trazia

africanos escravizados para a então capitania, passou por uma violenta tempestade quando

estava próximo da costa e naufragou. Os negros, antes do naufrágio, se agarraram ao mastro

do navio pedindo a proteção de São Benedito, conseguiram milagrosamente chegar vivos

em terra e prometeram celebrar anualmente festas em homenagem ao santo.

Tais festas, na região litorânea do Espírito Santo, entre os municípios de Linhares e

de Guarapari são chamadas de congo, devido ao nome do estilo de música que é nelas tocado,

ou tambor, em referência ao principal dos instrumentos utilizados pelas bandas de congo4.

O ponto alto das festas realizadas em honra a São Benedito é a fincada do mastro, no qual

uma longa estaca de madeira com a bandeira do santo nela hasteada é fincada no chão. A

fincada do mastro é uma referência ao naufrágio do navio Palermo e ao milagre que

acreditam ter garantido a sobrevivência daqueles que o ocupavam.

Na primeira vez que estive nas Goiabas, observei que na sala da casa de seu João havia

na parede uma prateleira em que, ao lado de dois troféus de futebol, repousavam um crucifixo

com a imagem de Cristo, uma imagem de São Benedito, outra de Nossa Senhora da Penha e

dois pequenos oratórios. Quando questionado se era devoto de São Benedito, seu João

respondeu que “São Benedito é muito querido meu” e que “São Benedito toda a vida foi meu

colega. Toda a vida eu fui puxa-saco dele”. Então ele lembrou do tempo em que “brincava

4 A gama de instrumentos de congo varia de acordo com município em que ele é praticado. Em Guarapari,

além dos tambores, feitos basicamente de barris nos quais são fixados os couros que são percutidos, são

utilizados também ganzás, que diferem das casacas típicas do congo de Vila Velha, de Cariacica e de Serra por

não possuir uma cabeça esculpida em seu topo nem um relevo que simula a vestimenta homônima ao redor de

suas ranhuras, chocalhos, chocalhos de contas, caixa e apito. Esses dois últimos instrumentos são de uso

exclusivo dos capitães das bandas, e demarcam sua autoridade, pois são utilizados respectivamente para ditar

o ritmo dos demais instrumentos e para dar fim a cada jongo.

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tambor a noite inteira”, e afirmou que os jongos5 que mais gostava diziam o seguinte: “São

Benedito, meu amor, foi embora e me deixou” e “São Benedito, meu pai, nosso congo já vai”.

Isso demonstra tanto o caráter popular quanto o colorido negro de sua religiosidade.

A proximidade com São Benedito também aparece na narrativa da filha de seu João

em relação à escolha de seu nome. Benedita contou que sempre afirmaram a ela que o santo

homônimo era seu padrinho, pois sua mãe passou muito mal quando estava para dá-la à luz

e o parto durou seis dias. Somente depois que sua avó adotiva, que era a parteira, fez uma

promessa a São Benedito é que a menina nasceu sem complicações para si e para a mãe. É

interessante que a mãe de Benedita possuía o mesmo nome que o escolhido para sua filha, e

que Benedito e sua variante feminina, depois de João, é o nome que mais se repete entre os

membros da comunidade quilombola de Alto Iguape.

Os membros do núcleo das Goiabas da comunidade de Alto Iguape frequentam a igreja

católica de Buenos Aires. Essa igreja tem forte presença de descendentes de imigrantes italianos,

tanto que logo após a sua porta principal, à direita de quem entra no templo, há uma fotografia

emoldurada que retrata o centro de um sacrário, em destaque, e em que se lê a seguinte legenda

escrita em italiano: “Miracolo Eucaristico ‘L’Ostia convertita in Carne...’”. Ainda assim, Paulino

e sua irmã Elielza Rangel Santana relataram que seus pais haviam trabalhado em uma das reformas

da igreja, e que seus antepassados também participaram de sua fundação.

Os membros dos dois núcleos da comunidade quilombola em que realizo a pesquisa

também praticam o congo. Pude observar isso na festa da Consciência Negra, organizada

pela ARQUI no Campo do Manoel, às margens da BR 101, próximo à entrada de Iguape,

em 22 de novembro de 2014. Tal festa contou com a participação de vários membros do

núcleo de Jabaraí e de Paulino, do núcleo das Goiabas, apesar de ser realizada próximo a

este último. A festa se iniciou com uma partida de futebol entre o time da comunidade

quilombola e o time da Associação Escolinha Rural de Futebol de Guarapari (AERF)6.

Depois do jogo é que se iniciou o congo, dirigido pelo mestre Tião, do Trevo de Guarapari,

que cedeu os instrumentos tocados pelos membros da comunidade.

Achei muito interessante que quase todos os membros da família de seu Emílio tocam

todos os instrumentos do congo e se revezavam neles. Chamou-me atenção também o fato

5 Em Guarapari, jongo é o nome que se dá aos versos cantados, enquanto congo é a denominação da festa, da

música ou mesmo do tambor. Não confundir com jongo ou jongo do Sudeste, que são outras manifestações

culturais afro-brasileiras. 6 A AERF foi uma das agências que participou do processo de reconhecimento da comunidade quilombola de

Alto Iguape. Seu presidente, Reginaldo Lucas Loureiro, é coordenador de projetos da ARQUI.

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de dona Alicia, aos 94 anos e sentindo dores, em decorrência do tratamento que faz contra o

câncer, ter tocado ganzá e dançado o congo. Nesse momento, os jongos eram puxados ora

pelos membros da comunidade, ora pelo mestre Tião. Vale dizer que este puxou um jongo

que afirmou ter composto em homenagem à comunidade quilombola, que diz: “Comunidade,

digo muito obrigado. Quando precisar de nós, mande o pequeno recado”.

Seu Emílio havia me contado anteriormente que, quando moravam nas Goiabas, eles

tinham todos os instrumentos de uma banda de congo, e que os tambores foram feitos por

eles mesmos, com barris que compraram em Vila Velha. O ancião de Jabaraí lembrou que,

com esses instrumentos, ele e seus parentes brincavam o congo em várias localidades do

interior de Guarapari. Porém, antes de mudar com dona Alicia para Jabaraí, há uns 15 anos,

ele vendeu os instrumentos.

Seu Emílio e João de Almeida afirmaram que o congo é um traço distintivo da cultura

da comunidade quilombola, ou como um sinal diacrítico, utilizando o conceito de Fredrik

Barth (1998). Eles contaram que, apesar de terem antigamente uma banda nas Goiabas, eles

sempre participavam das festas de São Benedito em Alto Rio Calçado7, junto com grupos de

outras localidades, em vez de fincarem o mastro ali. O presidente da ARQUI faz a leitura de

que a prática do congo se enfraqueceu no interior de Guarapari, devido ao surgimento de

outros produtos culturais.

Ali [em Alto Rio Calçado] já foi um point de todas as festas, era muita

gente, cara! Você olhava aquele morrinho ali, era de baixo em cima.

Quando se falava “festa de São Benedito”, lotava! Aí, vem assim... É mais

ou menos assim, [...] também a tecnologia foi aumentando, foi aumentando

as balada, aquele monte de coisa, e aí foi mudando (Entrevista do autor

com João de Almeida, Guarapari, 2015).

Ainda assim, de acordo com João de Almeida, o congo tem sido resgatado por ser

mais divulgado pela mídia ultimamente. É interessante que, na visão dele, o congo como um

demarcador da identidade quilombola é algo essencial e até mesmo imutável. Por isso, um

de seus anseios enquanto presidente da ARQUI é a aquisição de novos instrumentos para a

comunidade quilombola de Alto Iguape.

Apesar de a maior parte dos membros da comunidade de Alto Iguape serem católicos,

dois núcleos familiares de Jabaraí aderiram ao protestantismo, o grupo de Orestes e Maria

7 Localidade da região montanhosa de Guarapari com forte presença de negros e de descendentes de imigrantes alemães.

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da Penha fazem parte da igreja cristã Maranata, e o de Jaci Mendes da Vitória e Maria Helena

Barcelos são da igreja Adventista. Além disso, Adriano contou que seus tios Antônio e

Benedito Mendes da Vitória praticaram o candomblé, apesar deste último, que ainda está

vivo, não comentar sobre isso com seus familiares. Tal religião afro-brasileira, segundo

Adriano, ainda é praticada por Marta Borges de Almeida, filha de seu Emílio e dona Alicia.

Adriano levantou a hipótese de que o candomblé era praticado nas Goiabas por seus

antepassados, mas que a religião foi abandonada pela maioria deles a partir do contato que

tiveram com os descendentes de imigrantes italianos na igreja católica de Buenos Aires, para

serem mais aceitos por eles em sua congregação.

Imagino que na época ainda existia essa coisa do candomblé! Deve ter

existido... Eu não tenho relatos, eu não tô te dizendo de relatos, tá? É uma

hipótese. Então, eu acredito que essa, esse contato com a comunidade de

Buenos Aires fez com que a comuni... os membros da comunidade

quilombola de Alto Iguape, em algum momento, em algum período, é,

tivessem esse movimento de negação da própria identidade pra assumir a

identidade com a qual eles seriam reconhecidos naquele núcleo de Buenos

Aires (Entrevista do autor com Adriano Albertino da Vitória, Vitória, 2015).

A narrativa de Adriano lembra a perspectiva de Max Gluckman (1987), segundo a

qual um grupo social, no contato com outros grupos, pode abandonar costumes

endoculturais, que são elementos da cultura do próprio grupo, e adotar costumes

exoculturais, que são elementos da cultura do grupo com o qual interagem. Nesse caso, o

candomblé pode ter sido um costume endocultural abandonado pelos membros da

comunidade de Alto Iguape, e o catolicismo um costume exocultural por eles adotado na

interação com os descendentes de imigrantes italianos de Buenos Aires. Ainda assim, o

colorido negro é presente no catolicismo praticado por eles, como demonstrei acima. Ainda

de acordo com Adriano, outra prática espiritual que existiu na comunidade de Alto Iguape

foi o benzimento. Tal prática, que segundo Lidiane Alves da Cunha (2012, p. 4) é típica de

“mulheres que se dizem católicas, mas recebem influência de crenças espíritas, como as

religiões afro-brasileiras e dos rituais indígenas”, foi mantido por Maria Santana Mendes.

Considerações Finais

Esta comunicação abordou alguns dos elementos que foram e que são utilizados pelos

membros da comunidade quilombola de Alto Iguape como fundamentos de sua identidade.

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Tais elementos foram inclusive mobilizados pelos sujeitos da pesquisa no processo de

reconhecimento da comunidade pela Fundação Cultural Palmares. Apesar de trabalhar com

parte de meu referencial teórico, não propus aqui uma reflexão teórica sobre minha pesquisa

e me detive na descrição etnográfica do grupo em que realizo minha pesquisa. Os limites

desse trabalho justificam minha opção.

Referências

AMARAL F., José. Perocão, uma das aldeias mais antigas do Espírito Santo. Blog

Cultura Maratimba. Guarapari, 13 jul. 2009. Disponível em: <http://culturamaratimba.

blogspot.com.br/2009/07/perocao-uma-das-aldeias-mais-antigas-do.html>. Acesso em:

Acesso em: 17 nov. 2014.

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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO: TERRITÓRIO DE PRODUÇÃO

DE SUBJETIVIDADES NO NORTE DO ES

Sandro Nandolpho CEUNES/UFES

Resumo: O avanço do agronegócio, na Região Norte do ES, tem impactado profundamente as

comunidades do campo, promovendo uma dupla expropriação, a da terra e a das subjetividades. A

escola, sob a perspectiva da Educação do Campo, tem sido um território de resistência e produção

de subjetividades que se opõe à lógica de mercado e sua lógica consumista. Nesta perspectiva,

buscamos investigar a Licenciatura enquanto território estratégico de formação e produção de

subjetividades e seus desdobramentos nos espaços escolares e respectivas comunidades. Na pesquisa

realizada buscamos um diálogo teórico com José de Sousa Martins e sua sociologia crítica sobre a

relação do capitalismo com o campo; e Slavoj Zizek e suas análises sobre a produção de

subjetividades na atual configuração do capitalismo. Os métodos utilizados foram o Estudo de Caso

e o Método Analítico de investigação da psique. As conclusões parciais apontam para a Licenciatura

em Educação do Campo como território privilegiado de produção de subjetividades, em que a lógica

do campesinato vem ocupando espaço, forçando uma reconfiguração da instituição universitária.

Palavras-chave: educação do campo; subjetividade; território.

Abstract: The advance of agribusiness in Northern of Espírito Santo, has deeply impacted

countryside communities, promoting a double expropriation, of the land and of the subjectivities.

The school from the perspective of Rural Education has been an area of strength and production of

subjectivities that opposes itself to market logic and its consumerist logic. In this perspective we seek

to investigate the Licenciature as a strategic territory for training and production of subjectivities and

its developments in the school and their community spaces. In the study we seek a theoretical

dialogue with José de Sousa Martins and his critical sociology of capitalism's relationship to the

countryside and Slavoj Zizek and his analysis of the production of subjectivities in the current

configuration of capitalism. The methods used here were the Case Study and Analytical Method of

the psyche investigation. Partial conclusions point to a Licenciature in Rural Education, as a

privileged territory of subjectivities production, in which the logic of the peasantry is taking up space,

forcing a reconfiguration of the university.

Keywords: rural education; subjectivity; territory.

Por meio da Lei nº 601 de 1850, a terra tornou-se uma mercadoria cara, acessível

somente a uma pequena parte da população brasileira com condições financeiras para

adquiri-la, excluindo da possibilidade de aquisição ex-escravos, imigrantes e trabalhadores

livres. A estes, desprovidos de condições financeiras, não havia outra alternativa se não

trabalhar em terras alheias para um dia, eventualmente, quem sabe, trabalhar em sua própria

terra. Esta conjuntura histórica, levou o sociólogo José de Sousa Martins, em seu livro “O

cativeiro da Terra” a afirmar que “[...] o país inventou a fórmula simples de coerção laboral

do homem livre: se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser escravo, se o trabalho fosse

livre, a terra tinha que ser escrava” (MARTINS, 2013, p. 10).

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Capitaneada pela economia de exportação e pelo latifúndio, a transição para o

capitalismo foi marcada pela institucionalização da propriedade da terra como propriedade

territorial capitalista, acasalando terra e Capital, promovendo uma profunda concentração de

renda e um aumento do volume da reprodução ampliada do Capital, em outras palavras,

tornou a terra cativa (MARTINS, 2013).

Com o fim da escravidão, tanto negros quanto índios aculturados e mestiços sofreram

um intenso processo de exclusão não só da terra, como das novas configurações do trabalho

livre, avolumando um contingente considerável de desvalidos e deserdados, que

perambulavam por todos os cantos das grandes e pequenas cidades. Nesta mesma época, o

sistema de colonato em São Paulo, a peonagem e o regime de barracão na economia da

borracha na Amazônia representam, segundo Martins (2013), os marcos de uma lógica

híbrida que faz com que a economia funcione como economia capitalista, com bases em uma

sociedade ainda organizada em relações sociais e valores pré-modernos.

Uma forma de servidão que persiste no Brasil e representa a incorporação

de mecanismos de acumulação primitiva na formação e disseminação da

grande e até moderna empresa agrícola, extrativa e pecuária. Em ambos os

casos, o próprio empresário criou inventivamente ajustamentos

econômicos que lhe permitiam ganhar como capitalista e pagar como

senhor de escravos [...] (MARTINS, 2013, p 37).

O difícil acesso a posse da terra, o avanço dos grandes latifúndios e a inserção do

trabalho livre como substituto do trabalho escravo, engendrou no Brasil, sob a lógica

capitalista, variadas formas de relações não capitalistas de produção no campo.

O Capitalismo na verdade desenraiza e brutaliza a todos, exclui a todos.

Na sociedade capitalista essa é uma regra estruturante: todos nós, em vários

momentos de nossa vida, e de diferentes modos, dolorosos ou não, fomos

desenraizados e excluídos. É própria dessa lógica de exclusão, a inclusão.

A sociedade capitalista, desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro

modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica. O

problema está justamente nesta inclusão (MARTINS, 1997, p. 32).

Neste complexo processo de desenraizamento, exclusão e inclusão, existem dois

movimentos que merecem nossa atenção, por configurarem aspectos relevantes que

fundamentaram nossa pesquisa sobre a produção social da subjetividade, envolvendo o Curso

de Licenciatura em Educação do Campo, no Centro Universitário Norte do Espírito Santo, na

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Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto território de produção de subjetividade. O

primeiro movimento foi a imposição da dinâmica produtiva da agricultura capitalista à

atividade produtiva familiar campesina, configurada na sua versão moderna pelo agronegócio.

O segundo movimento, corresponde ao processo de estigmatização do homem do campo e da

cultura campesina frente à necessidade de modernização da estrutura agrária do país.

Segundo Martins (2013), a tendência do Capital é tomar conta progressivamente de

todos os ramos e setores da produção no campo e na cidade, na agricultura e na indústria.

Ao longo do século XX, a lógica capitalista que encampou a produção agrícola brasileira,

excluiu e incorporou de variadas formas, não só os imigrantes europeus como também o

contingente de negros e mestiços e índios, do trabalho no campo.

A intensificação da subordinação do campo à indústria e a cidade, complexificou as

relações de produção no campo, aumentando a expropriação e a exclusão não só da terra como

do trabalho. Tal configuração da dinâmica agrária brasileira traz uma marca histórica nos

conflitos pela terra no Brasil, frente ao processo de concentração fundiária, que é a violência.

O Agronegócio pode ser definido como um conjunto de empresas capitalistas que

direta ou indiretamente estão relacionadas com os processos de produção, beneficiamento,

industrialização e comercialização de produtos e subprodutos de origem agrícola, pecuária,

florestal e agroextrativista, que são comercializadas com maior ou menor grau de

beneficiamento (CARVALHO, 2005).

Nos últimos anos, com o avanço do agronegócio, a região norte do Espírito Santo

vem sendo tomada pela monocultura de cana-de-açúcar e pelo cultivo de eucalipto. Além de

expropriar da terra inúmeras comunidades do campo, o agronegócio também vem

incorporando em sua produção pequenos agricultores, que abandonam a produção familiar

autossustentável, para adotar a produção monocultora voltada para o mercado.

O avanço do Agronegócio, configurado por exemplo, pela Fibria, tem impactado

fortemente os povos das águas, das terras e das florestas, como por exemplo, as comunidades

quilombolas situados nos municípios vizinhos de São Mateus e Conceição da Barra. Tais

comunidades estão cercadas de eucaliptos por todos os lados, sendo que a cultura do eucalipto e

a dinâmica do Agronegócio, os impede de reproduzir as suas tradições, como também os

restringem economicamente a trabalhar por um salário reduzido em relação aos trabalhadores

brancos nas fazendas ou no “cato do facho” – coleta de gravetos para a produção de carvão.

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Neste cenário socio-histórico e cultural, de confronto de lógicas, de projetos de

comunidade e sociedade, que buscamos desenvolver uma pesquisa sobre as formas de

expropriação da terra e seus impactos na produção da social da subjetividade.

Ao operar no território do mercado, o agronegócio investe na criminalização dos

movimentos sociais do campo e sua luta pela terra, pressionando o Estado para impedir a

espacialização deste tipo de luta popular. O controle do território e das formas de acesso a terra

é o objetivo da mercantilização da Reforma Agrária. Nesta disputa de território, o cenário do

campo caracteriza-se pela complexidade e variedade não só de embate e contestação à

capitalização do campo, mas também nas suas relações com o mesmo (IANNI, 1985).

O agronegócio ancorado pela mídia e pelo discurso de intelectuais vinculados às causas

do Capital, vende a ideia de que seu modelo de desenvolvimento é a única via possível,

organizando as relações sociais, as formas de organização do trabalho e do território como se

fossem da mesma natureza, comparando as produtividades do agronegócio e da agricultura

familiar. Como lógica hegemônica, o agronegócio, busca cooptar a agricultura camponesa para

defender o seu modelo de desenvolvimento, eliminando as diferenças sob a égide do mercado e

demarcando uma agenda política que tenha o negócio como referência.

Mas uma característica essencial da sociedade atual é ver o mercado se

impor por toda a parte. As formas pré-capitalistas de auto-subsistência, de

autoconsumação, são cada vez mais marginalizados. Os camponeses são

ora expulsos de suas terras para se tornarem proletários, consumidores de

produtos de mercado, ora obrigados a se tornarem eles mesmos produtores

para esse mercado (assim, seguidores, também consumidores de outras

mercadorias) (GOUNET, 2000, p. 95).

No imaginário nacional o avanço do campo mercantilizado, impacta nas subjetividades

não só do brasileiro como também na do homem do campo, nos últimos anos observa-se um

movimento de transformação do caipira em consumidor. O estereótipo do caipira sobre o

homem do campo contribuiu de forma significativa para o avanço do agronegócio e a

consequente lógica de mercado que opera em busca de seu sujeito ideal, o consumidor.

No ano de 1914 Monteiro Lobato criou um personagem bastante representativo do

discurso moderno, surgido no alvorecer da república, sobre o homem do campo, seu nome

era Jeca Tatu. Configurando a imagem estereotipada do homem do campo, pelo homem

urbano, moderno e civilizado, este personagem caracterizando o caboclo brasileiro é

definido por Monteiro Lobato como uma:

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[...] espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas

que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o

progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização

da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, como o seu cachorro, o seu

pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço,

mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-

se (LOBATO, 1994, p. 164).

Segundo Alves Filho (2003), o personagem Jeca Tatu passou por algumas

transformações identitárias no pensamento de Monteiro Lobato, resultante das experiências

socioculturais vivenciadas pelo autor. No entanto, foi a primeira identidade que mais se fixou

no imaginário social como representativa da identidade do homem do campo – foi a do

caipira: um personagem soturno, um tipo racial inferior, degenerado, produto de má eugenia,

sem posse, sem tradição familiar e analfabeto, um agregado preguiçoso e avesso à civilização

responsável pelo atraso brasileiro que predominou entre 1914 e 1918.

Tal imagem do caipira foi tecida em nosso imaginário social em torno do estereótipo

da preguiça, uma representação ideológica fundamentada nas teorias racistas em voga na

época, comum ao pensamento da classe latifundiária vinculada aos setores exportadores.

Partindo do estereótipo da primeira caracterização do personagem feita por Monteiro

Lobato, a sociedade brasileira não só racionalizaria as desigualdades socioeconômicas

existentes no país, como também representariam ideologicamente as classes subalternas a

partir do mito da bondade e ingenuidade, forjando uma identidade para o homem do campo,

a partir do moderno e do urbano (ALVES FILHO, 2003).

Segundo Martins (1990), o termo caipira constitui um sujeito que vive longe da

cidade, é rústico, matuto, atrasado e preguiçoso, tal alcunha seria fortemente demarcada na

perspectiva ideológica das classes dominantes que concebem o trabalhador rural e o mundo

rural como tradicional. No entanto, o termo caipira também designa o trabalhador rural não

assalariado, destituído da propriedade da terra, conhecido, até 1950, como agregado, colono,

tabaréu, matuto, morador de engenho e sitiante. Após 1950, caipira e camponês passaram a

ser sinônimos, designando a situação de classe dos trabalhadores rurais, marcando a negação

de seu reconhecimento como elementos contingentes do senhor de terras, como era denotado

nos termos agregado, morador de engenho e sitiantes.

A perspectiva pejorativa que constitui o termo caipira para Martins (1986) estaria

vinculada ao estabelecimento da cultura agrícola tradicional, com o caipira como ponto de

apoio de efetivação do mundo capitalista e urbano no país. O caipira estaria no centro de

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uma ligação entre o urbano e o rural, pautada na relação de dependência do primeiro em

relação ao segundo, tendo em vista que o mundo rural se configurando como mercado

consumidor e comprador de mercadorias urbanas e também como fornecedor de produtos

de preços baixos para a alimentação e o abastecimento dos grandes centros urbanos.

Neste sentido, a sociedade urbana brasileira estabeleceria um vínculo unilateral de

integração com o mundo rural tradicional, representando-o de forma subordinada a ela e não

reconhecendo a sua própria dependência em relação ao estabelecimento agrícola tradicional.

O caipira seria uma construção ideológica, produzida pelo mundo urbano em relação ao

mundo rural, que remeteria a ideia de baixa produtividade para justificar a submissão da

sociedade agrária ao mercado, aos estilos de vida e as concepções urbanas (MARTINS, 1986).

O avanço no campo do agronegócio tem levado a agricultura campesina e familiar a

se integrarem á lógica produtiva do mercado. O processo de mercantilização não abrange

somente a esfera tecnológica, englobam também as esferas da cultura, da imagem e do signo.

[...] integram-se plenamente a estas estruturas nacionais de mercado,

transformando não só sua base técnica, mas sobretudo o círculo em que se

reproduzem e metamorfoseiam-se numa nova categoria social. De

camponeses, tornam-se agricultores profissionais. Aquilo que antes era

um modo de vida converte-se numa profissão, numa forma de trabalho. O

mercado adquire a fisionomia impessoal com que se apresenta aos

produtores numa sociedade capitalista. Os laços comunitários perdem seu

atributo de condição básica para a reprodução material. Os códigos sociais

partilhados não possuem mais as determinações locais, por onde a conduta

dos indivíduos se pautava pelas relações de pessoa a pessoa. Da mesma

forma, a inserção do agricultor na divisão do trabalho corresponde à

maneira universal como os indivíduos se socializam na sociedade

burguesa: a competição e a eficiência convertem-se em normas e condições

da reprodução social (ABRAMOVAY, 1994 p. 126-7).

A revolução das telecomunicações situa-se, de forma estratégica, como produtoras

de imagens, signos, visões de mundo, estilos de vida e subjetividades, na legitimação do

agronegócio como caminho para o desenvolvimento econômico, social e cultural do campo.

Outra perspectiva, aberta por este processo, é o constante movimento de sedução às

possibilidades de consumo, acesso e fruição dos mais variados bens de consumo, tornados

essenciais para a felicidade do indivíduo.

Algumas pesquisas e estudos têm sido realizados no Brasil sobre a inserção da lógica

de consumo no campo, dentre eles destacamos alguns que tratam da incorporação desta

lógica pela juventude camponesa, em algumas comunidades rurais brasileiras.

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Menasche e Schmitz (2007), Gaviria e Pezzi (2007), Carneiro (1998), Castro (2005),

apontam que boa parte dos jovens pesquisados se dedicam a ocupações não--agrícolas, pois

uma renda autônoma em relação a unidade de produção familiar permite o acesso aos bens

de consumo, tal renda individualizada representaria a oportunidade de adquirir bens

valorizados por pessoas da mesma faixa etária, ao mesmo tempo que possibilitaria a

incorporação de padrões estéticos que o deslocaria para uma não-estigmatização de sua

condição de colono. Os jovens pesquisados, ao mesmo tempo em que almejam bens urbanos,

afirmam o campo como o lugar de moradia desejado, como um lugar de calma, segurança,

alimentos saudáveis, valorizando também seu pertencimento aos laços de parentesco e

sociais que o ligam à família e à comunidade rural.

Partindo da lógica de mercado a “[...] maneira como a sociedade atual molda seus

membros é ditada, primeiro e acima de tudo, pelo dever de desempenhar o papel de

consumidor” (BAUMAN, 1999, p. 87). A lógica de mercado tem atingido o campo através

do avanço do agronegócio e a as novas tecnologias de informação associadas a ela. Uma de

suas estratégias busca atingir o plano das subjetividades, dos desejos, dos afetos,

convertendo-as à sua lógica. Os bens de consumo são vinculados, no imaginário produzido

pela mídia, como promotores ou facilitadores de vínculos pessoais, oferecendo status,

inclusão social, amizade e amor.

A conjugação do melhor dos dois mundos, por um lado a tradição representado pela

família, localidade e cultura de origem, por outro a modernidade expressa na realização de

um projeto autônomo, possibilitada pelo trânsito entre o rural e o urbano, tem sido

simbolicamente representada pela motocicleta, bem de consumo, carregada de significados

referentes ao estilo de vida urbano. A motocicleta como objeto de desejo, comumente

adquiridos pelos jovens rurais, os possibilita uma mobilidade material e simbólica entre o

que há de melhor em ambos os mundos.

A fuga do estigma de caipira, traz em si, uma busca por outras referências identitárias,

que visam atender a necessidade de uma auto-imagem calcada numa estética urbana e seu

respectivo estilo de vida. A necessidade de uma auto-imagem apreciada, que não gere mal

estar, opera um direcionamento ao desejo em satisfazê-la, o desejo, por sua vez, mobiliza

mudanças na constituição da subjetividade. A questão que se coloca, é o agenciamento do

desejo pela lógica do consumo, que se torna não só intermediadora da satisfação, da realização

e do bem estar, como também reguladora da própria subjetividade, jogando-a também para a

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esfera do mercado. Assim, a “subjetividade” do sujeito, e a maior parte daquilo que essa

subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria

se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável (BAUMAN, 2008, p. 20).

Os bens de consumo, além de atender as necessidades materiais, apresentam sentidos

simbólicos, que estabelecem e mantém significados e relações sociais que configuram

identidades e construção de realidades. O consumo constitui-se como ritual cujo propósito é

dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos sendo um comunicador que fala de

quem consome, de sua família, de sua localidade. Ao mesmo tempo que são necessários bens

e serviços que saciem a fome e a sede e que forneçam abrigos, também o são para mediar as

relações sociais (BARBOSA; CAMPBELL, 2006).

Partindo da dupla expropriação operada pelo Capital e sua lógica de mercado, a

expropriação da terra e das subjetividades, buscamos investigar os povos do campo,

compreendendo-os como possuidores de seus próprios códigos de conhecimento e de sua

própria concepção de destino, que são tão legítimos quanto os códigos e concepções adotadas

por setores da sociedade vinculados à lógica do Capital, ao mercado e ao agronegócio.

A aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo

representa um marco, nas políticas voltadas para a educação e as escolas do campo. Neste

sentido, a Licenciatura da Educação do Campo, no Centro Universitário Norte do Espírito Santo,

vincula-se a uma proposta de educação que esteja no campo e também seja do campo, ou seja,

uma educação como prática social, que reconhece e busca segundo Caldart (2012):

[...] a riqueza social e humana da diversidade de seus sujeitos: formas de

trabalho, raízes e produções culturais, formas de luta, de resistência de

organização, de compreensão política, de modo de vida [...]. Seus desafios

atuais continuam práticos, não se resolvendo no plano apenas da disputa

teórica. Contudo, exatamente porque trata de práticas e de lutas contra-

hegêmonicas, ela exige teoria, e exige cada vez mais rigor de análise da

realidade concreta [...] (p. 262).

O Curso de Licenciatura em Educação do Campo, resultado do processo de construção

promovido historicamente pelo movimento de educação do Campo e de articulação com os

sujeitos do campo, insere-se no Centro Universitário Norte do Espírito Santo (CEUNES), sendo

um dos centros da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e está localizado em São

Mateus, no norte do Estado. Buscando atender às necessidades educacionais da região norte do

Espírito Santo, fortaleceu-se as parcerias e a participação das secretarias municipais de educação

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e organizações sociais do campo: Movimento dos trabalhadores Rurais - MST, Movimento dos

pequenos agricultores - MPA, Regional das Associações dos Centros Familiares em Formação

em Alternância do Espírito Santo - RACEFFAES, Comunidades Quilombolas e Indígenas,

Colônia de Pescadores (UFES/CEUNES, 2012).

Objetivando a formação de educadores do campo, para atender às realidades culturais

e sociais específica dos povos do campo, e diagnósticos sobre o Ensino Fundamental e

Médio das comunidades do campo da região a serem beneficiadas, o projeto pedagógico do

curso assinala que:

A formação para o Educador do Campo deve também garantir conhecimentos

para dialogar com outras áreas visando a construção de um processo educativo

articulado aos interesses dos povos do campo. Espera-se que os educadores

sejam conhecedores dos movimentos sociais e dos debates promovidos no

campo, para atuarem em práticas educativas escolares e não escolares

comprometidas com a posse e uso sustentável da terra e a interação do meio

comunitário com o escolar (através de pesquisas, estudos de campo,

entrevistas na comunidade, etc.) (UFES/CEUNES, 2012, p. 93).

O curso proposto tem por finalidade formar licenciados em Educação do Campo, dentro

da proposta dos princípios e do regime de Alternância, com habilitação em Ciências Humanas e

Sociais ou habilitação em Ciências da Natureza, sendo que o estudante deverá optar por uma das

duas habilitações. O curso ocorrerá através de etapas presenciais que serão equivalentes a

semestres de cursos regulares, realizados em regime de alternância entre Tempo/Espaço

Universidade e Tempo/Espaço Comunidade, permitindo o acesso e a permanência nesta

Licenciatura dos professores em exercício, além de não condicionar o ingresso de jovens e adultos

na educação superior à alternativa de deixarem de viver no campo (UFES/CEUNES, 2012).

A organização do Curso de Licenciatura em Educação do Campo dentro do regime e dos

princípios da Pedagogia da Alternância, associada ao protagonismo dos movimentos sociais na

sua construção e implementação, insere na universidade outra forma de se pensar a formação

superior, que leve em consideração um dos pilares da Educação do Campo, que é, como aponta

Cladart (2004), o direito da população de ser educada no lugar onde vive, pensada desde este

lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais,

com uma preocupação política e pedagógica com o jeito de educar estes sujeitos.

A lógica em que a Licenciatura em Educação do Campo está assentada vincula-se

em uma subjetividade que opera a partir de alguns marcos, que deflagram estranhamentos à

atual estrutura organizacional universitária, que produziu, segundo Chauí (2003), uma

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Universidade Operacional, marcada por uma produção do conhecimento não mais pensada

a partir de um projeto social de largo alcance ou no bem estar das pessoas, mas sim em suprir

as necessidades do mercado capitalista. E nesta perspectiva operacional, configura-se no

tripé ensino-pesquisa-extensão, uma lógica individualista e fragmentada na formação e

produção de conhecimento, produzindo e reforçando um tipo de subjetividade alinhada à

lógica de treinamento, mercado e consumo.

Pensar a formação superior a partir de marcos, como por exemplo: alternância e auto-

organização; contrastam com a lógica presente neste modelo de Universidade Operacional,

forçando não só uma repensar organizacional como também as práticas e saberes que

envolvem o ensino, a pesquisa e a extensão, produzindo um campo de subjetividade diverso,

mais enraizado na perspectiva da construção coletiva do conhecimento.

Na alternância o movimento de formação ocorre em tempos e espaços distintos, o

tempo comunidade/universidade, através de um método organizado de forma a valorizar a

troca da experiência da vida, os saberes e práticas das comunidades campesinas com as

teorias e práticas acadêmicas da universidade. Os temas geradores, os planos de estudos, os

processos de sistematização e aprofundamento das questões a serem investigadas nos tempos

e espaços da comunidade, impõem um desafio à lógica organizacional disciplinar que serve

de parâmetro para a organização do tempo universitário. Incorporar o tempo comunidade no

computo das horas de encargo docente, seja nas esferas do ensino, da pesquisa e extensão,

pressupões não só uma regulamentação nos órgãos superiores da universidade, mas também

um processo de subjetivação de uma outra lógica formação, que propõe outras formas de

relação entre ensino, pesquisa e extensão, em que uma está contida na outra e vice-versa.

Dentro da perspectiva da alternância, desenvolve-se o trabalho como princípio

educativo de inserção da realidade, que inclui o trabalho produtivo e o autosserviço, ou seja,

a prestação de serviços nos espaços coletivos. A auto-organização, por sua vez, marca a

influência da construção do coletivo na formação individual, potencializando as ações

coletivas no processo de aprendizado, como também fundamentando e consolidando uma

forma de subjetividade calcada na construção coletiva do conhecimento, da vida, que se

expressa em uma nova ética para novas relações sociais.

A prática de auto-organização enquanto princípio formativo em cursos de formação

superior na universidade, trazida pelos alunos oriundos de escolas e movimentos sociais,

rompe com a prática cotidiana de interação dos alunos, com os espaços que ocupam, no caso

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a universidade, e os sujeitos que lá trabalham. Na lógica universitária operacional, a

organização é hierárquica e individualista, as demandas tendem a ser reduzidas ao

individual, mesmo os espaços em que o coletivo se faz presente, a experiência e os

encaminhamentos tendem a ser individualizados.

Organizando-se em comissões os alunos, na vivência da auto-organização, agilizam

e encaminham as demandas do coletivo, que contemplam, na medida do dialogado e

acordado, as demandas individuais, em um franco exercício de construção coletiva e

solidária de novas lógicas e experiências de subjetivação de valores e práticas formativas. A

auto-organização também impacta na forma como a construção e socialização do

conhecimento é vivenciada, levando toda a potência da ação educativa para os fazeres

discentes, deslocando o centro de poder do indivíduo para o coletivo.

Os resultados parciais da pesquisa apontam que a atual política de governo tem

privilegiado a lógica empresarial da gestão educacional, o que tem reconfigurado a correlação

de forças dentro do Estado e condicionado as políticas públicas educacionais com o corte de

financiamentos, o fechamento de escolas do campo, e um recuo frente ao princípio da alternância

na gestão dos tempos escolares. Uma política que tende a se alinhar e a corroborar com a lógica

mercadológica do agronegócio, incidindo sobre o território escolar, e reforçando uma forma de

subjetividade marcada pelo consumismo. Por outro lado, a criação da Licenciatura em Educação

do Campo, além de um espaço de construção e afirmação de subjetividades, constitui-se em um

território estratégico, na correlação de forças políticas em relação à educação voltada para o

campo. Um território que precisa e está sendo ocupado e reconfigurado a partir de outras lógicas

educacionais, de outras formas de produção de subjetividades.

Neste sentido a Licenciatura em Educação do Campo, como território privilegiado

de produção de subjetividades, em que a lógica do campesinato vem ocupando espaço,

forçando uma reconfiguração da instituição universitária. As práticas e saberes dos povos da

terra, das águas e das florestas constituem fortes elementos produtores de uma subjetividade

não alienada, integrada e enraizada aos ritmos ecológicos da natureza, podendo constituir,

se potencializada para isso, identidades marcadas por uma compreensão mais profunda de

seu pertencimento socioambiental, das relações de força que atravessam tais pertencimentos.

Neste sentido, reconfigurar a universidade a partir dos saberes e práticas materiais e

imateriais dos povos da terra, das águas e das florestas podem potencializar a constituição

de subjetividades de uma outra ordem, diversa daquela proposta pelo lógica de mercado e

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reforçada pela organização universitária operacional, como o possível pode se estabelecer

na forja de sujeitos, cuja a constituição subjetiva e identitária seja ao mesmo tempo,

integradora, combativa e criativa.

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O OFÍCIO DAS PANELEIRAS DE GOIABEIRAS: ENTRE O

DESENVOLVIMENTO E A PRESERVAÇÃO CULTURAL

Tauã Lima Verdan Rangel Bolsista CAPES. Doutorando vinculado ao PPGSD da UFF. Mestre em Ciências Jurídicas e

Sociais pela UFF. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo.

E-mail: [email protected].

Resumo: No Estado do Espírito Santo, as panelas de barro são o tradicional recipiente de moquecas de

peixe e outros frutos do mar, tal como da torta capixaba, iguaria tradicional consumida no período das

festividades da Semana Santa. “Ícones da identidade cultural capixaba, a torta, as moquecas e as panelas

de barro ganharam o mundo e configuram, na literatura gastronômica, ‘a mais brasileira das cozinhas’,

por reunirem e mesclarem elementos das culturas indígena, portuguesa e africana”. É verificável, dessa

maneira, que o crescimento da região trouxe consequências diretas para a atividade desenvolvida,

porquanto desvirtuou a essência cultural do ofício, passando a permeá-lo por traços empresariais,

fomentado, sobremaneira, pelo Município de Vitória/ES, com vistas a estabelecer um circuito turístico

urbano, que acaba suplantando as pequenas artesãs, cujo ofício é desenvolvido em seus quintais e que

recebem um fluxo menor de visitantes e clientes do que aquele que frequenta o galpão da região. Neste

passo, o presente busca analisar o embate entre a preservação do ofício das paneleiras de Goiabeiras e

o conflito existente com o crescimento urbano desenfreado, sobretudo em decorrência das

consequências produzidas pela ampliação das fronteiras sem planejamento.

Palavras-chave: desenvolvimento econômico; paneleiras de Goiabeiras; saberes tradicionais.

Abstract: In the state of Espirito Santo the clay pots are traditional container of fish stew fish and

other seafood, such as the Capixaba pie, traditional delicacy consumed during the period of the

festivities of Holy Week. “Icons of capixaba cultural identity, pie, the fish stew and the clay pots

won the world and configure, the gastronomic literature”, as the most Brazilian of kitchens “for

gather and mix elements of indigenous, portuguse and african cultures”. It is verifiable, thus, that the

region's growth brought direct consequences for the activity performed, because distorted the cultural

essence of the craft, starting to permeate it for business lines, supported by Vitória/ES County, in

order to establish an urban tourist circuit that ends up supplanting the small artisans who developing

the craft in their yards and receiving a lower flow of visitors and customers than that which attends

the shed in the region. In this step, the present it analyzes the conflict between preserving the craft

of Goiabeira's potters and the conflict with the reinless urban growth, as a result of the consequences

produced by the expansion of borders without planning.

Keywords: economic development; potters of Goiabeiras; traditional knowledge.

1. Ponderações inaugurais: a edificação do meio ambiente cultural em consonância

com o entendimento doutrinário

Em sede de comentários introdutórios, cuida salientar que o meio ambiente cultural

é constituído por bens culturais, cuja acepção compreende aqueles que possuem valor

histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, espeleológico, fossilífero, turístico, científico,

refletindo as características de uma determinada sociedade. Ao lado disso, quadra anotar que

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a cultura identifica as sociedades humanas, sendo formada pela história e maciçamente

influenciada pela natureza, como localização geográfica e clima. Assim, o meio ambiente

cultural decorre de uma intensa interação entre homem e natureza, porquanto aquele constrói

o seu meio, e toda sua atividade e percepção são conformadas pela sua cultura. “A cultura

brasileira é o resultado daquilo que era próprio das populações tradicionais indígenas e das

transformações trazidas pelos diversos grupos colonizadores e escravos africanos”

(BROLLO, 2006, p. 15-16). Desta maneira, a proteção do patrimônio cultural se revela como

instrumento robusto da sobrevivência da própria sociedade.

Nesta toada, ao se analisar o meio ambiente cultural, enquanto um complexo

macrossistema, é perceptível que se trata de patrimônio incorpóreo, abstrato, fluído,

constituído por bens culturais materiais e imateriais portadores de referência à memória, à ação

e à identidade dos distintos grupos formadores da sociedade brasileira. Meirelles (2012, p.

634), em suas lições, anota que “o conceito de patrimônio histórico e artístico nacional abrange

todos os bens moveis e imóveis, existentes no País, cuja conservação seja de interesse público,

por sua vinculação a fatos memoráveis da História pátria” ou ainda em razão do proeminente

valor artístico, arqueológico, bibliográfico, etnográfico e ambiental. Quadra anotar que os bens

compreendidos pelo patrimônio cultural compreendem tanto as realizações antrópicas como

obras da Natureza; preciosidades do passado e obras contemporâneas.

Nesta esteira, é possível subclassificar o meio ambiente cultural em duas espécies

distintas, quais sejam: uma concreta e outra abstrata. Neste passo, o meio ambiente cultural

concreto, também denominado material, se revela materializado quando está transfigurado

em um objeto classificado como elemento integrante do meio ambiente humano. Assim, é

possível citar os prédios, as construções, os monumentos arquitetônicos, as estações, os

museus e os parques, que albergam em si a qualidade de ponto turístico, artístico,

paisagístico, arquitetônico ou histórico. Os exemplos citados alhures, em razão de todos os

predicados que ostentam, são denominados de meio ambiente cultural concreto.

Diz-se, de outro modo, o meio ambiente cultural abstrato, chamado, ainda, de

imaterial, quando este não se apresenta materializado no meio ambiente humano, sendo,

deste modo, considerado como a cultura de um povo ou mesmo de uma determinada

comunidade. Da mesma maneira, são alcançados por tal acepção a língua e suas variações

regionais, os costumes, os modos e como as pessoas relacionam-se, as produções

acadêmicas, literárias e científicas, as manifestações decorrentes de cada identidade nacional

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e/ou regional. Esses aspectos constituem, sem distinção, abstratamente o meio ambiente

cultural. Consoante Brollo (2006, p. 33), “o patrimônio cultural imaterial transmite-se de

geração a geração e é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de

seu ambiente”, decorrendo, com destaque, da interação com a natureza e dos acontecimentos

históricos que permeiam a população.

O Decreto Nº. 3.551, de 04 de agosto de 2000, que institui o registro de bens culturais

de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional

do Patrimônio Imaterial e dá outras providências, consiste em instrumento efetivo para a

preservação dos bens imateriais que integram o meio ambiente cultural. Como bem aponta

Brollo (2006, p. 33), em seu magistério, o aludido decreto não instituiu apenas o registro de

bens culturais de natureza imaterial que integram o patrimônio cultural brasileiro, mas também

estruturou uma política de inventariança, referenciamento e valorização desse patrimônio.

Ejeta-se, segundo o entendimento firmado por Fiorillo (2012, p. 80), que os bens, que

constituem o denominado patrimônio cultural, consistem na materialização da história de um

povo, de todo o caminho de sua formação e reafirmação de seus valores culturais, os quais têm

o condão de substancializar a identidade e a cidadania dos indivíduos insertos em uma

determinada comunidade. Necessário faz-se salientar que o meio ambiente cultural, conquanto

seja artificial, difere-se do meio ambiente humano em razão do aspecto cultural que o

caracteriza, sendo dotado de valor especial, notadamente em decorrência de produzir um

sentimento de identidade no grupo em que encontra inserido, bem como é propiciada a

constante evolução fomentada pela atenção à diversidade e à criatividade humana.

2. Singelos comentários ao patrimônio cultural imaterial

Tal como pontuado alhures, a cultura apresenta, como traços estruturantes, elementos

espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, os quais caracterizam uma sociedade ou,

ainda, um grupo social determinado, compreendendo, também, as artes e as letras, os modos

de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Neste

passo, é possível evidenciar que, em sede de meio ambiente cultural, o conjunto de

elementos que dá azo ao patrimônio imaterial se apresenta como um dos mais relevantes

traços caracterizadores da identidade de uma população, não somente para a presente e as

futuras gerações, viabilizando a compreensão da humanidade e toda a sua evolução histórica.

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Com efeito, é possível trazer à colação, com o escopo de robustecer as ponderações

estruturadas, o conteúdo do preâmbulo da Convenção sobre a proteção e a promoção da

Diversidade das Expressões Culturais da Unesco:

Considerando que a cultura assume formas diversas através do tempo e do

espaço, e que esta diversidade se manifesta na originalidade e na

pluralidade das identidades, assim como nas expressões culturais dos

povos e das sociedades que formam a humanidade,

Reconhecendo a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte

de riqueza material e imaterial, e, em particular, dos sistemas de

conhecimento das populações indígenas, e sua contribuição positiva para

o desenvolvimento sustentável, assim como a necessidade de assegurar

sua adequada proteção e promoção [...]

Reconhecendo que a diversidade das expressões culturais, incluindo as

expressões culturais tradicionais, é um fator importante, que possibilita

aos indivíduos e aos povos expressarem e compartilharem com outros

as suas idéias e valores, [...]

Tendo em conta a importância da vitalidade das culturas para todos,

incluindo as pessoas que pertencem a minorias e povos indígenas, tal

como se manifesta em sua liberdade de criar, difundir e distribuir as suas

expressões culturais tradicionais, bem como de ter acesso a elas, de modo

a favorecer o seu próprio desenvolvimento (ORGANIZAÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS, 2014).

Ao lado disso, o conjunto de manifestações culturais, enquanto patrimônio imaterial

de uma população, encontra-se estritamente atrelado à liberdade e à essência da vida humana

e pode ser considerado no plano jurídico como bem cultural, que confere concreção aos

direitos humanos e como axioma de sustentação do patrimônio cultural. Trata-se de uma

estrutura que robustece os laços de identificação de um determinado grupo populacional.

Ora, não é possível olvidar, em razão da dinamicidade da vida contemporânea, tal como a

difusão de informações e assimilação de valores diversificados, que o patrimônio cultural

imaterial é constantemente recriado pelas comunidades e grupos, em razão da influência

do ambiente, das interações com a natureza e com a história. À sombra, a utilização da

língua consiste no exercício dos direitos culturais linguísticos, contrapartida dos direitos

oriundos da liberdade de expressão e comunicação, tal como a substancialização do bem

cultural intangível, especialmente por meio das formas de expressão.

Desta feita, em decorrência do assinalado, o patrimônio cultural imaterial se

apresenta como elemento estruturante da diversidade característica de uma população. Ora,

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o Texto Constitucional assinalou que o tratamento da cultura e dos bens culturais defluiu

dos elementos que sustentam o Estado brasileiro como Estado Democrático de Direito. Em

razão disso, é possível afirmar a discussão alicerçada na diversidade cultural, e, por extensão,

nos direitos e bens culturais dessa decorrentes, tem seu alicerce nos dispositivos

constitucionais, já que o sistema jurídico consagra um Estado de direito cultural e indica a

construção de um Estado Democrático Cultural. Quadra pontuar que o traço cultural

democrático é estabelecido constitucionalmente, notadamente: (i) pelos artigos que versam

acerca da cultura, sobre a necessidade de respeito à diversidade cultural brasileira e sobre a

importância da tutela dos bens culturais que são bastiões dos grupos formadores da

sociedade; e, (ii) pela estruturação do Estado para a tutela dos valores culturais com a

colaboração da comunidade. Desta sorte, conquanto o Texto Constitucional não apresente

uma definição estanque do que é patrimônio cultural brasileiro, dispõe que o seu

tratamento deve-se orientar pelo respeito à diversidade e à liberdade e na busca da igualdade

material entre e para os grupos constituintes da sociedade brasileira, maiormente os grupos

desfavorecidos histórica, social e economicamente.

3. O instituto do registro enquanto instrumento para a preservação do meio ambiente

cultural

Em sede de anotações introdutórias, cuida anotar que o registro do bem cultural de

natureza imaterial, para ser considerado válido e legítimo, reclama harmonia com o

ordenamento jurídico vigente. Com efeito, o Texto Constitucional consagra em seu bojo a

definição acerca de quais bens constituem o patrimônio cultural brasileiro, estabelecendo, por

via de consequência, as normas de proteção a esse patrimônio, consoante afixa a redação do

artigo 216. É verificável que o dispositivo em comento faz expressa referência aos bens

portadores de identidade, ação e memória dos diferentes grupos da sociedade brasileira. Desta

feita, é possível salientar que a Carta de 1988 não estrutura a sociedade brasileira como um

todo homogêneo, mas como uma sociedade multifacetada, constituída por diferentes grupos,

cada um portador de identidades e de modos de criar, fazer e viver específicos.

Com efeito, o posicionamento é dotado de proeminência na medida em que o Texto

Constitucional, com clareza solar, sublinha que o seu interesse não está centrado apenas em

proteger objetos materiais que gozem valor acadêmico, mas também os bens de natureza

material ou imaterial portadores de referência à identidade de cada grupo formador da sociedade

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brasileira. Ora, cada um dos diversos grupos, assim como seus modos de fazer, criar e viver, é

objetivo de proteção conferida pelo Ente Estatal. Ao lado disso, a Carta de 1988 apresenta com

características fortes os ideais republicanos e democráticos, refletindo em todas as matérias nela

versadas esses corolários, até mesmo porque estrutura-se como escopo fundamental, entalhado

na Constituição, o de edificar uma sociedade livre, justa e solidária. Desta feita, a concepção em

testilha informa a maneira por meio da qual o Estado deve proteger e promover a cultura.

Nesta linha, ainda, cuida mencionar que a ação cultural pública se apresenta como

absolutamente imprescindível à democratização da cultura, sendo considerada como o

procedimento que propicia a convergência e o alargamento do público, tal como a extensão do

fenômeno de comunicação artístico, consoante o ideário de que a política cultural é, juntamente

com a política social, um dos modos utilizados pelo Estado contemporâneo para assegurar sua

legitimação, ou seja, para oferecer como um Estado que vela por todos e que vale para todos.

Ao lado disso, em razão da proteção cultural se fazer conjuntamente com o Estado e a sociedade,

pode-se destacar que o Texto Constitucional afixou que o Poder Público, com a colaboração da

comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, lançando mão, para tanto,

de inventários, registros e tombamentos, além de outras formas de acautelamento e preservação.

Infere-se que, dentre os instrumentos previstos para proteger os bens culturais

brasileiros, encontra-se o instituto do registro, o qual se encontra regulamentado pelo

Decreto Nº. 3.551, de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de

Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa

Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Imperioso se faz assinalar que

a criação do instituto do registro está vinculada a diversos movimentos em defesa de uma

compreensão mais ampla no que se refere ao patrimônio cultural brasileiro. “No Brasil, a

publicação do Decreto 3.551/2000, insere-se numa trajetória a que se vinculam as figuras

emblemáticas de Mário de Andrade e de Aloísio Magalhães, mas em que se incluem

também as sociedades de folcloristas, os movimentos negros e de defesa dos direitos

indígenas”, como bem observa Maria Cecília Londres Fonseca (2003, p. 62). De igual

modo, o instituto em comento reflete as reivindicações dos grupos de descendentes de

imigrantes das mais diversas procedências, alcançando, desta maneira, os “excluídos” do

cenário do patrimônio cultural brasileiro, estruturado a partir de 1937.

Nesta esteira, evidencia-se que o registro tem por finalidade reconhecer e valorizar bens

da natureza imaterial em seu processo dinâmico de evolução, viabilizando uma apreensão do

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contexto pretérito e presente dessas manifestações em suas distintas versões. Márcia Sant’Anna,

ao discorrer acerca do instituto em comento, coloca em realce que “não é um instrumento de

tutela e acautelamento análogo ao tombamento, mas um recurso de reconhecimento e

valorização do patrimônio imaterial, que pode também ser complementar a este”

(SANT’ANNA, 2003, p. 52). Assim, o registro corresponde à identificação e à produção de

conhecimento acerca do bem cultural de natureza imaterial, equivalendo a documentar, pelos

meios técnicos mais adequados, o passado e o presente dessas manifestações, em suas plurais

facetas, possibilitando, a partir de uma fluidez das relações, o amplo acesso ao público. Nesta

perspectiva, o escopo é manter o registro da memória dos bens culturais e de sua trajetória no

tempo, eis que este é o mecanismo apto a assegurar a sua preservação.

Em razão da dinamicidade dos processos culturais, as mencionadas manifestações

desbordam em uma concepção de preservação diversa daquela da prática ocidental, não

podendo ser alicerçada em seus conceitos de permanência e autenticidade. Os bens culturais

de natureza imaterial são emoldurados por uma dinâmica de desenvolvimento e

transformação que não pode ser engessado nesses conceitos, sendo mais importante, nas

situações concretas, o registro e a documentação do que intervenção, restauração e

conservação. Acrescente-se que os bens escolhidos para registro serão inscritos em livros

denominados: (i) Livro de registros dos saberes, no qual serão registrados os conhecimentos

e modo de fazer; (ii) Livro das formas de expressão, o qual conterá as manifestações

literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; (iii) Livro dos lugares, no qual se inscreverá

as manifestações de espaços em que se concentram ou mesmo reproduzem práticas culturais

coletivas; e, (iv) Livro das celebrações, no qual serão lavradas as festas, rituais e folguedos,

consoante afixa o Decreto Nº. 3.551, de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de

Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro, cria o

Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências.

4. O ofício das paneleiras de Goiabeiras: entre o desenvolvimento e a preservação

cultural

Como país dotado de um multiculturalismo ímpar, o Brasil, por meio da Constituição

Federal, confere proteção ao pleno exercício dos direitos culturais, garantindo, em

consonância com a forma estabelecida no §1º do artigo 215, a tutela jurídica de toda e

qualquer manifestação vinculada ao processo civilizatório nacional. Neste viés, essa

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concepção constitucional de dimensão multicultural na estruturação e tutela do patrimônio

cultural brasileiro é sagrada pela manutenção do liame existente entre sociedade-Estado na

materialização de tarefas de promovam tanto o exercício dos mencionados direitos, tal como

a proteção e fruição dos bens culturais materiais e imateriais que lhe conferem suporte.

Neste cenário, “a fabricação artesanal de panelas de barro é o ofício das paneleiras de

Goiabeiras, bairro de Vitória, capital do Espírito Santo. A atividade, eminentemente

feminina, constitui um saber repassado de mãe para filha por gerações sucessivas, no

âmbito familiar e comunitário” (BRASIL, 2015d, p. 13).

Figura 1 - Paneleira de Goiabeira moldando as panelas de barro.

Disponível em: <http://www.guiacuca.com.br/evento/festa-das-paneleiras-de-goiabeiras-2010>.

Acesso em 22 ago. 2015.

Cuida reconhecer que o ofício das paneleiras materializa a técnica de cerâmica de

origem indígena, cujo aspecto proeminente está assentado na modelagem manual, queima

a céu aberto e aplicação de tintura de tanino. Em que pese a urbanização e o adensamento

populacional que passou a submergir o bairro de Goiabeiras, o ofício familiar da feitura de

panelas de barro continua substancialmente enraizado no cotidiano e no modo de ser da

comunidade daquela região. É imperioso o reconhecimento do aspecto cultural dos modos

de fazer, no tocante ao ofício das paneleiras de Goiabeiras, tanto assim que tal prática

foi o primeiro bem cultural registrado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional (IPHAN) no Livro de Registro dos Saberes, em 2002.

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Figura 2 - Queima das panelas de

barro de Goibeiras.

Disponível em:

<http://www.sidneyrezende.com>. Acesso

em 22 ago. 2015.

Figura 3 - Panela de barro finalizada.

Disponível em: <http://www.rotascapixabas.

com/2012/09/09/o-novo-galpao-das-paneleiras-

de-goiabeiras/>. Acesso em 22 ago. 2015.

Com efeito, no Estado do Espírito Santo as panelas de barro são o tradicional

recipiente de moquecas de peixe e outros frutos do mar, tal como da torta capixaba, iguaria

tradicional consumida no período das festividades da Semana Santa. “Ícones da identidade

cultural capixaba, a torta, as moquecas e as panelas de barro ganharam o mundo e

configuram, na literatura gastronômica, ‘a mais brasileira das cozinhas’, por reunirem e

mesclarem elementos das culturas indígena, portuguesa e africana”. Ao lado disso, como

manifesto patrimônio cultural imaterial do Estado Capixaba, o processo característico da

produção das panelas de Goiabeiras conserva todos os aspectos peculiares e

indissociáveis com as práticas dos grupos nativos das Américas, antes da chegada de

europeus e africanos. No mais, as panelas continuam sendo modeladas manualmente, com

argila sempre da mesma procedência e com o auxílio de ferramentas rudimentares,

preservando, pois, o ofício caracterizador de proeminente patrimônio cultural imaterial,

encontrando, assim, respaldo e proteção na Constituição Federal.

Ao lado disso, há que se reconhecer que a forma de preparação das panelas de barro

do Bairro de Goiabeiras observa um procedimento secularmente estruturado, sendo que a

técnica de cerâmica empregada é reconhecida, a partir de estudos arqueológicos

desenvolvidos, como legado proveniente das tribos indígenas Tupi-guarani e Uma, sendo

que o maior número de elementos identificados está diretamente associado ao segundo

grupamento. Verifica-se que o saber refletido no ofício registrado foi apropriado dos índios

pelos colonos e descendentes de africanos estabelecidos à margem do manguezal, localidade

reconhecida historicamente como um local no qual era desenvolvido o ofício.

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Depois de secas ao sol, são polidas, queimadas a céu aberto e

impermeabilizadas com tintura de tanino, quando ainda quentes. Sua

simetria, a qualidade de seu acabamento e sua eficiência como artefato

devem-se às peculiaridades do barro utilizado e ao conhecimento técnico e

habilidade das paneleiras, praticantes desse saber há várias gerações. A

técnica cerâmica utilizada é reconhecida por estudos arqueológicos como

legado cultural Tupi-guarani e Una, com maior número de elementos

identificados com os desse último. O saber foi apropriado dos índios por

colonos e descendentes de escravos africanos que vieram a ocupar a

margem do manguezal, território historicamente identificado como um

local onde se produziam panelas de barro (BRASIL, 2015, p. 15).

Pontualmente, convém mencionar que, em decorrência do aspecto nos modos de

fazer em comento, as paneleiras executam seu ofício nos quintais e no galpão da associação,

alimentando, via de consequência, as relações familiares e de vizinhança próprias da

atividade. Ao lado disso, percebe-se que os espaços de morar e trabalhar se confundem, pois

cada casa é uma oficina, na qual o fazer panelas de barro convive, cotidianamente, com os

afazeres domésticos e com a criação dos filhos e netos, nos momentos de festa, de perdas e

manifestações de fé. “Em casa como no Galpão, é usual a presença de crianças participando

das atividades, tanto modelando a argila em pequenos formatos, como trabalhando no

alisamento das panelas” (BRASIL, 2015d, p. 21).

À luz do exposto, o reconhecimento das panelas de bairro de Goiabeira ultrapassa os

limites territoriais do Estado do Espírito Santo, maiormente quando associadas à moqueca e à

torta capixaba, expressões típicas da culinária da região, disseminando o seu aspecto cultural.

Ora, verifica-se, assim, que, de utensílios domésticos, as panelas passaram a usufruir de

categoria de ícone da identidade cultural do Estado do Espírito Santo. Distintamente de outros

grupos produtores de bens culturais que, a despeito de sua relevância para a formação nacional,

se encontram marginalizados na dinâmica social e econômica hegemônica, o grupo de

paneleiras da região de Goiabeiras conquistou, sobretudo a partir da década de 1980, a

consciência de sua importância no que tange ao processo de construção da identidade cultural

regional. “O trabalho institucional do Iphan em favor da salvaguarda do ofício das paneleiras

de Goiabeiras está voltado para o acompanhamento dos processos e das atividades

tradicionais, bem como das ocorrências de intervenções nas condições de produção,

comercialização e promoção das panelas de barro” (BRASIL, 2015d, p. 47-48).

É notório que o patrimônio cultural imaterial encerrado no ofício das paneleiras de

Goiabeiras reflete a confluência dos pilares que estruturam a constituição e consolidação da

cultura brasileira, pautando-se na assimilação de modos de fazer que remontam aos povos

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nativos anteriores à chegada de europeus e africanos no continente americano. Mais que um

singelo ofício suburbano, a confecção de panelas de barro, observado o procedimento

estabelecido pelas paneleiras de Goiabeira enseja patrimônio dotado de elevada densidade,

desdobrando-se, pois, em singular elemento integrante do cenário complexo e multifacetado

que compreende a cultura nacional. Trata-se, com destaque, de apropriação e perpetuação dos

saberes assimilados e, até hoje, empregados na subsistência de uma população que nutre um

liame identificador, o qual está intimamente atrelado ao ofício desempenhado.

Figura 4 - Selo de procedência das panelas da Associação das Paneleiras de Goiabeiras.

Disponível em: <https://claudiovereza.wordpress.com>. Acesso em 22 ago. 2015

É interessante ressaltar que, no ano de 2011, foi deferida a indicação geográfica, na

modalidade de indicação de procedência, para a panela de barro de Goiabeiras, produzida

em Vitória. “O deferimento foi publicado na RPI do dia 26 de julho de 2011. A partir desta

data, a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG) terá um prazo de 60 dias para efetuar

o pagamento da taxa prevista para expedir o certificado de registro” (VEREZA, 2011, s.p.).

Com o registro das panelas de Goiabeiras, elevou-se para onze (11) o número de produtos

brasileiros com procedência certificada por meio de indicação geográfica. Ao lado disso,

cuida apontar que a certificação protege os produtos de eventuais falsificações, assegurando,

por consequência, sua procedência e ampliando a competitividade. É oportuno consignar

que a indicação de procedência para o artesanato brasileiro vem crescendo, sendo que a

primeira foi deferida para o artesanato do capim dourado do Jalapão, no início de agosto de

2011 e a segunda para as panelas de barro de Goiabeiras.

Ocorre, contudo, que se verifica, devido ao aumento desordenado e despido de prévio

planejamento do núcleo urbano, que o ofício desempenhado pelas paneleiras de Goiabeiras

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encontra-se em risco, notadamente em decorrência da degradação das áreas de mangue, local

do qual é retirada a matéria-prima para a prática do patrimônio cultural registrado. Mais que

isso, há que se reconhecer, ainda, que o crescimento urbano da região culminou na

profissionalização e concorrência da atividade. Objetivando atender a um mercado

consumidor, a produção que é desenvolvida no galpão passou a gozar de um ritmo

empresarial com maior visibilidade publicitária, ao passo que as paneleiras do fundo de

quintal foram ofuscadas comercialmente, após a notoriedade recebida pelo galpão. É

verificável, dessa maneira, que o crescimento da região trouxe consequências diretas para a

atividade desenvolvida, porquanto desvirtuou a essência cultural do ofício, passando a

permeá-lo por traços empresariais, fomentado, sobremaneira, pelo Município de Vitória/ES,

com vistas a estabelecer um circuito turístico urbano que acaba suplantando as pequenas

artesãs, cujo ofício é desenvolvido em seus quintais e que recebem um fluxo menor de

visitantes e clientes do que aquele que frequenta o galpão da região. Assim, quadra apontar

que, em razão da renda que não consegue atender aos gastos mínimos da população, as

paneleiras estão migrando do ofício tradicional em busca de renda fixa e atividades formais.

Considerações Finais

Em harmonia com todo o escólio apresentado, prima colocar em destaque que a

construção do meio ambiente cultural sofreu maciça contribuição com a promulgação da

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Cuida salientar que o meio ambiente

cultural é constituído por bens culturais, cuja acepção compreende aqueles que possuem valor

histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, espeleológico, fossilífero, turístico, científico,

refletindo as características de uma determinada sociedade. Ao lado disso, quadra anotar que a

cultura identifica as sociedades humanas, sendo formada pela história e maciçamente

influenciada pela natureza, como localização geográfica e clima. Com efeito, o meio ambiente

cultural decorre de uma intensa interação entre homem e natureza, porquanto aquele constrói o

seu meio, e toda sua atividade e percepção são conformadas pela sua cultural.

O crescimento desordenado da região do Bairro de Goiabeiras, na cidade de

Vitória/ES, em conjunto com a degradação acentuada da região de mangue e a publicidade

conferida ao ofício das paneleiras daquela região desembocam em um cenário de extremos

contrastes. Tal fato decorre da premissa do Estado do Espírito Santo e o Município de Vitória

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buscarem estabelecer um circuito turístico urbano, fechando, contudo, os olhos para as

consequências produzidas, principalmente para as pequenas artesãs, eis que o Galpão das

Paneleiras de Goiabeiras recebeu claramente contornos empresariais. Assim, as paneleiras

que atuam em seus quintais atendem um público relativamente pequeno, quando comparado

com aquele que frequenta o galpão, produzindo, dessa maneira, de acordo com as

encomendas feitas pelos clientes, cujo número é inalterado, por consequências, os ganhos

financeiros não são tão significativos quanto aqueles recebidos no galpão.

A rentabilidade insuficiente para atender os gastos domésticos cotidianos faz com que

muitas paneleiras sejam compelidas a desenvolver outras atividades no mercado formal de

emprego como serviço geral, faxineira, empregada doméstica e outros. Mais que isso, a

população mais jovem, ao observar que o trabalho é desgastante e não possui elevada

rentabilidade, está cada vez mais buscando postos de trabalho com remuneração fixa, perdendo

o interesse pelo ofício desenvolvido. Tal situação, em um futuro breve, associado à falta de

argila, poderá comprometer a sobrevivência de tal patrimônio cultural. Diante disso, por

perceberem a ameaça à sua tradição, as paneleiras se colocam à disposição para ensinar o

ofício àqueles que se interessam, mesmo que não sejam parentes ou não morem no bairro.

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