graça cordeiro

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221 Análise Social, vol. XXXVIII (Primavera), 2003 diversas crenças que constituem uma rede de significados. A explica- ção diacrónica permite-nos, por con- seguinte, perceber qual é a relação condicional que se estabelece entre uma tradição intelectual, a rede de significados inicial, o dilema, e a rede de significados modificada. À luz das considerações acima produzidas, pensamos ser fácil para o leitor adivinhar qual a nossa opi- nião quanto a esta obra de Mark Bevir. É uma referência incontorná- vel para todos quantos procuram na história das ideias mais do que uma mera narrativa de ideias passadas, uma reconstrução histórica dos con- ceitos com que lidamos todos os dias. Uma reconstrução que, como explica Skinner em Liberty before Liberalism, nos permita olhar para estes conceitos (demasiado) familia- res com um distanciamento crítico que só a história pode dar-nos. FILIPE CARREIRA DA SILVA António Firmino da Costa, Socieda- de de Bairro. Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural, Oeiras, Celta, 1999, 539 páginas. Brevemente, pode começar por se apresentar este livro como um estudo aprofundado e detalhado so- bre a identidade cultural de Alfama, um dos bairros mais emblemáticos da cidade de Lisboa. Em três anda- mentos bem equilibrados, o leitor é conduzido através de um percurso que o vai aproximando ao bairro em causa — a rumorosa, a histórica, a marinheira Alfama, coração da Lis- boa antiga 1 ... — e, sobretu do, a um tipo específico de configuração só- cio-cultural localmente enraizada que António Firmino da Costa designa por sociedade de bairro. Apesar de esta investigação assu- mir os contornos de um estudo de caso, metodologicamente assente na pesquisa de terreno, este trabalho ul- trapassa em grande medida o próprio bairro, sempre entendido como lugar estratégico de investigação e nunca como noção auto-evidente. Bairro e identidade cultural, noções centrais neste livro, são encarados, pois, como algo a decifrar, a questionar, a problematizar, e nunca como enti- dades existentes a priori. A identifi- cação e análise minuciosa de todo um conjunto de processos exógenos, endógenos e interlocais que partici- pam na construção social da identi- dade cultural deste bairro — e, em última análise, da própria cidade — constituem, assim, o núcleo duro da obra, que corresponde a uma tese de doutoramento em Sociologia defen- dida no ISCTE em 1999. Inspirando-se na conhecida obra de William F. White, Street Corner Society (1943), sociedade de bairro surge, deste modo, como uma con- figuração social de características singulares (p. 142), não como um 1 Júlio de Castilho (1981 [1893]), A Ri- beira de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, vol. I, p. 199.

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Análise Social, vol. XXXVIII (Primavera), 2003

diversas crenças que constituemuma rede de significados. A explica-ção diacrónica permite-nos, por con-seguinte, perceber qual é a relaçãocondicional que se estabelece entreuma tradição intelectual, a rede designificados inicial, o dilema, e a redede significados modificada.

À luz das considerações acimaproduzidas, pensamos ser fácil parao leitor adivinhar qual a nossa opi-nião quanto a esta obra de MarkBevir. É uma referência incontorná-vel para todos quantos procuram nahistória das ideias mais do que umamera narrativa de ideias passadas,uma reconstrução histórica dos con-ceitos com que lidamos todos osdias. Uma reconstrução que, comoexplica Skinner em Liberty beforeLiberalism, nos permita olhar paraestes conceitos (demasiado) familia-res com um distanciamento críticoque só a história pode dar-nos.

FILIPE CARREIRA DA SILVA

António Firmino da Costa, Socieda-de de Bairro. Dinâmicas Sociaisda Identidade Cultural, Oeiras,Celta, 1999, 539 páginas.

Brevemente, pode começar porse apresentar este livro como umestudo aprofundado e detalhado so-bre a identidade cultural de Alfama,um dos bairros mais emblemáticosda cidade de Lisboa. Em três anda-

mentos bem equilibrados, o leitor éconduzido através de um percursoque o vai aproximando ao bairro emcausa — a rumorosa, a histórica, amarinheira Alfama, coração da Lis-boa antiga1... — e, sobretu do, a umtipo específico de configuração só-cio-cultural localmente enraizada queAntónio Firmino da Costa designapor sociedade de bairro.

Apesar de esta investigação assu-mir os contornos de um estudo decaso, metodologicamente assente napesquisa de terreno, este trabalho ul-trapassa em grande medida o própriobairro, sempre entendido como lugarestratégico de investigação e nuncacomo noção auto-evidente. Bairro eidentidade cultural, noções centraisneste livro, são encarados, pois,como algo a decifrar, a questionar,a problematizar, e nunca como enti-dades existentes a priori. A identifi-cação e análise minuciosa de todoum conjunto de processos exógenos,endógenos e interlocais que partici-pam na construção social da identi-dade cultural deste bairro — e, emúltima análise, da própria cidade —constituem, assim, o núcleo duro daobra, que corresponde a uma tese dedoutoramento em Sociologia defen-dida no ISCTE em 1999.

Inspirando-se na conhecida obrade William F. White, Street CornerSociety (1943), sociedade de bairrosurge, deste modo, como uma con-figuração social de característicassingulares (p. 142), não como um

1 Júlio de Castilho (1981 [1893]), A Ri-beira de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipalde Lisboa, vol. I, p. 199.

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ponto de partida, mas sim como umponto de chegada, sendo, por essarazão, um conceito inovador compossibilidades heurísticas óbvias.

O livro organiza-se em três partesadmiravelmente concebidas — nasolidez e coerência internas, no rigordo argumento teórico, na clarezametodológica, até na fluência elimpidez de um eixo narrativo origi-nal. Uma discussão sistemática, mi-nuciosa e bem actualizada da extensabibliografia que se pode recensearsobre os temas tratados tem ainda avantagem de vir condensada em sin-téticas e muito elucidativas notas depé-de-página, o que facilita clara-mente a leitura desta, já, obra dereferência de sociologia e, na minhaopinião, também de antropologia ur-bana.

Num primeiro momento é a iden-tificação morfológica, social e cultu-ral do bairro que está em causa, pro-duzida por complexos processos decontaminação recíproca entre o inte-rior e o exterior desse lugar. Primei-ro, a partir de um olhar exterior, ten-tando perceber a sua grandevisibilidade social, depois, com umolhar de dentro, profundamente co-nhecedor do seu interior. Os seuslimites físicos e uma primeira carac-terização sócio-cultural constituemos grandes eixos temáticos desta pri-meira parte. Assim, a sua visibilidadecomo facto socialmente construído e,muito concretamente, a produção deuma imagem de marca nítida, en-quanto conjunto urbano típico (pelamalha urbana, mourisca e medieval,perfil das casas, mistura social entre

classes nobres e populares, militar ereligioso, funcional e decorativo,etc.), decorrem de uma mistura deelementos provenientes de várias ins-tâncias, como sejam o discurso his-tórico, olisipográfico e turístico,todo um leque de intervenções patri-monializantes e folclorizantes ou atéa sua própria «visitabilidade», atravésda intensidade de visitas turísticas,festivas e escolares de que este bair-ro é objecto (cap. 1).

Para além desta imagem, de certaforma oficial, do bairro, AFC preo-cupa-se em dar conta do que éAlfama para os seus habitantes equem são estes habitantes... Aqui oleitor entra em Alfama: Alfama decontornos físicos algo imprecisos— embora polarizada pelas duas igre-jas que dão o nome às freguesias quelhe pertencem — tem uma determi-nada configuração morfológica e po-pulacional que é descrita ao porme-nor nos seus declives, na sua malhaurbana, nas suas casas e edifícios,na densidade da sua população e, so-bretudo, na sua composição diversi-ficada, nas suas actividades profissi-onais, nas suas redes sociais, nosseus retiros, nas suas colectividades,nas suas festas, no seu fado… en-fim, nas múltiplas dimensões da suaestruturação social que lhe dão essaconfiguração especial de sociedadede bairro. Alfama revela-se assimnos seus contornos plásticos, nosseus núcleos de referência identitá-ria e nas suas demarcações face aoutros bairros e ao exterior (cap. 2).

Após esta prévia identificação dobairro, o leitor é convidado a entrar

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nele, a conhecê-lo ao pormenor —nas suas práticas quotidianas e nassuas representações e, sobretudo, narelação entre formas de estruturaçãosocial e de produção da sua identidadecultural. Nesta segunda parte do livro,três dimensões inter-relacionadas,embora estrategicamente separadas,são aprofundadas: cultura, classes,interacção.

Desta forma, a segunda parteconstitui o seu núcleo estruturante, re-velando aqui, em todas as dimensõese matizes possíveis, o sentido profun-do deste tipo específico de configura-ção sócio-cultural territorialmenteenraizada: a sociedade de bairro.

Primeiro, a dimensão cultural. Aspráticas do fado amador, as marchaspopulares, os arraiais e o carnaval,enquanto formas singulares de cultu-ra popular urbana, são exemplosparadigmáticos da intensa produçãocultural própria deste bairro. Os seusprotagonistas não só detêm uma for-ma específica de capital culturalpopular, como também se constitu-em como mediadores que transitame comunicam entre mundos cultural-mente diferenciados, incorporandoelementos diversos e sincréticos nes-sas formas culturais (cap. 3).

Depois, a dimensão da estratifica-ção social: a composição socialmenteestratificada da sua população e assuas trajectórias de mobilidade. Aquiencontra-se uma das partes mais ge-nialmente conseguidas do livro. Acomplementaridade entre a pesquisade tipo intensivo/qualitativo com osprocedimentos de investigação exten-siva e quantitativa compõe um muito

feliz casamento. O cuidado extremocom que AFC contextualiza os dadosquantificáveis a partir de um exce-lente e longo trabalho de campo e origor da análise que faz, criando in-dicadores facilmente compreensivos— como, por exemplo, os sócio-profissionais — que permitem acomparação, sem, no entanto, des-virtuarem as pequenas diversidades enuances locais, enriquecemexponencialmente este trabalho. Acaracterização do tecido socialinigualitário deste bairro, com umapopulação diversificada em termosde origem, classe, sexo, género, ac-tividades sócio-profissionais, nível deinstrução, a identificação das múltiplasestratégias residenciais, familiares, mi-gratórias, que tornam o bairro umentreposto de mobilidade social, le-vam o autor a caracterizar Alfamacomo um universo social popular,basicamente semelhante a outros ru-rais, também por ele estudados. Comefeito, o fenómeno de migração emcadeia detectado entre aldeias dacordilheira central e este bairro le-vou-o a analisar ao detalheetnográfico percursos de migrantesque, num original processo de mobi-lidade espacial e social entre estesdois territórios, se inseriram entredois meios: urbano e rural. A percep-ção de que as permanências da iden-tidade cultural de Alfama coexistemcom uma rotação populacional intensaleva, finalmente, o autor a descobrir,progressivamente, a importância docontexto social da vida local e a pro-duzir essa noção tão feliz que é a dequadro de interacção local (cap. 4).

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na, estilos relacionais próprios e umapersistente identidade cultural (caps.6 e 7).

Após este breve e incompleto resu-mo, cabe ainda assinalar que Socieda-de de Bairro constitui, na realidade,um marco importante no quadro dosestudos urbanos portugueses. Emboraos bairros já tenham suscitado algu-mas investigações no âmbito das ciên-cias sociais (cf. p. 143), esta investi-gação apresenta algumas originalidadesnotáveis. Gostaria de destacar quatrodelas.

Em primeiro lugar, a utilização deuma pluralidade de métodos e técni-cas de pesquisa, articulando com umamaestria indiscutível a pesquisa deterreno antropológica — da melhorque se tem feito mesmo no âmbito daprópria antropologia — com procedi-mentos de investigação extensiva equantitativa. O pormenor etnográficosurge de uma forma sistemática, arelativizar o dado estatístico e, maisdo que isso, o próprio trabalho decampo acaba por funcionar como ogrande regulador das técnicas de aná-lise quantitativa. A teoria é sempreempiricamente baseada.

Em segundo lugar, o contributopara um melhor conhecimento deformas de cultura popular especifica-mente urbanas, ganho indiscutívelpara o próprio conhecimento da urba-nidade de uma cidade como Lisboa.Sabendo nós que os estudos urbanosestão ainda demasiado impregnadosde mitos e preconceitos sobre formasde urbanidade, decorrentes do sobre-conhecimento de certas cidades e decertos estilos de urbanidade, este fac-

Por último, a sua dimensão inte-raccional: o bairro enquanto quadrode interacção — ou, por outras pala-vras, a importância do contexto localdas interacções na constituição dasociedade de bairro alfamista e dasua identidade cultural. O quadro deinteracção local caracteriza-se, assim,por traços de natureza morfológica,relacional e simbólica — carácterlabiríntico da malha urbana, relaçãocasa/rua, densidade de redes sociaislocais, sítios de vizinhança, colectivi-dades, influência do patrocinato eclientelismo relacionado, por exem-plo, com as actividades portuárias eturísticas ou com os prolongamentosde instituições supralocais existentesno bairro, rivalidades intra e inter-bairristas, formas de cultura popularurbana, como o fado e as marchas,etc. (cap. 5).

A terceira e última parte do livroocupa-se das transformações recen-tes do bairro e da identificação doque permaneceu e do que mudou aolongo dos cerca de vinte anos de ob-servação continuada que constituemo substrato empírico desta investiga-ção. Aqui as mudanças económicas eas recomposições sócio-profissionais,o nascimento de uma culturamediática e de novos estilos de vidae, muito particularmente, o processode reabilitação urbana iniciado nosanos 80 são analisados detalhadamen-te, etnograficamente, no sentido deencontrar as persistências que, ape-sar destes vectores de mudança social,fazem com que Alfama se continue acaracterizar como uma sociedade debairro, cuja configuração cultural apre-senta formas de cultura popular urba-

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to, por si só, contribui não só para odesenvolvimento da antropologia ur-bana como parte integrante de umateoria comparativa das sociedadeshumanas como, sobretudo, alimentae enriquece toda uma discussãoaprofundada sobre a própria naturezado urbano de um modo não etnocên-trico e culturalmente relativizador.

Em terceiro lugar, este estudo éexemplar do ponto de vista de umaética do trabalho científico. O envol-vimento de AFC com a realidade es-tudada, enquanto mediador entre aspopulações estudadas e os lugares dedecisão e de influência, revela umestilo de pesquisa científica radicadana solidariedade interpessoal e na ac-ção cívica. Mostra de uma formaexemplar como um trabalho pode ser,ao mesmo tempo, academicamente ir-repreensível, socialmente útil e esteti-camente agradável.

Por último, talvez a nota de origi-nalidade mais importante, que seprende com uma postura de aberturadisciplinar particularmente simpáticapara com a antropologia. Ao longodeste texto não é apenas invocada aimportância que a antropologia assu-miu ao longo da sua formação cien-tífica. Na sua prática de investiga-ção, AFC rompe com algumastradicionais barreiras disciplinares,revelando, no seu melhor, como aciência é, de facto, um sistema aber-to capaz de estabelecer pontes e in-corporar teorias, métodos e estilosde conhecimento de várias discipli-nas. E deixa bem patente que, domesmo modo que o bairro de

Alfama, com a sua identidade forte,não se torna, por essa razão, umghetto ou um enclave, também asdisciplinas das ciências sociais nãoprecisam de se fechar em fronteirasrígidas para preservarem a sua identi-dade…

GRAÇA ÍNDIAS CORDEIRO

Maurizio Viroli, Republicanesimo,Bari, Laterza, 1999.

Este livro de Maurizio Viroli1

constitui mais uma peça na actualrevalorização do republicanismo.Grande especialista de história dasideias políticas da Europa moderna,Viroli procura reconstituir aquilo aque chama o republicanismo clássi-co, que filia nas correntes dominan-tes da política romana (Tito Lívio eCícero), mas, sobretudo, na sensibili-dade política das repúblicas italianas,mais tarde teorizadas por Maquiavel epor Guicciardini. É justamente estaevocação do seu momento mais clás-sico que, na opinião de Viroli, permite

1 N. 1945, professor em Princeton(«Politics»), Machiavelli and Republicanism(org., com Gisela Bock e Quentin Skinner),Dalla politica alla ragion di stato, La scienzadel governo tra XIII e XVII secolo, 1993, Peramore della patria, 1995, Il sorriso diNicolò. Storia di Machiavelli, 1998, e inter-venções como comentador político: http://www.swif.uniba.it/lei/rassegna/viroli.htm(2001-6-14) (1994).