ginzburg, c. sinais_raízes de um paradigma indiciário

22
CARW GINZ BUR G  MIWS, EMBLEMAS, SINAIS  MORFOWGIA E HISTORIA Traducao: FEDERICO CAROITI 2 01 edicao 4 fJ reimpressao ~ H _~ " _

Upload: enio-j-p-soares

Post on 13-Apr-2018

232 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 1/21

CARW GINZBURG

 MIWS, EMBLEMAS, SINAIS

 MORFOWGIA E HISTORIA

Traducao:

FEDERICO CAROITI

201 edicao

4fJ reimpressao

~ H_~" _

Page 2: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 2/21

Copyright   ©   1986 by Giulio Einaudi editore s. p. a., Torino

Titulo original:

 Mitti emhlemi spie: morfotogta e slana

Capa:

 joao Baptista da Costa Aguiar

sobre detalhe de 0   bibliotecario;

6leo sobrc tela de Giuseppe Arcimboldo

(Copyright ~ Livrustkammaren - Skoklosters Slott.

Acervo: Museu Hallwylska. Foto: Samuel Uhrdin)

Traducao   das passagens   em   Iatlm:

Fernando Pia   de  Almeida Fleck 

iNDICE 

Preparacao.

Mario vilela 

Revisao:

 Denise Santos

G'enulino   Santos

Prefacio   7

Ginzburg, Carlo, 1939

Mttos, emblemas, smais. morfologta c historia   . I   Carlo

Ginzburg uadccao. Federico (itroni, - S~O Paulo:

Companhia das tetras, 1')l:!9

Feiticaria e piedade popular: Notas sobre urn processo mo-

denense de 1519 15

De   A. Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre urn problema

de metodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 41

o  alto e   0baixo: 0 tema do conhecimento proibido nos se-

Dadu~ lnternacicnats de Cataloga(ilo   ill!  Pubhcacao   (cu')

(Camara Rra.~lleira   ck>   Ltvro, SP, Br a~iI)

ISIN 978-8;-7164-038-2

1, Feili<,;ari;. 2, Icilia - Ovthzacao   3.   Milologia 4, Sigr=;

c siOlbolu~ I. Titulo

culos   XVI   e   XVII   95

Ticiano, Ovfdio e os codigos da figura~iio erotica no seculo

89-0396

cuu-915

-133.4

-291 13

-30<i4

XVI   119

lndk'",~ para catalogc   sistemitico

1 Feiucarta : Ocultismo 133.4

2 Italia r Cultura Htstorta 945

3 Milo Cultura   Sociologia 31)6,4

4, Mitologia 291.13

5.   Sinais e stmbolos : Cnltura : Sociologia   306.1

Sinais: Ralzes de urn paradigma indiciario 143

Mitologia germanica e nazismo: Sobre urn velho livro de

Georges Dumezil 181

Freud,   0 homem do. lobos e os lobisomens 207

Nota bibliograflca 219

2011   Notas   221

Todos os direitos desta edicao reservados   aEDITORA SCHWAII.CZ [:mA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32

04532-002 - Sao   Paulo -   sp

Telefone: (11) 3707-3500

Fax, (11) 3707-3501

www.companhiadasletras.corn.br

Page 3: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 3/21

SINAIS 

 RAtzES DE UM PARADIGMA INDICIARIO

Deus esta no particular.

 A. Warburg

Ur n   objeto   que fa la da   perda,   da   destruicac,   do

desaparecimento de   objeros.   Na o   fala de   si.   Fala

de   outros. Incluira tambem   a   des?

] . J o h n s

Nessas paginas tentarei mostrar como, por volta do final do

seculo   XIX,    emergiu   silenciosamente no   ambito   das   ciencias hurna-

nas urn modelo epistemo16gico (caso se prefira, urn paradigma ')

ao qual ate agora nao se prestou suficiente arencao. A analise desse

paradigma, amplamente   operante   de fato, ainda que   flaD   teorizado

explicitamente, talvez possa ajudar a   sair   dos   .incdmodos   da con-

traposicao   entre   "racionalismo"   e  "irracionalisrno".

I.

1. Entre 1874 e 1876, apareceu na   Zeitscbrijt    lu r   bildende

 Kunst    uma   serie   de artigos sobre a pintura italiana.   Eles vinham

assinados por urn desconhecido estudioso russo, Ivan Lermolieff,

e fora urn igualmente desconhecido Johannes Schwarze que os

143

Page 4: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 4/21

traduzira para   0 alernao.   Os   artigos   propunham urn novo   metodo

para a   arribuicso   dos quadros antigos, que suscitou entre as   his-

toriadores da   arte reacoes   contrastantes e vivas   discussoes. Sornen-

te alguns   anos   depois,    0autor   tirou   a   dupla   mascara na qual se

escondera. De Iato, tratava-se do italiano Giovanni Morelli (sobre-

nome do qual Schwarze   e   uma copia   e Lermolieff a anagrama, ou

quase}. E do "metodo morelliano" os historiadores da arte falam

correntemente ainda  hoie.'

Vejamos rapidamente em que   consistia   esse metoda. Os   mu-

seus, dizia Morelli, estao cheios de quadros atribuidos de maneira

incorreta.   Mas   devolver   cada quadro ao seu verdadeiro   autor   e .

dificil:   muitfssimas vezes   encontramo~nos frente   a   obras   nao-assi-

nadas, talvez repintadas   Oil   nurn   rnau estado   de   conservacao. Nes-

sas condicoes,   e   indispensavel poder distinguir os originais das

capias. Para tanto,   porem   (dizia Morelli),    e   preciso   ndo   se basear, 

como normalmente se faz, em  caracteristicas   mais   vistosas, portan-

to  mais   facilmente   imitdveis,   dos quadros: os olhos erguidos para

o   ceu   dos personagens   de   Perugino,   0 sorriso   dos de Leonardo,    e

assim por diante. Pelo   contrario,   6   necessario exarninar   os ponnt:-

nares mais   negligenciaveis,   e   menos   influenciados pelas  caracterfs-ticas da esccla a que   0 pintor pertencia: os lobules das orelhas,

as  unhas,   as formas   dos   dedos das   maos   e dos pes.   Dessa   maneira, 

Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de ore-

lha propria de Botticelli, a de Cosme Tura e assirn por diante:

traces   presentes nos originais, mas   nao   nas  copies.   Com esse   meto-

do, propos dezenas e dezenas de novas arribuicoes ern alguns dos

principais museus da Europa. Freqiientemente tratava-se de   atti-

buicoes sensacionais:   numa Venus deitada   conservada   na   galerie

de Dresden, que passava por uma c6pia de urn. pintura perdida de

Ticiano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pou-

quissimas obras seguramente aut6grafas de Giorgione.Apesar desses resultados,   0metodo de Morelli foi muito cri-

ticado,   talvez   rambem pela seguranca   quase arrogante com que era

propos to. Posteriormente foi julgado mecsnico, grosseiramente   po-

sitivista, e caiu em descredito.' (Por outro lado,   e   possivel que

muitos estudiosos que falavam dele com desdem continuassem a

usa-lo   tacitamente para as suas   atribuicoes.)   0renovado interesse

pelos trabalhos de Morelli   e   merito de Wind, que viu neles urn

exemplo tipico da atitude moderna em relacao   a   obra de arte -

atitude que leva a   apreciar   os pormenores, de   preferencia   it   obra

em   seu   conjunto.   Em   Morelli   existiria,   segundo Wind, uma   exa-

cerbacso do culto pela imediaticidade do genic, assimilado por ele

na juventude, no   contato   com as   cfrculos romanticos berlinenses.'

: e   uma interpretacao pouco   convincente, visto que Morelli nio   se

colocava problemas de ordem estetica (0 que depois the foi censu-

rado) , mas sim problemas preliminares, de ordem   filologica,"   Na

realidade, as implicacoes do rnetodo proposto por Morelli eram

outras, e muito mais   ricas.   Veremos que   0 proprio Wind esteve

muito   proximo de intuf-las.

2 . " Os l iv ro s d e M or elli" - es cr ev e W in d - " ter n u rn

aspecto   bastante ins61ito   se   comparados aos   de   outros   historiado-

res da arte. Eles estiio salpicados de ilustracoes de dedos e orelhas,

cuidadosos registros   das   minticias caracterfsticas   que traem   a   pre-

senca   de   urn determinado   artista,   como urn criminoso   e   traido

pelas suas impress6es digitais .. , qualquer museu de arte estu-

dado por Morelli adquire imediatamente   0aspecto de um museu

criminal ... ". Essa comparacao foi brilhantemente desenvolvida

por Castelnuovo, que aproximou   0 rnetodo lndicidrio de Morelli

ao que era atribuido, quase nos rnesrnos anos, a Sherlock Holmes

polo seu criador, Arthur Conan Doyle.' 0 conhecedor de arte   ecornparavel ao detetive que descobre   0   autor do crime (do qua-

dro) baseado em   indfcios imperceptfveis   para a maioria. Os exem-

plos da perspicacia de Holmes ao interpretar pegadas na lama,

cinzas   de   cigarro etc. sao, como   se   sabe,   incontaveis.   Mas, para   se

con veneer   da exatidio da   aproximacao   proposta   por   Castelnuovo, 

veja-se urn con to como "A caixa de papelao" (1892), no qual

Sherlock Holmes literalmente "da uma de Morelli". 0 caso come-

ca   exatamente com duas orelhas   cortadas e   enviadas pelo correio

a uma inocente senhorita. Eis   0  conhecedor   com   maos   a   obra:

Holmes

1 4 4   1 4 5

Page 5: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 5/21

se interrompeu e eu [Watson] fiquei surpreso, olhando-o, ao ver

que ele fixava com singular atencao a perfil da senhorita. Por

urn segundo £oi possfvel ler no seu rosto ansioso surpresa e saris-

falJio ao mesmo tempo, ainda que, quando ela se virou para

descobrir   0 motivo do seu silencio, Holmes tivesse se tornado

impassfvel como sempre,"

Mais adiante, Holmes explica a Watson (e aos leitores)   0

percurso do seu brilhante trabalho mental:

Na sua qualidade de medico  0 senhor nao ignorers. Watson, que

nac existe parte do corpo humane que ofereca maiores variacoes

do que uma orelha. Cada orelha possui caracterfsticas propria-

mente sues e difere de todas as outras. Na  Reoista Antropol6gica

do ana passado  0 senhor encontrara sabre este assunto duas bre-

ves monografias de minha lavra. Portanto, examinei as orelhas

contidas na caixa com olhos de especialista e observei acurada-

mente as suas caracterfsticas anatomicas. Imagine entjio a minha

surpresa quando, pousando as olhos sabre a senhorita Cushing,

notei que a sua orelha correspondia exatamente a  orelha feminina

que havia examinado pouco antes. Njio era possivel pensar numa

coincidencia. Nas duas existia   0  mesmo encurtamento da aba, a

mesma ampla curvatura do lobule superior, a mesrna circunvo-

luciioda cartilagem interna. Em todos as pontos essenciais trata-va-seda mesma orelha. Naturalmente percebi de imediato a enor-

me importancia de uma tal observecso. Era evidente que a vitima

devia ser uma parente consangiiinea, provavelmente muito pro-

xima, da senhorita...   9

atrafram a atenciio dos estudiosos   12  para uma passagern, por muito

tempo negligenciada, do famoso ensaio de Freud 0   Moi5es de

 Michelangelo   (1914). No comeco do segundo paragrafo, Freudescrevia:

Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicanalise,

vim a saber que urn especialista de arte russo, Ivan Lermolieff,

cujos prirneiros ensaios foram publicados em alemjioentre 1874

e 1876, havia provocado uma revolucgo nas galerias da Europarecolocando em discussao a atribuiciio de muitos quadros a cada

pintor, ensinando a distinguir com seguranca entre as imitac;5es

e as originals, e construindo novas individualidades artfstieas a

partir daquelas obras que haviam sido liheradas das suas atri-

bulcoes anteriores. Ele chegou a esse resultado prescindindo da

impressao geral e dos traces fundamentais da pintura, ressaltando,

pelo contrario, a importancia caracterfstica dos detalhes secunda-

rios, das particularidades insignificantes, como a conformacio das

unhas, doe lobos auriculares, da aureola e outros elementos que

normalmente passavam desapercebidos e que   0 copista deixa de

imitar, ao passo, porem, que cada artista as executa de urn modo

que   0  diferencia. Foi depois muito interessante para mim saber

que sob   0 pseudonimo russo escondia-se urn medico Italiano de

nome Morelli. Tendo se tornado senador do reino da Italia, Mo-

relli morreu em 1891. Q'<i_o_9.ue0seu metodo esta estreitamente

aparentado  i t  tecnica da psicanalise medica. Esta tambem tern par

~abito enetrar  em   coisas concretas e ocultas atraves de el~-

t~uco nota as ou desaperce  1   o~~_d_o!_~~~~i _!.q_~__Q_t!_~'refuB2s"da nossa observaC;iio(auch diese ist gewohnt, aus gering geschatz-

te n   oder nieht beachtenten Ziigen, aus dem Abhub - dem

"refuse" - der Beobachtung, Geheimes und Verbotegenes zuerraten).»

desse   paralelismo."

preciosa intuicao de

3. Veremos em breve as implicacoes

Antes, porem, sera born retomar uma Dutra

Wind:

A alguns dos cnncos de Morelli parecia esrranho   0  ditame de

que "a personalidade deve ser procurada onde   0 esforco pessoal

e menos intenso". Mas sobre este ponto a psicologia moderna

esraria certamente do lade de Morelli: os nossos pequenos gestosinconsdentes revelam 0 nosso carater rnais do que qualquer ati-

tude formal, cuidadosamente preparada por   nos.'!

"Os nossos pequenos gestos inconscientes ... ": a generica

expressao "psicologia moderna" pode ser diretamente substituida

pelo nome de Freud. As paginas de Wind sobre Morelli, de fato,

o ensaio sobre  0 Maish   de Michelangelo num primeiro mo-

menta aparecera anonimo: Freud reconheceu sua paternidade   50-

mente na ocasiao de inclul-lo em suas obras completas. Supos-se

que a tendencia de Morelli para apagar, ocultando-a sob pseudo.nimos, sua personalidade de autor acabasse de certo modo por

contagiar tambem a Freud; apresentaram-se hip6teses mais au

menos aceitaveis sabre   0significado dessa  convergencia."   0 certo

e   que, roberto pelo veu do anonimato, Freud declarou de maneira

ao mesmo tempo expIfcita e reticente a consideravel influencia

146   147

Page 6: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 6/21

inrelectual   que Morelli exerceu sabre   ele,   numa fase muito   ante-

rior a descoberta da psicanalise ("lange bevor ich etwas von der

Psychoanalyse horen kon~'t'l' .. "). Reduzir essa influencia, como

se fez, apenas ao   ensaio   soB,\e   0 Moish   de Michelangelo, au em

geral aos ensaios sobre   ternas ~gados   a   historia   da   arte," significa

restringir   indevidamente   0 alcance   das palavras de Freud:   "Creio

que   0  seu metodo (de Morelli) es~ estreitarncnte aparentado a

tecnica da psicanalise medica". Na realidade, toda a declaracaode Freud que citamos garante a Morelli urn lugar especial na his-

toria   da   formacao   da  psicanalise.   De   fato,   trata-se   de uma   conexao

documentada, e   nao   conjetural,    como   a maior parte dos   "antece-

dentes"   au  "precursores"   de Freud;   alern   do mais,   0encontro com

as textos   de   Morelli ocorreu, como ja dissemos, na fase "pre-ana-

Utica"   de   Freud. Temos de tratar,   portanto,   com urn elemento

que contribuiu diretamente para a   cristalizacao   da   psicanalise,

e niio (como no caso da pagina sobre   0   sonho de   J.   Popper

"Lynkeus", lembrada nas reedicoes da  Traumdeutungt"   com uma

coincidencia encontrada   posteriormente, quando ja   se   dera a des-

coberta.

4. Antes de tentar enrender   0   que Freud pode extrair da

leitura dos textos de Morelli, sera oportuno determinar   0momen-

to em que ocorreu essa leitura.   0momenta, au melhor, as rna-

mentos, vista que Freud fala de dois encontros   distintos:   "muito

tempo antes que eu pudesse ouvir falar de   psicandlise,   v im a

saber que urn especialista de   arte   russo,    Ivan Lermolieff ... ":

"Poi   depois muito interessante para mim saber que sob   0pseudo.

nimo russo escondia-se urn medico   italiano   de nome Morelli ...

A   primeira   afirmacao e datdvel   apenas   hipoteticamente.   Como

terminus ante quem   podemos colocar 1895 (ano da publicacao

dos  Estudos sobre a histeria   de Freud e Breuer) ou 1896 (quando

Freud usou   pela   primeira vez   0 termo   "psicanalise"}."   Como   ter-

minus post quem,  1883. Em dezembro daquele ano, de faro, Freud

contou nurna   longa carta   a   noiva   a  "dcscobena   da   pintura"   feita

durante uma   visita   it   galeria de Dresden. No passado, a   pinrura

nao   0 interessara; agora, escrevia,    "tirei   de   mim a barbatie   e  come-

148

cei  a  admirar"."   E diffcil   supor que, antes   dessa   data, Freud   fossc

atrafdo   pelos textos de   urn   desconhecido historiador da   arte ;   e

perfeitamente   plauslvel,   pelo   contrario,   que se pusesse a   le-los

pouco   depois   da   carta   a   noiva   sobre   a   galeria   de   Dresden, visto

que os primeiros ensaios de Morelli reunidos   em   livro (Leipzig, 

1880) referiam-se as obras dos mestres italianos nas galerias deMunique, Dresden e   Berlim."

o   segundo encontro de Freud com os textos de Morelli e  da-

tavel   com uma  precisao talvez   maior.   0   verdadeiro nome   de Ivan

Lermolieff tornou-se publico pela primeira vez no frontispfcio da

rraducao inglesa, publicada em 1883, dos ensaios que acabamos

de citar: nas reedicoes e traducoes posteriores a 1891 (data da

morte de Morelli) aparecem sempre tanto   0nome como   0pseudo-

nimo.P   Nao   e   de se excluir que urn desses volumes chegasse antes

ou depois   a s   maos   de Freud; mas provavelmente ele veio a   co- 

nhecer a identidade de Ivan Lermolieff por puro acaso, em setem.

bro de 1898, bisbilhotando numa livraria milanesa. Na biblioteca

de Freud conservada em Londres, de fato, aparece urn exemplar

do livro de Giovanni Morelli (Ivan Lermolieff),   Da pintura ita-liana.   Estudos   bistoricos criticos.   As   galerias   Borghese   e   Doria

Pamphili em Roma,   Miliio, 1897. No frontispfcio est. escrita a

data da aquisicao: Miliio, 14 de setembro.! A iinica estada mila.

nesa de Freud ocorreu no outono de 1898." Naquele momento,

por outro lado,   0livro de Morelli tinha para Freud mais urn outro

motivo de interesse. Havia alguns   meses,   ele vinha se ocupando

dos lapsos:   pouco tempo antes, na  Dalmacia,   oeorreu   0 episodic,

depois analisado na   Psicopatologia da vida cotidiana,  em que ten.

tara inutilmente Iembrar   0nome do autor   dos   afrescos de Orvie-

to. Ora, tanto   0   verdadeiro autor (Signorelli) como os autores

fictfcios que num primeiro   momento   vieram   it   mem6ria de Freud

(Botticeili, Boltraffio) eram mencionados no livro de Morelli."

Mas   0 que pode representar para Freud - para   0 jovem

Freud, ainda muito distante   da   psicanalise -   a  Ieitura   dos ensaios

de Morelli?   E   0proprio Freud a indica-lo: a proposta de urn me.

~~dointerpretativo centrado sobre os residuos, sobre os   dadO's

rnarginaia,   considerados reveladores.   Desse modo,   pormenffieS'fl(;r.

149

Page 7: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 7/21

malmente   consider-ados sem  importancia,   ou ate triviais,   "baixos",

forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do   espl-

rito humano: "as meus   adversarioa",   escrevia ironicamente Mo-

relli (uma ironia talhada para agradar a Freud), "comprazern-se

em   me   julgar   como   alguem   que   nso   sabe ver a   sentido   espiritual

de uma obra de   arre   e por   isso   da uma   importancia   particular a

meios exteriores, como as formas   d a   mao,   da orelha e ate,   borri-

bile dictu,   de um objeto tao antipatico como as unhas"." Morelli

tarnbem poderia se apropriar do lema virgiliano care a Freud, es-

colhido como epigrafe para   A   interpretacao   de sonbos:   "Flectere

si nequeo Superos, Acheronta movebo" ISe nao posso dobrar os

poderes superiores, moverei   0   Aqueronte IF'   AMm disso, esses

dados marginais, para Morelli, eram reveladores porque consti-

tuiarn   os mementos   em que   0 contrale de artista,   ligado   a   tradi-

~ao cultural, distendia-se para dar lugar a traces puramente indio

viduais,   "que   lhe escapam   sem que   ele   se de   conta"   .26   Ainda mais

do que a   alusao, nao   excepcional naquela   epoca,   a uma atividade

inconsciente,"   impressiona a   identiflcacao   do   micleo Intimo   da in-

dividualidade artistica com os elementos subtraidos ao controle daconsciencia,

em medicina; Conan Doyle havia sido medico antes de   dedicar-sc

a   literatura. Nos   tres cases, entreve-se   0modele da   semiotica   me-

dica: a disciplina que   perrnite   diagnosticar as   doencas inacessiveis

a   observacao   direta na base de sintomas   superficiais,   a s   vezes

irrelevantes aos olhos do leigo -   0 doutor Watson, por exemplo.

(De passagem, pode-se notar que a dupla Holmes - Watson,   0de-

tetive agudlssimo e   0medico obtuse,    represents   0desdobramento

de urn. figura real: urn dos professores do jovem Conan Doyle,

famoso pelas suas   extraordinarias capacidades diagnosticas.)   30   Mas

nao se trata simplesmente de coincidencias biograficas. No final

do seculo   X IX -   maio precisamente, na decada de 1870.80 _,

cornecou   a   se afirmar nas   ciencias   humanas   urn   paradigms indi-

dado baseado   [ustamente   na   semiotics.   Mas as suas   raizes   eram

multo   antigas.

II.

1. Por   milenios   0homem foi   cacador.   Durante   inumeras   per.seguicoes,   de aprendeu a reconstruir as   formas   e movimentos das

presas   invisfveis   pelas pegadas   na   lama,   ramos quebrados,   bolotas

de esterco, tufos de   P elO S I   plumas emaranhadas,    odores   estagna-

dos. Aprendeu a   farejar,   registrar, interpretar e   classificar   pistas

infinitesimais como fios de  barba.   Aprendeu a fazer operacdes   men-

rais   complexas com   rapidez   fulminante, no interior de urn denso

bosque ou numa clareira cheia de ciladas.

Geracoes   e   geracoes   de   cacadores   enriqueceram e   transmiri-

ram esse   patrimonio   cognoscitivo. Na faIta de uma   documentacar,

verbal par. se par ao lado das pinturas rupestres e dos artefatos,

podemos recorrer as narrativas de fabulas, que do saber daquelesremotos   cacadores   transmitem-nos as vezes urn  eco,   mesmo que

tardio e deformado. Tres irmlios (narra uma tabula oriental, di-

fundida entre os   quirquizes, tartaros, hebreus,   turcos ... )  31   encon-

tram urn homem que perdeu urn camelo - au, em outras varian-

res, urn cavalo. Sem hesitar, descrevem-no para ele:   e   branco,

cego   de urn olbo,   tern dois   odres   nas costas, urn cheio   de   vinho,   0

5. Vimos, portanto,   delinear-se   uma analogia entre os   meto-

dos de Morelli, Holmes e Freud. Do nexo Motelli-Holmes e Mo-

relli-Freud   ja   falamos. Da singular convergencia entre os proce-

dimentos de Holmes e os de Freud por sua vez falou S. Marcus."

o proprio Freud, alias, manifestou a urn paciente ("a hamem dos

lobos")   0seu interesse pelas aventuras de Sherlock Holmes. Mas,

a urn colega (T. Reick) que aproximava   0 rnetodo psicanalitico ao

de Holmes, falou antes com admiracao, na primavera de 1913,

das   tecnicas atributivas   de Morelli. Nos   tres   casas, E!stas taJyez

infinitesimajs   permjtem   captar urna   realjgade mais   profunda   de

outra forma jnatiogiyel. Pistas: mais   precisamente,   sintomas (no

caso de Freud), indicios (no caso de Sherlock Holmes), signos

pict6ricos (no caso de Morelli)."

Como se   explica essa   tripla analogia? A   resposta,   a primeira

vista,   e   muito   simples. Freud era urn medico; Morelli formou-se

150 151

Page 8: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 8/21

outre cheio   de   oleo.   Portanto,    vitam-no? Nao,   naD 0   viram. Entao

sao acusados de roubo e submetidos a julgamento. E, para os

irmaos,   0   triunfo:   num   instante   demonstram como,    atraves   de

indicios minimos,   puderam reconstruir   0  aspecto   de urn animal

que nunea vitam.

Os tres   irmaos   sao evidentemente   depositaries   de   uni~

de tipo   ~esmo   que   nao sejarndescritos como   cac;a~-

res).   Q   _ q _ u ~ _ 9 t . laC i e r i za   esse saber   e   a capacidade de, a partir de

dados   apare~temente   n eg lig c::n div ers ,- 're m o n " t i i- -   a   u m a r e il io il- a e------ . . . .-- - .- . - -  . .- ....-~    -"   -   _ , .. _",--_   ..  ' . ' . -   - - - " - ' ~ ~ " - -complexa   flaD .~xpe;t!,m~ijf~ve,Idlre~amente.Pode-se   acrescentar que

e~~~;d~d~~ sao se;"pre dis"~~t~;"pelo ('-b~-;;rvador de modo tal a dar

lugar   a uma seqiiencia narrativa,   cuja formula~io   mais simples   po-

deria ser ".lguem passou por   la".   Talvez a propria ideia de narra-

~iio (distinta do sortilegio, do esconjuro ou da invoca~ao)   3l   tenha

nascido   pela   primeira vez   numa sociedade   de   ca~adores,   a partir   da

experiencia da decifracao das pistas. 0 fato de que as figuras retori-

cas sobre as quais ainda hoje funda·se a linguagem da decifra~ilo

venatoria _ a parte pelo todo,   0efeito pel. causa - silo recondu-

ziveis   ao   eixo   narrativo da   metonimia,   com rigorosa exclusao da

metafora,33 re£orc;s.ria  essa   hip6tese - obviamente   indemonstravel-o cacador   teria   sido   0primeiro   a   "narrar urna historia" porque   era

o unico capas de let, nas pistas mudas (se nao imperceptiveis)

deixadas pela   presa, uma   serie   coerente de eventos.

"Decilrar"   au  "[er"   as pistas dos   animais  sao   metaforas. Sen-

timo-nos tentados a toma-les ao   p e   da   letra, como a condensacac

verbal de urn  processo hist6rico   que   levou,   num   espaco   de tempo

talvez   longuissimo,    a   invenciio   da   escrita.   A   mesma conexao   e

formulada, sob forma de mito etiologico, pela tradicsc chinesa que

atribula   a   invencao   da escrita a urn alto   [unclonarto,   que   observara

as pegadas   de urn  passaro   imprimidas nas margens arenosas de urn

rio." Por   outro lado, se se abandona   0 ambito dos mitos   e hip6-

teses pelo   ci a   historia   documentada, f ica-se impressionado com as

inegaveis analogias   entre   0 paradigma venat6rio   que delineamos

e   0   paradigms irnpllcito   nos   textos   divinat6rios mesopotamicos, 

redigidos a partir do terceiro rnilenio a.C. em   diante."   Ambos

pressup6em   0 minucioso reconbecimento de uma realidade talvez

Infima,   para   descobrir pistas   de eventos nio diretamente   experi-

mcntaveis pelo   observador. De urn  Iado, esterco,   pegadas,    pelos,

plumas;   de   outro,    entranhas de   animais, gotas   de   oleo   na   agua,

astros,   movimentos   involuntarios   do   corpo   e   assim   por   diante.   E

verdade   que a   segunda serie,   a   diferenca   da   primeira,   e   pratica-

mente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, podia

tornar-se objeto de adivinhacao para os adivinhos rnesopotamicos.

Mas a principal d ivergencia aos   flOSSOS   olhos   e   outra:   0   fato   de

que a adivinha\ao se voltava para   0 futuro, e a  decifracao,   para   0

passado (talvez urn passado de segundos). Porem a atitude cognos-

citiva   era,   nos dois   casos,   muito   parecida;   as   operacoes intelecruais

envolvidas - analises, comparacoes, classificacoes -, Iorrnalmen-

te   identicas.   E   certo   que   apenas formalmente:   0contexte   social

era   rotalmente   diferente.   Notou-se,   em   particular,"   como   a   inven-

,ao   da   escrita   modelou profundamente   a   arte   divinat6ria   rnesopo-

tamica,   As   divindades,   de f ato, era   atribuida, entre as outras   prer-

rogativas dos   soberanos,   a  d e   se   comunicar com   as   suditos atraves

de mensagens escritas - nos   astros,   nos   corpos   humanos, em toda

parte -, que os adivinhos tinham a tarefa de decifrar (ideia essa

destinada   a desembocar   na   imagem multimilenar do   "livro   da   na-

tureza").   E   a   identificacao   da   arte   divinat6ria   com   a   decifracao

de caracteres divinos inscri tos na realidade era reforcada pelas

caracteristicas   pictograficas da   escrita cuneiforme:   ela   tarnbem,

como   a   arte   divinatoria,   designava   coisas atraves   de   coisas,"

Tambem urn. pegada indica urn animal que passou. Em corn-

paracao com a concretude da pegada, da pista materialmente en-

rendida,   0pictograrna   j a   representa urn  incalculavel passo   a   frente

no caminho da abstracso intelectual. Mas as capacidades abstrati-

vas, pressupostas   na   introducao   da escrita   pictografica,   sao   por

Sua vez bern   poucas   em   comparacao   com   as  exigidas   pela  passagern

para a escrita fonetica.   De   fato, elementos pictograficos e foneti-

cos continuaram a   coexistir na escrita   cuneiforme,    assim   como na

literatura divinatoria mesopotarnica   a   progressiva intensificacao

dos   traces apriorisricos   e   generalizantes   nao   apagou   a   tendencia

f undamental de   inferir   as   causas   a   partir dos   efeitos."   E   essa atitu-

de que explica, por urn lado, a infiltra~io na lingua da arte divi-

152   153

Page 9: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 9/21

natoria mesopotsmica de termos tecnicos extraldos do lexico juri-

dico: por outro, a presence nos tratados divinatorios de rrechos

de fisiognomonia e semiotica medica."

Depois de urn longo rodeio, portanto, vohamos   a   semiotica.

Encontrarno-la incluida numa constelacdo de disciplinas (mas   0

termo   e   evidentemente anacronico) de aspecto singular. Poder-se-ia

fiear tentado a contrapor duas pseudociencias como a arte divina-

toria e a fisiognomonia a duas ciencias como a direito e a medici-

na _ atribuindo a heterogeneidade da aproximaciic   a   distancia

espacial e temporal das sociedades de que estamos falando. Mas

seria uma conclusao superficial. Algo ligava realmente essas for-

mas de saber na antiga Mesopotamia (se exc1uirmos a adivinbacao

inspirada, que se fundava em experiencias de tipo extatico):" uma

atitude orientada para a analise de cases individuals, reconstrui-

veis somente atraves de pistas, sintomas, indicios. as pr6prios

textos de jurisprudencia mesopotamicos nao consistem em   coleta-

neas de leis ou ordenacoes, mas na discussdo de urna casuistica

concreta," Em surna, pode-se falar de paradigma indiciario au di-

vinatorio, dirigido, segundo as formas de saber, para   0 passadc,o presente ou   0 futuro. Para   0 futuro - e tinha-se a arte divina-

toria em sentido proprio   -r-:   para   0 passado,   0 presente e   0 futu-

ro _ e tinha-se a semiotica medica na sua dupla face, diagnOstica

e prognostics -; para   0 passado - e tinha-se a [urisprudencia.

Mas, por tras desse paradigma indiciario au divinatorio, entreve-

se   0   gesto talvez mais antigo da historia intelectual do genera

humano:   0do cacador agachado na lama, que escrura as pistas

da presa.

2. Tudo   0que dissernos ate aqui explica como uma diagnose

de traumatismo craniano, formulada a partir de urn estrabismo

bilateral, podia se encontrar num tratado de arte divinat6ria me-

sopotamico;   42   de modo mais geral, explica como apareceu histori-

camente urna constelacao de disciplinas centradas na decifra~ao

de signos de vdrios tipos, dos sintomas as escritas. Passando das

civilizacoes rnesopotamicas para a Grecia, essa constelacao mudou

profundamente, em seguida   a   constituicao de clisciplinas novas,

154

como a historiografia e a filologia, e   a   conquista de uma nova

autonomia social e epistemologies por parte das antigas discipli-

nas, como a medicina.   0 corpo, a Iinguagem e a historia dos

homens foram subrnetidos pels primeira vee a uma investigacao

sem preconceitos, que por principia excluia a intervencao divina.

Dessa virada decisiva, que caracterizou a cultura da   polis,   nos

somos, como e obvio, ainda herdeiros. Menos 6bvio   e   0 fato de

que nessa virada urn papel de primeiro plano tenha sido desempe-

nhado por urn paradigms definivel como semi6tico ou indicidrio."

Isso   e   particularmente evidente no caso da medicina hipocratica,

que definiu seus metodos refletindo sobre a nocao decisiva de sin.

toma   (semeionv,   Apenas observando atentarnente e registrando

com extrema rninticia todos os sinromas - afirmavam as hipocra.

ticos -,   e   possfvel elaborar "historias" precisas de cada doenca:

a doenca e, em si, inatingivel. Essa insisrencia na natureza indi-

ciaria da medicina inspirava-se, com todas as probabllidades, na

contraposicso - enunciada pelo medico pitag6rico Alcmeon _

entre a imediatez do conhecimento divino e a conjetutalidade do

humane." Nessa negacao da transparencia da realidade, impllcitalegitirnacao encontrava urn paradigma indiciario de fato operante

em esferas de atividades muito diferentes. Os medicos, os histo-

riadores, os politicos, os oleiros, as carpinteiros, os marinheiros,

os cacadores, os pescadores, as mulheres: sao apenas algumas entre

as categorias que operavam, para os gregos, no vasto territ6rio do

saber conjetural. as confins desse territorio, significativamenre go-

vernado por uma deusa como Metis, a primeira esposa de Jupiter,

que personificava a adivinhacao pela "gua, eram delimitados por

terrnos como "conjetura", "conjeturar"   (tekmOT, tekmairesthai).

Mas esse paradigms permaneceu, como se disse, impliciro - esma-

gado pelo prestigioso (e socialmente mais devado) modelo de co.

nhecimento elaborado por   Platao."

3. 0 tom apesar de tudo defensivo de certas passagens do

"corpus" hipocratico   46   da   a entender que,   ja   no seculo v a.C., co-

rnecara a manifestar-se a polernica, destinada a durar ate nossos

dias, contra a incerteza da meclicina. Tal persistencia se explica

155

Page 10: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 10/21

r-,   4 ._ ,.,   "'~ 

4   i

" ' · · 1'. .'

;~~~.()

.»-l   4-:i    > 

:: dv~

...p 

pelo fato de que as relacoes entre   0medico e   0paciente - carac-

terizadas pela impossibilidade, par.   0   segundo, de controlar   0

saber e   0  poder detidos pelo primeiro - nao mudaram muito

desde   0 tempo de Hip6crates. Mudaram, pelo contrario, durante

quase 2500   anos,   os   termos   da   polemica,   a par com as profundas

rransformacoes   sofridas pelas   noeoes   de "rigor" e  "cieneia".   Como

e   6bvio,    a   cesura   decisiva nesse sentido   e   constituida pelo apare-

cimento de urn paradigma cientifico centrado na   Hsica   galileanamas que se revelou mais duradouro do que ela. Ainda que a ffsi-

ca   moderna   nao se possa definir como   "galileana"   (mesmo   nao

tendo renegado Galileu),   0significado epistemol6gico (e simboli-

co) de Galileu para a ciencia em geral permaneceu intacto." Ora,

~ de disciplinas que chamamos de Indicidrias

(incluida a ~cina) niio entra absolutamente nos crltenos--de

9s:0tifjcjdade ded;;iveis do paradigma gahleano.   Tr.ata~se,de fato, 

~~C;jp!!!.!!lJ_eminentemente   guahtatlva~.   que   U!ffi   por obJeto

cases, ..situaWes   s;:_documentos individuais,    enquanto individuais,   e

VJstament~.ggr   isS Q   a lcan sam   resultados que   tel?   .~ma m arg c:¥ l

ineliminavel de casualidade: basta pensar no peso das conjeturas

'(0.pr6~"rlc;termo   e   de   ongern   divinat6ria) ~ na medicina ou   nafilologia,    alem   da   arte mantica.   A   ciencia   galileana tinha uma natu-

reza totalmente   diversa,   que   poderia   adotar   0   lema   escolastico

individuum est inelfabile,   do que e individual nlio se pode falar.

o   emprego da rnaternatica e  0metodo experimental, de fato, im-

plicavam respectivamente a quantificacao e a repetibilidade dos

Ienomenos,   enquanto   a   perspectiva individualizante   excluia   por

definic;io a segundo, e admitia a primeira apenas em   funcoes auxi-

liares. Tudo isso explica   por   que a hist6ria nunea conseguiu   se

tornar   uma   ciencia   galileana. Justamente durante   0   seculo   XVII)

pelo contrario,   0 enxerto dos   metodos   do conhecimento   antiqua-

rio no   tronco   da historiografia trouxe indiretamente   a   l uz as

distantes origens   indiciarias   desta ultima, ocultas durante   seculos.

Esse ponto de partida permaneceu inalterado, niio obstante as

relacoes sernpre   mais estreitas que ligam a   historia   a s   ciencias

sociais.   A   hist6ria   se manteve como uma ciencia   social   sui generiJ) 

irremediavelmente ligada ao concreto. Mesmo que   0   historiador

156

nio possa deixar de   se referir, explicita   au implicitamente, a   series

de   fenomenos comparaveis,   a sua   estrategia   cognoscitiva   assim

como os seus c6digos   expressivos   permanecem intrinsecamente

individualizantes (mesmo que   0   indivfduo seja talvez urn grupo

social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido,   0 historiador   ecornparavel ao medico. que utiliza os quadros nosograficos para

analisar   0mal especffico de cada doente. E, como   0 do medico,   0

conhecimento hist6rico   e   indirero, indiciario, conjerural."

Mas   a   contraposicao   que sugerimos   e   esquematica   demais. No

ambito das disciplinas indiciarias, urna delas - a filologia, e mais

precisamente a   critica   textual -   constirulu   desde   0 seu surgimen-

to urn  caso   sob   certos   aspectos atipico.

o   seu objeto, de Iato, constitui-se atraves de uma drastica

sele~iio - destinada a se reduzir ulteriormente - dos elementos

pertinentes.   Esse   acontecimento   interno   da disciplina   £oi   escondi-

do   por duas   cesuras hist6ricas decisivas:   a   invencao   da   escrita   e   a

da   imprensa. Como se sabe, a critica textual nasceu depois da

primeira {quando decidiu-se transcrever os poemas homericos l e

consolidou-se depois da segunda {quando as primeiras e freqiien-

temente apressadas   edi~5es   dos classicos foram substitufdas por

edicoes mais confiaveisl." Inicialmente, foram considerados ndo

pertinentes ao texto os elementos Iigados • oralidade e • gestuali-

dade; depois, rarnbem os elementos ligados ao carater ffsico da

escrita. 0 resultado dessa dupla operacdo foi a progressiva desma-

terializacao do texto, continuamente depurado de todas as refe-

rencias   sensiveis: mesmo que seja necessaria uma   rela~aosensivel

para que   0 texto sobreviva,    0 texto nio se identifica com   0 seu

suporte." Tudo   isso nos   parece obvio, hoje,   mas   nao   0e   em   termos

absolutos. Basta pensar na fun~ao decisiva de entonecao nas lite-

raturas   orals,   ou da   caligrafia   na poesia   chinesa,   para perceber que

a  n0\80   de texto que acabamos de invocar   esta   ligada a   uma esco-

lha cultural, de alcance incalculavel. Que essa escolha niio tenha

sido determinada pela afirmacao da reproducao rnecanica em lugar

da manual   e   demonstrado pelo exemplo clamoroso da China, onde

a invencao   da imprensa nao   rompeu   0 do entre   texto literario   e

157

i   '"

>~0

f ~ ':-,

 \    &

 \ 

O f. . . _

,   . ; - ;

I   ,1r~' \ ,

!-

Page 11: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 11/21

158

4. Urn desses medicos era Giulio Mancini, de Siena, medico-

mot de Urbano   VIII.   Niio parece que conhecesse Galileu pessoal-

mente; mas  e   bern provavel que as dais   tenham   se encontrado,

porque freqiientavam os mesmos ambientes romanos (da corte

papal   iI  Accademia  <lei   Lineei) e as mesmas pessoas (de Federico

Cesi a Giovanni Ciampoli, a Giovanni Faber)." Num vivlssimo

retrato, Nicio Eritrea,   al ias   Gian Vittorio Rossi, delineou   0atefs-

mo de Mancini. suas extraordinarias capacidades diagnosticas (des-

critas eom termos do Iexico divinat6rio) e a falta de escnipulos

em extorquir dos clientes as quadros de que era "intelligen-

tisslrnus"." Mancini de fate redigira uma obra intitulada   Algu-

mas consideraciies rejerentes   a   pintura como deleite de um gentu-

bomem nobre e como   introdurao   ao que se deoe dizer,   que circulou

amplamente em manuscrito (a primeira impressdo integral remon-

ta a duas decadas)." 0 livro, como mostra   0  titulo, era dirigido

nao aos pintores, mas aos gentis-homens diletantes - aqueles vir-

tuoses que. em mimero sernpre rnaior, Iotavam as exposlcoes de

quadros antigos e modernos que aconteciam   todos   os anos   no

Pantheon) em 19 de marco." Sem esse mercado artfstico, a parte

talvez mais nova das   Consideracbes   de Mancini - a dedicada ao"reconhecimento da pintura", isto e, aos metodos para reconhecer

os   falsos,   para distinguir as originais   das   capias e   assirn   por

diante   «J -   nunca teria sido escrita.   A   primeira tentativa de   fun-

da~iio  da   connoisseurship   (como se chamaria urn seculo depois)

remonta, portanto, a urn medico celebre pelos seus fulminantes

diagn6sticos - urn hornem que, encontrando urn doente, com urn

rapido olhar "quem exitum morbus me esset habiturus, divinabat"

[adivinhava que fim aquela doenca viria a ter ]6 '   Sera permitido,

a esse ponto, ver no par olho clfnico-olho do conhecedor algo

mais que urna simples coincidencia,

Antes de seguir de perto os argumentos de Mancini, desta-quemos urn pressuposto comum a ele, ao "gentil-hornern nobre" a

quem se dirigiam as   Consideracoes ,   e a nos. Urn pressuposto nao

declarado porque julgado (erroneamenre) 6bvio:   0   de que entre

um quadro de Rafael e uma c6pia sua (trate-se de uma pintura,

uma gravura   DU,   hoje, uma fotografia) existia uma diferenca ineli-

caligrafia. (Veremos em breve como   0problema dos "textos" Hgu-

rativos se   colocou historicarnente em termos totalmente   dife-

rentes.)

Essa nocao profundamente abstrata de texto explica por que

a critica textual, mesmo se mantendo largamente divinat6ria, tinha

em si potencialidades de desenvolvimento em sentido rigorosa-

mente cientffico que amadureceriam durante   0   seculo   XIX,52   Com

uma decisao radical, ela levara em consideracao apenas os elemen-tos reprodutiveis (antes manualmente,   depois   mecanicamente. a

partir de Gutenberg) do   texto. Desse   modo, mesmo assumindo

como   obieto   os casos   individuals," acabara   por evitar   0  principal

obstaculo das ciencias humanas: a quahdade. E significativo que,

no momento em que se fundava - com   uma reducao   igualmente

drdstica - a moderna ciencia da natureza, Galileu tenha invocedo

a filologia. A tradicional comparacao medieval entre mundo e

livro funda-se na evidencia, na legibilidade imediata de ambos:

Galileu;   pdo   contrario, ressaltou   que "a filosofia ... escrita   neste

enorme livre que esta continuamente aberto diante dos nosscs

olhos (digo  0universo) ...   nao se pode entender se antes   na o   se

aprende a entender a lingua, conbecer   05 caracteres nos quais esta

escrito",   isto   e ,   "triangulos, circulos e outras figuras geometri-

cas"  .5 4   Para..o   £;1650£0   natural como para   0   £i16]oiO.   0   texta   e

urna   entidade profJJnda   ipyjsivel, a   set tecoosttldda   para   aMm dos

dados   senslveis: "as fi~uras, oS_.DlJIDCtDS-i:..,.os   moyjroentgs m~s

na.2__9.L.Qd.Qres.nem   QS   sabores. nem os, sons.   os auais   fora do   ani-

m al vivo n ao erd o q UL!!ta m ~ tem d e n om es".55

Com essa frase Galileu imprimia   a   ciencia da natureza uma

guinada em sentido tendencialrnente antiantropocentrico e anti-

antropomorfico que eia nio viria mais a abandonar. No mapa do

saber abria-se urn rasgo destinado a se alargar continuamente. E

certamente entre   0   fisico galileano, profissionalmente surdo aos

sons e insensivel aos sabores e aos adores, e  0medico conternpo-

ranee seu, que arriscava diagn6sticos pondo   0 ouvido em pei tos

estertorantes, cheirando fezes e provando urinas,   0  contraste nao

poderia ser maior.

159

Page 12: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 12/21

mindvel, As implicacoes comerciais desse pressuposto - de que

uma   pintura   e   por   definicso   urn   unicum,   irrepetlvel " -   sao

6bvias. A elas est" ligado   0 surgimento de uma figura social como

o do conhecedor. Mas trata-se de urn pressuposto que nasce de

uma   escolha   cultural de forma aIguma   prevista,   como mostra   0

fato de   nao   se apliear   aos textos   escritos.   as   supostos caracteres

eternos da pintura e da literatura   nao   cabem   ai.   J a   vimos antes

as guinadas hist6ricas pelas quais a nocao de texto escrito foi de-

purada de uma   serie   de elementos considerados   nao-pertinentes.

No caso da pintura, essa depuracao (ainda) niio se verificou. Por

i550,    aos   nOSSQS olhos,    as   c6pias   ma nu sc ri ta s o u a s   edicoes   do

Orlando Furioso   podem reproduzir exatamente   0  texto desejado

por   Ariosto:   as c6pias de urn retrato de Rafael,   nunca.?'

o   diferente estatuto das c6pias na pintura e na Iiteratura

explica   por que Mancini   nao   podia se servir, enquanto   conhece-

dor, dos   metodos   da   critica   textual,   rnesmo estabelecendo   em   prin-

dpia uma analogia entre   0 ato   de   pintar   e   0 ato   de   escrever."

Mas,    justamente partindo dessa   analogia,   recorreu em   buses   de

ajuda  a outras   disciplinas,   em vias de   formacao.

o primeiro problema que ele se colocava era   0   da datacao

das   pinturas.   Para   tanto,    afirmava,   e   necessario adquirir "uma

certa   pratica   na   cognicso   da variedade da pintura quanta   ao   seu

tempo) como tern   esscs antiquaries   e   bibliotecarios   dos  caracteres, 

os   quais reconhecem   0 tempo da   escrira"."   A   alusao   a   "cogni-

c;ao_ ..   dos  caracteres"   refere-se quase   certarnente   aos   rnetodos   ela-

borados nos mesmos anos por Leone Allacci, bibliotecario da  V a -tieana, para datar os manuscritos gregos e latinos -   metodos

destinados   a set retomados e desenvolvidos   meio seculo mais   tarde

pelo fundador da ciencia paleogrsfica, Mabillon." Mas, "alem da

propriedade comum do   seculo",   existe - continuava Mancini -

"a   propriedade   propria individual", assim como   "vemos   nos escri-totes   em que   se   reconhece essa   propriedade distante".   0 n ex o

anal6gico   entre pintura e   escrita,   sugerido antes   em escala macros-

copica   ("os   tempos")   "0 seculo"),   era entio   novamente propos to

em   escala microscopica,   individual. Nesse ambito, as   metodos

protopaleograficos de urn Allacci nao eram utilizaveis. Houvera

160

porem, nesses mesmos snos, uma   tentativa isolada de submeter   a

analise, de urn ponto de vista   incomum,   as escritas individuais. 0

medico Mancini, citando Hip6crates, observava que   e   posslvel reo

montar   das  "operacoes"   as  "impressoes"   da alma,   que por sua vez

tern   raizes   nas   "propriedades"   dos   corpos singulares: "suposicso

pela qual e com a qual, como creio, algumas belas inteligencias

deste   nOSSQ   seculo escreveram e quiserarn   dar regra para   reconhe-

cer   0intelecto e a   inteligencia   dos outros com   0modo   de  escrevere da escrita deste ou daquele homem". Uma dessas "belas inteli-

gencias" era, com todas as probabilidades,   0   medico bolonhes

Camillo Baldi, que em seu   Tratado sobre como de uma carta mis-

siva se conbece a natureza e a qualidade do escritor   havia incluido

urn capitulo que pode-se considerar   0mais antigo texto de grafo-

logia   j a   aparecido na Europa. "Quais sao os significados" -   e   0titulo do capitulo   VI   do   Tratado -   "que na figura do carater

podem-se   apreender": onde   "carater"   designa "a figura, e   0traca-

do da   letra,   que se   chama   elernento,   feito   c om a   pena   sobre   0

papel"," Mas, niio obstante as palavras elogiosas que lembramos,

Mancini desinteressou-se quanto ao objetivo declarado da nascente

grafologia, isto ~, a reconstrudlo da personalidade dos escreventes

rernontando-se   do   "carater" escrito   ao   "carater" psicologico   (sino-

nfmia   esta que   remere,   um a   vez mais,   a   uma mesma remota   matriz

disciplinar). Ele se deteve, pelo contrario, no pressuposto da nova

disciplina: a diversidade, ou melhor, a singularidade inimitavel

das escritas individuais. Isolando nas pinturas elementos igualmen-

te inimitaveis,   estaria   alcancado   0 fim que Mancini se   prefixava:

a elaboracgo de urn metodo que permitisse distinguir entre os

originais e os falsos, as obras dos mestres e as c6pias ou trabalhos

de escola. Tudo isso explica a exortacao para se conferir se nas

pinturas:

ve-se aquela   desenvoltura do   mestre,   e em particular naquelas

partes   que   necessariamenre fazem-se   com  resolucao,   de   modo que

nio   podem passer   he m   com a   imit~o,   como sio em  particular

os   cabelos,   a barba, os   olhos,   Qu e   0 anelar   dos cebelcs,   quando

se   deve imitar,   .faz-se com   multo   custo,    que   depois   na c6pia spa-

rece,   e, se   0 copiador   na o   quer   imitd-lo,   entio Dio   tern   a   per-

feicio do   mesrre.   E   essas   partes   na   pintura   sao como os   traces e

161

Page 13: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 13/21

os volteios   na   escrira,   que   precisam   daquela   desenvolture e reso-

lucao   de   rnestre, Isso deve-se ainda observer   em alguns sopros   e

golpes   de   luz   de   espacc   em   especo.   que   pelo   mestre   sao   postos

de   uma vee   e com a  resclucao   de   uma pincelada inimitdvel;   assim

nas   dobras dos   tecidos e   em sua luz, os quais   dependem meis   da

fantasia e  resoluceo   do   mestre   do que   de verdede da coisa criada.63

Como se   v e ,   0paralelo,   ja   sugerido por Mancini em   varies

contextos,   entre   0ato   de escrever e   0de pintar   e   retornado   nessa

passagem de   urn   ponto   de vista   novo, sem   precedentes   (se se   exce-

tuar urn. fugaz alusso de Filarete, que Mancini podia nao co-

nhecer "). A analogia se ressalta com   0  uso de termos tecnicos

recorrentes   nos tratados   de   escrita   contempordneos,   como   "desen-

voltura ",   "traces", "volteios"."   Tambem a   insistencia   na   "veloci-

dade" tern   a   mesma origem: numa   epoca   de   crescenre desenvol-

vimento burocratico,   as qualidades que asseguravam   0sucessc   de

uma Ietra   chance1eresca cursiva no mercado   escriturario erarn, alern

da elegancia, a.rapidez no   due/us   (conducao da pena)." Em geral,

a   importancia   atribuida por Mancini   aos   elementos ornatnentais

dernonstra uma reflexao   nao   superficial sobre as  caracterlsticas   dos

modelos de escrita predominantes na Italia entre   0 final do seculoXVI   e   0   infcio   do   seculo   xvn." 0estudo   da   escrita dos   "caracte-

res" mostrava que a   identi£ica~io   da mao do mestre deveria set

procurada de preferencia nas partes do quadro   a)   executadas mais

rapidamente e, portanto,   b)   tendencialmente desligadas da repre-

sentacao   do   real (emaranhado de cabeleiras, tecidos que "depen-

dem mais da fantatsia e resolucao do mestre do que da verdade

da coisa criada "). Sobre a riqueza que jaz nessas afirmacoes _

uma   riqueza que nem Mancini   nem   os   seus conremporaneos   foram

capazes de trazer   it   luz -, voltaremos mais   adiante.

5.   "Caracteres". Por volta de 1620, a pr6pria palavra

retoma,   em   sentido   proprio au analOgico, de urn lado nos   textosdo fundador da ffsica moderna e, de outre, nos iniciadores da pa-

leografia, da grafologia e da   connoisseurship,   respectivamente.   : e

certo que, entre   os "caracteres"   imateriais que   Calileu   lia com   os

olhos do cerebro   73   no livro da natureza, e os que Allacci, Baldi

au Mancini   decifravam   materialmente em   papeis   e pergaminhos, 

162

tela. ou quadros,   0parentesco era apenas metaf6rico. Mas a iden-

tidade dos termos ressalta ainda mais a hererogeoeidade das   disci-

plinas que comparamos.   0seu grau de cientificidade, na ace~io

galileana do termo, decrescia bruscamente,   a   medida   que das

"propriedades" universais da geometria passava-se   a s   "proprieda-

des comuns do seculo" das escritas e, depois, as "propriedades

proprias individuais" das pinturas - ou ate das caligrafias.

Essa escala decrescente confirm. que   0verdadeiro obstaculo

a   aplicacao do paradigma galileano eta a centralidade maior ou

menor do elemeoto individual em cad.   disciplina.   Quanto mais

os   traces   individuais   erarn   considerados   pertinentes,   tanto   mais   se

esvafa a possibilidade de urn conhecimento cientffico rigoroso.

Certamente a decisao preliminar de negligendar os tra~os indivi-

duais nao garantia por si 56 a aplicabilidade dos metodos fisico-

matematicos (sem a qual nao se podia falar em adocso do para-

digma   galilesno   propriamente dito) - mas, pelo menos,   excluta-a

de vez.

6. Nesse ponto, abriam-se duas vias: ou sacrificar   0conheci-

mento do elemento individual   a   generaliza~io (mais ou menos ri-gorosa, mais ou menos formuldvel em linguagem matematica}, ou

procurar elaboratt   talve;   As apelmdr]as urn paNtdjgma   djfmnte, 

fundado no conhecimento ciend£ico (mas de tooa uma   cjeptificj~

dade por so definir) dQ individu'l1... A prime ira via foi percorrida

pelas ciencias naturais, e s6 muito tempo depois pelas cieneias

humanas. 0 motivo   e   evidente. A   zendencia   a   apagar os traces   in-

dividuais de urn objeto   e   diretamente proporcional   a   distancia

emocional do observador. Numa pagina do   Tratado de arquitetura,

Filarete, depois de afirmar que   e   impossivei construir dois editi-

cios perfeitamente idenricos - assim como, apesar das aparencias,

as  "Iucas   tartaras, que   ter n   todas   a   mesma   cars,   ou   as   d a   Etiopia,

que sao todas   negras, se   olhares   direito, veras   que existem   dife-

rencas   nas   semelhancas" -,   admitia que existem   "muitos   animais

que   sao   semelhantes   uns   aos outros,   c o m o as   moscas,   formigas, 

vermes eras e muitos peixes, que daqueia esp<'cie nao se reconhe-

ce um do   outre","   Aos olhos de urn arquiteto europeu, as diferen-

163

Page 14: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 14/21

cas mesmo pequenas entre dois ediHcios (europeus) eram relevan-

tes,   as entre duas   fucas tartaras   Oll   etlopes, negligenciaveis,   e as

entre dais vermes ou duas formigas, ate inexistentes. Urn   arqui-

teto t.rtaro, urn etlope desconbecedor de arquitetura ou uma

formiga teriam proposto hierarquias diferentes. 0 conhecimento

individualizante  L~emp£eantropocen!~}Eo, _ :!..n < > < :~ ~ !E !C O   e assim

t£r diante .SiSfsifiraodo.   E certo que   ta~m   os   anirnais,   mine-

rais ou plantas poderiam ser considerados numa perspectiva indio

vidualizante, por exemplo divinat6ria   75 -   sobretudo no caso deexemplares claramente fora das   normas,   Como se   sabe,   a   terato-

logia era uma parte importante da arte  divinatoria,   Nas   primeiras

decades   do   seculo   XVII,    a   influencia   exercida mesmo que indireta-

mente por urn paradigma   como   0galileano   tendia a subordinar   0

estudo dos   fenomenos   anormais   a   pesquisa sobre a norma, a   adivi-

nhacao ao conhecimento generalizante da natureza. Em abril de

1625, nasceu nas cercanias de Roma urn bezerro com duas cabe-

cas, Os naturalistas ligados   a   Accademia dei Lincei interessaram-

se pelo caso. Nos jardins vaticanos de Belvedere, encontravam-se

em discussiio Giovanni Faber, secretario da Accademia, Ciampoli

(ambos, como se disse, muito ligados a Galileu), Mancini,   0car-

deal Agostino Vegio e   0   papa Urbano   VIII.   A primeira pergunta

a ser colocada foi a seguinte:   0 bezerro bicefalo deve ser conside-

rado urn animal iinico ou duplo? Para os medicos,   0elemento que

distingue   0indivlduo   e   0cerebro: para os seguidores de Aristote-

Ies,   e   0 coracso," Nessa descricao de Faber, percebe-se   0   eco pre-

sumivel da   intervencao   de Mancini,    0 unico   medico presente na

discussao.   Portanto, apesar dos seus   interesses astrologicos," ele

analisava as   caracterfsticas especfficas   do parto monstruoso nao

com urn tim de tirar  ausplcios,   mas para chegar a uma   definicao

mais precisa do individuo normal -   0individuo que, por perten-

cer a uma   especie,   podia com todo   0direito   serconsiderado repe-

tfvel.   Com a mesma   atencao   que normalmente dedicava ao exame

de uma   pintura,   Mancini   teve   de   investigar   a anatomia do   bezerro

bicefalo, Mas a analogia com a sua atividade de conbecedor parava

por   ai.   Num certo   sentido,   justamente urn personagem   como Man-

cini expressava a uniiio entre   0 paradigma divinat6rio   (0 Mancini

diagnosticador e conhecedor) e   0 paradigma generalizante   (0Man-

cini anatomista   e   naturalista). A   uniao,   mas   rambem   a   diferenca.

Niio obstante as aparencias, a descricao precisa da autopsia do

bezerro, redigida por Faber, e as minuciosas   gravures   que a   acorn-

panhavam,   representando   as   orgaos   internos do   animal,"   nao   se

propunham captar as   "propriedades   comuns" (aqui   naturais,   nao

historicas) da especie. Desse modo, era retomada e aperfeicoada a

tradicao   naturalista que se fundava em   Aristoteles,   A   vista, sim-

bolizada pelo lince de olhar agudissimo que ornamentava   0brasdoda Academia de Federico Cesi, tornava-se   0orgiio privilegiado das

disciplinas para as quais estava vedado   0 olho supra-sensfvel da

rnatematica."

7.   Entre essas   estavam, pelo   menos   aparenternente,   as   den-

cias humanas (como as definirlamos hoje).   A fortiori,   num certo

sentido - quando   menos   peIo seu tenaz  antropocentrismo,   expres-

so com tanta simplicidade na pagina j. lembrada de Filarete. No

entanto, houve tentativas de   inrroduzir   0metodo rnatematico   tam-

bern no estudo dos fares humanos." E compreensfvel que a pri-

meira e mais bern-sucedida - ados aritmeticos politicos - tenha

adotado como seu objeto os gestos humanos mais determinados

em   sentido biologico: nascimento, procriacdo   e   morte. Essa   drasti-

ca   reducao   perrnitia   uma   pesquisa   rigorosa -   e,   ao mesmo tem-

po, bastava para as finalidades cognoscitivas militares ou fiscais

dos Estados absolutist as , orientados, dada a escala das suas opera-

¢ies, em sentido exc1usivamente quantitativo. Mas a   indiferenea

qualitativa   dos comitentes   da   nova   ciencia -   a   estatistica -   nio

desfez totalmente vinculo entre ela e a esfera das disciplinas que

chamamos de indiciarias, 0 calculo das probabilidades, como   diz

o titulo da obra classica de Bernouilli   (Ars con;ectandi),   procura-

va dar uma   formulacao matemarica   rigorosa aos problemas que

haviam sido enfrentados pela arte divinatoria de maneira comple-tamente   diferenre"

Mas   0conjunto das  ciencias   humanas permaneceu solidamen-

te ancorado no qualitativo. Nao sem   mal-estar,   sobretudo no caso

da medicina. Apesar dos progressos realizados, seus metodos mos.

164   165

Page 15: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 15/21

travam-se   incertos, e os resultados,    dubios.   Um   texto   como   A   cer-

teza da medicina  de Cabanis, publicado no final do s&uIo   XVIII,"

admitia essa falta de rigor, ainda que depois se esforcasse em reco-

nhecer a medicina, apesar de tudo, uma cientificidade   sui generis.

As   raz&:s   da   "incerteza" da medicina pareciam set fundamental-

mente duas. Em primeiro lugar, nao bastava catalogar todas as

doencas ate cornpe-las num quadro ordenado: em cada individuo,

a doenca assumia caracteristicas diferentes. Em segundo lugar,   0

conhecimento das doen~ permanecia indireto, indiciario:   0corpo

vivo era, por defini~ao, inatingivel. Certamente podia-se seccionar

o cadaver; mas como, do cadaver,   ja   corrompido pelos processos

da morte, chegar as caracteristicas do individuo vivo?" Diante

dessa dupla dificuldade, era inevitivel reconhecer que a propria

eficacia dos procedimentos da medicina era indemonstravel. Em

conclusao, a impossibilidade de a medicina alcancar   0 rigor proprio

das ciencias da natureza derivava da impossibilidade da quantifi-

c~,   a nio   ser   em   fun~ puramente   auxiliares;   a   impossibili-

dade da quantificacao derivava da presence ineliminavel do quali-

tativo, do individual; e a presence do individual, do f.to de que   0

olho humano   e   mais sensivel   a s   diferencas [talvez marginais) entre

os seres humanos do que as diferencas entre as pedras ou as folhas.

Nas discuss5es sobre a   "incerteza"   da   medicine,   ja   estavam for-

mulados os futuros nos epistemologicos das ciencias humanas.

8. Entre as linhas do texto de Cabanis transparecia uma

compreensfvel   impaciencia.   Apesar das   obiecees,   mais ou menos

 justificadas, que the poderiam ser dirigidas no plano metodologico,

a medicina   sempre   se   mantinha,   porem,   urns  ciencia   plenamente re-

conhecida do ponto de vista social. Mas nem todas as formas de

conhecimento indiciario se beneficiavam, naquela epoca, de seme-

lhante prestigio. Algumas, como a  connoisseurship,   de origem reo

lativamente recente, ocupavam uma posi~1io ambigua,   a   margem

das disciplinas reconhecidas. Outras, maio ligadas   a   prdtica conti-

diana, estavam simplesmente de fora. A capacidade de reconhecer

urn cavalo defeituoso pelos jarretes, a vinda de urn temporal pela

166

repentina mudanca   do   vente,   uma   inte~o   hostil num rosto que

se   sombreia   certamente   nao   se   aprendia nos tratados de   alveitaria,

de   meteorologia   ou psicologia. Em todo   caso, essas   formas de

saber eram mais ricas do que qualquer codificac;io escrita;   nao

eram aprendidas nos livros mas a viva voz, pelos gestos, pelos

olhares; fundavam-se sabre sutilezas   certamente nao-formalizaveis,

freqiientemente   nem sequer   traduzfveis   ern nivel   verbal; consti-

tuiarn   0patrimonic,   em parte   unitario,   em parte   diversificado,   de

homens e mulheres pertencentes a todas as classes sociais. Urn sutil

parentesco as unia:   todas   nasciam da  experiencia,   da concretude da

experiencia, Nessa concretude estava a forca desse tipo de saber,

e   0 seu limte - a incapacidade de servir-se do poderoso e terrf-

vel instrumento da abstra<;iio."

Desse   corpo   de   saberes locais,  85   sern   origem nem memoria ou

historia,   a cultura escrita   ten tara   dar a tempo uma   formulacao

verbal precisa. Tratava-se, em geral, de formulacoes desbotadas e

empobrecidas. Basta pensar no abismo que separava a rigidez

esquematica dos tratados de fisiognomonia e a acuidade fisiogno·

monica flexlvel e rigorosa de urn amante, urn mercador de cavalos

ou urn jogador de cartas. Talvez so no caso da medicina a codifi-

ca~ao escrita de urn saber indiciario tenha dado lugar a urn verda-

deiro enriquecimento (mas a historia das relacoes entre medicina

culta e medicina popular ainda esta por ser escrita). Ao longo do

seculo   XVIII,   a situa<;iio muda. Ha urna verdadcira ofensiva cultu-

ral da burguesia, que se apropria de grande parte do saber, indio

ciario   e   nao-indiciario,   de   artesaos e carnponeses,   codificando   e

simultaneamente intensificando urn gigantesco processo de acultu-

ra9io, ja iniciado (obviarnente com formas e conteudos diversos)

pela Contra-Reforma, 0 simbolo e   0 instrumento central dessa

ofensiva e, naturalmente, a   Encyclopedie.   Mas tambem seria pre-

ciso analisar epis6dios   insignificantes   mas   reveladores,   como   a   in-

tervencao   do   anonirno mestre-pedreiro   romano, que demonstra a

WinckeImann, provavelmente estupefato, que a "pedrinha peque-

na e chata" reconhecivel entre os dedos da mao de uma estatua

descoberta em Porto d'Anzio era a "bucha ou a rolha da ambula".

167

Page 16: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 16/21

A   coletanea   sistematica desses   "pequenos discernimentos",

como   chama-os   W i nc ke lm an n e m   outre lugar," alimentou entre

os seculos   XVIII   e   XIX   as novas formulacoes de antigos saberes -

da cozinha   a   hidrologia e   a   veterinaria, Para urn rnimero sempre

crescente   de   leitores,   0acesso   a determinadas   experiencias   torna-

se cada vez mais mediado pelas paginas dos Iivros, 0 romance

simplesmente   forneceu   a   burguesia   urn   substituto e, ao   mesmo

tempo, uma   reformulacso   dos ritos de   iniciacso - istc   e , 0

acessoa   experiencia em geral."   E e   justamente gracas   a   literatura de

imaginacao que   0 paradigma indiciario conheceu nessa epoca urn

novo, e   inesperado, destine.

9.   Ja   lembramos, a prop6sito da remota origem provavelmen-

te venatoria do paradigma indiciario, a tabula ou conto oriental

dos tres   irmaos   que, interpretando uma   serie   de indicios,    conse-

guern   descrever   0  aspecto   de   urn animal   que nunea   viram. Esse

conto apareceu pela primeira vez no Ocidente   atraves   da  coletanea

de   Sercambi." Posteriormente,   retornou como   ponte   a l t o d e u m a

coletanea   de contos   muito   mais   ampla,   apresentada como   tradu-

~iio do persa para   0 italiano aos cuidados de Cristoforo Armenia,

que apareeeu em Veneza na metade do   seculo   XVI   sob   0   titulo

Peregrina~ao dos Ires jovens [ilbos do rei de Serendip.   Dessa

forma,    0 l ivro f oi reeditado e traduzido   outras   v ez es - a nt es   em

alernao, depois,   durante   0   seculo   XVIII,    n a o nd a d a m o d a   orienta-

Iizante de entao, nas principais Ifnguas europeias.! 0 sucessa da

hist6ria dos filhos do rei de Serendip foi tal que levou Horace

Walpole, em 1754, a cunhar a neologismo   serendipity   para desig-

nar as   "descobertas   imprevistas, feitas   gracas   ao   acaso   e   a   inteli-

genda".to Alguns anos antes, Voltaire reelaborara, no tereeiro ca-

pitulo de   Zadig,   0   primeiro conto da   Peregrinaeao,   que lera na

traducao francesa. No reelaboracao,   0camelo do original bavia setransformado numa cadela e num cavalo, que Zadig conseguia

descrever minuciosameote decifrando as pistas sobre   0 terreno.

Acusado de furto e conduzido perante as jufzes; Zadig justificava-

se reconstituindo em voz alta   0 trabalho mental que the permitira

tracar   0 retrato dos dois animals que nunca havia visto:

168

)'ai vu sur la sable  les   traces  d'un   animal,   et j'ai juge aieement

que   c'etaient   celIes   d'un   petit chien. Des sillons   legers et   longs, 

imprimes   sur de petites   eminences   de sable entre   les   traces des

pattes, m'ont fait connaitre que   c'etait une   chienne dont les

mamdles   etaient   pendantes,    et   qu'   ainsi   elle   avait fait des petits

it   y   a peu de   [ours ...   93

Nessas linhas,   e   nas   que   seguiarn, estava   0 ernbriao   do   ro-

mance policiaL   Nelas   inspiraram-se   Poe,   Gaboriau,   Conan   Doyle

- os dais primeiros   diretamente,   0 terceiro   talvez   indiretamente."Os motivos do extraordindrio destino do romance policial

sao conhecidos. Sobre alguns deles voltaremos adiante. Mas pode-

se observar desde   ja   que ele se fundava num modelo cognoscitivo

ao mesmo   tempo   antiqiiissirno   e   moderno.   Da   sua   antiguidade

simplesmente imemorial   j s   falamos. Quante   a   sua modernidade,

bas tara citar   a   pagina   em que Curvier exaltou os   metodos   e   sucee-

sos da nov. ciencia paleon tologica:

... aujourd'bui, quelqu'un   qui voit   seulement   la   piste   d'un pied

fourchu   peut en   conclure   que l'animal qui a laisse  cet empreinte

ruminait,    et ceue   conclusion   est   tout aussi certaine qu'aucune

autre   em   physique  et   en   morale.   Certe seule   piste   donne   done   l

celui   qui   I'observe, et   la forme des   dents,   et   Ia   forme des michoi·

res,   et  la forme des   vertebres,   et Ia forme de tous   Ies   os des

[ambes,   des   cuisses,   des   epaules   e t du   bassin   de   l'animal   qui

vient de passer:   c'est une   marque plus sure que toutes celles de

Zadig."

Urn   sinal   mais   seguro, ralvez:   mas   tambem intirnamente   se-

melhante. 0 nome de Zadig tornara-se tao simb6lico que Thomas

Huxley, em 1880, no ciclo de conferencias proferidas para a difu-

sao das descobertas de Darwin, definiu como "metoda de Zadig"

o procedimento que   reunia a   historia,   a   arqueologia,   a ge ol og ia , a

astronomia fisica e a paleontologia: isto e, a capacidade de fazer

profecias retrospectivas. Disciplinas como estas, profundamente

permeadas pela diacronia, nao podiam deixar de se valtar para a

paradigma indiciario ou divinat6rio (e Huxley falava explicita-

mente de adivinhacao voltada para   0   passado)," descartando a

paradigm. galileano. Quando as causas nio sao reproduziveis, so

resta inferi-las a partir dos efeitos,

169

Page 17: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 17/21

 III.

1. Poderfamos comparar as fios que compoern esta pesquisa

aos fios de urn tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-

se numa trama densa e hornogenea. A coerencia do desenho   e   ve-

rificavel percorrendo   0  tapete com as olhos em varias direcoes.

Verticalmente, e terernos uma sequencia do tipo Serendip-Zadig-

Poe-Gaboriau-Conan Doyle. Horizontalmente, e teremos no inicio

do seculo   XVIII   um Dubos que dassifica, uma ao lado da outra,em ordem decrescente de inconfiabilidade, a rnedicina, a   connois-

seurship   e a identificacso das escritas."   Ate   mesmo diagonalrnen-

te - saltando de urn contexto hist6rico para outro -, e  a s   costas

de monsieur Lecoq, que percorreu febrilmente urn "terrene in-

culto, coberto de neve", pontilhado de pistas de criminosos, com-

parando-o   a   "imensa pagina brancs onde as pessoas que procura-

mos deixaram escrito nao s6 seus movimentos e seus passos mas

tambem seus pensamentos secretes, as esperancas e angiistia que

as agitavam"," verernos perfilarem-se autores de tratados sobre a

fisiognomonia, adivinhos babilonicos empenhados em ler as men-

sagens escri tas pelos deuses nas pedras enos ceus, cacadores do

Neolltico.

o   rapete   e  0 paradigms que chamamos a cada vez, conforme

os contextos, de venat6rio, divinatorio, indiciario ou semi6tico.

Trata-se, como   e   claro, de adjetivos nao-sinonimos, que no entan-

to rernetem a urn modelo epistemol6gico comum, articulado em

disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo empresti-

rno de metodos au termos-chave. Ora, entre as seculos   XVIII   e   XIX,

com   0 aparecimento   das   "ciencias humanas", a constelacao das

disciplinas indiciarias modifica-se profundarnente: aparecem novos

astros destinados a urn rapido crepusculo, como a frenologia," ou

a urn grande destine, como a paleontologia, mas sobretudo afirma-

se, pelo seu prestigio epistemol6gico e social, a medicina. A ela se

rcferem, explicita ou implicitamente, todas as "ciencias humanas".

Mas a que parte da medicina? Na metade do seculo   XIX,   vemos

desenhar-se uma alternativa:   0 modelo anatornico de urn lado, a

semi6tico de outro. A metafora da "anatomia da sociedade", usada

170 

numa passagem crucial tambern par Marx," exprime a aspiracao

a   urn conhecimento sistematico numa   epoca   que vira enfim   0des-

moronamento do ultimo sistema filosofico, a hegeliano. Mas, nao

obstante   0 grande destino do marxismo, as ciencias humanas aca-

baram par assurnir sempre maisf com uma relevante excecao, como

veremos)   0 paradigma indiciario da semiotica. E aqui reencontra-

mos a triade Morelli-Freud-Conan Doyle da qual partimos.

2. Ate agora falamos de urn paradigma indiciario (e seus si-

nonimos) em sentido lato. Chegou   0   momento de desarticula-lo.

Uma coisa   e   analisar pegadas, astros, fezes (animais au hurnanas),

catarros, corneas, pulsacoes,   campos   de   neve   ou   cinzas   de cigarro;

outra   e   analisar escritas, pinturas au discursos. A distin~ao entre

natureza (inanirnada ou viva) e cultura   e   fundamental - certa-

mente rnais do que aquela, infinitamente mais superficial e muravel,

entre as disciplinas individuals. Ora, Morelli propusera-se busear,

no interior de urn sistema de signos culturalmente condicionados

como   0 pictorico, as signos que tinham a involuntariedade dos

sintomas (e da maior parte dos indicios).   Na a   56:   nesses signos

involuntarios, nas "rniudezas materiais - urn callgrafo as chama-ria de   garatujas" comparaveis   as "palavras   e frases   prediletas"

que "a maioria dos homens, tanto falando como escrevendo ...

introduzem no discurso   a s   vezes sem intencao, au seja, sem se

aperceber", Morelli reconhecia a sinal mais certo da individuali-

dade do artista." Dessa rnaneira, ele retomava (talvez indiretamen-

tel   '00   e desenvolvia os principios de metodo formulados havia

tanto tempo pelo seu predecessor Giulio Mancini. Que aqueles

principios viessem a amadurecer depois de tanto tempo ni.o era

casual. Justamente entao vinha surgindo uma rendencia cada vez

rnais nitida de urn controle qualitative e minucioso sobre a socie-

dade por parte do poder estatal, que utilizava uma n~iio de indi-vlduo baseada, tambem ela, em traces mfnirnos e involuntarios.

3. Cad. sociedade observa a necessidade de distinguir os seus

cornponentes: mas as modos de enfrentar essa necessidade variam

conforme as tempos   e   as   lugares.'?'   Existe, antes de mais nada,   0

III  

Page 18: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 18/21

nome; mas,   quanto   mais a   sociedade   e   complexa,   tanto   rnais   0

nome   parece insuficiente   para   circunscrever inequivocamente   8

idenridade de urn indivk'uo. No Egito greco-romano, por exemplo,

de   quem   se   comprometia perante   urn   notario   a desposar uma

mulher ou   a   cumprir   uma   transacao   comercial   eram   registrados   I  

ao lado   do   nome, poucos e sumarios dados £i.icos, acompanhados

pela indic~iio de cicatrizes (se existiam) ou outros sinais particula-

res.'" As possibilidades de erro ou substiruicao dolosa da pessoa,porem,   continuavam e1evadas. Em   comparacao,   a assinatura   aposta

ao   p e   da pOgina nos contratos apresentava muitas vantagens: no

final do seculo   XVIII,   numa passagem da sua   His/aria pict6rica,   de-

dicada aos metodos dos conhecedores,   0abade Lanzi afirmava que

a inimitabilidade das escritas individuais fora desejada pela natu-

reza   para   a   "seguranca"   da   "sociedade   civil" (burguesa).I03 Cerra-

mente, as assinaturas tambc!m podiam ser falsificadas - e, sobre-

tudo, excluiam do controle os analfabetos. Mas, apesar dessas

falhas, por seculos e seculos as sociedades europeias   n a o   sentiram

a necessidade de metodos mais seguros e praticos de averiguacao

da identidade - nem quando   0  nascimento da grande industria,

a mobilidade geogrsfica e social a ela ligada, a rapidissima forma-

~iio de gigantescas concentracoes urbana. alteram radicalmente os

dados do problema. Todavia, numa sociedade com tais caracterls-

ncas,   fazer desaparecer os   proprios rastros   e   reaparecer   com   uma

outra identidade era uma brincadeira de crianca - niio s6 numa

cidade como Londres ou Paris. Mas somente nas ultlmas decadas

do seculo   XIX   foram propostos por varios lados, em concorrencia

entre si, novas sistemas de identific~. Era uma exigencia que

surgia dos fatos contemporiineos da luta de classes: a constituicao

de uma associacao internacional dos trabalhadores, a repressao da

oposi\,io operaria depois da Comuns, as modific.~s da crimina-

lidade.o   aparecimento de relacoes de producao capitalistas havia

provocado - na Inglaterra desde 1720 aproximadamente.P' no

resto do Europa quase urn s&uIo depois, com   0 C6digo Napole6-

nieo - uma transformacao, ligada   30   novo conceito burgues de

propriedade, da legislo_'o, que aumentara   0   mimero de delitos

punlveis e  0valor des penas. A tendencia   a   criminaliza~iio do luta

de classes veio acompanbada pel. construcao de um sistema carce-

rario fundado sobre a deten_'" por longo pr02o."" Mas   0careere

produz  criminosos.   Na   Franca,   0mimero   de   reincidentes,   em   con-

tinuo aurnento a partir de 1870, alcancou no final do seculo uma

porcentagem igual   a   metade dos criminosos suhmetidos a proces-

so.'O>0 problema da   identi£ic~    dos   reincidentes, que se colocou

naquelas decadas, constituiu de fato a cabeca-de-ponre de urn pro-

 jete geral, mais ou menos consciente, de controle generalizado e

sutil sobre • sociedade.

Para a identifica~ao dos reinddentes era necesssrio provar

a)   que urn indivlduo ja havia sido condenado, e   b}    que   0   indivi-

duo em questao era   0   mesmo que ja sofrera condenacso.   '07   0 pri-

meiro ponto foi resolvido pela cr~iio dos registros policiais. 0

segundo levantava dificuldades mais serias. As antigas penas que

marcavam   um   condenado   para   sempre, estigmatizando-o   ou   mud-

lando-o, haviam sido abolidas. 0 lirio gravado no ombro de Mi.

lady permitira a D'Artagnan reconbecer nela uma envenenadora

 ja punida no passado pelos seus crimes - enquanto dois fugiti-

vos como Edmond Dantes e Jean Valjean puderam reaparecer na

cena social disfarcados sob trajes respeitaveis (bastariam esses

exemplos para mostrar ate que ponto a figura do criminoso rein-

cidente pesava na imaginacao oitocentista}.'" A respeitabilidade

burguesa precisava de sinai. de reconbecimento igualmente inde-

levels, mas menos sanguinarios e humilhantes do que os impostos

sob   0ancien regime.

A ideia de urn enorme arquivo forografico criminal foi num

primeiro momento descartada, porque colocavs problemas de clas-

sifica~ao insoliiveis:   como recortar   elementos discretos   no conti-

nuo da imagem?   I,"A via da quantifica,lio pareceu mais simples

e rigorosa.   De   1879 em diante, urn funcionario da prefeitura deParis, Alphonse Bertillon, elaborou um   ~todo   antropcmetrico

(que   depois   ilustrou em   varios   ensaios e   memorias)   110   baseado em

minuciosas medicoes do corpo, que convergiam para uma ficha

pessoal, E claro que urn pequeno engano de poucos milimetros

criava as premissas de urn erro judicial; mas   0principal defeito do

17 2   173

Page 19: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 19/21

outros.

A analise cientffica das impress5es digitais iniciara-se desde

1823 com   0 fundador da histologia, Purkyne, na sua dissertacao

Commentatio de examine physiologico organi uisus et systematis

cutaneill5 Ele distinguiu e descreveu nove tipos fundamentais de

linhas   papilares,   ao mesmo tempo   afirrnando, porern,   que nao   exis-

tern dois indivfduos com impress5es digitais identicas. As possibi-

lidades de aplica~iio pratica da descoberra eram ignoradas,   00 con.

trario de suas irnplicacoes filos6ficas, discutidas num capitulo

intitulado   "De cognitione   organismi   individualis in   genere"   . 1 1 6  0

conhecimento do indivfduo, dizia Purkyne,   e   central na medicina

pratica, a comecar   pels diagnose: em   indivfduos   diferentes os   sin-

tomas   'se   apresentam   de   formas   diferentes e, portanto,   devem ser

curados de modos diferentes. Por isso, alguns modemos, que niio

nomeava, definiram a medicina pratica como "artem individuali-sandi (die Kunst des Individualisirensj'U'? Mas os fundamentos

dessa arte se encontravam na filosofia do indivlduo. Aqui Purky-

ne,   que quando   jovern   estudara filosofia em   Praga,   reencontrava

os temas mais profundos do pensamento de Leibniz. 0 individuo,

"ens   omnimodo   determinatum" [ente totalmente   determinado],

possui   uma singularidade verificavel   ate em suss   caracteristicas

irnperceptfveis,   infinitesimais. Nem   0aeaso nem os influxos   exter-

nos bastam para explicd-la. E necessario supor a existencia de uma

norma ou "typus"   interne,   que mant6n a diversidade   dos orga-

nismos denrro dos Iimites de cada especie:   0 conhecimento dessa

"norma" (afirmava profetivamente Purkyne)   "descerraria   0 co-

nhecimento oculto da natureza individual".'' ' 0 erro da fisiogno-

monia foi   0 de enfrentar a diversidade dos indivlduos   a   lu; d e

opini6es preconcebidas e conjeturas apressadas; dessa  maneira,   foi

ate agora   impossfve]   fundar uma fisiognomonia   cientifica, descriti-

va. Abandonando   0 estudo das linhas da mao   ii "va ciencia" dos

quiromantes, Purkyne coneentrou a sua   atencao   num dado   muito

menos aparente - e nas linhas impressas nas pontas dos dedos

encontrava a senha oculta da individualidade.

Deixemos a Europa por urn momento e passemos   ii Asia. A

diferenca de seus colegas europeus, e de forma totalmente inde-

pendente, os adivinbos chinese. e japoneses tambem baviam se

interessado pelas linhas pouco aparentes que sulcam a pele da mao.

o costume, atestado na China, e sobretudo em Bengala, de impri-

mir nas cartas e documentos urn. ponta de dedo borrada de piche

ou tinta   119   provavelmente   rinha por   tras   uma serie   de   reflexoes

de carater divinat6rio. Quem estava habituado a decifrar escritas

metodo antropornetrico   de Bertillon era  outro,   isto C, 0de ser  pu -

ramente   negative.   Ele permitia separar, no momenta do   reconhe-

cimento,   dais   indivfduos diferentes,   mas   njio afirrnar   com   seguran-

ca   que duas series   identicas   de dados se referissem a urn   mesrno

indivlduo.'" A irredutivel elusividade do individuo, expulsa

pela porta atraves da quantificacao, voltava a entrar pela janela.

Por   isso,   Bertillon propos integrar   0metodo antropometrico   com

o   eharnado   "retrato faladc", isto e,   a   descricao   verbal   analitica

das unidades discretas (nariz, olhos, orelhas etc.), cuja soma deve-

ria restituir a imagem do individuo - possibilitando assim   0 pro-

cedimento de identificacao. As paginas   de   orelhas exibidas por

Bertillon   112   relembram irresistivelmente as   ilustraeoes   que, nos

rnesmos   anal,    Morelli   incluta   em   seus   ensaios. Talvez   nao se   tra-

tasse de uma   influencia   direta - ainda que seja surpreendente

verificar que Bertillon, em sua atividade de especialista grafologi-

co, eonsiderava   indlcios   reveladores   de   uma   falsi£ica~ao   as   parti-

cularidades au   "idiotismos"   do original que   0falsario nile conse-

guia reproduzir   e,   eventualmente, substituia   pelas   suas   proprias."!

Como se ted percebido,   0  metodo de Bertillon era incrivel-

mente complicado. Ja nos referimos ao problema posto pelas me-diacoes.   0"retrato falado"   piorava ainda mais as eoisas. Como

distinguir, no momento d. descri~iio, urn nariz giboso-arcado de

urn nariz arcado-giboso? Como classificar os matizes de urn olho

verde-azulado?

Mas desde a sua dissertacao de 1888, posteriomente corrigi-

da e aprofundada, Galton propusera urn metodo de identificacao

muito mais simples, no que se referia tanto   a   coleta dos dados

como   a   sua   classificacao.!"   0metodo baseava-se,   como se   sabe,

nas   impressoes   digitais. Mas a proprio Galton, com muita   hones-

tidade,   reconhecia ter sido   precedido, teorica   e praticamente, por

174  175

Page 20: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 20/21

misteriosas nos   veios das   pedras au da madeira, nos   rastros dei-

xados   pelos passaros ou   nos desenhos impressos nas costas das

tartarugas   120   certamente chegaria sem   esforco   a conceher como

uma escrita as linhas   impressas   par urn dedo sujo numa   superficie

qualquer. Em 1860,   si r   William Herschel, administrador-chefe do

distriro de Hooghly em Bengala, notou esse costume difundido

entre as populacoes locais, avaliou sua utilidade e pensou em

usa-lo   para   urn   melhor funcionamento da   administracao britsnica.(Os   aspectos   teoricos da questao nao   0 interessavam;   a   disserta-

<;30   latina de   Purkyne,   que por meio   seculo   permaneceu como

letra morta, era-lhe totalmente desconhecida.) Na realidade, obser-

vou Galton   retrospectivamente,   sentia-se   uma   grande necessidade

de urn instrumento de identificacao eficaz - nas colonias britani-

cas,   e   nao somente   na   India:   as   nativos   cram   analfabetos, litigio-

50S,    astutos,   mentirosos   e,   aos olhos de urn europeu,   todos iguais

entre si. Em 1880, Herschel anunciou em   Nature   que, depois de

dezessete anos de   experiencias,   as impress5es digitais foram intro-

duzidas oficialmente no distrito de Hooghly, onde ja eram usadas

havia   tres   anos com 6timos   resultadoe.!"   Os   Iunciondrios   impe-

riais tinham-se apropriado do saber indiciario dos bengaleses e

viraram-no contra eles.

Do   artigo de Herschel, Galton tirou a inspiracao para repen-

sar e aprofundar sistematicamente   toda   a   questao.   0 q ue   possibi-

litava sua pesquisa era a contluencia de tre,. elementos muito   dife-

rentes. A descoberta de urn cientista   puro como Purkyne;   0saber

concreto, ligado   ii pratica cotidiana das populacoes bengalesas; a

sagacidade politica e administrativa de   sir   William Herschel, fiel

funcionario de Sua Majestade Britanica. Galton prestou homena-

gem ao primeiro e ao terceiro.   Tentou, alem disso, distinguir

peculiaridades   raciais   nas impress5es   digitais,   mas sem sucesso;

de qualquer   maneira,   comprometeu-se a prosseguir as pesquisassobre algumas tribos indianas, na esperanca de nelas encontrar

caracteristicas   "mais proxirnas   a s   dos   macacos"   (a mote monkey-

like   patIn,,).   J2l

Alem de dar urn. contribuicao decisiva   ii analise das impres-

s6es digitais, Galton, como se disse, vira tambem suas implicacoes

176

praticas. Em pouquissimo tempo   0   metodo foi introduzido na

Inglaterra, e dali gradualmente no mundo todo (urn dos ultimos

poises a ceder foi a Franca). Desse modo, cada ser humano -

observou orgulhosamen te Galton, aplicando a si mesmo   0  elogio

ao seu concorrente Bertillon proferido por urn funcionano   do

Ministerio do Interior frances - adquiria uma identidade, uma

individualidade sobre a qual poder-se-ia se basear de modo certo

e duradouro.!"Assim, aquela que, aos olhos dos administradores briranicos,

fora ate poueo antes uma   multidao   indistinta de   "fucas" benga-

lesas (para usar   0 termo pejorativo de Filarete) tornava-se subita-

mente uma   serie   de individuos assinalados cada qual por urn  trace

biologico especifico. Essa prodigiosa extensiio da nocao de indivi-

dualidade ocorria de fato atraves da rela~iio com   0Estado e seus

orgiios burocraticos e policiais. Ate   0Ultimo habitante do mais

miseravel   vilarejo da Asia au da Europa   tornava-se, gracas   as   im-

pressoes digitais, reconheciveI e controlavel.

4. Mas   0   mesmo paradigma indiciario usado para elaborar

formas de controle social   sempre   mais sutis e   minuciosas   pode se

converter num instrumento para dissolver as   nevoas   da ideologia

que,   cada   vez mais, obscurecem uma estrutura social como a do

capitalismo maduro. Se as  pretensoes   de conhecimento sistematico

mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia

de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrario: a existencia de

uma profunda   conexao   que   explica   os   Ienomenos superficiais   ereforcada   no proprio   memento   em que se   afirrna   que urn conheci-

mento direto de tal conexiio nio   e   possivel. ~ realidade   e   opaca,

existem zonas   privilegiada~ -   sinais, indicios - gue PSrmitem

decifra.k_

Essa ideia, que constitui   0 ponto essencial do paradigma indio

ciario   au   serniotico,   penetrou nos mais variados Ambitos eognosci-

tivos, modelando profundamente as cienci .. humanas. Minusculas

porticularidades paleograficas foram empregadas como pistas que

permitiam reconstruir   trccas e transformacoes   c ultur ai s - c om

uma expljcita invocacao a Morelli, que saldava a dlvida que Man-

177

Page 21: GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

7/23/2019 GINZBURG, C. Sinais_raízes de um paradigma indiciário

http://slidepdf.com/reader/full/ginzburg-c-sinaisraizes-de-um-paradigma-indiciario 21/21

elm   contralra   junto a   Allacci,   quase   tres seculos   antes. A   repre-

sentacao das   roupas  esvoacantes   nos pintores florentinos do   seculo

xv,   as neologismos de Rabelais, a cura dos   doentes   de   escrofula

pelos reis da   Franca e   da Inglaterra sao apenas alguns entre os

exemplos   sobre   0  modo como, esporadicamente, alguns indicios

rninimos   eram assumidos como elementos reveladores de   fenome-

nos mais gerais:   a   visao   de mundo   de   uma   classe   social, de   ur n

escritor ou de toda uma sociedade.'" Um~<M~l!~omo _   nsica-nalise constitui-se, comovirnos, em torno dahiWI.C$e_.de._lI!Jepor-

me~()te~.•parentemente pegljgeJ)c;aveis pl!desS!'ll)_ r .~vsllli fe;;-j)~

n.2.sp[Qhll)dos. t ie !1 () lJ !y rl ,a 1 s !" '£ ,,~  A   decedencia   do pensamentosistematico veio acompanhada   pelo   destino do pensamento   aforis-

matico - de Nietzsche   a  Adorno.  0proprio termo  "aforismatico"

e   revelador.   (E  urn indldo, urn sintoma, urn sinal: do paradigm.

niio se  escapa.)   Com efeito,   Aiorismos   era   0  titulo de uma famosa

obra de Hip6crates. No   seculo   XVII,    comecaram   a sair   coletaneas

de   Alorismos politicos.'''   A literatura aforismoltica e,   por   defini-

s:ao, uma tentativa de   formular jufzos   sobre   0homem e a socieda-

de a partir de sintomas, de indicios: urn homem   e  uma sociedade

que   estao doentes,   em   crise.   E tambem "crise"   e   um   termo   medi-

co,   hipocratico.!" Pode-se   demonstrar facilmente que   0maior roo

mance da nossa ~a - a   Recherche -   e   constituido segundo

urn rigoroso paradigma   indiciario   ,127

coes   em   que a unicidade e   0carater   insubstitulvel dos dados sao, 

aos olhos das pessoas envolvidas, decisivos. Alguem disse que   0

apaixonar-se e   a superestimacao   das diferen~s marginais que   exis-

tern entre uma mulher e outra   (ou  entre urn homem e   outro).   Mas

isso   tarnbern pode   se estender as obras de   arte   ou aos   cavalos.P

Em   situacoes   como essas,  0 rigor flexivel   (se   nos for permitido   0

oxirnoro) do   paradigms indiciario mostra-se   inelimirulvel.  Trata-se

de formas de saber tendencialmente   mudas -   no sentido de que,

como   ja   dissemos, suas regras nao se   prestam   a ser formalizadas   f{'"   1~:

nem   ditas.   Ninguem aprende a oHeio de conhecedp!   OJ!   de  djaG'QQs-~    t'~ticador limitando-se a  p~r em...Era1i9:~regras preexistentes   Ncsse   s : £ ltiM   de cQoherjmeglo entram em   jgm  ldiz-se   oorwglmmte)   de

menl0s   jrnpood.cdxrjs·   b ir o   gOIpe de vista jotuis:ao.

Ate aqui   abstivemo-nos   escrupulosatnente de empregar esse

termo minado. Mas, se se insiste em querer  usa-Io,   como   sinonimo

de processos   racionais,   sera necessaria distinguir entre urna  intui-

,"0   baixa  e uma   intuicao   alta.

A antiga   fisiognornonia   arabe  estava baseada na  [irasa:   n~iio

complexa, que   designava   em geral a capacidade de passar   imediata-

mente do conhecido para   0desconhecido, na base de indfcios.P   0

termo, extraido do   vocebuldrio   dos   sufi,   era   usado   para designar

tanto as   intuicoes misticas   quanta as formas de   discernimento   e

sagacidade, como as atribuidas aos filhos do rei de   Serendip.l"

Nessa segunda   acepcao,   a  [irasa   nao   e   senao   06rg80 do saber indi-

ciario.!"

Essa   "intuicdo   baixa"   esta arraigada   nos sentidos   (mesmo   su-

perando-os} - e   enquanto tal niio tern nada a ver com a   intuicao

supra-sensivel   dos   varies   irracionalismos dos   seculos   XIX   e xx.   E

difundida no rnundo todo, sem limites geogrdficos, historicos,

etnieos,   se xuai s ou de dasse - e e s18,   portanto,   muito   distantede qualquer forma de conhecimento superior, privilegio de poucos

eleitos. E patrimdnio dos bengaleses expropriados do seu saber

por   sir   William Herschel, dos cacadores, dos marinheiros, das

mulheres. Une estreitamente   0 animal homem as   outras especies

animais.

5.   Mas pode urn paradigma   indiciario   ser rigoroso? A orien·

t~    quantitativa e aatjaattopocPatrica das dCadas da patureza   J 

a p~r~ir.d~.,G~iley..£Q]QhOlI   as ciencias ~]

dile_~~: ()!:lJ~I!!lI.iLwn.eS1lltl.ltl.l.~@(~~giJ parachesar are·

sultados relevantes, ou assumir urn estatut9.cientlfico forte para

ch~g~;-a--;:;~;-Ii£~kYiP~~~ S6 •a lingiiistica conse-

gulu,iib (I"erom,"r~'kIo, subtrair-se a esse dilema, por issopondo-se como modelo, mais ou   menos atingido, tambern   para

outras disciplinas.

Mas vern a diivida de que   este tipo   de rigor e   nao sO inatin-

givel mas tambt'm indesejavel para as formas d e   saber maio ligadas

a   experiencia   cotidiana -   OU,   mais   precisamente,   a   todas   as   situa-

178179