carlo ginzburg - medo, reverência e terror

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  • CARLO GINZBURG

    Medo, reverncia,terrorQuatro ensaios de iconografia poltica

    TraduoFederico CarottiJoana Anglica dAvila MeloJlio Castaon Guimares

  • Sumrio

    Prefcio

    1. Medo, reverncia, terror: Reler Hobbes hoje2. David, Marat: Arte, poltica, religio3.Seu pas precisa de voc: Um estudo de caso em iconografia poltica4. A espada e a lmpada: Uma leitura de Guernica

    NotasCrditos das imagens

  • Prefcio*

    1.

    Os ensaios ou experimentos aqui reunidos abordam temas muito diversos, mas todos estoligados iconografia poltica evocada no subttulo. Menos evidente o instrumento analtico que osunifica: a noo de Pathosformeln (frmulas de emoes), proposta por Aby Warburg h mais decem anos. Discorrerei brevemente sobre o significado e a gnese do conceito, antes de passar ao uso,um pouco diferente, que lhe dei aqui.

    2.

    Numa conferncia realizada em Hamburgo em outubro de 1905, Warburg comparou um desenho deDrer representando a morte de Orfeu a uma gravura sobre o mesmo tema proveniente do crculo deMantegna. O desenho deriva da gravura: mas esta, por sua vez, e por intervenes que no so maisrastreveis, trazia no gesto de Orfeu moribundo ressonncias de um gesto que j se encontrava nosvasos gregos, como observou Warburg: uma frmula de pthos (Pathosformel) arqueologicamenteautntica.1 Segundo ele, no se tratava de um caso isolado: a arte do incio do Renascimentorecuperara da Antiguidade os modelos de uma gestualidade pattica intensificada, ignorados pelaviso classicista que identificava a arte antiga com a serena grandeza. Nessa interpretaoestilstico-iconogrfica da morte de Orfeu, Warburg (como anotou em seu dirio alguns meses depois)recorria a Nietzsche para integrar Winckelmann, corrigindo-o.2 Ao lado de Nietzsche, Burckhardt: oRenascimento (observou Fritz Saxl utilizando anotaes de Warburg), sobretudo atravs dossarcfagos, recuperara os gestos do paganismo orgistico que a Idade Mdia censurara de maneiratcita.3 E foi precisamente numa frase de A cultura do Renascimento na Itlia, de Burckhardt onde quer que se manifestasse certo pthos, deveria ser em forma antiga , que Gombrichreconheceu o germe da ideia de Pathosformeln proposta por Warburg.4 possvel, mas aquele germecaiu num terreno que fora fecundado por outras experincias.

    3.

    Nos ensaios que publicou, Warburg utilizou pouco a noo de Pathosformeln. Mas voltou a ela demaneira quase obsessiva na enorme quantidade de anotaes que foi acumulando ao longo dos anos.Inspirando-se nas pesquisas do linguista Hermann Osthoff sobre o carter primitivo dos superlativos,Warburg comparou as representaes de determinados gestos, citveis como frmulas, a superlativosverbais, ou seja, palavras primordiais da gesticulao apaixonada (Urworte leidenschaftlicher

  • Gebrdensprache).5 Entre as caractersticas dessas palavras primordiais, segundo Osthoff, estava aambivalncia: um elemento que Warburg estendeu s Pathosformeln.6 Gestos de emoo extrados daAntiguidade foram retomados na arte do Renascimento com seu significado invertido. Um exemplodessa inverso energtica (tal a expresso usada por Warburg) a Maria Madalena representadacomo uma mnade na Crucificao de Bertoldo di Giovanni, escultor florentino discpulo deDonatello: uma imagem que aparece duas vezes, inteira e como detalhe, no atlas Mnemosyne, em queWarburg trabalhou no fim da vida.7

    Aps a morte de Warburg, Edgar Wind, que participara do grupo a seu redor, voltou MariaMadalena de Bertoldo di Giovanni num breve ensaio intitulado The Maenad under the Cross [Amnade sob a cruz]. O ensaio iniciava com uma citao dos Discourses on Art [Discursos sobre arte]de Joshua Reynolds. Comentando um desenho de Baccio Bandinelli de sua propriedade, Reynoldsnotava que o artista se inspirara numa bacante destinada a expressar uma espcie de entusiasmofrentico de alegria para representar uma Maria sob a cruz, a fim de expressar uma angstiafrentica de dor, e conclua: curioso observar, e certamente verdade, que os extremos de paixesopostas so expressos com pouqussima variao pela mesma ao. Wind notava que Warburgreunira uma documentao que tendia a mostrar que gestos similares podem assumir significadosopostos, mesmo sem conhecer a passagem de Reynolds.8

    Sobre este ltimo ponto Wind estava equivocado. Warburg tinha conhecimento da passagem deReynolds, por uma interveno que nos ajuda a entender melhor a gnese da noo de Pathosformeln.

    4.

    Cabe dizer que se trata de uma interveno totalmente bvia. Em 1888, aos 22 anos, enquantopreparava um seminrio para August Schmarsow, Warburg se deparou na Biblioteca NazionaleCentrale de Florena com o famoso livro de Charles Darwin intitulado A expresso das emoes nohomem e nos animais.9 O jovem Warburg anotou em seu dirio: Finalmente um livro que me til.10 A relao dessa utilidade com a noo de Pathosformeln j foi comentada vrias vezes, masem termos vagos: j se disse que a questo de saber em que sentido se deve interpretar tal influnciacontinua em aberto.11 Que seja. Mas toda interpretao deve levar em conta um dado sobre o qual osestudiosos de Warburg estranhamente se calam: que Darwin, no captulo dedicado contiguidadeentre estados emocionais extremos, como os espasmos do riso e do pranto, citara numa nota apassagem de Reynolds j mencionada ( curioso observar, e certamente verdade, que os extremosde paixes opostas so expressos com pouqussima variao pela mesma ao), observando: Ele[Reynolds] d como exemplo a alegria frentica de uma bacante e a dor de uma Maria Madalena.12

    Aquelas cinco linhas de Darwin despertaram na mente de Warburg uma reflexo que se estendeupor quarenta anos. Sentimos a tentao de ver a, expressa in nuce, a noo de frmulas de emoes(Pathosformeln), com suas implicaes: de um lado, a relao com a Antiguidade; de outro, ainverso energtica que transforma o frenesi exttico da bacante no frenesi de dor de MariaMadalena. Mas trata-se de uma iluso retrospectiva: a semente no explica a rvore. significativoque Warburg tenha esperado quase vinte anos antes de propor publicamente a noo de Pathosformeln.

    5.

  • possvel que essa hesitao derivasse de uma dificuldade que Warburg jamais conseguiurealmente resolver. Se as expresses das emoes, como sugeria Darwin desde o ttulo de seu livro, seexplicam pela evoluo, torna-se desnecessria a busca das intermediaes culturais especficas. Masso precisamente essas intermediaes, comprovadas ou presumidas, que estavam no ncleo daconferncia de Hamburgo sobre Drer e o antigo (1905). Na introduo ao atlas Mnemosyne escritoquase beira da morte (1929), porm, Warburg falou em engramas de uma experincia apaixonada[que] sobrevivem como patrimnio hereditrio gravado na memria.13 No decurso de 25 anos, amente de Warburg oscilara entre duas direes opostas. A riqueza de sua obra, tanto a publicada comoa indita, nasce precisamente daqui: da tenso no resolvida entre o histrico e o morfolgico, quepode ser resumida na contraposio entre o diagrama que condensa o sensacional deciframento dosafrescos de Schifanoia e as imagens justapostas, por contiguidade e dissonncia, nas tabelas deMnemosyne.14

    6.

    Essa tenso tem razes objetivas. A transmisso das Pathosformeln depende de contingnciashistricas; as reaes humanas a essas frmulas, porm, esto sujeitas a circunstncias completamentediferentes, em que os tempos mais ou menos curtos da histria se entrelaam com os tempos bastantelongos da evoluo. As modalidades de tal entrelaamento remetem a um campo de pesquisa aindalargamente inexplorado.15 Gostaramos de oferecer uma pequena contribuio com os ensaios aquireunidos. No primeiro deles, a anlise do termo awe (em que confluem horror e venerao) e de seulugar central na reflexo de Hobbes pode desembocar numa pergunta mais geral: at que ponto aambivalncia das expresses de emoes extremas, ressaltada por Darwin (e, antes dele, porReynolds) e depois desenvolvida por Warburg, depende do contexto histrico? Terror e veneraoesto no centro do segundo ensaio, dedicado ao Marat de David: aqui a retomada dos gestos de umaiconografia antes pag e depois crist, a servio da iconografia revolucionria, ilustra de modoexemplar as ambiguidades da secularizao. O mesmo tema tambm est presente, implicitamente, noterceiro ensaio: as premissas, a um tempo distantes e prximas, do gesto de Lord Kitchener lanandoluz sobre sua portentosa eficcia. Por fim, a anlise da violenta justaposio do antigo e docontemporneo buscada por Picasso, de espada quebrada e lmpada, lana uma luz inesperada sobreGuernica. Voltamos ao terror e a seus gestos: um tema que est no centro destes ensaios deiconografia poltica.

    7.

    A noo de Pathosformeln ilumina as razes antigas de imagens modernas e a maneira como taisrazes foram reelaboradas. Mas o instrumento analtico que nos foi legado por Warburg pode seraplicado a fenmenos muito diferentes daqueles a que se destinava inicialmente. O frontispcio deLeviat este ilustre exemplo de iconografia poltica traduz numa imagem nova as antigaspalavras de Tcito: fingunt simul creduntque [acreditam naquilo que acabaram de criar]. Neste caso,no estamos diante de uma emoo, e sim de uma ideia, uma Logosformel cujo objeto uma emoo:

  • somos dominados por mentiras cujos autores somos ns mesmos. Uma ideia de simplicidadeparadoxal e desarmante. E daqui pode se reiniciar a crtica das linguagens e das imagens da poltica.

    * Traduo de Federico Carotti.

  • 1. Medo, reverncia, terror: RelerHobbes hoje*1

    1.

    Falarei de terror, no de terrorismo. No creio que a palavra terrorismo nos ajude a compreenderos fenmenos sangrentos aos quais se refere. Como o terrorismo, tambm o terror atual: mas nofalarei da atualidade. s vezes preciso se subtrair ao rumor, o rumor incessante das notcias que noschegam de toda parte. Para compreender o presente, devemos aprender a olh-lo de esguelha. Ouento, recorrendo a uma metfora diferente: devemos aprender a olhar o presente distncia, como seo vssemos atravs de uma luneta invertida. No final a atualidade surgir de novo, porm numcontexto diferente, inesperado. Falarei, ainda que brevemente, do presente, e at um pouco do futuro.Mas chegarei l partindo de longe.

    2.

    H algum tempo (digamos, desde 11 de setembro de 2001), nos comentrios sobre os atentados queocorrem com sinistra frequncia em vrias partes do mundo, repete-se o nome de Hobbes, o autor doLeviat.2 possvel que estes nomes Hobbes, Leviat evoquem lembranas de escola, sejamelas antigas ou recentes: a guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes); o homem o lobo do homem (homo homini lupus). Frases duras, desencantadas. Experimentemos olhar mais deperto o filsofo que as pronunciou (embora a segunda, homo homini lupus, remonte a uma tradioantiga).3

    Thomas Hobbes nasceu na Inglaterra, em Malmesbury, em 1588. O pai, pastor de Brokenborough,era alcolatra; bem cedo deixou a famlia, desapareceu. Hobbes viveu junto a algumas famliasnobres, primeiro como preceptor, depois como secretrio. Leu muitssimo; adquiriu um conhecimentoprofundo do latim e do grego. Traduziu a histria da Guerra do Peloponeso de Tucdides, impressa em1629.

    Entre as famlias nobres inglesas, era ento costume que os jovens completassem sua educaofazendo uma viagem pela Europa (mais tarde chamada Grand Tour), que previa longas temporadas naFrana e na Itlia. Hobbes acompanhou o filho do Lord Cavendish, seu protetor, numa dessas viagens.Em outra ocasio, Hobbes esteve em Florena, onde encontrou Galileu. Em Paris, conheceu um grandeerudito, o frade Marin Mersenne, que centralizava uma vasta rede de ligaes intelectuais. Por seuintermdio, Hobbes entrou em contato com Descartes, a quem dirigiu uma srie de objees. Tinhaento 45 anos. Ainda no publicara nada sobre temas filosficos, mas acumulara uma srie dereflexes organizadas de forma rigorosamente dedutiva. Alguns anos antes, encontrando-se na

  • residncia de um nobre no identificado, Hobbes vira um livro pousado sobre uma mesa: os Elementosde Euclides. Abriu-o ao acaso e topou com a proposio 47 do primeiro livro. Por Deus!, exclamou,isto impossvel! Comeou ento a ler o livro de trs para a frente, at que tudo lhe ficou claro. Seuamigo e bigrafo Aubrey, que conta o episdio, diz que desde aquele momento Hobbes se apaixonoupela geometria.4

    O primeiro texto filosfico de Hobbes se intitulava, em homenagem aos Elementos de Euclides, Oselementos da lei. A dedicatria ao conde William de Devonshire, que se tornara o protetor de Hobbes,traz a data de 8 de maio de 1640. Era o incio daquela que seria chamada the Great Rebellion, agrande rebelio a Revoluo Inglesa. O confronto entre o rei, Carlos I Stuart, e o Parlamentoassumia tons cada vez mais speros. No decorrer de poucos anos, chegou-se guerra civil. Em 1649 orei foi julgado pelo Parlamento e decapitado: um evento perturbador, que teve profunda repercussoem toda a Europa.

    Mas Hobbes no esperou que a situao poltica se agravasse. Em novembro de 1640, trocou aInglaterra por Paris: o primeiro daqueles que fugiram, como escreveu retrospectivamente. O que oimpelira ao caminho do exlio havia sido o medo de incorrer em represlias por ter exaltado aautoridade monrquica em Os elementos da lei, livro que circulou primeiro sob forma manuscrita edepois em edies mutiladas e ordinrias, publicadas sem o conhecimento do autor.

    Por boa parte de sua longa vida, Hobbes reescreveu aquele livro em formas diversas e em lnguasdiferentes (em latim e em ingls), ampliando, corrigindo, modificando. Algumas noes, apresentadasnum primeiro momento de maneira embrionria, se desenvolveram, enriquecendo-se paulatinamentecom novos significados. Um destes fundamental o medo.

    3.

    O medo e eu somos gmeos, escreveu Hobbes numa autobiografia latina em versos, composta naextrema velhice.5 Hobbes nascera justamente quando a frota espanhola a Invencvel Armada ameaava desembarcar na costa inglesa. Provavelmente, a aluso ao medo se referia a uma debilidadepessoal. Mas Hobbes era ao mesmo tempo um pensador audaz at a insolncia, inclinado provocaoe disputa. Com aquela aluso, ele reivindicava com orgulho a deciso de pr o medo no centro daprpria filosofia poltica.

    Em Os elementos da lei encontramos uma descrio sinttica do estado de natureza, ligada a umaargumentao que Hobbes nunca mais abandonaria. Em tal estado, os homens so substancialmenteiguais e tm os mesmos direitos (entre os quais o de ofender e de se defender): por isso vivem numacondio de guerra perene, de desconfiana geral, de medo recproco (mutual fear).6 Eles saemdessa situao intolervel renunciando a uma parte dos prprios direitos: um pacto que transformauma multido amorfa num corpo poltico. Nasce assim o Estado, aquele que Hobbes chamar Leviat:um nome que no Livro de J designa uma baleia, um gigantesco animal marinho que ningumconsegue fisgar com um anzol. No frontispcio do Leviat (fig. 1), Hobbes cita, na traduo latina deso Jernimo, um versculo extrado do captulo 41 do Livro de J: Non est super terram potestasquae comparetur ei, no existe poder sobre a terra comparvel a ele.7

    Voltarei a falar adiante sobre o significado do frontispcio (certamente inspirado por Hobbes). Por

  • enquanto, basta notar que para Hobbes o Estado surge de um pacto nascido do medo. Na Europaassolada pelas guerras de religio, na Inglaterra dilacerada pelos conflitos entre rei e Parlamento, apaz se mostrava a Hobbes como o bem supremo, merecedor de qualquer sacrifcio: uma ideia que oacompanharia at a morte. Mas um pacto estipulado numa circunstncia de constrio, como a quecaracterizava o estado de natureza, pode ser considerado vlido?

  • 1. Frontispcio da primeira edio impressa do Leviat (1651).

  • Essa pergunta, feita por Hobbes em Os elementos da lei, ecoava uma outra, formuladarepetidamente naquele perodo de telogos, tanto protestantes quanto catlicos: se era lcito jurar emfalso para se subtrair perseguio religiosa.8 A resposta de Hobbes clara: um pacto vlido mesmoque seja estipulado numa situao de medo. Retrospectivamente, tem-se a impresso de que ele nopodia pensar de outro modo. Em sua argumentao, o medo tinha uma funo insubstituvel eescandalosa.

    O tempo atenuou aquele escndalo. Mas, aos leitores contemporneos de Hobbes, a descrio de umestado de natureza dominado pelo terror recproco parecia inaceitvel, sobretudo porque ele seabstinha de fazer qualquer referncia Bblia e ao pecado original. A esse silncio se adicionava umapolmica de tipo completamente diferente, lida nas entrelinhas do prefcio que Hobbes acrescentou segunda edio latina do De cive, publicada em Amsterd em 1647. (A primeira edio, traduzida porSamuel Sorbire, aparecera em Paris em 1642, sem nome do autor.) Naquele prefcio, Hobbesdescreveu seu mtodo. Para compreender a gnese e a forma da cidade e a origem da justia,devemos identificar as partes que as compem. De igual modo, para entender como funciona umrelgio, devemos desmont-lo: s assim conseguiremos descobrir quais as funes das vriasengrenagens.9

    O pblico culto a quem era destinada a edio latina do De cive deve ter decifrado imediatamente oalvo polmico de Hobbes: a Poltica de Aristteles. Este ltimo explicara que seu mtodo consistiana identificao dos elementos que compem a polis a cidade, ou seja, a comunidade poltica. Oponto de partida era semelhante, mas logo depois os caminhos divergiam. Para Aristteles, o homem um animal poltico (zoon politikon): por conseguinte, a polis existe por natureza, um fenmenonatural. Para Hobbes, ao contrrio, o estado de natureza no caracterizado pela sociabilidade, maspor seu contrrio: a guerra de todos contra todos. A agresso, real ou possvel, gera de incio o medo, eem seguida o impulso para sair do medo mediante um pacto baseado na renncia de cada indivduoaos prprios direitos naturais. A cidade (civitas, ou seja, a comunidade poltica) que resulta dessepacto um fenmeno artificial: uma concluso de certo modo antecipada pela comparao com orelgio introduzida por Hobbes.

    4.

    Para compreender a importncia da argumentao de Hobbes, devemos entender como e atravs dequais caminhos ele a formulou. Uma indicao indireta parece vir do prprio Hobbes. Ele contrapsvrias vezes a fecundidade das cincias da natureza inconcluso da filosofia moral, e declarou ter seinspirado, como filsofo moral, no modelo de Euclides. Mas, como foi notado, difcil acreditar que amente de Hobbes tivesse despertado apenas aos quarenta anos, depois da leitura de Euclides.10 Nosanos precedentes, ele trabalhara na traduo de uma obra que oferece mltiplos pontos de partida parasuas reflexes: a histria da Guerra do Peloponeso de Tucdides.11 Entre os trechos que chamaram aateno dos estudiosos de Hobbes est a famosa pgina do captulo 53 do segundo livro, em queTucdides descreve as repercusses da peste que assolou Atenas em 429 a.C.12 Mas, sobre o modocomo Hobbes leu e traduziu essa pgina, ainda existe algo a dizer.

    Antes de tudo, ouamos Tucdides:

  • Tambm por outros aspectos a peste marcou para a cidade o incio da propagao da ausncia de leis. O que antes se fazia, mass s escondidas, pelo prprio prazer, agora era ousado mais livremente: assistia-se a mudanas sbitas, havia ricos que morriamde repente, e gente que antes no tinha nada de uma hora para outra se via em posse das riquezas pertencidas queles; por isso aspessoas se acreditavam no direito de se abandonar a rpidos prazeres, voltados para a satisfao dos sentidos, considerando umbem efmero tanto o prprio corpo quanto o prprio dinheiro. Ningum se dispunha mais a perseverar naquilo que julgara ser obem, porque pensava no havia como saber se no morreria antes de alcan-lo; em contraposio, o prazer imediato e oganho que pudesse proporcion-lo, fosse qual fosse sua provenincia, eis o que se tornou belo e til. O medo dos deuses ou asleis humanas j no representavam um freio, de um lado porque aos olhos deles o respeito aos deuses ou a irreverncia eramagora a mesma coisa, uma vez que viam todos morrerem do mesmo modo; de outro lado porque, tendo cometido faltas, ningumesperava se manter vivo at o julgamento e a prestao de contas. A pena suspensa sobre suas cabeas era muito mais sria, e porela a condenao j fora pronunciada: por conseguinte, antes que esta se abatesse sobre eles, era natural gozar um pouco a vida.13

    5.

    A densa anlise de Tucdides se abre com a palavra anomia, que designa a ausncia de lei, oumelhor, a dissoluo de toda lei diante do desencadeamento da peste.14 Criara-se (diramos hoje) umvazio de poder, preenchido pela satisfao dos instintos elementares. Mas, como se ter notado, otermo anomia destinado a uma longa fortuna, at chegar a Durkheim e sociologia contempornea no se refere apenas s leis humanas. Diante da morte iminente, diz Tucdides, at o medo dosdeuses perdera toda a eficcia.

    A dissoluo do corpo poltico narrada por Tucdides lembra de maneira irresistvel o estado denatureza descrito por Hobbes. Trata-se de uma relao especular: na Atenas devastada pela peste, a leino existe mais; no estado de natureza, a lei no existe ainda. Parece verossmil supor que a situaoextrema descrita por Tucdides tenha sugerido a Hobbes um experimento mental a descrio doestado de natureza centrado numa situao igualmente extrema.

    Mas Hobbes, o tradutor em latim, interpres , imps aos leitores a prpria interpretao.Tucdides, como vimos, escrevera: O medo dos deuses ou as leis humanas j no representavam umfreio. A traduo que acabo de citar reproduz de perto o texto grego. A traduo de Hobbes, contudo,se desvia dele num ponto, numa palavra: Neither the fear of the gods, nor laws of men awed anyman, ou seja: nem o temor dos deuses nem as leis dos homens incutiam sujeio. Hobbes traduziu overbo grego apeirgein, manter sob controle, por um verbo ingls to awe mais ou menoscorrespondente ao italiano incutere soggezione (mas se trata, digo logo, de uma traduoprovisria). Nessa divergncia da traduo inglesa em relao ao texto grego de Tucdides proponhoreconhecer o primeiro e fulminante aparecimento de uma ideia que est no centro da filosofia moralelaborada por Hobbes no decorrer das dcadas seguintes.

    6.

    Para compreender o sentido da insero do verbo to awe, incutir sujeio, na traduo de Tucdides,partirei de um livro editado em Londres em 1613 e mais tarde republicado vrias vezes comampliaes: Purchas His Pilgrimage or Relations of the World and the Religions Observed in All Agesand Places Discovered, from the Creation to the Present [A peregrinao de Purchas, ou relatos sobreo mundo e sobre as religies testemunhados em todos os tempos e em toda terra descoberta, desde a

  • criao at hoje]. Nesse volumoso in-flio, o pastor anglicano Samuel Purchas descrevia sob forma deviagem ou peregrinao metafrica os usos, os costumes e sobretudo as religies das populaes domundo inteiro, servindo-se de grande quantidade de narrativas de viajantes.

    Purchas e Hobbes se conheciam. Seus nomes esto registrados nas atas das reunies do corpodiretivo da Virginia Company: uma companhia comercial (da qual Lord Cavendish, o protetor deHobbes, era um dos principais acionistas) ligada explorao da regio do Novo Mundo que foradenominada Virginia em homenagem a Elisabeth, a rainha virgem. Sups-se que as poucas menesaos indgenas da Amrica na obra de Hobbes derivam do livro de Purchas.15 Pode-se acrescentar quePurchas, num captulo dedicado s expectativas messinicas dos judeus contemporneos, faloulongamente dos dois gigantescos animais evocados no Livro de J, Leviat e Behemoth.16 Hobbescom certeza escolheu esses nomes como ttulos das prprias obras se remetendo diretamente Bblia,da qual era leitor assduo e profundo; mas, na peregrinao de Purchas atravs das religies do mundo,pode haver encontrado mais alguma coisa interessante.

    Purchas pensava que a expanso colonial britnica preparava a unificao religiosa do gnerohumano e o iminente fim do mundo. Aos seus olhos, a unificao religiosa era possvel porque areligio [uma coisa] natural, [uma coisa que est] escrita no corao de todos os homens.17 Elerepelia energicamente as argumentaes sussurradas, mais que pronunciadas em voz alta, por certoshomens irreligiosos; ou seja, que a religio no seno um costume inveterado, uma poltica maissagaz destinada a manter os homens em sujeio (a continued custome, or a wiser Policie, to hold menin awe).18

    Ser que, ao traduzir Tucdides, Hobbes se lembrou dessa frase, transformando o substantivo awenum verbo, awed? possvel, mas nem um pouco certo: afinal, no se tratava de uma ideia incomum,como d a entender a reao polmica de Purchas. A continuao de seu trecho permite identificar osinominados personagens que reduziam a religio a um costume inveterado (but a continuedcustome). Com toda a probabilidade, Purchas pensava em Montaigne, cujos ensaios haviam sidorecentemente traduzidos para o ingls por John Florio: o autor do primeiro dicionrio italiano-ingls,que deixara a Itlia junto com o pai para fugir do jugo do catolicismo.19 Montaigne, num famosoensaio intitulado Sobre o costume e sobre a impossibilidade de mudar facilmente uma lei recebida(De la coustume et de ne changer aisment une loy recee), sustentara que qualquer opinio, mesmoa mais extravagante, pode se apoiar em algum costume. E, entre parnteses, acrescentara: (deixo delado a grosseira impostura das religies [je laisse part la grossire imposture des religions ]).20Com essas palavras falsamente desenvoltas, Montaigne aludia ao tratado De tribus impostoribus: umaobra ainda no escrita, da qual circulava desde a Idade Mdia somente o ttulo escandaloso, queidentificava como impostores Moiss, Jesus e Maom, os fundadores das trs grandes religiesmonotestas mediterrneas. Essa tradio, evocada por Montaigne e pontualmente repelida porPurchas, via na religio um mero instrumento poltico, apropriado para controlar os impulsos dosignorantes.

    7.

    Ecos dessas e de outras leituras confluram nos captulos XI e XII do Leviat, intitulados Sobre a

  • diversidade dos costumes e Sobre a religio (Of the Difference of Manners, Of Religion).21Hobbes remeteu a origem da religio ao medo nascido da ignorncia das causas naturais, substitudaspor potncias invisveis. Esse era um tema central da filosofia de Epicuro, retomado por Lucrcio emseu grande poema sobre a natureza das coisas. Uma clebre mxima de origem epicurista afirmavaque Primus in orbe deos fecit timor, ou seja: o que criou os deuses foi, antes de tudo, o medo.22Hobbes citou essa mxima definindo-a como verdadeirssima: mas logo esclareceu que ela s valiapara a religio pag. O reconhecimento de que existe um s Deus, eterno, infinito e onipotente,prosseguiu, deriva verossimilmente da curiosidade de conhecer as causas, mais que do temor dofuturo.23 Uma declarao prudente e mentirosa. Poucos pargrafos antes, Hobbes dissera exatamenteo contrrio: isto , que o desejo de conhecer as causas gera ansiedade (anxiety) e medo perene(perpetuall feare). O subttulo margem explicava: A causa natural da religio a ansiedade pelofuturo.24

    Atacar a religio destruindo-lhe as razes, ou seja, os falsos medos gerados pela ignorncia: talprojeto inspirara a Lucrcio versos estupendos, que se entreveem na contraluz por trs das pginas deHobbes. Mas h uma diferena importante. Hobbes no quer destruir o medo, antes faz dele a prpriabase da origem do Estado.25 Ele parte da crtica epicurista da religio, mas depois parece se afastardela. Contudo, essa divergncia, sublinhada por muitos estudiosos, esconde uma atitude maiscomplexa. Ajuda--nos a compreend-la um trecho em que Hobbes, como fazia com frequncia,reelaborou vigorosamente materiais de procedncias diferentes, condensando-os numa forma nova.

    Hobbes diz que a ignorncia das causas naturais e o medo (feare) que da resulta induzem oshomens a supor e a fingir de si para si diversas espcies de poderes invisveis, a encarar com sujeioas prprias imaginaes, a invoc-las quando se encontram em dificuldade, e a agradecer-lhes quandoos eventos tiveram um resultado favorvel.26 Mais uma vez, Hobbes associa a sujeio, awe, religio, mas num contexto que enfatiza como os homens so induzidos a encarar com sujeio asprprias imaginaes (and to stand in awe of their own imaginations). Julgo que, ao descrever essaatitude aparentemente paradoxal, Hobbes tenha se lembrado de uma extraordinria frase de Tcito:fingebant simul credebantque (Ann. V, 10), imaginavam e ao mesmo tempo acreditavam nasprprias imaginaes. uma frase que aparece por trs vezes, com mnimas variaes, na obra deTcito, para descrever eventos circunscritos, como a circulao de notcias falsas.27 Hobbes serviu-seda formulao de Tcito (que fora citada, de maneira distorcida, por Bacon, de quem ele havia sidosecretrio) para descrever um fenmeno bastante generalizado: a origem da religio. Hobbes usa overbo feign, que eu traduzi por fingir, para manter a associao com o substantivo fiction (obra deimaginao, romance), e com o adjetivo fictive (fictcio, fingido). Feign remete ao verbo usado porTcito: fingebant.28

    8.

    Hobbes no se propunha a destruir a religio vista como imaginao; queria compreender, atravsda formulao paradoxal de Tcito, como a religio, fruto do medo e da imaginao humana, podefuncionar. Para Hobbes, as consequncias desse raciocnio so decisivas.29 O modelo delineado paraexplicar a origem da religio reaparece na pgina central do Leviat, aquela que descreve a origem do

  • Estado.O acordo entre os animais, explica Hobbes, natural; o acordo entre os homens, ao contrrio, um

    pacto artificial: Por isso, para conseguir que o pacto seja duradouro, necessrio um poder comum, afim de mant-los [os homens] num estado de sujeio (too keep them in awe) e de dirigir suas aespara o bem comum.30

    Na descrio do estado de natureza, Hobbes usara a mesma expresso:

    Donde fica claro como, durante o tempo em que os homens so desprovidos de um poder comum que os mantenha todos numestado de sujeio (to keep them all in awe), eles se encontram naquela condio que chamada guerra, e tal guerra de cada umcontra o outro.31

    Portanto, seja no caso da origem da religio, seja no da origem do Estado, encontramos no incio omedo (feare) e, no fim, como resultado, a sujeio ou reverncia (awe). No meio, a fico, que seimpe queles que a criaram como uma realidade: Esta a fundao daquele grande Leviat, oumelhor, para falar com mais reverncia, daquele Deus mortal a quem, abaixo do Deus imortal, somosdevedores de nossa paz e defesa.32

    O Leviat, criao artificial, se ergue diante daqueles que com seu pacto o criaram aqueles dosquais feito como um objeto que incute sujeio.

    Na figura desenhada a lpis, provavelmente por Abraham Bosse, no frontispcio do exemplar empergaminho dedicado a Carlos II, a mirade de homens dos quais feito o corpo do Leviat encara oleitor, neste caso o rei.33 Na verso final da primeira edio impressa h uma mudana, sugerida deforma verossmil por Hobbes, que traduzia numa imagem poderosamente sugestiva as palavras deTcito: fingunt simul creduntque.34 A mirade de homens observa no alto, com sujeio e reverncia, ohomem artificial que existe graas a eles: o Leviat que, atravs do pacto que os liga, eles mesmosconstruram.35

  • 2. Imagem desenhada a lpis no frontispcio do exemplar do Leviat dedicado a Carlos II.

  • 9.

    Portanto, Hobbes apresenta a origem da religio e a do Estado de maneira paralela. Mas, no Estadopor ele delineado, a religio ou melhor, a Igreja no tem nenhuma autonomia. O frontispcio doLeviat representa o deus mortal, o Estado, com a espada numa das mos e o bculo na outra. ParaHobbes, o poder do Estado no se apoia somente na fora, mas na sujeio, awe: a palavra que vimosaparecer em posio estratgica nos trechos do Leviat dedicados origem da religio e do Estado.

    Hobbes usara a mesma palavra, como verbo (awed), em sua traduo da pgina de Tucdides sobreos efeitos da peste. O medo dos deuses e as leis humanas j no representavam um freio, escreveraTucdides. Como se recordar, Hobbes traduzira: j no incutiam sujeio. A explicao dessedesvio em relao ao texto grego deve ser buscada nas palavras imediatamente precedentes. Tucdidesfalara de medo dos deuses (theon de phobos). Quando traduziu a expresso por fear of the gods,Hobbes decerto deve ter recordado que a palavra fear reaparece continuamente, como substantivo ecomo verbo, na traduo inglesa da Bblia dita de James I, associada a Deus e ao temor a Deus. Maso temor a Deus no idntico ao medo. A expresso timor Dei, usada na traduo latina de soJernimo que por sua vez reproduzia a traduo grega, dita dos Septuaginta, da Bblia hebraica ,no transmite a ambivalncia envolvida, na Bblia hebraica, pela palavra correspondente: yirah.Como fiquei sabendo pelos informantes que vieram socorrer minha ignorncia do hebraico, yirahexpressa ao mesmo tempo medo e sujeio.36 Era totalmente inadequada a palavra timor, escolhidapor so Jernimo em sua traduo latina da Bblia; inadequada e perigosa, uma vez que timor evocavaa mxima epicurista j lembrada (primus in orbe deos fecit timor), na qual a origem da religio eraremetida ao medo. Mais prxima da ambivalncia de yirah era sem dvida a palavra awe, que emalguns trechos da Bblia inglesa de James I designa a atitude do homem perante Deus (Salmos 4,4;33,8; 119,161; Provrbios10). Os adjetivos ligados ao substantivo awe demonstram isso: awesome,que incute reverncia, e awful, terrvel.Talvez Hobbes tenha sentido a necessidade de inserir, em suatraduo do trecho de Tucdides, depois da palavra fear, a palavra awed, a fim de comunicar acontraditria complexidade das atitudes suscitadas pela religio.37 Talvez as reflexes de Hobbessobre o medo (fear) tenham comeado aqui.

    Mas como poderamos traduzir yirah? A antiga palavra terribilit aquela que Vasarirelacionava a Michelangelo nos oferece o caminho. Poderamos usar, em vez de sujeio, a palavrareverncia, que deriva do latim vereor, temer.38 Mas talvez a verdadeira traduo de awe sejaterror. o que Hobbes nos sugere indiretamente:

    [] Atravs dessa autoridade da qual foi investido por todo indivduo no Estado, ele [o Leviat] pode usar to amplamente opoder e a fora que lhe foram conferidos a ponto de conseguir dobrar com o terror a vontade de todos e de dirigir a vontade decada um para a manuteno da paz interna e para a ajuda recproca contra os inimigos externos.39

    Todos os intrpretes explicam que Hobbes inaugura a filosofia poltica moderna propondo pelaprimeira vez uma interpretao secularizada para a origem do Estado. A leitura que sugeri aqui diferente. Para Hobbes, o poder poltico pressupe a fora, mas a fora, por si s, no basta. O Estado,o deus mortal gerado pelo medo, incute terror: um sentimento no qual se misturam de maneirainextricvel medo e sujeio.40 Para se apresentar como autoridade legtima, o Estado precisa dos

  • instrumentos (das armas) da religio. Por isso a reflexo moderna sobre o Estado gira em torno dateologia poltica: uma tradio inaugurada por Hobbes.

    Tal concluso nos faz encarar com olhar diferente o fenmeno, bem distante de seu desenlace, quechamamos secularizao. As palavras de Alberico Gentili citadas por Carl Schmitt Silete theologiin munere alieno! podem ser remetidas (aqui desenvolvo uma observao feita por Sigrid Weigel)tanto teologia poltica quanto secularizao. A secularizao no se contrape religio: invade-lhe o campo.41 As reaes secularizao que se manifestam sob nossos olhos se explicam (eu disseexplicam, no justificam) luz dessa usurpao.

    10.

    Comecei meu discurso avisando que me afastaria do presente, mas que acabaria voltando a ele.Fao-o agora. Alguns devem estar lembrados do bombardeio a Bagd em maro de 2003. O nome emcdigo da operao era Shock and Awe, traduzida em alguns jornais italianos como colpire eterrorizzare, golpear e aterrorizar. Em seu artigo publicado em Il Manifesto em 24 de maro de 2003,Clara Gallini, fortalecida por sua competncia de estudiosa de histria das religies, observou queaquela traduo no restitua plenamente a sinistra complexidade da locuo original: esta devia serremetida no a um terror em sentido psicolgico, mas a um terror sagrado.42 O mesmo artigorecordava uma passagem da Bblia xodo 23,27 comentada no famoso livro de Rudolf Ottointitulado O sagrado. Enviarei diante de ti o meu terror, diz o Senhor, confundindo todo povoaonde entrares.43 Neste caso, pelo que me foi dito, a palavra hebraica (emati) expressa um terrordesprovido de ambivalncia. Rudolf Otto recordava Behemoth e Leviat, os monstruosos animaisdescritos no Livro de J, como exemplos da terrvel ambivalncia do sagrado. Mas nem Rudolf Ottonem Clara Gallini se lembraram de Hobbes.44

    Em contrapartida, a aluso a Hobbes no termo Shock and Awe havia sido imediatamenteidentificada num ensaio de Horst Bredekamp, autor de um importante livro dedicado ao frontispciodo Leviat e s suas implicaes. Bredekamp partia de Hobbes para chegar ao presente, influnciaexercida pelas ideias de Leo Strauss sobre os neoconservadores americanos.45 De maneira menosaprofundada, Richard Drayton se moveu em direo semelhante num artigo publicado no Guardianem 29 de dezembro de 2005, dedicado aos neoconservadores americanos e aos desastrosos resultadosda poltica externa deles.46 Drayton observou que Paul Wolfowitz, Richard Perle e seus amigos,inspirando-se no ensinamento de Leo Strauss, haviam se proposto a adaptar Hobbes ao sculo XXI,difundindo terror tecnolgico para criar submisso. Mas tanto Shock and Awe quanto Hobbes,comentou Drayton, acabaram por se voltar contra quem os evocara.

    A partida, contudo, no est encerrada em absoluto. Harlan Ullman, o analista militar americanoque em 1995 havia lanado a palavra de ordem Shock and Awe, citara a bomba atmica lanada sobreHiroshima como modelo dessa estratgia. Depois do Onze de Setembro, Ullman voltou carga ( ocaso de diz-lo). A concluso da guerra contra o terrorismo global, explicou, est ao alcance das mos.Combinando conhecimentos quase perfeitos, rapidez, execuo brilhante e controle do ambiente,escreveu Ullman, podemos infligir ao inimigo uma derrota rpida e decisiva com o menor nmeropossvel de perdas.47 Naturalmente, Ullman pensa s nas perdas americanas: as do inimigo (civis

  • includos) devem, ao contrrio, ser maximizadas. Mas as sangrentas notcias que chegam do Iraquedesmentem quase diariamente a arrogncia militar-tecnolgica de personagens como Ullman.

    11.

    Vivemos num mundo em que os Estados ameaam com o terror, exercitam-no e s vezes o sofrem. o mundo de quem procura se apoderar das armas, venerveis e potentes, da religio, e de quemempunha a religio como uma arma. Um mundo no qual gigantescos Leviats se debatemconvulsamente ou ficam de tocaia, esperando. Um mundo semelhante quele pensado e investigadopor Hobbes.

    Mas algum poderia sustentar que Hobbes nos ajuda a imaginar no s o presente, como tambm ofuturo: um futuro remoto, no inevitvel, e contudo talvez no impossvel.48 Suponhamos que adegradao do ambiente aumente at alcanar nveis hoje impensveis. A poluio do ar, da gua e daterra acabaria por ameaar a sobrevivncia de muitas espcies animais, inclusive aquela denominadaHomo sapiens sapiens. A essa altura, um controle global, minucioso, sobre o mundo e seus habitantesse tornaria inevitvel. A sobrevivncia do gnero humano imporia um pacto semelhante quelepostulado por Hobbes: os indivduos renunciariam s prprias liberdades em favor de um super Estadoopressor, de um Leviat infinitamente mais potente que os passados. O grilho social estreitaria osmortais num n frreo, j no contra a mpia natureza, como escrevia Leopardi em La Ginestra [Agiesta], mas em socorro a uma natureza frgil, deteriorada, precria.49

    Um futuro hipottico, que esperamos no se verifique jamais.

    * Traduo de Joana Anglica dAvila Melo.

  • 2. David, Marat: Arte, poltica, religio*1

    1.

    Antes de mais nada, uma justificativa; ou melhor, duas. Falarei de um quadro muito famoso (fig. 3:David, Marat), mesmo no sendo historiador da arte. Mas espero poder mostrar que ainda h algo adizer sobre Marat em seu ltimo suspiro (tal o ttulo que David utiliza numa carta).2

    Durante minha exposio, lembrarei fatos conhecidos por todos ns e tambm resultados depesquisas conhecidas por todos os estudiosos de David. Dirijo-me a estes ltimos, mas no s a eles.O entrelaamento de arte, poltica e religio que est por trs de Marat em seu ltimo suspiro lanaluz, como tentarei explicar na concluso, sobre questes hoje inescapveis.

    Comeo por um detalhe: a data do quadro (fig. 4: David, Marat, detalhe). As palavras lan deuxforam escritas em maisculas sobre a caixa de madeira na parte inferior direita do quadro, sob adedicatria e a assinatura Marat, / David. O calendrio revolucionrio, cujo incio simblicocoincidia com o primeiro dia da era republicana, 22 de setembro de 1792, entrara oficialmente emvigor, substituindo o calendrio cristo, em 6 de outubro de 1793, dez dias antes da exposio aopblico do Marat de David na Cour Carredo Louvre.3 As palavras lan deux, que hoje nos parecemum elemento essencial do quadro, foram provavelmente acrescentadas no ltimo instante. A datasegundo o calendrio tradicional 1793 ainda visvel, embora parcialmente encoberta pela cor;depois de rever o quadro algum tempo atrs, creio que a hiptese de que essa data tenha reaparecidoaps uma restaurao deve ser excluda.

  • 3. Jacques-Louis David, Marat em seu ltimo suspiro, 1793.

  • 4. Jacques-Louis David, Marat em seu ltimo suspiro, 1793 (detalhe).

    O significado do novo calendrio, do qual haviam desaparecido todos os elementos cristos, era e

    continua a ser bastante claro: com ele, a Repblica nascida da Revoluo anunciava o princpio deuma nova era. Hoje inevitvel perguntarmos at que ponto nossa maneira de entender essa rupturaradical com o passado (e tambm, indiretamente, nossa maneira de entender o quadro de David) foialterada pelos acontecimentos do final do sculo passado. Tem-se afirmado constantemente comsatisfao ou pesar que o ciclo histrico iniciado em Paris em 1789 terminou exatos duzentos anosdepois, em 1989. Segundo essa interpretao, a queda dos regimes comunistas no Leste Europeu teriaassinalado o fim da Era das Revolues, entendidas como projeto radical e global. Mas os ponteirosdo relgio da histria (para recorrer a essa imagem batida) no podem voltar atrs. O calendriodescristianizado durou poucos anos, porm as repercusses de longo prazo da Revoluo ainda sefazem muito visveis. Como todos sabem, a irrupo de grupos sociais desfavorecidos na cena polticae a abolio dos privilgios de bero mudaram irreversivelmente a histria da Frana, da Europa, domundo. Continuidade e descontinuidade, proximidade e distncia se entrelaam, como veremostambm no quadro de David.

    2.

    Entre 1792 e 1793 houve uma repentina acelerao no processo que se iniciara em 1789. Aosmassacres de setembro seguiu--se o processo contra o soberano, com sua condenao morte. AConveno aprovou a sentena com a maioria de um voto. Dentre os deputados estava David. Nomomento da votao, ele se aproximou da tribuna e pronunciou duas palavras: La mort. Davidtambm esteve entre os que se pronunciaram contra a suspenso da sentena (dessa vez, a maioria foimais expressiva). Em 21 de janeiro de 1793, o ex-rei foi conduzido guilhotina.

  • Em 20 de janeiro, ou seja, no dia anterior execuo, Michel Le Pelletier de Saint-Fargeau, umaristocrata que se alinhara com a Revoluo, foi procurado por um homem que lhe perguntou se votaraa favor da morte do rei. Le Pelletier respondeu afirmativamente e comeou a explicar a razo; foiapunhalado at a morte. David concordou em retratar Le Pelletier de Saint-Fargeau, primeiro mrtirda Repblica. O quadro, como explicarei mais adiante, no existe mais. Graas a algumas cpias agrafite e ao fragmento de uma gravura de Tardieu baseada no quadro de David, podemos ter uma ideiada obra perdida: uma imagem heroica, austera, inspirada num modelo antigo (fig. 5: Tardieu, gravurabaseada em David, Le Pelletier de Saint-Fargeau).

    5. Pierre-Alexandre Tardieu, Le Pelletier de Saint-Fargeau, s.d.

    Era exatamente isso que a Conveno e o pblico em geral esperavam de David. Os

    revolucionrios, embriagados por Plutarco e Rousseau, viam a Antiguidade, Roma e Atenas, comomodelos de civismo e de virtudes heroicas. Em O juramento dos Horcios, pintado cinco anos antes daTomada da Bastilha (1784) (fig. 6), David antecipara o thos republicano; poucos anos mais tarde,contribuiu muito para lhe dar forma. Depois de eclodir a Revoluo, David se encontrou no centro dopanorama artstico e poltico. Seu prestgio e influncia eram enormes. Tornou-se secretrio e depoispresidente da Conveno. Durante o Terror, ocupou-se diretamente das atividades do tribunalrevolucionrio. Mas o engajamento poltico no diminuiu suas mltiplas atividades artsticas. Davidpassou a ser uma espcie de cengrafo poltico: preparou minuciosamente festas polticas e funerais;desenhou selos, moedas e caricaturas polticas; criou roupas adequadas nova sociedade nascida daRevoluo (fig. 7) e retratos de mrtires republicanos como Le Pelletier e Marat.4

  • 6. Jacques-Louis David, O juramento dos Horcios, 1784.

    Tudo isso faz parte da imagem tradicional e at mesmo, digamos, estereotipada de David. Porm, a

    um exame mais minucioso, ela se mostra mais complexa.

  • 7. Jacques-Louis David, Projeto de vestimenta dos legisladores, s.d.3.

    O assassinato de Marat, o Ami du Peuple, despertou uma profunda comoo.5 No dia seguinte, 14 dejulho de 1793, o deputado Guirault tomou a palavra diante da Conveno: David, o est-tu, David,prends ton pinceau, il te reste encore un portrait faire ; Me voici, scria David, je ne loublieraipas [David, onde ests, David, pega teu pincel, ainda tens um retrato a fazer; Estou aqui,exclamou David, no o esquecerei].6 Sua ligao com Marat era poltica e pessoal. Em abril de 1793,quando Marat foi acusado pela Conveno, David o defendeu com uma coragem que beirava atemeridade.7

    Em 16 de outubro, o Marat estava pronto. Haviam se passado trs meses. David, que cuidara daorganizao dos funerais de Marat, encarregou-se tambm da exposio ao pblico, na Cour Carre doLouvre, dos dois quadros comemorando Le Pelletier e Marat. Mais tarde, as telas foram transferidaspara as Tulherias, sede da Conveno, onde permaneceram lado a lado na parede por quinze meses.Em 1795, durante o Diretrio, David conseguiu recuperar a posse de ambas. Costuma-se supor queDavid quis proteger os dois quadros de uma possvel destruio, ou que pretendia ocultar os traosmais gritantes de seu passado poltico: so duas hipteses que no se excluem mutuamente.8 Pordcadas Le Pelletier e Marat ficaram inacessveis ao pblico. Em 3 de abril de 1820, Gros escreveu aDavid, refugiado em Bruxelas, informando-o de que os dois quadros, junto com duas cpias de Marat,estavam em lugar seguro, cobertos por um invlucro: la discrtion preside tout cela.9

  • 4.

    O espao do museu por definio abstrato, muito diferente do local a que se destinavam osquadros ou esttuas. No caso de Marat em seu ltimo suspiro, hoje exposto no Museu de Belas-Artesde Bruxelas, a eliminao de seu contexto original comea pelo desaparecimento do quadro que oacompanhava. A filha de Le Pelletier, Suzanne, depois de suprimir os detalhes mais embaraosos doretrato, que adquirira em 1826, teria acabado por destru-lo.10

    evidente, pelo que dissemos at agora, que Marat e Le Pelletier foram concebidos (e entendidos)como quadros intimamente ligados entre si. Segundo uma testemunha ocular, ambos tinham asmesmas dimenses.11 A semelhana entre os dois quadros, o existente e o perdido, clara. Mas umaanlise mais cuidadosa mostra algumas divergncias:

    a. Enquanto Le Pelletier aparece morto, Marat representado em seu ltimo suspiro: a mo aindasegura a pena e em seu rosto paira um vago sorriso.b. Um desenho de um aluno de David, baseado na pintura perdida, mostra (fig. 8) que no corpoinclinado de Le Pelletier pendia uma espada atravessando uma folha de papel, na qual se liam aspalavras: Je vote la mort du tyran [voto pela morte do tirano].12 Como o prprio David explicara naConveno, a espada remetia a um episdio narrado por Ccero (Tusc. 5.61-62). Dionsio, tirano deSiracusa, obrigou Dmocles (que falara dele em tom invejoso) a ocupar seu assento num lautobanquete sob uma espada que lhe pendia acima da cabea, suspensa por um fio. O significado doquadro era claro: os revolucionrios, como os tiranos, vivem numa situao de perigo constante.Igualmente clara, embora formulada numa linguagem alegrica, era a ligao entre o voto de LePelletier e o gesto que pusera fim sua vida. No retrato de Marat, porm, no h alegorias. Tudo literal, at o ltimo detalhe: a banheira, o tinteiro, a tbua de madeira usada como mesa, a assinaturaaposta numa carta endereada a uma pobre viva, me de cinco crianas.13 A assassina, invisvel, invocada por meio da carta aberta diante do espectador: um pedido de ajuda a Marat que CharlotteCorday trouxera pessoalmente. Em vez da espada adornada que pende sobre a cabea de Le Pelletier,h uma humilde faca de cozinha manchada de sangue. A carta e a faca evocam a cena do crime queDavid evitara representar.

  • 8. Anatole Devosge, Le Pelletier de Saint-Fargeau em seu leito de morte, s.d.

  • c. Em 1826, quando o retrato de Le Pelletier ainda no fora destrudo, o crtico Pierre-AlexandreCoupin viu e comparou os dois quadros.14 Louvou David por ter ressaltado as diferenas entre os doispersonagens, principalmente do ponto de vista da origem social: o aristocrata Le Pelletier fora pintadocom graa e delicadeza, ao passo que Marat, que apesar da educao recebida mantivera umcomportamento plebeu, demonstrava uma natureza desagradvel e grosseira. Na verdade, vriosretratos da poca mostram que David embelezou os traos de Marat. Mas a comparao traada porCoupin, para alm da hostilidade (ento previsvel) em relao a Marat, tocava num ponto importante.Os dois quadros pareciam utilizar uma linguagem semelhante, inspirada na Antiguidade clssica. Umcaderno de notas de David, referente aos anos que passou em Roma, traz uma anotao baseada numsarcfago com o poema fnebre a Meleagro (fig. 9, pgina do caderno de notas romano de David).David reutilizou esse tema, primeiro em Andrmaca chorando Heitor, de 1783 (fig. 10), depois noquadro perdido representando Le Pelletier no leito de morte e, por fim, em Marat em seu ltimosuspiro (fig. 3). Mas, nesse ltimo quadro, as lembranas classicizantes estavam mescladas a algocompletamente diferente.

    Quem leu Mimesis, o grande livro de Erich Auerbach, h de lembrar que ele se constri sobre a

    tenso, desenvolvida dentro da tradio literria ocidental, entre uma ideia de hierarquia estilstica (esocial) herdada da Antiguidade clssica e a subverso dessa ideia pelo cristianismo. Segundo atradio clssica, a tragdia narrava em estilo elevado e solene as gestas dos reis e prncipes; acomdia narrava em estilo baixo, rico em detalhes extrados da vida cotidiana, histrias cujosprotagonistas eram personagens de extrao social humilde; a stira se movia entre esses doisextremos. Tal hierarquia social e estilstica foi subvertida pelos Evangelhos: relatos que narravam emestilo simples e direto a histria de um personagem que, depois de viver entre pescadores, usurrios eprostitutas, fora obrigado a sofrer uma coroao grotesca e por fim morreu na cruz como umescravo.15 A representao de um heri que morre esfaqueado numa banheira constitua uma violaoanloga do decorum clssico. Pode-se dizer o mesmo em relao aos objetos humildes que Davidreproduziu com tanta nitidez: a banheira, o tinteiro, a faca de cozinha, a tbua usada como mesa.Marat em seu ltimo suspiro falava uma lngua clssica, mas com sotaque cristo.

    5.

    O que expus at agora no novidade. Num livro de grande originalidade, Transformations in LateEighteenth Century Art [Transformaes na arte do final do sculo XVIII], publicado em 1967, RobertRosenblum mencionou o cadver santificado de Jean-Paul Marat. Rosenblum observa:

    No surpreende de forma alguma que, nessa ambientao criptocrist, os objetos inanimados cercando o mrtir a faca, a pena,o tinteiro assumam o significado de relquias sagradas. Com efeito, alguns vestgios materiais o bloco para escrever, abanheira, a camisa ensanguentada de uma perda espiritual considerada irreparvel ficaram expostos no funeral de Marat comoobjetos de venerao.16

  • 9. Jacques-Louis David, A morte de Meleagro, s.d.

    A palavra venerao deve ser tomada ao p da letra. Durante as cerimnias fnebres, o corao de

    Marat foi invocado ao lado do de Jesus: O cur de Jsus! O cur de Marat!.17 O paralelo entreJesus e Marat, mrtires da intolerncia e do privilgio, foi formulado sob outros aspectos tambm.Diversos testemunhos indicam que, depois da morte, Marat se tornou objeto de um verdadeiro culto.Como interpretar tudo isso? Como variantes supersticiosas de ritos catlicos tradicionais? Comoatitudes inspiradas por uma religiosidade sincrtica in statu nascendi?18 Num ensaio ricamentedocumentado, Frank Paul Bowman rejeitou as duas interpretaes: as conotaes religiosas dochamado culto de Marat seriam fruto de uma projeo retrospectiva, nascida no clima de 1848. Mas setrata de uma tese insustentvel. Tomemos um texto citado pelo prprio Bowman: o Discourspronunciado por Sauvageot, prefeito da comuna de Dijon, em 25 brumrio do ano III, dia dainaugurao do busto de Marat. Depois de retomar o paralelo entre Jesus e Marat, Sauvageot concluidizendo:

  • 10. Jacques-Louis David, Andrmaca chorando Heitor, 1783

  • Cidados, Marat merece nosso incenso, mas no o divinizemos: no vejamos nele seno um homem que serviu bem a seu pas.Se nossos antepassados no tivessem alterado a moral de Jesus divinizando-o, se no tivessem visto nele seno um filsofo que

    queria pr os grandes no nvel do povo, o fanatismo e o erro no os teriam acorrentado aos ps dos reis e dos padres, e hoje nodissiparamos nossas riquezas e nosso sangue para instaurar o reino da razo e da liberdade.

    Assim, que nossa divindade seja a liberdade 19

    Incenso sim, divinizao no, recomendava o prefeito da comuna de Dijon. uma distinoque parecia reproduzir aquela crist entre a dulia, devida aos santos, e a latria, reservada a Deus. Odiscurso, apresentado, como dissemos, por ocasio da inaugurao de um busto de Marat, tentavarefrear os excessos de uma venerao generalizada. Algum tempo depois, ela foi polemicamentedefinida como culto, conforme se depreende de uma imagem, bastante conhecida dos estudiosos deDavid, intitulada Culte de Marat, que faz parte de uma srie chamada As pragas do Egito (fig. 11).20Abaixo do jovem ajoelhado, que espalha incenso sobre o busto de Marat, l-se a legenda: Em suacegueira quanto a este monstro odioso,/ apresentavam o incenso que se deve apenas aos deuses. Asrie de que faz parte essa imagem remontaria a 1793-5: datas compatveis tanto com o olharretrospectivo, ressaltado pelo verbo no imperfeito (prsentaient), quanto com a refernciaclassicizante (aux Dieux). Mas a dupla referncia, no banal, ao incenso e ao busto de Maratpoderia remeter justamente ao discurso de Sauvageot. Neste caso, o alvo da imagem seria triplo:Marat, monstre odieux; os devotos que o veneram cegamente; aqueles que, como o prefeito dacomuna de Dijon, polemizam com os devotos, porm veem Marat como um homem que serviu seupas. Mas mesmo quem considera que a ligao entre essa imagem e o texto no est demonstrada osuficiente h de admitir que ambos implicam a presena do que chamaremos culto de Marat: umfenmeno amplamente documentado, que no pode ser identificado com uma projeo retrospectiva.

  • 11. De Vinck, Culte de Marat, em As pragas do Egito: ou estado da Frana de 1789 at o estabelecimento da Constituio atual,1795.

  • 6.

    O corao removido do cadver de Marat foi objeto de disputa entre os montagnards, seguidores deHbert, e os jacobinos. Os montagnards venceram e em 26 de julho puseram em votao a proposta deerigir um altar dedicado ao corao de Marat, o incorruptvel, a qual foi aprovada.21 O cultorepublicano tributado a Marat era bastante diferente do popular, que comparava seu corao ao deJesus. Mas ambos fazem parte do contexto em que as escolhas de David ganharam forma. O termoescolhas no bvio. Robert Rosenblum escreveu que David, como jacobino fantico,naturalmente rejeitava o cristianismo, mas mesmo assim inevitavelmente persistiam em sua obratradies crists camufladas.22 Esta concluso inaceitvel. Supor que David, numa situao tograve, tenha cedido ao impulso de coeres estilsticas e iconogrficas inevitveis, isto ,incontroladas, significa desconsiderar tudo o que sabemos da histria de Marat, desde 13 de julho, diaem que foi encomendado, at 16 de outubro, quando foi exposto ao pblico. No estamos diante de umsimples quadro poltico, mas de um ato poltico, executado por um pintor que tinha responsabilidadespolticas de primeira importncia. Muito mais convincentes, portanto, parecem as interpretaes queleem em chave poltica o entrelaamento de elementos clssicos e cristos que caracterizam Marat emseu ltimo suspiro. Segundo Klaus Herding, esse entrelaamento corresponderia a um apelo extremo unidade revolucionria.23 Numa perspectiva similar, Tom Crow falou numa conciliao implcitaentre a recusa da Igreja por parte da Revoluo e a hostilidade de Robespierre em relao aoatesmo, que o levava a tentar pr freio ao ardor extremista dos descristianizadores.24

    7.

    O que dissemos at agora poderia sugerir que, entre os historiadores da arte que se dedicam aoMarat de David, existiria uma concordncia bastante pacfica quanto presena de elementos cristosou de aluses iconografia de Cristo morto. Na verdade, no tm faltado vozes discordantes. Entreelas, destaca-se a de Willibald Sauerlnder, que num ensaio muito arguto insistiu sobre ascaractersticas antiga do quadro de David. Pega teus pincis, vinga nosso amigo: as palavras que odeputado Guirault dirigiu a David certamente no eram um convite compaixo. Marat, concluiSauerlnder, um exemplum virtutis, no uma piet jacobina.25 Desse ponto de vista, o culto deMarat previsivelmente tratado como mero fenmeno marginal, baseado em testemunhosretrospectivos. Mas no final do ensaio, numa pgina dedicada fortuna pstuma do quadro de David,Sauerlnder acaba sutilmente pondo em discusso sua prpria interpretao.

    Como vimos, aps 1795 Marat sumiu de circulao por dcadas. Depois da morte do pintor, osherdeiros tentaram vend-lo, mas sem sucesso. Tratava-se ainda de um quadro escandaloso: para amaior parte do pblico (inclusive os liberais), Marat simbolizava os piores excessos do Terrorrevolucionrio. Porm, aos olhos de um pblico seleto de pintores ou conhecedores, David podiaparecer to escandaloso quanto Marat. Em junho de 1835, o grande pintor ingls John Constableescreveu ao amigo e confidente Charles Leslie: Vi os quadros de David; so realmente detestveis.Tratava-se de Bonaparte cruzando os Alpes, Marte e Vnus e Marat, ento expostos em Londres.Constable comentou: David parece ter formado seu esprito em trs fontes: o patbulo, o hospital e obordel.26

  • Em 1846, Marat foi exposto em Paris. Baudelaire viu e comentou o quadro numa pginainesquecvel. Basta citar algumas passagens para mostrar como a descrio a ekphrasis, inventadae praticada pelos gregos , nas mos de um poeta e crtico (aquele poeta, aquele crtico), pode setransformar em instrumento de conhecimento: O divino Marat, com um brao fora da banheira e apena pela ltima vez na mo agora inerte, o peito trespassado pelo ferimento sacrlego, acaba de soltarseu ltimo suspiro.

    O divino Marat, o ferimento sacrlego: palavras que assinalam discretamente as aluses crists quetornam o quadro de David ainda mais escandaloso. E Baudelaire continuava:

    Todos esses detalhes so histricos e reais, como um romance de Balzac; h o drama, vivo em todo o seu lgubre horror, e porum estranho prodgio que faz deste quadro a obra-prima de David e uma das grandes curiosidades da arte moderna, no tem nadade vulgar ou ignbil [] cruel como a natureza, o quadro tem toda a fragrncia do ideal.

    Marat se transformou; sua feiura fsica se dissipou; a morte, ou melhor, a santa Morte, acaba debeij-lo com seus lbios amorosos e ele repousa na serenidade de sua metamorfose. H na obra algode terno e pungente ao mesmo tempo; no ar frio deste quarto, nessas paredes frias, em torno desta friae fnebre banheira adeja uma alma.27

    Sauerlnder cita algumas passagens retiradas desta pgina; depois, extrai implicitamente asconsequncias da descrio de Baudelaire, concluindo seu ensaio com uma iluminao crticafulgurante: No Marat de David percebe-se, no interior do cone jacobino, a sensualidade refinada dapintura do sculo XVIII pr-revolucionrio, o perfume inebriante das imagens de boudoir e detoilette.28

    Algo de terno e pungente ao mesmo tempo, escrevera Baudelaire; a sensualidade refinada dapintura do sculo XVIII pr-revolucionrio, observou Sauerlnder. Tento avanar mais um passo nessadireo. Considero que David, ao pintar Marat em seu ltimo suspiro, procurou inspirao na culturarococ que absorvera durante a juventude. Mais especificamente, penso que, na mescla explosiva quefervilhava na memria de David, ressurgiu uma obra de Pierre Legros, um dos escultores maisimportantes em atividade no panorama romano do incio do sculo XVIII.29 A esttua, em mrmorepolicromo, realizada em 1703, representa Estanislau Kostka, um jesuta morto em 1567 aos dezoitoanos, beatificado em 1605 e santificado em 1726. A esttua se encontra ainda hoje no local a que sedestinou originalmente: o quarto onde Kostka morreu, no noviciado anexo Igreja de Santo Andr doQuirinal, em Roma.

    Uma comparao entre a esttua de Legros e Marat em seu ltimo suspiro de David traz tonadivergncias e convergncias (fig. 12). Estanislau Kostka veste um manto negro uma espcie deroupo , enquanto Marat est nu; as duas cabeas tm uma inclinao semelhante (embora a esttuatenha sido fotografada num ngulo diferente) (figs. 13 e 14: detalhes das imagens anteriores); a moesquerda de Kostka est levemente erguida (ele exala o ltimo suspiro) segurando uma imagem sacra,num gesto no muito diferente do de Marat com a carta de Charlotte Corday; nos dois casos, umsorriso quase imperceptvel assinala o momento exato em que a vida abandona o corpo. Algo deterno e pungente ao mesmo tempo: as palavras de Baudelaire sobre o Marat em seu ltimo suspiro deDavid poderiam se aplicar igualmente esttua de Legros.

  • 12. Pierre Legros, Stanislas Kostka, s.d.

    Que David, durante sua estada romana entre 1775 e 1778, tenha visto a obra de um escultor francs

    de primeira grandeza como Pierre Legros algo que parece quase bvio. Naquela fase decisiva de suaformao, David examinou com plena independncia tanto Caravaggio quanto obras posteriores, quepodem ser definidas como barrocas tardias ou do incio do rococ. A representao de Marat,personagem que se tornara imediatamente objeto de um culto quase religioso, teria feito reaflorar alembrana da esttua representando o beato jesuta Estanislau Kostka. Desse emaranhado de memriasligadas ao passado e de exigncias nascidas do presente surgiu um exemplum virtutis no duplo sentidodo termo virtus: virtude clssica e virtude crist.

    8.

    Essa proposta de interpretao pode ser aceita ou rejeitada. De qualquer forma, algumas de suas

  • implicaes ultrapassam o caso especfico, j muito relevante por si s. Aqui devo avanar numterreno que foi percorrido, embora chegando a concluses diferentes, para no dizer opostas sminhas, por Timothy J. Clark, o estudioso ingls cujas pesquisas modificaram profundamente aimagem da pintura oitocentista francesa, de Courbet ao impressionismo. Num livro publicado halguns anos, Farewell to an Idea: Episodes from a History of Modernism (1999) [Adeus a uma ideia:Episdios de histria do modernismo], T. J. Clark dedicou o primeiro captulo, intitulado Painting inthe Year 2, ao Marat de David, apresentado como o quadro inaugural do modernismo. ExplicaClark:

    Tenho a impresso de que o que caracteriza e diferencia este momento da arte pictrica (e por isso pode-se dizer que ele inaugurauma poca) precisamente o fato de que a conjuntura reina inconteste. A conjuntura penetra no procedimento pictrico. Invade-o. Agora no h outra substncia a partir da qual se possa fazer uma pintura: nenhum dado, nenhuma matria, nenhum tema,nenhuma forma, nenhum passado utilizvel. Ou que possa ser aceita de comum acordo por um possvel pblico.30

    Em seu ensaio sobre Marat em seu ltimo suspiro, Clark explora como a conjuntura penetra noprocedimento pictrico. Aqui nos deparamos inevitavelmente com os testemunhos sobre o cultoreligioso ou semirreligioso de que Marat fora objeto. Como interpret-lo? Eis a resposta:

    Quanto mais examinamos o culto de Marat, menos claro fica o tipo de fenmeno que estamos estudando. A que histria elepertence? da religio popular e da formao do Estado? improvisao do menu peuple ou manipulao por parte daselites dirigentes? A pergunta abrange todo o episdio da descristianizao. E a resposta , obviamente, que ele participa dos doisaspectos. O culto de Marat existe como ponto de interseo entre a conjuntura poltica de curto prazo e o desencantamento domundo a longo prazo.31

    A sensao de perplexidade, para no dizer de embarao, perceptvel nessas frases, provm daperspectiva poltica que moldou Farewell to an Idea: um livro, ressalta Clark, escrito aps a quedado Muro.32 um livro nascido da derrota da esquerda, a que Clark pertence (e eu tambm). Mas se osentimento de derrota me associa a Clark, minha perspectiva, tanto geral quanto especfica, diverge dadele. Comeo pela questo geral e depois passarei especfica, ou seja, interpretao do Marat deDavid e ao nexo que h entre ambas.

    Na introduo a seu livro, Clark se detm sobre o desencantamento do mundo: a famosaexpresso que Max Weber tomou emprestado de Friedrich Schiller para definir a modernidade, omundo onde vivemos. (Mas o prprio Schiller, por sua vez, retomara e invertera o ttulo do livro que osociniano holands Balthasar Bekker escrevera no final do sculo XVII contra a crena na magia: Lemonde enchant [O mundo encantado]).33 O resultado do desencantamento do mundo, observaClark, a secularizao [] um belo termo tcnico:

    Significa especializao e abstrao; vida social regulada pelo clculo de grandes probabilidades estatsticas, na qual cada umaceita (ou sofre) um alto nvel de risco; tempo e espao transformados em variveis daquele mesmo clculo []. Parece-me queeste conjunto de aspectos est ligado a um processo fundamental, que constitui seu motor: o processo de acumulao do capital ea difuso do mercado capitalista numa parte cada vez mais ampla do mundo e do tecido das relaes humanas.34

    No mundo desencantado de Clark, ou melhor, de Max Weber, no existem verdadeirascontradies. Antecipando uma possvel objeo, Clark observa numa frase entre parnteses:

    (E, obviamente, no adianta afirmar contra a tese de Weber que vivemos bem no centro do revivalismo religioso, que o

  • marxismo se tornou no sculo XX uma forma assustadora de messianismo secular, que a vida cotidiana ainda est permeada deresqucios de magia e assim por diante.)35

    (E, obviamente, no adianta afirmar): para Clark, estes so fenmenos marginais, que norefutam a tese de Weber e, portanto, podem ser deixados de lado, entre parnteses. Mas essamarginalidade no to evidente. Parece difcil unir sob a mesma rubrica os resqucios de magia navida cotidiana e o chamado regresso das religies (que, na verdade, nunca foram embora). Se tivessepublicado seu livro no em 1999, e sim depois de setembro de 2001, Clark poderia talvez ter adotadouma formulao menos drstica. Mas o contedo de sua tese o que dissemos: a secularizao sinnimo do desencantamento do mundo que caracteriza a modernidade, ou seja, a difusoirreprimvel do mercado capitalista.36

    Nesta perspectiva, os obstculos secularizao se configuram como mero atraso. Mas seentendermos a secularizao como um processo contraditrio e certamente ainda inacabado, o Maratde David nos aparecer sob uma outra luz e inversa.

    9.

    O quadro, realizado num contexto extremamente especfico, aludia a circunstncias contingentesque David e seu pblico tomavam como lquidas e certas (para um pblico atual, no o so mais).Clark tem razo em ressaltar que elementos conjunturais influenciaram decisivamente a produo (e,acrescentaria eu, a recepo) do quadro. Mas a afirmao de que nenhum dado, nenhuma matria,nenhum tema, nenhuma forma, nenhum passado utilizvel entrou na produo do Marat de Davidparece insustentvel luz dos elementos, tanto visuais quanto contextuais, que venho aqui expondo ediscutindo. David apresentou um evento contingente como o assassinato de Marat utilizando umalinguagem em que se entretecem tradies diferentes e distantes: a clssica greco-romana e a crist.37Tal escolha era duplamente significativa, pois se tratava de um dos primeiros quadros (talvez oprimeiro) cuja data tinha como base um calendrio isento de conotaes clssicas ou crists. O queClark define como quadro modernista inaugural contradiz radicalmente sua (e no s sua) definiode modernismo como ruptura radical com o passado.

    Mas aqui no se trata apenas de modernismo. O que est em jogo no somente artstico, poltico.Por que David, seguidor de Robespierre e de sua poltica religiosa, inspirada na religio civil deRousseau, se apropriou de uma iconografia crist para representar Marat, mrtir republicano? Aresposta se encontra nas pginas do Contrato social em que Rousseau descreveu os pouqussimosdogmas da religio civil, entre os quais a santidade do social e de suas leis.38 Poucas pginas antes,Rousseau indicara um precursor, Hobbes:

    De todos os autores cristos, o filsofo Hobbes o nico que enxergou claramente o mal e o remdio, que ousou propor reunir asduas cabeas da guia [o poder religioso e o poder secular] e reconduzir tudo unidade poltica, sem a qual nem o Estado nem ogoverno jamais podero ser bem constitudos. Mas deve ter visto que o esprito dominador do cristianismo era incompatvel comseu sistema e que o interesse do padre seria sempre mais forte que o do Estado. No foi tanto o que h de horrvel e falso, e sim oque h de certo e de verdadeiro em sua poltica que a tornou odiosa.39

    Tudo nessa pgina significativo, a comear pela restrio entre todos os autores cristos. O

  • leitor era convidado nas entrelinhas a preencher a omisso e acrescentar o nome do verdadeiroiniciador dessa religio civil: um autor no exatamente cristo, Maquiavel. O Prncipe de Maquiavel o livro dos republicanos, escrevera Rousseau, subscrevendo a interpretao que conciliava asuposta duplicidade do Prncipe com o republicanismo dos Discursos.40 Essa homenagem ecoavaimplicitamente numa outra pgina do Contrato social, em que a possibilidade de uma repblicacrist era mencionada de passagem, para ser imediatamente refutada:

    Mas me engano ao dizer repblica crist; as duas palavras se excluem mutuamente. O cristianismo prega apenas servido edependncia. Seu esprito favorvel demais tirania para que ela no se aproveite sempre disso. Os verdadeiros cristos sofeitos para ser escravos. Sabem-no e pouco se abalam com isso; esta vida breve de valor demasiado pequeno a seus olhos.41

    Para Rousseau, o interesse do padre ser sempre mais forte que o do Estado. Para David, a vitriada Revoluo modificara as relaes de fora, abrindo espaos de manobra antes impensveis. Umaconciliao entre cristianismo e religio civil inspirada na Grcia e em Roma j era impraticvel;Marat, mrtir republicano, podia ser representado como um santo. Naquele momento crucial de suabrevssima histria, a Repblica nascida da derrubada da Monarquia de direito divino procurava umalegitimidade suplementar invadindo a esfera do sagrado, historicamente monopolizado pela religio.42

    10.

    Essa invaso da esfera do sagrado prosseguiu e, em formas contraditrias, ainda prossegue. aoutra face da secularizao: um fenmeno nascido na Europa e depois alastrado no mundo, mas queest muito longe de ter vencido sua batalha. Sempre que possvel, o poder secular se apropria da aura(que tambm uma arma) da religio. uma tentativa que tem suscitado respostas muito diferentes,dependendo dos interlocutores e das circunstncias: desde ofertas de conciliao mais ou menosexplcitas at as respostas violentas dos fundamentalistas.

    Falou-se e fala-se de razes da Europa. uma metfora que se presta a simplificaes arbitrrias,talvez facciosas. (ou deveria ser) evidente que o passado, verdadeiro ou presumido, no pode servirpara justificar uma realidade poltica em vias de construo, como a Europa hoje. Mas quem quisertentar arrolar as razes mltiplas e heterogneas da Europa tambm precisar mencionar asecularizao, ao lado do cristianismo, do qual ela retomou, mimeticamente, a tendncia de seapropriar das mais variadas formas e contedos. uma tendncia ilustrada de maneira exemplar noMarat de David: o momento artisticamente mais elevado de um processo que, comparado aos temposdas religies, ainda est no incio.

    * Traduo de Federico Carotti.

  • 3. Seu pas precisa de voc:Um estudo de caso em iconografia poltica*1

    1.

    Em seu ltimo livro, Theatres of Memory (1994) [Teatros de memria], Raphael Samuel escreveu:

    Uma historiografia que fosse atenta s sombras da memria essas imagens adormecidas que saltam espontneas para a vida eque servem como sentinelas fantasmagricas de nosso pensamento poderia pelo menos dar tanta ateno s imagens quantoaos manuscritos ou impressos. O visual nos oferece nossas imagens armazenadas, nossos pontos subliminares de referncias,nosso inaudito ponto de contato.2

    Estou certo de que Raphael Samuel teria aprovado o tema que escolhi para esta conferncia em suahomenagem, que lida no somente com imagens, mas tambm com patriotismo, outra questo comque ele despendeu uma considervel dose de energia intelectual. No estou seguro de que ele teriaconcordado com minha abordagem. Voltarei a essa possvel rea de discordncia na concluso.

  • 15. Alfred Leete, Faa parte do exrcito do seu pas, cartaz derecrutamento com o retrato de Lord Kitchener, Reino Unido, 1914.

  • 2.

    Um pobre de um general, mas um maravilhoso cartaz: esse comentrio, atribudo a Lady Asquith,foi por muito tempo associado memria de Lord Kitchener3 (fig. 15).

    Uma avaliao histrica da longa carreira militar de Lord Kitchener seria imprpria aqui. O que mediz respeito hoje no a realidade, mas, num sentido mais literal, a imagem: o prprio cartaz, vistotanto como resultado quanto como catalisador de uma srie de intricados processos que merecem umexame mais detalhado.

    Lord Kitchener, poca governador militar do Egito, chegou Inglaterra em 23 de junho de 1914.Em 28 de junho, Francisco Ferdinando de Habsburgo, arquiduque austraco, foi assassinado emSarajevo; em 28 de julho, tendo visto seu ultimato Srvia rejeitado, a ustria iniciou as hostilidades.Em 3 de agosto, vspera da declarao de guerra da Gr-Bretanha, o Times publicou um artigoinstando o primeiro-ministro, Lord Asquith, para que cedesse seu cargo como secretrio da Guerra aogovernador do Egito, sem posto na ocasio: [Kitchener] est de volta, e sua escolha para esse cargopesado e importante teria calorosa aprovao pblica []. Espera-se fervorosamente que [] omarechal de campo o aceite, ainda que apenas pelo perodo da guerra.4

    Lord Kitchener, ento com 64 anos, era de fato uma figura muito conhecida. Durante vrios anos, aimprensa descreveu em termos romnticos, quase lendrios, o homem que esmagara a rebeliomahdista em Omdurman, chamando-o de o vingador de Gordon. Todavia, G. W. Steevens, ojornalista cujo relato da marcha para Cartum tornou Kitchener famoso, tambm enfatizara os aspectosdesumanos de seu heri. Kitchener era, segundo Steevens, O Homem Que Se Fizera Mquina, umindivduo que devia ser patenteado e mostrado com orgulho na Exposio Internacional de Paris,Motor Britnico: Pea n. 1, hors-concours, a Mquina do Sudo.5

    At mesmo os bigrafos mais complacentes com Kitchener no tentaram ocultar que ele eraamplamente percebido como uma figura distante e dura embora afirmassem que o homem real eramenos inacessvel do que parecia.6 Muitos polticos compartilhavam uma viso crtica de Kitchener.O mais eloquente dentre eles era Winston Churchill, que servira sob Kitchener no Sudo (Era umcaso de averso antes da primeira vista, foi seu comentrio mais tarde). Em seu livro sobre acampanha do Sudo, Churchill escreveu:

    [Kitchener] tratava todos os homens como mquinas, do soldado inferior cujo cumprimento ele desdenhava aos oficiaissuperiores que ele controlava rigidamente []. O esprito duro e impiedoso do comandante era comunicado aos militares, e asvitrias que marcaram o progresso da Guerra do Rio eram acompanhadas por atos de barbrie nem sempre justificados, nemmesmo pela dura prtica de conflitos selvagens em razo da natureza feroz e traioeira dos dervixes.7

    Um soldado insensvel, impiedoso, implacvel; um organizador militar hbil; um servidor fiel doImprio Britnico atravs dos continentes da frica Austrlia, ndia. Este era o homemconvocado pelo Times em 3 de agosto de 1914 para desempenhar o papel de ditador no verdadeirosentido romano: o soldado vitorioso pronto a servir seu pas em tempo de perigo.

    No mesmo dia, Kitchener foi para Dover numa tentativa malsucedida de se afastar.8 Tentounovamente no dia seguinte, 4 de agosto, mas no ltimo minuto chegou uma mensagem do primeiro-ministro, e Kitchener voltou para Londres. Passou-se um dia. A Gr-Bretanha entrou na guerra sem ter

  • indicado um novo secretrio da Guerra. As coisas claramente no estavam acontecendo de modo fcil. provvel que Lord Asquith no estivesse muito ansioso para oferecer a Kitchener um cargotradicionalmente dado a civis; e Kitchener estava visivelmente hesitante em aceit-lo. Em 5 de agosto,o Times insistiu de novo na indicao de Lord Kitchener, lanando um ataque completo contra seumais srio concorrente: Haldane, o lorde chanceler. O correspondente militar do Times, Charles Court coronel Repington, que fora membro do Estado-maior de Kitchener durante a campanha doSudo , escreveu um longo artigo em que justapunha com agudeza a imagem pr-germnica deHaldane e o registro imaculado pr-francs de Kitchener (quando jovem, alistara-se como voluntriona guerra franco-prussiana). Depois de salientar mais uma vez os dons de organizao de Kitchener ea confiana que ele com certeza inspiraria nao, o correspondente militar conclua: Estamos bemcientes de que Kitchener no um homem de partido e a sugesto no tem precedente, mas a situao totalmente excepcional, e pede medidas excepcionais []. O Departamento da Guerra precisa deLord Kitchener e devia t-lo.9

    Em algumas horas essas palavras se tornaram realidade. No final da tarde de 5 de agosto LordKitchener foi nomeado secretrio da Guerra. Observou-se que ele era o primeiro soldado em servio afazer parte de um gabinete desde George Monk em 1660.10 Lord Northcliffe, o enrgico e encarniadoadepto da guerra que era proprietrio do Times e do Daily Mail, conseguira superar qualquerresistncia, inclusive a do prprio Lord Kitchener.11

    Tambm em 5 de agosto, o Times publicou um apelo, um chamado s armas:

    Seu rei e seu pas precisam de vocvoc atender ao chamado de seu pas?

    Os dias esto carregados com as mais graves possibilidades,e neste exato momento o Imprio est beira da maior

    guerra da histria mundial.Nessa crise, o Pas convoca todos os jovens solteiros para se juntarem em torno de sua Bandeira e se alistarem nas fileiras do

    Exrcito.Se todo jovem patriota responder a seu chamado, a Inglaterra e o Imprio emergiro mais fortes e mais unidos que nunca. Se voc

    solteiro e tem entre 18 e 30 anos de idade, responder ao apelo de seu Pas? E ir para o centro de recrutamento mais prximo cujo endereo voc pode obter em qualquer repartio

    e se juntar ao Exrcito hoje!12

    A mquina de propaganda da poca de guerra comeara a se movimentar, a mensagem estava ali

    s faltavam o nome e o rosto de Lord Kitchener. O Chamado s Armas foi reiterado no dia seguinte;em 7 de agosto, foi publicado um pedido de Lord Kitchener para um acrscimo de 1 milho dehomens ao exrcito regular de sua Majestade: Lord Kitchener est confiante de que esse apelo seratendido de imediato por todos aqueles que se preocupam com a segurana de nosso Imprio.13

    O impacto desse apelo pessoal, repetido vrias vezes, foi enorme. As multides de voluntrioschegaram a 35 mil num s dia. De setembro de 1914 em diante, o chamado foi reforado pelo cartazcom o rosto de Kitchener. Embora o estouro inicial do recrutamento tenha declinado aos poucos, nosprimeiros dezoito meses de guerra, antes da adoo do servio compulsrio, os exrcitos deKitchener ou as divises de Kitchener (mesmo alguns documentos oficiais usaram esses termos)

  • subiram para 2,5 milhes de homens um nmero muito elevado, que os obiturios de Kitchenertransformaram em 5 milhes.14

    Esse fenmeno macio destruiu por fim a distino entre o Lord Kitchener do cartaz e o LordKitchener general, contribuindo para a vitria do primeiro sobre o segundo. Seus olhos, mirando fixosa partir dos cartazes ubquos, causavam uma profunda impresso em seus contemporneos. A cordeles muito bonita, escreveu um jornalista, um azul profundo e claro como o mar, em seusmomentos mais lmpidos e eles olham para o mundo, com a perfeita autenticidade de um homemque mira diretamente para seu objetivo.15

    Os olhos de Kitchener reaparecem, como resumo de sua vida e reputao, na biografia oficial emtrs volumes publicada em 1916, pouco depois de sua trgica morte no naufrgio do Hampshire:

    Mesmo os olhos, sobre cujos aspectos de ao tantos insistiram, no eram jovens ou brilhantes soprou-se areia demais nelespara isso; e havia uma ligeira muito ligeira divergncia entre eles. Mas olhavam muito diretamente para qualquer pessoa queLord Kitchener quisesse ver.16

    Um jornalista indicara o mesmo detalhe, num tom especialmente depreciativo, enquanto Kitchenerainda estava vivo:

    Sobre os olhos de Kitchener, pode-se dizer sem ofensa que o terror que inspiram aumentado por um estrabismo que tendeu a setornar mais pronunciado com a idade. Os olhos so azuis, penetrantes e carregados de julgamento; sem sua irregularidade, seriamolhos difceis de encarar, mas com essa irregularidade enchem certos homens de uma verdadeira paralisia de terror. Algum que oconhece bem descreveu-me o efeito desses olhos sobre pessoas que o encontravam pela primeira vez. Eles o atingem, disseram-me, com uma espcie de terror que o agarra; voc olha para eles, tenta dizer alguma coisa, afasta o olhar, e depois, ao tentarfalar, percebe que seus olhos se voltam para esse olhar aterrorizante, e mais uma vez dominado pelo silncio.17

    Para os admiradores de Kitchener, mesmo seu ligeiro defeito fsico, dificilmente visvel noscartazes, tornou-se parte de sua legenda pstuma: Seu olhar era um tanto estranho, sem dvidadevido a uma ligeira divergncia dos eixos visuais um olhar que ningum ao falar com ele podiaenfrentar plenamente, por mais firmemente que conseguisse encar-lo. A Esfinge deve ser assim.18

    3.

    Voltarei ao olhar de Kitchener mais adiante. Por enquanto, vamos nos deter no impacto do cartaz.Uma fotografia do Arquivo do Museu Imperial da Guerra mostra um grupo de voluntrios queresponderam ao chamado s armas de Kitchener. Um leitor cuidadoso dessa imagem salientou amistura social dos recrutas:

    Num grupo de meia dzia de voluntrios podem ser vistas pelo menos trs classes, cada uma identificada pelo chapu apropriado:o bon [cloth-cap] do trabalhador; o chapu de palha [straw-boater] do importante ou rico; o chapu de feltro [trilby] dohomem de negcios ou profissional.19

    Esse comentrio parece irrepreensvel, mas levanta outra questo. Como os centros de recrutamentose localizavam em diferentes reas, a mistura social representada na imagem teria sido improvvel exceto numa foto encenada.20 Nesse caso, o comentrio tornaria explcita uma mensagemdeliberadamente subliminar para usar as palavras de Raphael Samuel. Receberamos a mensagem,isto : que diferentes grupos sociais responderam igualmente ao apelo de Lord Kitchener, mas no

  • teramos o cdigo. Mesmo a propaganda, uma linguagem supostamente clara por si mesma etransparente, precisa ser decifrada.

    Durante a guerra, ou imediatamente depois dela, verses mais ou menos reelaboradas do cartaz deKitchener foram feitas na Itlia, Hungria e Alemanha.21 Nos Estados Unidos e na Unio Sovitica,Lord Kitchener reapareceu disfarado como, respectivamente, Tio Sam e Trtski 22 (figs. 16-9). Essalonga srie de imitaes e variaes (juntamente, como veremos, com inverses e pardias) prova aeficcia do cartaz de Lord Kitchener: com certeza o mais bem-sucedido de todos.

    Nunca saberemos quantas pessoas decidiram se apresentar como voluntrios sob o impulso daimagem de Kitchener. Em alguns casos, a razo ltima para essa escolha deve ter sido obscura para osprprios atores.23 Certamente inescrutvel para observadores posteriores como ns. Mas podemoscom segurana supor que os imperativos transmitidos por esses cartazes SEU REI E SEU PAS PRECISAMDE VOC, KITCHENER QUER MAIS HOMENS, e assim por diante atingiram muitos espectadores. Arepresentao da autoridade atuava como a prpria autoridade. Uma descarga de energia socialocorreu; um comando foi introjetado e se transformou numa deciso que era, literalmente, questo devida e morte.

    Essa eficcia tem sido em geral considerada como algo indiscutvel evitando uma anlise maisminuciosa dos mecanismos visuais e verbais envolvidos. Como o cartaz atuava?

  • 16. A. L. Mauzan, Cumpram todos o seu dever, cartaz de bnus de guerra, Itlia, 1917.

  • 17. J. U. Engelhard, Voc tambm deve se alistar, cartaz de recrutamento, Alemanha, 1919.

  • 18. J. M. Flagg, Eu quero voc para o Exrcito dos Estados Unidos, cartaz de recrutamento, Estados Unidos, 1917.

  • 19. D. Moor, VOC se alistou como voluntrio?, cartaz de recrutamento do Exrcito Vermelho, Rssia, 1920.

  • 4.

    A ferramenta que usarei para responder a essa pergunta a noo de Aby Warburg dePathosformeln, frmulas de emoes.24 Por muito tempo, o legado de Warburg sua biblioteca e oinstituto a ela ligado obscureceu a importncia de seus prprios textos. Durante as ltimas dcadas,as ideias seminais que ele desenvolveu no final do sculo XIX e no incio do XX se tornaram cada vezmais influentes. A ideia de Pathosformeln, uma das mais importantes delas, foi apresentada porGertrud Bing, eminente estudiosa que foi diretora do Instituto Warburg, nos seguintes termos:

    [] foi a cultura pag, tanto no ritual religioso quanto nas imagens, que forneceu a expresso mais impressionante dos impulsoselementares [Pathosformeln]. As formas pictricas so mnemnicas por tais operaes; e podem ser transmitidas, transformadas erestauradas numa nova e vigorosa vida, sempre que impulsos congneres surgem.25

    Na Idade Mdia, quando se proibiu a expresso dos impulsos elementares por razes religiosas,esse vocabulrio primevo de gesticulao apaixonada (como Warburg o chamou) foi esquecido.Warburg percebeu que a frmula o gesto emocional era uma fora neutra, aberta ainterpretaes diferentes e mesmo opostas. Os artistas da Renascena que recuperaram tais gestosinverteram vez ou outra seu significado clssico.26

    Minha tentativa de pr em ao o argumento de Warburg comear com trs passagens do livro 35da Histria natural de Plnio, o Velho, uma seo inteiramente dedicada a artistas gregos e romanos.27A primeira se ocupa de Fmulo, pintor da poca do imperador Augusto. Ele era, escreveu Plnio(XXXV, 120), um artista digno e severo, mas tambm muito afetado; era dele uma Minerva que via oespectador independentemente de onde ele estivesse olhando (spectantem spectans, quacumqueaspiceretur).28

    A segunda passagem (XXXV, 92) sobre Apeles, o famoso pintor grego:

    Ele tambm pintou Alexandre, o Grande, segurando um raio, no templo de rtemis em feso, por um pagamento de vinte talentosde ouro. Os dedos parecem se projetar da superfcie, e o raio d a impresso de estar fora do quadro (digiti eminere videntur etfulmen extra tabulam esse); os leitores devem lembrar que tudo isso foi produzido por quatro cores.29

    Uma terceira passagem (XXXV, 126) esclarece indiretamente o significado da anterior. O retrato queApeles fez de Alexandre como Zeus, com os dedos que se projetam e seguram um raio, dependia deum escoro extremado, um artifcio visual que fora levado perfeio por outro pintor, Pausias. DizPlnio:

    Mas Pausias tambm fez quadros grandes, como por exemplo o sacrifcio de bois que antigamente podia ser visto no Prtico dePompeu. Inventou um mtodo de pintar que a seguir foi copiado por muitos, mas nunca igualado por ningum; a principalinovao que, embora quisesse mostrar o longo corpo de um boi, ele pintava o animal de frente para o espectador, e no delado, e o grande tamanho do boi plenamente expresso (adversum eum pinxit, non traversum, et abunde intellegituramplitudo).30

    5.

    O que tornou o cartaz de Lord Kitchener possvel foi, em minha opinio, uma longa reao emcadeia iniciada pela leitura combinada dessas passagens. Vejamos o que dizem trs dentre as muitastestemunhas que atestaram a presena ubqua do cartaz de Lord Kitchener durante a Primeira Guerra

  • Mundial. Um deles Michael MacDonagh, jornalista do Times, que em janeiro de 1915 escreveu: