gil vicente- barca do inferno

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O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente

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AUTO DA BARCA DO INFERNO

GIL VICENTE

Obra anotada e atualizada para a grafia do portugus corrente pela equipa da Luso-Livros

Esta obra respeita as regras do Novo Acordo Ortogrfico

A presente obra encontra-se sob domnio pblico ao abrigo do art. 31 do Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos aps a morte do autor) e distribuda de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. Foi a generosidade que motivou a sua distribuio e, sob o mesmo princpio, livre para a difundir.

Para encontrar outras obras de domnio pblico em formato digital, visite-nos em: http://luso-livros.net/

Auto de moralidade criado por Gil Vicente em dedicao serenssima e muito catlica rainha Leonor, nossa senhora, e representado, por sua ordem, ao poderoso prncipe e muito alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.

Comea a declarao e argumento da obra:

Primeiramente, no presente auto, pressupem-se que, no momento em que acabamos de morrer, chegamos subitamente a um rio, o qual, por fora, teremos de passar num dos dois batis que esto atracados num porto. Um deles vai em direo ao paraso e o outro para o inferno. Os tais batis tm, cada um, os seus comandantes na proa: o do paraso um anjo, e o do inferno um comandante infernal e um companheiro.

O primeiro interlocutor um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe segura um manto muito comprido com uma mo e uma cadeira de espaldas com a outra.

O comandante do Inferno comea o seu prego mesmo antes do Fidalgo se aproximar.

DIABO

barca, barca, venham l! Que temos gentil mar!

dirigindo-se ao companheiro

Ora pe o barco r! (vira a traseira do barco)

COMPANHEIRO DO DIABO

Est feito, est feito!

DIABO

Bem feito est!

Vai agora, em m hora,

Esticar aquele palanco (corda)

E desocupar aquele banco,

Para a gente que vir.

falando para o ar

(espao entre o Mastro e a Popa do barco)

barca, barca, hu-u! Depressinha, que se quer ir! Oh, que tempo para partir, Louvores a Belzebu!

dirigindo-se ao companheiro

Mas ento! que fazes tu?

Limpa todo aquele leito!

COMPANHEIRO

Em boa hora! Feito, feito!

DIABO

Abaixa-me esse cu!

Liberta aquela poja (corda com que se vira a vela)

E afrouxa aquela dria. (corda com que se levanta a vela)

COMPANHEIRO

Oh-oh, caa! Oh-oh, ia, ia!

DIABO

Oh, que caravela esta!

Pe bandeiras, que festa.

Vela ao alto! ncora a pique!

poderoso Dom Henrique,

C vindes vs? Que coisa essa?...

Aproxima-se o Fidalgo e, chegando ao barco infernal, diz:

FIDALGO

Esta barca para onde vai,

Que assim est apercebida? (preparada)

DIABO

Vai para a ilha perdida,

E h de partir daqui a nada.

FIDALGO

E para l vai a senhora?

DIABO

Sou um senhor,

Ao vosso servio.

FIDALGO

Parece-me isto um cortio... (uma embarcao reles)

DIABO

Porque a vedes da de fora.

FIDALGO

Pois sim, e por que terra passais?

DIABO

Para o inferno, senhor.

FIDALGO

Uma terra sem-sabor... (sem piada nenhuma)

DIABO

O qu?... Mas tambm disso zombais?

FIDALGO

E que passageiros achais

Para tal embarcao?

DIABO

Vejo-vos eu em feio,

Para ir no nosso cais

FIDALGO

Parece-te a ti assim!...

DIABO

Em que esperas ter guarida? (salvao)

FIDALGO

Que deixo na outra vida, Quem reze sempre por mim.

DIABO

Quem reze sempre por ti?!...

Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...

Tu que viveste a teu prazer,

Pensando c guarnecer (salvares-te)

Por aqueles que l rezam por ti?!...

Embarcai agora, embarcai! Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira,

Como tambm passou o vosso pai.

FIDALGO

O qu!? O qu!? O qu!? l que ele est?!

DIABO

Vai ou vem! Embarcai depressa! Pelo que em vida escolheste, Assim c vos contentais

E como pela morte passastes, Tereis que passar o rio.

FIDALGO

No h aqui outro navio?

DIABO

No, senhor, que este preparaste,

E assim que expiraste (morreste)

Me deste logo sinal.

FIDALGO

E que sinal foi esse tal?

DIABO

De que vs vos contentastes. (que estava condenado)

FIDALGO

Para a outra barca me vou.

(um corvo, ou uma ave que diz coisas sem sentido)

J ao p da outra barca

Oh da barca! Para onde s?

Oh, barqueiros! No me ouvis?

Respondei-me! Ol! !...

O Anjo ignora-o

Por deus, aviado estou! (perdido)

Quanto a isto j pior...

Que jericocins, salvanor! (Mas que burro, com o devido respeito)

Pensam que eu sou um grou?

ANJO

Que quereis?

FIDALGO

Que me digais,

Pois morri to sem aviso, Se a barca do Paraso

esta em que navegais.

ANJO

Esta . Que desejais?

FIDALGO

Que me deixeis embarcar. Sou fidalgo de solar,

bom que me recolhais.

ANJO

No se embarca tirania, Neste batel divinal.

(a prancha e apetrechos para se subir para o barco)

FIDALGO

No sei porque negais entrada

minha senhoria...

ANJO

Para a vossa fantasia (vaidade) Muito pequena esta barca.

FIDALGO

Para senhor de bom nome, No h aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio!

Levai-me desta ribeira!

ANJO

No vindes c a pensar

De entrar neste navio.

Aquele ali vai mais vazio.

Ali a cadeira entrar,

O rabo caber

E todo vosso senhorio.

Ireis ali mais espaoso,

Vossa fumosa senhoria, (arrogante)

A pensar na vossa tirania

Contra o pobre povo queixoso.

E porque, de generoso,

Desprezaste os pequenos,

Achar-vos-ei tanto menos (*)

Quanto mais foste fumoso. (arrogante)

[(*) Quer o Anjo dizer com isto que quer que o Fidalgo reflita e perceba que quanto mais ele era arrogante e mau, mais ele perdia o valor da sua prpria pessoa]

Grita o Diabo da sua barca

DIABO

barca, barca, senhores! Oh! que mar to de prata! Um ventozinho que mata E valentes remadores!

Diz a cantar:

"Vs me vireis mo, mo me vireis.

FIDALGO

Para o Inferno, ento!

O inferno ser para mim? Oh triste! Enquanto vivi No pensei que seria:

Pensei que era fantasia! Pensava ser adorado, Confiei no meu estado E no vi que me perdia. Venha essa prancha!

Veremos esta barca de tristura. (tristeza)

DIABO

Embarque vossa doura,

Que c nos entenderemos...

Tomareis um par de remos, Veremos como remais,

E, chegando ao nosso cais, Ver como bem vos serviremos.

FIDALGO

Esperai-me vs aqui,

Voltarei outra vida,

Para ver a minha dama querida, Que se quer matar por mim.

DIABO

Que se quer matar por ti?!...

FIDALGO

Isto bem certo o sei eu.

DIABO

namorado sandeu, (atraioado, cornudo)

O maior que j vi!...

FIDALGO

Como poder isso ser,

Ela que me escrevia todos os dias?

DIABO

Quantas mentiras que lias!

E tu... doido de prazer!...

FIDALGO

Para que est a escarnecer,

Se no havia quem me quisesse mais bem?

DIABO

Assim deverias viver, amm,

Como ela te havia de querer! (*)

[(*) O Diabo goza com o Fidalgo, dizendolhe que ele deveria viver tanto quanto a namorada o amava, ou

seja, nem mais um segundo de vida.]

FIDALGO

Isso quanto ao que eu conheo...

DIABO

Pois estando tu a morrer,

Estava ela a requebrar-se, (a ter relaes sexuais)

Com outro de menos preo.

FIDALGO

D-me licena, te peo,

Que v ver a minha mulher.

DIABO

E ela, se te voltar a ver,

Despenhar-se- de um cabeo!

Tudo quanto ela hoje rezou,

Entre os seus gritos e gritas,

Foi a dar graas infinitas

A quem a desassombrou. (a libertou)

FIDALGO

Quanto ela bem chorou!

DIABO

E no h choro de alegria?

FIDALGO

E as lstimas que dizia?

DIABO

A sua me lhas ensinou...

Entrai, meu senhor, entrai:

Aqui est a prancha! Ponha o p...

FIDALGO

Entremos, pois se assim .

DIABO

Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai. Que entretanto vir mais gente.

FIDALGO

barca, como s ardente! Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo ao rapaz da cadeira:

DIABO

Tu no entras c! Vai-te daqui!

Essa cadeira est c a mais!

Coisa que esteve na igreja

No se h de embarcar aqui.

Aqui dar-lhe-o outras de marfim,

Mais chicotadas de dores,

Dadas com tais lavores,

Que ficar fora de si...

Falando novamente para o ar

barca, barca, boa gente, Que queremos dar vela!

chegar a ela! chegar a ela! (Aproximai-vos, aproximai-vos)

Muitos e de boa mente!

Oh! que barca to valente!

Aparece um Onzeneiro, (*) e pergunta ao barqueiro do Inferno, dizendo:

[(*) Indivduo que vive a emprestar dinheiro aos outros e a cobrar depois juros altos. Eram os banqueiros

da altura.]

(a morte)

ONZENEIRO

Para onde navegais?

DIABO

Oh! Em que m hora chegais,

Onzeneiro, meu parente!

Porque tardastes vs tanto?

ONZENEIRO

Mais ainda eu quisera tardar...

Na safra do apanhar, (Na tarefa de ganhar dinheiro)

Deu-me Saturno(*) o quebranto.

[(*)Saturno era o deus romano do Tempo.]

DIABO

Ora muito me espanto por ver

No vos salvar o dinheiro!...

ONZENEIRO

Nem para o barqueiro

Me deixaram ficar com algo(*)

[(*) O Onzeneiro refere-se novamente s mitologia grega, segundo a qual os mortos teriam que atravessar o rio Aqueronte, pagando uma moeda ao barqueiro, de nome Caronte, pela passagem. Queixa-se ele de que no o deixaram levar nenhum do seu dinheiro consigo, quando morreu, nem para pagar ao tal barqueiro da lenda.]

DIABO

Ora ento entrai, entrai aqui!

ONZENEIRO

No hei eu de a embarcar!

DIABO

Oh! Que gentil recear,

E que divertido para mim!...

ONZENEIRO

Ainda agora faleci! Deixa-me escolher um batel!

DIABO

Oh So Pimentel!

Porque no irs aqui?...

ONZENEIRO

E para onde a viagem?

DIABO

para onde tu hs de ir.

ONZENEIRO

E vamos j partir?

DIABO

No penses em mais linguagem. (Deixa-te de mais conversas)

ONZENEIRO

Mas para onde a passagem?

DIABO

Para a infernal comarca.

ONZENEIRO

Dix! No vou eu em tal barca. (uma interjeio de espanto)

Aquela outra tem avantagem (melhor aspeto)

Dirige-se barca do Anjo, e diz:

ONZENEIRO

Oh da barca! Ol! !

Haveis j de partir?

ANJO

E onde queres tu ir?

ONZENEIRO

Eu, para o Paraso vou.

ANJO

Pois quanto a mim, muito fora estou (no contes comigo) De te levar para l

Aquela outra barca te aceitar; Ali vai quem enganou!

ONZENEIRO

Porqu?

ANJO

Porque esse bolso

Ocuparia todo o navio.

ONZENEIRO

Juro a Deus que vai vazio!

ANJO

No no teu corao.

ONZENEIRO

L me ficou de roldo (perdida)

A minha fazenda e alheia (riqueza)

ANJO

onzena, como s feia (ozena = usura, avareza)

E filha da maldio!

Torna o Onzeneiro barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO

Oh da barca! Oh Demo barqueiro! Sabeis vs no que me fundo? (penso)

Quero l voltar ao mundo E trazer o meu dinheiro. Aquele outro marinheiro, Porque me viu vir sem nada,

Deu-me tanta borregada, (insultos) Como os barqueiros l do Barreiro.

DIABO

Entra, entra! E remars!

No percamos mais a mar!

ONZENEIRO

Todavia...

DIABO

Por fora assim !

Como fizeste, c entrars!

Irs servir Satans,

Porque sempre ele te ajudou.

ONZENEIRO

Oh triste de mim...

Quem me cegou?

DIABO

Cala-te que depois chorars.

Ao entrar o Onzeneiro no batel, encontra o Fidalgo embarcado e diz tirando o barrete:

ONZENEIRO

Santa Joana de Valds!

Tambm est c vossa senhoria?

FIDALGO

D ao demo a cortesia!

DIABO

Que ouvi? Falai vs em ser corts!

Vs, fidalgo, que penseis?

Que estais na vossa pousada?

Dar-vos-ei tanta pancada

Como a um remo que renegueis!

Vem Joane, o Parvo, e diz ao barqueiro do Inferno:

PARVO

Oh desta!

DIABO

Quem ?

PARVO

Eu sou.

esta a nossa naviarra?

DIABO

(E numa altura em que estava s)

De quem?

PARVO

Dos tolos.

DIABO

Ah! Vossa. Entra!

PARVO

De pulo ou de voo?

Oh! Pelo pesar do meu av! (dor, choro)

Resumindo: Vim a adoecer E em m hora fui morrer,

E nela, para mim s.

DIABO

E de que morreste?

PARVO

De qu?

Acho que de caganeira.

DIABO

De qu!?

PARVO

De caga merdeira!

Que m rabugem que te d! (um insulto)

DIABO

Entra! Pe aqui o p!

PARVO

p! Que no tombe o zambuco!(*) (a barcaa.)

[(*) Expresso do Parvo que quer dizer que o Diabo est a apress-lo. Ou seja, com tanta pressa, no v

a barcaa vira-se]

DIABO

Entra, tolo eunuco,

Que nos vai embora a mar!

PARVO

Aguardai, aguardai um pouco!

E aonde havemos ns de ir ter?

DIABO

Ao porto de Lucifer.

PARVO

Ha-a-a...?

DIABO

Ao Inferno! Entra c!

PARVO

Ao Inferno?... Espera l....

Ui! Ui! a Barca do cornudo!!! Pro de Vinagre! Beiudo, Lenhador de Alverca, uh, uh!

SAPATEIRO da Candosa! Entrecosto de carrapato! Ui! Ui! Caga no sapato,

Filho de uma grande aleivosa! (prostituta)

A tua mulher tinhosa E h de parir um sapo,

Achatado num guardanapo! Neto de uma cagosa!

Ladro de cebolas! Ui! Ui!

Excomungado das igrejas!

Burrelas, cornudo sejas!

Toma o po que te caiu!(*)

A mulher que te fugiu,

Para Ilha da Madeira!

[(*) toma aquilo que mereces]

Cornudo at mangueira, Toma o po que te caiu!

Uh! Uh! Lano-te uma pulha! (um manguito) Toma, toma! Pica naquela!

Hump! Hump! Caga na vela! Cabea de grulha!

Perna de cigarra velha, Caganita de coelha,

Pelourinho da Pampulha! Mija na agulha, mija na agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo diz:

PARVO

Oh da barca!

ANJO

Que me queres?

PARVO

Queres-me passar alm?

ANJO

Quem s tu?

PARVO

Talvez algum.

ANJO

Tu passars, se quiseres;

Porque em todas os teus afazeres, Por malcia no erraste.

Da tua simpleza te bastastes, Para gozar dos prazeres. Espera no entanto a, Veremos se vem mais algum, Merecedor de tal bem,

Que deva entrar aqui.

Vem Sapateiro com o seu avental e carregado de formas de sapatos. Chega ao batel infernal, e diz:

SAPATEIRO

da barca!

DIABO

Quem vem a?

Oh! Santo sapateiro honrado,

Como vens to carregado!...

SAPATEIRO

Mandaram-me vir assim... (*)

E para onde a viagem?

[(*) Os objetos que as personagem carregam representam os pecados que cometeram em vida.]

DIABO

Para o lago dos danados.

SAPATEIRO

E os que morrem confessados, Onde tm a sua passagem?

DIABO

No digas tais linguagem!

Esta a tua barca, esta!

SAPATEIRO

Renegaria eu da festa,(*) E da puta dessa barcagem! Como poder isso ser,

Sendo eu confessado e comungado?!...

[(*) Expresso que dizer, no quero esse convite para nada, mesmo que fosse para uma festa]

DIABO

Tu morreste excomungado!

Mesmo sem o saberes.

O que esperavas depois de viver,

Fazendo dois mil engano

Tu roubaste em trinta anos,

O povo com a tua mestria. (com o teu oficio)

Embarca, esta barca para ti,

Que h j muito que te espero!

SAPATEIRO

Pois digo-te que no quero!

DIABO

Mas hs de ir, sim, sim!

(as rezas e os velrios que se faziam quando algum estava a morrer para

SAPATEIRO

Quantas missas eu ouvi...

No me ho elas de agora prestar? (valer)

DIABO

Ouvir missa, depois roubar...

caminho para aqui.

SAPATEIRO

E as ofertas que serviro? (as esmolas)

E as horas dos finados?

essa pessoa ir para o cu)

DIABO

E os dinheiros mal cobrados,

Que foi da tua satisfao?

(da velha, ou seja, da tua me ou da tua av)

SAPATEIRO

Oh! No brinques oh cordovo! (mentiroso)

Nem puta da badana,

Se esta traquitana

Para ir o Joo Anto!

Ora juro a Deus que mete graa!

Dirige-se barca do Anjo, e diz:

SAPATEIRO

Oh da santa caravela!

Poders levar-me nela?

ANJO

A tua carga te embaraa.

(por incmodo)

SAPATEIRO

No h caridade que Deus me faa?

Isto em qualquer lugar ir?

ANJO

Aquela barca que ali est

Leva quem rouba de praa. (descaradamente)

Oh almas embaraadas! (desavergonhadas)

SAPATEIRO

Ora muito eu me maravilho, (me espanto)

Por terdes por gro peguilho,

Quatro forminhas cagadas, (*)

Que podem bem ir a aconchegadas

A num cantinho dessa barca!

[(*)umas coisas insignificantes, referindo-se formas dos sapatos que trazia consigo, ou seja, os seus

pecados.]

ANJO

Se tivesses vivido direito,

Elas eram c escusadas. (*)

[(*) Diz o Anjo, que se o Sapateiro vivido com retido, no trazia agora nada carregado consigo]

SAPATEIRO

Ento determinais,

Que eu v cozer ao Inferno?

ANJO

Escrito ests no caderno

Das ementas infernais.

O sapateiro volta barca dos danados, e diz:

SAPATEIRO

Oh barqueiros! Que aguardais?

Vamos, venha prancha logo

E levai-me quele fogo!

No nos detenhamos mais!

Vem um Frade com uma rapariga pela mo, um escudo e uma espada na outra e um capacete debaixo do capuz. E ele mesmo fazendo uma vnia, comea a danar, cantando:

FRADE

Tai-rai-rai-ra-r; ta-ri-ri-r;

ta-rai-rai-rai-r; tai-ri-ri-r:

t-t; ta-ri-rim-rim-r. Huh!

DIABO

Que isso, padre?! Quem vem l?

FRADE

Deo gratias! Sou corteso. (*)

[(*)Graas a Deus! Sou homem da corte. De todos os personagens usados por Gil Vicente nesta pea, o Frade o mais criticado. Certamente era o que mais fazia rir ao pblico da poca, pois era em si gozado por todas as camadas sociais.]

DIABO

Sabes tambm o tordio?(*)

[(*)Canto que uma pessoa trauteia quando faz uma dana improvisada. Tambm pode significar um tipo de dana feita sem ordem nem compasso certo.]

FRADE

Pois ento! Ora, se no sei!

DIABO

Pois entrai! Eu tocarei

E faremos um sero. (uma festa)

Essa dama, vossa?

FRADE

Por minha, eu a tenho,

E sempre a tive como minha.

DIABO

Fizestes bem, que formosa!

Mas no vos punham l grossa (censuravam)

No vosso convento santo?

FRADE

Eles l fazem outro tanto!(*)

[(*)Diz o Frade perante a admirao do Diabo de que os outros frades tambm tinham amantes como a

dele.]

(as veste religiosas)

DIABO

Que coisa to preciosa...

Entrai, padre reverendo!

FRADE

E para onde levais a gente?

DIABO

Para aquele fogo ardente,

Que no temestes vivendo.

FRADE

Juro a Deus que no te entendo!

E este hbito, de nada vale?

DIABO

Gentil padre mundanal,

A Belzebu vos encomendo!

FRADE

Corpo de Deus consagrado! Pela f de Jesus Cristo,

Que eu no posso entender isto!

Hei de eu ser condenado?!...

Um padre to enamorado E tanto dado virtude? Assim Deus me d sade,

Que eu estou muito admirado!

DIABO

No penses em mais detena. (demora)

Embarcai e partiremos: Tomareis um par de ramos.

FRADE

No ficou isso em avena. (em acordo)

DIABO

Pois dada est j a sentena!

FRADE

Por Deus! Essa que era ela! No vai em tal caravela

A minha senhora Florena.

Como assim? S por ser namorado, E folgar com uma mulher,

H de um frade de se perder,

Com tanto salmo rezado?!...

DIABO

Ora ests bem aviado! (*)

[(*) Ests bem aviado, ou por outras palavras ests bem servido uma expresso que quer dizer que

essa determinada pessoa est numa m situao]

FRADE

Direi eu, bem corrigido!

DIABO

Devoto padre marido,

Haveis de c pingado... (haveis c lugar guardado)

O Frade descobre a cabea, tirando o capuz, apareceu-lhe o capacete (*), e diz o Frade:

[(*)]Muitas ordem religiosas da idade mdia foram fundadas por monges guerreiros. Os monges guerreiros, por exemplo, das ordens militares do Templo, dos Hospitalrios, de Calatrava (mais tarde Ordem de Avis) e de Santiago de Espada desempenharam um papel muito importante nas lutas das Cruzadas.]

FRADE

Mantenha Deus esta coroa!

DIABO

padre Frei Capacete!

Isso mais parece um barrete...

FRADE

Sabeis da ordem!

A espada roloa (*) (ordinria)

E este escudo rolo (reles)

[(*) Advm de ral, algo que comum]

DIABO

D Vossa Reverencia lio

(o primeiro ataque)

De esgrima, que coisa boa!

Comeou o frade a dar lio de esgrima com a espada e o escudo e diz desta maneira:

FRADE

Deo gratias! Damos caada!

Para sempre, contra uns!

Um fendente!(*), ora pois!

[(*) Golpe de esgrima normalmente feito de cima para baixo com o punho]

Esta a primeira levada.

Alto! Levantai a espada!

Uma estocada, e um revs!

E depressa recolher os ps,

Que todo o cuidado pouco!

Quando o recolher se tarda

O ferir no prudente.

Ora, ento! Muito depressa,

Cortai na segunda guarda!

Guarde-me Deus da espingarda(*)

[(*) Entende-se por aqui por "espingarda" um tipo de arma como um "mosquete" ou a uma "besta" que existiam no seculo XVI. No a conceo de espingarda que surgiu um sculo depois]

E do homem ousado.

Aqui estou to bem guardado

Como uma palha na albarda. (a sela dos cavalos)

Fico com meia espada...

h l! Protegei as queixadas! (as caras)

DIABO

Oh que valentes levadas! (ataques)

FRADE

Isto ainda no nada...

Damos outra vez caada! Contra uns mais um fendente, E, cortando com destreza, Eis aqui a sexto feitada. (golpe)

Daqui saio com uma guia (reviravolta)

E um revs da primeira: Esta o quinta verdadeira.

Oh! Quantos assim eu feria!...

Um padre que tal aprendia,

No Inferno h de ter pingos?!... (lugar)

Ah! No se preza a So Domingos Com tanta descortesia!

Voltou a tomar a rapariga pela mo, dizendo:

Vamos barca da Glria!

Comeou o Frade a fazer o tordio e foram os dois a danar at o batel do Anjo desta maneira:

FRADE

Ta-ra-ra-rai-r; ta-ri-ri-ri-r; rai-rai-r; ta-ri-ri-r; ta-ri-ri-r. Huh!

Deo gratias! H lugar c

Para minha reverncia?

E a senhora Florena

Tambm entrar c!

PARVO

Andor daqui para fora!

Roubaste o trincho, frade?(*) (pedao de carne)

(de aceitar as coisas tm de ser)

[(*) referindo-se rapariga que o frade trazia]

FRADE

Senhora, d-me a vontade (quer-me parecer)

Que este feito mal est.

Vamos para onde havemos de ir! No se praza Deus com a ribeira! E no vejo aqui maneira

Seno, enfim, . concrudir.

DIABO

Haveis, padre, de vir.

FRADE

Agasalhai-me l a Florena,

E cumpra-se essa sentena.

Apressemo-nos a partir.

Assim que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira (*), de nome Brzida Vaz, a qual, chegando barca infernal, diz desta maneira:

[(*) Uma alcoviteira era uma mulher de m fama, ligada ao negcio da prostituio (do qual ela era gerente) e a tudo o que lhe estava ligado, ou tambm a negcios fraudulentos de crendices pags, como as mezinhas e remdios de cura. O povo tomava-as como feiticeiras]

BRZIDA

da barca, l!

DIABO

Quem chama?

BRZIDA

BrzidaVaz.

DIABO

dirigindo-se ao companheiro

Mas o que espera ela, rapaz?

Porque no entra ela j?

COMPANHEIRO

Diz que no h de entrar c

Sem a Joana de Valds.(*)

[Jona de Valds j tinha sido anteriormente mencionada pelo Onzeneiro. Devia ter sido uma personagem conhecida na poca. H quem aponte que poderia ter sido uma amante do Bispo de A. Valds que tinha uma amante com a alcunha de Lucrcia no confundir com a infame Lucrcia Brgia, filha do Papa Alexandre VI, a quem certamente o nome foi imitado]

DIABO

Entrai vs e remai.

BRZIDA

Eu no quero a entrar.

DIABO

Que saboroso recear!

BRZIDA

No essa barca que eu cato. (procuro)

DIABO

No trazes vs muitos fatos?

BRZIDA

O que me convm levar.

DIABO

E o que tens para embarcar?

BRZIDA

Seiscentos virgos postios (*)

E trs arcas de feitios

Que no podem mais levar.

[(*) hmens postios, usado pelas prostitutas para passarem por virgens]

Trs armrios de mentir,

E cinco cofres de enleios. (sedues)

E alguns furtos alheios,

Como joias de vestir,

Guarda-roupa de encobrir,

Enfim... casa movedia;

E um estrado de cortia

Com dois coxins de cobrir. (almofadas)

A maior carga era,

Essas moas que vendia.

Dessa mercadoria,

Trago eu muita boa f! (*)

[(*) Brzida Vaz traz consigo todos os apetrechos inerentes aos seus pecados que consistia em criar e fornecer meninas para os homens da poca, em particular para os fidalgos e autoridades eclesisticas.]

DIABO

Ora ponde aqui o p...

BRZIDA

Ui! E vou para o Paraso!

DIABO

E quem te disse a ti isso?

BRZIDA

Hei de l ir nessa mar!

Eu sou uma mrtir tal!...

Aoites tenho levado, (*)

E tormentos suportado,

Que ningum me foi igual.

Se eu fosse para o fogo infernal,

L iria todo o mundo!

outra barca, l ao fundo,

Me vou, que mais real. (relativo realeza)

[(*) As prostitutas e as suas madames recebiam efetivamente chicotadas como castigo da justia quando era apanhadas e sentenciada pelos tribunais]

Chegando Barca da Glria diz ao Anjo:

BRZIDA

Barqueiro, mano dos meus olhos,

Deita a prancha a Brzida Vaz.

ANJO

Eu no sei quem te c traz...

(margaridas, malmequeres)

(padres e bispos)

BRZIDA

Peo-o de joelhos! Pensais que trago piolhos,

Anjo de Deus, minha rosa? Eu sou aquela preciosa

Que dava as moas aos molhos, (em grandes quantidades)

A que criava as meninas

Para os cnegos da S...

Passai-me, por vossa f,

Meu amor, minhas boninas, Olho de perlinha fina! (prola)

Eu sou apostolada, Angelada e maritizada

E fiz coisas muito divinas. Santa rsula no converteu Tantas raparigas como eu!

(por mim)

Todas salvas pelo meu E nenhuma se perdeu.

E graas "quele do Cu" Que todas acharam dono. Pensais que dormia sono?

Nem ponto se me perdeu! (Nada me escapou ateno)

ANJO

Ora, vai alm embarcar,

Ali no estars a importunar.

BRZIDA

Pois estou-vos eu contar

O porque me haveis de levar.

ANJO

No penses em importunar,

Que no podes vir aqui.

BRZIDA

E que m hora eu servi,

Pois no me h de aproveitar!...

Volta Brzida Vaz Barca do Inferno, dizendo:

barqueiros da m hora,

Venha a prancha, pois aqui me vou. J h muito que aqui estou,

E pareo mal estar c fora.

DIABO

Ora entrai, minha senhora,

E sereis bem recebida;

Se vivestes santa vida,

Vs o sentireis agora...

Assim que Brzida Vaz embarcou, veio um Judeu, com um bode s costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

JUDEU

Quem a vai? marinheiro!

DIABO

Oh! Em que m hora vieste!...

JUDEU

De quem esta barca que preste?

DIABO

Esta barca do barqueiro.

JUDEU

Passai-me que vos pago em dinheiro.

DIABO

E o bode h c vir?

JUDEU

Pois tambm o bode h de ir.

DIABO

Que escusado passageiro!

JUDEU

Sem bode, como passarei?(*)

[(*) O bode era o animal de sacrifcio da religio judaica]

DIABO

Eu no passo cabres.

JUDEU

Eis aqui quatro tostes,

E mais vos pagarei.

Pela vida do Semifar (*)

Peo-vos me passeis o cabro!

Quereis mais outro tosto?

[(*) Nome Judeu, possivelmente o da prpria personagem]

DIABO

Nem tu nem ele ho de vir c.

JUDEU

Porque no ir o judeu

Onde vai Brzida Vaz?

E o senhor meirinho(*) consente?

senhor meirinho, no irei eu?

[(*)Meirinho, era uma expresso para uma figura autoritria ligado aos oficiais da justia e por conseguinte, fidalguia. O Judeu apela pois autoridade do Fidalgo que est na barca. H aqui uma crtica velada, pois predominava a ideia, naquela altura, de que os Judeus, ricos, controlavam a justia e escavam assim muitas vezes justia.]

DIABO

E o fidalgo, que lhe importa...

JUDEU

No manda ele este batel?

CORREGEDOR, coronel,

Castigai este sandeu! (tolo)

Azar, pedra mida, (desgraado)

Lodo, charco, fogo, lenha,

Caganeira que te venha!

M correna que te acuda! (diarreia)

Por Deus, que te sacuda

Com a beca(*) nos focinhos!

Fazes gozo dos meirinhos?

Diz, filho da cornuda!

[(*)A beca um tipo de veste, de uso caracterstico dos juzes, tm sua origem nos trajes sacerdotais dos romanos]

PARVO

Roubaste a cabra, cabro?

Parece-me vs, a mim,

Um gafanhoto de Almeirim

Chacinado num seiro. (morto numa festa)(*)

[(*) Gil Vicente trata esta figura com um grande anti-semitismo (dio ao povo Judeu), sendo at repudiado pelo prprio Diabo, mas poca, tal como em muitas situaes ao longa da histria mundial, havia efetivamente um grande dio contra o povo Judeu, incitado sobretudo pela igreja catlica. O Judeu era sempre visto como uma pessoa de mau carter, ganancioso, rico por ser corrupto e fraudulento. O facto de um Judeu ter sido morto por uma multido, em determinado sitio, seria algo possvel de ter ocorrido]

(nos mortos)

DIABO

Judeu, ali te passaro,

Porque vo mais despejados. (mais vazios, referindo-se barca do paraso)

PARVO

Ele mijou nos finados

Na igreja de So Gio! (*1)

E comia a carne da panela

No dia de Nosso Senhor! (*2)

Goza com o salvador,

E mija na caravela! (*3)

[(*) 1- Antigamente os mortos eram enterrados debaixo das lajes da igreja. 2 Quer dizer que comia carne na sexta-feira santa em que diz a tradio se deve fazer jejum ou no comer carne, no respeitando assim a doutrina catlica. 3 A caravela a prpria a igreja catlica. J na bblica se diz que a igreja um barco.]

DIABO

Vamos, vamos! Demos vela!

E vs, Judeu, ireis toa, (*)

Que sois muito ruim pessoa.

Levai o cabro na trela!

[(*) Esta frase do Diabo tem dado azo a muito tipo de interpretao, porque Gil Vicente no deixou explicito o que queria dizer efetivamente. Diz o consenso geral que com isto o Diabo est a dizer que o Judeu to mau que vai para o inferno toa, ou seja, no na barca, mas a reboque: ou num outro barco mais pequeno, ou puxado por uma corda, conforme queiram traspor essa ideia para o palco. Outra interpretao diz que ele efetivamente entra dentro da barca j que ir toa pode significar ir de qualquer maneira e a prpria Brizida Vaz usa essa mesma expresso, num dilogo seu mais frente, referindo-se a entrar mais algum dentro da barca toa. Pode, no entanto significar que o Judeu to mau que nem direito tem a entrar na barca e que, tal como o rapaz da cadeira do Fidalgo, ter que ir toa, ou seja, ter que andar a errar (a vaguear) por ali. Esta ltima ideia no assim to descabida j que est associada ao mito do Judeu Errante, aquele que por castigo foi negada a morte e a entrada, tanto no cu como no inferno e que anda a vaguear pelo mundo at ao fim dos tempos.]

Vem um Corregedor(*), carregado de manuscritos, e, chegando barca do

Inferno, com sua vara na mo, diz:

[(*) O corregedor era o magistrado (um juiz) administrativo e judicial que representava a Coroa em cada

uma das comarcas de Portugal.]

CORREGEDOR

da barca!

DIABO

Que quereis?

CORREGEDOR

Est aqui o senhor juiz?

DIABO

Oh amante de perdiz, (*)

Que gentil carga trazeis!

[(*)O Diabo goza com o corredor, pois perdiz uma ave que se dizia usar como pagamento para subornar algum, pedindo-lhe favores. Ao dizer que o corregedor um apreciador de perdizes est a dizer que ele era um juiz que aceitava subornos]

CORREGEDOR

Pela minha aparncia percebereis

Que no ela do meu jeito. (que no costumo levar carga)

DIABO

Como vai l o direito?

CORREGEDOR

Nestes autos, o vereis.

DIABO

Ora, pois, entrai. Veremos,

O que diz a nesse papel...

CORREGEDOR

E onde vai o batel?

DIABO

No Inferno vos poremos.

CORREGEDOR

Como? terra dos demos,

H de ir um corregedor?

DIABO

Santo descorregedor,

Embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, j que viestes!

CORREGEDOR

Non est de regulae juris, no!(*) (No isso est prescrito nas leis)

(despacha-te)

[(*) Era costume as pessoas ligadas justia estudarem o latim pois as primeiras leis fundaram-se no direito romano e como tal o domnio do latim estava ligado erudio. O povo da altura no tinha no entanto o latim como algo que lhes fosse completamente desconhecido pois as missas, a que se impunha que todos assistissem aos domingos, eram todas ditas em latim um facto que s em meados de 1900 que se abandonou. Por outro lado, o portugus arcaico da poca era por si tambm ainda muito prximo do latim romano, por isso que as frases e expresses latinas utilizadas entre o corregedor e o Diabo eram, altura, compreendidas, mais ou menos bem, pelo pblico geral.]

DIABO

Ita, Ita! Dai c a mo! (sim, sim, em latim)

Remaremos um remo destes.

Fazei conta que nascestes

Para ser nosso companheiro.

dirigindo-se ao companheiro diabrete

Que fazes tu, barzoneiro? (preguioso)

Estende essa prancha. Prestes!

CORREGEDOR

Oh! Renego da viagem

E de quem me h de levar!

H aqui meirinho do mar? (Juiz ou magistrado)

DIABO

No h tal costumagem. (costume)

CORREGEDOR

No entendo esta barcagem,

Nem hoc nom potest esse. (E isso no pode ser.)

DIABO

Ora se vos parecesse, (se vs pensais)

Que no sei mais dessa linguagem...

Entrai, entrai, corregedor!

(no aceitaste suborno?)

(Vede que pedis)

CORREGEDOR

Oh! Videtis qui petatis

Super jure magestatis (algo acima do direito de majestade)

Tem o vosso mando vigor?

DIABO

Quando reis ouvidor

Nonne accepistis rapina?

Pois ireis agora bolina ( vela)

Onde a nossa pessoa for...

Oh! E que isca esse papel

Para um fogo que eu c sei!

CORREGEDOR

Domine, memento mei! (Senhor,(Deus) lembrai-vos de mim)

DIABO

Non es tempus, bacharel(*)! (No h tempo, bacharel)

Imbarquemini in batel (embarcai no batel)

Quia Judicastis malitia. (que a justia maldita)

[(*)"Bacharel" um grau acadmico]

CORREGEDOR

Sempre ego justitia fecit. (Eu sempre agi com justia)

DIABO

E as peitas dos judeus (peitas = peitos das aves; subornos)

Que a vossa mulher levava?

CORREGEDOR

Isso eu no o tomava. (no era comigo)

Eram l percalos seus.

(parados; suspensos)

(as montanhas)

(E vs tambm com ela)

Nom som pecatus meus, (no so meus pecados)

Peccavit uxore mea. (quem pecou foi a minha esposa)

DIABO

Et vobis quoque cum ea, A Deus no temeste.

E de grande modo enriqueceste

Sanguinis laboratorum, (com o sangue dos que trabalham)

Ignorantis peccatorum. (Pecaste, ignorando-os)

Ut quid eos non audistis? (E porque no os atendeste?)

CORREGEDOR

Vs, barqueiros, nonne legistis (no lestes)

Que o dinheiro quebra os penedos?

E que os direitos ficam quedos,

Sed aliquid tradidistis... (Se algo dado em troca...)

DIABO

Ora entrai, nestes negros fados!

Ireis para ao lago dos ces

E vereis os escrives

Como esto to prosperados. (ricos)

CORREGEDOR

E na terra dos danados

Esto os Evangelistas?

DIABO

Os mestres das burlas vistas

Esto l bem fragoados. (martelados como era o metal na forja)

Estando o Corregedor nesta conversa com o Arrais infernal chegou um Procurador(*), carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

[(*) O procurador um mandatrio da Justia, aqui a representar a classe dos advogado]

CORREGEDOR

senhor Procurador!

PROCURADOR

Beijo-vos as mos, Juiz!

Que diz este barqueiro? Que diz?

DIABO

Que sereis bom remador.

Entrai, bacharel doutor,

E ireis a dar bomba. (*)

[(*) bomba de bombear, um mecanismo que retirava a gua que entrava dentro dos barcos]

PROCURADOR

(de melhor aspecto)

Este barqueiro zomba...

Gostais de ser gozador?

Essa gente que a est,

Para onde a levais?

DIABO

Para as penas infernais.

PROCURADOR

Dix! Eu que no vou para l! (uma interjeio de espanto)

Outro navio ali est, Muito melhor assombrado.

DIABO

Ora ests bem aviado!

Entra, em muito m hora!

CORREGEDOR

Confessastes-vos, doutor?

PROCURADOR

Bacharel sou. No tive tempo! No pensei que era preciso, Nem de morte a minha dor. E vs, senhor Corregedor?

CORREGEDOR

Eu muito bem me confessei,

Mas tudo quanto roubei

Encobri ao confessor...

PROCURADOR

...Porque, se o no tornais, (devolveres) No vos querem absolver,

E muito mau devolver

Depois que o apanhais. (de ter roubado)

DIABO

Pois porque no embarcais?

PROCURADOR

Quia speramus in Deo. (Porque esperamos por Deus)

DIABO

Imbarquemini in barco meo... (Embarcai no meu barco)

Para qu esperais mais?

Vo-se ambos ao batel da Glria, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:

CORREGEDOR

barqueiro dos gloriosos,

Passai-nos neste batel!

ANJO

Oh! Pragas para papel,

E para as almas odiosos!

Como vindes preciosos,

Sendo filhos da cincia!

CORREGEDOR

Oh! habeatis clemncia (tende clemncia)

E passai-nos como vossos!

PARVO

, homens dos brevirio, (livros)

Rapinastis coelhorum (vs rapinaste coelho)

Et pernis perdigotorum (e pernas de perdiz)

Para alm de mijar nos campanrios!

CORREGEDOR

Oh! No nos sejais contrrios, (no seja mau, ou no nos complique mais a situao)

Pois no temos outra ponte!

PARVO

Beleguinis ubi sunt?(*1) (onde esto os carcereiros)

Ego latinus macairos!(*2) (o meu latim macarrnico/maravilhoso!)

[(*) 1- Beleguins eram os oficiais da Justia. Juane, o Parvo, est a reivindicar que algum venha prender aqueles dois. 2 - Frase cmica, dirigida provavelmente ao pblico porque o seu latim uma grande trapalhada.]

ANJO

A justia divinal

Manda-vos vir carregados

Porque tm de ser embarcados

Naquele batel infernal.

CORREGEDOR

Oh! No atende So Maral!

Com a ribeira, nem com o rio! (*)

Penso que desvario

Fazer-nos tamanho mal!

[(*) Diz o corregedor que So Maral no encontra aquele sitio para lhes atender as preces e os salvar]

PROCURADOR

Que ribeira esta tal!

PARVO

Pareces-me vs a mim Como um cagado nebri, (*1) Mandado no Sardoal.

Embarquetis in zambuquis! (*2) (embarcai na m barcaa - traduo provvel)

[(*) 1 O Parvo continua a fazer o seu papel de denunciador daqueles que aparecem junto barca do paraso, chegando inclusive a dizer de onde que eles vm e ofendendo-os com isso. "nebri" uma palavra da falcoaria, que se refere ao falco-nebri. "cagado nebri" pois um insulto. "uma ave de rapina cagada, ou seja, mal feita" que vinha das terras do Sardoal. 2 - mais uma frase humorstica, a tentar imitar o latim, mas sem o conseguir.)]

CORREGEDOR

Venha a negra prancha para c!

Vamos ver esse segredo.

PROCURADOR

Diz um texto do Degredo...

DIABO

Entrai, que c se dir!

E assim que os dois entraram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor para a Brzida Vaz, porque a conhecia:

CORREGEDOR

Oh! Em m hora vos vejo,

Senhora Brzida Vaz!

BRZIDA

J nem aqui estou em paz,

Pois nem aqui me deixais.

Cada hora a mim sentenciada:

Foi justia que vs mandastes fazer.... (*)

[(*) Brzida com estas palavras queixa-se de que em vida fartava-se de ser perseguida pela lei e que fora

sentenciada muitas vezes pelo Corregedor]

CORREGEDOR

E vs... volta a tecer

E a urdir outra meada.(*)

[(*) E responde o corregedor que Brizida voltava sempre a fazer o mesmo, apesar das sentenas que lhe eram dadas]

BRZIDA

Diz , juiz da alada:

Vem l o Pro de Lisboa? (*)

Lev-lo-emos toa

E ir tambm nesta barcada.

[(*) O Pro de Lisboa, dizem os historiadores que era um escrivo muito conhecido na altura em Lisboa pela m fama. pois uma pardia dirigida a uma figura da poca que j lhe apontava o inferno como destino final]

Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-

aventurados, diz o barqueiro ao que chega:

DIABO

(me fazem santo)

Vamos embora, enforcado!

Que diz l o Garcia Moniz? (*)

[(*)Figura provavelmente conhecida poca, cuja identidade hoje desconhecida e dada a muita suposio.

Seria algum importante na corte portuguesa]

ENFORCADO

Eu te direi que ele diz:

Que fui bem-aventurado

Em morrer dependurado (pendurado)

Como o tordo na buiz, (armadilha)

E diz que os feitos que eu fiz

Me fazem canonizado.

DIABO

Entra c, e governars (guiars o barco)

At s portas do Inferno.

ENFORCADO

No essa a nau que eu quero.

DIABO

Digo-te eu que aqui irs.

ENFORCADO

Oh! Isso no, por Barrabs! (*)

Ento se Garcia Moniz dizia

Que os que morrem como eu

Ficam livres de Satans...

[(*)O criminoso que foi libertado no lugar de Cristo a pedido da populao enraivecida]

E disse que Deus quisera

De ser eu enforcado;

E que fosse Deus louvado

Pois em boa hora eu nascera;

E que o Senhor me escolhera;

E que por bem vi os beleguins. (pelo seu bem, foi levado aos oficiais da justia)

E com isto mil latins,

Muito lindos, feitos de cera. (*)

[(*) Mil latins sero os discursos jurdicos e religiosos, de cera sero as velas. Para o enforcado, um condenado simplrio, faz tudo parte da mesma coisa]

E, no passo derradeiro,

Disse-me nos meus ouvidos

Que o lugar dos escolhidos

Era a forca e o Limoeiro; (*)

[(*) O Limoeiro era uma priso da altura em Lisboa com a reputao de ser muito dura.]

Nem guardio do mosteiro

Tinha to santa gente

Como o Afonso Valente

Que agora carcereiro.

DIABO

Dava-te consolao isso,

Ou algum esforo? (*)

[(*)Pergunta o Diabo ao Enforcado se aqueles suplcios que passara na priso, mais as rezas de penitncia, lhe valeram de alguma coisa. O Diabo pergunta isto, como j se ver, para saber se o enforcado morreu arrependido dos seus pecados e se o seu sofrimento lhe serviu de expiao dos males que antes cometera e se encontrou salvao da sua alma atravs das palavras das rezas.]

ENFORCADO

Aquele com a corda ao pescoo,

De muito pouco serve a pregao...

E apenas leva a devoo

De que h de voltar a jantar...

Mas quem h de estar no ar (h de ser pendurado pela forca)

Aborrece-se com o sermo.

DIABO

Entra, entra no batel,

Que ao Inferno hs de ir!

ENFORCADO

O Moniz esteve a mentir?

Disse-me que com So Miguel

Eu jantaria po e mel

Assim que fosse enforcado.

Ora, eu j passei o meu fado,

E j feito o burel.(*) (e j passei o que tinha a passar)

[(*) Burel era um tecido de artesanal feito de l. "J feito o burel" era uma expresso utilizada para dizer que "o trabalho j est feito ou cumprido" ou "j se fez o que se tinha a fazer"]

Agora no sei o que isto:

Ele no me falou ele em ribeira,

Nem em barqueiro, nem em barqueira,

Apenas no Paraso.

Isto muito no seu juzo.

E que era santo o meu barao... (era abenoada a minha corda)

(aqueles castigos)

(que o purgatrio era a priso)

Eu no sei que aqui fao:

Que desta glria improviso? (que espcie de glria esta?)

DIABO

Falou-te no Purgatrio?

ENFORCADO

Disse que era o Limoeiro,

E com ele o saltiro (o livro de salmos)

E o prego vitatrio; (o discurso que se dizia antes de se enforcar algum)

E que era muito notrio Que aqueles disciplinados

Eram horas dos finados (eram bnos para os condenados)

E missas de So Gregrio.

DIABO

Quero-te desenganar:

Se o que tivesses aceitado,

Certo era que te salvavas.

Mas no o quiseste aceitar... (*)

[(*) Diz o Diabo que se os tormentos e as rezas, que o Enforcado levou na priso, lhe tivessem servido como expiao dos seus pecados, ter-se-ia salvado. Mas como no levou os castigos as rezas a srio para pedir perdo pelos erros do passado, vai para o inferno.]

Diz o Diabo para todos os que esto dentro do seu barco

Alto! Todos a alevantar,

Que est em seco o batel!

Alevante-se, Frei Babriel!

Ajudai ali a apanhar! (*)

[(*) O Diabo repara que a mar est a abaixar e quer pr todos a trabalhar para se ir embora, d ordens em

especifico ao Frade]

Vm Quatro Cavaleiros a cantar, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa f catlica morreram a lutar contra os mouros. Absoltos a culpa e pena como privilgio que os que assim morrem tm dos mistrios da Paixo d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontfices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assim cantavam a seguinte:

CAVALEIROS

barca, barca segura, Barca bem guarnecida,

barca, barca da vida!

Senhores que trabalhais

Pela vida transitria,

Memria, por Deus, memria (lembrai-vos, por Deus, lembrai-vos)

Deste temeroso cais!

barca, barca, mortais, Barca bem guarnecida,

barca, barca da vida!

Cuidado, pecadores, que,

Depois da sepultura,

Neste rio est a ventura (o destino)

De prazeres ou de dores!

barca, barca, senhores, Barca muito nobrecida, (nobre)

barca, barca da vida!

E passando frente da proa do batel dos danados, assim a cantar, com suas espadas e escudos, disse o barqueiro da perdio desta maneira:

DIABO

Cavaleiros, vs passais

E no perguntais para onde ireis?

1 CAVALEIRO

Vs, Satans, que presumis? Cuidado com quem falais!

2 CAVALEIRO

Vs que nos querereis?

Vejo que no nos conhece bem: Ns morremos nas Partes d'Alm, E no queirais saber mais.

DIABO

Entrai c! Que coisa essa?

Que eu no consigo entender isso!

CAVALEIROS

Quem morre por Jesus Cristo

No vai em tal barca como essa!

Voltam a prosseguir, cantando, no seu caminho direitos barca da Glria, e, assim que chegam, diz o Anjo:

ANJO

cavaleiros de Deus, Por vs estou a esperar, Que morrestes a lutar

Por Cristo, Senhor dos Cus!

Sois livres de todo mal,

Mrtires da Santa Igreja,

Que quem morre em tal peleja (luta)

Merece a paz eternal.

E assim embarcam.

FIM