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GERSON PRAXEDES SILVA POR QUE A ANTIGA MUSA AINDA CANTA? ESTUDO NARRATIVO, DOCUMENTAL E REFLEXIVO SOBRE TRÊS ENCENAÇÕES BRASILEIRAS DA OBRA OS LUSÍADAS, DE LUÍS DE CAMÕES Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro. Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço Florianópolis -SC 2013

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GERSON PRAXEDES SILVA

POR QUE A ANTIGA MUSA AINDA CANTA? – ESTUDO NARRATIVO, DOCUMENTAL E REFLEXIVO

SOBRE TRÊS ENCENAÇÕES BRASILEIRAS DA OBRA OS LUSÍADAS, DE LUÍS DE CAMÕES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro.

Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço

Florianópolis -SC 2013

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S586p Silva, Gerson Praxedes

Por que a antiga musa ainda canta? : estudo narrativo, documental e reflexivo sobre três encenações brasileiras da obra Os Lusíadas, de Luís de Camões / Gerson Praxedes Silva – 2013.

288 p. ; 14,8 cm x 21 cm Orientador: Edélcio Mostaço Bibliografia: p.271-288 Tese (doutorado) – Universidade do Estado de Santa

Catarina, Centro de Artes, Doutorado em Teatro, Florianópolis, 2013.

1.Teatro brasileiro. I. Camões, Luís de. II. Mostaço, Edélcio

(orientador). II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Doutorado em teatro III. Título.

CDD: B869.2- 20.ed.

Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

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GERSON PRAXEDES SILVA

POR QUE A ANTIGA MUSA AINDA CANTA? – ESTUDO NARRATIVO, DOCUMENTAL E REFLEXIVO

SOBRE TRÊS ENCENAÇÕES BRASILEIRAS DA OBRA OS LUSÍADAS, DE LUÍS DE CAMÕES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro – PPGT, do Centro de Artes – CEART, da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro.

Área de Concentração: Teorias e Práticas do Teatro

Banca Examinadora

Orientador: __________________________________

Prof. Dr. Edélcio Mostaço UDESC – Universidade do Estado de SC

Membros: _________________________________

Prof.a Dra. Maria Beatriz de Mendonça UFMG – Universidade Federal de MG

__________________________________

Prof.a Dra. Maria Brígida de Miranda UDESC – Universidade do Estado de SC

__________________________________ Prof.a Dra. Maria de Fátima Souza Moretti UFSC – Universidade Federal de SC

__________________________________

Prof.a Dra. Vera Collaço UDESC – Universidade do Estado de SC

Florianópolis – SC, 07 de março de 2013

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Para Lucas, meu filho.

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AGRADECIMENTOS

A UDESC, pelos dois primeiros anos; e a CAPES, pelos dois anos

restantes de Bolsa de Estudo para esta pesquisa;

Aos meus professores, aos meus alunos e aos artistas, pelas

parcerias e pelo meu aprendizado;

A Equipe do PPGT – UDESC: Sandra, Mila e Francini, pela eficiência

e simpatia de sempre.

A Délcio Marquetti, pelas aulas de História e empréstimo de

importante bibliografia; A Mariza Bicudo, Sandra Faé, Miguel Augusto

Ribeiro e Angelita Queiroz pelas leituras atentas e feedbacks; A Sônia

Praxedes, Lázaro e Salete da Silva pelas paciências ao telefone;

As Prof.as Vera Collaço, Maria Lúcia Candeias e Maria Brígida de

Miranda; e ao Prof. Mário Bolognesi, pelas valiosas análises e

sugestões no Exame de Qualificação;

Ao Prof. André Carreira e a Prof.a Elisabeth Lopes pelas prontas

respostas e respectivos aceites para Membros Suplentes da Banca

de Qualificação e da Banca de Defesa;

Aos encenadores Celso Nunes, Iacov Hillel e Márcio Aurélio; e aos

dramaturgos José Rubens Siqueira e Valderez Cardoso Gomes,

pelas entrevistas, risos e doações de materiais de pesquisa;

A ZéCarlos de Andrade, Fábio Saltini, Raimundo Matos de Leão e

Deolinda Vilhena, pelas entrevistas concedidas e inspirações

provocadas;

Ao meu orientador, Prof. Edélcio Mostaço, pelas intervenções

pertinentes e precisas, pelos apontamentos necessários e pela

parceria no andar do processo de trabalho.

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Os símbolos e os sinais das diferentes culturas não são o mais importante. O que importa é o que existe por trás dos símbolos e que lhes dá significado. O nosso medo do indefinível levou-nos a acreditar que todos os aspectos do comportamento humano devem vir do condicionamento – genético ou social. O teatro, contudo, existe para abrir-nos a uma visão mais ampla.

Fios do Tempo, Peter Brook

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RESUMO

SILVA, Gerson Praxedes. Por que a Antiga Musa ainda canta? – Estudo narrativo, documental e reflexivo sobre três encenações brasileiras da obra Os Lusíadas, de Luís de Camões. 2013. 288 f. Tese (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas do Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2013.

O objetivo desta tese é estudar três encenações teatrais brasileiras que possuem como ponto de partida comum a obra Os Lusíadas, do poeta português Luís de Camões. Essas montagens ocorreram em São Paulo, Brasil, em períodos distintos, compreendidos entre a segunda metade do século XX e o início do século XXI. A primeira é a de Celso Nunes, com adaptação de Carlos Queiroz Telles, em 1972. Iacov Hillel assinou a direção da segunda montagem, adaptada por José Rubens Siqueira, em 2001. O terceiro espetáculo foi dirigido por Márcio Aurélio e adaptado por Valderez Cardoso Gomes, também em 2001. O que as torna objeto de pesquisa relevante para o Teatro Brasileiro e para a literatura sob o ângulo da Estética Teatral e da História do Espetáculo são as múltiplas leituras artísticas inseridas em circunstâncias históricas distintas. Nas transcriações para a cena, a partir de uma obra não destinada ao palco como Os Lusíadas, transparecem as relações entre as linguagens e as significações dos espetáculos e da obra literária. Este estudo busca reconstituir três possibilidades diferenciadas de encenação e de adaptação teatral, as quais deram voz e formas cênicas às ideias e aos ideais da poesia clássica. O trabalho apoia-se em teorias teatrais de Patrice Pavis e de Anne Ubersfeld, em historiadores como Werner Jaeger e Jacques Le Goff, em estudiosos camonianos como José Maria Rodrigues e Segismundo Spina, e em outros nomes que se destacam no que concerne ao tema estudado. Desse modo, as análises pontuam aspectos sobre esses espetáculos, sobre essas adaptações dramatúrgicas e sobre o texto original, o qual serviu de matéria-prima para as novas criações. Ao estabelecer pontos específicos de cada linguagem e navegar pelo amplo dialogismo espetacular e intertextual conformado, o horizonte que se mostra aponta a encenação teatral como obra de arte autônoma. Palavras-chave: Encenação Contemporânea; Processos Colaborativos; Adaptação Teatral; Teatro Brasileiro.

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ABSTRACT

SILVA, Gerson Praxedes. Why the Ancient Muse still sings? – A narrative, documentary, reflective study about three Brazilian stagings of Luis de Camoens´The Lusiads. 2013. 288 p. Thesis (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas do Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2013.

This thesis aims to study three Brazilian theatrical stagings that have as a common starting point the work Os Lusíadas – The Lusiads, from the Portuguese poet Luís de Camões. These stagings took place in São Paulo, Brazil, in distinct periods, between the second half of the twentieth century and the beginning of the twenty-first century. The first is that of Celso Nunes, with adaptation of Carlos Queiroz Telles, in 1972. Iacov Hillel directed the second staging, adapted by José Rubens Siqueira, in 2001. The third spectacle was directed by Márcio Aurélio and adapted by Valderez Cardoso Gomes, also in 2001. What makes them objects of research relevant to the Brazilian Theater and to literature from the perspective of Theatrical Aesthetics and of History of Entertainment are multiple artistic readings inserted in distinct historical circumstances. In transcreations to the scene from a work not intended for the stage as Os Lusíadas transpire relations between languages and meanings of the theater spectacles and the literary work. This study seeks to examine three different possibilities of staging and of theatrical adaptation, which gave voice and scenic forms to the classical poetry´s ideas and ideals. This work draws on theatrical theories of Patrice Pavis and Anne Ubersfeld, on historians such as Werner Jaeger and Jacques Le Goff, on Camoens scholars like José Maria Rodrigues and Segismundo Spina, and on other names that stand out regarding the topic of the present study. Thus, the analyses punctuate aspects about these theater spectacles, these dramatic adaptations and the original aforementioned text, which served as raw material for new creations. By establishing specific points of each language and navigating the broad spectacular and intertextual dialogism conformed, the horizon that is shown points the theatrical staging as autonomous work of art.

Keywords: Contemporary Staging; Collaborative Processes; Theatrical Adaptation; Brazilian Theater.

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SUMÁRIO

AVISO AOS NAVEGANTES........................................................................ 15

1 DAS NAUS POÉTICAS LITERÁRIAS E SEUS VIAJANTES ............................ 23

1.1 OS CLÁSSICOS E AS ÁGUAS ATEMPORAIS ..................................... 23 1.2 OS POETAS NOS MARES DA ANTIGUIDADE ................................... 27 1.3 AS ÁGUAS DA IDADE MÉDIA E DA RENASCENÇA ............................ 33 1.4 O POETA PORTUGUÊS DO MAR ................................................. 44 1.5 O POEMA CANTO A CANTO ..................................................... 49 1.6 O DISCURSO POÉTICO E O LEGADO HISTÓRICO .............................. 74

2 DAS POÉTICAS CÊNICAS CONTEMPORÂNEAS E SEUS VIAJANTES .......... 81

2.1 ESCLARECIMENTOS DE BORDO ................................................. 81 2.2 O TEXTO E A ENCENAÇÃO TEATRAL: DUAS NAUS, UM DESTINO .......... 85 2.3 ADAPTAÇÕES TEATRAIS DE TEXTOS NÃO DESTINADOS AO PALCO........ 89 2.4 A TEATRALIDADE É UMA NAU DE MIL MÁSCARAS ........................... 93 2.5 UMA PRODUTORA: RUTH ESCOBAR E TRÊS ENCENAÇÕES .............. 101

3 A VIAGEM, DE CELSO NUNES E CARLOS QUEIROZ TELLES ................... 105

4 OS LUSÍADAS, DE IACOV HILLEL E JOSÉ RUBENS SIQUEIRA ................. 165

5 OS LUSÍADAS, DE MÁRCIO AURÉLIO E VALDEREZ CARDOSO GOMES .. 211

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 255

REFERÊNCIAS ........................................................................................ 271

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AVISO AOS NAVEGANTES

A encenação teatral é um fenômeno complexo, no qual

transparecem diferentes aspectos artísticos que se entrelaçam e solicitam distintos modos de aproximação. A multiplicidade de elementos que a compõem e as tantas formas possíveis que podem resultar as propostas estéticas dos encenadores e de todos os criadores envolvidos na realização cênica implica profunda verticalidade em seu estudo. Refletir sobre a encenação e sobre aspectos específicos na sua elaboração também solicita um olhar atento ao amplo leque de suportes teóricos que perpassam este e outros campos do conhecimento dentro das ciências humanas. Assim, na procura de respostas, novas perguntas são lançadas e a investigação no campo da encenação teatral tem avançado e oferecido instrumentos teóricos mais consistentes (FERNANDES, 2010; GUINSBURG, 2008), que dialogam complementarmente com as práticas teatrais. Esta abordagem de pesquisa se insere nesse contexto e procura contribuir nas investigações sobre a Encenação Teatral; seus processos coletivos; as imbricações entre os textos teatral, literário e a cena; a História do Espetáculo; e os clássicos diante dos olhares contemporâneos.

Muita discussão tem sido feita sobre os procedimentos em direção teatral e sobre adaptações de obras literárias para o teatro. O próprio termo “adaptação” tem recebido outras palavras propostas, outras nomenclaturas (STAM, 2006), na tentativa de se chegar a algo que defina melhor, que conceitue mais especificamente o trabalho de transposição das estruturas narrativas literárias para as estruturas dramáticas ou pós-dramáticas (LEHMANN, 2007, p. 245), e que prefiguram outra arte autônoma: a da encenação. O campo é vasto em todos os casos e as hipóteses apontam para múltiplas vertentes. O fato é que toda criação artística é uma viagem ao desconhecido e as anotações de suas pegadas dentro do mapa são também importantes. A investigação paciente e os registros das vivências de processos teatrais têm trazido à tona memórias do teatro brasileiro e se constitui importante recorte dos estudos teóricos e práticos das artes cênicas. Esses registros trazem experiências vivenciadas e experiências posteriores ao acontecimento. A crônica analítica de

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quem testemunha o momento vivo do espetáculo de teatro é primordial. Diferentemente, as reconstituições também apresentam sua pertinência ao observar por outros e diferentes ângulos o espetáculo acontecido, o que resulta maior riqueza de olhares sobre o mesmo f(ato).

A literatura, por sua vez, se alimenta dela própria para desvendar outras e novas possibilidades. Um texto é sempre reflexo de outro ou outros que lhe servem de guia, fonte ou mesmo inspiração (BARTHES, 1977). É como se, quem escrevesse, precisasse pisar o solo onde outros deixaram suas marcas, necessitasse vasculhar seus rastros abaixo da superfície e sacudir a poeira encontrada. Dessa maneira, no mesmo solo, agora o novo escritor caminha e desenha as suas próprias pegadas. No dizer de Barthes (1988, p. 70), “um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação”. Para Iser (1999, p. 67), a especificidade da literatura “é produzida mediante uma fusão do fictício e do imaginário”, e também se refere ao jogo como sendo a estrutura reguladora dessa interação, tema que remete às reflexões de Huizinga (1980) em seu Homo Ludens. Há, também, os processos de adaptação de obras literárias clássicas, reconhecidas e veneradas, que prescindem de um olhar contemporâneo para que possam transmitir seu legado, prova de fogo a mostrar se ainda possuem algo que as fez ultrapassar o desafio do tempo. A linguagem poética é, para Pignatari (1977, p. 26), “um corpo estranho nas artes da palavra. O poeta é aquele que ajuda a fundar culturas inteiras, pois não trabalha com o signo verbal e sim o signo verbal.” Na obra literária, a imaginação do leitor configura o que as palavras evocam. A arte dramática passa por outro processo. O drama contém elementos de representação e de expressão, o que amplia a complexidade das poéticas teatrais.

A questão principal desta Tese se formula do seguinte modo: Como as encenações e as adaptações brasileiras d’Os Lusíadas responderam cenicamente a uma poesia clássica portuguesa não destinada ao palco? Esta questão se desdobra em outras, não menos importantes: Como foi tratado o texto de Camões pelas adaptações e pelas encenações? De que maneira ocorreram os processos de trabalho? Que princípios guiaram esse processo seletivo da poesia para o palco? Qual o sentido das

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alterações e por quê? Que desafios os envolvidos nos processos de trabalho encontraram e de que modo responderam a eles para a concretização dos espetáculos? A partir de estudos e registros posteriores, o que é possível reter de um espetáculo teatral, dadas as complexidades desse evento efêmero? De que forma os outros elementos materiais da representação – o espaço, o cenário, o figurino, a iluminação, a maquiagem – contribuíram para a composição de sentidos nos espetáculos? Como uma obra épica de conquistadores foi percebida, quatro séculos depois, em terras colonizadas por representações dos "descendentes" dos "heróis" do poema? O poema transcende esta última questão? O que ficou de Camões hoje? E por que sobreviveu? Assim, ao provocar uma tensão dialógica entre a arte da encenação e a reconstituição desta, procuro investigar aspectos espetaculares e intertextuais de três encenações sobre uma mesma obra poética e, com isso, registrar processos na poética cênica brasileira contemporânea. A investigação das três montagens escolhidas procura responder a hipótese da encenação como arte autônoma, uma nau de infinitas máscaras, independente e com linguagem própria.

O poema, que traz homens e deuses em ação, desembarca quatrocentos anos depois de publicado, em 1572, atravessando os mares agora muito navegados da América do Sul. Seu fado é ser encenado nos palcos do teatro paulistano e brasileiro. Estudiosos da obra existem desde a sua publicação, como se verá adiante. Enquanto texto clássico, consta no currículo de estudos da Literatura das escolas brasileiras do Ensino Médio há aproximadamente sete décadas, segundo João Etienne Filho (1980, p. 13). Seus efeitos junto aos estudantes variam desde paixões pelas aventuras e peripécias dos navegantes por parte de alguns poucos até a recusa por parcelas significativas de alunos. Faço parte daqueles sonhadores – à época ainda sem conhecer e compreender melhor as desventuras de quem se propunha apaixonado por idealismos – que viajavam pelos mares sem sair do banco escolar, impulsionados pela voz e a figura da professora de literatura. A voz acompanhava um olho apaixonado pelo que lia e os versos do bardo português seguiam abrindo os mares e mentes daquele bando de moleques curiosos para além daquelas geografias conhecidas.

O conjunto das representações é o foco do estudo, o que se refere ao texto e o que vai além dele, sendo próprio dos

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sentidos espetaculares. Nessa procura pelo equilíbrio entre as linguagens, não voltar à visão “puramente literária do teatro, mas reconsiderar o lugar do texto na representação; não mais discutir infinitamente se o teatro é literatura ou espetáculo, mas distinguir o texto tal como o lemos em livro e o texto tal como o percebemos na encenação.” (PAVIS, 2008, p. 185). Assim, com base nas investigações documentais sobre: o poema original; as três adaptações deste para o palco; a fortuna crítica dos espetáculos; as entrevistas com os diretores e com os escritores/adaptadores; os registros fílmicos; e a iconografia, o trabalho procura responder, dentro dos limites do recorte escolhido, questões pertinentes e atuais que permeiam os estudos sobre a Encenação teatral, seus processos e suas propostas estéticas.

No que diz respeito ao estudo das adaptações, o trabalho pretende estabelecer pontos convergentes e de distanciamento da escritura original, esta confrontada com os procedimentos adotados pelas releituras. Em todos os casos, o foco estará nas estratégias criativas, sem juízos de valor, sem maniqueísmo das “infidelidades” em relação à obra original, julgamentos ou preconceitos, mas escolhidos por serem significativos dentro da ótica da criação artística, das relações entre texto e encenação teatral e, portanto, das relações colaborativas na realização dos espetáculos. O acesso aos arquivos dos processos realizados, os contatos com seus realizadores e as posteriores reflexões sobre o assunto tem como principal foco de atenção o que, ou em que medida, cada espetáculo respondeu às circunstâncias específicas de seus contextos históricos.

Sendo a obra original um clássico renascentista e ponto de partida comum para as três criações cênicas, torna-se necessário lançar breve – porém fundamental – luz sobre o que antecedeu essa criação literária. Um estudo aprofundado, embora condensado em algumas páginas, sobre as questões literárias que envolvem este estudo e servem de pano de fundo para o motivo principal: As tantas faces possíveis das poéticas cênicas contemporâneas. Esta “moldura” se mostra pertinente para a melhor compreensão e embasamento do leitor para o quadro cênico que se fará posteriormente.

Dessa maneira, o primeiro capítulo discorre sobre o termo “clássico” na Antiguidade e suas releituras sob um viés contemporâneo, em favor de olhares mais flexíveis; as epopeias e

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suas musas antigas, inspiradoras de novas criações; e as circunstâncias históricas e culturais existentes quando do surgimento do poeta: O Renascimento e a Idade Média, raízes da cultura moderna, que permearam a expressão poética de Luís de Camões. Para isso, historiadores como Werner Jaeger e Jacques Le Goff, entre outros teóricos de relevo, servem de base para os estudos. Ainda, de maneira bastante sintética – pois a literatura sobre o tema é vastíssima e não se apresenta como primeiro plano neste trabalho –, este capítulo pontua aspectos sobre a vida de Camões e sua relação com os clássicos que o antecederam, além de uma síntese descritiva e reflexiva detalhada d' Os Lusíadas, Canto a Canto. Estudiosos como José Maria Rodrigues, Carolina Michaëlis de Vasconcellos e Segismundo Spina figuram como expoentes teóricos para a pesquisa.

No segundo capítulo, as reflexões têm por base os aportes teóricos de Patrice Pavis e Anne Ubersfeld, no sentido de situar e relacionar este trabalho dentro do múltiplo panorama contemporâneo das poéticas cênicas, atuante e multidisciplinar; as relações e distanciamentos entre análise e reconstituição de um espetáculo; o texto e a encenação como criações artísticas complementares; as adaptações cênicas; as muitas faces da teatralidade; e, finalmente, sobre a produtora dos três espetáculos em questão, Ruth Escobar, e seus propósitos de levar a epopeia para a cena. A determinação obstinada e seus obstáculos dentro das relações humanas necessárias para realizá-los. A partir daí, a nau começa a seguir pelos mares das três experiências cênicas e de adaptações dramatúrgicas brasileiras.

No terceiro capítulo investigo A Viagem, primeira encenação d’Os Lusíadas. As versões adaptadas e suas relações com a obra original por Carlos Queiroz Telles para a encenação de Celso Nunes. O capítulo apresenta aspectos dos procedimentos criativos e artísticos que responderam a estas questões, o espaço como elemento cenográfico influente na dramaturgia e na direção, bem como análises de críticos teatrais sobre o espetáculo, encenado em 1972.

O quarto capítulo trata d’Os Lusíadas, a segunda montagem do épico, que sobe ao palco sem alteração do nome. A versão sob o olhar de José Rubens Siqueira para a encenação de Iacov Hillel é o foco do estudo. Aqui também estarão em pauta os processos criativos, a proposta estética, o espaço cênico diferenciado, as

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críticas publicadas na época e as reflexões sobre a montagem que estreou no início de 2001.

No quinto capítulo, analiso Os Lusíadas na adaptação do original por Valderez Cardoso Gomes para a encenação de Márcio Aurélio. O nome da obra é também mantido neste terceiro espetáculo, pesquisado dentro de tópicos semelhantes já destacados. O espaço é novamente modificado, agora por solicitação antecipada da produtora, premissa que influencia a concepção dramatúrgica e espetacular. Estreia também em 2001, mais ao final daquele ano.

Dessa forma, entre o legado mitológico literário, o conhecimento histórico e o teatro brasileiro contemporâneo, configuram-se convergências e alteridades entre a poesia clássica, o texto dramático e a encenação, na relação essencial entre a prática teatral e a sua consequente reflexão teórica.

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Ela está no horizonte – diz Fernando Birri –. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.

Janela sobre a utopia, Eduardo Galeano

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1 DAS NAUS POÉTICAS LITERÁRIAS E SEUS VIAJANTES

1.1 Os clássicos e as águas atemporais

Novas e distintas leituras de experiências cênicas tendem a

reinventar os textos clássicos. Por consequência de inúmeras propostas artísticas que escapam aos enquadramentos conceituais e/ou estéticos, os clássicos perdem suas máscaras aparentemente imutáveis e sisudas e se mostram flexíveis e a dialogar com o agora. Os estudos literários estimam que a invenção da escrita possui idade aproximada de cinco mil anos, e que teriam sido os sumérios, um povo ao sul da Mesopotâmia – hoje Iraque – que, de origem desconhecida, estabeleceu-se pela região antes ainda da chegada dos semitas, povos assírios e babilônios. A chamada escrita cuneiforme, pela forma de seus caracteres, tornou possível a gravação em tábuas de barro ao que se considera o primeiro clássico literário da história, A epopeia de Gilgamesh.1

Essa história mítica narra a busca pela imortalidade, de um rei considerado divino em sua cidade-estado, pois teria ele dois terços de sua constituição divina e um terço dela humana. Gilgamesh reinava em Uruk e governou por 126 anos. Enkidu, seu mais valoroso companheiro de lutas, era ligado ao mundo agrícola e selvagem. A epopeia é repleta de evocações aos domínios da morte, e o argumento procura destacar o avanço do herói para além dos limites da vida humana comum. A aventura de Gilgamesh e Enkidu em adentrar uma floresta sagrada proibida aos mortais e matar o guardião desta é considerada pelos deuses atrevimento e transgressão. Julgada em conselho, a punição era a morte de um deles. Enkidu morre e somente nesse momento a dor de Gilgamesh tem a plena consciência de sua própria mortalidade.

Ele continua a vagar na esperança de ultrapassar a morte, apesar das advertências e desenganos que encontra pelo

1 Para aprofundamentos ver SANDARS, N. K. A epopeia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992; e A epopeia de Gilgamesh. Disponível em: http://mosaicum.org/wp-content/uploads/2009/09/A-Epop%C3%A9ia-de-Gilgamesh-

rev-Anonimo.pdf. Acesso em: 16 jul. 2012.

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caminho. Fica em relevo a mudança de atitudes interiores a cada passo que avança, em um processo pessoal e evolutivo de compreensão da existência efêmera dos homens. Seu início é o de um jovem rei autoritário que desconhecia limites de tirania. Quando se torna irmão guerreiro de Enkidu por considerá-lo tão grande quanto ele, partem em busca de fama e se tornam matadores de monstros, estes representações dos estreitos limites da vida humana. Na volta da jornada, resignação, derrota e iluminação em face da compreensão de sua finitude. Nos registros desse poema antigo, redescoberto aos poucos no século XIX, consta versão narrativa de evento muito semelhante ao da Arca de Noé, que integra o Antigo Testamento da Bíblia Hebraica, além de paralelos com as lendas de Héracles nas obras gregas (mais conhecido como Hércules, nome dado pelos antigos romanos). Gilgamesh passa a ser considerado o mito que influencia os textos fundadores da tradição ocidental: a Bíblia e os poemas homéricos, e que permeia a concepção do que seja clássico.

Quando se trata do termo, e particularmente em relação a este estudo, é pertinente diferenciar entre o sentido contemporâneo e o sentido renascentista. Para Camões e os homens de seu tempo, “clássico” tinha o sentido de exemplo a ser seguido, e este era atribuído às obras gregas e latinas que faziam parte de uma formação humanística. A noção designa um estilo, pertencente à antiguidade greco-latina, “clássica” porque se distingue de outras – mais antigas ou mesmo contemporâneas, mas que não estão dentro dos limites ocidentais – e que contempla um conceito de humanidade e um ideal artístico que tem caráter modelar. (JAEGER, 2001).2

Para nós, hoje ainda, reconhecer um clássico tem a ver com o ensinamento, dentro de um currículo escolar, de obras

2 Para o autor, “Os gregos do início do Império foram os primeiros a considerar como

clássicas, naquele sentido intemporal, as obras da grande época do seu povo, quer como modelos formais da arte quer como protótipos éticos. Nesse tempo em que a história grega desembocou no Império Romano e deixou de se constituir uma nação

independente, o único e mais elevado ideal da sua vida foi a veneração das suas antigas tradições. Desse modo foram eles os criadores daquela teologia classicista do espírito que é característica do humanismo e da vida erudita dos tempos modernos. O

pressuposto de ambos é um conceito abstrato e anti-histórico, que considera o espírito uma região de verdade e de beleza eternas, acima do destino e das vicissitudes dos povos.” (JAEGER, 2001, p.15- 16).

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consideradas exemplares e de qualidade superior, porém as referências estão mais propícias a discussões e já não se responde com certezas tão enfáticas – possível apontamento clássico comportamental de nossos dias – que o seu ponto de vista é o único a ser considerado. Há relatividade no conceito de clássico, e nessa alteração é que se pode reconhecer um processo histórico autoconsciente da humanidade no decorrer do tempo. A relativização, fruto do reconhecimento de que o presente determina de que maneira uma obra é ou se torna clássica, conclui que ela o é para alguém e/ou para um coletivo que segue determinada tendência.

Assim, o conceito se expande e/ou divide-se, e essa multiplicidade pressupõe princípios, valores de determinadas comunidades, que são eleitas a exercer poderes simbólicos de atribuições de valores. Dessa maneira, pode-se falar de “clássicos da literatura”, “clássicos do cinema”, “clássicos da música popular brasileira” e ainda assim com suas subdivisões a considerar. Significa dizer que, mesmo mantendo os sentidos históricos para a palavra “clássico”, acrescenta-se o sentido referencial de algo buscado no passado, mas apresentado e colocado diante dos interesses do presente e de suas muitas feições especializadas. Este tem a possibilidade de escolher, de interferir, de relativizar os valores e julgamentos herdados do passado. O presente tem o poder de alterar, de modificar, feito um artesão com a argila, a matéria-prima secular que se apresenta a ele. Mas essa matéria-prima também apresenta seu preço. E quem dela se aproxima tem a percepção de que parece existir algo de misterioso em seu interior, que preserva sua identidade e sentido, e a cada nova escavação reverbera outras surpresas.

Para Ítalo Calvino (2004)3, os clássicos são aqueles livros que em geral se está relendo, alusão às suas múltiplas camadas de leitura. Ao pensar o conceito de clássico na atualidade, o autor considera e se refere aos livros como riquezas, tanto para quem os tenha lido e amado como para quem se debruça a decifrá-los pela primeira vez nas melhores condições de poder apreciá-los. Exercem influência particular e notável nas reminiscências das memórias, porque nunca conclui o que tinha para dizer. Alçadas ao grau de talismãs, essas obras provocam inúmeros discursos

3 Para aprofundamentos, ver CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. 2 ed. São Paulo:

Companhia das Letras, 2004.

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sobre elas, mas possuem algo que as mantém resguardadas e trazem ao leitor atual a marca de leituras anteriores e os traços que deixaram na(s) cultura(s) que atravessaram, portanto persistem como um rumor a predominar na atualidade.

O tempo, desse modo, não autentica um clássico, antes figura como testemunha dele. Os clássicos, por sua vez, são expostos e testados continuamente na linha do tempo. Os mitos clássicos são fontes inesgotáveis de interpretações, sempre dispostos a serem recriados e remodelados à luz de novos tempos. Nesse sentido, Werner Jaeger, em Paideia, é lapidar ao tratar do assunto: Ao exemplificar Platão e as intervenções que este faz a Homero ao mutilar partes inteiras de sua obra, o autor constata que, para o guarda filológico que zela exageradamente pela palavra original do poeta, isto será inaceitável, “Mas esta concepção, que em nós se tornou carne e sangue, é o produto de uma cultura que chegou já ao seu termo e que guarda as obras do passado como tesouros felizmente salvos do naufrágio.” (JAEGER, 2001, p. 779).4

Essa ausência de rigidez – que hoje se apresenta ao termo clássico dados os seus muitos sentidos e significados, característica que o possibilita navegar por diferentes espaços de abrangência e por manifestações artísticas que desconhecem fronteiras e rotulações e mesclam tendências múltiplas contemporâneas – também pode e deve ser aplicada nos entrelaçamentos possíveis entre encenação teatral e texto, seja ele dramático ou não, tal a intenção deste estudo.

4 Ao explicitar ainda mais sua argumentação e mostrar que os novos poetas “derramam nos velhos odres o vinho dos seus novos postulados”, o autor vai ainda além de Platão e seu tempo: “A necessidade de recriar poeticamente um verso já plasmado, nós a

vemos, por exemplo, sustentada por Sólon diante de um poeta do seu tempo, Mimnermo, o qual defendera, com sereno pessimismo, que o homem devia morrer quando atingisse os 60 anos. Sólon convida-o a modificar o sentido da poesia, fixando

aos 80 anos o limite da idade.” (JAEGER, 2001, p. 779).

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1.2 Os poetas nos mares da Antiguidade

A epopeia, uma narrativa literária de caráter heroico e grandioso, atinge interesses sociais e nacionais. Ambienta-se numa atmosfera maravilhosa, em que se movimentam deuses e heróis, celebrizando eventos do passado de um povo, necessários à interpretação e à preservação da memória coletiva. Há epopeias em prosa, que falam dos cavaleiros e suas façanhas, chamadas de canções de gesta medievais; e há epopeias em versos, os chamados poemas épicos. O medievalista Georges Duby (1987), através do estudo de uma canção de gesta do século XIII, traz apontamentos sobre o universo mental do período medieval, bem como parte de seus rituais, especialmente aqueles praticados pela nobreza da época, o mundo da cavalaria, das cortes e suas intrigas políticas, e também o ritual de preparação para a morte. As canções de gesta eram encomendadas a pedido dos próprios interessados ou de algum familiar. Na poesia épica desse período têm destaque a obra A Canção de Rolando (La Chanson de Roland), datada do século XI, que narra as aventuras de Carlos Magno, do Império Franco, na luta contra os mouros na Península Ibérica; e A canção de Mio Cid, mais conhecida como El Cid, que narra a história do nobre Rodrigo Díaz de Vivar em uma Espanha dividida entre reinos cristãos e muçulmanos, do século XI.5 Porém, se faz necessário voltar ainda bem mais no tempo para estabelecer a importância da tradição literária e as conexões entre os pilares da poesia épica e os cantadores – e contadores – de histórias, responsáveis por revivê-las através dos tempos, e que são bases importantes para esta investigação.

Nas antigas civilizações, um poema épico era o resultado da criação de inúmeras narrativas orais, em um processo muito lento de elaboração. Esses registros literários, a partir da tradição oral de todo um coletivo de poetas e seus discursos cantados e contados desde tempos imemoriais, procuravam estabelecer e fixar um conjunto de informações consideradas fundamentais da história de um povo. Num trabalho posterior, todo o material coletado dessas narrativas era compilado e aproveitado para que

5 Para aprofundamentos desse período medieval, há boas traduções de obras literárias na Coleção Gandhara, da Editora Martins Fontes, São Paulo. Como exemplos, ver: JONIN, Pierre (Org.) A Canção de Rolando. Martins Fontes, 2006; TROYES, Chrétien

de. Romances da Távola Redonda. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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resultasse na produção de um único poema. Era então uma espécie de organização do conhecimento herdado de experiências humanas do passado, com vistas à sua preservação. Em cerimônias coletivas, um poeta possuía a incumbência de declamá-lo, com acompanhamento musical, onde oferecia seu talento e trabalho aos membros da coletividade, tendo estes a oportunidade de conhecer os feitos e conquistas de seus antepassados e de se identificar com eles. Isso tinha por intuito criar laços mais fortes entre os participantes de um mesmo coletivo social, fazia parte de um repertório coletivo e esse coletivo gostava de ver os “seus” envoltos em estórias que envolviam a participação dos deuses. Esses códigos de ética fornecidos pelas atitudes dos personagens dentro de situações em que eram postos à prova continuam a vigorar através de outros sistemas de signos. A narrativa, conforme Todorov, “não se contenta com a descrição de um estado. Exige o desenvolvimento de uma ação, isto é, a mudança, a diferença. Toda mudança constitui, com efeito, um novo elo da narrativa.” (TODOROV, 1980, p. 62). A ideia de mundo e a crença religiosa daquele período é o que hoje entendemos por Mitologia. Essas narrativas mitológicas eram, portanto, base e força expressiva dos homens pensadores desse tempo e exigiam estratégias estruturais e sequenciais para a transmissão das ideias contidas no interior da estória.

A Ilíada e a Odisseia, poemas épicos gregos atribuídos a Homero e que datam entre os séculos XII e VIII a. C., têm essas características e são consideradas as mais bem acabadas manifestações da poesia épica.6 Destacavam as personagens de coração mais forte, a coragem e a amizade, a inteligência e a força, a hospitalidade, a obediência aos deuses – por isso sendo suas preferidas e vencendo as batalhas e aventuras arriscadas – sem esquecer a fidelidade aos reis. O cenário da Ilíada é o da guerra entre Grécia e Troia, iniciada quando o príncipe troiano Páris rapta a rainha grega Helena, em um conflito que teve a duração de dez anos. Na narrativa há a predominância dos combates de Agamêmnon, Aquiles e Heitor, e se passa por volta do ano mil a. C.. Os gregos vencem por estratégia de Odisseu, no famoso episódio do Cavalo de Troia. Por semelhança, vestígios

6 Para aprofundamentos: Odisseia. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/odisseiap.html;

e Ilíada. Disponível em:http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf.

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ainda hoje da antiga cidade de Troia, no oeste da Turquia, são associados às descrições do poema de Homero. As manobras para o saque de Troia são veladas, dadas as características épicas que deixam em relevo as grandezas idealizadas das conquistas pelos vencedores.

Na Odisseia, que narra eventos que aconteceram logo após a Guerra de Troia, o personagem central é Odisseu – também chamado e mais conhecido por Ulisses –, o grego já com a fama de brilhante estrategista pela guerra anterior, além de conhecido por sua sagacidade na arte de navegar. A Odisseia conta a sua longa viagem de retorno ao lar, saindo de Troia de volta a Ítaca, uma ilha a oeste da Grécia continental. A viagem, também pelo período de dez anos, é permeada de problemas e aventuras fantásticas. Encontros com deuses, feiticeiras, monstros, canibais e uma jornada ao Mundo Subterrâneo, o que faz do poema uma grande estória de aventura que atravessa os tempos. Essas estórias “redimensionavam artisticamente as guerras, as viagens, os mitos e as lendas do povo, pondo em evidência suas crenças e seus valores.” (TEIXEIRA, 2008, p. 16).

A dimensão de Homero e sua obra é singular e ampla, por onde transparece o olhar antropocêntrico da concepção grega do mundo. Suas epopeias influenciaram a cultura romana, especialmente no governo de Otávio Augusto (63 a. C. – 14 d. C.), à época correspondente ao nascimento de Cristo, no surgimento ou aparecimento do Império como forma de organizar politicamente Roma.7 Os cantos dos aedos – cantores populares que perambulavam pela Grécia ainda nos tempos dominados pela tradição oral a declamar e entoar poemas e canções – e atribuídos a Homero, serviram de modelo ao poeta latino Virgílio (71 – 19 a. C.), para a composição da sua Eneida (séc. I a. C.). Virgílio, ao lado de Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.) e Horácio (65 – 8 a. C.), são considerados os maiores poetas romanos de seu tempo.

7 A obra de Homero, para Jaeger, “é inspirada, na sua totalidade, por um pensamento ‘filosófico’ relativo à natureza humana e às leis eternas que governam o mundo. [...] Homero não considera tudo simplesmente no seu desenvolvimento interno, como

experiência ou fenômeno de uma consciência humana. [...] A consideração psicológica e a metafísica de um mesmo acontecimento não se excluem de modo algum. A sua ação recíproca é, para o pensamento homérico, o natural. A epopeia conserva, assim,

uma duplicidade característica. Qualquer ação deve ser encarada ao mesmo tempo sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista divino.” (JAEGER, 2001, p. 76 a 80).

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(JAEGER, 2001; TEIXEIRA, 2008). Quanto a reconhecimento, Ovídio apontava que as folhas de louro – com as quais se faziam coroas para poetas e heróis – só serviam mesmo para temperar o arroz. Camões também viria mais tarde a compreender essa ausência de reconhecimento (em vida), embora sem o humor crítico mordaz do outro poeta.

No caso de Virgílio, diferentemente dos poemas anônimos da oralidade atribuídos a Homero, já se trata de um poema originalmente escrito por um único poeta. Ele escreve a Eneida8 por encomenda do Imperador Otávio Augusto, com a intenção de legitimar Roma, à altura das grandes conquistas heroicas passadas, novamente pela arte e por meio de artifícios semelhantes aos utilizados outrora. Assim, pode ser também uma criação cosmogônica para legitimar o Império. Em 12 cantos e 9826 versos, Virgílio conta as aventuras do herói troiano Eneias, que imigrou para a Itália depois de Troia ter sido destruída pelos gregos. Ele procurava um lugar seguro para refazer sua vida e a dos seus. Na região de Lácio, criou raízes e lançou as bases fundamentais para a grande Roma do futuro. Novamente aqui se encontram os perigos de uma viagem por mar, tempestades provocadas por intervenção dos deuses, chegadas e partidas, amores e relatos sobre a guerra de Troia, a exigência dos deuses de que o herói cumpra sua missão e a visita ao Hades, o mundo dos mortos. A jornada do herói está sempre no cerne das mitologias (CAMPBELL, 1996, p. 131), e qualquer que seja o motivo que o impeça de seguir adiante rumo ao que lhe é destinado figura como uma espécie de traição à própria consciência. Significativamente, Eneias recebe informações de Anquises, no Hades, sobre o futuro de Roma. Ele fica incumbido pelos deuses da tarefa de fundar a nova Troia: Roma. O herói segue viagem e outras guerras se estabelecem, até que vence o duelo com o inimigo. O argumento procura também, como não podia deixar de ser, colocar em relevo os valores e as virtudes caros à sociedade latina, sintetizando as correntes de pensamento na Roma de então.

Não por acaso, Virgílio é personagem de presença fundamental no texto de Dante Alighieri (1265 – 1321), que o

8 Para estudos mais elaborados ver VIRGÍLIO. Eneida. Disponível em:

www.ebooksbrasil.org/adobeebook/eneida.pdf.

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acompanha ao mundo dos mortos na Divina Comédia. Dante, no século XIV, é um dos responsáveis pela síntese da história literária ocidental, por associar a cultura medieval católico-cristã e o mundo clássico greco-latino. O poeta, “Exilado, peregrino, faz de si uma espécie de cidadão do mundo, representante do homem medievo, espremido entre a cultura clássica e a cultura do cristianismo, em busca da excelência moral e espiritual e da justiça social.” (ALBERTI, 2004, p. 7).9

Escrita em italiano em um período no qual o idioma dos eruditos valorizado era o latim, a obra é um épico que narra, de forma rigorosamente simétrica e planejada, uma viagem pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. O autor é considerado o inventor da língua italiana. Na obra de Alighieri, o personagem Dante tem o poeta Virgílio como guia pelo inferno e pelo purgatório. No céu, é guiado por Beatriz, musa e paixão de infância do poeta. Ao todo são 100 cantos, divididos em três livros com 33 cantos cada. O Inferno possui um canto a mais, incluída aí a introdução do poema que, originalmente, se chamava Comédia. Em uma edição de 1555 foi acrescentado o adjetivo Divina.

No enredo, Dante se vê em uma floresta escura e procura escapar. Encontra uma montanha, mas três animais o impedem. O espírito de Virgílio aparece e lhe propõe um caminho alternativo. Ele havia sido chamado por Beatriz, para interceder junto a Dante. A jornada a se empreender é uma viagem pelo centro da Terra, que se inicia nos portais do Inferno, atravessa o mundo subterrâneo e chega ao monte do Purgatório. Dali Virgílio deixará Dante às portas do Céu. Através dos nove círculos do Inferno, eles percorrem iniciaticamente um mundo de expurgos de pecados, sofrimento de condenados, monstros e demônios, até chegar a Lúcifer, no centro da Terra. Na sequência, aparece o Purgatório, uma alta montanha e sua ante-sala, para os arrependidos tardiamente. Os poetas atravessam um portal e nova odisseia os aguarda: os expurgos dos sete pecados capitais. Então se despedem e Dante é acompanhado por um anjo até Beatriz. O Paraíso é dividido em duas partes, uma material e outra espiritual, correspondentes ao paraíso terrestre – que obedece ao sistema cosmológico de Ptolomeu, como é o caso de Camões n’Os

9 Aprofundamentos ver ALIGUIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Fábio M. Alberti. Porto Alegre: L&PM, 2004; e A Divina Comédia. Disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf.

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Lusíadas – e ao celeste. Ainda no paraíso terrestre é interrogado sobre suas posições filosóficas e religiosas e recebe permissão para prosseguir. Somente depois disso é que transcende e percebe tudo com outra visão, ampliada e aperfeiçoada. Pensador visionário, de espírito curioso, Dante Alighieri sintetizou como símbolo literário o pensamento e a compreensão do mundo de seu tempo.

Se Homero representa a tradição para Camões – e não seria possível produzir um épico desconsiderando o poeta grego – o que diferencia este daquele é o primeiro ser a voz e o segundo a escrita. Virgílio e Dante, entre Homero e Camões, estabelecem essa ligação. Virgílio inaugura uma nova possibilidade de constituição da épica, por meio da escrita, tendo Homero e os gregos helenistas como ilustres antepassados. Camões inaugura seu canto moderno aludindo a Virgílio. Reverencia-o, mas busca a independência em defesa do homem de seu tempo e lugar, no mais importante poema épico em língua portuguesa.10 Seu manifesto é de respeito às heranças literárias, mas, valendo-se das regras renascentistas, pede o silêncio das divindades antigas, pois argumenta que o canto novo que agora toma forma é tão poderoso quanto, e solicita ser escutado. E lido. Por ser criador, contribui assim para fundar culturas inteiras e estabelecer outros e novos parâmetros criativos, porque o poeta “está sempre criando e recriando a linguagem. Está sempre criando o mundo. Ele cria modelos de sensibilidade.” (PIGNATARI, 1997, p. 36). Portanto, embora situado geográfica e temporalmente, um poema épico pode transcender fronteiras e tornar-se universal. É a história do mundo, talvez se possa dizer do “nosso” mundo, condensada de forma sublime. Pelo exposto, os fios condutores e cúmplices dos cantos dos poetas são configurados e renovados através dos tempos.

10 Menciono aqui, apenas como referência, outro poema com características épicas e

escrito em língua portuguesa: Os feitos de Mem de Sá, de José de Anchieta. Por volta

de 1563 a obra foi publicada em Coimbra, Portugal, e tem por temática a luta dos portugueses – tendo por governador-geral Mem de Sá – contra os franceses na expulsão destes da Baía da Guanabara. É tido como o primeiro poema épico da

América e é o primeiro poema brasileiro a ser impresso. Nele, a exaltação a Mem de Sá como herói coroa os triunfos da colonização portuguesa. Disponível em:

http://literaturadauepg.blogspot.com.br/2010/07/exaltacao-do-heroi-em-feitos-de-mem-de.html.

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1.3 As águas da Idade Média e da Renascença

Há uma tendência crescente nos estudos históricos em reavaliar e redimensionar os conceitos presentes no estudo do Renascimento e em analisar suas contradições. Também os estudos sobre o período medieval salientam que a época não deve ser considerada homogênea. Para o historiador Lucien Febvre, a

história é filha de seu tempo.11 A história escrita (historiografia) é

resultado de problemas formulados no tempo do historiador, e não no tempo por ele estudado. Sendo o historiador também ele um filho de seu tempo, as problemáticas que irá formular perpassam a subjetividade de interesses e caprichos próprios dos contextos políticos e econômicos dos quais emergem. Assim, pode-se dizer, com Febvre, que a Idade Média dos historiadores é filha de seu tempo. O termo, como muitos utilizados hoje, foi construído a posteriori.

É quase consenso entre os especialistas da área que a Idade Média, mon âge, compreende o período da história ocidental

(Europa)12 que vai da crise do século V ao XV, quando uma série de eventos (Renascimento, Reforma Protestante, Navegações Ibéricas e Formação das Monarquias Absolutistas na Europa) dão início ao que se convencionou chamar de Idade Moderna. Para o medievalista francês Jacques Le Goff, o Renascimento italiano do final do século XV e início do XVI não representou ruptura, uma vez que renascimentos anteriores haviam ocorrido (são exemplos a produção cultural à época do Império Carolíngio e o renascimento das cidades no século XIII), em momentos de grande fecundidade produtiva. Dante Alighieri e Petrarca, dois dos mais destacados poetas do Ocidente, escreveram suas obras no decorrer dos séculos XIII e XIV, respectivamente, ou seja, em plena Idade Média, e já no século XII ocorreu um revigoramento

11 Sobre o autor, ver FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI. São

Paulo: Companhia das Letras, 2009. 12 “A Idade Média ocidental não é programada. Nasce de uma aculturação na qual se

confundem pouco a pouco os usos e costumes greco-romanos com os dos ‘bárbaros’. Nasce também da confrontação com o Islam. Na origem, de fato, nada predispunha o Império do Ocidente – que englobava a África do Norte – a se tornar ‘europeu’. Da

conquista muçulmana na Espanha (século VIII) até a hegemonia otomana nos Bálcãs (século XIV), o Ocidente não se concebe em si mesmo como entidade geopolítica. Estrutura-se apenas por sua existência diante de um mundo que se mostra hostil.” (LE

GOFF, 2006, p. 80-81).

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das cidades, o que gerou um dinamismo na vida material que implicou em uma revitalização da cultura de modo geral, incluindo-

se aí as artes.13 Para Le Goff (2006, p. 66),

As mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente, em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média, uma Idade Média que – em certos aspectos de nossa civilização – perdura ainda e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais. O mesmo se pode dizer em relação à economia, não se pode falar de mercado antes do século XVIII. A economia rural só consegue fazer desaparecer a fome no século XIX (salvo na Rússia). O vocabulário da política e da economia só muda definitivamente – sinal de mudança das instituições, dos modos de produção e das mentalidades que correspondem a essas alterações – com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

O autor defende a tese de que transformações mais significativas só vieram a ocorrer a partir do século XVIII, e que as mentalidades presentes no medievo demoraram um pouco mais a sofrer alterações. É também importante mencionar que as criações e instituições surgidas no período permanecem muito presentes e foram decisivas para a “evolução do Ocidente” (LE GOFF, 2005, p. 9). O período a que se refere Le Goff utilizava o uso do termo médio, com caráter teológico, como um tempo entre a encarnação de Cristo e o Juízo Final, ou seja, o tempo da redenção. O termo Idade Média, com conotação pejorativa como um tempo de poucos avanços nas áreas técnica e cultural e responsável pelos estereótipos ainda hoje muito presentes, consagrou-se a partir de três manuais escritos por um autor chamado Chistoph Keller. Esse autor escreve, No século XVII, um manual de história antiga, um de história da idade média e outro de história nova, que ficaria conhecida depois como moderna.

13 Para aprofundamentos ver BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009; e DELUMEAU, Jean. A

civilização do Renascimento. Lisboa: Estampa, 1984.

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“Keller fixou também a ideia de que este período intermediário entre a Antiguidade e a época moderna nada produziu de importante. Foi um período não só estéril, mas de retrocesso: a ‘Idade das Trevas’.” (NASCIMENTO, 2004, p. 9).

O racionalismo do século XVIII e suas luzes reforçou os preconceitos já existentes e criou novos em relação à “Idade das Trevas” ou “Longa noite de mil anos” como era conhecido o período medieval, sintetizando um tempo que teria sido de barbárie, selvageria e ignorância mantida pela principal difusora de uma ideologia dominante: a Igreja Católica, associada à nobreza da época. O Romantismo e o nacionalismo do século XIX, reforçado pelas guerras napoleônicas, e os movimentos que viram emergir novas nações (Alemanha e Itália) e consolidar outras, (re) definindo suas identidades e origens, passariam a ver a Idade Média com outros olhos. Segundo Hilário Franco Júnior (1996, p. 19),

O ponto de partida fora a questão da identidade nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. As conquistas de Napoleão alimentaram o fenômeno, com a pretensão do imperador francês de reunir a Europa sob uma única direção, despertando em cada região dominada ou ameaçada uma valorização de suas especificidades, de sua personalidade nacional, enfim, de sua história.

De “tempo de trevas” transformou-se em “era de ouro”. Essa mudança também se deu enquanto fruto de certa frustração com a era industrial e a suposta tranquilidade do campo, considerada como ideal de uma vida desejável, longe dos ruídos e da fuligem das cidades e suas fábricas, vistas em princípio como verdadeiras inimigas pelas mudanças drásticas que provocaram no cotidiano dos indivíduos. Outras nações buscaram no passado medieval os heróis e lendas que iriam reforçar seus mitos de origem. Esses mitos são revisitados e ganham novas versões as histórias de El Cid (Espanha), Rei Arthur (Inglaterra) e Carlos Magno (França). Muitas obras literárias do Romantismo saudaram os castelos e os rituais da cavalaria, a vida monástica e o cotidiano de servos e mercadores. São exemplos o Fausto, de Goethe, O Corcunda de

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Notre Dame e outras obras de Victor Hugo e os romances históricos de Walter Scott, especialmente Ivanhoé, diga-se de passagem, a obra que despertou em Jacques Le Goff – tido como um dos mais renomados medievalistas do século XX – o interesse em conhecer melhor o período. As catedrais medievais em estilo gótico, antes tidas como verdadeiros símbolos da ignorância, agora encantam, são conservadas e valorizadas enquanto patrimônio cultural e artístico, uma espécie de passaporte de acesso a épocas passadas que contam outras histórias.14

No século XX, pesquisadores filiados à Escola dos Annales, ao afastaram-se das visões já consagradas, suscitaram novos estudos que revelaram aspectos da civilização da época menos estereotipados. Marc Bloch, um dos fundadores da revista Anais

de História Econômica e Social15, que deu origem à Escola, foi um

dos precursores da história das mentalidades, sendo o pioneiro

nos estudos de fenômenos do imaginário do homem medieval.16

A partir da década de 1960 os estudos de temáticas medievais proliferaram, com pesquisas de autores como os já citados, responsáveis pela percepção de uma Idade Média nem de trevas nem excessivamente romântica. Novas problemáticas foram suscitadas, resultando em obras fecundas que renovaram o próprio conceito de Idade Média, o momento em que a civilização europeia inventou “a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho, a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a consciência e, finalmente, a revolução.” (LE GOFF, 1995, p. 54). Não obstante, o medievalista brasileiro Franco Júnior solicita cautela sobre os resultados dos trabalhos realizados no século XX a respeito do período medieval. Não se pode afirmar, segundo ele, que as novas e extensas fontes disponíveis e o rigor

14 O termo gótico vem dos godos, povos tidos como bárbaros e ignorantes,

responsáveis pela destruição dos monumentos e criações gloriosas dos romanos. No outro extremo, como os propagadores da civilização, o termo já era empregado por

artistas renascentistas quando faziam referência à produção artística do período anterior. Para aprofundamentos sobre as catedrais góticas ver DUBY, Georges. Arte e sociedade. In: O tempo das catedrais. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. 15 Os Annales d'histoire économique et sociale surgiram em 1929, fundados por Marc

Bloch e Lucien Febvre, em meio às angústias da Grande Depressão, pretendendo ser um espaço aberto para publicações de pesquisadores que não encontravam espaço

nos meios acadêmicos da época, ocupados e controlados majoritariamente por cientistas das áreas de humanas filiados à corrente positivista, então predominante. 16 Para aprofundamentos ver BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70,

1970.

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interpretativo dessas fontes propiciam uma leitura definitiva sobre a Idade Média.

Essas idiossincrasias dos autores e suas leituras históricas são hoje mais claramente discerníveis e equilibradas. Entende-se melhor, portanto, o embate de ideias que se perpetua pelo tempo. Os escritores gregos e romanos eram pagãos e muito do que escreviam era considerado oposto aos ensinamentos da Igreja. A filosofia aristotélica foi proibida por suas associações pagãs, e subsistiu graças ao advento de um brilho cristão às ideias de Aristóteles, proporcionado pelos frades dominicanos Alberto Magno e São Tomás de Aquino. Fato semelhante pode ter acontecido com Camões, ao submeter o seu poema ao Censor do Santo Ofício na Inquisição, Frei Bartolomeu Ferreira, e obtendo

concessão para publicação17, pois, para o representante da Igreja,

“isto he Poesia e fingimento, e o Autor como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poetico.” (FERREIRA, 1931, p. 38). Como a Renascença, a Idade Média “Não deve ser limitada por barreiras no tempo e no espaço, pois estas são produto da imaginação histórica. [...] Deve ser aceita como um conceito cultural basicamente ligado à Europa Ocidental, criado numa fase da sua própria história em que tentava reconciliar-se com o seu passado.” (MATHEW, 1997, p. 15). O bom senso aconselha a evitar exageros e romantismos e não carregar demais nas tintas contrastantes em questão.

O termo Renascimento (Rinascità) tornou-se popular a partir de uma obra de Giorgio Vasari18, escrita em meados do século XVI, Vidas dos artistas. Essa palavra continua a evocar ideias que colocam o homem como centro do Universo. A relatividade do termo, que pode significar a referência a um período da história

17 Para Werner Jaeger, a não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo: “Foi a antiga retórica que fomentou pela primeira vez a consideração formal da arte e foi o Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação

puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de

educação e fonte de prazer. A partir daí, a poesia continuou a conjurar do seu mundo de sombras os deuses e heróis da ‘mitologia’ pagã; mas esse mundo passou a ser considerado como jogo irreal da pura fantasia artística. É fácil contemplar Homero por

esta acanhada perspectiva, mas assim impedimo-nos o acesso à inteligência dos mitos e da poesia no seu genuíno sentido helênico.” (JAEGER, 2001, p. 64). 18 Em edição brasileira, ver: VASARI, Giorgio. Vidas dos artistas. São Paulo: Martins

Fontes, 2011.

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como também pode ser entendido como um conjunto de ideias e de valores culturais, é aqui preponderante. Huizinga, sobre a questão, escreve que a ideia de um renascimento da cultura do espírito “es al mismo tiempo muy antigua y relativamente nueva. Antigua en cuanto a su valor subjetivo como idea cultural, nueva en cuanto a su carácter específico de idea científica com la tendencia a lograr una validez objetiva.”19

Na cultura da Renascença, aprendemos que os pensadores, os filósofos, os artistas e os cientistas eram parte de um conjunto de indivíduos que se esforçavam para modificar e renovar o padrão de estudos tradicionais das universidades medievais. Esses homens passaram a ser chamados de Humanistas, isto é, que estudavam o curso de humanidades. À época, a gramática e a retórica, mas que de fato consistia em literatura, poesia, história e habilidades para comunicar de forma clara e convincente. A literatura clássica se oferecia como um guia para o comportamento, conforme salienta Nicolau Sevcenko (1994, p. 18). Os humanistas tendiam a considerar como mais perfeita e mais expressiva a cultura que havia surgido e se desenvolvido no seio do paganismo, antes do advento de Cristo. Buscavam outras interpretações – ou reinterpretações – do Evangelho pelos valores e experiências da Antiguidade. Valores como a exaltação do indivíduo, os feitos históricos, a vontade e a capacidade de ação do homem, a crença de que ele é a fonte da criatividade ilimitada, portanto sugerindo uma aposta nas suas capacidades físicas e espirituais. A ênfase possuía tendência aos valores seculares, deixando em segundo plano os transcendentais. Significa dizer que o estudo da metafísica e da teologia não parecia ser prioridade para eles. O interesse era maior em tentar compreender as ações humanas e centrar esforços no sentido de aperfeiçoar-se como pessoa. Essas capacidades podiam ser desenvolvidas com preparação e educação adequadas, obtendo assim certa independência, pode-se dizer, da bondade de Deus, crença aparentemente majoritária na Idade Média.

19 “é ao mesmo tempo muito antiga e relativamente nova. Antiga quanto ao seu valor subjetivo como ideia cultural, nova quanto ao seu caráter específico de ideia científica

com a tendência a lograr uma validade objetiva.” Livre tradução nossa do excerto. In: HUIZINGA, Johan. El concepto de la historia y otros ensayos. México: Fondo de Cultura Economica, 1946, p. 103.

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A aproximação crescente entre os eruditos italianos e os eruditos gregos permitiu a estes exercer influências para a difusão da literatura clássica grega. Os gregos difundiram Platão entre os seus contatos. Platão era, para eles, como uma alegoria que representava a estrutura hierárquica do Universo. Para os neoplatônicos, os princípios da perfeição e da harmonia, trabalho da criação divina, eram ideais a serem seguidos pela arte, pela arquitetura, pela literatura e pela música. Na busca pela unidade essencial entre os mundos material e espiritual, havia o entendimento de que o estudioso desses assuntos possuía poder de manipulação dos céus e de transformação da natureza. Essas ideias constavam em textos gregos dos séculos II e III. Os referidos textos também faziam referências a estudos sobre as estrelas e seus movimentos e a recitação de conjuros e hinos, com os quais se podia “ascender também através da hierarquia do Universo e conseguir a perfeição espiritual. O neoplatonismo contribuiu para o estudo da alquimia e da astrologia, e desse modo preparou indiretamente o caminho para a revolução científica do século XVII.” (BLACK et al, 1997, p. 16).

Pico de Mirandola, quando escreve seu livro Oração sobre a dignidade do homem, em 1486, expressa em termos bastante cristãos o lugar do homem no mundo e a capacidade do seu desejo. O homem, segundo Mirandola, possuía em seu interior elementos de divindade e que poderia escolher entre desprezá-los ou crescer com eles. As ideias não se associavam tanto ao paganismo. Eram mais, e antes, como representações da fusão das doutrinas cristãs associadas a Santo Agostinho com as ideias clássicas.20 O que representou rompimento de Mirandola (e dos

20 Segundo Jaeger, “Se contemplamos o povo grego sobre o fundo histórico do antigo

Oriente, a diferença é tão profunda que os Gregos parecem fundir-se numa unidade com o mundo europeu dos tempos modernos. E isto chega ao ponto de podermos sem dificuldade interpretá-los na linha da liberdade do individualismo moderno. Efetivamente, não pode haver contraste mais agudo que o existente entre a

consciência individual do homem de hoje e o estilo de vida do Oriente pré-helênico, tal como ele se manifesta na sombria majestade das Pirâmides, nos túmulos dos reis e na monumentalidade das construções orientais. Em contraste com a exaltação oriental

dos homens deuses, solitários, acima de toda a medida natural, onde se expressa uma concepção metafísica que nos é completamente estranha; em contraste com a opressão das massas, sem a qual não seria concebível a exaltação dos soberanos e a

sua significação religiosa, o início da história grega surge como princípio de uma valoração nova do Homem, a qual não se afasta muito das ideias difundidas pelo Cristianismo sobre o valor infinito de cada alma humana nem do ideal de autonomia

espiritual que desde o Renascimento se reclamou para cada indivíduo.” (JAEGER,

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estudos das humanidades) com o poder da Igreja – considerado como desafio à onipotência desta – foi a rejeição ao grande número de cerimônias e ao pagamento a dinheiro pela salvação, necessário segundo o ensinamento dos clérigos.

Mas havia outros aspectos dos estudos humanistas, como o interesse pelas versões exatas dos textos clássicos, o que surtia efeito em novas e criteriosas investigações literárias históricas, também alastradas para textos não clássicos. Os estudos apontavam para documentos alterados e erros de tradução da versão latina autorizada do Novo Testamento, o que deixa entrever também possíveis laços entre o humanismo e a Reforma Protestante do século XVI. Os eruditos e os artistas pareciam estar conscientes de que viviam numa época de grandes alterações culturais. Através do Renascimento, não deixaram de evocar os temas e as técnicas clássicas, agora misturadas com iconografias cristãs. Isso não se deu, obviamente e como Le Goff assinalou, como um abrir e fechar de portas. A ponte entre as crenças cristãs e as da Renascença ficam evidentes na literatura humanista do período. Muito das ideias associadas ao Renascimento eram encontradas desde o século XII, como também nele há muito de medieval. O termo “Humanismo” é de grande valor, posto que coloca a sua atenção no centro dos mais importantes aspectos “do pensamento e do saber do Renascimento. [...] Assim, o Renascimento não nasce para ocupar um vazio cultural absoluto. Renascimentos prévios, em vários aspectos, tinham preparado o caminho para os êxitos dos séculos XV e XVI.” (BLACK et al, 1997, p. 16).

Mais que isso, é indício forte de que a cultura clássica nunca desapareceu totalmente da Europa durante a Idade Média. É possível ao homem poder atuar dentro da realidade em que vive, em maior ou menor grau conforme as circunstâncias de sua vida e a metáfora da afirmação de morte e volta à vida presente no termo “Renascimento” foi usada, segundo Tereza de Queiroz, para “estabelecer os laços entre a Itália dos séculos XV e XVI com a Antiguidade. Se o único sentido do Renascimento fosse o da aproximação do ocidente cristão com a Antiguidade, esse período não se diferenciaria em nada da Idade Média.” (QUEIROZ, 1995, p. 16).

Mais do que um evento, o Renascimento representa em si o

2001, p. 9-10).

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momento em que se gestou uma mudança de episteme, no sentido de que homem e natureza passam, aos poucos, a ser conhecidos não através de uma revelação miraculosa, mas da observação e experimentação que o indivíduo racional é capaz de fazer. Para Francisco José Calazans Falcon (2000, p. 28),

Quanto à secularização, não há dúvida sobre a sua significação maior: a emancipação de cada um dos campos ou setores do conhecimento e das práticas sociais da tutela teológica e metafísica em nome de um novo espírito científico cujas verdades, imanentes, autônomas e distintas das verdades reveladas, anunciam o paradigma racionalista naturalista da ciência que se inicia com Galileu Galilei.

Sobre o papel do indivíduo, o autor prossegue:

Em estreita relação com as transformações econômicas, sociais e culturais dessa época, o individualismo representou, já no Renascimento, a afirmação teórica e prática das possibilidades praticamente infinitas do homem como indivíduo dotado de liberdade e capaz de não somente conhecer a natureza e o mundo, mas também de agir de acordo com seus interesses e ideais de transformar o

próprio mundo – o natural e o social. 21

Esse otimismo em relação ao homem e suas “infinitas”

possibilidades, capaz de desvendar os segredos e mistérios do universo a partir do uso da razão, marcou o advento da modernidade. Nele, o conhecimento científico como possibilidade de leitura e interpretação do mundo e seus fenômenos passa a ser encarada, por muitos, como a única e verdadeira forma de conhecimento. Desse modo, segundo Nicolau Sevcenko (1994, p. 3), as sementes “do individualismo, do racionalismo e da ambição

21 Para leituras e aprofundamentos, ver FALCON, Francisco José Calazans. Tempos modernos: a cultura humanista. In: RODRIGUES, Antônio; FALCON, Francisco José Calazans. Tempos modernos – ensaios de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2000. Grifos no original.

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ilimitada, [...] contraditoriamente, fará brotar um anseio de liberdade e autonomia de espírito, certamente o mais belo legado do Renascimento à atualidade.” Outro autor, Marshall Berman (1992, p. 15), em tempos de crítica à modernidade em fins do século XX, escreve que “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor [...] mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.” Percebe-se que a oposição absoluta das polaridades entre a Idade Média e o Renascimento atualmente é desconsiderada. Em Huizinga (1996, p. 72) os termos são precisos: “A sede de honras e de glória tão característica do homem do Renascimento não difere muito da ambição cavalheiresca dos tempos anteriores. Simplesmente, libertou-se da sua forma medieval e revestiu-se de um garbo mais clássico.”

Um panorama das heranças culturais é percebido por este autor, que estabelece relações entre os períodos históricos. Segundo ele, o mundo, há quinhentos anos, tinha seus contornos traçados mais nitidamente e os homens e suas experiências possuíam ainda um caráter de prazer e dor da vida infantil. Uma confissão de pessimismo é encontrada na literatura da época. Quando esses homens passam dos contentamentos e alegrias da infância à reflexão, percebem as misérias de sua condição e passam a ver somente seus infortúnios. Mas o pessimismo é também o alicerce de onde se buscará uma aspiração de vida sublime, de beleza e serenidade. Essa aspiração é o contraponto ao presente sombrio que os homens de todas as épocas encontraram para suportá-lo.

Uma concepção de vida semelhante à da cavalaria medieval é encontrada quase que em toda parte, mais especificamente no Japão e nos hindus do Mahabharata. As formas ideais da perfeição humana são buscadas por essas aristocracias guerreiras, e a vida virtuosa e bela expressa nos gregos dão origem à cavalaria na Idade Média. Por alguns séculos o ideal continua como fonte de

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energia, suscetível de ilusões e pouco acessível às correções da experiência, de modo que, cedo ou tarde, o avanço intelectual solicita que se revise esse ideal, conforme Huizinga. Mesmo assim, ele não desaparece. Apenas perde suas tendências ao exagero, abandonando pretensões de cunho perfeccionista religioso e passa a ser um modelo de vida social:

Três caminhos diferentes, em todas as épocas, parecem ter conduzido à vida ideal. Primeiro, o abandono do mundo. [...] O segundo conduz à melhoria do próprio mundo pela conscienciosa tarefa de melhorar as condições e as instituições políticas, sociais e morais. [...] Há um terceiro caminho para um mundo mais belo, trilhado em todas as idades e civilizações, o mais fácil e também o mais enganoso de todos – o do sonho. [...] Mas seria apenas uma questão de literatura, esse terceiro caminho para a vida sublime, esse voo da acre realidade para a ilusão? Era de certeza algo mais do que isso. A história presta pouca atenção à influência destes sonhos de vida sublime na civilização e nas formas da vida social. O conteúdo deste ideal é um desejo de regresso à perfeição de um passado imaginário. (HUIZINGA, 1996, passim p. 9-79).

Esse passado, idealizado e imaginário, sempre se revelou ilusório quando em contato com a realidade da vida de todos os dias. Ele está sempre no horizonte. Mas como encontrar motivos para caminhar em direção a novas descobertas se o pensamento não transcender os limites do possível? Continuar caminhando parece ser, assim, a escolha de visionários. Abrandadas as discussões sobre os períodos históricos e suas (r) evoluções fundamentalmente importantes para os estudos históricos, o que fica em relevo são as ideias e os valores culturais que as acompanham, e que transitam sutilmente por tempos não medidos pela ordem lógica cronológica.

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1.4 O poeta português do mar

Há inúmeras hipóteses e conjecturas sobre a biografia de Luís de Camões (1524 ou 1525 – 1580), e os estudiosos22 que se propõe a decifrar a sua vida se deparam com um sem número de incertezas sobre os fatos. Parece ser próprio da construção de um mito, onde qualquer vestígio de verdade está sob espessa cortina de fumaça e há sempre qualquer coisa de indefinível. Se isso existe para confundir, despertar curiosidade ou interrogações, não se sabe ao certo. Porém, é possível seguir as pegadas deixadas pela obra do poeta. Pela obra, faz-se possível uma espécie de biografia romanceada. Boa parte dos estudiosos que se debruçam sobre o poeta deixam vir à tona, em suas observações, certo grau de grandiloquência.23 Seria ela a reverberação da força do épico de Camões?

A data de nascimento, a infância e a juventude estão envoltos em anonimatos. Estudos consensuais mostram que nenhum sinal exterior, seja de origem familiar de prestígio, bens materiais ou situação notória pareceu apontar com esperanças, embora conste também que era de ascendência paterna fidalga, ainda que modesta. Mesmo assim, comumente se mantém a imagem de que Camões nasceu pobre e viveu na miséria e sugere-se que se entregou às paixões sem economizar

22 Da infinidade de estudiosos da vida e da obra de Luís de Camões, cabe destacar

alguns críticos camonólogos como: Faria e Souza, Pedro de Mariz, Jorge de Sena,

Hernâni Cidade, José Maria Rodrigues e Carolina Michaëlis de Vasconcellos. No Brasil, Cleonice Berardinelli e os nomes que constarão nos estudos da edição brasileira d’Os Lusíadas utilizada neste trabalho, ainda neste capítulo e no próximo item sob o nome

de O poema Canto a Canto. 23 De um autor, como breve exemplo ilustrativo, assumindo sentimentos do poeta e de

seus possíveis amores: “Sabemos também que uma das grandes damas da Corte, D. Francisca de Aragão, lhe pediu versos; outras, menos delicadas, chamaram-lhe o ‘Diabo zarolho’. Aquela amada figura do louco moço recém-chegado de Coimbra, o

único que conseguira fazer vibrar o seu coração de mulher. Este foi o primeiro grande amor do poeta, o único a frutificar nesse coração errante. [...] Em Ceuta, Camões perdeu o olho direito, fato que veio certamente agravar o seu temperamento já por

natureza agressivo e azedo. Volta, afinal, em 1549. Mas o Camões que voltou de Ceuta era muito diferente do que fora de Coimbra para Lisboa. Estava agora acostumado ao mundo, rude e desiludido, pronto a gozar o prazer onde quer que o encontrasse.

Juntou-se a outros rapazes foliões e sem dinheiro como ele e, segundo Aubrey Bell, parece ter ganho o nome de ‘Trinca-fortes’”. NETO, Serafim da Silva. Ensaio. In: Estudos Camonianos. Ministério da Educação e Cultura/Depto de assuntos culturais,

Vol.1, 1974, p. 459 a 467.

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sentimentos, fossem os seus amores reais ou platônicos. Aqui, no campo amoroso, também há confusão e imperfeições, não somente pela ausência de documentações24 ou testemunhos idôneos, mas também pelos comentários a respeito de suas andanças. Há consenso que sua vasta produção literária indica interesses muito mais voltados para o pensamento e suas criações do que para as questões e ações práticas do cotidiano. Desse modo, reforça-se ainda mais claramente que o testemunho mais forte do poeta são suas próprias poesias.

Segundo Iacov Hillel, o ser humano está buscando uma saída para além da materialidade, e é o que Camões, com extrema atualidade, também faz. Ele fala sobre o destino, sobre o êxito, sobre a ida e a volta, a vida e a morte. O homem, por mais materialista que seja, por mais que tente saciar as suas necessidades materiais, mais ele se faz perguntas sobre o indizível. A respeito de sua encenação brasileira do épico, conclui: “eu tenho maior orgulho de ter feito, enquanto procedimento intelectual, de ter trabalhado, de ter posto a mão nesta epopeia, e nessa visão que ele teve, desta viagem do Vasco da Gama, de seu irmão, e da mistura do real e do imaginário, do verdadeiro e do fantástico.” (HILLEL, 2011).

Para Celso Nunes, primeiro encenador do épico no Brasil, Camões é um homem que tem uma inspiração literária de gênio, de fundamental importância também histórica para a era dos grandes navegadores e do Novo Mundo. Na sua leitura do épico, Nunes estabeleceu vínculos com a cultura clássica grega, em

24 Em documento raro, no Real Gabinete Português de leitura do Rio de Janeiro, existe cópia de um manuscrito de 228 páginas, que se lê na Introdução o seguinte: “Simão Ferreira Paes, Cavaleiro Fidalgo da Casa de Sua Magestade e Familiar do Santo

Ofício, tem o venerável trabalho, escripto há quase tres seculos, este titulo: Recopilação das Famosas Armadas que para a India foram desde o anno em que se principiou sua gloriosa conquista.” Um artigo de Frazão de Vasconcelos, do Instituto

Português de Arqueologia Histórica e Etnografia, publicado na edição de 16 de outubro

de 1937 da folha “A Voz”, de Lisboa, sob o título “Algumas notas a propósito do manuscrito das “Famosas Armadas”, existente na Biblioteca da Marinha do Rio de Janeiro, traz tópicos que se referem a Paes: “No terramoto de 1755, com a Casa da

India, desapareceu o seu valiosíssimo arquivo. Nele existiam, quasi desde as primeiras armadas, possivelmente a começar em 1503, os registos de todos os navios que partiam para o Oriente, os seus nomes e os dos capitães respectivos, os da gente de

mar e guerra. [...] Foi na Casa da India que, por exemplo, alguma coisa se soube de Camões, embora pouco. Póde, pois, avaliar-se que riqueza de documentação se perdeu”. In: As Famosas Armadas Portuguesas – 1496-1650. Ministério da Marinha.

Rio de Janeiro, 1937, p. 230-231.

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Homero, em poetas que cantaram os feitos de seus povos antes de Camões, pessoas que acreditam, que contam histórias para dar continuidade, segundo o encenador: “No fundo o poeta é isso: o que conta uma história de um povo, a saga de uma descoberta. Ele não está querendo deixar a coisa morrer no conhecimento que adquiriu, que é a missão de todo artista, no fundo.” (NUNES, 2011).

Márcio Aurélio, também encenador d’Os Lusíadas em sua terceira versão brasileira e que lembra acompanhar Camões desde os estudos sobre análise sintática no colégio, diz que retornar ao poema foi a oportunidade de percebê-lo em toda a sua complexidade. Para ele, a retomada da leitura de determinadas obras é capital para reorganizarmos nosso imaginário. Conhecendo a história e a biografia de Camões, pode-se “estabelecer outras relações para o descompasso histórico no qual autor e obra estavam circunscritos. Percebo agora que a transformação geopolítica do imaginário do homem do Renascimento é mais fácil de ser compreendida através de pura poesia.” (AURÉLIO, 2001, p. 5).

O poeta dizia sem modéstia que não lhe faltava na vida engenho, estudo honesto e longa experiência, coisas raras de se juntar. Na obra também se revelam desalentos, desenganos, amargura. Seu grande conhecimento de mitologia, astronomia, geografia, história e poesia medieval e clássica, aliado à experiência vivida, servem de sólida base para a elaboração e construção de sua lírica e de sua épica, mas faltam respostas às interrogações de como se deram as condições e particularidades que podem ter embasado seus estudos, detalhe fundamental para melhor compreensão e explicação dos poemas. Esses aspectos são salientados por Carolina de Vasconcellos, respeitada autora portuguesa, no prefácio da edição nacional (1931, p. 25), com reverberações em obras brasileiras que se sucederam a esta publicação (MARTINS, 1981). Na sua formação cultural, consta que provavelmente tenha frequentado estudos na Universidade de Coimbra ou de Lisboa, ou, ainda, que tenha se debruçado a exercícios filosóficos em alguma escola dentro de conventos em diferentes locais.25

25 Georges Le Gentil, historiador francês citado pelo professor Arthur Reis, chamava atenção para o profundo conhecimento de humanidades que cerca Os Lusíadas: “Foi

verosimilmente no decurso dos seus estudos universitários que ele leu Platão nas

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Desse modo, compreende-se o porquê da maioria dos estudiosos procurarem no plano da obra respostas para tantas questões psicológicas do homem. É sempre um risco louvável a correr. A sua vida, ao que se deduz pela mescla dos dados históricos e poéticos, foi um campo de batalha, seja com a espada, seja com a pena, ele próprio assinala. Como soldado a serviço do rei e disposto a viagens, perdeu o olho direito em Ceuta, em batalha contra os mouros. A essa altura, as lutas e a situação do poeta no exílio estavam longe de serem associadas às grandezas dos navegadores em terras desconhecidas. Os caminhos também desconhecidos do espírito e os atrevimentos literários é que parecem ter dado voz às suas inquietudes. Ele assimilou as opções estéticas e filosóficas de seu tempo. Por certo atraído pela sede de aventuras em destino incerto, novos mares e terras, outros povos e diferentes costumes, preenche de humanidade suas criações e canta.

Sua lírica canta o amor, no que há de grandioso e de mísero. Canta o desconcerto, a incompletude, a ausência de justiça, a contradição. O paradoxo da atração física e do desapego. Sua épica, fonte primeira deste estudo26, canta as aspirações, a coragem e a força do homem. Homem no sentido amplo de um espírito coletivo e individual, motivado pelo ideal de conquista de suas potencialidades, movido pelo anseio de superação das próprias limitações, porém, com as fragilidades e imperfeições nunca esquecidas e sob um manto de forças imperiais e crenças religiosas a serviço das colonizações, em um tempo de ausências

traduções de Marsílio Ficino, que se iniciou no sistema de Ptolomeu através do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes, e que o petrarquismo lhe foi revelado sob a influência predominante de Sá de Miranda, introdutor dos métodos italianos. A sua epopeia,

assim como todos os poemas com que se exercitava nos novos gêneros, atestam um saber enciclopédico e métodos que nada têm de comum com a improvisação de um autodidacta, mesmo superiormente dotado.” (LE GENTIL apud REIS, 1974, p. 37). 26 Glacy Sêcco (1998, p. 108) estabelece as delicadas relações entre as regras

gramaticais e as figuras de linguagem: “É a linguagem um meio de comunicação complexo, delicadíssimo e de numerosos recursos latentes que esperam venha o artista e os coloque em vibração no momento oportuno. Se à gramática cabe

apresentar as regras e assinalar as tendências fortes, à estilística cabe mostrar como o instrumento da língua funciona quase sempre em consonância com a gramática, mas não raro afastando-se dela para alcançar melhor o fim supremo: a expressão. A

linguagem reduzida a formas regulares tornar-se-ia monótona, árida, sem vigor nem colorido. São as figuras que rompem essa monotonia e acompanham o pensamento em suas gradações, reproduzem-no com seus variados matizes e derramam na

linguagem que o espelha a vida que o anima e realça.”

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de dicionários e guias da língua portuguesa. Portanto, uma obra que, estando no centro do conflito entre influências fortemente antagônicas – uma reclamando um sentimento da tradição e outra impulsionando novas possibilidades criativas e autônomas – vai de todo modo associar homem e obra e simbolizar a dualidade da época e/ou o conflito psicológico do poeta. A consciência dessa contradição que encerra a condição humana – por vezes à altura de um Deus, por outras (e muitas) vezes mera criatura da vontade divina, instrumento errante entregue às circunstâncias mundanas – faz do poema épico um canto singular. E é muito possível que em camadas mais profundas esse pensamento aparentemente contraditório de Camões seja complementar. Assim, ao mostrar uma unidade acima das polaridades, ele se distancia do senso comum dos opostos.

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1.5 O poema Canto a Canto

Os Lusíadas são os portugueses, descendentes de Luso27 por designação de André de Rezende, poeta renascentista, conforme os arcaísmos clássicos da época. É um poema épico que se propõe a cantar os feitos heroicos de um povo, o português, no seu processo de formação histórica, com ênfase na expansão marítima e é, por isso, ambientado na viagem de Vasco da Gama e seus Argonautas às Índias. A epopeia é composta de 1102 estrofes, que totalizam 8816 versos. As estrofes, de oito versos decassílabos cada uma, e que têm o nome de oitavas-rimas, são subdivididas em dez cantos. O esquema das rimas – identidade sonora entre dois versos – é “abababcc”, numa arte precisa de criação literária embalada pelos ventos e mares já navegados, posto que o poeta consegue publicar sua obra em 1572 e as façanhas do Gama e seus argonautas datam entre 1497 e 1499. (VASCONCELLOS, 1931). O decassílabo heroico serve para alcançar um tom solene propositadamente arquitetado pelo narrador. Há também uma preocupação com a acentuação – que imprime ritmo e sentido em poema que se propõe cantar feitos heroicos – mas que é permeado de lirismos. Como observa Ivan Teixeira, os decassílabos classificam-se em heroicos e sáficos: “Os heroicos possuem acento tônico principal na sexta e na décima sílaba. Os sáficos, na quarta, oitava e décima sílaba. Teoricamente, os heroicos são mais adequados ao assunto épico; os sáficos, ao assunto lírico.” (TEIXEIRA, 2008, p. 56). Apesar dos muitos narradores, há uma voz impessoal, algo como uma entidade abstrata que narra a estória e se identifica com o próprio poeta. Desse modo, longe da aparente variedade de pontos de vista, a narrativa é perpassada pelo ponto de vista do autor.

Para o estudo analítico do poema original foi utilizada a edição d’Os Lusíadas de 1980, pela Editora da Universidade de

São Paulo e Editora Itatiaia.28 A Introdução e as notas são,

27 Luso, para Carolina Michaëlis de Vasconcellos, é “Companheiro de Baco nas suas míticas expedições aos extremos do Ocidente europeu. Luso era considerado como povoador e primeiro rei-pastor da última Tule, à qual teria dado o nome de Lusitânia.”

(VASCONCELLOS, 1931, p. 11 a 13). 28 Os registros de autoria dos estudos sobre a obra de Camões relativos a esta edição estão assim subdivididos: Introdução de Antônio Soares Amora, Modernização e

Revisão do Texto de Flora Amora Sales Campos e Notas de Antônio Soares Amora

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portanto, de renomados estudiosos da obra camoniana, o que atesta credibilidade ao trabalho de modernização do texto, que tem por base a edição Princeps, de 1572. Para embasamento e compreensão das relações, aproximações e distanciamentos do texto de origem e as adaptações oriundas dele que se seguirão juntamente com as reflexões sobre as encenações teatrais, segue estudo mais detalhado da estrutura e dos temas d’Os Lusíadas, nos seus dez cantos, Canto a Canto.

CANTO PRIMEIRO Neste Canto estão incluídas a Proposição; a Invocação; a

Dedicatória; e também tem início a Narração. Na Proposição (estrofes 1 a 3), o narrador se propõe a cantar para todo o mundo a formação e a expansão do Império Português. Os mares, o

desconhecido e o desafio à força humana.29 Este é o primeiro tema da narração, tendo como núcleo narrativo a viagem de Vasco da Gama às Índias. Também serão exaltadas, como segundo tema, as memórias dos reis portugueses e, como terceiro, serão lembrados os heróis que no passado se fizeram imortais pelo empenho à ampliação da Fé e do Império, seus grandes feitos à Nação.

(Cantos I e II), Massaud Moisés (Cantos III e IV), Naief Sáfady (Cantos VII e VIII), Rolando Morel Pinto (Cantos V e VI) e Segismundo Spina (Cantos IX e X). Por existirem

diferentes edições do épico à época do seu lançamento, aponto aqui as normas adotadas no tratamento do texto para esta edição que ora analiso: “Adotou-se, como base, o texto da edição considerada ‘princeps’ (o pelicano da portada com o bico

voltado para a esquerda); atualizou-se a ortografia pela reforma de 1943 e pelo acordo Interacadêmico de 1971; a modernização da pontuação tomou por base o texto da Edição Brasileira Comemorativa do IV Centenário da Publicação do Poema, Rio de

Janeiro, MEC, 1972; [...] segundo tendência geral, os arcaísmos foram modernizados todas as vezes em que essa alteração não atingiu a estrutura rítmica e rímica do poema.” (CAMPOS, 1980, p. 11-12). 29 Paulo Miceli retoma a origem da palavra mar. Para o autor, “em quase todas as

línguas europeias ela tem a mesma raiz e o mesmo significado: morrer. Em latim, mare; em irlandês, muir, genitivo, mara; em cimédrio (um dos principais dialetos do celta), môr, myr; em gótico, marei; em armoricano, môr; em anglo-saxão, mere; em alemão

antigo, mari, meri; em francês, mer; em escandinavo, mar; em eslavo antigo e em russo, moru; em polonês, morze; em sânscrito, mira. Além disso, um dos nomes sânscritos do oceano – martyo-dbhava – significa a origem ou a fonte da morte, assim como maru

corresponde a deserto. Fonte da morte, portanto, o mar se oferece em desafio para a solidão dos homens; é o ponto atrugêtos de Homero, o vastum mare dos latinos e o vast, voest, deserto propriamente dito, dos escandinavos.” (MICELI, 2006, p. 11).

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Adota-se um ponto de vista da aristocracia dominante e os fatos históricos são diretamente creditados à ação dos heróis. Por ser coletivo e grandiloquente, características fundamentais para um poema épico, o narrador considera o assunto das conquistas portuguesas digno de importância maior do que os feitos realizados pelos grandes heróis da Antiguidade Clássica. O “ilustre peito lusitano” tem mais relevo, tem um “valor mais alto” e por isso “se alevanta” acima da “Musa Antiga”, solicitada a cessar seu Canto. Deuses do “maravilhoso pagão” – jargão largamente utilizado por autores de estudos literários –, são citados já na terceira estrofe, em que o narrador faz alusão ao domínio dos portugueses na guerra e nos mares. A intertextualidade – apontada como um tom de desafio – está presente no poema em relação aos modelos de antes: o primeiro verso remete a um verso

de Virgílio na Eneida.30 Dessa forma, Camões enaltece a poesia clássica ao mesmo tempo em que demonstra a sua erudição, necessária ao escritor e valorizada em sua época, pelo conhecimento que possuía dos modelos antigos. Credita alto valor a eles por seguir-lhes as regras, mas cantará feitos de homens de carne e osso, capazes de feitos dignos de deuses – ainda que com a ajuda destes. Na Invocação (estrofes 4 e 5), as divindades são solicitadas pelo narrador para virem em auxílio. As “tágides”, ninfas do rio Tejo, assumem o papel das antigas musas. Elas são as inspiradoras responsáveis em criar no poeta um “novo engenho ardente” que, ao contrário do “verso humilde” – a poesia lírica e subjetiva –, requeria um estilo elevado e fluente, comparado ao dos antigos poemas épicos. Para isso, o narrador pede uma capacidade criadora grande e forte, digna de um canto de guerra.

Na Dedicatória (estrofes 6 a 18), os versos são dedicados ao jovem rei, D. Sebastião. O narrador enaltece a figura do rei e faz uso de uma série de metáforas, muito próximas à concepção de que as navegações portuguesas e sua expansão imperialista eram uma nova cruzada contra os “infiéis”. O poema se refere a vários atributos do rei: a ascendência real pura, a garantia que representava para a independência portuguesa e, principalmente, seu papel destacado na expansão do credo católico e na luta contra os árabes. Pede que o rei, ainda criança, observe os

30 Para aprofundamentos, ver: VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de Manuel Odorico

Mendes. Livro I, p. 15. Disponível em: www.ebooksbrasil.org/adobeebook/eneida.pdf.

Acesso em: 15 mar. 2012.

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simbolismos dos escudos.31 Nas estrofes anteriores (da

Proposição e da Invocação), não há especificamente um destinatário para o canto. Na Dedicatória, o poeta estabelece um vínculo comunicativo direto entre ele e o rei. O ato de leitura do poeta ao rei, em voz alta e em tom declamatório, é um recurso ficcional convincente que remete aos discursos orais dos poetas antigos, lembrando Homero e a tradição oral, porém com a mudança do “eu” para o “nós”. Inversamente, agora é o “nós” para o rei e não um poeta para o seu público. Faz questão de realçar que os feitos são movidos por valores mais altos que qualquer prêmio vil, trazendo indícios de que esses valores eram caros tanto aos nautas do poema como ao próprio poeta que narra. Engrandece os homens que se lançam ao mar, a ponto de igualarem em importância os próprios reis. Enfrenta os mitos antigos para dar voz ao agora. Que o rei ouça que as “façanhas” de seus exércitos são tão verdadeiras e grandiosas “que excedem as sonhadas, fabulosas” (estrofe 11), ainda que possam ter sido verdadeiros os relatos das antigas epopeias. Vasco da Gama é o/um novo Eneias e os homens como os “Doze de Inglaterra” são heróis que fizeram história pela vida que tiveram. Pede então ao rei que também deixe sua singular marca na história, por terra e por mar. Finaliza a Dedicatória com o convite ao rei que acompanhe a aventura dos argonautas, já navegando no “largo oceano”.

Com os viajantes em alto-mar tem início a Narração, o que também era regra da poesia clássica. De força singular como imagem, em meio às “inquietas ondas”, essa estrofe (19) abre caminho ao Concílio dos deuses no Olimpo (estrofe 20). Eles debatem sobre o futuro das terras do Oriente. Há, aqui, a apresentação dos deuses sob o comando de Júpiter, que discursa. Em tom grave, fala aos deuses presentes e defende os intentos da “forte gente” lusa, recorda feitos passados, vitórias e fama destes. Procura convencê-los de que essa gente “perdida e trabalhada” já merece ver a terra que busca e determina serem

acolhidos na Costa Africana. Baco, entrando na trama, discorda32,

31 Conforme notas, “O Poeta pede a D. Sebastião que atente no simbolismo do seu

escudo real: recordam, com os castelos, as vitórias da Reconquista; com as quinas, as chagas de Cristo crucificado, que apareceu aos portugueses, na véspera da Batalha de Ourique, prometendo-lhes a vitória.” (AMORA, 1980, p. 31). 32 O poeta precisou resolver a questão de Baco e suas interferências contrárias à

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porque teme o esquecimento de sua cultura. Vênus intervém e não concorda com Baco. Gosta dos navegantes, lembra sua amada Roma antiga e a língua, que se aproxima da latina. Enquanto a discussão se avoluma, as parcas continuam a tecer destinos. Marte se levanta para dar seu parecer sobre os fatos e também defende os navegantes. Para Marte, Baco não precisa temer, por ser amigo de Luso. Aqui, uma referência possível às duas culturas que podem ser complementares. Solicita a Júpiter que envie Mercúrio à Terra. Júpiter consente e encerra o Concílio (estrofes 20 a 41).

O foco da narração volta ao mar e aos argonautas, agora passando por Madagascar. Sol ardente, ventos sem perigo e novas ilhas pelo caminho. A presença, agora, do personagem de Vasco da Gama, como “forte capitão, altivo coração” (estrofe 44). Nas estrofes seguintes, chegam à Ilha de Moçambique. A gente da Ilha e suas embarcações, a cor, as vestes, os cantos, a cultura pagã estabelecida e a cristã que procura se estabelecer. Contatos, perguntas e respostas de ambas as partes. O encontro das culturas (estrofe 53) traz a resposta dos nativos quanto às suas origens: religião de Maomé, descendentes de Abraão, que também navegaram e aportaram nesta ilha. O líder se oferece para acompanhar a viagem e pede que Gama conheça o Regente.

Anoitece. A madrugada de vigília e a beleza noturna transparece (estrofe 58) nos olhos dos marinheiros acordados. Continuam as festas. No dia seguinte, presentes e admirações recíprocas. Mas o mouro, inspirado por Baco, quer ver as armas e os preceitos que guiam os navegantes. Vasco da Gama responde ser da Europa e a Lei é de Jesus Cristo. As armas são apresentadas, advertido o mouro que melhor “como amigo” (estrofe 66). O mouro atento finge sorrisos, dissimula seu descontentamento e segue com os navegantes. Baco, do etéreo, observa e reflete (estrofe 73). Ele vai intervir, na pele de um velho

realização dos desejos dos lusos na viagem porque, para as interpretações antigas, Luso era filho de Baco. O poema, modelado pela Antiguidade Clássica e, por isso, com

intervenções favoráveis e contrárias dos deuses da mitologia, apresenta Baco como o deus que se opõe ferrenhamente, tendo seus procedimentos justificados pela inveja dos nautas, invasores de suas conquistas. Como solução do impasse, José Maria Rodrigues analisa que “Camões resolveu o problema, aproveitando as divergências dos intérpretes para fazer de Luso, segundo as circunstâncias o requeriam, ora ‘filho ou companheiro’ de Baco, ora ‘filho e companheiro’ deste, ora seu privado, ora apenas

vassalo.” (RODRIGUES, 1931, p. 65).

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e sábio mouro, e espalhar que os novos conquistadores são ladrões, saqueadores, destruidores, “cristãos sanguinolentos” (estrofe 79). O velho toma as devidas providências para uma cilada aos portugueses (estrofe 83). Vasco da Gama, desconfiado, trava batalha com a gente nativa e a imagem/descrição de tourada é metáfora da guerra estabelecida. Os mouros são derrotados e pedem a paz, os lusos se sentem traídos e voltam ao mar (estrofe 95).

Os argonautas retomam a viagem com um piloto acolhido. Os deuses e o maravilhoso pagão voltam à cena, mar adentro. No barco, o perigo sempre rondando. O mouro piloto, por ensinamento de Baco, fala de uma ilha cristã por perto e o capitão pede que o leve a esse destino. É Quíloa, maior em poder e forças que Moçambique, mas a interferência de Vênus que assistia a tudo do “alto” desvia a frota dos seus prediletos com a força dos ventos. Mombaça se aproxima. Vênus continua velando, Baco já avisara ao rei de Mombaça dos visitantes e sucedem traições e falsidades novamente. Ao fim do Canto Primeiro, a reflexão do poeta/narrador às inseguranças e perigos da vida. Em versos que exprimem perplexidade e desalento na procura pelo desconhecido, ele pontua as aspirações tão grandes dos homens, no interior de “um bicho da terra tão pequeno”.

CANTO SEGUNDO

Ao anoitecer são acolhidos em Mombaça, por um

mensageiro com falsas promessas do rei. O narrador chama de “infiéis” a essa gente, enquanto os lusíadas, para ele, têm o sinal divino. O mensageiro oferece o merecido descanso, especiarias e pedras preciosas. Confirma que a terra tem a crença cristã, mentira que convence o capitão. Vasco da Gama agradece, mas só vai atracar pela manhã, e envia dois mensageiros com presentes ao rei (estrofe 8). Baco, “com rosto humano e hábito fingido”, mostra-se cristão e constrói um altar numa casa da cidade, onde os dois mensageiros visitam. Na tensão das forças entre o paganismo e o cristianismo, o narrador explicita que “o falso deus adora o verdadeiro” (estrofe 12). A farsa convence e a cilada é preparada.

Em outra interferência de Vênus e as nereidas, o mar torna-se violento e a tempestade faz os mouros e o piloto fugirem. Vasco

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da Gama, atento, percebe a manobra e agradece ao que chama de milagre. Segue-se um discurso à Divina Providência, em piedade da “gente peregrina”. Vênus o ouve e volta ao Olimpo. No seu caminho, a descrição da deusa do Amor, o sistema Ptolomaico, a Mitologia antiga e o perigo dos desejos se desfiam nas palavras precisas do poema. Vênus encontra Júpiter, confessa que foi infeliz e que ele faça como Baco determina. Júpiter, comovido e em longo discurso, afirma que vai proteger os ilustres marinheiros. Irão edificar fortalezas e cidades, por eles serão dadas leis melhores na Terra. Terão Goa e todo o oceano será obediente à brava gente, por esforços mais que humanos (estrofe 55).

Ao fim do enunciado, o narrador/poeta retoma o foco e informa a chegada de Mercúrio a Melinde, a mando de Júpiter. Gama dorme e Mercúrio, assumindo a estória, lhe aparece em sonhos, o aconselha a fugir e aponta novo caminho. O capitão acorda e obedece o aviso/presságio. Levantam âncoras (estrofe 65). O sol anuncia o início da primavera. No domingo de Páscoa, quando “Cristo terminou sua missão na Terra”, as naus chegam a Melinde. A chegada, agora com acolhimento amigo e festas dessa vez sem falsidades, faz alusão ao novo nascimento, depois de todos os perigos da jornada, e acentua a conotação do mito do cristianismo, aos nobres cavaleiros medievais e aos ideais da Távola Redonda (estrofe 76).

Agora, nas palavras do embaixador/mensageiro, os navegantes não são mercenários que roubam e matam. Pede respeito e louvor aos bravos marinheiros e a seu rei. O canto se encerra com o rei de Melinde, em missão de paz e festejos a bordo da nau do Gama, e o pedido acerca da origem, das histórias e das conquistas dos portugueses nas suas aventuras pelo mar. Na boca do rei, o poeta reforça o que propõe no início do poema. A Musa Antiga é louvada, mas os feitos de agora “não menos é trabalho ilustre e duro” (estrofe 112).

CANTO TERCEIRO O narrador pede a Calíope, musa antiga, que inspire o

Gama a contar os feitos passados ao rei de Melinde. O capitão inicia a fala dividindo o discurso histórico. Primeiramente, a Terra, para chegar a Portugal e sua história. Em segundo lugar, a guerra

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(estrofe 5). Com relação à Terra, descreve o espaço geográfico, os povos habitantes da Europa e a divisa com o Oriente. Rios, mares, cadeias de montanhas, o sol que rareia, neve e o rei dos ventos, Éolo, sempre presente, isso tudo para situar o Pólo Norte pelo mapa de Ptolomeu (estrofe 8). Entremeadas às descrições, faz alusões à tradição bíblica. O poema caminha pela Turquia, Grécia se destaca “não menos por armas, que por letras”, atravessa Itália e Inglaterra, e escala os montes Pirineus franceses até chegar à “cabeça de Europa toda”, a “nobre Espanha” (estrofe 17). No “quase cume da cabeça” acena Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa”. O poeta, aqui, aponta para a união de Baco e Luso nos primórdios de sua história: Luso “de Baco antigo filho, parece, ou companheiros” (estrofe 21).

A história do reino lusitano começa, desde os tempos mitológicos de Luso a Viriato. A primeira dinastia portuguesa, sua fundação nacional com a doação do condado português a D. Henrique, Conde de Borgonha, por Afonso VI, rei de Castela. Teresa, filha do rei espanhol, e o Conde casam e nasce um filho, Afonso Henriques, o primeiro monarca português (estrofe 26). Camões introduz e entrelaça Jerusalém, por conta da conquista de D. Henrique, o batismo de Jesus por São João Batista e a Primeira Cruzada cristã comandada por Godofredo de Bulhão. Quando D. Henrique morre, Teresa prepara-se para casar novamente e deixa o filho, D. Afonso Henriques, sem herança. Alusões à mitologia primitiva mostra a história se repetir e reforça a ideia de que os mitos são estórias arquetípicas que simbolizam histórias humanas de sempre. Guerras se sucedem e Afonso Henriques desponta vencedor, com Egas Moniz, leal vassalo, em destaque. O valor da lealdade de um homem, nesta passagem, adornado por referências às memórias de outros exemplos primitivos, adquire grandeza à altura dos ideais da cavalaria. Nas guerras, somente a confiança em Deus para o exército lusitano, “que tão pouco era o povo bautizado, que, pera um só, cem mouros haveria” (estrofe 43). Mulheres sarracenas, aludindo às amazonas troianas, estão ao lado dos reis mouros em combate aos portugueses.

Na Batalha de Ourique, o advento do milagre: Jesus Cristo aparece a D. Afonso Henriques. Este, inflamado pela visão e Fé, “assi gritava: aos infiéis, Senhor, aos infiéis, e não a mi, que creio

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o que podeis!” (estrofe 45).33 O milagre, forte na formação da consciência coletiva portuguesa, é preparado rigorosamente pelos elementos épicos: o Rei na batalha e as forças desproporcionais do seu exército em muito menor número que o inimigo.34

A simbologia dos cinco reis vencidos pelo grande rei e seu parco exército de valorosos homens de combate é representada pelos cinco escudos azuis pintados, as cinco quinas do escudo nacional português. A alusão aos textos bíblicos, agora referindo-se a Judas e o tema da traição, continua: “e nestes cinco escudos pinta os trinta dinheiros por que Deus fora vendido” (estrofe 54). Após a façanha, o rei consegue reaver muitas terras, e Lisboa é homenageada como sendo fundada por Ulisses. Os feitos de D. Afonso são acima do general romano Pompeu. Com D. Dinis, o reino próspero “florece em constituições, leis e costumes” (estrofe 76). Dinis funda a Universidade de Coimbra em 1290. D. Afonso IV, seu filho e sucessor, é vitorioso e herói da Batalha do Salado. Esta batalha introduz no poema a personagem de sua filha, a “fermosíssima” Maria, que solicita ajuda ao pai para lutar contra os Mouros. Estes querem invadir Castela, na Espanha, reinado de Afonso XI, seu genro. O episódio apresenta a figura feminina com sua força delicadamente convincente e estabelece, com versos sublimes e destacados dentro da obra, uma interferência na narrativa. Essa mudança de plano compara a invocação de Maria – e o reforça – à semelhança de Vênus, quando se dirige ao seu pai Júpiter em nova referência à Eneida de Virgílio, passagem que procura levantar a questão da piedade.

É a passagem para a introdução do episódio lírico de Inês de Castro, belo e trágico, da epopeia (estrofes 118 a 135). Na

33 O poema parece sugerir relações entre a Ordem de Cristo e os antigos Cavaleiros

da Ordem do Templo. A primeira é tida como uma versão portuguesa dos segundos, que a antecederam. As relações destes versos do épico com os escritos da Divisa dos Cavaleiros Templários são indícios de aproximação e semelhança: “Não por nós, Senhor, não por nós, mas para que teu nome tenha a glória.” Tradução do latim “Non

nobis, Domine, non nobis, sed Nomini Tuo ad Gloriam.” (D’AREIA, s/d, p. 16). 34 Thiers Martins Moreira aponta que “não se discute a famosa e cruenta tese da veracidade do milagre. É volumosa, apaixonada e brilhante sua literatura. O fato

incorporou-se, porém, à história portuguesa desde a Crônica Gothorum e daí transbordou para o inconsciente coletivo com a realidade dos juízos independentes de comprovação. O seu valor poético e emocional será maior que o seu valor

documentário, mas a realidade documental não é sempre a que dá a própria existência histórica dos povos: na formação do fundo histórico português o milagre de Ourique é tão real como a tomada de Ceuta, ou a existência da Escola de Sagres no meio dia dos

descobrimentos.” (MOREIRA, 1974, p. 64).

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morte de Inês de Castro, dama castelhana e amante do futuro rei D. Pedro I em circunstâncias que procuram evocar efeitos contrastantes de terror e piedade, as unidades de ação, tempo e espaço e a morte da personagem principal evidenciam os elementos trágicos clássicos. O poeta diferencia, nesta tragédia familiar, o “amor” do “Amor”. No primeiro termo, denuncia e culpa a essa “força crua” a quem os corações humanos são escravos. No termo seguinte, alçado à divindade com A maiúsculo, reporta a rituais pagãos milenares. O Amor, “áspero e tirano”, vive de se “banhar em sangue humano” em seu altar de sacrifícios. Camões traz à tona, ainda, outros sentimentos como o ódio e a indignação. Habilmente, procura a simpatia e cumplicidade do leitor aos protagonistas amantes e a reprovação indignada aos opositores do romance, o rei D. Afonso IV e seus conselheiros. Porém, a culpa recai sobre estes últimos e as leis do Estado, sendo o rei poupado e posto em situação mais branda por suas obrigações para com a soberania da nação.

Motivos políticos fizeram o enredo desse episódio, e o poeta deixou de lado detalhes e pormenores do poder para se deter principalmente nos amantes e sua paixão, tendo o Estado como elemento proibitivo do fato e a ação vingativa do príncipe D. Pedro na perseguição e morte dos conselheiros. A tragédia tem início quando o príncipe D. Pedro casa-se com D. Constança, dama castelhana. Esta vem acompanhada de outras damas para a corte portuguesa, e Inês de Castro era uma delas. Sua beleza encanta o príncipe, que trata de montar palácio para ela em Coimbra, e com a qual teve três filhos. A rainha Constança morreu precocemente e havia rumores de que D. Pedro se casara com Inês em segredo. Isso inquietou setores da nobreza, preocupados com a possível futura rainha e a segurança nacional, motivo justificado para fazer cumprir a ordem de assassinato. Na presença do rei, ela pede piedade, suplica ser enviada para longe, e por fim se oferece ao sacrifício, “paciente e mansa”. O poeta busca na mitologia a imagem poderosa para descrever o impacto da cena da morte de Inês (estrofe 133).35 Sucede a vingança de

35 ‘“Bem poderás, ó sol, da vista destes,/ Teus raios apartar aquele dia,/ Como da seva

mesa de Tiestes,/ Quando os filhos pó mão de Atreu comia! ’. Atreu, rei de Mecenas, querendo vingar-se do irmão Tiestes, que o havia traído com a esposa, matou os filhos que resultaram dessa união e ofereceu-lhes em banquete. O Sol, segundo a tradição,

retrocedeu de pavor diante da horrível cena.” (MOISÉS, 1980, p. 147).

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D. Pedro, que aos algozes de Inês mandou que fossem retirados os corações em praça pública. A história afirma existir o sepultamento de Inês, sem mais detalhes. Outra versão idealizada do fato, da qual Camões toma partido, descreve um desfile religioso com as devidas pompas circunstanciais e a coroação do cadáver de Inês por D. Pedro, com a nobreza sendo obrigada a lhe beijar a mão. O relevo que o poeta dá ao episódio, em detrimento das razões políticas embora sem esquecê-las, tem o intuito de revestir a personagem do espírito trágico que acompanha os casos sublimes de amores clássicos da literatura.

CANTO QUARTO

Vasco da Gama segue sequência narrativa da História de

Portugal ao rei de Melinde. Com a subida ao trono de Joane, Mestre de Avis, herdeiro bastardo de Pedro que será o futuro D. João I e tido como sinal de mão divina, inicia-se a segunda dinastia portuguesa. Apesar de a narrativa atentar para a detalhada sequência da vida pública, as manobras políticas do reino e seus protagonistas, as questões privadas não são esquecidas pelo poeta. As características e comportamentos na esfera individual das personagens, as relações amorosas ilícitas e os rumores que rondam os corredores da Corte preenchem o discurso poético.

Com destaque para a sangrenta e vitoriosa Batalha de Aljubarrota, Joane é comparado a Sansão. As discordâncias e a falta de lealdade em relação a ele têm comparação ao episódio em que Pedro nega Cristo. Nesta batalha o grande herói é Nuno Álvares Pereira, fiel aos ideais pátrios. Em longo discurso em defesa de Portugal, sua retórica convincente estimula o povo a pegar nas armas e defender-se. Animados, entre símbolos nos escudos, palavras e figuras, “arma-se cada um como convinha; outros fazem vestidos de mil cores, com letras e tenções de seus amores.” (estrofe 22). Dom Nuno é alçado à linhagem de Átila, rei dos hunos. Seu exército é também valorado, pois de número muito menor do que as tropas castelhanas inimigas. Estas deixam o campo de batalha maldizendo quem inventou a guerra, que leva à morte tantos homens. Os apoios mútuos e a cumplicidade de D. João I com Nuno Álvares e os soldados deixam pegadas evidentes dos ideais de cavalaria. A narrativa volta ao mar, em pleno movimento dos ventos no Estreito de Gibraltar, norte da África. D.

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João I é o primeiro rei a lançar-se fora do território português, contra Ceuta. Após sucessão de personagens no trono, D. João II é também o primeiro a enviar mensageiros ao Oriente, como o faz agora Vasco da Gama. As viagens atravessaram territórios europeus e africanos e chegaram às Índias. Dificuldades e desafios da aventura não permitiram aos mensageiros voltar à pátria.

O longo relato histórico de Gama chega ao presente reinado de D. Manuel. O sonho deste, fato importante dentro do poema, é a visão que levará ao descobrimento marítimo das Índias. D. Manuel não esquece a obrigação herdada dos antepassados. Dorme e “Morfeu em várias formas lhe aparece.” (estrofe 68). No sonho, subia alto até à Lua e via os outros mundos, gente estranha, Oriente, o Himalaia, os rios Ganges e Indo, como dois velhos homens dignos de respeito. Camões volta a utilizar fartas referências mitológicas. D. Manuel conta o ocorrido aos nobres do Conselho e confia a Vasco da Gama a chefia da Esquadra. Em resposta ao relato, o rei de Melinde interfere no poema e enaltece a coragem e o risco das conquistas. O poeta alça às alturas a aventura e tece comparação aos doze trabalhos de Hércules. Juntam-se a Vasco seu irmão Paulo da Gama e Nicolau Coelho, capitães das outras naus e seus argonautas, referindo-se à viagem de Jasão e o Velocino de ouro, outra história clássica.

Tem início a narração da Partida das Naus do Porto de Lisboa, episódio fundamental do poema, que traz a personagem do Velho do Restelo. Outros e importantes personagens povoam a cena. Na praia, olhos de dor e descontentamento. Os nautas se aproximam dos navios, enquanto as mulheres choram de desespero e medo. Tantas mães aos filhos, esposas aos maridos, velhos e crianças, que “a branca area as lágrimas banhavam, que em multidão co elas se igualavam.” (estrofe 92). Vasco determina sair sem as despedidas costumeiras. Entra em cena o “Velho, d’aspeito venerando”, voz forte e dissonante, oposta às vaidades e aos valores da “glória de mandar” e da “vã cubiça”. (estrofe 95). Para ele, a Fama e a Glória enganam o ignorante e o gosto da honra é uma fraude. Conclui que Prometeu roubou o fogo dos céus para dar vida aos homens, mas estes usam esta chama de modo enganoso, e a força se perde em guerras e mortes. Restelo é a praia de Lisboa de onde as caravelas saíram para a grande viagem, onde hoje estão a Torre de Belém e o Mosteiro dos

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Jerônimos. Essa experiência de um novo caminho trazia em seu íntimo

a mistura de coragem e medo, ousadia e dúvida, em um tempo que ainda se acreditava estar o fim do mundo na linha do horizonte. Antes disso, para ir ao Extremo Oriente os caminhos seguiam por mar, o Mediterrâneo, e por terra, via Oriente Médio. Estes caminhos estavam sob domínio dos árabes, de costumes medievalizantes e ofereciam parcas vantagens aos portugueses, daí a aventura do novo, do conhecimento e do lucro, condizentes com o espírito renascentista. As naus que compunham a armada eram São Gabriel, de Vasco da Gama; São Rafael, de Paulo da Gama; Bérrio, de Nicolau Coelho; e ainda uma quarta para transportar alimentos. A Partida das Naus, com os seus simbólicos sentimentos íntimos do povo – português e por consequência universal, dadas as circunstâncias sempre temerosas de uma despedida em qualquer tempo e lugar – representados por aquelas personagens, mostra o cisma dos corações humanos sempre que se empreende tal tipo de desafio. É sempre uma separação, e divide quem fica e quem parte.

Com o discurso do Velho do Restelo, parece ser o coração do próprio poeta dividido entre a força da exaltação da guerra, a coragem e o entusiasmo pelo imprevisível e seu lado oposto, que vê com clara consciência que a ambição e o progresso é também desastroso e deixa marcas doloridas e contraditórias ao ideário humanista. Da mesma forma – e aí a força e a atualidade do poema –, a vaidade do rei pode ser a de qualquer pessoa, comunidade ou governo nos tempos de hoje, quando embalados pelas ilusões de conquista. O inspirado sonho de D. Manuel pode ter sido apenas uma boa manobra capaz de influenciar o clero na sua vontade camuflada de catequizar os não cristãos, de aumentar as rendas e os benefícios para a Igreja, sempre na trindade Deus – Rei – Ouro. Fica evidente uma profunda reflexão no cerne da obra, propositadamente pensada por Camões, como um aviso aos navegantes. Se os mitos nos auxiliam a seguir os impulsos da criação e da vontade, não se deve obedecê-los cega e absolutamente. O preço a pagar é alto, acompanha toda nova criação ou mudança e estar atento e consciente parece ser o conselho. Esse comportamento reflexivo e de cunho ético moralista também é característica das epopeias clássicas, uma espécie de Coro grego comentando os fatos como um terceiro olho

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que vê e nos alerta. Ainda assim, segue a “humana geração” a cumprir seu destino, na procura de transcender o que está dado como definitivo. “Mísera sorte! Estranha condição!” (estrofe 104).

CANTO QUINTO As naus deixam Lisboa. Aos olhos, agora, mar, céu e o

desconhecido. Deixam a terra, o rio, a serra e o coração, nas palavras de Vasco da Gama seguindo seu discurso ao rei de Melinde. “Abrindo aqueles mares”, o percurso geográfico descreve a Ilha da Madeira, terras africanas e seus antigos povos nômades. Passam o Trópico de Câncer, o rio Senegal e Gâmbia, comércio do ouro. Cabo Verde, os povos negros, as Ilhas Canárias. Alusões

mitológicas se entrelaçam às terras descobertas36 e seguem

viagem, atravessando a Linha do Equador, o Pólo Norte e a descoberta da constelação do Cruzeiro do Sul. Corre o “irado Éolo” (estrofe 15), rei dos ventos e tempestades, e seguem os “rudos marinheiros” ao sabor do mar. Aparece o Fogo de Santelmo e a Tromba Marinha, fenômenos metereológicos vivamente testemunhados, a natureza e seus segredos e a influência dos astros e do zodíaco na vida humana. A riqueza das imagens descritas deixa evidências da atenta observação direta pelos lugares, povos, costumes, acontecimentos terrenos e fenômenos naturais, o interesse científico e investigador das propostas renascentistas de expansão do conhecimento. Avistam terras, descem âncoras. Voltam a navegar, “já cinco sóis eram passados” (estrofe 37) e os ventos a favor quando certa noite uma nuvem escura aparece na rota ao sul do Continente Africano.

Tem início o episódio do Gigante Adamastor, narrativa que trata dos perigos da travessia de embarcações nessa parte do continente, uma referência geográfica de nome alterado posteriormente para Cabo da Boa Esperança. A figura assustadora que é descrita no poema lembra o Colosso de Rodes, lembrança comparativa do poeta à estátua de Apolo e à Grécia

36 Na descrição do poeta há muitas víboras nas ilhas Dórcadas: “‘As Dórcadas passamos, povoadas das irmãs que outro tempo ali viviam’. Dórcadas: referência

provável ao Arquipélado de Bijagós. Na Mitologia, ilhas lendárias habitadas pelas irmãs Górgonas, filhas de Fórcis: Medusa, Euríale e Esteno. Referência a Medusa, degolada por Perseu, que levou a cabeça para a Líbia. Das gotas de sangue que caíam no

deserto nasciam serpentes.” (PINTO, 1980, p. 190).

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Antiga. O contraste entre a tranquilidade e o perigo aparece na abertura. No núcleo da ação, a personagem “de disforme e grandíssima estatura” (estrofe 39) fala aos nautas e seu discurso

se divide entre amargas profecias a futuros navegantes37 e a

narração de sua própria estória. Os aspectos épico e lírico novamente se entrelaçam. Entre os diferentes sentidos da fala de Adamastor, há a interrupção de Vasco, que procura saber quem ele é. Como fechamento do episódio, Adamastor chora e desaparece, convertido em montanha rochosa.

A alegoria cumpre importante papel simbólico na exaltação da coragem, dos perigos e dos mistérios do mar. Para a época, o Cabo das Tormentas era considerado um dos misteriosos pontos

do Planeta, limite entre a Terra e o abismo.38 Adamastor diz ser

um dos titãs que buscaram tirar Júpiter do trono, foi capitão do mar. Quis enfrentar o Oceano, para assim conseguir o amor da ninfa Tétis. A paixão amorosa e suas consequências aqui novamente aparecem, recorrências na obra do poeta, dado a mergulhos na aventura do amor e do mar: “Todas as deusas desprezei do Céu, / Só por amar das águas a princesa” (estrofe 52). Tétis encontra-se com Adamastor e o faz abraçar uma rocha em lugar de seu corpo. O castigo a ele e seu atrevimento foi efetivado pelos deuses. Camões utiliza a linguagem de maneira a realçar por contrastes justapostos os heroísmos eufóricos nacionais e os sentimentos subjetivos diante das decepções amorosas.

Passados os fatos, os marinheiros ancoram na terra em que foi transformado Adamastor. Mais adiante, os nativos etíopes da Baía de Santa Helena recebem – e bem – os marinheiros, e as mulheres negras cantam ao som de flautas pastoris. Os navegantes encontram o Ilhéu de Santa Cruz, na Linha do

37 Acidentes marítimos que aconteceram após a viagem de Vasco da Gama. As profecias fazem referências às tempestades violentas nesse local, como a que atingiu

a esquadra de Pedro Álvares Cabral em 1500, depois de ter “descoberto” o Brasil, quando se dirigia para a Índia. Bartolomeu Dias foi o primeiro capitão a atingir o Cabo, em 1488. Mais tarde, procurou repetir a façanha acompanhando a esquadra de Cabral

e naufragou na travessia. Outros naufrágios e personagens históricos ver BRITO, Bernardo Gomes de. (compilação). História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda

Editores: Contraponto Editora, 1998. 38 Conforme Ivan Teixeira, “Nenhum geógrafo da Antiguidade registrara sua existência:

Ptolomeu, célebre astrônomo egípcio do século II d. C.; Pompônio Mela, geógrafo latino do século I; Estrabão, geógrafo da antiga Grécia; Plínio, naturalista latino do século I.”

(TEIXEIRA, 2008, p. 216).

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Equador. Fernão Martins entende e traduz a língua árabe. A tripulação se alegra com as novas notícias, mas o contraste vem em seguida, com as feridas causadas pelo escorbuto – doença causada pela dieta alimentar deficiente de vitaminas –, que leva à morte muitos marinheiros. O relato menciona ainda Moçambique e Mombaça e chega ao fim a narração do Gama, quando chega no “seguro porto” de Melinde. A força retórica da ideia pronunciada pelo poeta no início do épico se repete e é reforçada, agora, através da voz do Gama: “A verdade que eu conto, nua e pura/Vence toda a grandíloqua escriptura!” (estrofe 89). Ao fim do Canto, depois de conselhos e máximas sobre os louvores, feitos

bélicos e versos39, o poeta lamenta os contemporâneos e a pouca valoração da poesia e das letras por estes. Sem as conhecer, não se pode ter juízo de valor nem apreciação.

CANTO SEXTO O rei pagão, governador de Melinde, festeja com os

navegantes. Há, aqui, a celebração dos costumes pagãos e cristãos, que firmam relações de amizade. Voltam ao mar com novo guia colocado à disposição pelo rei, para a direção certa no caminho da Índia, que se aproxima. Novo corte para o plano da mitologia. Os deuses novamente em ação. Baco desce do Olimpo em direção ao mar, domínio de Netuno. Baco solicita a Netuno que reúna todos os deuses. Tritão se encarrega de chamá-los e sucede as descrições dos deuses, o desfile destes e o tumulto das recepções, até que o silêncio se estabelece para ouvir o que Baco tem a dizer. As perguntas de Baco vêm acompanhadas de acusações de “descuido” em relação aos “humanos, fracos e atrevidos” (estrofe 28), e tal ousadia possibilita que “venham deuses a ser, e nós, humanos” (estrofe 29). Seu discurso, inflamado pelo medo da perda do poder conquistado, pede reação imediata: que Éolo acabe com os navegantes.

No fundo do mar os ânimos se agitam, enquanto a narrativa volta à superfície e ao plano da viagem humana, com as naus em viagem e a calmaria dos ventos. Os marinheiros contam histórias para espantar o tédio e o cansaço. Fernão Veloso inicia a fábula

39 “Alexandre Magno, da Macedônia, não apreciava tanto os feitos guerreiros e Aquiles (protagonista da Ilíada), como os versos harmoniosos de Homero.” (PINTO, 1980, p.

218).

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dos “Doze de Inglaterra”, episódio que novamente traz à tona os ideais cavalheirescos. Nele, outros feitos coletivos coroados de êxito e ocorridos no reinado de D. João I, e que curiosamente têm lugar na corte inglesa em discórdia entre “nobres cortesãos” e “damas gentis”. Os nobres conclamam a quem queira defender a causa das damas e estas pedem socorro. Ninguém se dispõe. Elas se dirigem ao Duque de Alencastro, antigo aliado de D. João I e conhecedor da fama dos lusos. Ele as aconselha a escrever cartas a doze “fortes”, que ele nomeia, um para cada dama. Em Porto, os doze se apresentam devidamente paramentados. Todos valorosos e nobres de Portugal, de onde se destaca Magriço. Este fala do desejo de viajar, mas pede aos companheiros que possa seguir sozinho, por terra, peregrinando solitário por “terras estranhas” (estrofe 54), para os encontrar na Inglaterra. Os outros seguem por mar.

No prazo marcado, o confronto se anuncia com as devidas roupagens rituais de um duelo. Os homens armam-se e as damas vestem-se de cores, ouro e sedas. Magriço não chega, e a “sua” dama se veste de luto. No exato momento do início do espetáculo ao rei e sua corte, dá-se a entrada triunfal de Magriço e, claro, a vitória dos portugueses. O tom de defesa aos padrões éticos e aos sentimentos humanitários é a tônica do episódio, e o poeta, na voz de Veloso, deixa transparecer a grandiosidade e a empostação de tal gesto, embora não se utilize de adornos fantásticos,

característica das canções cavalheirescas.40 Também tem relevo o fato de, novamente, não se tratar de gente “comum” e sim de supostos guerreiros preparados, aptos e com qualidades superiores para missões elevadas.

O relato é interrompido por violenta tempestade que avaria duas naus. Vasco da Gama vê um fim próximo e pede auxílio à Divina Providência. Alusões à mitologia grega e pedido forte de proteção com referências bíblicas do Mar Vermelho, Noé e o

40 Os cavaleiros, em sua emancipação demorada dos domínios culturais da Igreja e das estruturas sociais da Alta Idade Média, possuíam estilos distintos: enquanto os

menestréis se dedicavam às canções épicas, os trovadores cantavam poemas líricos. Existiam também os goliardos e seus cantos. Eram cultos, porém de vidas errantes e irregulares. Aos goliardos se atribuem os versos dos Carmina Burana, bilíngues. As

poesias narrativas dos cavaleiros eram influenciadas pelas sagas dos Cavaleiros do Graal e da Távola Redonda, entre outras. Nessas poesias a realidade era suprimida, enquanto enunciavam e celebravam os ideais da vida cavalheiresca. Nos ideais, estão

mesclados os valores mundanos e os valores divinos.

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dilúvio. Esta é o resultado do pedido de Baco no concílio marinho e os ventos só perdem força pela intervenção de Vênus, quando começa a amanhecer. Avistam Calecut, a Índia tão almejada, e Vasco dá graças a Deus. Camões volta a reafirmar os valores que alicerçam os que se lançam à (s) viagem (ns), que tanto solicitam trabalho e temores, agora como metáfora de todo esforço aplicado a algo novo a ser criado. Aos bravos, que não ficam na dependência de se apoiar nas glórias alheias dos antecessores e buscam suas próprias obras. Pare ele, um guerreiro sabe diferenciar virtude justa e dura às honras e dinheiro, e o entendimento da experiência amplia a percepção das relações humanas.

CANTO SÉTIMO Chegam à Índia, terra desejada. O poeta se refere ao povo

muçulmano como “povo imundo” (estrofe 2), e não escapa a ele também as outras religiões ocidentais. Em oposição aos elogios reiterados ao cristianismo dos portugueses, o discurso critica Lutero e sua doutrina nova na Alemanha; a Igreja Anglicana na Inglaterra; os gauleses e os italianos “em vícios mil”, esquecidos do seu “valor antigo” (estrofe 8), referindo-se à Antiga Roma. Convoca os cristãos a fortalecer união mútua para proteção contra o inimigo, aparente referência aos cismas dentro dos poderes da Igreja Cristã. Aportam em Calicut, litoral indiano. Descrições geográficas e os diversos povos e tradições que habitam a Índia são destacados. Um mensageiro da tripulação de Vasco, João Martins, parte para contato com o Samorim, o imperador muçulmano. Sua chegada chama a atenção do povo, entre os quais encontra-se o mouro Monçaide, conhecedor da língua ibérica por nascer na África do Norte. Implícitas referências à importância dos tradutores de então. Da conversa entre Monçaide e João Martins, os portugueses recebem as boas-vindas. Monçaide informa que o imperador não está na cidade e tece esclarecimentos sobre a forte religião muçulmana e a cidade de Calicut, nobre e rica em seu comércio e os costumes locais. Os homens seguem para o encontro com o rei. O capitão segue numa liteira, costume usado.

As hierarquias são explícitas: o Catual, governador do lugar, e Vasco da Gama na liteira. Monçaide traduz os seus diálogos. A

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comitiva restante segue a pé. Compõe escalão importante, porém abaixo do capitão. O povo não opina, somente acompanha confuso. Ao chegar no “sumptuoso templo” (estrofe 46), o poema descreve as esculturas de divindades mitológicas e híbridas na entrada do lugar. As figuras exibem simbologias pagãs, há bandeiras da “Grécia gloriosas” (estrofe 54) e as representações pictóricas da história da Índia são descritas e interpretadas por Camões. Em seu discurso ao rei, Gama explica que D. Manuel I, um rei distante, quer vínculos de amizade. Solicita alianças de paz e de comércio. Efetiva-se a proposta de aliança, acompanhada de um pedido de resposta. A resolução, segundo o rei, será do Conselho e aconselha os nautas a descansar da viagem. O Catual tem por ordem saber dessa gente estrangeira. De onde vêm, os costumes, leis, terras. Manda chamar Monçaide. Este informa que sabe pouco além de ser “gente lá de Espanha” (estrofe 68). Povo de lei cristã e evidente valor das armas. Seus esforços e virtudes incomuns traçaram conquistas nas guerras e em viagens aventurosas. Por fim, Monçaide diz ao Catual para que vá aos barcos dos portugueses.

Paulo da Gama recebe o governador e comitiva. Os olhos destes se demoram a observar nas pinturas os singulares feitos dos homens. Ao final do canto, há brusca interrupção da narrativa histórica, que dá lugar às queixas do poeta. O desvio lírico, subjetivo, traz Camões sozinho, louco e inseguro. Sem as ninfas, segue por caminhos tortuosos. Suplica por auxílio, pois navega “Por alto mar, com vento tão contrário” (estrofe 78), calamidades e naufrágios, “Qual Cânace, que à morte se condena,/ Nûa mão

sempre a espada e noutra a pena” (estrofe 79).41 Na atual e lamentável situação, o poeta invoca às ninfas e a Apolo, deus da poesia, que lhe deem amparo e dobrem a inspiração concedida desde o início da tarefa.

CANTO OITAVO A narrativa volta às naus atracadas na Índia. Descreve o

discurso de Paulo da Gama às perguntas do Catual, em longa

41 Conforme as notas, Camões estabelece relação entre seu fado e a Mitologia: “Cânace: filha de Éolo, secretamente casada com o irmão, Macareu. Vem representada com uma espada (com que se suicidou) e uma pequena pena (com que escreveu a

carta de despedida para seu marido).” (SÁFADY, 1980, p. 281).

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sequência descritiva que enaltece os bravos e destemidos, suas famas e obras. Reitera Luso, filho e companheiro de Baco, alude à mitologia e mostra Viriato, traído por Roma e Sertório, general romano. D. Afonso Henriques é destacado e seu relevo traz novamente à tona a renovação do canto antigo, ideia defendida e recorrente ao longo do poema. Aqui, a ideia se desloca a D. Henriques em relação aos romanos. No início, era o poeta em relação à poesia da Antiguidade Clássica. Outros nomes de importância destacada são citados. Camões, na fala de Paulo da Gama, deixa claro sua aversão a vaidades e gostos “dos viciosos sucessores” (estrofe 39) que se desviam dos valores recebidos. Pais ilustres são cegos quando deixam filhos nas ociosidades, que são corruptoras. Há outros grandes também, que não vêm de berço nobre. De todos, segundo o poeta, muito poucos são retratados para a história.

Anoitece e os nobres hindus se recolhem à terra. A narração se desloca aos sacerdotes, que entendem a visita dos nautas como mau agouro, motivo para Baco entrar novamente na trama. Em sonhos, aparece a um sacerdote. O muçulmano, perturbado, convoca os outros e na discussão os portugueses são apontados como piratas. Enquanto isso, Vasco da Gama pensa só. Ele é um descobridor do Oriente e lhe cabe levar ao rei D. Manuel I os sinais de suas descobertas. O Samorim, já informado por seus conselheiros – que, na visão do narrador, corruptos e sem querer perder privilégios –, convoca Vasco da Gama e pede que fale a verdade. Para ele, palavras de navegantes errantes não são o bastante, e exige presentes à altura de “grandes reinos poderosos” (estrofe 62). Temor e cobiça se entrelaçam, e acrescenta que, sendo os nautas desterrados, serão acolhidos, pois “toda a terra é pátria pera o forte” (estrofe 63), ideal das fraternidades peregrinas que transcendem fronteiras e bandeiras nacionais, que Camões insere pela fala da personagem do rei hindu. Vasco assume o discurso e se defende. O rei aceita as suas palavras e julga os conselhos recebidos enganosos. Aí tem início as promessas de trocas de fazendas e mercadorias trazidas nas naus por especiarias. Porém, o Catual, sem que o rei saiba, cria embaraços e atrasa a concessão para que Gama volte à nau. Vasco escreve a Paulo que lhe mande fazenda, como resgate. Álvaro e Diogo trazem a fazenda, por ela Gama é solto, mas os dois ficam.

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Camões retoma a narração e reflete sobre o poder e o interesse do dinheiro, desde os mitos antigos. O ouro, na sua concepção, faz “falsos os amigos”, “corrompe virginais purezas” e “deprava às vezes as ciências, os juízos cegando e as consciências” (estrofe 98). O dinheiro faz e desfaz os textos das leis, torna os reis tiranos, corrompe e ilude sacerdotes, ainda que todos esses exibam aparentes virtudes. Camões parece tecer, rigorosamente ao longo do poema, julgamento ético moral fortemente arraigado, características idealistas estas que o fazem escolher poucos e determinados reis e religiosos para exaltação heróica guerreira em detrimento de outros tantos, também personagens da sua epopeia moderna.

CANTO NONO O propósito do Catual é atrasar a viagem dos portugueses.

Visa a destruição e morte destes por naus indianas da rota mediterrânea que estão para chegar. Por intervenção divina, Monçaide – que posteriormente se converte ao cristianismo – avisa Vasco da Gama da trama e do perigo. Os dois feitores são presos em terra. Gama prende os que comerciavam nas naus. O rei fica a par do que acontece pelas famílias dos ricos indianos presos nas naus. Samorim liberta os lusos, com sua fazenda, pede desculpas ao Gama e trocam reféns. Os nautas retomam a viagem de regresso, a missão de chegar às Índias foi efetivada. Levam consigo riquezas, especiarias e escravos. Rumo ao Cabo da Boa Esperança, em direção a Lisboa “Pera contar a peregrina e rara navegação, os vários céus e gentes” (estrofe 17), outra vez no mar incerto.

A narrativa muda de plano e volta aos deuses. Vênus pretende dar trégua aos lusitanos pelos trabalhos alcançados. Tem início o episódio da Ilha dos Amores. As ninfas cheias de amor e desejo esperam os portugueses. Aqui, outro corte brusco. Da Ilha e dos mitos pagãos, o discurso narrativo é assumido pelo poeta, que critica os aduladores do poder e do rei, aludindo a D. Sebastião e sua corte “Simulando justiça e integridade” (estrofe 28). Sua crítica é contundente aos ministros da religião e aos homens de Estado. De volta aos amores, suas delícias e agruras que Cupido faz, Camões não chega a responsabilizar este e sim sua mãe, Vênus. Esta é que inicia discurso ao filho, pedindo

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repouso e prêmio aos nautas no mesmo mar temeroso. A Ilha dos Amores fica “nas entranhas do mar profundo” (estrofe 40), que tem sentindo conotativo de estar submersa no fundo do mar, porém está no meio do oceano, profundo pela infinitude do olhar. A “ilha namorada” (estrofe 51) é móvel em uma estrofe (52), levada por Vênus; e imóvel na estrofe seguinte (53), quando as naus se aproximam e a avistam.

A descrição do paraíso terrestre com flores, frutos, pássaros e detalhes mil antecede a chegada dos “segundos Argonautas”,

alusão aos Gregos de Argo e suas explorações marítimas.42 Estes

descem à terra e enxergam cores, não de flores “mas da lã fina e seda diferente, que mais incita a força dos amores.” (estrofe 68). As ninfas se fazem desejadas por ordem de Vênus. Veloso, personagem vinculado aos raros tons irônicos do poema, reaparece e comenta sobre a floresta e suas ninfas, fantásticas ou verdadeiras.

Mais ao final do Canto, Tétis assume o discurso e se aproxima de Vasco da Gama para lhe revelar, no alto do monte, os segredos da Terra, a “unida esfera” (estrofe 86). Camões, retomando a palavra, faz uma síntese da esperança e da idealização de todos os esforços humanos quando canalizados por objetivos honrados. Pelo trabalho ousado dos feitos grandes “O mundo está guardando o prêmio lá no fim, bem merecido” (estrofe 88). Afirma que os deuses de outrora “Todos foram de fraca carne humana” (estrofe 91), divinos porque esforçados ao extremo e aconselha aos que procuram suplantar os próprios limites a estarem atentos às armadilhas da cobiça e da ambição e

a despertarem do sono do ócio43, em relação direta do poeta com o leitor. Parece dizer mais da condição humana dos personagens (e ele se inclui) do que conquistas a territórios inimigos. A alegoria privilegia as essências e coloca as aparências em plano secundário. Dessa forma, também deixa evidências de uma busca

espiritual44, em meio às atividades cotidianas e mundanas e a

42 Os argonautas, no poema, remetem ao mito do Velocino de Ouro, no qual Jasão

empreende viagem e o navio é batizado de Argo. Seu casco era mágico. Os Argonautas eram a tripulação comandada por Jasão. 43 “Por isso, ó vós que as famas estimais,/ Se quiserdes no mundo ser tamanhos,/

Despertais já do sono do ócio ignavo,/ Que o ânimo, de livre, faz escravo.” (CAMÕES, 1980, p. 349). 44 Fernando Pessoa, em Mensagem, procura por uma Índia diferente, significativa para

um mergulho interior, espiritual. Pessoa ousa cantar o fim do Império Português,

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guerras entre conquistadores e conquistados. Esse reconhecimento ambiciona chegar ao coração do homem e é maior que qualquer mérito conquistado perante reis ou conselhos de nobres, embora estes sejam também importantes se conquistados por merecimento.

CANTO DÉCIMO Ao anoitecer, os casais todos sobem ao monte e os nautas

são agraciados por um banquete por Tétis e as ninfas. O poeta invoca novamente a Musa Calíope e pede forças no “trabalho extremo”, que precisa ser terminado. O narrador reassume a história e passa a destacar, pela voz da ninfa, um discurso profético que discorre sobre o futuro e glórias das outras navegações vindouras, dentre elas Pedro Álvares Cabral. Outros

e novos conflitos, com destaque para Duarte Pacheco45, herói promovido a um novo Vasco da Gama, que supera também gregos e romanos, digno de ajuda – se invocada – dos “celestes coros” que lhe darão “esforço, força, ardil e coração” (estrofe 20). A ninfa baixa a voz e entristece quando canta a ingratidão do rei com os trabalhos de Pacheco.

Camões nunca exalta um rei injusto – dentro da sua idealização de justiça – e também os poderes eclesiásticos não ficam isentos da sua crítica. Os mitos são evocados para lembrar que discursos eloquentes valem mais que lutas e ganham os prêmios imerecidos, o que reforça seu apoio aos novos guerreiros: “não os dão a sábios cavaleiros, dão-nos logo a avarentos lisonjeiros” (estrofe 24). Em banhos de sangue será a conquista

enquanto Camões ousou cantar seu início. O futuro, acreditava Pessoa, estava além

da questão material. Em Camões, prevalece a virilidade para realizar no plano físico, terreno, o aperfeiçoamento do Ser. Em Pessoa, predomina a revelação de sentidos simbólicos dos mistérios, em naus construídas dentro de sonhos. Mas Pessoa, dentro da sua poesia e fora daquele tempo, pergunta se valeram a pena as “lágrimas de

Portugal” eternizadas por Camões e responde: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. (PESSOA, 1989, p. 221). Para aprofundamentos ver PESSOA, Fernando. Mensagem. In: O guardador de rebanhos e outros poemas. Seleção e introdução de

Massaud Moisés. Editora Cultrix: São Paulo, 1989. 45 Pacheco, que chegou antes que Cabral ao Brasil, conforme hoje se tem melhor conhecimento: “Não foi por certo em 1498, quando Vasco da Gama já estava na Índia,

que Duarte Pacheco aproou a primeira vez ao Brasil. E que não foi devido ao acaso o descobrimento efectuado por Cabral é o que é lícito inferir da viagem de mais de duas mil milhas que ele efectuou ao longo da costa da América do Sul.” (RODRIGUES, 1931,

p. 45-46).

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de Goa. Afonso de Albuquerque e Lopo Soares de Albergaria se sobressaem, este último conquista Taprobana. Diogo Lopes de Sequeira e Duarte de Meneses, antecessor de Vasco da Gama, depois será conde na Índia. A morte de Vasco também é profecia

da ninfa.46

Entre guerras em terra e mar, o longo relato dos nomes ilustres futuros têm sequência no poema até o fim do discurso público de Tétis. Quando esta se dirige apenas ao Gama, o leva ainda mais para o alto, aconselha a ser “firme e forte, com prudência”, e “o guia por um mato árduo, difícil, duro a humano trato” (estrofe 76), metáfora dos obstáculos que surgem no caminho da aquisição do conhecimento e saber humanos. No cume aparece um globo no ar, a superfície da Terra, em formato reduzido e Tétis oferece ao Gama a Máquina do Mundo: o cosmos organizado e seus planetas, dentro de uma concepção geocêntrica do universo, atribuída a Ptolomeu. Essa teoria afirmava que a Terra era o centro do universo, e por ela giravam

todos os outros planetas, incluindo o Sol.47 “Etérea e elemental”, junção de céus, terra, água, ar e fogo, é cercada por Deus, “mas o que é Deus, ninguém o entende, que a tanto o engenho humano não se estende” (estrofe 80). A afirmação da ninfa persiste em nossos dias...

Tétis passa por constelações de estrelas, o Sol, os planetas e chega à Terra. Nela, retoma toda a geografia dos continentes e evidencia São Tomé. No Camboja, a deusa alude ao naufrágio que o poeta sofreu e, reza a lenda, salvou a nado os cantos molhados. Refere-se, ainda, aos mitos e seus deuses como ornamentos artísticos imaginários que cumprem a função de dar sentido e beleza às licenças poéticas. Ao fim de seu relato, os nautas partem da ilha em retorno a Lisboa. Camões retoma a narração ainda uma vez para encerrar o poema. Com voz cansada, lamenta à Musa a incompreensão da “gente surda e endurecida” (estrofe 145). Solicita ao rei que tenha em alta estima os cavaleiros, que impulsionam a Fé e o Império, e que ouça seus

46 “Gama, na qualidade de vice-rei, poucos dias esteve, pois a morte o surpreendeu, destruindo com isso suas ilusões.” (SPINA, 1980, p. 369). 47 A obra de relevo à época, Sphera, de Sacrobosco, serviu de estudos para Camões e sua poesia. Pedro Nunes traduziu para o português e chamou de Tratado da Sphera,

obra reconhecida em seu tempo. Copérnico e a teoria heliocêntrica só aparecem mais

tarde, também com Galileu Galilei e a polêmica com a Igreja e sua Santa Inquisição.

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conselhos.48 As elegâncias filosóficas, para ele, não substituem a

arte da luta. Esta só se aprende sem fugir do campo de batalha.

48“Tomai conselho só de experimentados, que viram largos anos, largos meses”, pois

“Não se aprende, Senhor, na fantasia, sonhando, imaginando ou estudando, senão

vendo, tratando e pelejando.” (CAMÕES, p. 401-402).

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1.6 O discurso poético e o legado histórico

O episódio da Ilha dos Amores, que inicia no Canto Nono e se prolonga para o Canto Décimo, traça um paralelismo interessante: ao lado de considerações esotéricas relativas aos duros caminhos para se obter sabedoria e conhecimento superior, histórico e cosmogônico, as práticas sensuais e amorosas de amor livre e pagão entre as ninfas e os marinheiros são provocativas e heréticas em relação às doutrinas católicas. Esse amor pagão celebrado é também forma de realçar os mundanos prazeres sob jugo do pensamento moralizante católico, com clara preferência e defesa aos primeiros.

Os episódios que compõe Os Lusíadas, ainda que com seus personagens entrelaçados e presentes que os perpassam dentro da trama preparada para tal, subdividem-se: são mitológicos e simbólicos; bélicos; líricos; naturalistas e há, ainda, um cavalheiresco. Esses episódios estão distribuídos entre planos temáticos. O Plano do Poeta, onde o autor tece opiniões e considerações a respeito dos desafios impostos ao homem na Terra e a necessidade de enfrentá-los, a importância do saber e das letras, as lamentações sobre o ofício e sobre o poder atribuído ao dinheiro – quando motivo de traições corruptas –, os valores das glórias e honrarias, e a apologia às expansões territoriais, tendo como pano de fundo a busca do conhecimento; O Plano da Viagem, em que acontecimentos entre a partida das naus de Lisboa, a chegada a Calecut e o retorno a Lisboa são narrados; O Plano da História de Portugal, anterior e posterior – sob a forma de profecias – à viagem de Vasco da Gama; e, ainda, o Plano da Mitologia, que possibilita a ação dos personagens históricos, movidos por forças divinas representadas pelos deuses. Este último plano apresenta o espírito da tradição pagã, presente nos poemas épicos herdados literariamente.

Como representações dos episódios mitológicos estão os dois concílios dos deuses – no Olimpo e no mar. Os naturalistas são representados pelo Fogo de Santelmo e pela Tromba Marítima. O episódio cavalheiresco aparece no conto Os doze de Inglaterra. Os que tratam das experiências bélicas são as batalhas de Ourique, do Salado e de Aljubarrota. O Velho do Restelo, o Gigante Adamastor e a Ilha dos Amores são simbólicos e, ainda, a Despedida das naus na praia do Restelo, a Fermosíssima Maria

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e a morte de Inês de Castro como episódios de viés lírico. A viagem das palavras é realçada ao grau máximo por

Camões, que se utiliza de inúmeras figuras de linguagem para seu intento. No plano histórico, o preço a pagar pela aventura foi alto. Os dados reais do fim desta viagem pelo mar apontam que três navios chegaram a Calicut. Um foi queimado. Não houve concretamente acordos com o Samorim e, no retorno, outro navio não resistiu às condições e também foi queimado. Após ultrapassar o Cabo das Tormentas, as duas caravelas que restaram perderam-se de vista e prosseguiram viagem em direções diferentes. Nicolau Coelho conseguiu chegar em Cascais e Vasco da Gama precisou aportar a sua nau na Ilha Terceira, onde Paulo da Gama faleceu. Outra caravela auxiliou Vasco, que chegou em Lisboa quase dois meses depois de Coelho. A aventura de dois anos levou consigo 93 homens dos 148 que embarcaram. Mas, evidentemente e valendo-se de meios poéticos fundados na imaginação fértil e no trabalho infinito e rigoroso com as palavras, Camões eterniza a poesia como instrumento artístico

para glorificar os homens.49 Os discursos poéticos e os históricos têm seus pontos de

convergência e de divergência. Muito do que se esconde por trás das palavras, em obra de tal porte e distanciada pelo tempo por tantos anos, fica por se decifrar. Os encontros sempre foram confrontos de culturas, o que significa também derramamento de sangue e destruição de tantas delas.50 O sigilo que cercava as

49 Nas palavras de Ivan Teixeira, Camões julga a poesia “uma necessidade político-cultural, porque consiste no meio mais adequado para a cristalização dos modelos de

conduta guerreira, moral e política dos grandes homens. Pela crença da época, havia homens cujo comportamento devia ser imitado pelos cidadãos comuns. Mas, para que tais homens se tornassem modelos, deveriam antes ser transpostos para o universo

ideal da arte, convertidos em arquétipos e, depois, dados à contemplação social .” (TEIXEIRA, 2008, p. 314-315). 50 Em síntese notável, António Borges Coelho escreve que “a expressão encontro de culturas, encontro real, permite aplacar as consciências sensíveis, mas o encontro

envolveu sempre confronto e também destruição de culturas. [...] Na expansão portuguesa houve de tudo um pouco: descobrimentos, em absoluto, e não apenas para os europeus, de novas terras, novos mares, novas estrelas, como diria Pedro Nunes,

e viagens de descobrimento; evangelização com mão armada e também com martírio e novos métodos linguísticos; transfega e troca de riquezas, de ideias, de técnicas, de animais e de plantas; guerra e paz armada com violência extrema de todas as partes;

fome de honra; coragem para além do que pode a força humana; altruísmo, sacrifício; antropofagia no limite e recusa dela; troca de cerimônias, de vocábulos; confronto de culturas. [...] Na expansão europeia, iniciada com os portugueses no século XV, a que

abre os mares do universo, os navios são o veículo, a casa, a fortaleza, o templo, a

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documentações e procurava proteger as descobertas marítimas e as construções das caravelas dos espiões de toda a Europa que convergiam para Lisboa não poderia ser ínfimo. Os mapas, mais completos e cada vez com mais anotações dos nautas portugueses – que também buscavam colher informações de outros construtores – eram moeda valiosa.51

Outro exemplo – e daí muito do que se diz da Escola de Sagres e de D. Henrique, o Navegador, e seus estudiosos de várias nacionalidades – é posto em xeque, exatamente pelas escassas documentações, embora existam.52 Como o poema, muita informação histórica é cercada de hermetismos cifrados. As caravelas eram pequenos barcos, se comparados a naus chinesas que cruzavam aqueles mares, mas eram instrumentos rápidos e próprios para exploração do mar Atlântico, além, é claro, de serem navios de guerra.53 Os bombardeiros ganhavam melhores salários do que os pilotos, sinal claro da função e importância.54Estudos aprofundados, com o tempo, alteraram os formatos das velas. Quadradas, redondas ou triangulares, tudo pensado para exercerem funções diferenciadas em contato com os ventos e até

oficina, a tenda e o armazém das mercadorias e da pólvora, o tronco dos escravos, o

porta-navios, o caixão.” (COELHO, A. B., 2001, p. 88 a 90). 51 Segundo José Maria Rodrigues, “Foi tal o segredo que se guardou a respeito do caminho e do destino da expedição do Gama, que em Veneza só dela se soube, por

via do Egito e com muitas inexactidões, quando os portugueses já estavam na Índia.” (RODRIGUES, 1931, p. 43). 52 Sobre a questão, são pertinentes as informações de Mário Domingues: “Um dos

problemas que mais preocupou D. Henrique, logo desde as primeiras navegações no Atlântico, foi a criação de um tipo de embarcação adaptável a este oceano. As velhas barcas – as barchas – que se empregavam na navegação costeira e que se

aventuravam até a Flandres e o Tamisa, acusavam deficiências; e, quando D. Pedro, nos estaleiros de Sua Senhoria do Adriático, tomava notas minuciosas da tonelagem, mastreação e velame das caravelas venezianas em construção, colhia elementos,

subsídios preciosos para facilitar os trabalhos de D. Henrique.” (DOMINGUES, 1965, p. 301 e 302). 53 Paulo Miceli apresenta duas explicações para a origem etimológica da palavra caravela. Ele parte de Henrique Lopes de Mendonça (Estudos sobre navios

portugueses nos séculos XV e XVI. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1892), para quem a palavra “deriva de caravo, palavra que, através do arábico, teria vindo do latim (carabus) ou do grego (karabos)”. Caravo teria evoluído para caravela.

Miceli também apresenta a explicação de João da Gama Lobo Pimentel Barata, citada em “A caravela – Breve estudo geral”, in Stvdia. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical – Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1987), para

quem o termo deriva de karabos (lagosta), usado pelos gregos para caracterizar um modelo antigo de embarcações. (MICELI, 2008, p. 70). 54 “Primeiros anos do século XVII: Mestre: 740$000. Bombardeiro: 880$000. (FALCÃO

apud MICELI, 2008, p. 104).

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contra eles55, para soprarem a favor e sempre em frente. Os Lusíadas, apesar de ser um poema porta-voz da fé

católica que solicita expansão, traz em seu núcleo central a mitologia greco-romana e a cultura pagã. Camões escreveu um épico humano e histórico. A epopeia arcaica reúne mito e história. O herói primitivo necessariamente é uma figura semilendária, para dizer o mínimo. Exige a presença e interferência dos deuses no plano das ações humanas. Na concepção de Camões, a interferência continua, porém a tônica é sobre a história feita por homens de carne e osso, na busca da superação de suas limitações. Para isso, há uma inversão de papéis: Os homens são decididos, impassíveis e firmes, o que seria o papel dos deuses. Estes é que são movidos por contradições e sentimentos humanos como paixões, ciúme, ódio, crueldade, dúvida, grandeza e miséria. Nas figuras dos deuses, Camões mostra os limites e os riscos a que a espécie humana, em busca de realizar as suas potencialidades, está exposta. A poesia épica, para ele, possuía um alto valor, uma espécie de conduta ética para a vida, expressão do ser coletivo. Por isso, de forma paradoxal e criativa, critica os desmandos, as injustiças e a decadência dos feitos do

homem moderno.56

Nessas corrosivas críticas, é possível esboçar no poeta traços característicos de um caráter pouco submisso a, pelo menos, parte das figuras importantes da corte e do clero, mas

55 “Em 1441, recomeçaram no Atlântico as viagens de estudo, chamemo-lhes assim. A primeira, capitaneada pelo jovem Antão Golçalves, levava uma missão específica: trazer do rio do Ouro óleo e pele de lobos marinhos; a segunda, comandada por Nuno

Tristão, cavaleiro de comprovada valentia, devia cumprir uma das ordens prediletas do Infante: ultrapassar o mais possível o último ponto Sul da Costa da África até então atingido. Mas a embarcação deste último era diferente de todas as que, até essa data,

haviam sulcado os mares, e ao seu modelo dera-se o nome de caravela. Não se parecia com a caravela veneziana nem com a mourisca [...] o mais ligeiro, o mais manejável e o mais belo navio que se veria então. [...] Com suas velas triangulares, que lhes permitiam aproveitar a mais leve aragem que soprasse de qualquer quadrante,

navegavam rapidamente à bolina, isto é, contra o vento, o que representava uma vantagem enorme sobre todas as outras embarcações.” (DOMINGUES, Idem, p. 302). 56 A crítica do Poeta tem relação direta com o amadurecimento de sua experiência.

Carolina Michaëlis de Vasconcellos escreve a respeito: “A elaboração completa estende-se portanto por cinco lustros: de 1544 (ou 1545) a 1570. Principiada com ímpeto juvenil, quando tudo parecia sorrir ao apaixonado e genial fidalgo – cavaleiro e

quando o sol da pátria estava perto do seu apogeu, a epopeia foi adiantada de vagar, após graves estudos e duras experiências, e só saiu à luz quando a velhice batia à porta, e as provas de decadência do país haviam multiplicado.” (VASCONCELLOS,

1931, p. 21).

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parece ser bem visto por alguns deles, muito influentes ou, diga-se de passagem, totalmente imprescindíveis para a liberação do poema: o Rei D. Sebastião e o Censor do Santo Ofício, Frei Bartolomeu Ferreira. Isso pode se estender também à ausência, na obra de Camões, dos procedimentos e outros textos usualmente utilizados que acompanham as obras nas edições da época.57 A edição da obra aparece num contexto ímpar, alheio às praxes literárias, e ainda hoje permanecem insolúveis as questões sobre as edições Princeps, de 1572, onde o pano de fundo da discórdia orbita em torno da pergunta: qual é a versão original?

À primeira vista, esse é um canto de guerra em defesa dos desbravadores, um elogio aos conquistadores. Aos que empreendem aventuras em busca de conquistas humanas, desafiando os perigos da Natureza e as Leis (con) Sagradas por crenças atavicamente enraizadas no imaginário coletivo em detrimento dos que têm suas terras conquistadas e devastadas. E, de fato, não há como negar isso. Porém, parece guardar em seu baú – feito tesouro antigo – um possível fundo falso. Em lugar da discussão dialética entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o Deus cristão e os deuses pagãos, o poema – próprio da herança renascentista e admitindo ser esta um conjunto de ideias e valores culturais presentes desde épocas remotas que atravessam o tempo – parece ser escrito para uma parcela de pessoas que partilham da mesma sede de conhecimento. O caráter da coletividade é realçado e não o da individualidade, embora de uma coletividade de pessoas com forte individualidade.

Assim, para os que carregam em si semelhantes fomes de saber e de conhecer para desvendar a “Máquina do Mundo”, o poema serve de fonte alentadora, exatamente como na função das

57 Sheila Moura Hue, a esse respeito, escreve: “Como nasce, editorialmente, um mito?

[...] Os mistérios sobre a 1. Edição de Os Lusíadas são diretamente proporcionais a um determinado tipo de silêncio que cerca, materialmente, o livro. [...] A edição Princeps

do primeiro poema épico português sai sem os habituais e então prestigiosos textos preliminares (epístola dedicatória, prólogos, poemas laudatórios), mas, do ponto de vista das instituições – Santa Inquisição e Paço –, vem bem defendido e privilegiado,

denotando uma excelente recepção por parte das instâncias oficiais então fundamentais para a publicação das obras. E o fato de Os Lusíadas terem sido impressos, em 1572, com todos os seus deuses gentios e lascivas ninfas, em tempos

de ortodoxia tridentina, também revela um comportamento excepcional por parte dos censores: os preconceitos sobre o caráter pecaminoso da mitologia grega parecem ter-se dobrado diante da obra de vanguarda que souberam então, ver nela.” (HUE, 2003,

p. 118 a 134).

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lendas na mitologia antiga. Contrariamente às manobras políticas estratégicas e obscuras da parcela esmagadora dos representantes de poderes instituídos em quaisquer tempo e nações, o poeta e seu canto transcendem as questões maniqueístas, se vistos com olhar mais atento e aprofundado. Se é verdade a máxima de que há dois tipos de pessoas: as que assistem os acontecimentos da arquibancada e as que encaram os desafios na passarela, o poema é um elogio às bravuras dos que abandonam suas zonas de conforto. Desse modo, o aperfeiçoamento do homem é o que se estabelece como farol luminoso no conjunto desse épico de Camões, ainda que esse brilho clownesco na face sorridente e idealista venha acompanhado de borrões na maquiagem, desfeita pelo suor e o cansaço. Estes sabem da outra parte que chora.

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2 DAS POÉTICAS CÊNICAS CONTEMPORÂNEAS E SEUS VIAJANTES

2.1 Esclarecimentos de Bordo

As poéticas cênicas contemporâneas não cabem mais nas molduras do quadro histórico. Elas sopram um vento dinâmico nas embarcações teatrais e performáticas e procuram pelas frestas, deslizam, escapam, abrem outras cavidades, profanam para falar desse tempo de hoje ou do ontem à maneira de agora. Nessa reinvenção ou abertura de novos caminhos – os quais se bifurcam e cada divisão da rota leva a outros cruzamentos – criadores têm gerado uma infinidade de novas possibilidades espetaculares. O fazer teatral e tudo o que implica esse complexo sistema de relações exige, cada vez mais, que as análises extrapolem os limites da efemeridade de uma ação cênica. E para onde?

Olhar para uma peça de teatro significa adentrar um mundo pleno de significações imagéticas. E não só. Essa imagem em movimento, sua forma, ideia e conteúdo, associada a sons ou silêncios, a clarões ou penumbras propositadamente consentidos e com sentidos explícitos ou não, solicita ao observador estender-se a outros campos perceptivos e estudar mais a fundo as temáticas, os significados e significantes, a iconografia, a

iconologia.58 Estender-se à feitura do processo – ainda que com

depoimentos das memórias dos envolvidos – faz emergir daí contextos de uma época, registros artísticos de um autor, de um encenador, de um ator, de um cenógrafo, enfim, da arte do teatro. O teatro que não está à margem do cotidiano, está nas relações

58 Diferencial importante apontado por Erwin Panofski (2007, p. 53), estudioso das artes plásticas, sobre os registros fotográficos de cenas teatrais, em que o autor argumenta ser a iconologia a ampliação da iconografia, sendo esta a descrição e classificação das imagens. Essa ampliação enriquece a descrição com métodos críticos, históricos e/ou psicológicos. “A descoberta e interpretação desses valores ‘simbólicos’ (que, muitas vezes, são desconhecidos pelo próprio artista e podem, até, diferir enfaticamente do que ele conscientemente tentou expressar) é o objeto do que se poderia designar por

‘iconologia’ em oposição a ‘iconografia’.” Evelyn Furquim Werneck Lima (2009, p. 70), em artigo publicado, aponta que “A iconologia facilitou as análises da cena teatral nos anos 1940, mas era insuficiente para julgar as décadas posteriores, quando se

acentuam os estudos sociológicos sobre as classes menos favorecidas, sintetizam-se e espacializam-se os cenários e aumenta a liberdade do diretor em relação ao texto original. Esses fatos induziram a estabelecer, paralelamente à análise iconológica,

também uma análise semiológica da cena congelada.”

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sociais, pensa o mítico e o contemporâneo, expressa e reflete os sinais – vitais ou não – desse tempo de agora e as existências humanas nesse perpetuum mobile. Tendo sempre trânsito livre

entre as dimensões do real e do ilusório59 – que se entrelaçam e

tecem partituras paralelas que dialogam –, a “mentira” cênica se desvela e aponta outros espelhos da vida, no meio dela(s). Essa figura refletida apresenta formas de muitos matizes: naturalistas, caricaturais, farsescos, simbólicos, alegóricos, de sentidos e propósitos os mais diversos. Isso tudo gera um interesse crescente em se documentar e registrar espetáculos, interpretados à luz desses registros ícono-semiológicos, e essa ebulição é claramente notada pelo crescente volume de trabalhos dedicados ao tema nas pesquisas atuais.

Essa complexidade de formas e a amplitude de possibilidades que se apresentam neste quadro-cenário teatral contemporâneo torna cautelosa – talvez o melhor termo seja impossível – qualquer definição que se queira ou se pretenda única. Nesse caos, criativo ou não, Pareyson (1989, p. 29) ainda pode ser lembrado: “As definições mais conhecidas da arte, recorrentes na história do pensamento, podem ser reduzidas a três: ora a arte é concebida como um fazer, ora como um conhecer, ora como um exprimir.” Essas ideias, contraditórias e/ou complementares, continuam a ecoar. Imbricado pelos processos do conhecer, do fazer e do exprimir, este estudo de três espetáculos teatrais contemporâneos sobre uma mesma obra poética clássica aponta aspectos extrínsecos e intrínsecos das representações, na procura por sentidos que dialoguem com os novos contextos à época de suas realizações. Pensar em espetáculos teatrais implica ampliar objetos de estudo, os quais se tornam um campo interrelacional de pesquisa. A observação de Pavis, pontual para este processo de pesquisa, distingue a análise da reconstituição de um espetáculo: “o analista assistiu à

59 Pareyson, quando discorre sobre as seculares questões sobre forma e conteúdo, argumenta que “Se a arte tem uma dimensão significativa e espiritual, aliando-se com

outros valores em conúbio inseparável, e alcança ter também finalidade e funções não artísticas mas sempre inscritas na vida espiritual do homem, isto é porque ela contém a vida de onde emerge. E aquilo por que a arte se distingue das outras atividades é a

elaboração destes conteúdos; não tanto o ‘quê’ mas antes o ‘como’, isto é, precisamente, a forma, como quer que esta seja entendida: o estado final e conclusivo da arte, a elegância da representação ou da expressão, a perfeição da imagem, o êxito

do processo artístico, a autosuficiência da obra”. (PAREYSON, 1989, p. 23).

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representação, obteve dela uma experiência viva e concreta, enquanto o historiador se esforça em reconstituir espetáculos a partir de documentos e testemunhos.” (PAVIS, 2008, p. 19).

Todos os sentidos do espectador são convocados à atenção e à concentração apurada e simultânea quando presentes a um espetáculo teatral. Esse contato chega por vias físicas e psíquicas, pelo consciente e o inconsciente, e tem nuances de sabor definidas somente pela qualidade da experiência íntima do espectador que estabeleceu vínculos com o evento cênico. Se este mesmo espectador assistir ao mesmo espetáculo em outro dia, com a mesma avidez concentrada, são possíveis outras impressões a respeito do mesmo fato. Se uma terceira vez acontecer, e seu estado de ânimo esteja alterado e interferir, será outra a “qualidade” da “mesma” experiência. Nesse caso, esse conhecimento adquirido é próprio de quem partilhou da experiência e passível de determinadas opiniões que podem diferenciar das estudadas por alguém que não assistiu à peça, mas que entrou em contato posterior com documentos relativos à mesma.

Patrice Pavis considera deformante a reconstituição do ato teatral – e antes dele e com ele essa é uma opinião comum no meio artístico teatral –, pois que ela fica refém de materiais substitutos, resíduos da cena viva que não conseguem captar o todo da experiência vivenciada do ato. Porém, na mesma reflexão, adverte que a análise da experiência vivida também pode sofrer deformações. Sobre a questão, frisa que “é preciso distinguir com cuidado o que é da ordem das intenções ou das declarações dos artistas e o que é o resultado artístico, o produto final entregue ao público, o único que deveria reter nossa atenção” (PAVIS, 2008, p. 16), e em seguida esclarece que, ainda assim, não exclui a reconstituição histórica de suas análises, mas antes a coloca depois da experiência do confronto direto do espectador.

A reconstituição da cena pode se dar por outra gama de impressões e interpretações. É possível aqui a diferenciação das funções semânticas, a produzir sentidos mais literais e lógicos de comunicados artísticos; e as funções estéticas, mais profundas e com outros códigos sobrepostos às primeiras funções, sem responsabilizar-se com hierarquias de valor de uma sobre a outra. Desse modo, Epstein (1986, p. 35) sugere que “a ambiguidade e a auto-reflexibilidade parecem então ser características do

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fenômeno estético.”60 Os estudos da história cênica estão

imbuídos também de processos perceptivos e imaginativos que geram novos olhares e perspectivas sobre o objeto – agora estático – de estudo, porque se debruça a observá-lo por mais tempo, dedica seu sentido de observação mais detalhada sem o crivo do tempo reduzido em função do ritmo e do movimento cênico.

Dessa maneira, essa releitura dos elementos que compõe o fenômeno espetacular teatral, afastada do calor de uma apresentação e longe da presença humana em quaisquer espaços teatrais convencionados ou não, pode acrescentar outras interpretações a respeito de sua composição, o que amplia e enriquece discussões sobre a sua poética. A cena estática, ao permitir outros entendimentos do mesmo fato, se consolida como outras formas possíveis de conhecimento e olhar artístico. O teatro, assim, continua sendo de quem o assiste. Mas o trabalho documental crítico e reflexivo da arte da encenação – ou dos discursos sobre a encenação –, por outros prismas, aponta ser o teatro também de quem o revisita.

60 Para Epstein (1986, p. 34), “Os signos utilizados na ciência têm uma acentuada função semântica, uma vez que devem ser enunciáveis, traduzíveis e devem preparar o cientista para a ação, isto é, a observação ou experimentação. Devem ser unívocos.

Os signos das obras de arte, por sua vez, não demandam respostas ativas dirigidas a objetivos explícitos, apenas preparam estados. Além disso, podem ser interpretados plurivocamente.” O autor pontua ainda uma citação de Moles, pertinente a essa

reflexão: “Numa peça de teatro, o argumento, a ação, a história contada pertencem à informação semântica, bem como as estruturas gramaticais e as implicitações lógicas. O desempenho dos atores, o calor da voz, a expressão, a riqueza da encenação,

pertencem à informação estética.” (MOLES apud EPSTEIN, 1986, p. 36).

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2.2 O texto e a encenação teatral: duas naus, um destino

O dialogismo entre os termos “texto” e “encenação” e a autonomia de ambos é destacado e transparece nos estudos das três encenações. A investigação opta, desse modo, pela relação interativa entre os dois polos. As peculiaridades existentes entre o texto teatral e a sua representação ocupam considerável parcela de estudos nos campos da literatura e do teatro, não é uma discussão recente e nem pretende ser demasiado explorada aqui. Tratar dos abismos e dos relevos existentes entre essas práticas é sempre árdua tarefa e as respostas dessa fusão apresentam muitos matizes. A discussão é saudável e fecunda, se levada a termo e mediada por um equilíbrio flexível. Para Anne Ubersfeld, os privilégios metodológicos dos estudos do texto e das práticas teatrais devem dialogar, “haja vista a relação existente, e que devemos elucidar, entre os signos textuais e os signos da representação” (UBERSFELD, 2005, p. 13), ainda que sua tendência seja mais apoiada na visão textocentrista.

Um texto de teatro, com toda a sutileza sígnica que comporta um mundo de sentidos no interior das palavras ditas, é um texto para ser levado à cena. Esse diálogo cênico pode acontecer de tantas distintas maneiras, de ator para ator e/ou de um ator para o público direta ou indiretamente, que um simples silêncio – tão exaustivamente ensaiado para abarcar toda uma complexidade requerida no tal momento pelo encenador – expressa todo aquele mundo de sentidos presente já na obra literária, mas que necessariamente se reveste/traveste de outros meios para a sua expressão e comunicação vital. O texto, não estando ali no momento da representação, não deixa de estar, como se percebe, mas a qualidade da cena é buscada na relação humana e por outros meios, próprios e autônomos, da encenação. A oposição texto-representação apresenta como entrave a prática que dá privilégio ao texto e que, por consequência, entende a representação como mera tradução e expressão literária.

No outro polo dessas práticas, atitudes comuns atualmente encontradas recusam o texto teatral para as vias de uma encenação. O texto é abolido em parte ou totalmente e assim deixa de exercer influência, considerada nesse caso como indesejada, em processos de investigação coletiva. Aqui se pode dizer do texto teatral, mas também de fragmentos literários de

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contos e romances que, adaptados, servem de base para breves cenas, muito difundidos e com resultados práticos convincentes como exercícios cênicos na preparação de atores. Não obstante, estes também não são primeiramente evocados para a criação de uma cena. Antes, são esboços provocativos para levantamentos de cenas esparsas, uma espécie de inspiração em que o jogo cênico entre os atores é marcadamente colocado em relevância e segue por outros caminhos, enquanto que o texto inicialmente utilizado não mais oferece subsídios e pode ser descartado. Muitas vezes, a escolha coletiva de um tema, uma frase dita, um objeto a ser manipulado, servem de pontos de partida. As interrogações surgidas a respeito da obra a ser criada é pressuposto primeiro para escolhas técnicas e estéticas de um encenador, de um autor, de um ator. Cabe lembrar, também, que tais práticas não são absolutamente fruto da contemporaneidade, e podem ser antes uma volta cíclica a práticas longínquas, agora somadas às inovações atuais. Conforme Pavis, o texto como elemento hierárquico superior “prévio e fixo que o palco teria como missão servir ou ilustrar”, que precede à representação e em torno do qual os atores se colocavam a serviço, aparece “apenas no início do século XVII. [...] Antes, havia uma estreita aliança dos corpos e das palavras e o ator improvisava a partir de roteiros conhecidos.” (PAVIS, 2008, p. 189).

Quando um texto de teatro precede e acompanha uma representação, ele cumpre um papel de depósito provocador de imagens e situações. Estas podem reverberar de várias maneiras no imaginário dos supostos leitores, mas ainda assim não se configura como antecedente de uma encenação. Daí derivam as “visões pessoais” dos encenadores. Ubersfeld (2005, p. 6) parte do pressuposto de que “há, no interior do texto de teatro, matrizes textuais de ‘representatividade’; que um texto de teatro pode ser analisado de acordo com procedimentos relativamente específicos que iluminam os núcleos de teatralidade.” Composto de diálogos e didascálias, que podem ocupar grande espaço na encenação contemporânea e envolvem questões que dão indícios de lugar, personagens e contextos, o texto teatral possui como características a sua matéria de expressão linguística, é diacrônico, supõe uma leitura linear, ainda que suas narrativas possam subverter as normas de temporalidade e espacialidade e/ou se apresentar de forma fragmentária. Na representação, as

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matérias de expressão são verbais e não-verbais, os signos têm caráter sincrônico, são múltiplos, simultâneos ou não, tal a dificuldade dos estudos semióticos (VOLLI, 2007, p. 285) em estabelecer isolamentos dos signos nas representações teatrais. Daí a importância de um estudo aprofundado sobre o texto, suas entrelinhas, personagens, tensões e relações dentro de uma situação contextual, de modo a preencher as lacunas inerentes à sua especificidade literária. Esse estudo gera outra matriz, textual ou não, de anotações paralelas às questões levantadas, imaginadas, propostas pelo encenador, pelo dramaturgo/adaptador, pelos atores, pelo cenógrafo.

A arte da encenação, por esta via articulada texto-representação (UBERSFELD, 2005, p. 8) e por ser prática social produzida e colocada em meio a um contexto atual multifacetado de formas midiáticas, torna-se singular pelo modo com que exige a participação do espectador e do ator, física e psiquicamente, e assim mostra seu privilégio e sua força. A linguagem da cena solicita independência porque possui códigos de signos muito próprios e complexos. Desde que chegou a nós, desde finais do século XIX, a encenação alterou de forma radical o modo de concepção do teatro. O surgimento da luz elétrica foi decisivo para a projeção da figura do encenador e também a do cenógrafo, e sua origem trouxe consigo duas importantes vertentes estéticas: a naturalista e a simbolista. Patrice Pavis (2008, p. 185) deixa evidente que,

Para o teatro de encenação, é pois lógico dirigir a análise para o conjunto da representação em vez de considerar esta última como derivada do texto. Os estudos teatrais e sobretudo a análise do espetáculo se interessam pelo conjunto da representação, a tudo o que cerca e excede o texto. [...] Passamos assim, num intervalo de cinquenta anos, de um extremo ao outro, da filologia à cenologia.

Daí o ponto de vista do encenador ser primordial em uma

encenação, e não menos importante é o do dramaturgo/adaptador e do cenógrafo de uma obra e suas (boas) relações humanas e criativas, casos específicos encontrados pela investigação dos

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três espetáculos. O modo como irão abordar o que está pré-determinado em um texto, o que será suprimido, o que se colocará em relevo, o que substituirá o texto em favor da plasticidade de uma cena é justamente a releitura, o sentido, a proposta do espetáculo, este livre e desvinculado da palavra escrita, mas com ela embutida e travestida em outra linguagem. É a interpretação de uma obra de outrem, enfatizando aspectos do tema tratado, ampliando ou reduzindo o foco em determinadas questões, conforme os critérios dessa nova autoria. A forma com que uma simples palavra é pronunciada pode alterar determinados sentidos da mesma, bem como o contexto em que está inserida. Torna-se o trabalho de encenação, em consonância com um núcleo de artistas também empenhados em deixar claro o que se pretende de tal obra, pensam e defendem pontos de vista acerca dela e não estão sozinhos em sua realização, tal a visão cenocentrista.

Pelo exposto, neste trabalho fica claro não se tratar da sacralização do texto – herdado, histórico, imutável e eterno –, privilégio que deixaria amordaçados e de mãos atadas os novos criadores em suas tentativas de fazer avançar os processos cênicos; e tampouco a recusa veemente do mesmo, prática recorrente em nossos dias. O hiato que existe entre as duas vertentes citadas tende a apontar o caminho. Trata-se, pois, de rever/revisitar o texto com atenção apurada e constatar suas peculiaridades muito próprias, suas qualidades, e a pertinência ou não de seus conteúdos na contemporaneidade e, ao mesmo tempo, olhar para a complexa infinidade de formas dentro do termo “encenação”, sem alternâncias de hierarquias. Ao navegar por essa terceira margem, os espetáculos aqui escolhidos e estudados figuram como exemplos práticos e simbólicos da encenação como evento autônomo. Eles cruzam transversalmente o conflito entre os defensores do terrorismo textual e do terrorismo cênico – no dizer preciso e atual de Ubersfeld – e assim ultrapassam os discursos tendenciosos entre práticas textuais e práticas representativas.

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2.3 Adaptações teatrais de textos não destinados ao palco

Nas criações artísticas atuais, as adaptações têm espaço

privilegiado. A passagem de textos, originalmente não escritos para o palco, para o texto dramático e este, quando levado à cena, levanta outros desafios. À parte as discussões teóricas, as relações entre esses processos híbridos que entrelaçam e justapõem caminhos literários e teatrais seguem livre curso nas poéticas da cena contemporânea. Pavis (1999, p. 113) atualiza o conceito de Dramaturgia. Ela “designa então o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer” e, ao tratar das tarefas do dramaturgo, passa a incluir a adaptação:

A adaptação também designa o trabalho dramatúrgico, a partir do texto destinado a ser encenado. Todas as manobras textuais imagináveis são permitidas: cortes, reorganização da narrativa, ‘abrandamentos’ estilísticos, redução do número de personagens ou dos lugares, concentração dramática em alguns momentos fortes, acréscimos e textos externos, montagem e colagem de elementos alheios, modificação da conclusão, modificação da fábula em função da encenação. (PAVIS, 1999, p. 10).

O termo “adaptação” é controverso, motiva juízos de valor em relação às obras originais e estabelece hierarquias, quase sempre deixando de considerar os ganhos que também são possíveis dentro dessa metamorfose. As novas formas são passíveis de serem consideradas infiéis, traiçoeiras, deformadoras e outros termos que Robert Stam enumera para concluir que, na sua grande maioria, os discursos sobre a adaptação são depreciativos em relação à obra primeira. Quando aprofunda estudos sobre o dialogismo proposto por Mikhail Bakhtin e os consequentes desdobramentos nas obras de outros autores como Julia Kristeva e suas postulações sobre a intertextualidade e, ainda, a transtextualidade de Gérard Genette, Stam observa conclusivamente que a ênfase fica por conta da “interminável permutação de textualidades” no lugar de discutir “fidelidades” de

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um texto em relação a seu modelo (STAM, 2006, p. 41). Essas teorias, assim, trazem como denominador comum –

finalmente – uma possibilidade de relação mais horizontal. Em seus estudos sobre a mecânica da narrativa ou o campo da narratologia, Stam pontua interrogações a respeito desses cruzamentos de linguagens:

Uma vez que a adaptação envolve dois textos que presumivelmente comunicam a mesma narrativa [...], isso se torna uma questão de narratologia, que faz perguntas do tipo: que eventos da história foram eliminados, adicionados ou modificados na adaptação e, mais importante, por quê? [...] O problema que importa para os estudos da adaptação é: que princípio guia o processo de seleção ou “triagem”? qual é o “sentido” dessas alterações? (STAM, 2006, p. 39 a 41).

Considerando as riquezas inerentes à poesia, à dramaturgia

e à encenação teatral, o resultado como forma concreta espetacular dessa fusão artística criativa é trabalho conjunto de responsabilidades coletivas e individuais. Não parecem ser de relevância questões como a fidelidade ou não de uma obra adaptada em relação ao seu original. Portanto, juízos de valor em relação a quaisquer das adaptações do poema não entram em questão nesse trabalho. Tais elaborações, sejam elas nas propostas dramatúrgicas ou nas formas acabadas das encenações, oferecem próprias e distintas propostas. São novas leituras, transpostas a tempo e espaço diferentes, dentro de novos contextos. Remexer e/ou profanar essas páginas originais é, antes, um elogio ao autor primeiro, e nova autoria a quem se debruça ao trabalho de recriar o existente para o tempo presente.

Com relação às montagens que compõem este estudo, há ausência de referências a quaisquer dos três espetáculos no Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos, quer seja no vocábulo Adaptação ou mesmo nos vocábulos Épico (Teatro) ou Poesia (Teatro e). O primeiro espetáculo (A Viagem, 1972), com a direção de Celso Nunes e adaptação de Carlos

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Queiroz Telles, figura entre as fontes experimentais primeiras61

desse “fenômeno do nosso tempo”, em que “algumas das principais montagens do teatro brasileiro contemporâneo nasceram de adaptações.” (GUINSBURG et al, 2006, p. 16-17). Nada consta também em relação ao espetáculo dirigido por Iacov Hillel e adaptado por José Rubens Siqueira (Os Lusíadas, 2001); e tampouco o que teve a direção de Márcio Aurélio, com adaptação de Valderez Cardozo Gomes (Os Lusíadas, 2001). Esses espetáculos foram realizados bastante tempo depois, quando esses métodos processuais de criação cênica eram mais usualmente praticados, embora sempre com o risco que acompanha uma transcriação e os novos olhares de seus autores até os dias de hoje. José Rubens Siqueira e Valderez Cardozo Gomes, como poetas adaptadores da obra de Camões, também são ausências verificadas. Carlos Queiroz Telles é o único nome vinculado a este trabalho que aparece no livro, como participante

do chamado teatro engajado62, ao lado de dramaturgos como

Oduvaldo Vianna Filho, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e outros, inspirados por Brecht para trazer o gênero épico e seus recursos à cena. Porém, duas de suas obras são citadas – A Semana e Frei Caneca, que também figuram no depoimento constante desse trabalho e são imediatamente anteriores ao processo d’ A Viagem –, mas não há nenhum apontamento que se refira ao texto e à encenação aqui tratados.

61 Com relação às adaptações de poesias para o palco os registros são escassos e

difíceis de constatação até o momento. Informações encontradas no site do Itaú Cultural, apontado nas referências deste trabalho, trazem o livro de poemas Dentro da noite veloz, de Ferreira Gullar, lançado no Brasil em 1975, e que ganha montagem do

grupo de teatro Em-Cena-Ação realizada na Casa do Estudante Universitário, no Rio de Janeiro, em 1978, com direção de Mário Prieto, alguns anos mais tarde d’ A Viagem. 62 No referido livro, o vocábulo Épico (Teatro) lembra a advertência de Anatol Rosenfeld, em seu O Teatro Épico, sobre a falta de pureza de gêneros e que “o uso da

classificação de obras literárias por gêneros parece ser indispensável, simplesmente pela necessidade de toda ciência de introduzir certa ordem na multiplicidade dos fenômenos.” (ROSENFELD Apud GUINSBURG et al, 2006, p. 132). Ainda, outra

passagem que considero relevante destacar aqui: “Esse percurso revela que um estudo minucioso do épico nos palcos brasileiros é extenso e possui diversas possibilidades de abordagem. No entanto, foi no âmbito do teatro engajado que o épico esteve

presente de maneira mais sistemática. [...] Sob esse aspecto, o propósito de explicitar a relação entre arte e política fez com que temas com ênfase político-social predominassem na produção dramatúrgica brasileira das décadas de 1960 e 1970.”

(Idem, p. 133).

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2.4 A teatralidade é uma nau de mil máscaras

A noção de Barthes a respeito da teatralidade como sendo o teatro menos o texto já não encontra eco nos contextos contemporâneos. Inúmeras são as relações entre o teatro e todo um universo que esse simples termo abarca. Também a respeito da noção de teatralidade e suas complexas redes conectivas, Edélcio Mostaço percorre trilhas, autores e diferentes contextos e

épocas onde essa noção aparece.63 O autor tece panorama a respeito dessa discussão e procura pelas “possíveis relações da teatralidade com a história”, advertindo ser necessário ultrapassar raciocínios cartesianos para adentrar esse universo plural: “Raros ou esquivos são os documentos remanescentes nesse âmbito. [...] A teatralidade deverá ser rastreada a partir de um novo dimensionamento e sensibilidade lançados sobre elas.” (MOSTAÇO, 2010, p. 51).

Na procura por análises semióticas, os autores esbarram na complexidade da estrutura nesse campo de fenômenos comunicativos dentro de um mesmo termo e, assim, principalmente aspectos históricos ganham relevo dentro dos estudos, o que deixa entrever a necessidade de outras estratégias, necessárias para dar conta de camadas distintas do fenômeno teatral. O teatro nasceu de diversas tradições culturais e independentes, na Grécia, Índia, Japão e outras partes. Hoje se considera que teve dois inícios também na Europa, sendo o ateniense e o cristão, nos finais da Idade Média, antecedentes do

teatro moderno.64 Todas as várias formas expressivas e estéticas

63 Aqui também se desdobram questões acerca do teatro e da performance, suas

aproximações e afastamentos: “Diante dessa aparentemente irreconciliável relação entre teatralidade e pesquisa histórica, muitos tendem a deixar intocado este viés analítico; fenômeno agravado pela instável valoração do que seja uma representação. A clássica acepção de representar – estar em lugar do outro, ser a imagem de,

substituir, figurar ou aparentar com, retratar, expor verbalmente, figurar como símbolo – mais encobre que clarifica a operação aqui em discussão. Além da série enorme de documentos manipuláveis que possam ensejar a análise histórica, convém não ser

deslembrado, contudo, que igualmente constituem representações a escrita, a fala, os gestos e o próprio pensamento, instâncias menos tangíveis de funcionar como fontes históricas.” Para aprofundamentos ver MOSTAÇO, Edélcio (Org) et al. Teatralidade, a

espessura do olhar. In: Para uma História Cultural do Teatro. Florianópolis/Jaraguá do Sul: Design Editora, 2010, p. 51. 64 Para ampliar estudos a respeito ver BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro.

3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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tendem a sofrer influências recíprocas e, contemporaneamente, isso parece ter chegado a graus ainda maiores de disfarces possíveis. Esses disfarces atravessam e misturam alteridades, constantemente renovando e redefinindo heranças convencionadas, com respostas novas para novos dias e contextos humanos. No campo espetacular, o sincretismo faz parte da composição desse processo e se trata de “um fenômeno

ao mesmo tempo semiótico e estético”, no dizer de Ugo Volli65, o

que aponta novamente sobre a relação dialética entre encenação e dramaturgia, mas vai ainda além.

Na dimensão conceitual do termo “contemporâneo”, Tânia Alice Feix aponta que “arte contemporânea” designa uma arte investigativa e de ponta, substituindo assim a “arte de

vanguarda”66, que continua a questionar as interrogações sobre a

obra perene, própria e autoral e valoriza assim atitudes e situações em lugar das formas. Na sua pesquisa sobre espetáculos contemporâneos, aponta que a não linearidade integra os novos processos, que não trazem textos clássicos ilustrativamente e os contextualiza dentro do termo “coabitação”, nos conceitos pós-dramáticos. Lehmann, a esse respeito, evidencia o privilégio que o teatro pós-dramático estabelece nas suas “estratégias próprias de molduragem diversificada, mediante as quais o particular é arrancado do campo unitário que a moldura constitui ao

65 Ugo Volli (2007, p. 284), reflete e toma emprestada a proposta de Richard Schechner sobre os vários textos que interagem nos processos performáticos de uma cena e escreve que “Na atual organização do teatro tende-se a identificá-lo com a direção,

mas trata-se de muito mais, isto é, da composição, que acontece segundo várias técnicas independentes das formas de organização históricas e sociais do teatro, dos diferentes fatores que fazem do espetáculo um texto sincrético: um ambiente (sala

teatral), geralmente construído propositalmente segundo certos critérios, um texto linguístico, um musical, a decoração, as pinturas, o figurino, os atores, os movimentos, os gestos, distâncias que constituem um texto não-verbal, as luzes, o uso de objetos e

efeitos especiais. Para que um espetáculo se realize todos esses diferentes elementos devem ser decididos para conduzir a certos efeitos. Devem, em suma, ser montados em um processo, construir uma forma de expressão.” 66 Em artigo sobre Performance e Encenação, Tânia Alice Feix diferencia dimensões

da palavra “contemporâneo”, sendo uma delas a dimensão temporal. Cita Catherine

Millet, diretora da Revista de Arte Contemporânea Internacional, Art Press, para quem “o termo ‘contemporâneo’ refere-se também a uma dimensão conceitual. Essa dimensão conceitual surge com o início da Pós-Modernidade, nos anos de 1960, com

os Happenings, o Fluxus, a Arte Conceitual, a Arte Povera, a Land Art e a Body Art.”

FEIX, Tânia Alice. Disponível em: WWW.portalabrace.org/vcongresso/textos/territorios/Tania/Alice/Caplain/Feix/Estetica

/Teatral/Contemporanea/Performance/Encenação.pdf. Acesso em: 14 jan. 2012.

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circunscrevê-lo.” (2007, p. 269). Assim, as atuais buscas encontram respostas caso a caso na procura por uma definição mais completa, horizonte que se delineia utópico diante das metamorfoses criativas e profanadoras, essas sim perenes, respostas mutantes nos velozes dias atuais.

A autonomia da linguagem cênica se apropria de distintos elementos em favor de sua expressão, sendo que o texto – dramático ou não, completo ou fragmentado – atua como fagulhas provocativas de imagens e signos cênicos. Ela se configura pelas experimentações a partir do início do século passado, segundo Lehmann, quando a cena procura reflexões sobre a sua própria expressividade, também influenciada pela linguagem cinematográfica que nascia no período. O teatro pós-dramático, pela travessia do tempo e conforme o autor, conhece o espaço vazio e o espaço saturado: “Ele de fato pode ser ‘niilista’ e ‘grotesco’, mas Rei Lear também o é. Processo, heterogeneidade e pluralismo valem igualmente para todo teatro – o dos clássicos, o dos modernos e o dos ‘pós-modernos’.” (LEHMANN, 2007, p. 31). Essa autonomia sobre a teatralidade vai ganhando corpo e dimensão artística em um processo que se considera mais amadurecido somente no início deste século. Os pressupostos teóricos do autor são bastante discutidos e o que se sobressai não parece cruzar com as discussões a respeito da ausência dos textos na constituição de um teatro pós-dramático e sim o que uma encenação traduz também deles como mais um elemento do conjunto.

Quanto aos termos que se renovam dentro das questões teóricas, Antonio Araújo aponta para uma ainda instável associação entre “performance” e “encenação”. Em reflexão sobre

o que chama de “encenação perfomativa”67, discute tendências

das encenações contemporâneas para formas inacabadas e em processo e o lugar do encenador colaborativo. Muito do que se

67 Antonio Araújo cita Josette Féral, que “prefere o uso do termo ‘teatro performativo’ ao invés de ‘teatro pós-dramático’, para se referir à cena contemporânea. Resolvemos também nomear esta direção estreitamente vinculada à performance como ‘encenação

performativa’.” O autor não deixa de apontar as arestas fronteiriças dessa relação: “A encenação contemporânea vem estabelecendo uma forte relação com a performance, sendo contaminada e reconfigurada por ela. Relação de desconfiança, muitas vezes,

até mesmo antípoda, em alguns casos, mas também legítima e complementar.” ARAÚJO, Antonio. A encenação performativa. Disponível em: WWW.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/viewFile/265/264. Acesso

em: 18 dez. 2011.

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escreve na atualidade não deixa de mencionar as influências experimentais das heranças das criações coletivas dos anos de 1960 e 1970 para as novas criações. Apenas como exemplo a esse respeito, Celso Nunes denominava “diretor facilitador” para designar o trabalho do encenador em processos de criação teatral, em Tese de Doutorado defendida por ele em 1989. Portanto, as discussões sobre nomenclaturas parecem se mostrar secundárias e a questão que se mantém em relevo é a da unicidade de um espetáculo, função encabeçada pelo encenador e discutida há mais de um século, como já destacado.

No artigo de Araújo, Féral é citada numa frase onde destaca as alteridades entre a performance e o teatro: “contrariamente à performance, o teatro está impossibilitado de não colocar, dizer, construir, fornecer pontos de vista: pontos de vista do encenador sobre a representação, do autor sobre a ação, do ator sobre a cena, do espectador sobre o ator.” Ela, portanto, afirma continuar sendo função do encenador o problema da unidade de um espetáculo, embora Araújo não afaste a necessidade de se repensar sobre o tema. Para ele, “a encenação performativa vai colocar os diferentes fluxos de desejo e de sentido em conexão, deixando emergir as diversidades, habitando em heterotopias e, por fim, desestabilizará as cristalizações de unidade”. (ARAÚJO, 2011).

Em relação aos espetáculos estudados neste trabalho, a unidade do espetáculo continua a ter influência direta do encenador enquanto criador e provocador de uma proposta estética, o que não significa uma direção vertical e autoritária nem tampouco ausência de desejos dos outros criadores e/ou falta de conexões das diversidades dentro dos processos criativos. A concepção de que o trabalho de um encenador é necessariamente sinônimo de posturas centralizadoras e ditatoriais é que talvez deva ser questionada. Se for o caso, supostos ditadores podem estar tanto em um processo “tradicional” de montagem, contratado como todos da equipe envolvida no mesmo projeto, ou serem as figuras que lideram um coletivo permanente, que divide perdas e ganhos da produção e o trabalho tenha todas as características colaborativas no processo de encenação de um espetáculo. Desse modo, pode ser apenas uma questão de procedimento artístico de determinados encenadores, mais do que questões conceituais a respeito de seu trabalho.

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As encenações investigadas aqui fazem eco ao descentramento do encenador. Não sendo mais “dono de uma subjetividade absoluta que se traduziria em todas as decisões e escolhas da encenação”, o encenador é “uma escuta amplificadora, um pensamento alargado” (PAVIS, 2010, p. 228). No teatro, não se escapa de uma relação humana cúmplice e de entrega mútua ao trabalho por todos, lembrada de modo quase

sarcástico por Pavis68 quando, por exemplo, reflete as relações

entre atores e encenadores. Ao conceituar processos colaborativos dentro da esfera das

experiências brasileiras, Luiz Alberto de Abreu (2004) procura esclarecer a abolição de hierarquias dentro das relações

compositoras de processos artísticos contemporâneos69, que

continua a emitir férteis discussões a essa questão delicada e fundamental. A difícil película que existe nessa região fronteiriça de definição de funções não deixa os idealismos das convivências humanas dormirem. Essa membrana deixa entrever as fragilidades inerentes às fricções necessárias a um parto artístico criativo. Abreu sabe disso, como todos os que enfrentam semelhantes questões cotidianas dentro dessas poéticas, e reforça não ser o fazer teatral um mero acordo de cavalheiros. O percurso é cheio de obstáculos.

No que se refere à questão da produção desses mesmos processos brasileiros, Deolinda ViIhena observa, em entrevista, que as opções estéticas precisam ceder espaço às opções econômicas na quase totalidade das vezes pelas produções de núcleos organizados. Para a produtora e pesquisadora, a enorme quantidade de grupos cadastrados em cooperativas no Brasil

68 Para o autor, as questões são depuradas há muito: “Velho sonho do ator: abster-se

do encenador. Velho sonho do encenador: transformar os atores em marionetes. Felizmente, tais sonhos nunca se realizam. É difícil, e pouco recomendável, apresentar-se ao público sem antes ter sido olhado por uma pessoa exterior a serviço. E o ser humano não é um fantoche: ele respira e pensa.” (PAVIS, 2010, p. 231). 69 Luiz Alberto de Abreu é dramaturgo e um dos autores/adaptadores d’ O livro de Jó, criação do Teatro da Vertigem. Ele argumenta que “Pode-se dizer que o processo colaborativo é um processo de criação que busca a horizontalidade nas relações entre

os criadores do espetáculo teatral. Isso significa que busca prescindir de qualquer hierarquia pré-estabelecida e que feudos e espaços exclusivos no processo de criação são eliminados. Em outras palavras, o palco não é reinado do ator, nem o texto é a

arquitetura do espetáculo, nem a geometria cênica é exclusividade do diretor. Todos esses criadores e todos os outros mais colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da construção do espetáculo de tal forma que se tornam imprecisos os limites

e o alcance da atuação de cada um deles.” (ABREU, 2004, p. 15).

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denota não ser uma opção estética dos grupos: “É uma opção econômica ou é uma falta de opção”. (VILHENA, 2011). Com relação ainda ao Teatro da Vertigem, Vilhena destaca o modo de produção adotado pela companhia: “O modelo de produção coletiva que eles têm hoje, onde você tem a figura do produtor sempre, mas que é feita de uma outra maneira e que acompanha o processo criativo do espetáculo, é outra forma também de se

fazer produção.” (VILHENA, 2011).70

Sobre a historiografia do teatro brasileiro, Tânia Brandão oferece estudo recente e aprofundado acerca da arte cênica no Brasil. Afirma não haver dúvidas de que a atual continuidade de pesquisas e publicações apontarão brevemente para outro panorama historiográfico. Porém, aponta as fissuras e pontua que “a história do teatro brasileiro surge ainda como uma impossibilidade, pois revela uma clara recusa ao reconhecimento do tempo, exatamente o que deveria ser a tessitura fundamental de sua trama.” (BRANDÃO, 2010, p. 333). Sábato Magaldi, ainda em 1985, sintetizava brevemente décadas de teatro no Brasil e seus diálogos com as cenas e os métodos praticados em todo o mundo que antecedem as realizações de Ruth Escobar, resguardadas as licenças elogiosas por se tratar de prefácio seu em um livro sobre o Teatro Ruth Escobar. O crítico já apontava, na época, uma reflexão sobre o movimento teatral brasileiro que

70 Outro aspecto da entrevista de Vilhena, a respeito do Théâtre du Soleil e o diálogo

estabelecido entre o setor da produção, do artístico e do administrativo, tem pertinência no contexto deste estudo: “De maneira paradoxal, eu fui fazer uma pesquisa e uma tese de doutorado sobre um modelo de produção de uma companhia onde não existe

a figura do produtor. No Soleil não existe o produtor. Você não encontra em nenhuma ficha técnica deles a figura do produtor. A produtora é a Ariane. Porque a palavra final é dela, então no caso a produtora seria ela. De tudo, realmente. O papel higiênico que

vai ser comprado pela Companhia, tudo passa por ela. A subvenção que eles recebem do Ministério da Cultura da França vem em nome da diretora. Se hoje ela deixar de dirigir o Théâtre du Soleil por algum motivo, o Teatro não tem subvenção. Porque quem tem a subvenção não é a Companhia, é o artista. É o artista criador. E não tem a figura

do produtor. Quem é que faz a produção do Soleil: Pierre, que é o administrador; Judith, que é administradora; Liliana, que é assessora de imprensa. Todo mundo faz a coisa acontecer, todo mundo junto. Isso para mim é você trabalhar num processo

colaborativo ou coletivo. A única coisa é que antigamente você assinava a produção coletiva. Era um espetáculo do Théâtre du Soleil, que lá continua sendo um espetáculo do Théâtre Du Soleil hoje, e na produção colaborativa eles fazem questão de destacar

as funções de cada um. Mas essa discussão não se trouxe para a Academia. Como é que num lugar em que se pensa o fazer teatral, a gente não discute isso? E, particularmente, no Brasil, um país onde a gente não tem políticas públicas na área da

cultura.” (VILHENA, 2011).

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se mostrava animadora – e portanto aparenta um acento um pouco mais otimista que Tânia Brandão nas suas pesquisas e conclusões à luz de hoje –, e destacava o estímulo e as atividades dos cursos de pós-graduação, com ênfase para o rigor da pesquisa sobre aspectos e questões da cena brasileira.

Na reflexão de Magaldi, transparece bem a antropofagia e o trabalho dos grupos e artistas brasileiros e suas antenas captando e transmutando processos de renovação da cena mundial, com resultados criativos e autorais. Ele se refere às décadas de 1940 a 1960 como conquistas decisivas, importantes marcos do palco brasileiro, e cita Os Comediantes e em seguida o Teatro Brasileiro de Comédia como responsáveis em generalizar um teatro de equipe como proposta estética. Tendo à frente o encenador, uma prática que rivalizava com a precedente, do absolutismo dos atores e atrizes, as estrelas do palco. O reinado dos astros já vinha sendo contestado desde práticas antigas exercidas por Antoine na França e Constantin Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou. Na sequência, apontando ser insatisfatória a renovação do palco brasileiro, o Teatro de Arena trouxe a figura do autor nacional,

que se via preterido no panorama cênico. O Teatro Oficina cumpriu, nos anos 1960, itinerário artístico incomum, comprimindo nos sucessivos espetáculos as várias inovações estilísticas, desde o Stanislávski de fins de século XIX até os mais próximos The Living Theatre e Grotowski, passando por um Brecht em grande parte abrasileirado e pelo assumido tropicalismo. (MAGALDI, 1985, p. 13).

Entremeada pelas “lacunas e séries”71, Brandão discorre

sobre as pequenas listas de histórias que se denominam “Teatro Brasileiro” mas que se resumem basicamente às produções

71 A especificação é pertinente, pois, segundo a autora “Trata-se de uma historiografia

em que dois procedimentos se repetem infinitamente, sob múltiplas formas: as lacunas e as séries. São, de certa forma, dois artifícios de negação do tempo, duas formas de supressão. As lacunas surgem da falta de conceituação de tempo histórico (do teatro),

de teatro e de nacionalidade, bem como omissão de temas e parcelas do objeto de estudo ainda não pesquisados; as séries resultam da repetição mecânica de formulações anteriores, sem abordagem crítico-analítica nova.” (BRANDÃO, 2010, p.

338).

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cariocas e “por vezes” paulistas, deixando claro o vínculo econômico-político e seus poderes de comando. A arte do teatro, além disso e principalmente, não aparece na história como um fazer e sim como algo natural, passível apenas de registro para constar. A questão humana – diga-se todo um trabalho coletivo exaustivo e empenhado na realização de um objetivo artístico comum – implicada nessas poéticas não tem qualquer importância:

O fato de o teatro ser construído, produzido, fabricado – quer dizer, não ser fato da natureza, mas episódio sócio-cultural razoavelmente complexo e ato de vontade – não é reconhecido ou descrito, não ecoa. Não há nenhuma palavra sobre este fazer inusitado e arrebatador, suas pequenas engrenagens inventadas, suas oscilações temporais.” (BRANDÃO, 2010, p. 372).

Essas constatações da autora permeiam as raízes

provocativas deste trabalho e o vinculam ao estado atual da pesquisa historiográfica do teatro brasileiro.

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2.5 Uma produtora: Ruth Escobar e três encenações

À frente das três produções que compõem esta

investigação: A Viagem, com direção de Celso Nunes e adaptação de Carlos Queiroz Telles; Os Lusíadas, direção de Iacov Hillel e adaptação de José Rubens Siqueira; e Os Lusíadas, direção de Márcio Aurélio e adaptação de Valderez Cardoso Gomes, Ruth Escobar encarna o próprio espírito português da aventura de desbravar outros desconhecidos mares das poéticas teatrais e assume também o preço a pagar pelas empreitadas. Sobre a sua dupla nacionalidade e paixões ela diz:

Portugal é minha pátria, sinto-o nas minhas entranhas, no meu lado trágico, português, nas mulheres de negro de Nazaré, que insultam o mar que lhes rouba o seu homem, os seus filhos. [...] Brasil é meu espaço de vida, minha aventura tropical, onde nada é impossível. Arranco o meu xale preto da cabeça e visto a fantasia, meu prêt-à-porter, me assumo como a Carmem Miranda do Teatro. (ESCOBAR, 2001, p. 3).

Figura-chave de grandes projetos teatrais no Brasil,

inegáveis pela ousadia e abertura à cena mundial, Ruth Escobar divide opiniões polêmicas a respeito dos métodos adotados na condução das produções, como é o caso desse estudo. A produtora é alçada à altura dos heróis desbravadores do poema por todos os encenadores que deram cabo às realizações dos espetáculos (não estão considerados, portanto, outros diretores teatrais que também foram sondados para assumirem o trabalho). Mas, se os elogios aos feitos e bravuras quixotescas e grandiosas são reconhecidamente exaltados pelo seu trabalho obstinado, não se pode deixar de registrar os percalços relativos às difíceis relações humanas na consecução de parte deles, como foi o caso dos desentendimentos com os encenadores Celso Nunes e Iacov Hillel e com o dramaturgo José Rubens Siqueira, adaptador da obra de Camões para o espetáculo de Hillel. O mesmo não ocorreu com relação a Márcio Aurélio e a Valderez Cardoso Gomes, encenador e adaptadora do terceiro espetáculo estudado, que não registraram críticas em relação ao trabalho realizado com

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a produtora. Não há dúvidas quanto ao enorme volume de trabalho das

produções dos espetáculos, a começar pelo grande número de

profissionais atuantes nos processos72 e também devido ao grau

de riscos e aos prazos envolvidos nas montagens, fatos que agravam qualquer relação artística normalmente difícil. A primeira montagem, em 1972, foi marcada por estrondoso sucesso de crítica e público e por problemas entre a produtora e o diretor de então, Celso Nunes, quando estreou em data simbólica que marcava 150 anos da Independência do Brasil e com proposta estética diferenciada à época, com espaço cênico vertical e tendo sido eliminada a convenção palco-plateia.

Para a também simbólica passagem dos 500 anos do Brasil, na virada do milênio em 2000, a produtora concentrou esforços no sentido de levar o épico de Luís de Camões pela segunda vez aos palcos brasileiros. O projeto substituía a realização de mais uma edição do FIAC – Festival Internacional de Artes Cênicas. A ciranda das trocas dos diretores e dos elencos para a realização do espetáculo é significativa. Apontada pela imprensa, deixa entrever um ambiente dificultado pelas escolhas estéticas, pelos espaços diferenciados e, principalmente, no que diz respeito às relações humanas, acrescido – e em graus bem maiores –, das responsabilidades e dos naturais problemas, pois que era considerado o espetáculo mais caro em andamento no Brasil. Com recursos orçados em 2 milhões de reais, captados junto à Petrobrás, Petrobrás Distribuidora, Bradesco, Telesp Celular, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e Ministério da Cultura, a superprodução não conseguiu aportar nos palcos naquele ano. Depois de muito trabalho e recursos já destinados e

sem retorno, tem início um novo processo com outro diretor.73

72 Ver Fichas Técnicas completas dos espetáculos, nos capítulos Três, Quatro e Cinco. 73 Em reportagem de Valmir Santos, a Folha de São Paulo informava terem sido três

diretores na produção: “Primeiro, Iacov Hillel. Depois, José Possi Neto. Depois Amir Haddad. Depois, uma sondagem a Gerald Thomas. E, por fim, o ciclo retorna a Iacov Hillel, que assina a direção de Os Lusíadas. Em nove meses, a produção do espetáculo

sofreu vaivéns que, além da escolha do diretor, passaram pela definição do local e pelas mudanças no elenco, ‘resselecionado’ em janeiro. A saga teve seu maior momento de tensão no final do ano passado, quando o diretor Amir Haddad, do grupo

Tá na Rua, foi desligado do projeto após cerca de dois meses de ensaios no prédio do Dops, na região central de São Paulo. Ruth Escobar afirma que não gostou do tratamento alegórico que ele imprimia ao espetáculo. [...] A atriz Lucy Mafra e o ator

Jairo Mattos eram assistentes de Haddad. Mattos, inclusive, estava escalado para o

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Com o encenador Iacov Hillel assumindo a direção da montagem, o espetáculo inaugurou a Estação das Artes, em espaço junto à Estação Júlio Prestes, em São Paulo, no dia 23 de março de 2001 e seguiu até outubro do mesmo ano em cartaz. A proposta de Hillel, tendo por espaço cênico um corredor por onde passa uma grande caravela entre os espectadores que assistiam das arquibancadas laterais, também levou grande público ao teatro e ampliou a temporada, alavancada também por sessões subsidiadas para estudantes. A crítica dividiu opiniões a respeito da montagem, que foi interrompida por desacordos da produtora com o encenador, com o adaptador e com parte do elenco.

Em 10 de novembro de 2001 estreia outra montagem, de mesmo nome porém de natureza diversa, com direção de Márcio Aurélio e adaptação de Valderez Cardoso Gomes, com produção dessa vez orçada em torno de 500 mil reais e feita com recursos próprios, segundo Ruth Escobar informa em entrevista à Folha de São Paulo (SANTOS, 2001b, p. E1). Dessa vez tem o palco italiano como proposta, cenograficamente construído também dentro do próprio espaço da Estação das Artes, para viabilizar viagens e apresentações em Portugal, posto que a temporada portuguesa já contava com o apoio do Ministério da Cultura local e da Portugal Telecom. O espetáculo foi saudado pela crítica e público, encerrou sua temporada em Portugal e voltou ao Brasil para nova temporada no Teatro Sérgio Cardoso.

Celso Nunes foi procurado novamente para a primeira produção prevista para o ano de 2000 e somente realizada no ano seguinte, embora não tenha recebido retorno e soube mais tarde que o espetáculo estava estreando em São Paulo, com direção de Iacov Hillel, conforme relatou em entrevista. Márcio Aurélio também já havia sido procurado no período, mas não aceitara por uma enfermidade temporária. Mais tarde, com as questões pessoais resolvidas, ele vai dirigir a terceira versão do épico. Em página inteira d’O Estado de São Paulo, Ruth Escobar confirmava, ainda em 2000 a Jotabê Medeiros, o nome de Gerald Thomas. O jornal informa ter o encenador cancelado contrato com o SESC para se dedicar ao espetáculo, o que ultrapassa a mera sondagem

papel de Vasco da Gama. Ambos desligaram-se, como boa parte do elenco, quando Iacov Hillel reassumiu o projeto e convocou nova audição, no início de janeiro. Pelo menos 13 atores do elenco anterior permanecem na montagem atual.” (SANTOS,

2001a, p. E1)

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informada mais tarde. A montagem, à época, ainda estava estimada em 1 milhão de reais e a adaptação, assinada por Djalma Limongi Batista, era dividida em dez partes. (MEDEIROS, 2000, p. D1).

As informações investigadas deixam entrever o caráter de epopeia para cada sonho artístico e seus realizadores, tais as dificuldades do cenário cultural brasileiro abrangente, diverso e cheio de contrastes econômicos e infraestruturais. A questão do diálogo artístico com o econômico apresenta equilíbrios precários. Contradições e dificuldades no caminho nunca estão ausentes de desafios dessa natureza, e o teatro aponta precisar enormemente de vontades bem acima da média para realizar seus projetos, com custos humanos altos para cada aventura teatral a estrear e seguir seu fado, sem distinções temporais e de lugar. Os problemas existem em toda produção – aqui como reunião coletiva de individualidades para um objetivo comum a realizar –, dadas as relações humanas alçadas aos graus máximos das difíceis condições de convivência dentro de um processo criativo passível de todas as intempéries de praxe.

Dados os preâmbulos que perfazem a moldura, o quadro agora apresenta as três encenações brasileiras dentro de características específicas e particulares: as montagens pactuaram de processos criativos imbricados por feituras colaborativas entre os artistas envolvidos, sejam eles encenadores, adaptadores, cenógrafos e equipe técnica, elenco e equipe de produção; todas partiram da mesma fonte literária, poética por sua vez; cada uma das montagens explorou distintos espaços cênicos para suas criações; e todas tiveram como elemento aglutinador uma mesma produtora. Nesse cenário artístico contemporâneo, em meio aos carnavais dos editais públicos e apoios culturais da iniciativa privada (multi) nacional e às águas agitadas das coxias em dia de estreia, as poéticas cênicas brasileiras abrem alas.

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3 A VIAGEM, DE CELSO NUNES E CARLOS QUEIROZ TELLES

A 13 de dezembro de 1968 o governo militar, no poder desde 1964, lança o Ato Institucional nº 5, através do qual o país foi colocado em estado de sítio, as liberdades individuais suspensas e uma forte repressão foi desencadeada com a finalidade de liquidar os focos de luta armada, organizações civis, sindicatos, estudantis e outras que poderiam, de algum modo, oferecer alguma resistência ao regime. A Censura sobre os meios de comunicação obrigou que todas as notícias veiculadas em rádio e televisão fossem antes examinadas por um censor de plantão. As diversões públicas também não escaparam dessa onda repressiva e o teatro, particularmente, vai conhecer prisões de diversos artistas, proibição de textos e espetáculos, uma

estreita vigilância sobre suas atividades.74 (GONÇALVES e HOLLANDA, 1982; MOSTAÇO, 1982).

Camões foi empregado pelo jornal O Estado de São Paulo de um modo bastante original, como recorda uma jornalista ao historiar aquele período:

Contra a Censura: Luís de Camões jamais teria imaginado tal coisa, mas na década de 1970, o poema épico Os Lusíadas virou sinônimo de censura de imprensa. Embora o regime militar tenha radicalizado em 1968, com a implantação do Ato Institucional n. 5, foi entre 1972 e 1975 que os jornais tiveram mais problemas com os censores – presença constante nas redações. Curiosamente, fazia parte do jogo da censura não “aparecer”, ou seja, era proibido deixar em branco o espaço de um texto vetado, porque essa atitude “denunciaria” o veto. Para driblar a proibição e

74 Para aprofundamentos de leitura relativa ao assunto, além dos autores citados: GUERRA, Marco Antonio. Carlos Queiroz Telles: História e dramaturgia em cena (Década de 70). 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004; SCHWARZ, Roberto. Disponível

em: http://pt.scribd.com/doc/47623564/SCHWARZ-Roberto-Cultura-e-politica-1964-1969-In-O-pai-de-familia-e-outros-estudos. Acesso em: 05 maio 2012; e LEÃO, Raimundo Matos de. Transas na cena em transe: teatro e contracultura na Bahia.

Salvador: Editora da UFBA, 2009.

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tentar “avisar” de alguma forma os leitores, os jornais apelaram para diversos recursos como receitas de bolo ou cartas de leitores publicadas em espaços nobres. Mas nem sempre o truque era compreendido. Em junho de 1973, Júlio de Mesquita Neto decidiu passar a publicar poemas em substituição aos artigos interditados. A partir do dia 2 de agosto, o Estado começou a publicar trechos de Os Lusíadas. Até 1975, o Estado recorreu ao poema épico outras 660 vezes. (NÉSPOLI, 2001, p. D17).

A oposição à ideologia que predominava era também

buscada nos ideários contraculturais, movimentos inconformados com a ausência de liberdades individuais e sociais estabelecidas e que marcadamente fizeram história nos anos 1960 e 1970. Essa outra possibilidade fica à margem do maniqueísmo que atravessa as linhas de pensamento do que se denominava “direita” e “esquerda”. As oposições dentro da esquerda são muito mais acentuadas nesse momento e “é bem cristalina a divisão entre os adeptos do ‘realismo crítico’ e os seguidores do ‘caminho alegórico’.” (GUERRA, 2004, p. 52). São percebidas e discutidas por estudiosos como Raimundo Matos de Leão. Ancorado pelo conceito de transculturação de Octavio Ianni, ele escreve sobre as ideias da contracultura. Elas surgem nos Estados Unidos, porém não se restringem àquele universo. O movimento se configura como força “marcadamente conflitante com o status quo e inconformado com a institucionalização da vida” (LEÃO, 2009, p. 34). Esse movimento avança, segundo Leão, contra os valores sociais da política da segurança, que sustentam a sociedade globalizada após a Segunda Guerra Mundial. A juventude brasileira absorve, pelo processo de transculturação, as ideias contestatórias da contracultura, as quais permeiam os movimentos rebeldes desde a insatisfeita geração beat, na década de 1950 do século passado. “Essas ideias influenciadoras da contracultura avultam-se e são incorporadas ao cotidiano da juventude nos anos sessenta e setenta, antropofagicamente.” (LEÃO, 2009, p. 34).

Em entrevista, o autor evidencia singularidades dentro de fatos acontecidos na cena teatral brasileira à época e

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considerados como inexpressivos75, com tendência a não

reconhecer como produtiva e crítica ao regime a postura

contracultural.76 O discurso do vazio cultural procurou apagar a

produção do período, rica e instigante, segundo ele, em que as artes do teatro, das artes plásticas, da música foram mais do que propagadoras de vazios. Para Leão, as criações nesse sentido, por mais questionadoras que pudessem parecer, não passavam do rótulo de alienadas e alienantes. Porém, o tempo lido como vazio está preenchido de inventividade, de arrogância e de questionamentos produzidos pelas artes. Seus argumentos são no sentido de que “a ‘cena vazia’ está cheia de ar, som e fúria”:

Eu queria entender por que é que diziam que tudo que se produziu ali não tinha um valor substantivo. Na verdade, o que vi são as duas visões que se atritaram no período. Uma delas que vem muito centrada no nacional-popular no teatro, vindo do Grupo Arena, do Centro Popular de Cultura, do Grupo Opinião, núcleos que tinham um projeto político e estético, mas querendo conformar toda a produção dentro do seu universo, do seu ideário, e não conseguem ver o outro universo que começa a se aproximar da cena. Afirmam então que o ideário contracultural é algo que vem de fora, importado, como se nós vivêssemos fechados numa ilha. Não, a gente recebe tudo. É aí que penso no conceito de antropofagia. Recebemos tudo e deglutimos tudo e vomitamos de outro jeito. Meu interesse está aí: o que é contracultura no teatro? Porque a contracultura na vida se apresenta de uma forma e o teatro procura

75 Para aprofundamentos de leitura ver: VENTURA, Zuenir. O Vazio Cultural. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Cultura em Trânsito: da repressão

à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. 76 As ideias de independência e de comportamento nesses movimentos culturais

brasileiros do período são retratadas por Celso Favaretto como três momentos distintos: o movimento tropicalista, do final dos anos 1960; o contracultural, relativo à primeira metade dos anos 1970; e o da cultura alternativa, que compreende a fase final

de 1970 e início dos anos 1980. Para Favaretto, esses movimentos com viés romântico mostravam os desencantos quanto às possibilidades de mudança da sociedade dentro das propostas culturais e políticas consagradas. Para aprofundamentos ver: FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria Alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

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traduzir seus impulsos. Vejo então a presença de outro ideário e de outra prática estética: a diminuição da palavra na cena, o corpo como algo privilegiado no estabelecimento da comunicação com o espectador, uma sensorialidade muito grande na cena. Ao pesquisar, vou descobrindo um viés muito forte no sentido de impor um pensamento por parte dos grupos mais ortodoxos. Cobrava-se o engajamento nas fileiras da visão nacional-popular. Outra postura era então rotulada de alienada e subscrevia as leis do autoritarismo, como se não houvesse outra possibilidade de lutar contra ele. A insatisfação causada pela ditadura era mostrada por outras formas. Não mais com o punho levantado e o dedo em riste do discurso. Queria-se a afirmação do indivíduo, a expansão do ser no coletivo. (LEÃO, 2011).

A época não convidava a grandes investidas coletivas no

Brasil. Ruth Escobar produz, ainda em 1968, Cemitério de Automóveis (1959), de Fernando Arrabal, com direção de Victor García. O encenador propunha espaço diferenciado ao tradicional palco italiano e essa alteração buscava modificar relações entre intérpretes e espectadores, mas ainda era, segundo Sábato Magaldi, uma reprodução do original francês. Em O Balcão (1957), de Jean Genet, também com direção de Victor García em 1969, o crítico considera o espetáculo uma criação de teatro brasileiro. A encenação acontecia em uma estrutura metálica circular, com os espectadores sentados em galerias circundando um enorme espaço vazio, onde uma plataforma vazada forrada por acrílico fazia as vezes de palco móvel. Para a construção desse novo espaço cênico foi necessária a demolição do antigo palco e do balcão superior do antigo edifício teatral de Ruth Escobar e a construção de uma imensa estrutura de aço soldado.

Em 1972, após a desmontagem dessa estrutura empregada em O Balcão e com seu teatro formando um imenso espaço vazio, a produtora vai buscar recursos para a encenação d’ Os Lusíadas,

de Luís de Camões. O coletivo de trabalho77 reuniu o diretor Celso

77 Biografias artísticas detalhadas e mais completas dos criadores responsáveis pela

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Nunes, o dramaturgo Carlos Queiroz Telles, o cenógrafo e figurinista Hélio Eichbauer, a coreógrafa Marilena Ansaldi, o músico e compositor Paulo Herculano e os assistentes de direção ZéCarlos de Andrade e Francisco Medeiros. Este núcleo, logo ampliado para um grande elenco de atores e músicos, iniciou os ensaios para A Viagem.

O ano era propício em relação às datas do calendário, que marcavam os 400 anos de publicação do poema épico em Portugal e os 150 anos da Independência do Brasil, ex-colônia portuguesa. Esse era o quadro geral onde a encenação foi produzida. Numa longa entrevista a mim concedida sobre a encenação, Celso Nunes recorda aspectos de época, particularidades e pormenores de grande interesse em torno daquele evento. Ele recorda, por exemplo, que aquela não havia sido sua primeira relação profissional com a produtora. A primeira experiência com Ruth tinha se dado seis anos antes, em 1966, e terminado em tiros de revólver. Nunes, naquele momento, era assistente de Antunes Filho para uma montagem de Júlio César, de Shakespeare, com tradução de Carlos Lacerda. A montagem de Antunes não fez sucesso, recebeu muitas críticas e o encenador desconhece também as relações de Antunes com Ruth do ponto de vista financeiro-empresarial no processo. Carlos Lacerda ajudava ou bancava isso tudo, pois havia interesse político e cultural, pela tradução do texto, e Lacerda era governador do Rio de Janeiro:

O Antunes, que havia dirigido a peça e dado com os burros n’água, afinou, se escondeu no Guarujá e deixou no ar que era o assistente de direção que iria fazer a seleção de elenco e preparar o espetáculo no Rio de Janeiro. “Assistente de direção” eram dois, eu era um deles. Aí a Ruth ficou marcando n encontros entre eu e ela, que se dariam na casa da mulher do Antunes, a Maria Bonomi, mas ela não vinha aos encontros. Eu ia e passava a tarde esperando a Ruth e ela não aparecia,

concepção e realização dos espetáculos são bastante conhecidas e, embora

relevantes, nada acrescentam a essa reflexão e, portanto, não serão aqui tratadas. Informações amplas e estudos biográficos nesse sentido podem ser localizados na Enciclopédia do Teatro Brasileiro, no site do Itaú Cultural:

http://www.itaucultural.org.br/.

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com o agravante que eu estava entrando para o teatro e isso implicava em faltar uma tarde inteira no meu trabalho, eu trabalhava numa empresa. Ela marcou, eu faltei ao serviço duas vezes e ela não apareceu. Marcou a terceira vez e aí quem não foi fui eu, entendeu? Bom, resolveram que o assistente de direção era o bode expiatório. (NUNES, 2011).

Na sequência e para a resolução do caso, é marcada uma

reunião no Teatro Ruth Escobar, com as presenças de Ruth Escobar, Vladimir Cardoso, Antunes Filho, Celso Nunes, Juca de Oliveira – que estava no elenco e o representava nesse encontro – e outros da equipe. Juca procurou mediar, segundo Nunes, na tentativa de convencer Antunes a ir ao Rio e dirigir o espetáculo.

Aí o marido da Ruth, o Vladimir Cardoso – que depois montou toda a cenografia d’O balcão – ficou desgostoso, muito nervoso, pegou o revólver e queria dar tiros no Antunes, no Juca, em mim, que éramos a equipe. Saiu todo mundo correndo e ali então foi que o Antunes decidiu que não ia fazer a peça no Rio de Janeiro, mas depois de ter sido assustado. Com isso, evidente, eu não recebi, trabalhei de graça, nunca me pagaram, e eu fui embora para Paris, fui fazer minha bolsa de estudos na França, fiquei quatro anos fora. (NUNES, 2011).

Ao voltar ao Brasil, Celso Nunes dirigiu encenações

premiadas, ganhou o prêmio Molière por O Interrogatório (1965), de Peter Weiss, e já havia trabalhado com grandes atrizes e atores como Fernanda Montenegro e Paulo Autran. Desse modo, entre o final de 1971 e início de 1972, quando procurado novamente por Ruth Escobar para fazer Os Lusíadas em uma megaprodução, o encenador relembra que ela o procurou como se nada houvesse acontecido e a experiência do Júlio César nunca foi comentada:

Pode ser que em 1972 ela nem lembrasse mais que eu era a mesma pessoa que estava na reunião com ela entendeu? Pode ser.

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Então a minha primeira questão quando ela me chamou para montar Os Lusíadas foi: será que agora ela vai me pagar? Quer dizer então que minha primeira preocupação com Os Lusíadas era muito menos de ordem artística e muito mais de fundo infraestrutural, porque em 1972 meu filho estava com meses de idade e eu precisava de tudo, comprar o leite, era o aluguel do apartamento, eu estava chegando de bolsa de estudos por quatro anos e de novo não recebi. E tenho os cheques até hoje. Porque a Ruth colocava Ruth Escobar no cheque, mas no banco ela era registrada Maria Ruth dos Santos Escobar. Aí chegava no banco e a assinatura não conferia. (NUNES, 2011).

O Teatro Ruth Escobar, com essa nova produção, irá

conhecer uma nova transformação espacial:

O Camões épico de Os Lusíadas foi transformado por Carlos Queiroz Telles em A Viagem. O dramaturgo forneceu a matéria-prima ao diretor Celso Nunes, que, desejoso de explorar as possibilidades espaciais, utilizou do porão às paredes laterais da sala. O público deslocava-se também de baixo para cima, visualizando a passagem da Idade Média para o roteiro exploratório do Renascimento. Um estrado móvel sugeria a navegação da caravela de Vasco da Gama, enquanto as passarelas engastadas nas paredes representavam os locais percorridos pelos desbravadores marítimos. (MAGALDI, 1985, p. 14).

O teatro brasileiro consolida, dessa maneira e segundo o

crítico, o seu prestígio vanguardista. Essa matéria-prima de Telles, a adaptação referida por Magaldi, é bastante alterada quando do encontro com a direção e a cenografia. No Programa do Espetáculo, além de um roteiro sequencial dos principais ciclos do poema que o espetáculo aborda, consta que os trabalhos de adaptação do poema tiveram início em abril e Telles realizou

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quatro versões até chegar à definição do texto para ser levado à cena. Em junho, o dramaturgo passou a trabalhar em conjunto com o diretor Celso Nunes e o cenógrafo e figurinista Hélio Eichbauer, período em que foram determinadas as linhas gerais do espetáculo. “O cenário começou a ser construído em julho, visando uma total remodelação da Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar. [...] Toda a separação palco-plateia foi eliminada e A Viagem será realizada em conjunto.” (TELLES, 1972c, p. 1).

Marilena Ansaldi assinou a coreografia e expressão corporal, e participou desde o início dos ensaios. Paulo Herculano, responsável pela composição e direção musical do espetáculo, supervisionou aproximadamente duzentos e cinquenta testes para atores ao lado do diretor Celso Nunes (TELLES, 1972c, p.1). Informações dessa natureza corroboram ao que Pavis (2008, p. 35) se refere, dentro dos instrumentos de análise, como ultrapassagem das “necessidades da informação mínima” existentes nos programas, para melhor compreensão do espectador. Os assistentes de direção, ZéCarlos de Andrade e Francisco Medeiros, dividiram-se em funções com núcleos diferentes de atores. Eles preparavam os elencos, encaminhavam o treinamento psicofísico, enquanto Nunes se dedicava às questões da emissão da voz dos atores de todas as maneiras: na frontalidade, pendurados no teto, de acordo com a cenografia. Ao apontar relações horizontais dentro da equipe artística no feitio da obra, próprias de processos coletivos e colaborativos, esse espetáculo aponta e inaugura procedimentos artísticos que nortearão e abrirão perspectivas para grupos e pesquisas posteriores embora, naquele momento, a produção estivesse ao encargo de uma produtora e captadora de recursos.

Existem duas versões adaptadas por Carlos Queiroz Telles sobre o texto de Luís de Camões. As cópias dessas versões são as fontes desse trabalho, oriundas dos arquivos de Celso Nunes. A Versão 1 estabelece o resultado concluído da adaptação da poesia original, porém de caráter transitório conforme o próprio autor assinala, por ainda não possuir definições quanto ao espaço cenográfico nem proposta estética ou linha de trabalho do futuro encenador. Sem adentrar em detalhes quanto à leitura do primeiro texto original para a cena, sua síntese é parte integrante deste trabalho. A Versão 2 será o texto assinado por Telles e trabalhado coletivamente na encenação, e que serve de matéria-prima ao

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estudo aqui realizado. Ainda, é relevante salientar outra versão que se situa entre estas duas, em estudo efetivado por Marco Antonio Guerra (2004), que também incorpora as análises aqui pontuadas, bem como importante relato do dramaturgo sobre o processo de trabalho.

Em depoimento prestado à dissertação de Marco Antonio Guerra, Carlos Queiroz Telles fala sobre sua dramaturgia e discorre sobre as circunstâncias e razões em que elas foram produzidas. Ao comentar sobre o contexto anterior ao processo de trabalho d’A Viagem, o autor esclarece que Frei Caneca estava nos seus planos e não foi feito por encomenda, enquanto que A Semana foi um trabalho para o Theatro São Pedro, que trata da Semana de Arte Moderna, ao qual dedicou extensa pesquisa sobre o tema, e “depois de penar durante cinco dias contra a máquina de escrever”, concluiu o que chamou de uma grande colagem irônica. Mais importante aqui é a relação processual: “Insisto, esse é um roteiro, eu não chamaria de uma peça, cujo mérito de realização final se deve indubitavelmente a duas pessoas: Fernando Peixoto e Hélio Eichbauer. Foi realmente uma quase criação coletiva.” (TELLES apud GUERRA, 2004, p. 133). É somente após essa experiência com um diretor e um cenógrafo que aparece a possibilidade de trabalhar com o texto de Luís de Camões, também por encomenda, agora pela produtora Ruth Escobar, que Telles achou que “devia estar louca” ao lhe propor o trabalho:

Fui para o meu sítio, li durante uma semana Os Lusíadas de trás para diante, diante para trás, reli e voltando eu disse: “Ruth, acho que é capaz até de dar”. Nessa altura eu tive um encontro com Victor García. Um encontro extremamente proveitoso aonde o Victor me incentivou demais a capacidade de criação. Foi uma conversa altamente comovente, foi uma madrugada incrível. E o Victor me acabou mostrando que realmente daria. E não apenas daria para fazer uma viagem muito fiel, vamos dizer a Camões, mas uma viagem altamente criativa em cima de Camões. Incentivado, eu trabalhei durante quinze dias na Viagem. Foi um trabalho de cola, tesoura e imaginação. Eu desmontei, destruí quinze

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edições dos Lusíadas, cortando, recortando, recolando, mudando, trazendo, dando uma ordem cronológica, revendo toda a estrutura dramática do poema, transformando aquela estrutura numa estrutura dramática – teatral, quer dizer, numa narrativa teatral e ao fim do que eu falei: “Opa, acho que deu!”. Trouxe a São Paulo, e para surpresa minha o Victor García desapareceu. Ele leu e não aguentou o tranco e se mandou. [...] Eu estive com Hélio Eichbauer novamente e com Paulo Herculano, que seria o compositor. A ideia era fazer desde o começo uma ópera-rock, nós achamos o teatro da Ruth e aí eu ainda fiz uma reordenação do roteiro em função do espaço encontrado. Esse, eu acho, que é um aspecto importante, que em todos os meus trabalhos eu sempre mexi na medida do necessário. Então, reordenei novamente todo o script e quando o Celso Nunes assumiu a direção já havia mais ou menos uma espinha dorsal. O trabalho dele já estava mais ou menos facilitado, embora ele tenha dado uma contribuição imensa para o espetáculo, que era verdadeiramente um grande espetáculo. Em fins de 1972, começo de 1973. (TELLES apud GUERRA, 2004, p. 133-134).

Dessa experiência resultou a Versão 1 do trabalho de Telles, no âmbito desta investigação. Apresenta 107 páginas, com certa abundância de rubricas para esclarecimentos quando da transposição do texto para o palco, fruto do mergulho sistemático que empreendeu na obra. Considero importante constar esse particular, pois é notória a transformação por que passa o processo de transposição das linguagens poética e dramática de uma versão para a outra – e nesse caso o hiato entre as duas (a versão estudada por Marco Antonio Guerra) também se torna pertinente –, pois o resultado aponta evidências do trabalho contínuo e reflexivo, tanto inicialmente quanto na fase posterior, já em conjunto com a direção, a cenografia

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e toda a equipe do espetáculo, no processo de montagem. Essa nova leitura de um texto preexistente, recheado de simbologias e significados mitológicos e posto em relação ao contexto brasileiro é o desdobramento das relações textuais “superficiais” e as estruturas “profundas” de que trata Ubersfeld78, e caracteriza um tratamento autoral à obra clássica. Além disso, essas evidências procuram apontar analogias a processos semelhantes relativos ao trabalho dos dramaturgos José Rubens Siqueira e Valderez Cardoso Gomes, que assinam as duas outras adaptações dos espetáculos presentes neste estudo, e sobre as quais não tratarei de versões anteriores às versões “finais” trabalhadas junto aos respectivos encenadores pelo motivo de não possuir material de pesquisa relativo a esses processos dramatúrgicos anteriores.

Na cópia inédita datilografada de Telles transparecem as reflexões e visões do dramaturgo quando das concepções iniciais, eixo e guia das versões que se seguiram, ainda que com todas as alterações futuras previamente anunciadas e esperadas. Nas informações a respeito do roteiro elaborado por ele, reafirma ser um trabalho inicial e que deve ser revisto quando levado ao palco. Nove grandes cenas ou ciclos condensam o poema original de Camões e correspondem aos episódios principais do texto. Ele manteve as estrofes integrais, embora divididas entre dois ou mais personagens. Deixou em aberto possíveis novas partes que serão depois musicadas, além das que já estão apontadas no roteiro, reiterando não ser ainda a redação definitiva. Como apontamentos para o encenador, antes de cada ciclo, há breves observações sobre a orientação

78 Anne Ubersfeld, dentro das reflexões sobre o modelo actancial no teatro, cita Van Dijk: “Determinações ‘superficiais’: personagens, discursos, cenas e diálogos, tudo o que diz respeito à ‘dramaturgia’; estrutura profunda: a sintaxe da ação dramática, seus

elementos invisíveis e suas relações.” (VAN DIJK apud UBERSFELD, 2005, p. 31).

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dramática que permeou o seu trabalho de adaptação. A redução do texto, explica, só poderá ser feita quando da montagem, portanto levando em conta a opção estética que será escolhida pelo encenador. Na sequência, estabelece os nove Ciclos. É a sua síntese da obra original camoniana79:

Visão do Primeiro Ciclo: Camões apresenta a proposição do poema. De sua cabeça, nascem as Tágides. Camões e as Tágides dedicam o poema a D. Sebastião. D. Sebastião se faz acompanhar por sacerdotes do Santo Ofício. São personagens fantasmagóricos, uma vez que pouco ou nada tem a ver com a realidade histórica ou mistura do poema (p. 3). Visão do Segundo Ciclo: Camões apresenta D. Manuel como primeiro e último rei da narrativa. Em D. Manuel se encontram o princípio e o fim do poema. Todo o ciclo tem um clima místico de batizado e missa de corpo presente. É também uma grande liturgia onde o Oriente convoca o Ocidente para o ritual do poema. Os ritos greco-romanos começam a se confundir com a liturgia católica. No embarque o povo constitui um grande coro de carpideiras, que culmina com a aparição do Velho do Restelo (p. 7). Visão do Terceiro Ciclo: É o ciclo da imaginação infantil, onde todas as histórias assumem uma proporção assustadora e irreal. O poema é ainda apenas uma aventura sem objetivos de conquistas: política, econômica e religiosa. É o ciclo da imaginação dos marinheiros, da alegria de um início de trabalho. O clima é de um grande circo, onde o próprio Adamastor perde suas proporções trágicas. A cena 1 passa-se numa

79 Optei por enumerar as páginas localizadas na Versão 1 ao final de cada visão dos Nove Ciclos, em lugar de citá-las uma a uma com novas notas de rodapé. Há a opção também pela citação completa – apesar de extensa –, já que considero toda a

concepção do autor sobre a poesia original aqui condensada.

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noite de luar. A cena 2 pode ser eliminada na montagem (p. 13). Visão do Quarto Ciclo: Os homens estão vivos. Os deuses estão morrendo. Reúnem suas últimas forças para interferir na viagem. É uma farsa necessária e todos estão de acordo, os que são pró e os que são contra o sucesso da viagem. Vênus é Nossa Senhora. O ciclo é uma encenação grega dentro de uma Catedral (p. 22). Visão do Quinto Ciclo: É o ciclo da descoberta do mundo da adolescência, da história em quadrinhos, do Robinson Crusoé, de Ulisses e Gagarin, de Brucutu e Flash Gordon. As implicações políticas e econômicas da viagem ainda são secundárias. Camões está mais interessado em contar uma história e para que os espectadores se interessem vale tudo: Baco vestido de padre e Vênus rebocando as naus (p. 26-27). Visão do Sexto Ciclo: Vasco da Gama assume o papel de narrador. Camões só participa do episódio de Inês de Castro. Assim como o mapa da Europa, na cena 1, a história de Portugal deve ser narrada por Vasco da Gama, com a ajuda de uma fantástica árvore genealógica dos reis mencionados. Esta visualização pode ser feita com os próprios marinheiros, suspensos nos cordames da nau. Os grandes episódios históricos devem ser apresentados em outro plano, onde se alteram o mágico e o histórico. As batalhas podem ser representadas na forma de um teatro de marionetes ou grand guignol (p. 49). Visão do Sétimo Ciclo: É o ciclo da desmistificação dos deuses. O Concílio de Netuno é uma opereta. Camões não acredita mais nos personagens mitológicos que criou. Cansado com a caduquice dos deuses, o poeta resolve limpar a alma ouvindo uma história popular, Os 12 de Inglaterra. Embarca na nau e ouve Veloso contar a lenda, que pode ser representada com marionetes. Esquecido do resultado do Concílio, Camões se vê envolvido pela tempestade, e ajuda os

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marinheiros a salvar a nau. Com raiva dos deuses, que vieram atrapalhar sua viagem, dá um fim ridículo à tempestade: as ninfas correndo atrás dos ventos em volta da nau (p. 65-66). Visão do Oitavo Ciclo: A aventura passa a ter uma finalidade próxima: a conquista e o domínio da Índia. Camões integra a tropa de ocupação. O poema cai em descrição de transações comerciais, de mercadorias e de gentes. Os feiticeiros locais, mesmo sem a ajuda de Baco, teriam percebido as intenções dos portugueses. Sua cena é candomblé puro. O povo não aceita os portugueses. O Samorim apenas negocia para obter vantagens. Não há guerras religiosas – há luta econômica. Os objetivos finais da viagem foram atingidos: a Índia está conquistada. (p. 81). Visão do Nono Ciclo: A Ilha dos Amores é o happy-end, o grand finale do poema. Camões ressuscita Vênus e promove a festa para ver se consegue participar dela. Mas ele é um marginal e acaba ficando de fora. A Ilha dos Amores é um desabafo pagão e primitivo depois da conquista cristã da Índia. A Ilha tem um certo jeito de bordel de cais de porto. Tétis é administradora do bordel, Cupido o homossexual e as Nereidas as prostitutas recrutadas para recompensar os marinheiros. Terminada a festa, Vasco da Gama recebe a Máquina do Mundo. Diante dela, os homens se igualam aos deuses. Tudo está ainda para ser conquistado, por outros homens. Esta viagem foi pouca, os marinheiros são bons burgueses que tratam de voltar para casa. Camões fica. (p. 94-95). (TELLES, 1972a, p. 2).

Nessa primeira versão, portanto, há todo um processo de

releitura da obra de Camões, na qual ele faz parte da trama como narrador. O mito das errâncias do peregrino e a imagem do poeta maldito e solitário é sublinhada na rubrica: Camões é um marginal que promove a festa na Ilha dos Amores, mas não participa dela.

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O personagem fica pelo caminho, não acompanha as glórias e pompas posteriores dos nautas que conseguem retornar ao seu destino e são recebidos como heróis. Ele divide a função narrativa da viagem, expondo os aspectos históricos, enquanto as Tágides são responsáveis pelos aspectos mitológicos do poema para a cena. Telles apresenta a literatura como postura política de resistência. Depois da poesia, ele afirmou em entrevista, assumiu o teatro como ferramenta política.

Marco Antonio Guerra traz importantes informações e esclarecimentos sobre essa etapa do processo, tendo em vista a ausência do dramaturgo, já falecido. Em seu livro, já citado, tece comentários sobre o trabalho de Telles na transposição do poema épico para o texto dramático. Na adaptação, percebe-se que não leva ainda em conta a questão do espaço cênico e é anterior à chegada do diretor, pois “a ação não está localizada num espaço e tempo pré-determinados”, e informa não existir no texto adaptado uma só palavra que não seja do autor da poesia original. Segundo ele, a intervenção de Telles está na organização que foi dada aos textos, ou seja, a ordem em que estão apresentados evidencia a dimensão política e as intenções do autor. O que emerge de sua leitura de Camões é a sua “preocupação com o momento histórico do Brasil, pretendendo passar nas entrelinhas o problema do poder e da usurpação” (GUERRA, 2004, p. 171). Essa adaptação de Telles analisada por Guerra serve como um roteiro para a encenação, sendo a estrutura dramática bastante simplificada e colocada numa ordem cronológica, na qual o texto fica dividido em cinco ciclos, onde são destacados os momentos de maior ação. O texto não se atém “à exaltação de expansão ultramarina portuguesa” e sim ao “domínio e posse da África e da Índia”, e é na fala do Velho do Restelo, colocado em cena por duas vezes – no início e no final da peça – que isso se evidencia. No início tem o sentido de oposição aos avanços da história, portanto de matiz reacionário; e no

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final, como crítica ao Império colonial explorador e à sua prepotência. Historicamente, este final justificava o fato de a África estar sofrendo naquele momento um processo de descolonização por conta da má fase do regime de António Salazar. Ele conclui que a peça é “uma discussão sobre o poder exercido pela força, legitimada através do Estado e da Igreja, e exercido em nome do avanço do progresso civilizador.” (GUERRA, 2004, p. 172).

Celso Nunes, ao abordar as questões relativas às adaptações de obras não destinadas ao palco, traça também o perfil buscado no espetáculo e que dialogava com o momento brasileiro. Em sua concepção do espetáculo, épocas diferenciadas se coadunam e exprimem ideias e considerações sobre lugares e aspectos históricos. Em relação à poética do espetáculo, o encenador recorda situações importantes, como ter conhecido a Grécia e Portugal, experiências que se tornaram proveitosas para a montagem posterior, segundo ele. Sobre as memórias, o imaginário de um encenador e seus cruzamentos na concepção da montagem, pontua:

Quando eu fui à Grécia vim a entender direitinho o que era essa questão do Humanismo, a estatuária onde o homem é o centro das coisas e onde o homem é a imagem do homem, diferentemente, por exemplo, da arte egípcia, da arte bizantina, onde a figura humana não entra com as suas características anatômicas e também porque na Grécia eles caprichavam na figura. Realmente essa é uma cultura onde o homem era o centro da inquietação do próprio homem. Isso antes da Era Cristã. Depois, quando eu reencontro o Camões, vinte séculos depois da Grécia... Quer dizer, Camões aqui, bem perto de nós hoje em dia comparado com Ésquilo, com Sófocles, dois mil anos, onde acontece o cristianismo no

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meio. Nesses dois milênios que separam a cultura grega do Camões é que você entende bem o que é se falar em Renascimento. Porque tudo o que o cristianismo e a Igreja foram sufocando ao longo de milênio e meio, aparece n’Os Lusíadas de novo, o homem como centro da atenção. Quando você está a dois mil e quinhentos anos depois no mesmo mar Egeu, pisando na mesma areia que Ulisses teria pisado e imaginando a saída das caravelas, você aterriza uma experiência que era de ordem intelectual, eu senti que estava ali no momento da Odisseia, quando essa gente saía numa aventura por um mar que lá na linha do horizonte acabava e podia cair todo mundo num precipício. (NUNES, 2011).

Esses três momentos: os navegadores gregos pré-

cristianismo, os navegadores portugueses do cristianismo – no período histórico compreendido entre a Idade Média e o Renascimento – e os navegadores portugueses da década de 1960 que estavam embarcando para uma guerra na África a mando de Salazar e não pela crença de um abismo no horizonte criaram o “DNA imaginário”, no dizer de Nunes (2011): “O homem já tinha posto um pé na Lua e, no entanto, um homem entrar no barco e sair para o desconhecido provoca o mesmo desconforto em quem fica na terra, esse mito que é a terra e o mar, esse limite, o sólido e a aventura completa.”

Sobre a evolução da dramaturgia no Brasil até os anos de 1970, Nunes alude a um período de tempo de aproximadamente cinquenta ou sessenta anos atrás. Naquele momento, os autores gostavam de escrever para o teatro e se falava de ópera como uma coisa do passado, porque já não era mais o foco de atenção de escritores e de compositores. Quando se tratava de óperas, mais frequentemente se montavam óperas do passado, que faziam alusões a temas caros ao período da montagem, embora possam existir óperas atuais, com assuntos pertinentes ao tempo presente. Essa característica, hoje em dia, também se encontra no teatro, dados os poucos que se dedicam a escrever para o palco no Brasil. Dessa maneira, para o encenador, textos que já foram muito encenados são procurados para novas propostas de encenação e, por outro lado, espetáculos feitos a partir de

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literatura de ótima qualidade, mas não escritos originalmente para a cena, têm destaque no atual cenário brasileiro.

A década que surgia, após grandes acontecimentos teatrais pelo mundo nos anos 1960, que questionaram e alteraram práticas artísticas e estéticas – no Brasil aportando um pouco mais tarde –, trazia um cenário de produções teatrais nacionais que primavam por espetáculos com elencos reduzidos, para a sua viabilidade. Autores como Plínio Marcos, Nelson Rodrigues e Oduvaldo Vianna Filho entre outros dramaturgos; e dramaturgas como Leilah Assunção e Consuelo de Castro abrindo espaço para as questões do universo feminino e o colocando em evidência, eram expoentes no Brasil de então. Nesse contexto, e com uma dramaturgia bastante voltada para o realismo, realizar um espetáculo com base em um texto poético clássico e não escrito para ir à cena era peculiar e parte das experiências iniciais a inaugurar processos de criação cênica a partir de textos poéticos:

Quando começamos a falar d’ A Viagem para estrear em setembro de 1972, a gente tinha um pouco esse desafio, que hoje em dia é quase comum, mas que visto no contexto da época era um grande desafio. Uma ditadura instalada e nesse momento você voltar a atenção para Os Lusíadas era uma coisa que soava quase como maluquice, entendeu? Porque não era uma prática adaptar um clássico da literatura, ainda mais portuguesa, para o teatro. O Brasil estava aplaudindo e brilhava Navalha na carne, peças de dois ou três atores porque grupos com ideologia própria estavam impedidos. A ditadura não deixava existir grupos. Quando aparece a ideia d’ Os Lusíadas isso bate um pouco no valor do teatro italiano que era Orlando Furioso, do Ariosto. Quer dizer, Orlando inaugurava para o mundo, naquela década de 1960, esse espetáculo épico de novo no palco. Então, nesse contexto, pegar Os Lusíadas e querer fazer disso um espetáculo no Terceiro Mundo sobre o Terceiro Mundo, falando da colonização do Primeiro Mundo sobre o Terceiro, isso era uma grande temeridade em termos dramatúrgicos, uma

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obra de porte imenso e que não foi pensada para o palco. E tem o fato de nós termos sido, digamos, os primeiros a colocar em cena um clássico épico da literatura e da língua portuguesa. (NUNES, 2011).

O espetáculo Orlando Furioso, de Luca Ronconi em 1969, e

a criação coletiva do Théâtre du Soleil, 1789, com direção de Ariane Mnouchkine, em 1971, foram acontecimentos marcantes que conciliaram e concretizaram quase que simultaneamente uma dupla aspiração de encenadores ávidos por renovações: “uma arquitetura teatral completamente liberta da tradição do espetáculo à italiana, mas também capaz de acolher um público tão amplo quanto possível” (ROUBINE, 1998, p. 85), já que os espetáculos de Grotowski realizavam as aspirações de Artaud e de Brecht, ao conseguirem libertar-se da arquitetura do teatro à italiana, porém em prejuízo da popularização do espetáculo, no caso, proposital pelo encenador polonês. Segundo Pavis, “a morte anunciada do autor coincide com o fim do progresso econômico e da teoria. [...] A encenação é, portanto, concebida seja como prática significante, obra aberta, seja como ‘escritura cênica’ (Planchon) provida de um metatexto.” (PAVIS, 2010, p. 20). Para Nunes, entrar em contato com o épico,

era de uma fantasia inacreditável para nós todos. A descoberta do caminho para as Índias, de como vão aparecendo as populações – etnicamente era uma viagem –, musicalmente... Gente que trabalhava com música experimental, junto com o Paulo Herculano que induzia as buscas. O Paulo compunha e eles iam à luta. Paulo já falava: aqui é tambor, ali é corda, e aí foram construindo com cascas e troncos de árvores. (NUNES, 2011).

Na versão 2 anotada do diretor, Camões já aparece “diluído”

entre os personagens. A visão inicial de contar com um narrador, através de um roteiro próximo do épico e contado um pouco à maneira das histórias em quadrinhos, onde legendas poderiam ilustrar as imagens, é alterada na medida dos encontros e trocas entre diretor e dramaturgo. O objetivo, bastante discutido, girava

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em torno de “como” se daria o andamento e a narração do espetáculo. Para Nunes, muitas cenas eram em si eloquentes, já iriam acontecer no espetáculo, portanto era preciso que o texto se transformasse em fala na boca de personagens. Camões precisava ser mantido, mas desaparecer na fala de cada ator. Onde fosse necessário um narrador, aí era preciso criar um jogral, um grupo de atores e atrizes que, vestidos à maneira de arlequins, contassem passagens do poema para o público, sem que isso impedisse a outros atores vivenciarem situações simultaneamente.

Sobre as relações com o dramaturgo, o diretor deixa evidente ser o trabalho coletivo e cúmplice o combustível da poética teatral. Nesse caso, explica que conheceu Telles bem antes desse momento artístico. Em 1970, Telles havia sido o tradutor d’ O Interrogatório, de Peter Weiss, juntamente com Teresa, sua mulher, para a direção de Nunes. O original alemão, que na íntegra tem de quatro a cinco horas de duração, necessitava de um grande trabalho de adaptação, principalmente quando pensado no ano de 1970, logo após a decretação do AI-5, e foi retrabalhado diferentemente da primeira produção em São Paulo para a segunda, no Rio de Janeiro, considerando as cidades e plateias diferenciadas. Para Nunes, a viagem do homem à Lua, que deu início às viagens espaciais em 1968, era preponderante:

Era uma coisa que dava a letra, o toque da década para a gente. No final da década anterior, um dos grandes mitos – inclusive da poética mundial –, que era a Lua, estava transformada numa bola de pedra, sem vida, girando em torno da Terra. A Lua tinha perdido seu status de inspirador poético. Portanto, quando a gente começou a fazer Os Lusíadas, para nós era muito bom fazer esse paralelismo entre a aventura das Grandes Navegações e a aventura das primeiras viagens tripuladas espaciais. Para nós, conceber uma caravela girando no Cosmos – como foi o cartaz d’ A Viagem – era algo que não era só um lance de marketing. A gente acreditava nisso, que os navegadores portugueses e espanhóis, ao se lançarem no mar com aquelas embarcações toscas de

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madeira, sem tecnologia, com panos para serem levados pelo vento, sem motor, sem gasolina, sem diesel, sem nada, estavam se atirando em um mundo de aventuras. Quem sabe até mais fantasioso do que o mundo de aventuras que espera um cosmonauta, já na era da mídia, da TV, da luz elétrica, do cinema, de tudo que a gente sabe que os anos de 1960 se valeram para fazer todo tipo de revolução que fizeram. Foi por aí que nós trabalhamos o texto e focamos o espetáculo na figura do Vasco da Gama, como se ele fosse um super-herói à medida dos super-heróis que haviam estado na Lua, o Armstrong e seus colaboradores. Nesse momento vimos a atualidade da viagem do Vasco da Gama, do ponto de vista poético e do ponto de vista aventureiro. (NUNES, 2011).

Esse acordo de mexer no texto conjuntamente, já no

momento de fazer a nova produção d’ A Viagem, portanto, vinha de outras experiências vividas e comemoradas. A colaboração havia há pelo menos dois anos de sucesso entre eles, Telles no trabalho de tradução e adaptação de textos e Nunes no trabalho de encenação dos espetáculos. O cartaz da peça, por exemplo, foi confeccionado no escritório em que Telles trabalhava e era sócio. Sua visão do fazer teatral era “bem pouco purista” e ele queria fazer as coisas darem certo, não trabalhava a arte pela arte, e isso os aproximava e os capacitava a trocar experiências bem sucedidas, conforme o diretor. Ele considera o dramaturgo com uma visão bastante objetiva, pragmática e eficiente sobre o teatro. Se Telles precisasse mexer no texto, alterava. Não no sentido da mutilação, mas no sentido de fazer um teatro que tivesse eficiência junto à plateia, e isso acontecia, segundo Nunes, por ele ser, além de poeta, tradutor, escritor e publicitário: “A gente tinha um back ground legal teatralmente falando.” (NUNES, 2011).

E não foi diferente em relação à cenografia. Para Nunes e Telles, o cenógrafo e figurinista Hélio Eichbauer era a pessoa ideal para fazer aquele trabalho naquele espaço cênico vazio, fundamental naquela proposta, uma vez que ele era profundo conhecedor da arquitetura teatral, havia estagiado e estudado com Joseph Svoboda na Tchecoslováquia e, desde seu retorno ao

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Brasil, assinado uma das mais inquietantes montagens dos anos de 1960: a produção de O Rei da Vela, pelo grupo Oficina. A escolha, portanto, se pautava

pela sensibilidade, pelo talento criador que ele tem, e muito também porque é uma pessoa extremamente informada, ele tem muita cultura, ele sabe muita coisa. A gente precisava ali de alguém que interpretasse tudo, os universos todos que vinham nos inspirando, Grécia, a Lua no final dos anos 1960, Camões. Já era uma viagem, a gente já estava numa viagem e o termo “A Viagem” não era tão banalizado como é hoje. Naquele momento a gente estava perto da era do LSD, das viagens lisérgicas, onde você, digamos, derrubava neurônios para chegar em sensações, percepções que você ainda não tinha chegado. (NUNES, 2011).

Sobre os artistas convidados para fazer parte da

“tripulação”, cada vez mais ampliada para o processo de trabalho, transparece a força do coletivo de esforços. Nunes reitera que a soma interpretativa de tudo o que acontecia estava muito apoiada na equipe que acabou sendo criada e que trazia pessoas com nomes expoentes nas suas respectivas áreas, como Marilena Ansaldi, Paulo Herculano na música, e o Hélio na cenografia: “Quero dizer com isso tudo que dali para a gente começar a imaginar o espetáculo que faria foi uma questão mais de tempo, de deixar amadurecer o processo.” (NUNES, 2011).

A Versão 2 que ora se estuda, também com cinco ciclos – portanto se aproxima daquela estudada por Guerra mas é posterior a ela –, apresenta agora o espaço cênico reservado à montagem do espetáculo, de modo que se evidencia o trabalho com o encenador e o cenógrafo. Nesta versão, as observações do diretor apontam para mais cortes – considerados os nove ciclos anteriores agora reduzidos a cinco pelo dramaturgo –, anotações levantadas para posteriores comentários e resoluções do cenógrafo, pontos de interrogação para esclarecimentos com o dramaturgo e dúvidas próprias sobre determinadas passagens do texto na cena. Na análise que realizei sobre o texto anotado pelo encenador e outra cópia existente com ZéCarlos de Andrade, um

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dos assistentes de direção, é possível flagrar inúmeras anotações, desenhos, sinais e ênfases próprias ao espetáculo, constituindo

os cadernos de encenação apontados por Pavis.80 Os cinco ciclos estabelecem as divisões do texto levado à cena: 1. Da Proposição à Partida das Naus; 2. De Lisboa a Melinde; 3. Estada em Melinde; 4. De Melinde até a Partida da Índia; e 5. Ilha dos Amores e Máquina do Mundo. Dentro de cada ciclo há subdivisões. Várias cenas distribuídas em cada um deles, decompondo o texto e tecendo uma teia de movimentos internos à encenação. Além de apresentar-se com 58 páginas, o texto é acompanhado de rubricas sobre o posicionamento dos atores, o que deixa transparecer sua proximidade em relação aos contornos que a encenação já delineava, pelo andamento dos ensaios, no espaço cênico proposto. É este o texto que servirá de guia para a encenação e para este estudo.

PRIMEIRO CICLO: DA PROPOSIÇÃO À PARTIDA DAS

NAUS O espetáculo inicia com um grupo de músicos na entrada do

teatro. Narram cantando a Proposição, o início da epopeia. Os atores estão na escadaria principal, entre a entrada e o porão, para onde o público adentra o espaço. A canção inicial, cantada por todos, sublinha e reforça os quatro versos principais do poema original: “Cesse tudo o que a Musa Antiga canta / que outro valor mais alto se alevanta / cantando espalharei por toda parte / se a tanto me ajudar o engenho e arte”, que inicia e termina o canto e a cena. Há a inversão proposital dos versos iniciais do poema, a exclusão do detalhamento das grandes navegações e as guerras do passado, os seus heróis, todos contidos na “Musa Antiga”. As duas estrofes pertencentes à Invocação, no poema original, foram suprimidas. A rubrica indica a ocupação do espaço pelos atores, formando uma espécie de túnel: “Os atores permanecem na escadaria principal da entrada até o porão, enquanto o público desce. O grupo de jograis, com seus instrumentos, pode ficar no

80 Distintos dos programas dos espetáculos, os cadernos de encenação não apenas a

acompanham, mas constituem as suas chaves: “Em geral não são acessíveis ao espectador comum, mas que o teatro, ou a equipe artística, decidiu preparar por razões as mais diversas, sem se preocupar em influenciar um futuro leitor.” (PAVIS, 2008, p.

36).

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saguão de entrada ou na sala de espera do balcão.” (TELLES, 1972b, p. 2).

O movimento do público em direção ao porão era acompanhado das cantorias, que se misturavam aos gritos e lamentos das mulheres que se despediam de seus maridos e de seus filhos. Elas solicitavam atenção pelas feridas que se abrem nessa ruptura indesejada, gritando ao público que passa pela escadaria. Nunes via como uma coincidência que se mostrou favorável à montagem o fato de ter estado em Portugal em 1968. O Porto da cidade de Lisboa, o Museu das Janelas Verdes, as escadarias e as senhoras portuguesas que usavam vestidos, saias compridas e lenços na cabeça, o que as aproximava das carpideiras gregas presentes em velórios e que choravam as almas defuntas:

Aquelas mulheres estavam ali para se despedir dos filhos que estavam partindo para as guerras que Portugal mantinha no solo africano, e elas gritavam e se penalizavam, e batiam no peito, e se enrolavam a cabeça nos xales e esses gritos eram muito lancinantes, muito doídos, e eram ouvidos ali por qualquer pessoa que estivesse no bairro. Os moços, as crianças delas que estavam indo nos barcos você já não via, você via aqueles barcos longe, dando aqueles apitos que barco dá. A gente então começou a imaginar o espetáculo como sendo a partida. A Partida das naus, a fala do Velho do Restelo, tudo isso acontecia num tempo em que Portugal vivia uma grande ditadura do Salazar e também que era muito difícil falar: não vou pra guerra ou sou contra. Eles tinham que ir, estavam alistados e iam. Eram gerações inteiras que eram mandadas, era uma década que tinha falado muito de guerra, os anos 1960, Estados Unidos com o Vietnã, entendeu? São imagens que ainda hoje eu tenho presente na memória e que combinavam bem com o que a gente queria com o espetáculo. (NUNES, 2011).

No porão ocorre a Dedicatória: D. Manuel, D. Sebastião, o

Censor do Santo Ofício e Vasco da Gama aparecem sobre um

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grande praticável giratório. Quatro escravos giram o praticável enquanto dizem o texto dedicado ao rei. Ficam expostas as hierarquias se instaurando no Novo Mundo. Colonizadores e colonizados simultaneamente apresentados em uma plataforma giratória, algo como antigos moinhos de engenho circulares. Na parte inferior, a mão-de-obra escrava indica a configuração do que acabou sendo os futuros empreendimentos inaugurados pelas navegações portuguesas. Negros movimentam a plataforma superior com grande esforço de trabalho.

A gente consegue, aqui, fazer um espetáculo que fazia uma leitura crítica dessas conquistas. Quer dizer, nosso espetáculo tinha como objetivo mostrar dois lados do mesmo fato. A conquista louvável, maravilhosa, porque é o espírito humano que se lança na aventura rumo ao desconhecido e por outro lado, o outro lado da moeda, é que o homem é uma espécie que não deu muito certo porque no convívio com outras raças tem sempre o desejo de domínio, de controle da situação. Assim, os feitos dos grandes navegadores não escaparam da regra de uma dominação, de uma colonização, de uma exploração mesmo, econômica, do que esses povos tinham, ou do pouco que tinham, como era o caso do povo brasileiro. Isso para nós era ponto de reflexão. (NUNES, 2011).

Aqui se observam dois fatos importantes em relação ao

sentido que há na passagem do poema para a encenação: O primeiro se refere ao tom solene dessa passagem no poema original, que tem seu sentido alterado na cena pela crítica irônica das vozes que repetem a mesma fala. Os escravos falam primeiramente um a um e depois a Dedicatória é dita simultaneamente. A rubrica assinala: “Dos nichos e reentrâncias do porão ouve-se vozes, imitando em tom irônico os escravos. Som de guizos e matracas. Efeitos de câmara de eco. A cena termina em grande alarido” (TELLES, 1972b, p. 3), indicando que a obediência esconde desconfianças e é relativizada. O segundo fato é com relação à alteração de sentido nas versões da adaptação: na Versão 1, Camões e as Tágides dedicavam o

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Poema a D. Sebastião – conforme a citação do Primeiro Ciclo nas páginas anteriores – e os personagens tinham pouco a ver com a realidade histórica e eram uma fantasmagoria. Por outro prisma, agora novo na cena, eles têm tudo a ver. Os personagens têm, assim, dimensão valorada na cena. O mesmo texto de Telles, apresentado dentro de outro contexto cênico, passa a evidenciar alterações de sentido. Essas alterações são perceptíveis cenicamente pelo movimento dos atores, pelos significados de suas ações físicas, por suas representações e figurinos das diferentes classes, pela disposição do espaço cênico.

Repleto de significados dentro do espetáculo, o figurino cumpre funções de identificação de culturas distintas, dentro de circunstâncias conflituosas ou não. Os trajes suntuosos, elaborados e utilizados pelos nobres e o clero portugueses contrastam com a quase nudez dos negros escravos que conduzem e sustentam a máquina idealizada pelo poder instituído. A cena já considera os tempos que se seguiram às navegações, às fundações das colônias no Novo Mundo e os negros trazidos dos contatos portugueses na África daquele tempo, numa alegoria que remetia diretamente à colonização brasileira. No espetáculo, foram abolidas as vinculações de natureza cronológica histórica, que fizessem referência ao índio nativo do Brasil. Esse salto na história é proposto pela encenação e se mostra eficiente, pois aponta as consequências resultantes do encontro, perceptível na alusão da cena aos futuros escravos do Brasil Colônia. Dentro do espetáculo, mais tarde, eles aparecem na tribo com suas roupas africanas, “mas ali quando eles estão suportando o Estado português, eles aparecem com roupas de escravidão mesmo, de escravo. Aquelas calças de algodão cru branco no meio da canela, o dorso sem roupa nenhuma, um turbante.” (NUNES, 2011).

Nessa plataforma, inicia o discurso dos poderes constituídos. D. Sebastião, o rei, concede a licença e o Censor do Santo Ofício assina a liberação do Poema. Os textos incluídos na adaptação não fazem parte do poema original e sim das prerrogativas necessárias à sua liberação na época pela Nobreza e pela Igreja. A cena criada, assim, revela uma leitura crítica sobre as relações de poder, no passado e no contemporâneo, e os diferentes olhares da questão colonizador/colonizado, na perspectiva deste último. D. Sebastião toma a palavra:

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Eu El Rey faço saber que este Alvara virem que eu ey por bem & me praz das licença a Luis de Camões pera que possa fazer imprimir nesta cidade de Lisboa, hûa obra em Octava rima chamada Os Lusiadas, que contém dez cantos perfeitos, na qual por ordem poética em versos se declarão os principais feitos dos Portugueses nas partes da India depois que se descobrio a navegação pera ellas por mãdado Del Rey dom Manuel meu visavo que sancta gloria aja e antes de se imprimir será vista e examinada na mesa do conselho geral, do santo officio da Inquisição pera co sua licença se aver de imprimir. E este meu Alvara se imprimirá outrosi no principio da dita obra, o qual ey por bem que valha & tenha força & vigor, como se fosse carta feita em meu nome, por mim assinada & passada por minha Chancellaria. Lisboa a vinte e quatro dias do mês de Setembro de MDLXXI. (TELLES, 1972b, p. 3-4).

O discurso do Censor do Santo Ofício, Frei Bartolomeu

Ferreira, igualmente se mostra importante e pode representar, além do já exposto, as relações de poder dentro das esferas institucionais. Possíveis cismas dentro da Igreja à época, ou setores dela contrários à publicação da obra poética por esta trazer os deuses pagãos e seu mundo dentro dela, ainda que exaltasse a propagação da Fé e do Império. Palavras do Censor:

Vi por mandado da santa & geral Inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia e Europa, e não achey nelles cousa algûa escandalosa nem contrária à fé & bõs costumes, somente me pareceo que era necessario advertir os Lectores que o Autor pera encarecer a difficuldade da navegação & entrada dos Portugueses na India, usa de hûa ficção dos Deoses dos Gentios. E ainda que sancto Augustinho nas suas Retractações se retracte de ter chamado nos livros que compos De Ordine, as Musas Deosas. Toda via como isto

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he Poesia & fingimento, & o Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo Poetico não tivemos por inconveniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal & ficando sempre salva a verdade de nossa sancta fé que todos os Deoses dos Gentios san Demonios. E por isso me pareceo o livro digno de se imprimir, & o Autor mostra nelle muito engenho & muita erudição nas sciencias humanas. Em Fe do qual assiney aqui. (TELLES, 1972b, p. 4).

Na sequência os jograis iniciam a narração do poema. Eles

agem em conjunto, e as interferências acontecem, em sua maioria, simultaneamente. O texto corresponde, no poema, aos versos ditos por Vasco da Gama, Paulo da Gama, as Tágides ou o próprio Camões. As rubricas indicam a entrada, por praticáveis laterais, “dos atores que representarão dez personagens da história de Portugal. São personagens mudos, em postura de estátuas de um grande museu de cera.” (TELLES, 1972b, p. 5). Eles apresentam os primórdios da história de Portugal pelos seus personagens históricos. Entre as apresentações das figuras destacadas pela história, os jograis tocam e cantam, em um clima de feira medieval. Os arlequins são narradores e contraponto ao status quo. Seus figurinos os associam aos cômicos medievais, mas falam ao presente. O destaque das figuras estabelece significados cômicos e críticos sobre a ordem vigente. A grande feira medieval serve de palco para a apresentação dos antepassados gloriosos da História de Portugal, mas o alarido e a profusão simultânea de eventos realizados na cena sugerem cumprir a função de reduzir a exagerada importância das demonstrações dos heróis da história, com as devidas alusões ao regime repressor brasileiro em vigência. A presença dos jograis cumpre aqui dupla função: demonstra os movimentos internos dos períodos, mostrando que nem só de trevas vivia a Idade Média; e nem os eventos militares do país da época eram plenamente eficazes na vigilância e controle das liberdades individuais e sociais. Contrastantes, ora distanciados e ora participantes da cena, são os coringas e contadores de histórias que, com suas palhaçadas, atravessam os tempos.

A transição para a partida das naus tem início. A concretude

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do espaço cenográfico por si só é metáfora para alterações de padrões de pensamento à época, dentro da metáfora proposta pela encenação. O porão, indicador de opressão medieval dentro do contexto do espetáculo, cede lugar ao espaço da plateia, modificado, agora como espaço liberador representado pela lucidez e clareza do pensamento renascentista. A polaridade bastante acentuada entre os opostos era então assumida propositalmente pela equipe. Não somente o espaço e suas formas, mas os tons das cores predominantes corroboravam também essa construção de sentidos:

Eu criei uma despedida, que começava no subterrâneo, a parte mais telúrica do espetáculo, a parte mais vertical na cenografia do Hélio era a despedida, a partida, a hora que desgarra, quem fica na terra e quem vai para o mar. O público ia lá na parte mais funda do teatro, que significava também o Hades da cultura grega, a escuridão, o submundo, o lugar onde as almas penadas vivem. O reinado, a Igreja, estava tudo lá no obscuro, na sombra. Então nós começávamos A Viagem num porão e desse porão, à medida que renascia, o público ia saindo do porão para as ondas de mais luz até terminar na calçada da rua com o céu como teto. O público ia no fundo e emergia. O espaço cenográfico permitiu essa viagem, porque essa é uma metáfora da Idade Média e do Renascimento, assumida por mim, pelo Hélio e até pela Marilena. A dança entrava só a partir do Renascimento. O elemento dança n’A viagem era o Renascimento, a hora que o homem sai do obscuro para a luz. A Idade Média era tratada em tons muito escuros e o homem vai para o Renascimento em cores meio aquáticas. O Renascimento era feito pelo Hélio em almofadões cor do mar, esverdeados, verde-piscina. O Hélio dizia o tecido, dizia como que ele queria aqueles almofadões todos. (NUNES, 2011).

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Os ciclos, que diferenciam fatos e etapas históricas – e em níveis de entendimento que apontam metafórica e concretamente degraus simbólicos de passagem – estabelecem preferências favoráveis ao modo de pensar creditado ao homem moderno da renascença. Por esse prisma, o pensamento medieval, preponderante à época – mas não unânime e já discutido –, perde força no andamento dos processos históricos, quando a percepção do homem é ampliada e posta em destaque como força concreta e dinâmica no mundo. Portanto, o homem é alçado a outro patamar, o que não significa a abolição de Deus. Não há o desaparecimento de Deus, mas uma alteração que dobra o sentido e a importância da força humana na tentativa de alterar destinos. Esse pensar relativiza padrões e reduz, consequentemente, a influência do poder celestial e do poder de seus representantes na Terra.

A concepção do espaço cênico foi concebida de modo a criar intensos níveis de interação ao longo de toda a montagem, uma vez que não havia um local único para os espectadores e estes eram convidados a se deslocarem por todo o espaço arquitetônico da sala. No início do espetáculo, por exemplo, o público ficava em pé, com as pessoas praticamente coladas umas nas outras, se espremendo pelos corredores para poder enxergar algo à sua frente. Essa tridimensionalidade envolvia o público por baixo, pelos lados, pelas costas, por gente que vinha do porão ou descia do teto. Para Nunes, o espetáculo acontecia “norte sul leste oeste”, para envolver o público por todos os meios, por muitos eventos simultâneos, já que não era um espetáculo que trabalhava com a frontalidade: “Na nossa encenação – e isso talvez estivesse menos na adaptação e mais na encenação mesmo, num trabalho entre o Hélio e eu – a gente procurou fazer totalmente tridimensional. Tudo isso criava uma certa estranheza mesmo. O público era solicitado por muita coisa.” (NUNES, 2011).

A metáfora de quebrar fronteiras era proposta e facilitada também pelo grau de liberdade em trabalhar com o poema épico, diferentemente de seguir planos já propostos por autores e rubricas em um texto dramático. No espetáculo, os tempos cronológicos de passado e presente também eram apresentados simultaneamente e de modo provocativo em relação à sensibilidade do espectador. A enunciação do texto, contudo, foi bastante cuidada, para evitar que, diante dessa simultaneidade de

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estímulos, o espectador pudesse perder algo de essencial ou das próprias características arcaicas do poema original.

O crítico Alberto Guzik enfatizou que ali não se embarcava apenas no universo de Camões. N’ A Viagem, segundo ele, o espaço que envolvia o espectador configurava e traçava os limites desse universo e o dimensionava pelo movimento e pela forma:

No branco espaço da sala, a descida da Caravela é dos efeitos teatrais mais bonitos de que tenho lembrança. [...] Celso Nunes construiu seu espetáculo em cima do cenário de Hélio Eichbauer. Talvez tenha sido Hélio quem elaborou seu cenário a partir das ideias de Celso. É difícil saber. O que importa é que direção e cenografia constituem um todo cerrado. [...] Criado em equipe, uma “criação coletiva” dos responsáveis, tem seus elementos todos funcionando em perfeita harmonia. (GUZIK, 1972, p. 5).

O sonho de D. Manuel – mote que no poema original é o

ponto de partida para as grandes aventuras marítimas e que tem os rios Indo e Ganges como imagens simbólicas a transmitir novos horizontes ao rei – são “verdes aparições de limo”, que “anunciam aos lusos a próxima submissão de seus continentes.” (ZANOTTO,

1972b, p. 12).81 Segue-se o diálogo de D. Manuel com Vasco da

Gama e a predileção para que este conduza a esquadra rumo ao desconhecido vislumbrado pelo sonho. Na festa do início da viagem, o discurso das mulheres se opõe às ações dos marinheiros, que sobem para o palco em procissão, ao som de canto gregoriano, em direção às caravelas. O líder Vasco da Gama determina que embarquem sem se despedirem.

O canto dos marinheiros, numa partida que é quase uma despedida para a morte, tenta tornar a separação menos grave, enquanto as mulheres choram suas ladainhas. O texto adaptado é preciso e sintético e a cena traduz o essencial das relações do

81 Crítica publicada por Ilka Marinho Zanotto no jornal O Estado de São Paulo em três

etapas: No dia 26 de setembro de 1972 sob o título “Inteligências a serviço do engenho

e da arte”; dia 27 sob o título “A cenografia, elemento decisivo no espetáculo”; e dia 28 sob o título “Direção dá toda síntese do espetáculo”. Foi, posteriormente, publicada no periódico The Drama Review e no livro Teatro Ruth Escobar: 20 anos de Resistência,

de FERNANDES, Rofran. São Paulo, Global Editora, 1985.

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episódio original. O contato direto com o público era facilitado pelas marcações dos atores dentro do espaço que propiciava uma interação, eliminando a separação entre público e intérprete. Na sequência, o Velho do Restelo aparece em cena e discursa enquanto procura impedir a partida dos marinheiros e a passagem do público para o nível da plateia, além de retirar os escravos do trabalho. A personagem, símbolo maior das forças contrárias à expansão, age movida pelas convicções de sua experiência humana. Essa experiência da personagem mostra a ambiguidade de um poema feito para cantar a força das conquistas e da guerra. O lado questionador é creditado à desilusão e perspectiva crítica que o próprio poeta percebia em sua realidade.

Sobre essas passagens, a ambiguidade e o imaginário que antecede a criação e a simultânea profusão de cenas, uma despedida é dolorida no passado e no presente, e continuará sendo. As imagens iniciais do espetáculo se repetem em outras escadas no interior do espaço cenográfico. A cena da viagem de Vasco, assim, fala da dor que é humana e atemporal. Ela metaforiza os sentidos próprios ao espetáculo, ao contexto dos antepassados e também à época presente:

A partida para a grande viagem do Vasco era precedida de muita dor, de muita previsão de morte, de muito medo, de muita separação, isso eu acho até hoje. Que toda viagem implica numa grande separação. Sempre. Não tem como você fazer uma viagem, seja no nível perceptivo, seja no nível geográfico, seja no nível da vida e morte, a viagem implica numa separação, então a gente começou menos cantando os grandes feitos dos portugueses, mas trabalhando com a ideia de rompimento, de quem vai e de quem fica, de quem parte para o desconhecido. Então as analogias puderam ser trabalhadas e transformadas em momentos de cena, de o público vivenciar momentos teatrais que não eram muito comuns aqui no Brasil. Isso vinha também da minha experiência como aluno e espectador dos espetáculos do Grotowski. Essa relação atriz/espectador, intérprete/não intérprete, era uma coisa muito nova que

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estava acontecendo. Isso tinha muito a ver com as experiências que tinham rolado e continuavam rolando no teatro europeu e americano, que era de eliminar a convenção palco/plateia. Então, nesse sentido, A Viagem era radical. Enquanto essas mulheres tinham compromisso com a partida, os jograis estavam no tempo presente. Então eles podiam brincar, criando dois sentimentos no público. Em menos de dez minutos o público já tinha recebido um impacto, digamos, dramaticamente falando, tão grande, porque ele já entrava em contato com muitos componentes do Camões. (NUNES, 2011).

Na encenação, o corte do texto referente à descrição literária do Velho do Restelo, mantida na adaptação e que seria dita por um marinheiro, se mostra eficiente. Se levada à cena resultaria redundante, uma vez que a figura já estava presente na cena. A descrição de Camões, que cumpre sua função literária e poética, também já cumpriu sua função na linguagem teatral apontando aspectos físicos e estados de ânimo da personagem. A crítica de Ilka Zanotto testemunha e capta as formas cênicas em que foram transformados esses imaginários artísticos. Ao enfatizar o aspecto atual da encenação, mostra uma visão moderna e pacifista que contrasta e desmistifica as glórias ufanas das batalhas. Ela pontua a volta das origens míticas da própria raça humana pelas invocações dos temas da mitologia que deságuam no comportamento humano semelhante e comum a todas as civilizações e ao lento percurso que leva “os homens à dessacralização do seu próprio universo” no espetáculo:

Presente na reformulação do texto e patente no espetáculo a dualidade da visão de Camões, que ora tem uma concepção heraclitiana da “guerra como mãe de todas as coisas” ora a descreve com as tintas lúgubres de uma autenticidade vivenciada. [...] Lisboa tem ar de um grande circo, a cena toda é uma fantástica alegoria. O espectador é envolvido pela multidão ululante, pelos gritos dilacerados das mulheres que veem seus

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homens partirem, pelas ladainhas em coro gregoriano entrecortadas pela estridência dos pratos metálicos e dos pandeiros ou pela melopeia untuosa das flautas. [...] A roda monstro é a infraestrutura a sustentar o enorme esforço econômico que permitiu os grandes descobrimentos. [...] Segue-se um corte nítido da canção de cunho renascentista. [...] Uma grande euforia se apodera de todos, é momento da explosão da Renascença. Sai-se do espaço enclausurado da Idade Média e sobe-se para a claridade dos novos horizontes que se abrem em perspectivas infinitas: é o homem que toma consciência de seu poder e se lança à conquista do universo ‘por mares nunca dantes navegados’. (ZANOTTO, 1972a, p. 12; 1972b, p.12).

A cenografia e o espaço cênico de Hélio Eichbauer foram destacados por Sábato Magaldi como a espinha dorsal da montagem: “Ele alia a grandiosidade e a simplicidade. No fundo, o cenário teve, antes de mais nada, a sabedoria de explorar a própria arquitetura do teatro. [...] E até um condutor de ar do edifício é incorporado, como um dragão, ao ambiente da Índia”. Numa visão geral, sobre a encenação, escreve que o espetáculo mobiliza e funde sínteses de muitas soluções ao usar o espaço na horizontalidade e na verticalidade e considera agradável a concepção global do poema que “respira a liberdade renascentista” e deixa transparecer a perspectiva do “colonizado ante o colonizador.” (MAGALDI, 1972, p. 1).

Na questão teórica ele menciona o texto reduzido, e a respeito da iluminação e atuações, Magaldi tece as poucas observações críticas que aparecem registradas em relação a este espetáculo que obteve plena aceitação de público e crítica: “A necessária redução do poema tenderia, inevitavelmente, a fazer de Os Lusíadas um enredo de peripécias marítimas um tanto superficial. E se se perdem, muitas vezes, por ininteligíveis, os versos interpretados, Celso Nunes se deixou levar também, num momento, com a luz estroboscópica. Esses são os aspectos negativos do espetáculo, que na realidade não chegam a empanar

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o brilho de A Viagem”. (MAGALDI, 1972, p. 1). O crítico escreve, ao final, que a grande quantidade de artistas em cena e considerando a proposta simultânea de tantas cenas, é uma “realização teatral autônoma e feliz”. A encenação, desse modo, foge da estéril lógica analítica tão frequente nos cursos colegiais e ganha a organicidade de uma criação coletiva, segundo o crítico.

SEGUNDO CICLO: DE LISBOA A MELINDE A canção da Boa Viagem dos marinheiros abre passagem

do porão para a plateia, onde os jograis conduzem o público de Lisboa até Melinde. A litania do sacerdote continua, mas pouco a pouco é enfraquecida pelo canto dos marinheiros que partem para o mar, enquanto o canto de quem fica em terra se distancia gradativamente. No Porão do Teatro – agora espaço físico simbólico que representa a Terra e a Idade Média no plano das ideias – ficam o rei, o sacerdote e os escravos. Na canção, a viagem tem início. Abrindo os mares, eles se afastam cantando e levando consigo a plateia. As descrições de lugares, de estrelas, dos fenômenos metereológicos do Fogo de Santelmo e da Tromba Marinha estão na própria canção. A referência sobre o escorbuto é também mencionada, porém toda a descrição das feridas causadas pela doença, mantida pela adaptação, é remanejada de lugar na encenação, ao que parece em função do ritmo do espetáculo. A canção anuncia ainda as violentas tempestades em meio ao mar, seus mistérios e temores, que prenunciam a transição para o aparecimento do Gigante Adamastor e a cena seguinte. Ainda assim, a letra dá o tom do querer da aventura: Cesse tudo o que a musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta, presente na eficiente música composta por Paulo Herculano e destacada pelo crítico Sábato Magaldi:

a música de Paulo Herculano apoiada em grande parte no rock filtra numa sensibilidade de hoje o decassílabo camoniano. Uma das grandes qualidades do espetáculo, sem dúvida, está na dinâmica precisa e harmoniosa de todos os seus componentes. Não há excesso nem carência de nenhum dos elementos da montagem. E a bonita composição de Paulo Herculano faz deslizar o

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tempo todo a palavra. (MAGALDI, 1972, p. 1).

A metáfora de um grande mar aberto no espaço cênico é alcançada pelo emprego de um grande tecido em cores leves. A rubrica indica as disposições de personagens e público para passagem à nova cena. Houve aqui um corte de texto, que discorre sobre as nuvens escuras que precedem o Gigante e que não entrou na encenação. Pode ser em função da cena não se tornar demasiado espaçada, já que Vasco da Gama reclama da tempestade na sequência da canção que a anuncia. Um marinheiro passa a descrever a figura disforme de grande estatura e postura ameaçadora. Nessa passagem mantém-se a descrição literária que sinaliza aspectos característicos de Adamastor, contrariamente com o que ocorreu no episódio do Velho do Restelo. Possivelmente, pelas dimensões físicas e alegóricas mais apropriadas e diferenciadas dos dois personagens. Ao primeiro, a necessidade de reforço da imagem, evocada e sublinhada pela palavra que antecede uma simbólica aparição mitológica. Ao segundo, mais próximo e dentro das discussões ideológicas do mundo dos homens. A intervenção de Adamastor e seu discurso é acompanhada de efeitos apontados pelo diretor em vários momentos no texto da fala do gigante. Outro corte apontado em favor do ritmo da cena dispensa comentários próprios da literatura poética – porém mantidos no texto adaptado: “mais ia por diante o monstro horrendo dizendo nossos fados, quando, alçado, lhe disse eu:” – e vai diretamente para a pergunta de Vasco da Gama: “Quem és tu?” (TELLES, 1972b, p. 19).

A citação dos trechos acima busca exemplificar alteridades das linguagens literária e cênica. A necessária descrição literária para a poesia comunicar uma imagem é a própria linguagem da cena apresentada ao espectador. Esta, portanto, necessita de ritmo próprio e vai direto ao ponto da interrupção com acento incisivo de um personagem a outro. A adaptação sintetiza em uma frase as profecias, sofrimentos e mortes anunciadas por Adamastor em longo discurso. Tétis surge na cena, foge de Adamastor e se transforma em um monte, enquanto ele discursa seu triste fado e desaparece. Ao final da cena, segundo apontamentos de direção, volta a canção da boa viagem “como fundo da peste que aqui será realizada e descrita” (TELLES,

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1972b, p. 21), quando as referências ao escorbuto surgem em cena, para descrever as mortais feridas causadas pela doença.

O primeiro Concílio dos deuses acontece. Os jograis cantam a viagem que continua no mar. Os deuses descem do Olimpo. Na cena, apontados pela rubrica, eles descem suspensos dos antigos urdimentos do teatro, ficando sobre a cabeça dos marinheiros, podendo ser empurrados por eles durante a cena. Júpiter, no comando, comunica e inclina sua decisão em favor dos marinheiros. Vênus intervém reforçando e Baco interfere contrariamente. Os deuses discutem. Os signos visuais que resultam das caracterizações das personagens e seu jogo de cena eliminam descrições e apontam mais cortes do texto adaptado, relativos ao clima do Concílio. Os deuses sobem, enquanto os jograis voltam a narrar cantando os mundos que se entrelaçam. No original, os deuses gozavam de poderosa e direta influência no cotidiano dos homens navegantes. No espetáculo, vestiam os figurinos das ruas dos anos 1970, mesclados com as hipérboles do mundo da música e com as ironias aos uniformes militares. Trazidos do Olimpo, eram os deuses não mais astronautas. Na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar, ainda hoje estão os ganchos que sustentavam as roldanas e as plataformas de acrílico nas quais os deuses desciam e/ou assistiam do alto. Os elementos do figurino apontavam para o aqui e agora, para signos que representavam as antagônicas forças e suas conexões com o contexto social daquele momento. ZéCarlos de Andrade enfatiza:

Esses deuses desciam sobre plataformas, eles ficavam pendurados no teto, como se fossem uns morcegos, e depois eles desciam. O Celso havia solicitado para o Hélio que fizesse um paralelo entre esses deuses e o regime político brasileiro. Então a Eudósia Acuña, que fazia a Vênus, era um misto de Vênus com estátua da liberdade, assim como o Aldo Leite, que fazia Júpiter, era um presidente de um país, entendeu? Vestido militarmente, com óculos Ray-ban escuros, etc. Mercúrio, que era o Ivan Lima que fazia, no próprio poema é um personagem bastante controverso, porque você não sabe se ele está do lado dos deuses ou se está do lado dos nativos, você fica até confuso em alguns

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momentos, mas acho que essa era a intenção do Camões. O Luiz Janô também fazia um dos deuses. Vinham todos militarizados, isso era muito interessante. E o público, em 1972, quatro anos depois do AI-5, nenhuma possibilidade de luz no fim do túnel, identificava isso de imediato. (ANDRADE, 2012).

Os deuses poderiam alterar destinos, mas seu domínio não se configurava como totalitário no conjunto. Se Júpiter lembrava o poder e a fúria, Vênus era o amor e a liberdade. Eles se impunham, segundo Mariangela Alves de Lima, “pela posição mais elevada, pela altura da voz e por uma super-representação para destacar-se de alguma forma desse conjunto colorido, ágil e, de um modo geral, ruidoso.” (LIMA, 2000, p. D1). O figurino dos deuses, com o tempo presente estampado, contrastava com as camisas brancas e calças pretas que compunham o visual de Vasco da Gama e os marinheiros, invocação e representação do passado e Camões, bem como com os africanos e os indianos, com seus símbolos de vestimentas características. O Olimpo e os deuses originais, dessa maneira, passavam por um olhar contemporâneo, da década de 1960, pelos signos visuais que os figurinos representavam no espetáculo:

Os deuses passaram por um tratamento totalmente pop. Janis Joplin, os roqueiros que usavam capas enormes. Júpiter tinha uma capa daquele tipo que os Beatles usavam, aquelas capas inglesas dos guardas ingleses, entende? Tinham tratamento mesmo de muito pop art, Andy Wharol, pegando esse povo que estava manipulando procedimentos de trazer a cultura popular para dentro de uma arte que até então não tinha tido muita representatividade. À medida que o universo do rock trazia extravagâncias para os seus espetáculos, a gente “importou” um pouco esse espírito extravagante. Aquela coisa do Mick Jagger, aquela obscenidade que ele vive fazendo com a língua, ou os Beatles como brincavam com roupas militares, com o poder

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policial, por causa da repressão da década. Eles tiravam sarro se vestindo de policiais, cantavam como policiais, davam nome no disco, o Sargent Peppers. Quer dizer que era nos deuses que a gente podia dar o toque “de modernidade”. Estávamos falando d’Os Lusíadas, mas na cor de agora, dos Rolling Stones, dos Beatles, da Janis Joplin. Os Lusíadas com uma cara de 1970. (NUNES, 2011).

Andrade lembra que a maioria dos figurinos eram rústicos, porém deslumbrantes, sendo “tecidos nobres” apenas os da nobreza portuguesa:

O Hélio usou, por exemplo, nos trajes femininos, muita transparência, para baratear os custos. Era voil de cortina, certo? Era voil de cortina porque é o mais barato que tem. Mas tinha aquela transparência, então você via as formas das pernas das meninas, tinha muita leveza nas coreografias, isso era muito bonito. E num trabalho muito caprichado do Hélio. (ANDRADE, 2012).

Nesse sentido, conforme Nunes,

a Ruth era um pouco isso: olha, não tem dinheiro para pagar, quase não tenho dinheiro para produzir, mas eu quero fazer. Aí estreava com a sandália se desmanchando, eu chegava e tirava a minha sandália, você punha e entrava em cena com o meu par de sandálias. Foi nesse nível que saiu A Viagem. Um passando roupa para o outro, como no circo mambembe. (NUNES, 2011).

A chegada a Moçambique é carregada de grande movimentação de ancoragem, que se funde com a canção, de volta ao mar e aos marinheiros. Há, paralelamente, uma “canção de amor entre Vênus e Gama cobrindo o texto do jogral”, (TELLES, 1972b, p. 23), conforme anotações de direção, e também outras

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melodias incidentais que se fundem com as canções dos marinheiros que se apresentam e procuram saber quem são os nativos. Essa movimentação permite que os marinheiros se aproximem da plateia, enquanto os mouros nativos aparecem pelos fundos da sala. O espaço cênico vazio entre palco e plateia, desse modo, lembra a caravela que chega do mar em direção à terra.

Às respostas dos nativos, enquanto o Régulo – chefe da tribo – e outros mouros sobem na “embarcação”, e apresentações de Vasco da Gama ao Régulo, os jograis narram cantando as diferenças entre as duas culturas: a língua, a cor, as vestimentas e as armas. Há a intervenção de Baco, disfarçado de mouro velho, que procura convencer o Régulo a destruir e matar os cristãos. Para isso, indica que Régulo apresente um guerreiro como piloto aos portugueses. Em movimentos simultâneos, os nativos vão deixando a caravela e voltam à terra. A bordo resta somente o piloto. À gritaria e alvoroço do embarque segue-se a canção da boa viagem e a caravela retoma sua rota em direção ao procurado destino.

O jogral canta a viagem para Quíloa e Mombaça e também a traição planejada pelo falso piloto. Os ventos, pela intervenção de Vênus, desfazem os planos do piloto, que indica outra terra à frente, Mombaça. Toda essa passagem foi cortada no texto adaptado, que deixou apenas a indicação: “música incidental da nau rumo a Mombaça.” (TELLES, 1972b, p. 28). Tais anotações pontuam a inclusão de música incidental de tropas militares e grande chacina da tribo de Mombaça pelas Nereidas. Ilka Zanotto, a esse respeito, descreve a cena:

Mombaça se apresenta como um inferno dantesco, silhuetas de loucura correm pela passarela altíssima que circunda as paredes do teatro. Silvos e pios estridentes dão a medida do desconhecido. Há batalha extremamente violenta ente nativos e portugueses, iluminadas fragmentariamente pelas luzes estroboscópicas, que a fazem parecer uma cena em sépia de um Paolo Ucello futurista. (ZANOTTO, 1972c, p. 10).

O guerreiro piloto é morto por Vasco. Tal cena é também

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apontada pela direção e posterior à rubrica – que indica a fuga deste –, outra alteração entre projeções do texto e formas acabadas da encenação. A cena acontece quase que em câmera lenta entre Vasco e o Piloto, no centro da plataforma. Simultaneamente, a grande quantidade de personagens e seus corpos em movimento que saltam de cordas e aparecem por todos os lados da embarcação portuguesa imprime no conjunto da cena o confronto, realçado pelos figurinos dos portugueses e da tribo local.

O ritmo da cena novamente parece ter sido o motivo do corte de uma das intervenções da deusa nesse momento da encenação, previsto no texto. Os efeitos sonoros fazem alusão às batalhas e movimentos militares e a chacina tem, assim, duplo sentido. As deusas, representadas pelos comandos mais altos e celestes, são responsáveis pela morte dos inimigos do Império, o que faz do fato nova referência ao regime vigente. A cena acaba com Vasco da Gama enaltecendo o milagre e a fé católica. Agradece aos céus e pede que aponte a terra destinada aos navegantes que estão a serviço da Fé e do Império. Prostrado e com seus marinheiros feridos, o cansaço e o desânimo aparecem. O barco segue viagem e Vasco adormece.

Mercúrio desce e pede a Vasco que fuja, pois tem o vento a favor e outro rei mais amigo em outro lugar. A cena e o ciclo encerram com gritaria de Vasco, que acorda empurrado pela visão: “Dai velas, dai velas ao largo vento” (TELLES, 1972b, p. 31), e dos marinheiros. Esta fala lembra momentos de comicidade para ZéCarlos de Andrade, nos ensaios do elenco:

Episódios cômicos ocorreram vários. O Queiroz participava de todos os elencos, sentava-se quietinho, assistia. E logo em uma das primeiras leituras que nós fizemos, talvez segunda ou terceira, o Queiroz havia se esquecido de tirar um verbo dicendi, que aparecia no meio do texto. Era uma fala que dizia: “dai velas, dai velas ao largo vento, disse o marinheiro.” Se o cara está falando, não precisa do verbo dissente. Então, era um menino que falava: “dai velas, dai velas ao largo vento, disse o marinheiro.” O Queiroz falou: “esqueci o verbo aí. Tire o ‘disse o marinheiro’.” O menino falou: “como”? “Tire o

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‘disse o marinheiro’.” Aí o garoto falou: “ah, tá”. No dia seguinte, o garoto: “dai velas, dai velas ao largo vento tire o disse o marinheiro.” Essa é inesquecível. Foi uma risada geral de pelo menos dois minutos. Isso para você ver o nível de inexperiência. (ANDRADE, 2012).

TERCEIRO CICLO: ESTADA EM MELINDE A viagem reinicia. A cena de trabalho dos marinheiros dentro

do barco é coreografada e rítmica. Muitos deles em gestos corporais repetitivos com vigor e ao mesmo tempo, enquanto outros sobem escadas de cordas e o leme é manipulado. Na parte de baixo da plataforma/embarcação, os narradores arlequins remam em botes e as coreografias em duplas indicam o andamento da viagem enquanto outros deles observam os marinheiros do alto, em balanços. Pelo movimento do elenco numeroso de marinheiros, a plataforma suspensa balança, sugerindo o movimento das ondas do mar, isso tudo embalado pela música instrumental e aos olhos dos deuses. Mariangela Alves de Lima destaca a harmonia de todos os elementos do conjunto do espetáculo e credita ao competente trabalho da equipe reunida. O trabalho corporal, as danças coreográficas, a música e a cenografia eram de grande força imagética:

Celso Nunes era, entre nós, o primeiro diretor a trabalhar o corpo dos intérpretes como signo visual e grande parte do espetáculo provinha da plasticidade dos agrupamentos. Marilena Ansaldi era também uma pioneira do diálogo entre teatro e dança. A música era do maestro Paulo Herculano, também responsável pela proeza de fazer cantar bem um jovem bando de iniciantes. E havia o excepcional trabalho de Hélio Heichbauer. (LIMA, 2000, p. D1).

Na chegada a Melinde, a narração anuncia a bandeira que tremula e a cor purpúrea ao longe. Mudança da música, agora evocando sonoridades indianas e rock ocidental psicodélico. O figurino local exótico exibe homens de turbantes e calças amarelas

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e vermelhas e as mulheres com saias multicores e ventres à mostra com muita sensualidade no trabalho corporal, para a alegria dos marinheiros que descem à terra. Suas danças sensuais provocadoramente instigam os homens do barco ao contato, enquanto outra parte da tribo, sentada de pernas cruzadas e nas plataformas junto às paredes do teatro, movimenta-se coreograficamente no ritmo da música. A festa pagã acontece e contagia, como atesta o registro filmado de João Cândido (1972) sobre o espetáculo. Aqui, há uma visão pacifista e moderna de raças em convívio harmônico e isento de disputas e fronteiras, visão diferenciada de outros trechos ilustrados por guerras sangrentas. Nunes lembra o clima da época:

A Índia era hippie, era George Harryson. Lindamente hippie. As moças todas no meio da plateia, fazendo paz e amor, induziam um exercício que era de pegar o perfil da pessoa. Então, enquanto Vasco da Gama estava lá negociando e tal, mulheres lindas estavam de odaliscas, com roupas indianas, no meio do público passando o dedo assim no nariz, pedindo a mão, fazendo contato mão com mão, saía suave, aí fazia a identificação do outro, pegava a mão do outro, fazia a pessoa perceber o perfil dela. (NUNES, 2011).

Sobe mensageiro da terra ao barco e desce mensageiro

português à terra. A tribo se encontra representada por seu rei, no fundo da plateia. O embaixador de Gama visita o rei de Melinde. As anotações de direção apontam para “realizar alegria descrita na fala do jogral. Festa pagã.” (TELLES, 1972b, p. 33). Vasco é solicitado a contar a História de Portugal para o rei. Descem à terra e se misturam à plateia. Em relação ao texto, há corte de rubricas e supressão de grande parte dos versos sobre a História de Portugal. Em evidência na cena a Batalha de Ourique, anunciada ao som de tambores, na qual o evento principal é a aparição de Cristo aos portugueses, considerada o milagre. A cena deixa transparecer a imposição da fé católica aos melindianos: D. Afonso Henriques, de joelhos e em autopunição, grita para o alto em frente à cruz: “Aos infiéis, Senhor, aos Infiéis e não a mim que creio o que podeis” repetidamente. O canto dos soldados se

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sobrepõe e ele silencia. O ritmo dos tambores marca o compasso das palavras ditas repetidamente por um coro que sugere todo o sangue derramado na guerra: “rompe/corta/desfaz/abola/talha”, e finaliza a batalha com a evocação a D. Afonso, rei de Portugal. (CÂNDIDO, 1972).

A cena elimina toda a narração do jogral contida na adaptação. O outro episódio mantido é o da morte de Inês de Castro. Na adaptação, os jograis cantam enquanto Inês é coroada depois de morta, simultaneamente às narrações dos acontecimentos e manobras políticas, dessa vez por atores em vozes individuais, conforme anotações de direção que apontam para essas alterações no roteiro. As críticas encontradas não mencionam o episódio na cena ou ele pode ter tido reduzido destaque. No registro fílmico editado a cena também não aparece. ZéCarlos de Andrade relembra os ensaios da cena de Inês de Castro:

Houve uma porção de ideias que infelizmente não chegaram a ser postas em prática, mas isso também é natural, todo espetáculo tem uma porção de coisas que vão sendo abandonadas ao longo do processo. Umas porque se tornavam muito difíceis em vista da produção. Mas uma dessas ideias, que era magnífica, era de fazer a representação da Inês de Castro. E o Celso tinha pensado inicialmente em fazer essa cena no espírito do Bread and Puppet, que aqui no Brasil a gente só tinha registro de fotografias, com aqueles bonecões gigantes, articulados por atores. Os atores segurariam esses bonecos gigantes e um ator então, bem no espírito do teatro medieval renascentista, daria o texto lendo o texto. Mas essa foi uma ideia que acabou sendo abandonada, ficou muito difícil de fazer os bonecos e a urgência da estreia acabou impedindo que ela fosse em frente. (ANDRADE, 2012).

A partida de Melinde traz simultaneamente a narração dos jograis e a cantiga dos marinheiros, que ilustram a transição sugerindo sua volta ao mar.

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QUARTO CICLO: DE MELINDE ATÉ A PARTIDA DA ÍNDIA A calmaria que antecede nova intervenção de Baco na peça

dura pouco. No original, essa passagem precedia o episódio cavalheiresco d’ Os Doze de Inglaterra, cortado na adaptação e no espetáculo. Na cena, depois de novo Concílio dos Deuses agora nas profundezas do mar, Baco discursa e exige dos deuses mais atenção. A tempestade anunciada por Baco aos quatro ventos do teatro envolve o espaço todo. A embarcação e seus tripulantes sentem seus efeitos nos movimentos corporais e nas emissões vocais, na tentativa de se defenderem de mais uma desgraça. Os jograis correm entre o público. Suas narrações, descritas no texto para esse momento, estão cortadas e substituídas pelo movimento orgânico dos atores na cena que mostra o quadro crítico dos marinheiros, estes aos gritos de alerta e cuidado. Vasco da Gama pede proteção ao céu e Vênus o escuta. Ela desce com as suas nereidas, que cantam para acalmar os ventos, acompanhadas pelo jogral. As ninfas cercam os ventos e a tempestade vai gradativamente diminuindo e some na noite escura juntamente com as deusas.

Amanhece quando a cena é tomada por marinheiros gritando que a terra é avistada. Efeitos sonoros instrumentais e vocais, figurinos, personagens e entre eles uma odalisca que dança tendo às mãos uma serpente preenchem a cena enquanto uma voz anuncia que os marinheiros chegaram ao destino, a Índia. O público é cercado por uma feira oriental, a rubrica da adaptação indica que a Índia é um grande som e anotações de direção pontuam explicações entremeadas de sons orientais. As personagens femininas e masculinas, em figurinos característicos orientais têm movimentos coreográficos em sintonia com a música. Uma nova dimensão do mundo, segundo Zanotto, se descortina no cenário: “o clima é de nirvana, a música onírica parece vir de outras dimensões, as vozes são lentas, sussurradas”. (ZANOTTO, 1972c, p. 10). Uma voz anuncia Calecut, término da viagem. Os marinheiros descem à terra e o marco português da colonização é plantado. A cena segue com Vasco e comitiva no Palácio do Samorim, com destaque também para o tradutor Monçaide e Baco disfarçado de sacerdote muçulmano, que repete advertência à sua gente para que se

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protejam do mal do inimigo. Na sequência da cena, enquanto os marinheiros embarcam para a partida, o Catual anuncia sua profecia.

QUINTO CICLO: ILHA DOS AMORES E MÁQUINA DO

MUNDO Vênus cria a Ilha dos Amores, descendo do Olimpo. As

nereidas aparecem aos poucos, provocantes, nas passarelas, e são perseguidas pelos marinheiros. Um jogral em outro plano no fundo do palco invoca Calíope. A profecia da ninfa é feita enquanto os marinheiros e as nereidas desaparecem. Na Máquina do Mundo, apenas Vasco da Gama permanece. As profecias futuras são feitas em um clima de frieza, e na passarela superior as personagens aparecem com suas pernas penduradas. O restante de seus corpos desaparecem, caídos para trás, simbolicamente sugerindo as mutilações e mortes (in) consequentes de todas as guerras pelo mundo. Vasco da Gama aparece dentro de um globo de ferro, em cores prateadas, que sobe enquanto Vasco se interroga sobre o que é Deus, “mas o que é Deus ninguém entende que a tanto o engenho humano não se estende.” (TELLES, 1972b, p. 56). É uma das cenas mais impactantes da encenação, parte final do poema, quando Vasco aborda o tema das grandes navegações. Para solucioná-la foi idealizado o globo onde o ator ficava suspenso, cuja visualidade guardava grande similaridade com o Homem Vitruviano, criado por Leonardo Da Vinci.

Havia, conforme Andrade (2012), a preocupação da direção e da equipe de não fazer nada de forma gratuita, a construção do espetáculo não buscava o impacto e sim tinha um objetivo, uma referência bastante sólida e coerente. Desse modo, a cena do homem vitruviano trazia informações sobre a Renascença e evocava as viagens interplanetárias, uma reavaliação de toda a trajetória do homem no tempo. Dentro da semiologia do espetáculo, os signos referentes estavam colocados. Essa cena procurava representar, na concepção do encenador, outros caminhos possíveis que não os da morte e da guerra. Em alusão a declarações de outro cosmonauta que pisou na Lua mais recentemente, Nunes estabelece relações com esse momento do espetáculo:

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Ele conclui que viver na Terra, afinal de contas, não é ruim, desde que a gente se dedique a praticar o que for necessário para transformar o planeta num celeiro de inteligência, de sensibilidade. Ele acredita no ser humano como uma missão dentro do Cosmos, não apareceu ainda uma inteligência maior que a nossa. Nós tivemos já a capacidade de sair, ir lá em cima, olhar para onde estamos, entender mais o nosso fenômeno. Viver 40 anos, passar uma vida achando que todo dia é um nascer do Sol, e depois quando sai e vê que todo dia são 16 “nascer do sol”, entendeu? Isso não muda toda a tua conceituação? Isso muda tudo, todo o teu entendimento do tempo, inclusive. Tem que trabalhar para melhorar, para a gente poder multiplicar a nossa experiência humana, trabalhar para o bem, não com a guerra que destrói, nisso encontra muito o final d’A Viagem. Quer dizer, ele entra como símbolo do Renascimento, que os anos de 1960 reergueram, batalharam contra o fim da Guerra do Vietnã, falando que a saída não é fazendo guerra. Nós somos o futuro, nós somos o homem, nós somos o Homo Sapiens, e nós temos que acreditar nisso. Quando o homem vitruviano flutuava no meio de todo o evento, era um pouco assim: não deixe cair a peteca, a vida vale a pena, o ser humano vale a pena, era um pouco esse sentimento. E que nós tínhamos tudo para sentir isso, porque estávamos em muita ditadura, tudo sufocava. A gente queria muito falar de paz, de amor mesmo. Dizer que não é pela repressão, não é pelo obscurantismo, não é pela escuridão que vai dar certo a saga humana. É pela luz, pela clareza, pela informação. Ele entrava como uma retórica de esperança. (NUNES, 2011).

O espetáculo, metáfora dos esforços náuticos dos

portugueses e das aventuras que inspiraram a poesia épica, foi por vezes mal interpretado, segundo Lima. Pode ser também

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pelos aparentes pressupostos do poema, literatura de alta qualidade e arma política com grande poder de persuasão, que angariava simpatias por setores da direita brasileira conservadora do período pelo canto de louvor às ações militares desbravadoras.

O lançamento oportunista, aparentemente ajustado ao quadro das aspirações educativas do regime militar, ficou depositado sem a menor cerimônia na cesta de lixo dos panfletos publicitários. A obra em cena nada tinha de triunfalista e, antes de celebrar a valentia da nação portuguesa, afinava-se, como observou a crítica Ilka Marinho Zanotto, com a “ambiguidade do texto”. (LIMA, 2000, p. D1).

Parte dos versos era perdida por vezes, devido também à

proposta de conjuntos simultâneos atuando e ao esforço das composições corporais. Para a crítica, como resultado final, a peça foi mais fiel ao espírito do que à letra camoniana “pela rebeldia que conseguiu reconhecer e reavivar sob as cinzas de um monumento literário apaziguado pelas aproximações reverentes de quatro séculos. Se não privilegiou a clareza, a boa dicção, a filigrana da sintaxe é porque inscrevia-se em um tempo no qual a delicadeza parecia impossível.” (LIMA, 2000, p. D1).

No final do espetáculo, o Velho do Restelo reaparece com o mesmo discurso inicial – porém sugerindo cansaço na entonação – a bradar a inútil glória de mandar e a vã cobiça, a estranha condição do homem de seu tempo. Na saída do público, era entregue na forma de panfleto a letra de Camões com música de Paulo Herculano, cantada por todo o elenco pelos corredores: “No mais, ó Musa, no mais, que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida, e não do canto, mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho não no dá a pátria, não, que está metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza.” (TELLES, 1972b, p. 58), atitude que condizia com a realidade brasileira do período.

O processo de ensaios com os atores no espetáculo seguiu

o caminho do teatro antropológico. Os níveis pré-expressivos

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históricos e culturais, os quais passam pelas questões pessoais e coletivas, vão encontrar respostas nas interrogações levantadas pelo encenador. A procura, por exemplo, por atores negros para fazer os papéis africanos passou por etapas desde a abertura dos testes até o convite aberto da produção à Escola de Samba Vai-Vai, de localização muito próxima do Teatro Ruth Escobar, que foi a solução do problema. Com a chegada desse elenco novo, outros já inscritos passaram a formar o elenco indiano e o português. Segundo Nunes, “ator negro vai procurar a sua negritude, vai procurar a sua relação como o paulistano branco. Como é que você se relaciona, vamos ver em que medida isso pode ser trazido para a tua participação dentro d’ A Viagem, com que olhar você olha para o Vasco da Gama.” (NUNES, 2011). As analogias pareciam buscar mais uma corporeidade das experiências do elenco, mais sensoriais e perceptivas, em sua maioria com pouca ou nenhuma vivência teatral. Segundo Andrade, a preocupação com isso gerou outras reflexões e acontecimentos:

Quando chegaram os rapazes e as moças da Vai-Vai, que eram negros, muito negros, muito bonitos, com todo aquele aplomb de sambista, muito bem humorados, os negros que haviam sido arregimentados antes ficaram desbotados. E o Celso reuniu as pessoas e falou: olha, eu tenho aqui um problema. Eu tenho muitos tons de negro. Então eu quero que quem se sente negro passe para o lado dos negros. E quem não se sente negro fique do lado dos brancos, porque não sou eu que vou resolver isso. Vocês é que resolvam, entendeu? E isso foi o que aconteceu. Um sujeito levantou e foi para os negros, outro para os brancos, e o Celso não mexeu nisso e o espetáculo funcionava lindamente. (ANDRADE, 2012).

Os ensaios seguiam um grande organograma, no qual transparecem aspectos das linhas concebidas dentro das criações coletivas. Determinados setores do elenco trabalhavam com o diretor, outros com os assistentes de direção, outros ainda com a coreógrafa. O grupo dos músicos e criadores trabalhava também

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em outro espaço. As criações musicais de Paulo Herculano contaram com instrumentos especialmente criados para o espetáculo pela sua equipe, um grupo experimental com instrumentos insólitos: bambus, cabaças e cascas de côco. Um cocho – onde se coloca a ração animal em sítios –, por exemplo, foi trabalhado e transformado em uma espécie de cítara por Alexandre Garcia, um músico argentino que fazia parte do espetáculo. Segundo Nunes,

Paulo tinha e tem uma pulsação bem de gente de teatro, é bem-humorado, divertido, e tem um espírito de experimentação. Se a gente não gostasse da música, dava para conversar. Ele é compositor, mas também instrumentista, um homem da noite, da vida e isso contava muito para um espetáculo que queria ser renascentista. E foi compondo a música tendo que levar em consideração os limites vocais da equipe. (NUNES, 2011).

A coreografia tinha um apelo à juventude, que respondia voltando muitas vezes a novas sessões para cantar junto com os atores. Havia uma brasilidade no espetáculo e Marilena Ansaldi conseguiu trazer ao trabalho muito do remelexo, do chamego, de uma sensualidade brasileira que também contribuiu para o sucesso da montagem, conforme Andrade.

Desse modo, pelo grande número de artistas envolvidos, uma ficha de presença foi solicitada por Andrade e assumida pela direção e equipe: “Existia uma metodologia pedagógica de trabalho. E eu inclusive propus que nós fizéssemos ‘chamada’, como se fosse uma sala de aula, porque um elenco de noventa e dois, faltam quinze você nem percebe.” (ANDRADE, 2012). As divisões dos elencos por etnias, como se fossem partituras de um todo, ficaram estabelecidas em três: Nunes trabalhava com os deuses e os outros personagens mais significativos na trama; Andrade com os portugueses; e Medeiros com os africanos e indianos. As salas, assim, com os coletivos trabalhando isoladamente, ocupavam as dependências todas do teatro, com encontros regulares diários dos coordenadores dos núcleos, o dramaturgo e o cenógrafo com o diretor, que juntava os fragmentos e aos poucos compunham o todo do espetáculo. Para

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Nunes,

levantar a questão do colonizado e ainda etnicamente reprimido era fácil, é até hoje, porque a situação não mudou tanto. Então não era difícil a gente encontrar para o elenco africano um certo estado de revolta. Também não era difícil encontrar para o elenco indiano um estado de contemplação, porque era a década do LSD. Quando chegava na Índia era um sentimento de muita paz e amor porque também era do momento. (NUNES, 2011).

Com relação ao elenco dos portugueses, o trabalho maior

nos ensaios era sentido pela dificuldade de compreensão do texto, difícil e com muitas camadas de entendimento. Havia a necessidade de se fazer muito estudo nesse sentido, aliado às dificuldades habituais de se darem pausas ao final dos versos, muitas vezes deixando a ideia incompleta e sem sentido. Assim, ao dizer o texto em voz alta, os atores eram solicitados a compreenderem melhor o que estava sendo dito e expressarem de muitas maneiras a mesma frase, para sedimentarem a experiência no corpo e tornarem mais claros os sentidos dela também para o espectador. Depois dos aquecimentos e trabalhos corporais e vocais prévios pelos assistentes, os elencos eram encaminhados ao encenador, este com escalas de trabalho diferentes com os grupos humanos: Os deuses, os marinheiros, os africanos, os indianos.

A antecipação da estreia em quinze dias – mesmo como um anunciado Ensaio Geral para o Primeiro Ministro de Portugal,

Marcelo Caetano, e Comitiva que visitavam o Brasil82 – foi

82 A respeito desta visita, o jornalista português Miguel Urbano Rodrigues, à época exilado no Brasil, escreve densa crítica sobre os motivos e o discurso do representante português: “A visita ao Brasil do sr. Marcelo Caetano, no momento em que este país comemora 150 anos de Independência, é um estranho acontecimento político. Não sei o que dele pensará a maioria dos brasileiros. Para os portugueses que sempre

rejeitaram os ‘valores’ do fascismo e do colonialismo trata-se de um absurdo. [...] Dissertou sobre a felicidade dos países latino-americanos que tiveram a sorte de ser fundados por minorias étnicas civilizadas ‘e governados segundo os princípios da maior

capacidade’. Incrível mas verdadeiro. Vivemos numa época em que as relações entre os governos prevalecem sobre a tessitura complexa das relações entre os povos”. RODRIGUES, Miguel Urbano. A máscara transparente. O Estado de São Paulo. Sexta-

feira, 8 de setembro de 1972. Grifos no original.

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recebido com desagradável surpresa pelos criadores do espetáculo e pelo elenco. Essa atribulação extra parece ter tido efeito nocivo às relações entre a produção e os artistas dentro do processo, porque também significava cortes de folgas e do pouco tempo livre para dar conta do trabalho em tempo escasso. A notícia, segundo Nunes, aborreceu os ânimos, pelo lado artístico que não estava concluído somado a um sentimento coletivo de sentir-se trabalhando para um determinado tipo de poder, porque nem todos tinham simpatia pelos representantes de Portugal. Por outro lado, essa circunstância faz emergir outros fatos, relativos às colaborações e trabalhos anônimos nas coxias:

O Ney Matogrosso, que até então era o Ney Matogrosso cidadão, não era ainda o sucesso e o artista que se revelou, que vivia de vender sandálias de couro cru na Praça da República, ele próprio sendo um hippie, magrinho, cabelo comprido, ficava dedicadamente em um canto escondido, porque não tinha palco e coxia, estava tudo à mostra. Mas onde tinha um cantinho, estava ali o Ney com pincéis e tinta restaurando sandálias que o couro não tinha colado ainda porque teve essa precipitação de estreia. Então esse lado a gente contava muito com a colaboração de pessoas que eram artesãs e estavam ali. Tinha o Tato, que aparece no filme tocando flauta, ajudava muito porque sabia trabalhar com missangas, com tecidos. Tinha a Telinha, que também tinha essas habilidades. Os meninos que fizeram os tambores, quer dizer, a gente sentia que havia uma colaboração de setores, porque todo mundo sonhava em botar um espetáculo quase dantesco em cartaz. (NUNES, 2011).

Com o espetáculo em cartaz e casa lotada segundo a crítica

da época, novos atritos se sucedem. Em meio a reclamações do elenco e da equipe sobre a falta de pagamento dos cachês e as reposições das folgas não consideradas pelos dias de trabalho excessivos, o encenador conta que foi agredido dentro do teatro e em seguida a produtora o proibiu de frequentá-lo. A partir daí, boa parte da equipe e do elenco também se retirou da montagem.

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Andrade esclarece que também os assistentes de direção nunca foram remunerados nesse trabalho, embora reitere as qualidades de Ruth Escobar e a agradeça pela ousadia de produzir um espetáculo daquele porte, em meio aos interesses financeiros que se mostraram escusos.

A montagem angariou muitos prêmios pelo sucesso de público e crítica: Melhor espetáculo do ano; Melhor Cenografia; Melhor Coadjuvante Masculino; Melhor Coreografia; e Melhor Autor. Não houve premiação ao Diretor, como se observa. Diante de tantos obstáculos para um processo teatral ser efetivado no palco, como se percebe, seu contraponto criativo parece estabelecer um equilíbrio favorável, ainda que oscilante, no coletivo de trabalho.

O poema transcende a questão conquistador/conquistado, dadas as muitas alusões ao amor e ao esoterismo, no sentido de que o esoterismo não tem pátria? Segundo o encenador, sim. Transcende, e ele se pauta hoje nessa certeza de que transcende pelo estado em que o público saía do espetáculo. O público saía prazerosamente, o que o faz acreditar que isso tem certa transcendência. E perguntado sobre de que maneira cruza o ofício do teatro com a missão, o encenador conclui:

No caso d’A Viagem, fazer um grande espetáculo era a missão. Agora, o que vem no bojo dessa missão, os contratempos todos... Para fazer a missão, as águas em torno são turvas. Não é um caminho de luz, não. Cumprir uma missão é um caminho de muito sofrimento, de muita tranqueira, de muito obstáculo. Hoje, visto com a passagem do tempo, você olha e diz: bacana, a missão foi cumprida. Nós fizemos A Viagem, a imprensa falou muito bem, o público amou, e aquilo existiu, em São Paulo, naquele determinado momento. Mas aos trancos para cumprirmos a missão. Quer dizer: existe uma coisa que precisa ser feita, está meio que destinado a acontecer, uma grande produtora, com um grande poeta, que reúne uma grande equipe de criação e um megaelenco para os padrões daquela época. A ditadura não deixava existir grupos, matava, batia, dilacerava, dispersava,

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saíam todos correndo para o exterior para não apanhar. Aí vem esse evento inacreditável e você fala: isso poderia ter sido uma trajetória iluminada, como foi, por exemplo, fazer mais tarde o Galileu pela Fundação Guaíra, com muito menos atribulações, muito menos. Porque uma coisa assim, que tem um aspecto utópico bem nítido, tem que passar por tanto obstáculo, por tanta agrura, entende? E o fator humano não é o preponderante, isso é que é incrível, porque os corações não ficaram magoados, essas pessoas se encontram hoje com amizade, todas elas. Parece que o ser humano tem uma capacidade de transcendência desse tipo de problema, ou pelo menos a gente do teatro tem, de passar por cima dessas coisas e porque acha que fazer teatro é mais importante. Nesse caso a missão, a vocação, essa coisa que a Fernanda Montenegro vive falando: você tem que oficiar, essa não é uma profissão, é um ofício. Era o que eu tinha na porta da Unicamp: “Faça da sua vida um inferno, faça teatro”. Aquela tabuleta foi inspirada no Dante da Divina Comédia, porque ele escrevia lá: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate, ou “abandone qualquer esperança, você que vai entrar”. Isso estava na entrada do barracão onde foi criado o Departamento de Cênicas da Unicamp. (NUNES, 2011).

Na perspectiva de um teatro total, o espaço induz e interage

nas ações do elenco. A encenação privilegia o trabalho do ator, a música, o texto, o tempo presente e a lembrança crítica histórica, mixados e simultâneos, numa polifonia de vozes e de sentidos. A montagem ultrapassa concepções rígidas concernentes à arte teatral e figura como exponencial, certamente das primeiras experiências brasileiras de adaptações de textos poéticos para o palco, precursora e de aspectos modelares para todas as que se sucederam nesse percurso criativo abundante no cenário atual e que oscila entre a construção e a desconstrução de conceitos e representações contemporâneas.

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FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO

A VIAGEM

Estreia: 4/9/1972 São Paulo SP no Teatro Ruth Escobar

Autoria: Luís de Camões

Adaptação: Carlos Queiroz Telles

Direção: Celso Nunes

Assistentes de Direção: José Carlos dos Santos Andrade

Francisco Alberto Azevedo Medeiros

Cenografia e Figurinos: Helio Eichbauer

Composição e Direção Musical: Paulo Herculano

Coreografia: Maria Helena Ansaldi

Produtor Executivo: José Alberto Muchachi

Assistente de Produção: Neide Duque

Milton Dutra

Relações Públicas: Antônio dos Santos

Elenco

Jonas Mello

Ney Latorraca

Ênio Gonçalves

Luís Serra

Abel Bravo

Alberto Baruque

Alberto Camareiro

Ademar Rodrigues

Antônio Francisco

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Ariston Augusto

Aldo leite

Antônio Pompeu

Alejandro Garcia

Aldo Godoy

Augusto Rocha

Betina Viani

Carlos Fischer

Dagoberto Rosa

Douglas Franco

Edson Quaglio

Eduardo Zá

Elzithon Sousa

Esmeralda Sousa

Francisco Edilson

Hamilton Ton

Hilda Marçal

José Roberto Vitoriano

José Alberto Urbinatti

Jorge Gomes

Eudosia Acuñna

Neusa Rocha

Ivan Lima

Auristela Leão

Jorge Henrique

João Luís

José Carlos Campos

Lígia de Paula

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Luís Janô

Lourisberto Rosa

Mariza Policastro

Marcelo Buru

Mônica Prado Dantas

Marcelo Galvin

Maria Aparecida de Jesus

Ney Matogrosso

Nivaldo Lima

Olga Maria Andrade

Paulo Azevedo

Raul Santos

Renato Silva Leite

Ricci Martinelli

Roldão Gonçalves

Sônia Loureiro

Sérgio Luís

Silvana Faiano

Valter Morato

Vagner Cavalcanti

Vicente Tutoilmondo

Vicente de Luca

Orquestra: 9 componentes

Trupe: 8 componentes

Produção: Ruth Escobar

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Teatro Ruth Escobar83

O programa original do espetáculo transcrito acima é referente ao elenco que estreou em setembro de 1972. Nesse programa constam os nomes dos atores e das atrizes e não há a especificação dos personagens. Porém, tive acesso a outro programa do espetáculo de 1972, mais completo e com alterações de nomes no elenco. No segundo programa, consta a estreia em outubro de 1972, sem data específica em relação ao dia, em edição especial da Revista Palco + Plateia. Além dessa informação, há outros elementos pertinentes a serem observados, os quais dizem respeito ao afastamento do diretor, quando dos problemas com a produtora que o proibiu de entrar no Teatro. O fato pode ter provocado a mudança brusca de parte do elenco do mês de setembro para o mês de outubro.

Além das substituições, há cortes no elenco. Com base nos programas examinados, 26 atores e atrizes do elenco inicial não estão presentes no elenco do programa seguinte: Jonas Mello; Ney Latorraca; Ênio Gonçalves; Alberto Camareiro; Ademar Rodrigues; Ariston Augusto; Aldo leite; Betina Viani; Eduardo Zá; Elzithon Sousa; Hamilton Ton; José Roberto Vitoriano; Jorge Gomes; Eudósia Acuña; Ivan Lima; Jorge Henrique; Ligia de Paula; Mônica Prado Dantas; Ney Matogrosso; Nivaldo Lima; Renato Silva Leite; Roldão Gonçalves; Sônia Loureiro; Silvana Faiano; Valter Morato; Vicente Tutoilmondo.

No elenco novo estão 19 artistas: Jane Baruque; Sônia Grossi; Rosa Delmonte; Raquel Monteiro; Ivan Leyraud; Cláudio Campana; Julio Callado; Roberto Francisco; Carlos Roberto dos Santos; Acácio Ribeiro; Glória Nascimento; Olga Ezzias; Marco Antonio dos Santos; José Carlos Mota; José Geraldo Barros; Rossento Martins; Valdir Alves; Maria Dirce Pinho; Antonio Carlos Pedro; Maluá.

Outros dados relativos aos técnicos e músicos que no programa anterior não estão especificados:

Iluminação: Milton Lopes

Cenotécnico: Sidney Fonseca

83 A Viagem. Programa do Espetáculo (1). São Paulo, set. 1972.

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Guarda-Roupa: Ertes Angela Brasil

Aderecista: Augusto Rocha

Criação e Execução dos Instrumentos Musicais: Alexandre Garcia,

Rainer, Henry e Hans.

Cacho Conjunto Musical: John, Willy, Marcelo, Emílio

Iluminador: José Carlos Gaúcho

Contrarregras: Mauro, José Carlos, Manoel, Gilvan, José Itamar e

Inezito

Maquinista: Juarez Guimarães

Camareiras: Silvia e Luzia

Administrador: Milton Dutra

Relações Públicas: Antonio dos Santos84

84 A Viagem. Programa do Espetáculo (2). São Paulo, out. 1972.

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4 OS LUSÍADAS, DE IACOV HILLEL E JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

As condições financeiras para uma nova produção d’Os

Lusíadas no início do terceiro milênio foram conseguidas graças aos eventos relacionados às comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil e ao novo milênio comemorado no ano de 2000. O país atravessava outros ares e vivia um período de eleições e estabilização dos processos democráticos, que se desdobram até hoje. Ruth Escobar diz ter sido provocada pelo então Ministro da Cultura, Francisco Weffort, para levar adiante o projeto de materializar novamente o poema em cena. A data simbólica possibilitou o aproveitamento das verbas destinadas ao Festival Internacional de Artes Cênicas (1 milhão e 800 mil reais) e outros patrocínios para cobrir o que se veiculou na imprensa como 2 milhões de reais para a superprodução. O espaço procurado e inicialmente trabalhado inclusive para a versão do diretor Amir Haddad foi o prédio do DOPS em São Paulo. Esse processo foi interrompido pela produção. Ruth Escobar desaprovou o trabalho, segundo ela, pela indecisão de papéis por

parte do diretor85 e pelo “tratamento alegórico que Haddad

imprimia no espetáculo.” (SANTOS, 2001a, p. E2). A produtora voltou a buscar contato com encenadores e

novamente sondou a possibilidade de Iacov Hillel. Segundo o encenador, ela o procurou por diversas vezes, sendo que anteriormente ele estava dirigindo um núcleo de Ópera no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ruth lhe informara que havia tentado montagens com vários diretores e o convidou novamente: “Fui o primeiro diretor a ser procurado por Ruth para encenar esta

85 Em sua coluna, na Folha de São Paulo, Mônica Bergamo escreve: “Parte do elenco de ‘Os Lusíadas’ a mais cara montagem em andamento no Brasil, pensa em processar Ruth Escobar porque durante dois meses os atores trabalharam sem contrato. Ela

pagou os salários de todos – quase 70 atores divididos em três escalões, ganhando R$ 900,00, R$ 600,00 e R$ 400,00 –, mas diz que não os contratou porque o diretor da peça, Amir Haddad, não decidia os papéis. Amir saiu e em seu lugar entrou Iacov Hillel,

o terceiro diretor da montagem. Os atores principais do tempo de Amir abandonaram o espetáculo, e novos testes foram feitos. O novo elenco já está pronto. Ruth já gastou US$ 1 milhão com ‘Os Lusíadas’, captados na Petrobrás, Bradesco, Secretaria da

Cultura do estado e Ministério da Cultura. Boa parte foi jogada fora: ela pagou o diretor José Possi Neto, que deixou o trabalho, assim como o adaptador do texto Djalma Limongi. Só Jairo Mattos, que faria Vasco da Gama, recebeu R$ 10 mil.” (BERGAMO,

2001a, p. E2).

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produção, mas sua urgência em estrear ainda em 2000 impossibilitou-me, então, de participar do projeto, pois tinha de atender a compromissos assumidos anteriormente.” (Hillel, 2001, p. 6).

Iacov Hillel, diretor de teatro, dança, shows musicais e ópera de reconhecida carreira artística, havia dirigido as

óperas Otello e Elixir d'Amore em 1999 e Nabuco, de Verdi,

apresentada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, entre outros trabalhos mais recentes. Quando a confirmação do convite a ele foi efetivamente realizado, outro espaço já havia sido definido, um novo espaço multicultural em São Paulo a ser inaugurado com a

epopeia lusíada: a Plataforma das Artes86, na região central, com 1200 metros quadrados, cinquenta metros de comprimento, com capacidade para 550 pessoas acomodadas nas laterais e um palco retangular entre elas. A produção incluía a instalação acústica e os equipamentos de luz da sala, quinhentos figurinos e o trabalho de duzentas pessoas envolvidas na montagem, conforme veiculado pela revista Veja em reportagem de Lúcia Monteiro.

Ruth Escobar não queria as “restrições convencionais impostas por um palco italiano”. A produtora já estava, no início do mês de março daquele ano, em viagem para definir apresentações do espetáculo em Portugal, e para tanto personalidades portuguesas foram convidadas para a estreia em São Paulo: “Quando vi essa sala, me apaixonei. Na segunda-feira (12), os primeiros a apreciar o espetáculo, em cadeiras especiais, almofadadas, serão o primeiro-ministro de Portugal, António Guterres, e quatro de seus ministros. A estreia para o público está prevista para o dia 15.” (MONTEIRO, 2001, p. 7). Um pouco mais tarde, no dia 23 de março de 2001, o espetáculo teve a sua estreia, depois de nove meses de trabalho. Primeiramente idealizado para o ano de 2000, foi transferido para março de 2001, pelos motivos

86 Esse novo espaço artístico em São Paulo, na época, era destinado a eventos multiculturais como desfiles de moda, espetáculos de teatro, música, dança, festas e

exposições. Foi pensado e planejado também como tentativa de transformar em polo cultural aquela região da cidade considerada como “cracolândia”. A reforma do espaço considerava o investimento de 800 mil reais, onde foram criados camarins, banheiros,

o acesso a um estacionamento e também a limpeza dos vitrais originais. Segundo o secretário estadual de Cultura de então, Marcos Mendonça, a intenção era de “colocar vitrais de artistas contemporâneos nas laterais, para mostrar este novo momento de

efervescência cultural que a região está vivendo.” (MONTEIRO, 2001, p. 7).

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apontados e também por problemas de saúde de Ruth. Para efetivar o projeto, Hillel realizou audições e testes com

artistas e parte do elenco dos primeiros ensaios com Haddad migrou para a nova produção. Contatos do encenador com Egberto Gismonti para a composição da trilha sonora também parecem ter ocorrido. (BERGAMO, 2001b). Em seu espetáculo, o encenador pretendeu aproveitar o sentido longitudinal do espaço. Arquibancadas laterais, para que o público ficasse de frente para a cena e, ao mesmo tempo, percebendo outros espectadores também a testemunhar uma aventura:

Coloquei duas arquibancadas, uma de cada lado da sala, criando uma passarela no meio, para mostrar que o espectador seria testemunha, como o outro espectador à sua frente. Eles eram testemunhas da história. Não é uma sala fechada que assiste outra sala, não é uma sala em que você não vê o outro espectador, que assiste a uma sala onde acontece o espetáculo, que por sua vez tem uma cortina que se desvenda. Não. Eu queria justamente um corredor, que fosse o corredor da história, que marcasse a passagem de tempo e que você vê do outro lado o espectador, que é tão espectador quanto você da história que vai ser narrada. E com isso nós tínhamos uma proximidade muito grande dos artistas com a plateia. Tínhamos uma caravela que se formava na frente do espectador, uma caravela de treze metros de comprimento por nove de altura, e as velas que caíam, e toda parte do oceano, toda parte dos maremotos, toda parte enfim das peripécias dos lusíadas eram projeções. Então, aquelas velas das caravelas passavam a ser telas. E telas distorcidas, uma tela dentro da outra, uma imagem que se projetava dentro da outra, você tinha multissignificados entre cada projeção. (HILLEL, 2011).

O processo colaborativo, de início entre o encenador e o

dramaturgo José Rubens Siqueira para a concepção adaptada do poema original de Camões, foi logo a seguir expandido com as

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participações do cenógrafo Renato Theobaldo, o iluminador e assistente de direção Caetano Vilela, a composição musical de Magda Pucci e seu Grupo Mawaca e o elenco numeroso – 53 atores e atrizes, bailarinas e bailarinos, cantoras e cantores –, além de equipe técnica. Novamente aqui se percebe as estreitas relações entre o diretor e o dramaturgo. Hillel pontua essa colaboração e as várias fases do processo:

Eu convidei o José Rubens Siqueira para fazer a adaptação, grande artista, ele é meu irmão, confio nele cegamente, criador de mão-cheia, uma pessoa iluminada por Deus, fez comigo mano a mano, taco a taco. O roteiro é fruto de uma contribuição entre a direção e o autor. Quer dizer, ele sugeria uma coisa, eu sugeria uma coisa, ele devolvia, houve algumas versões dentro disso, porque ele trazia uma ideia, eu trazia outra e passava a ser o texto, porque é uma estrutura coletiva, não é uma obra de um autor morto que você refaz, é um companheiro vivo com quem você troca experiências, troca ideias, troca sugestões. José Rubens também é encenador e, por outro lado, eu fiz por muitos anos adaptações – não que eu tenha feito autoria como ele – mas tenho várias adaptações de obras que transformei em espetáculo. (HILLEL, 2011).

José Rubens Siqueira, dramaturgo, encenador e cenógrafo de destaque no cenário brasileiro, incluía como recentes trabalhos anteriores à epopeia lusíada a dramaturgia de Domésticas e a direção, adaptação, cenário e figurinos de A Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada, de Gabriel García Márquez. A parceria entre os dois artistas vai se repetir em 2003, com a realização de O Enigma Blavatsky, texto de Siqueira para a direção de Hillel. Como no espetáculo anterior, se percebem estreitas sintonias artísticas e relações cúmplices de confiança para a realização da montagem.

Siqueira (2001b, p. 8), para quem “Camões constrói, com plena consciência e lucidez, uma genial metáfora da viagem do Homem em busca de si mesmo, do significado transcendental da

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vida no mundo”, tece sua versão da obra optando por esse prisma. O dramaturgo também assina os figurinos do espetáculo, vastos e representantes da infinidade de culturas expostas na obra, os quais surgiram naturalmente no processo evolutivo desenvolvido na adaptação do texto:

Como havia uma confluência básica entre a visão do diretor e a minha, senti-me à vontade para dar existência física a um universo de cores e formas que foi evoluindo durante a intensa convivência com as personagens e situações do poema. À medida que os versos viravam cena, viravam teatro, as personagens iam aparecendo já vestidas aos meus olhos. A indumentária de um espetáculo como este abre um leque de possibilidade muito vasto. Como a ação se desloca da Europa medieval para o litoral atlântico da África, passa depois pelos países islâmicos do leste africano, chega à Índia e dá uma parada em uma ilha de fantasia inventada por Vênus, portanto grega clássica, a variedade de roupas é muito grande, o trabalho é muito estimulante. Evidentemente, não há porque fazer arqueologia da moda. Os limites do espetáculo são como as dimensões de um quadro: ali, naquele território, gera-se uma realidade nova, recria-se a realidade, seguindo as leis próprias do quadro, não as do real. Os figurinos de Os Lusíadas partem de todo o referencial da época, dos costumes de cada etnia presente na trama, fundindo elementos e recriando a realidade a partir dessas referências. (SIQUEIRA, 2001b, p; 18).

Para Siqueira, as viagens portuguesas dos descobrimentos

eram expedições comerciais e foram semimascaradas por missões religiosas para a conversão dos hereges de além-mar ao cristianismo. A pimenta, o cravo, a canela e os aromatizantes, especiarias orientais aparentemente supérfluas, não justificavam os riscos de viagens perigosas. Porém, se consideradas as circunstâncias – diga-se – a pobreza e a fome da Europa dos

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séculos XV e XVI, as inúmeras dificuldades de se produzir alimentos e a sua consequente conservação por métodos eficientes que inexistiam, essas especiarias significavam riqueza para quem as conseguisse:

As especiarias serviam para disfarçar o gosto das comidas em variados graus de apodrecimento. Como toda Europa padecia do mesmo problema, os temperos fortes do Oriente podiam render fortunas para quem conseguisse trazê-los em quantidade. O caminho que levava à Índia por terra era muito acidentado, interrompido por montanhas, mares internos e, principalmente, pelos mouros islâmicos, ferozes inimigos dos cristãos. (SIQUEIRA, 2001b, p. 8).

O trânsito comercial permanente entre Oriente e Ocidente

pelo caminho marítimo representava poder e riqueza para o país que conseguisse estabelecê-lo. Mas Siqueira pensa não ser esta a questão maior para o poeta na composição d’Os Lusíadas e sim a busca pela consciência de si, que também irá permear a sua percepção do poema adaptado para a cena:

O poema de Camões não se ocupa dessa motivação banal e mundana. O indisfarçável fascínio que o poeta demonstra por Vasco da Gama nos versos de Os Lusíadas é motivado pela dimensão heroica do navegador. [...] Os estágios do poema (e da peça) vão num crescendo de civilização na direção dos deuses e do sagrado. Na primeira parada na África, o contato é com uma tribo nativa rude, primitiva, canibal. O segundo é com uma cultura negra já mais sofisticada religiosa e culturalmente. O terceiro é com dois graus também ascendentes de povos negros em processo de islamização. A viagem termina na Índia, terra onde o sagrado é vivenciado no dia a dia, onde a ligação sagrado-profano é básica e indissolúvel. No trajeto de volta, Camões inventa uma viagem paradisíaca em que faz os portugueses privarem de contato

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carnal com as ninfas. Ou seja, antes de voltar para casa (ou para si mesmos, nessa jornada em busca de um grau superior de consciência) eles são acolhidos pelos próprios deuses. Pela voz sonora de Camões, Vasco da Gama abre “o chão dos mares”, como todos os grandes sábios e artistas desde o alvorecer da civilização até hoje abriram o caminho da consciência da Humanidade. Os Lusíadas não é apenas o grande poema nacional de todos os povos de língua portuguesa. É uma das colunas do vasto e contraditório edifício da cultura ocidental. (SIQUEIRA, 2001b, p. 8-9).

Em entrevista a Beth Néspoli, Ruth Escobar, que

acompanhava os ensaios e arranjos finais da produção, dizia estar “muito feliz com o resultado. O espetáculo tem o tom operístico necessário à narrativa dessa epopeia”. Hillel, ao considerar um privilégio estar à frente da montagem, reitera a importância dos artistas envolvidos e a produção: “Convidei os melhores artistas de cada área, para que cada um deles pudesse contribuir para esse empreendimento com toda a liberdade, a mesma liberdade que Ruth me deu ao presentear-me com este projeto.” (HILLEL, 2001, p. 6). O encenador ainda ressalta um dos principais aspectos da obra: “com seu interesse e o respeito por outras civilizações, pelos povos da África e da Índia, Camões nos dá uma bela lição de tolerância” (NÉSPOLI, 2001, p. D17) e afirma, em outra entrevista, que há cenas de canto e representação, mas foge “do realismo psicológico em favor da projeção simbólica do poema de Camões”. (SANTOS, 2001a, p. E1).

A cenografia assinada por Renato Theobaldo aponta para o século XVI e solicita aos espectadores, assim, que estes sejam testemunhas e cúmplices de uma viagem, que já existiu e é agora passado histórico e mítico. Além da imponente caravela que corta o espaço longitudinal, outros elementos cenográficos criados em cenas distintas simbolizam a Ilha dos Amores, as aldeias da Costa Africana, o gigante Adamastor e a Índia, em marcações em variados espaços do palco. Conforme o cenógrafo,

A verticalidade da sala, seu formato de nave de igreja, seus vitrais, e mesmo as treliças de

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metal, construídas para servir de urdimento, foram as chaves-mestras do projeto cenográfico para Os Lusíadas. As treliças tornaram-se a estrutura funcional da caravela de Vasco da Gama. Delas pendem velas que vão dando lugar a uma arquitetura de ambientes desenhados com tecidos. Esses tecidos, içados ou recolhidos, criam e recriam o espaço cênico, definindo cada etapa do espetáculo. Revelar ao público a poesia de Camões, expressa com toda a grandiloquência de um épico, pareceu-me bem mais interessante do que mostrar os detalhes de uma caravela ou os diversos lugares por onde passou a aventura de Vasco da Gama. Essa intuição confirmou-se durante o processo de trabalho, juntamente com Iacov Hillel, José Rubens Siqueira, Magda Pucci e os atores. A cada cena que se montava, reiterava-se a opção do diretor por um espetáculo dinâmico, estruturado em torno da intensa movimentação dos intérpretes. (THEOBALDO, 2001, p. 16).

O texto finalmente estabelecido compreende 115 páginas.

O espetáculo foi dividido em dois atos e oito estágios ou grandes cenas, sendo quatro delas no Primeiro Ato: 1. Fantasmagoria; 2. A partida; 3. A viagem – O Atlântico; 4. A viagem – África Negra; e outras quatro no Segundo Ato: 5. A viagem – África islâmica; 6. A viagem – Índia; 7. A Ilha dos Amores; e 8. A volta. Dentro dos estágios há subdivisões das cenas, que correspondem aos movimentos internos da peça.

PRIMEIRO ATO/PRIMEIRO ESTÁGIO: FANTASMAGORIA O poeta é iluminado a pino, em meio a um espaço cheio de

estrelas – um grande planetário que abarca teto, paredes e público – em uma profusão de imagens em vídeo e efeitos de iluminação. “forte, mas alquebrado, o rosto voltado para o alto, os olhos fechados, as roupas rotas de batalhas da guerra e da vida manchadas de poeira”. (SIQUEIRA, 2001a, p. 1). A uma vibração sonora segue a canção de um coro masculino, que invoca o texto

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e denota a sua inversão do original. Tétis, em imagem gravada em vídeo, aponta a Camões a Máquina do Mundo, que consta do último Canto do poema original. A adaptação de Siqueira propõe trocar o “barão” relacionado a Vasco da Gama pela palavra “poeta” e o coro solicita a Camões para que presencie e observe a tudo: Um globo azulado que acende e desvela a máquina ptolomaica em movimento, com as esferas celestes dos planetas então conhecidos.

Camões, na cena inicial suspenso por cabos, estabelece uma conotação com a Renascença e Da Vinci, também presente no espetáculo anterior de Celso Nunes, porém na figura de Vasco da Gama e ao final da encenação. Hillel, que procurou uma linguagem espetacular multimídia, estabeleceu como única coisa suspensa por cabos o homem vitruviano, na cena o próprio Camões. A mistura de imagens projetadas na encenação, entrecortadas pelos atores em cena, além de muitos trechos do original transformados em música e cantos são parte da proposta: “Eu queria uma ópera contemporânea, ópera no sentido de operação, de somatória, de obra total, que juntasse desde uma escultura móvel que era a caravela, a parte toda pictórica de projeções e projeções em movimento.” (HILLEL, 2011).

Enquanto a deusa discursa, novas projeções de imagens do universo são mostradas, junto a luzes multicoloridas, penumbras e silhuetas em movimento no palco. A música retorna. Tétis apresenta os deuses, seus nomes e características em sequência. Mas os deuses, nessa primeira aparição no vídeo, narram a Fundação de Portugal e sua história subsequente, a Terra e as

guerras, em lugar de centrarem-se nos seus assuntos “divinos”.87 O espetáculo, assim, inverte a ordem do gênero épico, o qual principia pela narração em alto mar. O que era contado, no poema,

87 As aparições dos deuses no vídeo trazem à lembrança o livro 1984, de George

Orwell (1948). No livro e no filme, com roteiro e direção de Michael Radford, a

onipresença do grande poder tecnológico controlador e vigia das ações e dos pensamentos do indivíduo é preponderante e expõe a crueza dos totalitarismos. Ao lado de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (1962), em filme com roteiro e direção

de Stanley Kubrick; e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1931), com direção

de Leslie Libman e Larry Williams e roteiro adaptado de Dan Mazur e David Tausik, essas obras são referências excepcionais de todas as novas criações nesse sentido

que se sucederam na literatura e nas artes. No entanto, o fato mais se destaca pela forma exposta na montagem do que sua intenção simbólica de controle social.

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por Vasco da Gama ao rei de Melinde sobre a gênese da História de Portugal, no espetáculo faz parte das memórias longínquas que perturbam o poeta. Essas passagens lhe atravessam o pensamento, traduzidas para o público em metafóricas imagens difusas, nebulosas, como em sonhos simbólicos de Camões, pela palavra dos deuses míticos projetados.

Júpiter começa seu discurso pelo reino lusitano. Outro deus anuncia o reino ser filho de Baco. Nesse momento, luzes no palco desvendam ritos pagãos por um grupo de atores enquanto no vídeo o rosto de Baco é projetado. É o único dos deuses que se apresenta com carregada maquiagem, que o destaca dos demais. A narração continua com os deuses em revezamento. As cenas de batalhas são mostradas em vídeo. Focos de iluminação destacando figuras de reis, silhuetas de soldados e bandeiras completam o quadro que remete à mudança de reinados no palco. Camões continua suspenso por cabos, e se eleva do chão continuamente. O movimento dos corpos, a iluminação e os elementos cenográficos que sublinham a fala dos deuses nas sucessões de reinados e batalhas passadas são apontados na rubrica: “Banhadas em luz trêmula, titubeante, veem-se figuras indistintas, fantasmagóricas, memórias que aos poucos vão ganhando nitidez. Essas imagens dão corpo ao que os deuses dizem, formando cenas que surgem e se extinguem em diversos pontos do espaço.” (SIQUEIRA, 2001a, p. 3). As movimentações se sucedem em efeitos ilustrativos das guerras e conquistas narradas, por trás de véus, com filas de corpos em figurinos rústicos que remetem às armaduras do período medieval e seus adereços, como lanças e estandartes.

Um casal posa para a posteridade, simbolizando os casamentos entre as pessoas da Corte. Os gestos são lentos. Os figurinos diferenciam os exércitos, as cenas ora congelam e se diluem lentamente pela iluminação, ora são cortadas abruptamente. Na longa gênese imperial portuguesa se destaca o príncipe Afonso. Em meio às narrações, a luz continua a tecer fragmentos oníricos. Operários cruzam o espaço carregando materiais para a construção de um estrado e sobre ele um trono dourado num extremo do espaço, prenúncio do episódio de Inês de Castro, que consta no Canto Terceiro original. Aos operários misturam-se espectros de soldados, de sarracenos, que lutam no palco e dividem a atenção com imagens de combates. Um deles

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é o príncipe Pedro, amante de Inês. Tudo desaparece com a luz e Vênus anuncia o caso triste, digno de memória. É nesse momento que as projeções dão lugar à cena. Palco vazio.

Uma procissão é formada em fila dupla, que passa por ambos os lados do Poeta, no alto. A música é cantada pelo coro masculino e o rei Afonso, pai de D. Pedro, recita sobre o coro. Inês, trazida por dois homens, canta com o coro e solicita a piedade do rei, mas este hesita e desvia o rosto. A morte de Inês pelos algozes é iluminada com gritos simultâneos, amarga música estranha de um grande coro. O rei faz um gesto atrasado para impedir e a cena termina. Na sequência, quatro pagens a conduzem para um círculo de pessoas que abrigam o corpo inerte. A música reinicia. Camões reluta e canta torturado à Inês de Castro, tendo o coro como fundo sonoro. Pedro se aproxima e a leva ao trono, antes ocupado pelo rei na cena. Segue-se a coroação da rainha depois de morta. A fila dupla de gente da corte se ajoelha aos seus pés e beija sua mão. A projeção volta e Júpiter conclui o furor que consentiu a morte de “uma fraca dama”.

O episódio de Inês de Castro ganha destaque no conjunto do espetáculo e é também permeado de outras variantes. A atriz Andréa Pozzi, que interpretou a rainha, foi a Portugal para aprofundar estudos sobre o tema e lá faleceu com alguns dias de diferença da morte da própria Inês de Castro: “Ela ficou tão apaixonada pela ideia que foi a Portugal pesquisar sobre a Inês de Castro, que ama e é morta pelo fato de amar. Pelo fato de a peça mexer com vários níveis, do visível ao invisível, ela acabou mexendo com a vida dos atores e com a minha também.” (HILLEL, 2011).

Para Fábio Saltini,

O Iacov montou essa cena para ela, num trono e as mãos caídas, a cabeça. A atriz se apaixonou por essa personagem e morreu, com a mesma idade da Inês de Castro, a uma quadra do túmulo da Inês, fazendo um trabalho sobre ela, estudando sobre a Inês de Castro. E a gente passou por muitas outras coisas, por exemplo, morreu o pai do ator que fazia o Camões no mesmo dia em que morreu o pai do ator que fazia o Vasco da Gama. O fato dos pais dos dois atores principais terem

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morrido no mesmo dia foi muito forte, porque daí começamos a perceber que estávamos mexendo realmente com uma história que vem com a força de todos os nossos antepassados. A gente ficou muito ligado. (SALTINI, 2011).

No texto de Siqueira, os algozes também são retratados e

engolidos pela multidão, mas na encenação isso foi transformado. Restam, no espaço escuro novamente, o poeta que flutua e novas projeções dos deuses no espaço. A narração anuncia o sonho de expansão de D. Manuel. A África é anunciada e danças giratórias talvez alusivas a dervixes finalizam a cena. O espetáculo sintetiza no Primeiro Estágio os cantos Primeiro, Terceiro e Décimo do poema. A rubrica assinala Camões, que estremece em luta contra o seu destino, até que abre os olhos, “um cego, o outro aceso e rende-se ao seu fado: Basta! Eu canto!” (SIQUEIRA, 2001a, p. 15).

O coro cessa e o poeta desce ao chão. Na sequência, Camões sozinho abre os braços e invoca Calíope, musa da poesia épica. Essa invocação está no Canto Décimo do poema original, quando já cansado e de joelhos solicita força, no que é atendido pela deusa. A iluminação destaca a grande caravela ao longe, no lado oposto do corredor/palco, que prenuncia o segundo estágio do espetáculo, quando o poeta conclui e canta a proposição: “Cesse tudo o que a Musa Antiga canta que outro valor mais alto se alevanta...” (SIQUEIRA, 2001a, p. 16).

SEGUNDO ESTÁGIO: A PARTIDA Atores preenchem o palco todo vindos de muitas direções

para a Partida das Naus, ao comando de Camões e ao som de música festiva. O Porto, canções e movimentos coreográficos de grande elenco. A transição se dá pela música que chega de maneira imediata. Muita luz no espaço evoca um amanhecer. O espaço cênico é preenchido por muita gente. A mistura acolhe marinheiros, operários, vendedores ambulantes, soldados, sacerdotes, carregadores, mães com filhos e apetrechos caseiros, jovens, crianças e velhos, a vida agitada da terra para a partida das naus. Vasco da Gama entra em cena e canta. A iluminação destaca o capitão em um corredor de luz, enquanto na penumbra o povo se imobiliza. Ele vai ao encontro do rei D. Manuel e comitiva

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na outra extremidade. Vasco e povo se ajoelham e D. Manuel canta a escolha do capitão e seus homens para os trabalhos ilustres.

As despedidas destacadas são da mãe para o filho e a esposa para o marido. A mãe recita uma ária ao filho, em bela melodia, focos intercalados que preenchem toda a cena fragmentada. A canção é ampliada para um coro. A mulher fala ao esposo, que ao final vira música cantada por todos: “quereis que com as velas leve o vento?”, que antecede o Velho do Restelo em discurso. Camões – agora abandonando a narrativa distanciada ao assumir também a fala em primeira pessoa – fica ao lado do Velho e cantam em dueto. Os marinheiros em movimento contínuo se ajustam dentro da caravela cenográfica que inicia viagem. Toda a tripulação pendurada em cordas e mastros. Vasco da Gama, Paulo da Gama, Nicolau Coelho e Camões no convés, todos com olhos para o desconhecido à frente. A luz se altera, agora em tons azuis e abundante gelo seco. Cantam todos enquanto a nau se movimenta e vai encontrar Camões, mais adiante no palco. As telas que descem agora, como velas iluminadas da caravela, pontuam a bela cena. Escurece o palco com a caravela no centro e efeitos sonoros de ventos pela noite. Essa cena reúne fragmentos dos cantos Primeiro, Quarto e Quinto do poema original.

TERCEIRO ESTÁGIO: A VIAGEM/O ATLÂNTICO O texto adaptado altera um fragmento do poema para a

primeira pessoa do plural e, assim, a canção iniciada assume o discurso do coro e não mais narra fatos passados. As alterações apontam para o tempo presente da cena, os marinheiros estão em trânsito e a caravela ondula com suas lanternas amareladas. Os deuses retornam à cena, em vídeo destacado pelo palco escuro, agora em primeiro Concílio, tendo por tema a viagem dos navegantes. Júpiter e Marte os defendem, Baco contesta. Júpiter conclui a discussão ordenando Mercúrio que aponte a Índia para os portugueses. Baco, irritado, abandona a projeção do alto e vai ao chão, assumindo forma humana em uma dança furiosa. Vênus beija e agradece o pai pela decisão.

Enquanto Baco dança, o coro canta em sussurros. Clima de suspense na rota dos navegantes. A letra do canto evoca os

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muitos lugares e povos encontrados. Vasco da Gama canta sobre o coro e anuncia não saber por onde navegam. Capitão, tripulação e Camões – que se junta a Vasco e canta sobre o coro – estão perdidos. A tempestade anunciada antecede o Fogo de Santelmo e a Tromba Marítima. Há a inclusão de uma oração em latim na cena, pelos marinheiros. Baco e outros “correm num grande círculo em torno da nau, soltando gritos agudos de carpideiras árabes que se misturam à reza” (SIQUEIRA, 2001a, p. 26), em meio à fumaça e à iluminação azulada com projeções sobre a plateia e o teto em movimentos simultâneos. Um longo momento de efeitos sonoros em conjunção com a iluminação. Relâmpagos, ventos e projeções de águas revoltas nas telas, os marinheiros pendurados nas cordas e em movimentos coreográficos jogados em bloco de um lado a outro da caravela.

A luz clara altera a atmosfera de grande perigo e o vento diminui sua força, o que propicia a recomposição dos marinheiros e a sequência da viagem. Vasco aparece no alto da caravela, e anuncia a nuvem escura que precede a chegada de Adamastor. O gigante é uma ameaça invisível com voz possante que preenche todo o céu. Enquanto discursa, ninfas com véus brancos e finos dançam pelo palco todo. Excertos dos cantos Primeiro e Quinto do poema original são destacados na cena, que termina com o episódio de Adamastor. No original, depois que Adamastor conta sua história, ele se afasta com medonho choro e Gama volta a narrar, deixando assim um clima mais ameno de passagem da dificuldade. O clima que se estabelece na cena é referente às

profecias anteriores, cheias de sofrimentos, naufrágios, morte88.

A inversão altera sentidos na cena, que se mantém ameaçadora. A travessia não acabou e a viagem prossegue. O desconcerto do mundo é incluído na adaptação e imprime outro sentido ao poema lírico, leve e sutilmente humorístico no contexto cênico porque dentro do episódio de Fernão Veloso – personagem cômico e contador de histórias –, paradoxal ao sentido amargo e queixoso desses versos específicos da lírica camoniana, mas não é perceptível na encenação. O corte é eficiente e a cena ganha em ritmo, dado o contexto que a conclui. A adaptação, na fala de Vasco, modifica algumas palavras do poema, no intuito provável

88 Essas profecias dizem respeito à tempestade que naufragou parte da esquadra de Pedro Álvares Cabral, em 1500, e também se refere a Bartolomeu Dias, antes dele, cf.

já comentado anteriormente.

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de esclarecer melhor o espectador.89

O exemplo da cena de Adamastor é precisa no tocante às sonoridades isentas de corporeidades. O som de uma voz alterada de suas proporções naturalistas, amplificada por meios tecnológicos e em consonância com outros elementos cênicos que determinam atmosferas específicas alcança o objetivo de traduzir o momento tenso vivido pelos nautas e que, consequentemente, tem sua propagação no conjunto dos espectadores, em maior ou menor grau de percepções ou cumplicidades. Lehmann denomina “o inconsciente do teatro falado”, quando se refere a esse espaço sonoro da voz entre o corpo, sua ausência e a geometria da cena. A voz é redescoberta no teatro pós-dramático por meio dos dispositivos eletrônicos, conforme o autor: “a voz do espaço eletrônico se torna lugar do impensado trans-subjetivo, põe a imaginação no rastro. A imagem é retocada/reescrita pelas palavras.” (LEHMANN, 2007, p. 261).

QUARTO ESTÁGIO: A VIAGEM/ÁFRICA NEGRA A nova cena mostra uma vaga luz de lampião e o capitão

que reza. O poeta narra um zunido de protesto que prenuncia uma revolta da tripulação extenuada e faminta. Os marinheiros comem, cospem e vomitam o alimento apodrecido. O coro canta a indignação da circunstância e avança contra o capitão e também os que o defendem. O motim é interrompido por um som musical característico africano, forte e repentino, que desvia a atenção de todos e anuncia um novo lugar. No texto original, a narrativa abre um parênteses e Camões discorre sobre os valores dos homens que estão na viagem, possível alusão aos ideais de obediência cavalheirescos, e a revolta iminente não acontece. O som de tambores e a luz remetem ao amanhecer e um marinheiro anuncia terra à vista, o continente africano. Os sons cessam e uma voz canta melodia africana. A tribo se apresenta dançando e aumentando a cantoria.

A alegria da música acalma os ânimos e convida a

89 Na fala de Vasco, Capricórnio trópico – interpretação posterior de estudiosos em

relação ao espaço geográfico atravessado pelos navegantes – substitui semicapro pexe, termos do poema original que significam a constelação representada por uma

figura de animal, metade cabra, metade peixe, dificilmente compreensível à primeira

vista no contexto de uma cena teatral. (SIQUEIRA, 2001a, p. 29).

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tripulação a descer à terra. Os rústicos batéis de velas coloridas que vêm à caravela, a música, o figurino de cores fortes dos negros nativos e mulheres de seios nus que dançam e cantam simbolizam costumes e alteridades culturais. Os nativos não esboçam animosidades como no caso anterior e a tripulação tem um momento de alívio, que dura pouco. A sequência da cena movimenta homens morrendo pelo escorbuto, a música cessa. Um cortejo de corpos enrolados em panos brancos, levados pelos companheiros sobreviventes com o auxílio dos nativos é iniciado. O coro dos marinheiros canta a fragilidade dos homens e a onipotência da morte. A luz baixa em resistência e novamente Vasco está só, iluminado por um foco, de olho no horizonte. Nesse estágio se percebe uma evolução sequencial de excertos do Canto Quinto do poema original, que tratam do motim, do escorbuto e das mortes ocasionadas pela peste. Ao final da cena, o poeta canta com o coro versos do Canto Primeiro misturados e harmônicos com outros do Canto Quinto, quando os marinheiros seguem só conduzidos de esperanças.

QUINTO ESTÁGIO: A VIAGEM/ÁFRICA ISLÂMICA Aos poucos uma voz que entoa melodia árabe ocupa o

espaço. As telas/velas são soltas e indicam chegada em novo lugar, no outro extremo do palco agora. Homens com panos amarrados na cabeça e figurinos de muitas cores escalam o casco da caravela. Fernão Martins traduz o encontro. O diálogo com tradução quase simultânea indica estarem em Moçambique. A língua árabe é um acréscimo da adaptação. Curiosidades de ambas as partes são respondidas. Um batel avança e traz o Xeque à nau, com figurinos suntuosos e adereços brilhantes. Ele se posta no alto da nau, no lado oposto a Vasco, também no alto. Aqui ocorre o diálogo sobre a origem dos navegantes e o destino buscado. Na embarcação, desfilam armas, armaduras, malhas, espadas e escudos ao Xeque e Comitiva. Estes examinam tudo e o Xeque anuncia um piloto que guie os navegantes à Índia.

A alegria toma conta da nau, mas uma projeção mostra Baco em close e irado enquanto o palco fica escuro e o Xeque retorna à terra. A projeção se apaga e Baco pisa no palco, em forma humana em figurino vermelho. Encontra-se com o Xeque e acusa os cristãos de assassinos. A música muda e provocações

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em árabe terminam em combate com os visitantes. A cena pós-batalha é iluminada por intensa luz vermelha que vai para a penumbra. Foco em Camões, que reclama “tantas vezes a morte apercebida. Onde pode se acolher um fraco humano, um bicho da terra tão pequeno?” (SIQUEIRA, 2001a, p. 50). O capitão pede piedade a Vênus e a tripulação faz orações. A projeção destaca Júpiter, depois Baco e vai para uma sequência de imagens de estrelas, a caravela no meio do nada. Vênus inicia um canto de argumentos em defesa dos navegantes ao pai. No palco, apenas um foco em Vasco que reza, introvertido. Baco entra em cena, no barco e no mesmo foco. Se exaspera com a decisão de Júpiter em favor dos portugueses, coloca sua mão no coração de Vasco, olhando a projeção, que se alterna entre imagens de Júpiter, Vênus e Mercúrio. A voz deste ordena ao capitão fugir e Baco desaparece no escuro. Vasco e os nautas cantam o céu que favorece em meio a grande movimento dos atores. A nau segue ao largo vento, e pontua o final do Primeiro Ato.

A música de Magda Pucci tem atuação preponderante na encenação. Toda essa primeira parte do espetáculo, que almeja atingir a grandeza do épico, o “cenário acústico” – segundo Pavis (2008, p. 133) quando salienta as atmosferas criadas por notas musicais a situar lugares de ação – é criado como música programática, delineando personagens e situações dentro dos contextos históricos e dramáticos da gênese portuguesa, criando ambientações sonoras, sublinhando marcações e cenas. Ao lado disso, outras canções de Vasco, Camões e Inês de Castro. A compositora expõe os desafios para a feitura do épico e delineia passos e descobertas no processo:

Compor música para a obra de Camões é tarefa da maior responsabilidade. O roteiro de José Rubens Siqueira é totalmente operístico. E dessa perspectiva, o que era difícil, mas possível, transformou-se no quase impossível de ser produzido em tão curto tempo. Explico-me. Esse pequeno detalhe – o da peça teatral ter-se transformado em ópera – muda tudo: a música deixa de ser mera coadjuvante (instalações musicais para os mundos africanos, português e indiano) e passa a ser o veículo da poesia de Camões. Me deparei com a árdua tarefa que é musicar os versos

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camonianos com naturalidade. [...] mas esse era só o primeiro desafio. Instaurou-se logo adiante o segundo: adequar a trilha musical às cenas que Iacov ia me apresentando. (em tempo: nas óperas o processo é inverso. Cria-se a música e depois se faz a encenação). [...] Mas para minha surpresa, encontrei na poesia de Camões uma musicalidade que já sugeria melodias que definiam por si as personagens. Dentro de cada poema estavam subjacentes as frases musicais que deram origem às extensas melodias dos fados e das modinhas, aos ritmos ibéricos e às cadências das canções populares que são pura música. (PUCCI, 2001, p. 20).

SEGUNDO ATO O ator/Camões caminha pelo palco nu e se posiciona em

seu centro, ainda com a luz da plateia acesa. A um gesto seu, tudo escurece e a iluminação destaca apenas um corredor de luz. Dos dois extremos do palco saem pequenos batéis com as comitivas de marinheiros e de nativos da nova terra, Melinde. A música e a voz expandem o mundo islâmico, bem como a indumentária colorida e brilhante dos árabes, os nautas com suas bandeiras e trajes. Um emissário da nova terra canta em árabe. Fernão Martins canta com o Emissário, sempre um verso depois, em cânone bilíngue. Camões, no centro, vai regendo os movimentos das duas nações que se movimentam sob focos de luz que as acompanham, numa dança simbólica de apresentações mútuas. O canto de ambos solicita tirar as más suspeitas e o temor do peito, discurso que corresponde ao rei de Melinde no texto original. Este vem com sua Corte ao encontro de Vasco e os seus. Voltam a seus lugares e escurece a cena.

Música solene embala coreografias enquanto se instalam telas com precisão e eficiência. A iluminação dá ares suntuosos às dependências do rei de Melinde, que recebe Vasco e os nautas. A pedido do rei, Vasco inicia novamente a gênese de Portugal, já narrada pelos deuses na primeira cena do espetáculo. A repetição é logo abreviada pela música que cobre a voz de Vasco e adorna a confraternização dos povos. Mulheres com bandejas de comida,

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tapetes pelo chão, jogos, danças e música preenchem o quadro festivo, um homem faz malabares com facas. A cena reúne e interliga fragmentos dos versos originais dos cantos Primeiro, Segundo, Terceiro, Quinto e Sexto. O rei apresenta o Piloto. Restam dois focos de luz, um para o rei, outro para Vasco e Camões, que se despedem com gestos e mostras de afeição. Escurece.

Novo foco em Camões e outro agora em Baco, num extremo do palco. Camões prenuncia futuras ações de Baco e sai de cena. Baco convoca novo concílio dos deuses no mar. Netuno e os deuses em foco no outro extremo. As telas agora são dispostas nas laterais do palco, em frente às arquibancadas e a cena dos deuses acontece no palco, sem projeções. Netuno em seu trono, deuses e ninfas e uma luz que remete ao mundo aquático completam o quadro. Baco destila seu discurso contra os navegantes e convence. Netuno envia Éolo soltar as fúrias e a cena é completada com o movimento dos deuses e das ninfas espalhados por todo o espaço cênico. As telas são desfeitas.

A cena do conto cavalheiresco é modificada pela adaptação. Os marinheiros que vigiam noite adentro, sonolentos, cantam canções populares em momento de calmaria que antecede a última tempestade antes de chegarem às Índias. O episódio foi substituído por canções alheias à letra poética e relacionados aos amores femininos. Na cantoria dos marinheiros que se divertem, a mulher não é idealizada como nos ideais cavalheirescos e sim transparece a desconfiança nas suas juras e promessas de amor. A encenação não inclui o episódio em favor do ritmo e acerta.

A caravela volta à cena, em seguida a tempestade inicia e a destrói em quatro pedaços. Efeitos de luz e sonoros dividem o palco com os gritos dos marinheiros em desespero. Na boca de um deles está a narração original que conta a quase destruição dos barcos de Paulo da Gama e de Nicolau Coelho. Camões aparece só, de joelhos. Ondas calmas são projetadas em telas colocadas de outro modo agora, sublinhando a narração do poeta que enaltece a ação de Vênus e suas Nereidas para acalmar os ventos e as águas. Amanhece e Calecut é avistada por um marinheiro, que grita e é seguido pela alegria de todos. Camões anuncia a Índia e seu senhor aos navegantes.

SEXTO ESTÁGIO: A VIAGEM/ÍNDIA

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Alguns nautas descem em um batel e encontram o mouro

Monçaide. Ele pergunta em tom alegre ao marinheiro de onde vêm os navegantes, com misturas de línguas espanholas e portuguesas. Na sequência da cena, telas são instaladas no centro do palco, agora templo do Samorim. Os figurinos, os adereços, a língua, a música e a crendice, diversificados, apontam as alteridades culturais. Os portugueses encontram ali homens e mulheres usando panos coloridos, pinturas pelo corpo, flores nos cabelos e uma música envolvente e estranha para eles em território alheio. Às falas da personagem, licenças poéticas adaptadas e inspiradas no Canto Sétimo original, misturam-se as vozes da multidão na língua malayalam, própria da região litorânea indiana do Malabar. A música volta com força a mando do líder. Vasco da Gama e Comitiva, vestidos luxuosamente a caráter, são recebidos e acompanham o Catual para o templo.

O diálogo entre Samorim e Vasco acontece entre cenas simultâneas de mulheres que dançam. A elaborada cenografia substitui amplas descrições poéticas. A dourada e luxuosa sala do monarca apresenta o Samorim em seu trono, que acolhe os marinheiros com orquestra e bailarinas. Vasco conversa sobre os objetivos da viagem. O Samorim ouve e retira-se enquanto os portugueses são tratados com massagens e festa. Em outro foco, o Catual canta com tristeza as proféticas vitórias futuras dos portugueses. A narração, no poema original, é substituída pela fala da personagem em primeira pessoa. Na sequência da cena, há um diálogo entre o Catual e Monçaide.

Esse estágio alterna versos dos cantos Sétimo e Oitavo do poema original. No poema, entre a chegada do Catual e a explicação cantada por Paulo da Gama, há uma brusca interrupção da narrativa, desviada pelo poeta para um tom queixoso de apelo às ninfas. A subjetividade lírica, que busca reforço para concluir o poema, é totalmente retirada no texto adaptado. Uma projeção de Baco é iluminada em simultaneidade ao sumiço dos homens no escuro. Cruzando a figura de Baco na projeção e um sacerdote mouro em altar de sacrifício, as práticas religiosas do lugar são representadas. Enquanto Camões narra a natureza do exercício ritual do sacrifício para as revelações proféticas daquela cultura, o sacerdote reage trêmulo às falas de seu deus na projeção, que se apaga repentinamente. A cena

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seguinte apresenta o encontro do Catual e do sacerdote com suas novidades conspiratórias para o Samorim em seu trono.

Quando Vasco da Gama entra na cena é recebido com gravidade, posto que o líder está informado das más intenções dos portugueses. Vasco se defende, o Samorim solicita um presente para selar o encontro e sai. O Catual e vários guardas cercam o capitão, que tenta escapar em vão no único foco da cena. A nau se ilumina e dois marinheiros descem com tecidos e outros presentes em direção à terra, a música ambienta a transição da cena. Vasco, cercado pelos guardas, troca acenos com os seus na passagem. Camões recita, sobre a música, o poder do dinheiro e as constantes traições e vilezas que este obriga. Recebido o material, os dois marinheiros somem de cena com os nativos e os guardas se retiram. Somente um, Monçaide, fica e em favor dos portugueses. Ele esclarece os planos de destruição das naus pelos governantes locais. Em sequência, Vasco já está na caravela e um foco de luz mostra dois árabes sendo enviados à terra, que serão trocados pelos nautas presos. O movimento cênico de afastamento dos árabes e da chegada dos marinheiros à nau é simultâneo, com Camões no centro regendo a cena. A tripulação prepara a partida apressada em meio a gritos e festas de alegria pelo retorno de todos. Monçaide, que decidiu voltar à pátria com as naus, é tido como herói por todos os navegantes, enaltecido no discurso de Camões. Vasco observa novamente a Índia, que se afasta com o deslocamento da caravela de volta ao mar ao som dos marinheiros na partida.

SÉTIMO ESTÁGIO: A ILHA DOS AMORES O coro canta e outras vozes se sobrepõem novamente a

bradar os medos do mar incerto. A iluminação suave traz tons de anoitecer. As telas se transformam em velas novamente, debaixo de um céu estrelado. Camões clama à estrela d’alva, que é transformada na projeção em close do rosto de Vênus, que sorri no céu noturno. Camões dialoga com ela e pede algum deleite aos nautas. À fala da deusa uma luz se acende na Ilha dos Amores. Aparecem as ninfas correndo, com longas guirlandas de flores, e Vênus fala a Camões dos planos de forte geração de semideuses no mundo marinho. As ninfas prendem as guirlandas na caravela, que simbolizam agora cordas que puxam a embarcação para a

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ilha. Riem sempre, maliciosamente, como também é o sorriso de Vênus para Camões, na projeção que desaparece no amanhecer.

Na cena seguinte, toda a tripulação parece confusa em alcançar as ninfas que circulam e fingem fugir sorridentes e provocadoras. Nos encontros, os véus que vestem as deusas caem com facilidade e as roupas dos homens demoram e dão trabalho, uma pitada de humor na cena de sensual orgia e entregas em cenário paradisíaco apropriado. Ao fim do amor, Tétis novamente toma a palavra: “faz-vos mercê, lusos, a Sapiência Suprema de, cos olhos corporais, verdes o que não pode a vã ciência dos errados e míseros mortais.” (SIQUEIRA, 2001a, p. 106). O verso, aqui, é alterado e se dirige aos lusos, diferentemente do início dirigido a Camões, e a eles também ela apresenta a Máquina do Mundo e não somente a Vasco da Gama. Esse estágio do espetáculo traz os cantos Nono e Décimo do poema. Tudo são profecias das ninfas. No final da cena foco em Camões, que canta o vento que favorece o embarque para o terreno pátrio tão desejado.

OITAVO ESTÁGIO: A VOLTA A caravela é iluminada com os nautas em festa. Música, já

no Porto regressado, cheio de gente a reencontrar os seus. Recepção a um Vasco heroico e seus nautas. Na confusão do retorno, a mãe reencontra o filho. A esposa procura o marido. A nau se desmantela. Hillel aponta para a beleza e os perigos da cena em que a caravela se parte em pedaços: “A caravela rodopiava como no mar antes de afundar, entendeu? E era muito bonito esse negócio. Foi um trabalhão desmembrá-la, fazê-la rodopiar. Fazer os atores compreenderem aonde eles levavam aquela enorme estrutura, que precisava rodopiar.” (HILLEL, 2011).

Para Saltini, havia um grande jogo que permitia a caravela girar:

A gente passou uma noite no restaurante com o Iacov, virando copo e prato na mesa para ver como que a gente ia fazer para virar a caravela. Daí fizemos um jogo de peças que a estrutura ia girando entre si, e aí ela virava o bico ao contrário e voltava, e a gente cantava durante três horas, atuava, dançava e

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empurrava a caravela. De vez em quando passava em cima do pé de um, amassava o dedo do outro... Muitas unhas partidas, sempre tinha uma vítima. (SALTINI, 2011).

A luz some aos poucos, a música também, as pessoas se

afastam. Além de Camões, somente uma mulher resta em cena, e foge em gritos. O marido não voltou. Camões lamenta à Musa em seu canto baixo e rude. Toca um sino. O poeta encerra: “braço às armas feito, mente às musas dada”, e agradece o público.

A iluminação é elemento fundamental na encenação, por

vezes difusa e espectral, outras a pino para destaques individuais de personagens, outras ainda laterais e em contraplano. Hillel, a respeito, esclarece o trabalho conjunto com seu assistente e iluminador, Caetano Vilela:

Eu passei basicamente o conceito da luz e ele foi atrás da parte técnica. Nós tínhamos desde luzes que vinham debaixo da arquibancada para dar ideia do mar, com fumaça que dava ideia das ondas embaixo da caravela até a luz pontual que retirava do escuro certos momentos e atores, em determinados lugares. Tínhamos dois canhões seguidores que acompanhavam. Toda a ideia de projeções, toda a ideia de onde vão as projeções, a colocação dos projetores, veio de fiz um mestrado nos Estados Unidos, de Rádio e Televisão, então tudo o que é referente a registros de som e de imagem, eu já tinha feito na década de 1980 e trabalhei com um orientador meu, o professor Herbert Zettl, e um dos cursos que eu fiz era sobre como criar um evento em várias telas. Então, toda essa técnica eu já conhecia procurei aplicar isso aqui. (HILLEL, 2011).

As telas, transformadas continuamente dentro da

encenação, estabelecem múltiplas formas e sublinham passagens importantes, nas quais projeções cruzadas e efeitos de iluminação completam a proposta estética de Hillel, perfazendo uma eficiente dramaturgia da luz em sintonia com a cenografia. As projeções

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também atuam de maneira a fazer funcionar a narrativa histórica, em consonância com o que é apresentado no palco, embora as aparições dos deuses parecem, por vezes, ralentar o ritmo do

espetáculo.90 As projeções acentuam, nesse sentido, a questão

da mescla de linguagens: “Seja qual for a confissão, voluntária ou involuntária, o vídeo oferece ao espectador uma espécie de segundo olhar sobre o palco e sobre o acontecimento teatral. O uso das mídias não é uma simples questão de técnica e forma. Abrange o sentido global da encenação.” (PAVIS, 2010, p. 198-199).

Para Béatrice Picon-Vallin (2012), com essas técnicas a partir das mídias de massa o espectador passa a perceber de outra forma o teatro, ou seja, as tecnologias no teatro são uma resposta à percepção do público, convidando-o a expandi-la. A presença de elementos tecnológicos dentro da cena teatral se reporta a Meyerhold e Piscator em experiências nesse sentido nos anos 1920, retomados nos anos 1960. A utilização de tecnologias a cada dia aperfeiçoadas na montagem de Hillel se mostra eficaz ao somar para o andamento da narrativa contada. O vídeo, integrado e cumprindo função dramatúrgica, assinala tendências ao apagamento de fronteiras entre quaisquer linguagens dentro da cena teatral. Quiçá esses apagamentos também ocorressem nas fronteiras geográficas do planeta. As novas tecnologias e experimentações nesse sentido são parte de novas técnicas de jogo cênico, que continuam a exigir grande responsabilidade do ator. Significa que o ator deverá estar atento e com as percepções aguçadas para discernir as várias linguagens que se cruzam dentro do espetáculo em que atua, no intuito de dominar suas sutis distinções. A tecnologia é uma “caixa de ferramentas” (PICON-VALLIN, 2012) que o teatro pode fazer uso em seu proveito.

A crítica se divide em suas análises. Questões relativas a fidelidades diante da obra literária, no sentido de cortes e de

90 Essas reflexões sobre ritmos da cena teatral, o trabalho do encenador e as alteridades quanto aos apontamentos de um texto para a cena respondem aos ecos provocativos e pertinentes de Ubersfeld: “O que é o tempo no teatro? É o tempo universal do relógio? É a duração histórica irreversível? É a duração fisiológica ou psicológica, a do envelhecimento dos tecidos ou da densidade vivida? [...] é o ritmo das

sociedades humanas e o retorno dos mesmos ritos e cerimônias? A extrema dif iculdade da análise do tempo no teatro vem do entrelaçamento desses sentidos do tempo, que transforma a temporalidade numa noção mais ‘filosófica’ que semiológica.”

(UBERSFELD, 2005, p. 127).

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alterações dos episódios se observam na avaliação de Marina Monzillo, que considerou ter sido a adaptação muito fiel à linguagem literária, porém pouco à estrutura narrativa do autor. No entanto, esse dado “infiel” de inversão da narrativa não é depreciativo. Para ela, o espetáculo apresenta todas as qualidades a que se propõe um grande épico:

Os espectadores sairão satisfeitos com o espetáculo grandioso e único que é apresentado. A dor no pescoço é fruto de mais de duas horas de movimentos com a cabeça para acompanhar as grandes conquistas de Portugal e a aventura do navegador Vasco da Gama em busca das Índias em 1498. [...] A satisfação existirá porque Os Lusíadas ganhou uma montagem impressionante, com elementos multimídia, belos figurinos e rico cenário, e consegue finalmente traduzir em força cênica os versos decassílabos de Camões. As cenas, as músicas e as coreografias estão lá para ilustrar, sonorizar e fazer compreender a história. [...] O que se presencia é um espetáculo espelhado no canto lírico e na música erudita. (MONZILLO, 2001, p. 30).

Márcio Marciano estabelece virtudes e fissuras na sua crítica à montagem. As soluções resultam mais mirabolantes do que teatrais, segundo ele, e a infinidade de imagens erra o alvo. Ao espectador, dessa maneira, resta somente contemplar desfiles solenes de deuses, ninfas e heróis cavalheirescos. Sem estar convencido a respeito dos excessos da produção, no entanto reconhece as qualidades artísticas do elenco numeroso de artistas que assinam a montagem e seus esforços para traduzir o poema para a linguagem cênica. Mas após o impacto inicial gerado pelo esplendor bem composto dos elementos cênicos, a “cenografia engenhosa, a iluminação precisa e eficiente e a indumentária requintada, o público é imerso num torpor de encantamento, suspenso apenas quando a música altissonante irrompe como expressão de um poder enganosamente confiante em si mesmo.” (MARCIANO, 2001, p. 127). Marciano, por outro lado, pondera que o espetáculo

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tem o esplendor reluzente dos trionfi organizados pelos príncipes italianos da Renascença, época brilhante da restauração humanista. Por trás da dispendiosa encenação da epopeia lusitana, esconde-se a intenção autoritária e pretensamente “civilizadora” de quem anda de mãos dadas com o poder e se imagina autorizado a expandir as próprias veleidades artísticas à custa do erário. Não mais do que isso é o que vemos em cena. Numa paráfrase infeliz dos propósitos renascentistas, o espetáculo procura afirmar o “homem como a medida de todas as coisas”. Mas como encobrir o fato, cujo exemplo acabado se vê no palco, de que nos tempos que correm, o dinheiro é o pai de todas as medidas? No início do grande Poema da Raça, Camões adverte o leitor de que não se prestará a descrever “vãs façanhas, fantásticas, mentirosas”, mas que se pautará pela verdade dos fatos. Essa sensibilidade para as injunções da história (aliás, responsável direta pela sublimidade poética da narrativa camoniana) teima em se ausentar dessa encenação que prima por um “bom-gostismo” afeito a inspirações míticas e a deslumbres tecnológicos. Assim como os príncipes renascentistas, que mascaravam a decadência com festivais encomendados para afirmar a ideia de triunfo e civilidade das cortes, a magnificência aparentemente despreocupada de Os Lusíadas representa o estertor de uma visão de arte carcomida pelas benesses oficiais. (MARCIANO, 2001, p. 127).

Ainda que, como já se sabe pela investigação, parte das

verbas da produção tenha se esvaído nos muitos percalços até que se chegasse à realização concreta da montagem pelos artistas aqui destacados, a crítica é bastante pertinente e discute principalmente as questões das megaproduções e os destinos de significativas verbas públicas a financiar a sociedade do espetáculo. A visão de arte meramente interesseira é que não parece, a meu ver, desesperada e em estertores, posto que se

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mantém em relevo pelas instituições culturais. A tolerância e a crítica de Camões a respeito, assim, continua alçada a segundo plano. Para Sérgio Coelho, a montagem se mostrou capaz de satisfazer o público, embora tenha apresentado falhas essenciais. O crítico considera que a síntese dramatúrgica de José Rubens Siqueira privilegiou mais os fatos do que os conflitos ao estabelecer uma narrativa linear e quase pedagógica, considerando aí o que há de positivo e de limitador. Com relação à direção de Hillel, que segundo Coelho já deu provas de ser um dos mais eficientes diretores para musicais de grandes elencos, a encenação

mantém “Os Lusíadas” rodando, apesar de um espaço inadequado e um tempo de ensaio que, depois de várias trocas de elenco e direção, acabou se revelando escasso. O desalentador é que, por falta de tempo ou excesso de prudência, os atores foram instados a declamar o texto em vez de interpretá-lo, como se o texto fosse uma “manifestação divina”, que dispensasse qualquer contribuição. As participações especiais de grande atores, que surgem em telões em cenas pré-gravadas, têm pouco a acrescentar de humanidade e distanciamento crítico ao texto. Fica difícil assim, em meio a um tom unívoco, destacar qualquer performer. Resta constatar que tropeçam pouco no texto e cumprem com firmeza as marcações dinâmicas de Hillel. A longa e convencional grandiloquência seria insuportável se não fosse permeada pela bela música, a coreografia bem embasada (a africana), o pitoresco do figurino e inteligência da cenografia, além de efeitos menores (as ingênuas tempestades, o erotismo softcore das ninfas). Mas todo esse esforço resulta em especiarias, cuja função é disfarçar o gosto de insosso e passado. A exaltação sem reservas do herói colonizador soa constrangedora no contexto da comemoração dos 500 anos e anacrônica mesmo para Portugal. (COELHO, S., 2001a, p. 1).

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As observações de Coelho reforçam conceitos de raça superior presentes no espetáculo (e no poema), em detrimento daquela ambiguidade presente na obra e na intenção dos criadores. Não há dúvida, porém – e também percebido pelo crítico – que os fatores do tempo escasso e da pressão do calendário, mais do que excessos de prudência, tiveram influência decisiva no resultado apresentado. No entanto e apesar das críticas por vezes incisivas, o espetáculo permaneceu de casa cheia por longo período. Os dias 6 e 7 de outubro de 2001 encerraram a temporada do espetáculo com direção de Iacov Hillel e dramaturgia assinada por José Rubens Siqueira. A peça inicialmente ficaria dois meses em cartaz, mas graças a um acordo com a Secretaria Estadual de Educação o prazo foi expandido. Os ingressos para as sessões foram subsidiados para a rede escolar graças à obra poética original ser leitura obrigatória para o vestibular da Fuvest. Assim, mais de uma sessão por dia abrigava estudantes que compareciam ao Teatro.

Esse também foi motivo de descontentamento por parte da direção, dramaturgia e elenco, que reclamavam do não cumprimento dos acordos verbais. Não houve contrato entre as partes da produção com o diretor e com o dramaturgo. Em entrevista a Valmir Santos, Hillel esclarece que Escobar acabou “estragando o trabalho, colocou pessoal que não ensaia, enfim, exerceu um tipo de pressão absurda. Simplesmente vilipendiou o nosso trabalho”, e Siqueira salienta: “é um trabalho que rende dinheiro na bilheteria, mas não chega às minhas mãos. Não tem intriga, fofoca, só quero minha parte, quero justiça.”

Ruth Escobar assume que interferiu no trabalho. Ela afirma que o espetáculo dirigido por Hillel não era mais o mesmo, havia cortado quarenta minutos e considerava que os atores tiveram pouca atenção da direção. Eles, segundo a produtora, foram “um pouco jogados na arena. Com toda a parafernália, não se cuidou para que o texto de Camões sobressaísse com a importância que deveria. Estou muito indignada com a má fé. Quando você faz um espetáculo e quer percentual, tem que falar, e isso jamais foi dito.” (SANTOS, 2001b, p. E1). A vinculação de aspectos do resultado final da montagem ao exíguo tempo de ensaios novamente vem à tona. Os ensaios são pautados dentro de organogramas com a finalidade de cumprir prazos prometidos às fontes de captação de

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recursos e não às sedimentações artísticas do processo de trabalho.

Segundo o diretor e o dramaturgo, os valores reclamados correspondem à temporada prorrogada para cerca de sete meses. Eles receberam seus valores acordados para a direção geral e para a adaptação e desenho dos figurinos, respectivamente, porém considerados os dois meses de temporada. A reclamação solicitava 6% da bilheteria proporcional pelos cinco meses de temporada esticada, sobretudo após o acordo com a Secretaria Estadual de Educação. Hillel e Siqueira moveram ação na justiça contra a produtora por direitos autorais e ganharam a causa. O diretor pontua:

Quero dizer que eu gostei muito de fazer, mas eu tenho muita pena de como a coisa transcorreu. A produtora tirou de cartaz o espetáculo que estava lotando, ela não me pagou nenhum direito autoral, porque enquanto diretor de teatro eu sou um criador, enquanto criador eu tenho direito ao direito autoral e ela não pagou nada disso e tem um histórico muito feio. Por um lado, de inovadora do teatro brasileiro, por outro lado esse histórico. E essa é uma coisa que ela plantou, uma coisa dela mesmo, porque é uma pessoa que viveu muita revolta, muito problema. Eu a perdoo, mas não esqueço. Eu achei que iria sair incólume e não saí. A montagem foi extremamente estressante por causa da pressão dela, dos deveres, por causa das condições, da pressa, por causa dos milhões que ela tinha conseguido do governo. E o resultado ficou a desejar por necessitar mais tempo de ensaio, apesar de ter sido um sucesso enorme, de ter ficado em cartaz oito meses mais ou menos, com sessões absolutamente lotadas.

Para Hillel, a produtora fazia os atores trabalharem no

espetáculo em pelo menos três sessões diárias, posto que os colégios lotavam (e pagavam) as sessões, mas os valores relativos a essas sessões extras não eram repassados aos atores:

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Ela falava que estavam contratados. Estavam contratados para cinco apresentações semanais e não para cinco diárias. Enfim, eu acabei processando e ganhando o processo. Eu queria fazer como artista uma obra de arte, onde eu tive uma visão muito clara, Os lusíadas, os cantos, o cantar do poeta. Foi um processo criativo muito grande, muito forte, muito desgastante. A produtora chegou a ir com revólver e ameaçar os atores que queriam fazer greve para receber pelos espetáculos extras. Ameaçou se não fossem fazer o espetáculo. Uma das atrizes se levantou e falou: mas você não paga! Então não vou pagar mais mesmo, e expulsou a mulher do elenco naquele dia. Eu não podia concordar com isso e saí. Ela resolveu cortar o espetáculo. Você não faz isso na obra de ninguém, não vai em um quadro e corta partes dele e diz que o fez por não gostar. Foi isso que eu processei e ganhei o processo pela Justiça, e recebi o dinheiro, não só ganhei como levei e o José Rubens também. Ele também ficou absolutamente revoltado com isso. (HILLEL, 2011).

Ruth Escobar reclamava do tempo da montagem, considerado por ela muito longo. O espetáculo não agradou a produtora em termos práticos que se mostraram no decorrer da temporada, já que na estreia – como se percebeu em entrevista anteriormente – a montagem fora aprovada por ela. A suspensão da temporada e a nova proposta para outro espetáculo – agora de antemão definido por ela, mudança esta para a frontalidade do palco italiano, o que transparece ser uma condição essencial para as apresentações posteriores do espetáculo em Portugal. Acusava serem os figurinos “de escola de samba pobre” e que o diretor “se perdeu” (SANTOS, 2001b, p. E1). No programa do espetáculo, se refere a Salazar como o mito, o grande Pai da Nação Portuguesa, que propiciou a ela acompanhar o Presidente Craveiro Lopes para Moçambique. Esse fato foi destacado por Coelho em sua crítica, que procura amenizar possíveis interpretações políticas maniqueístas da declaração de Ruth e

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para isso lembra a produção dela dirigida por Nunes, em plena ditadura militar no Brasil, que expunha com ambivalência as questões do colonialismo. Ao concluir suas reflexões na produção do espetáculo dirigido por Hillel, Ruth escreve: “Depois de ter inaugurado, em 1964, a Sala Gil Vicente, na rua Dos Ingleses, em 1972 monto minha primeira versão dos Lusíadas, ‘A Viagem’ – que ganhou todos os prêmios da crítica especializada como o melhor espetáculo daquele ano”. (ESCOBAR, 2001a, p. 4). O diretor daquele espetáculo não recebeu prêmio, como já foi constatado. Ela prossegue:

Depois de 30 anos recebo o desafio para montar Os Lusíadas em comemoração aos 500 anos. [...] Não desisti enquanto não reuni a equipe que achava capaz de tal façanha. Depois de tentativas de diretores, que não me pareceram adequados para o tamanho do meu sonho, esperei por Iacov Hillel, o primeiro a ser convidado, e nossa grande aventura enfim se realiza, certamente na maior produção das últimas décadas.” (ESCOBAR, 2001a, p. 4.)

No programa seguinte, com direção de Márcio Aurélio, o

discurso se altera:

Não desisti enquanto não alcançamos o melhor e mais justo resultado. Depois de várias tentativas, e mesmo depois de completar e estrear uma produção que não me satisfez, retomei o leme, mudamos o curso do barco e agora, finalmente, chegamos a bom termo e seguro porto. Chegamos? Os portugueses foram e são os grandes descobridores dos mares, desde o começo dos tempos, os grandes buscadores duma completude total, sem compaixão por si mesmos. Quando olho para trás, vejo essa menina tão atrevida e me pergunto: por quê? seria esse sangue que me corre nas veias, dos descobrimentos, dos descobridores, ou o susto de me descobrir a mim mesma, apenas mulher e não navegadora, encantada da

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minha raça, ou delírio, surto de grandiloquência de uma adolescente rejeitada pelo pai? Mas a pátria há de me amar. Percebo que na minha vida cada estágio é uma tarefa. Tenho a pretensão da busca da impecabilidade do fazer do teatro – por isso jamais me rendi ao puro comercial, à comédia barata, mas devo reconhecer que essa pretensão é também uma forma de arrogância, pois que é preciso trazer a verdade para o funcional. (ESCOBAR, 2001b, p. 4).

Outros fatos aconteceram: em Boletim Informativo, o

Ministério da Cultura anunciou a realização do espetáculo para novembro de 2000. Não há autoria no informativo, apenas destaques dos eventos teatrais, musicais e de dança do período. Na edição de setembro consta:

Para marcar os 500 anos: Os Lusíadas na Estação Júlio Prestes. Estreia, dia 15 de novembro, em São Paulo, uma superprodução teatral com apoio do Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Música e Artes Cênicas. A nova montagem de Os Lusíadas, de Luís de Camões – obra da língua portuguesa escrita em 1572 – é da empresária Ruth Escobar, com direção de Gerald Thomas e cenários de Ruy Otahke. A produção, que será apresentada no saguão da Estação Júlio Prestes, custará cerca de R$ 1 milhão. Nos anos 70, a atriz já havia encenado a obra A Viagem, contrapondo o texto do poema de Camões à realidade política brasileira daquela época. Na versão recente, se interessa apenas na poética do escritor, “o homem e seu impulso pelo desconhecido”, esclarece Ruth. O espetáculo faz parte das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil e seguirá, no ano que vem, para a cidade do Porto, capital

cultural da Europa em 2001.91

91 CULTURA. Boletim informativo. Ministério da Cultura. Brasília, Setembro de 2000,

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As notícias a respeito do espetáculo por parte dos setores responsáveis do referido documento são verossímeis ao tratar da montagem anterior e aos objetivos distintos em relação à atual. Não obstante, apontam para equívocos no mínimo perturbadores. Em edição especial do mesmo ano, o Boletim contém informações que o espetáculo fora realizado, com direção e cenografia que nunca chegaram a se efetivar com os profissionais mencionados e nem mesmo naquele ano de 2000:

Clássico marca 500 anos do Brasil: Os Lusíadas, de Luís de Camões, obra escrita em 1572, voltou com força total em 2000. A montagem teatral estreou no mês de novembro em São Paulo e teve o apoio da Secretaria da Música e Artes Cênicas do Ministério da Cultura. A superprodução é da empresária Ruth Escobar, a direção é de Gerald Thomas e os cenários de Ruy Ohtake. O espetáculo integra as comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil. No próximo ano, será apresentado na cidade do Porto, Portugal, capital cultural da Europa em

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Assim, constatam-se interesses escusos na manipulação de informações, estas forjadas e maquiadas para comprovações de verbas públicas investidas ou mesmo denunciam uma completa falta de controle dos gastos aplicados por parte de departamentos ou setores culturais governamentais. Para a crítica, constata-se positivamente o trabalho do grande elenco envolvido, a qualidade da iluminação, da cenografia, da indumentária e da música, o que ainda não parece justificar o grande investimento financeiro na empreitada. Hillel considera a dificuldade em conseguir um melhor resultado de som, que acabou por prejudicar por vezes o espetáculo, na sua opinião:

Você imagina um corredor: O ator fala neste ponto, um determinado lugar. A amplificação e as caixas referentes devem soltar a voz dele

p.2. 92 CULTURA. Boletim Informativo. Edição especial ano 2000. Brasília, 2000, p. 3. Grifos

sublinhados nossos.

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perto. Se o ator se desloca e vai para outro ponto, tem que haver a amplificação perto de onde ele vai ficar. Assim, é necessário diminuir o volume das caixas do primeiro e aumentar o volume nas outras caixas, do segundo ponto... está entendendo? Então, teu olhar é levado pela parte sonora. A viagem seguiria sonoramente. Já tínhamos essa técnica no Brasil, que é uma técnica usada no Cirque Du Soleil, em todos os grandes eventos, nos grandes shows já existe essa técnica. A parte sonora ficou a desejar. Então, às vezes, a plateia ficava confusa porque dava eco, o ator falava aqui e a caixa amplificava lá. (HILLEL, 2011).

Enquanto o encenador manifesta reflexões sobre a

percepção do público nesse espaço teatral, o ator Fábio Saltini pontua experiências sob o ponto de vista interno. Debaixo das arquibancadas, um mundo à parte. Camarins próprios, adereços de personagens os mais diversos: “No meio aquilo parecia um túnel grande, a arquibancada e por baixo dela outro espetáculo. Todo mundo correndo, pegando lanças e saindo de Rei. Pedindo aos próximos ‘cadê minha coroa’, aquela loucura à parte, que é outro espetáculo, que esse ninguém vê.” (SALTINI, 2011).

Um Camões por vezes como entidade onírica e outras participante ativo nos acontecimentos ficcionais em defesa da visão desbravadora dos navegadores fica dividido, desse modo, em um “duplo princípio de espaço: ora uma imagem distante fantasmal, ora uma ação próxima e imediata”, como assinala Pavis (2010, p. 90) em análise semelhante e pertinente também nesse caso, e essa divisão permeia e caracteriza a personagem na dramaturgia e na encenação. Para Siqueira (2013), essa questão da narração foi mais um uso instrumental, por sentir o poeta desse modo no próprio poema: “Ora funcionava melhor de um jeito, com ele presente, narrando economicamente passagens que ficariam pesadas encenadas, ora distanciado, deixando a ação do poema acontecer dramaticamente.”

Outras partes consideráveis d’Os Lusíadas, entre aspas e dentro de parênteses, foram incluídas propositalmente pelo dramaturgo na adaptação. Elas serviam não só para dar subsídios à cenografia, mas a todos que iam trabalhar na peça. Com um

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elenco e equipe tão grandes e o tempo escasso, evidentemente, não se conseguiria que todos lessem o poema na íntegra. Os trechos transcritos tinham por finalidade dar um “gostinho” da genialidade do original, segundo Siqueira, na tentativa provocativa de que alguns participantes mais curiosos viessem a visitar o poema posteriormente. A inclusão das línguas espanhola e Malayalam na adaptação deixam entrever as fusões linguísticas e suas equivalências:

As viagens portuguesas me parecem um primeiro registro da aldeia global em que nos tornamos. Dramaticamente, acho interessante pensar o que os portugueses devem ter sentido ao ouvir línguas estranhas. Quanto ao espanhol, a proximidade com o português à época do Camões era muito grande. É um portento Camões ter usado com tamanha perícia uma língua tão jovem como era o português à sua época, desligado havia tão pouco tempo do espanhol que foi uma de suas origens, a principal. A vontade do Iacov era mesmo fazer uma ópera e o texto se presta muito bem a isso. O problema era o tempo e o custo. O espaço já estava definido quando fui convidado e me agradava muito. A ideia de ser numa estação de trens, local de chegadas e partidas. Para mim, pessoalmente, era um ponto forte: a estação Julio Prestes era da linha Sorocabana. Eu sou de Sorocaba, durante toda a minha infância e adolescência sempre cheguei e parti dali entre São Paulo e minha cidade. Me lembro a intensidade da primeira vez que desci do trem (a viagem levava duas horas e pouco) e vi aquele espaço imenso, cheio de mármores e vitrais, como um castelo de conto de fadas. A experiência era sempre “visceral” porque eu enjoava no trem. (SIQUEIRA, 2013).

Em relação à música do espetáculo cabem ainda

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importantes detalhes processuais relativos às parcerias coletivas e aos distintos mundos musicais, pelo olhar de Magda Pucci. Segundo ela, necessitava buscar a completa integração com a encenação de Hillel, mas com o agravante dos prazos: enquanto ele montava o segundo Ato ela compunha o Primeiro:

Cronometra daqui e dali, muda cena, corta fala, muda marcação, encurta música, alonga música; e no final de tudo o Primeiro Ato transformou-se num verdadeiro movimento sinfônico que dá suporte a cada cena, criando alicerces musicais para as ideias de Iacov e também transformando-se em acompanhamento para os solos. Uma ópera? Estruturalmente sim. Mas e a estética de tudo isso? Como deveria soar a música de Os Lusíadas? Moderna, contemporânea, clássica, romântica, barroca? Difícil escolha! Mas vejo que a trilha apresenta um mosaico multifacetado composto de várias tendências musicais de diferentes épocas, onde se viaja na ancestralidade dos fados e das modinhas de caráter português, onde nos deparamos com a veemência dos coros épicos verdianos e às vezes wagnerianos, onde se presencia a tensão das harmonias inspiradas em Prokofiev e Shostakovith, onde nos envolvemos com o lirismo e a melancolia das canções contemporâneas ao estilo do grupo Madredeus, algumas sutilezas de Satie e leves pitadas de Villa-Lobos. Isso sem falar nos momentos de pura música étnica – compostos de cantos tradicionais africanos, ritmos e temas árabes, além de melodias de inspiração indiana, um convite para a entrada no mundo oriental, desconhecido e tão desejado, cheio de magia –, interpretados magistralmente pelo meu grupo Mawaca. (PUCCI, 2001, p. 21).

No Programa do Espetáculo, o encenador deixa explícita a

necessidade de harmonia do conjunto para transformar a força poética em espetáculo teatral, em que se procurou manter a

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linguagem original de Camões e utilizar os elementos mais modernos de que se dispunha para contar a história como uma ópera multimídia. A ópera como obra plural, Opus em latim, é inventada no final da renascença pela necessidade de expansão cultural do ocidente. Aqui ela ganha os contornos tecnológicos dos novos tempos. Segundo Hillel, para se realizar juntos essa viagem era preciso reunir “a emoção, os atores, o texto, a interpretação, a coreografia, o canto, a música, os músicos, a cenografia, os figurinos, a produção, os artesãos, a adrenalina, os adereços, a iluminação, as projeções em vídeo, a sonorização, os técnicos, a pressa, a programação visual... (HILLEL, 2001, p. 7). E ressalta as relações com os artistas envolvidos, muitos já conhecidos por relações de trabalho anteriores:

O espaço cênico me foi dado. A ideia de como usar esse espaço é minha. Onde colocar o camarim, como esconder a caravela, como montar a caravela na frente do espectador. Eu falava para o cenógrafo sobre um cenário que se encaixa e de uma hora para a outra você faz aparecer uma caravela escondida. Eu procurei cantores, atores, gente que tivesse uma capacidade de interpretação muito grande, Camões era feito pelo Marat Descartes, ele foi meu aluno na EAD. Eu estou na EAD há muitos anos, basicamente meu elenco era formado por ex-alunos da EAD, mais de oitenta por cento. Então, gente de reconhecido talento, que teve uma formação, sabiam se dedicar culturalmente ao trabalho. Minha relação com os artistas foi extremamente produtiva, criativa, da melhor qualidade. (HILLEL, 2011).

Perguntado sobre a importância dos clássicos dentro das

tendências teatrais atuais, Hillel enfatiza que os clássicos são clássicos porque mantém uma visão sobre o ser humano que as pessoas querem ver e rever. Não seriam clássicos se não guardassem segredos e verdades, filosofias e coisas que é para o homem contemporâneo. Para ele, nós não estaríamos de novo revendo Othelo, Hamlet ou Édipo e todas as temáticas que o ser humano escreveu através da literatura e/ou da literatura

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dramática, e suas reproduções em vídeo, em cd, em novas mídias: “O ser humano gosta de histórias, gosta de ver histórias, está no inconsciente coletivo, veja a Bíblia, os movimentos religiosos, veja as histórias, os exemplos.” (HILLEL, 2011).

Do ponto de vista estético, o Classicismo solicita coerências, reivindicadas sob premissas da ordem e da harmonia dentro de relações equilibradas entre razão e emoções. Mais que categoria estética é também uma época. Desse modo, os clássicos têm uma longa história permeada de condições distintas de interpretação, sofrendo assim tanto do desaparecimento da arte popular quanto do hermetismo da arte contemporânea (PAVIS, 2010, p. 274). De certa forma, sempre se está diante de paradoxos: desde que os encenadores se sentiram autorizados a emitir suas versões autorais de textos seculares, eles também manifestaram as possibilidades de se deixar atravessar pela obra, numa relação recíproca de influências que teima em não se deixar afetar por olhares redutores de ambos os lados. A tradição, ainda que suspeita e modificada por argumentos contemporâneos embasados, é reexaminada nas relações de cada artista, quer nas reflexões comentadas por eles ou nas suas realizações cênicas.

No caso da montagem de Hillel e pelos depoimentos dos artistas envolvidos ao longo da pesquisa, essa relação com a tradição é essencial e profícua. Há, como também os outros casos dessa investigação, uma entrega aos abismos dos mitos – entendidos como sentidos metafóricos de fonte ressonante para criações nos contextos artísticos e sociais do agora. Continua-se a discutir questões essenciais tal qual Grotowski quando procurava nos mitos clássicos poloneses os esquecimentos e lembranças que ficaram à margem das questões imediatistas mais superficiais na vida diária, ou melhor, repousaram no íntimo dos seres humanos, embora nos casos aqui expostos, a alma humana é travestida de outras alegorias teatrais espaciais e estéticas.

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FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO

OS LUSÍADAS, de Luís de Camões. São Paulo, Março de 2001

Adaptação: José Rubens Siqueira

Composição da Trilha Sonora e Direção Musical: Magda Pucci

Cenário: Renato Theobaldo

Figurinos: José Rubens Siqueira

Iluminação: Iacov Hillel e Caetano Vilela

Assistência de Direção: Caetano Vilela

Coreografia e Preparação Corporal: João Wlamir

Coreografia Africana: Marcelo M’Dambi

ELENCO

Marat Descartes: Camões

Daniel Faleiros: Vasco da Gama

Nilson Muniz: Baco

Alfredo Penteado: D. Afonso/Monçaide

André Ricardo Saporetti: D. Manuel

Andrea Pozzi: Inês de Castro/Ninfa

Claudete Neves: Coro/Ninfa

Daisy Carvalho: Dançarina Indiana/Coro

Edna Aguiar: Solista

Elza Gonçalves: Leanor Vaz

Fabiana Cozza: Solista

Fábio Saltini: Crispim

Fausto Franco: Silvestre

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Fernando Patau: Fernão Martins

Flávio Faustinoni: Velho do Restelo

Giballin Gilberto: Piloto Árabe

Halei Rembrant: Couto

Henrique Pessoa: Gil/Rei de Melinde

Henrique Sílva: Coro/Marinheiro

Irineu Nogueira: Adamastor

Ivan Oliveira: Paulo da Gama

Jardel Gley Cini: Tritão

Juliana Pires: Coro/Ninfa

Julio Machado: Viriato

Keila Bueno: Ninfa/Dançarina Indiana

Lara Córdula: Leda Miranda/Ninfa

Leonardo Cortez: Fernão Veloso

Luciano Alves: Contramestre

Malcon Soares: Agibi

Manuel Filho: Nicolau Coelho

Marcelo M’Dambi: Rei Africano

Marco Xavier: Badar/Coro

Norma Gabriel: Diana

Olívia Araújo: Coro/Ninfa

Patrícia Dinely: Vênus

Patrícia Franco: Tétis

Paulinho Cruz: Netuno/Pedro

Paulo Renato César: Catual

Priscila Dias: Coro/Ninfa

Renata Cavallari: Ninfa/Dançarina Indiana

Rodrigo Manzelli: Leonardo

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Rodrigo Souza: Bassim

Rogério Romera: Domício/Samorim

Sandrinho Santos: Xeque

Sílvia Altieri: Ninfa

Sílvio Giraldi: Pero de Alenquer

Theresa Dalme: Coro/Ninfa

Valmir Marcellino: Primeiro Negro/Hazan

Vinícius Atik: Nuno/Emissário Árabe

Wellington Duarte: Bramani

Willams Aris: Marinheiro

Zuzu Abu: Ninfa/Dançarina Árabe

Vídeo e Áudio – Participação especial

Raul Cortez: Marte

Juca de Oliveira: Júpiter

Carlos Alberto Riccelli: Sol

Fúlvio Stefanini: Saturno

Caco Ciocler: Mercúrio

Direção Geral do Espetáculo: Iacov Hillel

Realização: Ruth Escobar

PRODUÇÃO

Equipe de Figurinos

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Coordenadoras: Ana Luísa Lacombe e Clarisse Sampaio

Atelier 1: Chefe de Costura: Zíria Oliveira da Rosa

Costureiras: Raimunda Belo, Alice Nascimento e Florisa de Siqueira

Lopes

Atelier 2: Chefe de Costura: Judite de Lima

Costureiras: Dilma Oliveira Tibiriçá e Josefa Maria Gomes

Atelier 3: Aderecistas de Figurinos: Chris Aizmer e Jô Negrão

Equipe de Adereços

João Grembecki, Tatiana Cavaçana, Natale Cavaçana, Lúcio Artioli,

Cassiano Ricardo Reis, Tatiana de Almeida Souza e Giuliano

Martiniano Fortes

Equipe de Cenografia

Assistente de Cenografia: Roberto Roinik Cardoso

Produção: Bia Caldas

Aderecistas: Alberi Lima, Jorge Constantino e Celestino Sobral

Primeiros Aderecistas: André Vizotto e Mônica Nassif

Coordenador de Serralheria: José Gomes dos Santos

Serralheiros: Givaldo Gomes dos Santos, Renato Gomes dos Santos,

Roanison Gomes dos Santos e Jadson de Jesus Santos

Pintora de Arte: Cristina Decot

Assistente de Pintura de Arte: Evelin Cristina

Assistente de Produção: Silvio Brito

Maquinistas: Haroldo e Wagner Lopes dos Santos

Ajudantes: Francisco Mateus, Marcelo Brites e Ricardo Diniz

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Costureira: Judite de Lima

Motorista: Lira

Estagiária: Simone Bomentre

Equipe Musical

Criação de Efeitos Sonoros: Tunica Teixeira

Preparação Vocal e Musical de Atores: Vânia Pajares

Assistência de Direção Musical e Orquestração: Cíntia Zanco

Arranjos: Itamar Vidal e Ramiro Marques

Colaborações: Fernando Patau (Canção Fúnebre, Coro Despedida e

Dueto Emissário Árabe), Ramiro Marques (Corrupto Mantimento e

Jura de Mulher) e Regina Machado (Gente Forte, Ninfas e Baco)

Orquestra de Cordas:

Violinos: Luiz Britto Passos Amato, Heitor Hideo Fujinami, Nadilson

Martins Gama, Ênio Antunes, Graziela Fortunato Rodrigues e Otávio

Scoss Nicolai

Violas: Ricardo Zwietisch Pellegrino, Roberta Lizandra Marcinkowski

e Adriana Schincariol Vercellino

Violoncelos: Patrícia Mendonça Ribeiro e Raiff Dantas Barreto

Contrabaixo: Ney Vasconcelos Carvalho

Metais:

Trompete e Flughel Horn: Nahor Gomes Oliveira

Trompa: Mário Rocha

Trombone: Hugo Ksenhuk

Tuba: Gian Marco Mayer de Aquino

Madeiras:

Flauta: Ana Eliza Colomar

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Sax Soprano e Sax Alto: Ramiro Marques

Clarinete: Luis Afonso Montanha

Clarone: Itamar Vidal

Fagote: Luis Antonio Ramoska

Cordas Dedilhadas:

Bandolim, Viola de Dez Cordas e Violão: Renato Anesi

Baixolão: Fábio Atorino Jorge

Violão: Regina Machado

Demais Instrumentos:

Acordeom: Gabriel Levy

Vibrafone, Bodhrán e Derbak: Valéria Zeidan

Congas, Berimbau, Djembé e Tambores: Armando Tibério

Sitar, Santur, Tablas, Berimbau e Djembé: Marcus Santurys

Técnicos de Gravação: André Magalhães e Marco Nogueira

Mixagem: André Magalhães e Magda Pucci

Edição: Tunica Teixeira, Cintia Zanco, Magda Pucci e André

Magalhães

Montagem Final: Aline Meyer

Coordenação de Sonorização: Fernanda Brakovic

Produção Musical: Magda Pucci

Arregimentação: Cintia Zanco

Produção Executiva: Aline Perez

Equipe de Vídeo

Concepção: Roberto Elizabetsky e Ary Mifano

Direção: Tatiana Calvo

Direção de Atores: Iacov Hillel

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Assistente de Direção: Lia Hillel

Edição: Tatiana Calvo e Luiz Ricardo Pereira

Produção: Fernanda Machado

Direção de Fotografia: Bruce Douglas

Operador de Áudio: Marcos Ferreira

Elétrica: César Correa

Cenotécnica: Maurício de Jesus

Maquiagem: Marcely Tobias

Computação Gráfica: Marcos Uchoa

Acústica da Sala

Engenheiro Acústico: Schaia Akkerman

Cenotécnicos: Titão e Leonardo Bezerra

Equipe de Produção

Coordenadores de Produção: Eliana de Almeida e João Carlos Couto

Produtor Executivo: Antonio Magnoler

Assistente de Produção Executiva: José Vicente da Silva Neto

Motoristas: Marcelo Jorge Lima, Silas César e Reginaldo Zacarias da

Silva

Equipe Técnica

Diretor de Cena: Leonardo Antunes

Operadora de Som: Fernanda Brankovic

Operadora de Luz: Marina Stoll

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Maquinista Chefe: Haroldo Silva Alves

Maquinista: Evaine Todão

Contra-Regras: José Antonio Ticioneli e Everaldo Ever Meiron

Equipe Administrativa

Coordenação geral do Projeto: Eliana de Almeida

Direção Financeira: Anna Ruth dos Santos Monteiro

Assistente Financeira: Eliete Aparecida da Silva

Assessoria Financeira: Silvia Regina da Silva

Assessoria Administrativa: Ernesto Bergamini

Assessoria Contábil: Estrutura Assessoria Empresarial S/C Ltda

Assessoria Jurídica: Rodrigues Barbosa, McDowell de Fegueiredo e

Dr. Ivan D’Angelo

Auditoria: Normas Auditores Independentes S/C

Captação de Recursos: Empório das Artes Produções Artísticas S/C

Ltda

Assessoria da Presidência: Myrian Christofani

Assessoria de Imprensa: Editor Comunicação

Fotografia e Making Of: Nelson Aguilar

Produção: Integração Promoções Artísticas e Culturais Ltda e

Associação Festival Internacional de Artes Cênicas

Direção Geral: Ruth Escobar93

93 Os Lusíadas. Programa do Espetáculo. São Paulo, mar. 2001.

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5 OS LUSÍADAS, DE MÁRCIO AURÉLIO E VALDEREZ CARDOSO GOMES

Em 6 de setembro de 2001, o jornal O Estado de São

Paulo On Line publicou artigo94, sem denominar autoria, sob o

título: “Ruth Escobar entra em guerra pelos ‘Lusíadas’”. A matéria mostra as deteriorações das relações entre a produtora, o diretor Iacov Hillel e o dramaturgo José Rubens Siqueira e aponta indícios de nova produção e montagem:

A nau de Os Lusíadas está à deriva. Pelo menos desde maio, quando o musical, em cartaz na Estação das Artes, perdeu a direção e sofreu intervenção direta da produtora Ruth Escobar. São dois os motivos alegados para a tempestade que sacudiu o espetáculo de R$ 2 milhões. Ruth alega que a montagem é indigna de seu passado. Criticou a direção e o figurino, vai tirar a peça de cartaz e estrear uma nova versão da epopeia de Camões em

outubro. Na trincheira oposta se posicionam o diretor-geral, Iacov Hillel, e o adaptador e figurinista José Rubens Siqueira. Eles reivindicam pagamentos de direitos autorais de maio até agora. [...] Para Hillel, “Quando a Ruth viu a estréia, ela disse que estava ótima. Agora vai aos jornais e diz que a direção se perdeu. Não é possível aceitar críticas a

posteriori”. Siqueira também argumenta que a produtora aprovou as 308 roupas desenhadas por ele para os 52 atores, dançarinos e cantores do musical. Além disso, de acordo com o diretor e o figurinista, o clima nos bastidores, envolvendo o elenco e a equipe, “está sob um nível de pressão insuportável. Há muitos atores que gostariam de não

94 RUTH Escobar entra em guerra pelos “Lusíadas”. Estadão Online, São Paulo, 6 set. 2001. Disponível em: http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2001/not20010906p7076.htm. Acesso

em: 20 jun. 2012.

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acompanhar a nova versão, mas por razões financeiras vão continuar”, afirma Siqueira. Segundo a advogada Luciana Rangel, especialista em direitos autorais, a falta de contrato legal entre produtores e equipe é muito comum. “É preciso reunir elementos que provem que a temporada acordada era mesmo de apenas dois meses. A Lei de Direitos Autorais costuma colocar muito mais em risco a parte que contrata”, diz. (OESP, 2001).

Duas questões para além das montagens deixam rastros

na matéria: a primeira se refere aos baixos rendimentos de grande maioria dos atores brasileiros, considerados em sua generalidade. A segunda aponta para a ausência de contratos de encenadores, adaptadores e profissionais da cena em grande parte das produções nacionais. Em novembro do mesmo ano, é publicada entrevista de Ruth Escobar, pelo mesmo jornal O Estado de São

Paulo (2001)95. A produtora procura dar ênfase à nova versão do

poema, mas o tom polêmico dos desacordos ainda quentes no período com a produção anterior de Hillel e Siqueira continua a persistir nas entrelinhas.

As críticas dividem-se entre o assunto e as propostas artísticas do novo espetáculo de Márcio Aurélio. As informações muito diferenciadas a respeito das verbas de produção destinadas e às questões artísticas são frequentes nas matérias divulgadas de diferentes órgãos de imprensa. A matéria citada acima anuncia: “Segundo dados, aleatoriamente divulgados pela empresária, foram investidos mais de R$ 750 mil na segunda leva, cerca de R$ 1 milhão a menos do que na montagem do primeiro semestre.” A respeito do elenco, os atores são “divididos em dois núcleos: os aventureiros e os deuses”, em evidentes simplificações que reduzem a obra anunciada. Escobar defende o novo desafio:

“Essa peça vai abalar as estruturas do teatro português”, referindo-se à temporada

95 “OS LUSÍADAS” estreia pela segunda vez. Estadão Online, São Paulo, 6 nov. 2001. Disponível em: http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2001/not20011106p7155.htm. Acesso

em: 20 jun. 2012.

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portuguesa de Os Lusíadas, que tem início em

17 de janeiro de 2002. [...] Na temporada inicial, 57 mil estudantes dos ensinos fundamental e médio, das redes pública e particular, assistiram ao espetáculo, devido a um acordo com a Secretaria Estadual de Educação. O arranjo será mantido nessa nova etapa. “Dependendo da demanda, podemos inclusive abdicar da apresentação aos domingos à noite para poder exibir a peça também nas terças”, ressaltou Ruth, destacando que as quartas e quintas-feiras já foram reservadas para os estudantes. [...] A empresária preferiu não revelar qual o público total que prestigiou o espetáculo até agora. Os figurinos e cenários da montagem de Hillel, inclusive a Caravela símbolo, estão com Ruth, que pensa em emprestar as roupas para grupos amadores e doar a Caravela para o Sesc. As negociações para que a embarcação seja exposta na unidade Interlagos estão adiantadas. (OESP, 2001).

Para a nova montagem, com direção de Márcio Aurélio e

adaptação de Valderez Cardoso Gomes, outra vez ocorre uma transição de parte do elenco do espetáculo anterior e um curto tempo de ensaios para a empreitada. Aurélio, em entrevista (2011), esclarece que obteve total liberdade de seleção do elenco para o novo espetáculo por parte de Ruth Escobar. Com a possibilidade de escolhas, o encenador encontrou-se com o elenco anterior e expôs o trabalho a ser feito, uma nova montagem, com outra dramaturgia e que buscava soluções e objetivos distintos daquela que estava em cartaz. Para aqueles que tivessem interesse em participar da nova proposta, as portas estavam abertas, com a clara ressalva de não trazer nada de espetáculos anteriores para esse, “porque a organização da narrativa da peça se dava de outra forma, e para isso eu precisava de pessoas que estivessem de cabeças abertas, para poder em um mês e meio montar um espetáculo desse porte.” (AURÉLIO, 2011).

Márcio Aurélio, prestigiado diretor, cenógrafo e figurinista, havia acabado de realizar, na Alemanha, Tristão e Isolda,

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protagonizado pelo bailarino brasileiro Ismael Ivo. Os atores, segundo o encenador, tinham atenção e dedicação impressionantes. E ele tinha Os Lusíadas como material de formação escolar, sobre o qual se estudava análise sintática. O trabalho com os atores, em relação ao texto, foi o de buscar em cada frase o sujeito, o verbo, o predicado, porque os atores falavam no afã de ter que decorar em um mês e meio um texto tão complexo. Fazê-los articular um texto como esse em pouco tempo, somente com muita dificuldade e trabalho.

Para o trabalho dramatúrgico do épico foi convidada Valderez Cardoso Gomes, dramaturga e poeta, também de longa e respeitada carreira no teatro, tendo iniciado o CPT com Antunes Filho e assinado trabalhos ao lado de Ulisses Cruz. Em 2011, Aurélio e Gomes voltam a se encontrar com A ilusão cômica, de Pierre Corneille. Valderez assina a tradução e adaptação e Aurélio dirige a Companhia Razões Inversas, da qual é diretor artístico.

A dramaturgia d’Os Lusíadas de Valderez Cardoso Gomes enfatiza o herói coletivo, centrado no povo português, e propõe inversões da narrativa camoniana. Convidada pelo encenador e pela produtora para adaptar o poema de Camões, ela explica, em entrevista concedida em 2011, que três condições ou premissas de Ruth Escobar nortearam a concepção dramatúrgica: Era preciso, primeiramente, que a adaptação tornasse a história clara, fácil de ser compreendida pelo público estudantil, destinada às escolas do Estado de São Paulo. Nas outras adaptações, segundo a produtora, houve maior valoração do aspecto épico, laudatório. A segunda condição se referia ao espaço. O espetáculo devia ser realizado em palco italiano, porque se destinava futuramente a uma viagem a Portugal, diferentemente das outras montagens; e como terceira e última condição, que a adaptação tivesse conflitos inerentes a uma peça de teatro. Para a dramaturga, o texto era primordial e a poesia foi conservada: os poemas, a Inês de Castro, a História de Portugal:

Canta o poeta. E segue cantando, em versos, para um povo anestesiado ou indiferente. [...] Mas seu cantado e encantado herói aqui é plural. O povo é quem se faz presente, através desses marinheiros “argonautas” que traduzem toda a idealização de sua gente nessa apaixonante aventura. [...] Um mapa vai

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sendo traçado na obra, um mapa arquetípico repleto de símbolos que apontam não só a viagem física, mas a viagem na história dos feitos heroicos e fabulosos. Por que partir? Porque impossível é ficar. Assim navegam seguindo seu próprio Sol. É essa, quem sabe, a chave simbólica do poema, esse desejo permanente do ser humano de se pôr a caminho. (GOMES, 2001, p. 17).

Gomes afirma não ser uma dramaturga de gabinete que

trabalha isoladamente. O trabalho é realizado em conjunto com o encenador. A troca de pontos de vista, as dúvidas e a composição da obra no coletivo desse modo transparece:

Eu faço a adaptação e quero ver o ponto de vista do diretor, porque aí a gente chega a um consenso. Antes de começar os ensaios, quando eu fui ao apartamento do Márcio Aurélio, falei: vamos começar pelo mapa. Comecei a mostrar as várias regiões, a viagem toda, aí traçamos um mapa. De onde partiu, o contorno, a África, até chegar às Índias. Marcava lugar por lugar onde o navio tinha chegado. Fizemos todo o mapa, aí discutia com o Márcio o que era melhor. Por exemplo, eu falava para ele: os deuses aparecem quando eles estão no sul da África, na hora que aparecem os conflitos. Do começo do poema até ali, não há Concílio dos Deuses, não há nada. Essa era a proposta. Pela lógica da narração e da adaptação, os deuses apareciam nesse momento do conflito. Aí o Márcio falou: mas como diretor, eu acharia melhor se os deuses aparecessem desde o princípio, porque para mim é melhor já apresentar os deuses, uma apresentação dos personagens. Então como é que você vai fazer esse tempo todo, desde a partida até o sul? Ele disse: isso eu resolvo. Falei: certo. Então vamos apresentar os personagens da história, a partida de Lisboa, depois tinha o Velho do Restelo, aí começava a viagem. Em seguida vinham os deuses e depois

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continuava a viagem. Também no início eu mudei uma pequena coisa. Eu coloquei a Ilha dos Amores no começo e no final, a ideia da ilha inspirou essa noite que seria uma despedida. Então escolhi um trecho de um poema do Camões que não está n’ Os Lusíadas. Está na lírica dele. Foi boa essa conversa antes, para saber onde colocar os vários acontecimentos. (GOMES, 2011).

Para Gomes, a sua adaptação precisava buscar outro viés

de originalidade, dadas as outras experiências realizadas. Ela considera importante a lembrança das aulas na Faculdade de Letras, nas quais muitas leituras do poema em voz alta pelo professor de Gramática foram determinantes. As nuances sublinhadas surtiam um efeito especial em certas passagens e isso não foi esquecido. Além disso, ele aconselhava que o herói principal d’Os Lusíadas era o povo português e não Vasco da Gama, informação preponderante para nortear o trabalho de adaptação do poema. O povo, como símbolo de tudo, é colocado através dos marinheiros. Foi uma forma encontrada para a diferenciação, que segundo Gomes colocaram Vasco da Gama como herói. Ela busca um tom mais narrativo, privilegiando uma adaptação fabulária, em detrimento do tom épico e majestoso da epopeia. A narração geral que permeia toda a história da montagem era feita pelo Escrivão, mas também foi deslocada para Vasco da Gama e os marujos. Ao final, o escrivão assume o papel do poeta:

O narrador geral terminava fazendo o próprio Camões, com as palavras do Camões. Estava desiludido, já não queria mais empunhar a lira porque o povo era muito ingrato, o governo, o reinado, era tudo muito ingrato, como se assumisse a personalidade do Camões. Porque Camões faz isso também, no decorrer da epopeia. Uma hora ele está falando dos marinheiros e de repente entra na epopeia e se torna marinheiro, cada hora tem um papel. No final, ele assume ser ele próprio. (GOMES, 2011).

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A montagem substituiu a enorme caravela cenográfica de Renato Theobaldo, utilizada no espetáculo anterior, sendo agora um palco sobre molas, em cenografia de Daniela Thomas e André Cortez. Magda Pucci continua na direção musical do espetáculo. O elenco agora é de 42 atores. A estreia em São Paulo ocorreu no dia 10 de novembro de 2001. A cenografia lembra o interior de um navio, com ausência total de velas ou qualquer elemento cenográfico que remeta aos séculos passados. É quase um quadro, uma moldura que se subdivide em dois planos. No plano inferior, três espaços iguais divididos por duas colunas treliçadas de ferro; e no plano superior um espaço sem divisões. Escadas nos fundos e nas laterais, de diferentes comprimentos, para favorecer as movimentações dos atores entre os dois planos estabelecidos no palco. Para Aurélio, era “uma caixa de metal, com piso completamente travado, que no momento da tempestade balançava. É o único momento onde a coisa se dava num plano mais mimético. Estavam na tempestade, refazendo a tempestade.” (AURÉLIO, 2011).

O mesmo despudor das referências historiográficas e das convenções de representação teatral se refere à geografia do espetáculo. Em lugar da caravela, o palco se apresenta nu, de madeira, com estruturas de ferro. Para Daniela Thomas, a proposta nunca pareceu procurar o elemento histórico como foco para a criação do cenário e figurinos. A direção tomada foi pelo viés semântico. No lugar do viajante português dos séculos passados, “o arquétipo do viajante e as imagens que ele nos suscita: argonauta, astronauta, aviador, marinheiro, até mesmo o mensageiro de moto, de patins ou bicicleta, cruzando as ruas, com um misto de coragem e imprudência que é a própria hybris.” (THOMAS, 2001, p. 10).

As cumplicidades buscadas na relação entre navio e palco estão na semelhança entre as suas maquinarias, onde um se refere a outro: varas, velas, cordas, roldanas, madeira do piso, carcaça de ferro, urdimento e casa de máquinas. O barulho da madeira que oscila e range ao reagir à manifestação dos elementos da natureza que balançam as ondas no palco procura evocar a fragilidade do ser minúsculo no meio do oceano:

O que se pretende com essa aproximação de palco e navio, de espetáculo e viagem, é reforçar o caráter transcendental da

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experiência teatral: o capitão/diretor e seus marinheiros/atores nos levam numa experiência extracorpórea, a verdadeira “viagem”, na sua conotação mais próxima de nós: suspensão da realidade, exaltação do pensamento, deleite, prazer. E foi com esse prazer que criamos juntos, eu, André Cortez, autor do palco-nau, e Marcos Nasci, inventor dos figurinos transtemporais e transnacionais, a geografia visual do espetáculo. Trabalhar com um diretor que tem consciência do poder de evocação do que se passa entre as aspas da boca de cena é outro grande privilégio. Eu acredito na força simbólica das imagens no palco, no poder evocativo de cada detalhe do que está sob a luz. E mesmo do que, propositalmente, é deixado no escuro. Especialmente quando essas imagens estão emolduradas pela boca de cena de um palco italiano, para onde se concentra a atenção de algumas centenas de pessoas que se dispõem a olhar numa mesma direção por um par de horas. Tudo significa. (THOMAS, 2001, p. 10).

As arquibancadas, anteriormente dispostas em frente uma

à outra perfazendo um corredor pela sala da Estação das Artes, foram deslocadas e agora estão frontalmente dispostas para um espetáculo à italiana. A significação mítica foi o que permeou a montagem, segundo Aurélio. Para ele, não era possível deixar de ser um processo narrativo, porém havia uma certa distração na representação que o fez buscar uma proposta não mimética, que servia para considerar diferentes aspectos do espetáculo. A maneira como Valderez Gomes coloca o encontro dos deuses e a desmistificação destes é lembrada pelo encenador.

A dramaturgia, assim, não se pautava pela relação familiar dos deuses e fazia cada um defender o seu princípio mítico. Interessava para Aurélio constatar as transformações culturais ocorridas no planeta e a obra de Camões. Em diferentes ciclos e nas relações que se estabelecem, há o domínio do Oriente sobre o Ocidente, posteriormente uma inversão do Ocidente, a relação do Oriente com o Oriente e também o Ocidente com o Ocidente. Os diferentes interesses permeados de estratégias e variações

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bélicas entre as nações é assunto n’Os Lusíadas. Entretanto, Camões revela também as contradições fundamentais da natureza humana nesse registro poético de grandes feitos.

O trabalho coletivo para um objetivo comum é evidenciado novamente e o processo lembra a dificuldade de se descrever essas abordagens, no dizer de Pavis (2010, p. 130), “exatamente porque o encenador renuncia a um controle absoluto da escolha de materiais.” Aurélio realça a recriação dramatúrgica de Gomes, o trabalho “altamente conceitual” de Daniela Thomas e equipe, e a “base sonora plugada nas mais diferentes sintonias, latitudes e longitudes”, de Magda Pucci, no sentido de atender à concepção geral do espetáculo:

Para esta encenação pareceu-me importante ressaltar o embate e a transformação do conceito de dependência e independência do homem em relação direta com os deuses e sua significação mítica. Nesse ponto reside a transformação do conceito filosófico do homem histórico retratado pelo poeta português. Não me interessava o aspecto historicista, mas sim o conceitual, pois nele está a base da maquinaria do teatro, que tem sua inspiração na maquinaria naval: os argonautas, que são os marinheiros, que são os astronautas, que são os internautas. O porto é sempre o espaço do prazer da volta e da despedida. Essa é a máquina/espaço que o homem, como planeta do imaginário, povoa para contar nossa história. (AURÉLIO, 2001, p. 4).

Magda Pucci, no que chama de confrontos e fusões

musicais na composição da trilha d’ Os Lusíadas, explica que a música eletrônica, entre a ancestralidade e a tecnologia, se estabelece principalmente como linguagem, mais do que apenas recursos técnicos, criando assim novos padrões de percepção musical. Para ela, Os Lusíadas do novo milênio representa e explora musicalmente o mundo dos sons eletrônicos e suas constantes desconstruções sonoras, ao utlilizar “samplers e grooves étnicos que formam as bases eletrônicas que traduzem o movimento pulsante das novas gerações. Processa as vozes dos

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atores em cena, cria ambientes sonoros ruidosos e viaja nas referências musicais.” (PUCCI, 2001, p. 12-13).

No Programa do Espetáculo (2001) consta o roteiro do poema original, com os dez cantos resumidos, além de informações sobre a sua gramática estrutural, em sinopse adaptada de texto de Celso Pedro Luft. Consta, também, informações a respeito de Portugal, o contexto histórico da época das Grandes Navegações, a viagem da armada capitaneada por Vasco da Gama e breve biografia do navegador. Tais informações deixam transparecer o cunho didático e um preferencial público-alvo: jovens em preparação para o vestibular. Um roteiro de treze cenas era entregue juntamente com o programa da peça ao espectador.

As cenas são assim subdivididas: 1. Partida da Praia; 2. Primeiro Concílio dos Deuses; 3. Fogo de Santelmo, Tromba Marítima e Peste a Bordo; 4. Gigante Adamastor; 5. Chegada a Moçambique; 6. Chegada a Mombaça e Segundo Concílio dos Deuses; 7. Chegada a Melinde; 8. Partida para a Índia; 9. Os Doze da Inglaterra, Tempestade e Terceiro Concílio dos deuses; 10. Na Índia; 11. Ilha dos Amores; 12. Máquina do Mundo; 13. Partida. Acompanham as cenas breves sinopses dos temas tratados. Essas cenas são agrupadas em cinco grandes movimentos neste estudo.

AMORES E DESPEDIDAS Os três sinais característicos que anunciam o início do

espetáculo são abolidos. O público ainda se acomoda em seus lugares, acolhido pela música instrumental e a cena que já acontecem. Aparece a Ilha dos Amores, mas despida de seus aspectos míticos. Ela se apresenta aqui como nos encontros amorosos de casais por toda parte, em roupas íntimas e com gestos lentos e suaves, criação de Aurélio inspirada nas rubricas de Fala comigo doce como a chuva, de Tennessee Williams. No cenário branco, há uma voz feminina em off, que declama o desejo, o amor e os prazeres, excerto da obra lírica de Camões proposto na adaptação, a qual também exclui do início a proposição e a dedicatória do poema original. Estas vozes, engrandecidas pelo calor de cantar feitos guerreiros e dedicados à nobreza, aqui cedem lugar à voz dos desejos humanos de

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contato: “Se em meu proveito faz qualquer partido, só na vista de uns olhos tão serenos, que quero eu mais ganhar que ser perdido? Desejo é só que queima e não consome.” (GOMES, 2001, p. 4). As personagens aos poucos saem do palco.

Os sonetos antecedem a partida dos marinheiros, onde se subentende ter sido uma noite de despedidas. A cena estabelece um vínculo dos nautas que se despedem a um cotidiano bastante próximo do espectador. Traz os afetos da vida a dois, a transformação dos homens diante das circunstâncias mundanas e a dor das despedidas, dor esta que não obedece a períodos históricos. Para Márcio Aurélio interessava começar o espetáculo

Com uma espécie de amores perdidos, amores achados, novos encontros, novas possibilidades, o sentido do amor. A referência do prólogo, a rubrica do Tennessee. Quer dizer, rigorosamente seguindo o enunciado de um outro texto que eu encaixei nesse, porque me interessava que tivesse uma sensualidade no espetáculo desde o princípio. Os povos se amam, mas ao mesmo tempo que se está amando aqui está se despedindo ali, e indo para fora de cena e as mulheres sempre ficando como Penélope costurando e esperando Ulisses. (AURÉLIO, 2011).

A cena dá lugar ao Porto. Entra um batalhão vestido de

macacão, capacete, luva, bota. Os homens dependentes da ternura das mulheres são transformados agora em homens prontos para a luta. Um escrivão presente na história inicia a narração pelas falas do rei na Partida das Naus. A mãe e a esposa se destacam do grupo e gritam a partida e o abandono dos seus, lamentações pela ruptura dos laços afetivos, enquanto os nautas seguem sem manifestações, todos de branco, ao comando de Vasco, corroborando as palavras do escrivão. Antes da partida, entra em cena o Velho do Restelo em contundente discurso opositor às navegações e direcionado à plateia como se esta estivesse a partir, na crítica à glória de mandar e à vã cobiça. Lembra as mortes e os perigos em nome da fama e da vaidade, que impele a humanidade a aventurar a mísera sorte. O velho sai.

O escrivão, com uma miniatura de caravela nas mãos,

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atravessa o palco em movimentos ondulatórios representando as ondas do mar, enquanto inicia a narração da viagem no largo oceano. Em relação à poesia original, esses quadros trazem excertos do Canto Quatro, além da citação do próprio Camões na sua obra lírica e a cena inicial inspirada em rubricas teatrais de outro autor. Também não descreve características exteriores físicas – acertadamente porque resultaria redundante na cena – da personagem do Velho do Restelo.

PRIMEIRO CONCÍLIO DOS DEUSES À CHEGADA A

MOÇAMBIQUE Os deuses entram em cena, todos de negro e em círculo,

para decidirem “Sobre o destino da humana gente e as coisas futuras do Oriente.” (GOMES, 2001, p. 7). O discurso de Júpiter é enérgico e impostado, como a negar formalidades majestosas e diplomáticas, na intenção tendenciosa de dar apoio aos portugueses para que cheguem à nova terra desejada e por merecimento. Todos os deuses usam uma espécie de cones negros na cabeça, de formas diferenciadas a cada um deles. A adaptação exclui toda a apresentação do Olimpo majestoso, com seus assentos de estrelas e ouro, na montagem sem adornos. Júpiter é contestado por Baco, que teme o esquecimento de seus feitos no Oriente, e apoiado por Vênus, ambos assumindo na montagem o discurso em primeira pessoa: “meus feitos” e “eu já

sou afeiçoada à lusitana gente” (GOMES, 2001, p. 8)96, respectivamente, em lugar da terceira pessoa do narrador no original. Baco volta à carga e solicita medidas para conter a insana fantasia dos nautas. Marte também se pronuncia e dá apoio aos navegadores e Vênus reforça a Júpiter que voltar atrás na determinação tomada é fraqueza.

Essa solicitação de Vênus, que na poesia original pertence à Marte, parece exercer na encenação influência maior na decisão de Júpiter, pela afeição redobrada deste à filha. Júpiter encerra o encontro e solicita a Mercúrio que mostre a terra aos portugueses. Antes da conclusão do Concílio, o escrivão volta a circular pelo palco com a caravela, narrando a sequência da partida das naus e desejando “Boa Viagem”, como o costume. Com os nautas

96 Grifos nossos.

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navegando, ecoa a saudação ao desconhecido em meio aos resquícios da dura fala anterior do Velho do Restelo. Mercúrio retira a caravela das mãos do escrivão, aumenta o ritmo de seus movimentos e a viagem segue agora em passos largos. A iluminação pontua o amanhecer e a viagem prossegue. Os marinheiros movimentam seus corpos, que oscilam sem sair do lugar.

A narração anuncia, agora pelos marinheiros espalhados nos dois planos do cenário, a passagem por lugares como Mauritânia, Ilha da Madeira, Cabo Verde, Ilhas Canárias e os prenúncios das “perigosas cousas do mar, que os homens não entendem” (GOMES, 2001, p. 9). A iluminação branca na embarcação é ampliada para um fundo totalmente azul. Os atores, posicionados nas escadas, parecem completamente soltos no espaço em bela imagem. Outro marinheiro narra os episódios do Fogo de Santelmo e da Tromba Marítima, aproveitados integralmente na encenação. A narrativa cessa quando interrompidos por Vasco da Gama, o qual anuncia a Lua e a

armada cortando o mar.97 O piloto anuncia terra à vista. A iluminação prenuncia a tarde e um grupo de personagens

avistam a terra dos bons sinais, a Ilha de Santa Helena. Ao grito do marinheiro, a cena congela. Entra Baco, único personagem em movimento na cena, que derruba marinheiros como bonecos a um comando ao se aproximar e executar um gesto seco. Os movimentos são sublinhados por efeitos sonoros simultâneos de sinos aos simbólicos golpes. Baco sai e os marinheiros continuam o movimento/viagem, lamentando as perdas do encontro. A cena alterna contrastes simbólicos de vida e de morte: A grande alegria de encontrar novas terras e a amarga descoberta do escorbuto, doença descrita pelos marinheiros sobreviventes. A nova desventura apressa a retomada da viagem, sugerida pela “dramaturgia da luz” – termos bastante utilizados por Pavis sobre esse aspecto que, segundo o autor, participa da construção do universos de sentidos nas obras (PAVIS, 2010, p. 215) –, enquanto se despedem dos companheiros mortos. A luz sugere efeitos de anoitecer, pouco a pouco, assim operando mudanças

97 Nessa passagem, a palavra “Lua” é assumida pela adaptação, que simplifica os termos para melhor compreensão dos espectadores, de acordo com as notas explicativas da poesia original. A “Lua” substitui, assim, “o planeta que no céu primeiro

habita.” (CAMÕES, 1980, p. 195).

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de atmosfera e de passagem de tempo. É noite quando entra em cena o gigante Adamastor. Seu

prenúncio é feito pelo escrivão, que após anunciar também se deita no plano inferior, onde está Vasco. Os marinheiros estão adormecidos pelo cansaço dos trabalhos e só o capitão é que vê e ouve Adamastor. A cena toda fica entre os dois personagens, como se tudo fosse uma alucinação do capitão. Adamastor entra em cena no plano superior, de sobretudo de couro preto e luvas, a lembrar figurinos de Matrix. Anuncia os perigos que ele reserva aos navegantes. É o oculto Cabo das Tormentas, que em outros tempos foi capitão do mar, transformado em rocha pelo amor da princesa das águas, Tétis. Vasco anuncia sua preocupação com as profecias de Adamastor, enquanto este está envolto em lirismos pela perda do amor da ninfa. A adaptação prioriza e amplia, pela repetição, a sugestão onírica da cena ao seu final. Adamastor fala enquanto desce a escada lateral para sair de cena: “Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada? Ou fosse nuvem, sonho ou nada? Ou fosse sonho ou nada?” (GOMES, 2001, p. 12).

O sol começa a surgir, os marinheiros acordam. A noite foi embora, levando consigo o pesadelo de Vasco da Gama, o qual conclama a tripulação que celebre o dia e continue a viagem. Chegam a Moçambique. Um nativo entoa uma canção na língua e melodia locais enquanto caminha. Os marinheiros se aproximam do lugar. Um mensageiro sobe na embarcação. Vasco e o mouro trocam perguntas e informações. O mouro responde que a ilha é Moçambique, pede que conheçam o seu governador e garante que os navegantes terão piloto para prosseguir viagem. O escrivão narra a volta dos batéis com toda a companhia e os preparativos da tripulação para o encontro com o governador e comitiva. Eles chegam à nau e são recebidos com festas e alegrias.

O governador necessita saber de Vasco dos livros da sua lei e das fortes armas. Em resposta, Vasco consente e esclarece que veja as armas sempre como amigo. A exibição de uma arma utilizada em luta corporal é feita por um marinheiro. Este entra em cena fazendo malabarismos com três facões no centro do palco, simbolizando os poderes bélicos, observado pelos nativos em uma das laterais do palco e pelos marinheiros na outra. Esta cena de demonstração de armas é percebida pela dramaturga e destacada do espetáculo de Hillel. No caso da montagem anterior, a cena fazia parte da mostra de várias armas simultaneamente, o que

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diminuía o seu impacto, segundo Gomes, mas que era passível de ser aproveitada, já que o ator que fazia aquele trabalho ficou no elenco da nova montagem. Retirada e isolada daquele contexto, a cena ganha destaque nessa encenação.

Na sequência da cena, Vasco pede um piloto experiente para seguirem viagem. O governador atende o pedido. Baco, que observa do etéreo – o plano superior do palco – salta para o outro plano. Junta-se aos nativos, homens e mulheres seminus, e comunica as más intenções dos portugueses, que trazem mortes e desgraças. Convence o governador para que encontre um piloto que leve os navegantes cristãos sanguinolentos à destruição e morte em Mombaça. Os episódios abarcam aspectos dos cantos Primeiro e Quinto da poesia original.

MOMBAÇA À PARTIDA PARA A ÍNDIA Anunciada pelo escrivão, a ilha de Mombaça tem ares de

festa e movimento de barcos para as boas vindas. Vasco acredita ter encontrado paz e abrigo. O piloto chama o capitão e aponta para a terra, sempre em direção à plateia e a solicitar a esta que exercite sua imaginação. Nas laterais do palco, nativos se movimentam e Baco está no meio deles. O escrivão antecipa os enganos, sai para juntar-se aos marinheiros e Vasco no plano inferior. Os deuses entram em cena no outro plano para novo Concílio. O rei que visita a nau oferece especiarias e pedras preciosas, parte do plano para traí-los posteriormente, em narração de Marte. Vênus pede a Júpiter que proteja os portugueses, chama a atenção do pai e fala aos nautas direcionando o olhar para o plano inferior e à plateia sobre os perigos. Marte descreve a artimanha de Baco. Vênus convoca as ninfas para impedir a descida dos navegantes à terra. Mercúrio é convocado por Júpiter para levar o celeste aviso.

Vasco e Baco estão agora no centro do palco, em cena precisa e simbólica: em movimentos circulatórios, Baco coloca nas mãos de Vasco uma taça, para que este vá brindar com os marinheiros a chegada a um porto amigo. O brinde festivo é feito. A cena congela e Mercúrio entra. Retira a taça de Vasco e ordena que fujam, ao som de efeitos sonoros de filmes sobre super-heróis. Sai de cena e voltam os movimentos dos marinheiros. Vasco ordena velas ao vento e enaltece o milagre. A iluminação anuncia

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o amanhecer e a chegada em Melinde. Do plano superior, o escrivão anuncia o reino que é precedido de um tempo alegre de sol, prenúncio de boas vindas. A narração se desloca aos marinheiros. Soam tambores e pandeiros, ânimos alegres e muitas cores cercam a chegada do rei de Melinde e seu séquito, em calorosa recepção. Vasco prepara presentes ao rei. A cena seguinte é o encontro dos dois líderes. Vasco se apresenta e seu discurso espera ajuda certa do monarca. A fala, no original, é do mensageiro/embaixador, que desce à terra antes da tripulação, faz contato com a nobreza do local e a convida a visitar as naus. A encenação vai diretamente à síntese, o encontro principal.

O rei de Melinde, com pequena comitiva a bordo, tranquiliza o capitão e pede que este esqueça todas as más suspeitas. Aqui terá acolhimento, piloto, munições e mantimentos. Vasco agradece e o rei quer saber das histórias do visitante. O capitão e o Escrivão contam a história dos reis portugueses. Antes, invocam a inspiração da Musa para que o rei de Melinde seja comovido com a narrativa a ser iniciada. O texto, no original, pertence ao narrador/poeta. A proposição e a invocação iniciais aparecem nesse momento na encenação. Vasco canta a Terra; e o Escrivão, a guerra. O episódio da Batalha de Ourique, Afonso Henriques e a aparição de Cristo a este é o maior destaque da cena. Para isso, utilizam como recurso os próprios marinheiros, que representam figuras e pontuam passagens da narrativa.

O Escrivão rapidamente passa pelas dinastias, reis e sucessões – longamente exploradas no poema original e sintetizadas acertadamente em favor do ritmo da linguagem cênica – e chega ao episódio de Inês de Castro, também destacado. A cena é representada quase como um teatro de marionetes ou de circo-teatro. Os versos são mantidos pelos narradores, enquanto a personagem de Inês aparece do fundo do palco. Uma figura alongada e alta, uma atriz no ombro de outra pessoa em longo vestido até o chão. Faz sua súplica ao rei, pontua-se a hesitação deste e a consequente morte da personagem pelos carrascos. Inês de Castro cai do alto e de costas e desaparece, escondida nos braços de um conjunto de marinheiros em círculo. Quando reaparece, já está inerte em um trono. Morta, é coroada, e toda a corte, representada pelos marinheiros em fila, vai beijar sua mão. À vingança de D. Pedro segue a narração do Escrivão até o tempo presente, de D. Manuel,

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o qual solicita a Vasco da Gama que empreenda a viagem que está sendo contada ao rei de Melinde. A cena finda com o rei cedendo experiente piloto aos nautas, que se despedem do lugar aos gritos de Boa viagem.

Na sequência, a música cantada pelos atores sem nenhum instrumento agora e a imagem iluminada de fundo azul pontuam a noite e os mares do Oriente, os nautas navegando. Um som ecoa e a voz de Baco encerra a cantoria, a discursar o mal que toca a todos em novo Concílio dos deuses. A imagem congela. O escrivão retoma a narração, indica Netuno e Baco e a simultaneidade da situação: os nautas na superfície dos mares da Índia e os deuses no fundo. Baco é incisivo na acusação aos deuses e seus descuidos. A cena adaptada propõe modificação do termo “deuses” no original para o singular “deus”, e assim toda a atenção é diretamente ligada a Netuno. Ele, tocado e furioso, ordena a Éolo, concordando com Baco: que o deus dos ventos solte suas fúrias contra os navegantes.

Éolo entra em cena em saltos mortais. Assume a palavra a todos: “Ouvi, ó deuses, o divino recado! Estou mandando os furiosos ventos para aplacar a ira com que, súbito, alterado foi o coração dos deuses.” (GOMES, 2001, p. 26). Éolo sai de cena novamente aos saltos. A criação da personagem do deus dos ventos, Éolo, e o trabalho dos atores para realizá-lo se tornou interessante pela maneira como o fato foi se desdobrando nos ensaios:

Eu achei um verso do Camões. Por brincadeira, na adaptação, eu coloquei o Éolo falando a tal frase. Como se ele fosse personagem. Bom, isso aí era só por brincadeira, para guardar a frase. Quando chegou na hora, falei: Márcio Aurélio, achei essa frase aqui tão bonita e coloquei no Éolo, não é personagem nenhum, não vai entrar aqui, mas eu gostei. E ele disse: agora eu gostei. Pode deixar o Éolo como personagem. Chamou os atores e falou: um de vocês vai ganhar esse personagem, só que cada um vai passar no palco e vai falar essa frase. Vamos ver quem fala melhor. Passava ator e passava ator. Tinha um deles com um grande preparo físico e ele entrou dando saltos e disse a frase:

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pronto, estava o Éolo ali. Ele entrava com uma capa preta de figurino, fazia isso e os alunos que assistiam adoravam o Éolo. Mas só que estava com a voz muito fraquinha. Então Márcio Aurélio falou assim: eu vou trocar, porque não posso dar o Éolo – é um deus que vai chamar a tempestade – aí chamou o ator: Olha, ou você muda essa voz, ou você perde o Éolo. No dia seguinte, ele fez uma voz incrível, que ninguém acreditava. Ficou com o Éolo, ganhou o papel. (GOMES, 2011).

O foco de luz volta aos marinheiros. A nau, segundo a

narração que continua, segue em mar tranquilo, também sublinhado pelos efeitos sonoros. Os marinheiros pedem contos, casos de valentia, amores, heróis de cavalaria, para passar o tempo e assim o escrivão inicia o episódio d’Os Doze de Inglaterra. Em relação à poesia original, estão representados aqui os cantos Primeiro ao Quarto e ainda o Sexto.

OS DOZE DE INGLATERRA À ESTADA NA ÍNDIA A fala do marinheiro Veloso, no original, é executada pelo

escrivão na encenação, conhecedor de histórias e de outras terras, segundo o próprio. Os marinheiros conversam e Vasco fica no piso superior, concentrado no horizonte, até que o narrador inicia o conto dos cavaleiros portugueses que são enviados à Inglaterra, graças a cartas com pedidos de damas inglesas em perigo. O episódio é longo e não é tratado nas duas encenações anteriores. Gomes argumenta que foi mantido nesta montagem pelas circunstâncias lembradas de experiências anteriores com o poema original e a consequente aceitação de Aurélio para a sua inclusão. A ideia de colocar o episódio veio de aulas que antigamente ministrava no Colegial. Em uma ocasião, Os Lusíadas foram divididos em equipes de alunos, cada qual com um dos cantos do poema, para depois contarem a história:

Quando chegou na história dos cavaleiros, começaram a rir. Eu nunca havia entendido como se poderia fazer graça n’ Os Lusíadas. Achava que podia ter tragédias, dramas, fábulas, menos o aspecto cômico. Os

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portugueses defendendo damas inglesas. E um deles se atrasa, é um absurdo, um exagero. Falei com Márcio Aurélio sobre o problema: eu queria colocar a história dos doze cavaleiros, ninguém coloca porque realmente é muito complicada e longa. Ele disse: deixa eu experimentar. Daí teve várias experiências, mas ele nunca estava contente. Só ficou quando o Joca resolveu contar, com dramatização e brincadeiras. (GOMES, 2011).

Envolvidos na brincadeira, os nautas deixam de perceber os

ventos que tomam conta da cena. Quando estes aumentam a sua violência, o chão do palco se move, artifício cenográfico que simboliza as ondas revoltas, pouco antes dos navegantes chegarem ao seu destino. O barco/palco, nesse momento, cede lugar também aos diferentes recursos cênicos: Os efeitos de iluminação e sonoros, a movimentação dos marinheiros em desequilíbrio, os gritos de desespero. Um palco em penumbra é iluminado por um só refletor que dança pendurado por um fio e espalha aleatoriamente luz e sombra na cena. É a única vez que o mimetismo transparece na encenação. A tempestade não cessa até que Vasco da Gama brada a Deus e à deusa, Divina Guarda, para que intervenham em socorro, e seu pedido é ouvido. Pela deusa, ao menos... Os ventos são amenizados por súplicas de Vênus a Júpiter, ambos no meio do caos. Os marinheiros no chão, como mortos ou esgotados, Vasco no plano superior em pé, e assim se anuncia a nova terra.

A claridade do efeito de iluminação brinda e comemora a chegada dos portugueses ao seu destino. Sons instrumentais característicos anunciam a Índia e a cena congela novamente. Um elenco de indianos entra no proscênio, observados pelos nautas. Monçaide, funcionário do Samorim, entra no plano superior ao encontro dos nautas enquanto é anunciado pelo escrivão. Quer saber que ventura trazem e Vasco responde trazer a luz divina. Monçaide avisa que estão na Índia, “onde se estende diverso povo, rico e prosperado. Calecut é a cabeça do Império.” (GOMES, 2001, p. 32). Uma dançarina indiana em trajes brilhantes prenuncia o encontro de Vasco e o Samorim. De frente para o público no proscênio, ela fica no centro, entre os líderes e as comitivas das duas nações colocados nas laterais do palco.

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O Samorim recebe Vasco com todas as honras. O diálogo gira em torno da busca de alianças de paz, de amizade e de comércio entre as partes, solicitadas por Vasco em nome de D. Manuel ao rei local, que em resposta diz se sentir honrado com as propostas. Pede tempo para consultas ao Conselho, enquanto encaminha os navegantes para repouso da longa viagem. A transição é feita com a dançarina em ação e melodia indiana. Entra Monçaide. Questionado pelo rei sobre os estrangeiros, informa que é gente da Europa (Espanha, no original, significando a Penísula Ibérica), tem “o valor sanguinolento das armas” pelas guerras memoráveis e partem cortando os mares. “Não nos querem deixar viver seguros”, mas são “gente verdadeira, a quem a falsidade enoja e ofende.” (GOMES, 2001, p. 34). Monçaide aconselha o Samorim a ver-lhes a frota, as armas e as bandeiras e sai de cena. Samorim chama o Catual e pede que consulte um sacerdote para saber da estranha gente.

As ações dos marinheiros no centro do palco e dos indianos no proscênio acompanham a narração do escrivão. Nela, o Samorim vai à nau conhecer a história dos portugueses. Vasco começa a contar os fatos ao rei. O escrivão narra o encontro dos dois e os grandes feitos lusos nas pinturas. Vasco e o Samorim, na encenação, substituem Paulo da Gama e o Catual, na trama original, com tradução de Monçaide. Na sequência, estão Baco e o sacerdote no palco. Luz a pino sobre eles, com movimentos sincronizados que remetem a imagens de deuses indianos. O sacerdote anuncia ao Catual que leve a mensagem temerosa de mortes ao rei. Na cena seguinte, um Samorim informado e desconfiado interroga Vasco e avisa: se vagabundo, desterrado ou pirata, que diga sem temor de morte. Vasco lamenta a desconfiança e afirma que a grande viagem era para chegar ao rei, de quem só quer um sinal que possa levar ao rei de Portugal. O Samorim aceita o argumento e pede uma amostra de fazendas, para que troquem pelas especiarias indianas.

O escrivão, no plano superior, um longo grito que se distancia e a imagem de um indiano caminhando lentamente no plano inferior do palco concluem a cena simbólica de afastamento da terra e o início da viagem de retorno. Toda a cena com o episódio embaraçoso da prisão de Vasco pelo Catual, sem o conhecimento do Samorim, e a prisão de mercadores indianos pelos nautas portugueses em represália, que consta no texto

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adaptado, é cortada na encenação que resulta precisa. Os fragmentos correspondem aos cantos Sexto, Sétimo e Oitavo do poema original.

ILHA DOS AMORES E A PARTIDA PARA LISBOA A Ilha dos Amores, que principiou o espetáculo, volta na

cena final. O escrivão lembra o prêmio aos nautas concedido por Vênus. A deusa, no meio do plano inferior, determina a terra de deleites. O narrador anuncia os beijos na floresta, diferentemente da adaptação que previa uma voz em off nesse momento também. Sua fala sublinha as ações dos marinheiros com as ninfas amorosas. Elas aparecem com véus finos, os homens novamente com o figurino do início, em cena pontuada por efeitos sonoros e de predominante luz azul. Os deuses passeiam lentamente por entre os amantes. Vênus determina a Tétis mostrar a Vasco da Gama a Máquina do Mundo.

Tétis e Vasco no proscênio, o escrivão no fundo do palco. Ela narra um globo iluminado no centro e na superfície e explica ao capitão as conquistas históricas como profecias. Ao final, avisa que podem voltar para casa e sai de cena. O escrivão faz anotações. Vasco anuncia o prazer de voltar à pátria e também sai. Fica somente o escrivão, agora assumindo o próprio poeta Camões, no lamento de cantar a gente surda e endurecida. Ainda para um instante, como que a dizer mais alguma coisa, mas seu gesto indica desolação e sai de cena pelos fundos do palco. Em silêncio, a luz baixa lentamente. Resta uma luz de pino iluminando a nau em miniatura, no centro do palco, que some aos poucos. Fica o silêncio e a imagem de um barco no meio do espaço. Ou no meio do nada.

Divulgado como um espetáculo de tendência lírica e

dramática, mostra ser mais que isso, pois apresenta também um caráter épico narrativo. Os povos, a ideia de conquistadores, de ampliadores do espaço de livre comércio, o lado desbravador é mostrado com sutilezas diplomáticas. A montagem segue cronologicamente por encontros. Primeiro, segundo, terceiro encontro, e as diferentes situações por onde a embarcação precisa passar. Os figurinos caracterizam diferenças de perfis e de modos de ser distintos de cada povo. Os nautas, como povo

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desconhecido e diferente, exercem encantos e são recebidos como um povo aliado, o que facilitava o trabalho para os portugueses.

Conforme o diretor, havia uma ideia eventual de os próprios nautas alterarem efeitos de iluminação pelo manuseio de refletores e gelatinas, de maneira a dar a entender estarem trabalhando e trocando coisas dentro da própria cena, como as cordas e outros elementos disponíveis, mas foi esquecida pelo tempo escasso de ensaios. Na encenação, para Aurélio,

Tudo era quebrado o tempo inteiro, como se fosse uma parte. A história já foi contada, o que mais temos para contar, entende? E era engraçado porque os personagens dos navegantes ficavam sempre no meio. A Daniela foi se inspirar exatamente no momento em que o teatro se transforma, no século XIV ou XV, e que a náutica mudou a ideia de segurança das naus inspirado na mudança da arquitetura e da manipulação técnica da caixa do palco. Como se fosse o porão de um navio, de repente, enquanto um está subindo em um lugar, em outro está se montando o coro de uma civilização. Quer dizer, o tempo inteiro tinha um certo confronto de poder, de força. Ninguém se matava, mas media-se forças e claro que os portugueses com sua lábia acabavam sempre ganhando. As pessoas paravam em determinado lugar, faziam um cortejo de entrada, aí outros vinham pela frente, sempre em movimento e em diferentes pontos de chegada. A referência daqui é a coisa solta no espaço, que só tem o corpo do homem, tentando dominar no seu sentido de sobrevivência, porque o homem começou a dominar a técnica, começou a controlar e a transformar todos os mecanismos. Então você entra numa caixa de um palco tradicional e tem as gavetas para prender as cordas, tem a amarração dos nós que ficam no urdimento da coxia, tudo isso foi desse período. O teatro serviu como uma alavanca da transformação técnica das grandes navegações. (AURÉLIO, 2011).

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A substituição de muitas cenas pela narração delas é

intencional. Para Gomes, os textos antológicos e mais famosos, como a primeira tempestade que trata do Fogo de Santelmo, eram melhor interpretados pelos atores. Os marinheiros narravam os fatos, em lugar de ilustração de tempestades em cena. Na concepção do encenador, a figura da personagem do Velho do Restelo traz consigo o rigor e ao mesmo tempo a preocupação com a empreitada do povo português, com a questão do poder e do comando de outros povos muito explícita. Esse é um tema absolutamente contemporâneo, o qual “está mudando as pedras nas mãos das pessoas e elas não sabem exatamente como montar o quebra-cabeça. O tema clássico é retrabalhado de outra forma, mudando muito a fachada econômica, financeira e social do povo português.” (AURÉLIO, 2011). As personalidades dos líderes das nações e os consequentes confrontos nas relações políticas, características que permearam a ideia da montagem mais do que conflitos armados de grupos, eram trazidas para a cena sempre com cortejos.

Os detalhes do figurino ajudavam a revelar as diferenças formais em momentos solenes como os que acontecem nas cenas. Essas diferenças culturais, no vestir ou na forma de recepção, possivelmente induziam as estratégias dos navegantes. Enquanto, por exemplo, eles chegavam em um lugar e encenavam um teatro – como é o caso da pantomima sobre a Inês de Castro –, em outros povos são recebidos com danças e cantos. Há uma certa espetacularidade disfarçada que servia para chamar a atenção e também para enganar. Esses podem ser alguns pontos de discussão a respeito da questão do poder colonizador e dos poderes locais que a encenação de Aurélio insinua. Tais pontos continuam a persistir nos tempos atuais e não apresentam respostas únicas e fáceis. A observação de Pavis, mesmo que utilizada em contexto diferenciado e relacionada a outras obras, é também presente e relevante aqui: “aquilo que trinta anos antes parecia evidente [...] não está mais completamente evidente. [...] a reviravolta do século não soube muito de que maneira dar conta da virada intercultural.” (PAVIS, 2010, p. 297 e 305).

A inversão proposta pela adaptação em comum acordo com o diretor faz uma organização mais lógica e menos folclórica do percurso da viagem. Ela é reorganizada dentro de uma

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perspectiva que leva em consideração o fato de que grande parte do público não demonstra interesse pela questão dos grandes textos, segundo o encenador. A desconstrução do texto e da encenação em relação ao poema original liga-se às tendências do teatro pós-dramático “não conectado por uma moldura de continuidade narrativa”, segundo Lehmann (2007, p. 275), ainda que na sua forma conte uma história de maneira mais linear, para melhor compreensão de um público jovem e não familiarizado ou iniciado nos textos clássicos. O tratamento dado a cada povo, ao facilitar plástica e visualmente nos detalhes dos figurinos as passagens de lugares e culturas, também acenava nesse sentido. Para Aurélio,

O espetáculo arrombava – não é nem abria – arrombava mesmo o processo de invasão dos colonizadores, porque a cada lugar que eles chegavam eram recebidos como homens de Estado. O Oriente já tinha contato com pessoas do Ocidente por outros caminhos. Então quando eles encontravam um povo tão amável como os portugueses, eles faziam questão de ciceronear elegantemente, no sentido de cativá-los mesmo, porque era no maior espírito de comércio e de negócios. (AURÉLIO, 2011).

Para o crítico Sérgio Coelho (2001b), a declamação

colonialista da montagem anterior é substituída por uma marcação “exata e sutil do desejo” que costura o espetáculo. É do viajante, sua solidão e seus sonhos, mais do que exaltações à sua coragem e seus feitos que a montagem de Aurélio se estabelece. O crítico enaltece os feitos do encenador ao tirar o poema “do porão”, figura de retórica alusiva à acertada proposta cenográfica, que é também destacada por Coelho como “oxigênio puro” de Daniela Thomas em estruturas “com um mínimo de recursos”, talvez exagero de sua parte, já que a produção desta montagem só é modesta em números financeiros comparada à anterior. Valderez Gomes torna ágil a trama por uma “aeróbica adaptação”, que prioriza o essencial e faz brotar nova leitura do poema clássico, que agora aparece como um “Mahabarata da língua portuguesa”, mito nosso de origem que dormiu demais nas velhas obrigações dos livros de escola, segundo o crítico:

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Esse é o nosso herói primordial, o “fraco humano” sobrevivente de naufrágios, que é Adamastor traído pelo amor a Tétis, Inês de Castro morta pela política e o próprio Camões que, tal o Velho do Restelo, enrouquece a voz por cantar a gente endurecida. Focada assim no indivíduo, e não no coletivo, a montagem se apoia em atores que não perdem sua marca própria. Patrícia Franco, por um exemplo entre muitos, já tem desde o início a beleza e elegância frágil que será a de Inês de Castro. Eduardo Conde carrega com energia não só Gama como o Velho do Restelo, as duas faces da moeda, e só lhe falta a limpidez de dicção com a qual João Carlos Andreazza transforma cenas difíceis como a história de Portugal narrada ao rei de Melinde em uma verdadeira cena didática brechtiana, ágil, divertida e emocionante. Brechtianas são também as “paradas” étnicas que caracterizam a passagem por Moçambique, Melinde e Índia, com o exótico bem calibrado de cores e adereços contrastando com o branco astronáutico do figurino dos navegantes e o negro eclesiástico dos deuses do Olimpo, no eficiente trabalho de André Cortez. A sólida pesquisa se faz presente também na dança indiana levada com encantamento e humor por Zuzu Abu e pela bela voz de Marcello Bossechar, apoiados na competência de Magda Pucci. Um só coro se ergue nessa montagem, mas ele é chave para a ousadia que a permeia. Contagiando-se progressivamente pela conquista do Oriente, os marinheiros cantam um hino que soa estranhamente familiar: trata-se de “Tomorrow Belongs to Me”, o hino nazista da antológica cena de “Cabaret”, de Bob Fosse, na qual um menino loiro aparece demonstrando a fascinação coletiva pelo fascismo. Assim, o desejo de glória levou Gama às Índias para em seguida destruí-las pelo colonialismo português. Tal leitura não deprecia os Lusíadas, ao contrário: evitando a

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mera exaltação de um clássico que já estaria morto se não pudesse ser relido, torna-o contemporâneo desta última guerra. Dessa forma, pela liberdade e inteligência, esta versão capitaneada por Márcio Aurélio honra finalmente a assinatura de quem a produziu: Ruth Escobar. (COELHO, 2001b).

As observações do crítico são pertinentes, e em seu

conjunto denotam espírito observador de detalhes importantes da encenação e percepção diferenciada do trabalho do elenco. Porém, aponta certa propensão em favor dos acertos do espetáculo quase como um oposto exato da montagem anterior – como se esta sofresse ausência total de acertos, o que não é verdade – e um breve ufanismo desponta do texto, também exaltando a produção e o nome de Ruth Escobar. Para Coelho, a montagem se mostra centrada no indivíduo, em consonância aos imaginários de Daniela Thomas e Márcio Aurélio, mas dissonante do que propunha Gomes na dramaturgia: um herói coletivo, conforme as entrevistas e o programa do espetáculo. Não obstante, o coletivo é realçado por ele quando os portugueses se impõem com objetivos imperialistas e seguem viagem. Assim, o desejo, transformado no coletivo, pode destruir toda forma de exotismos.

Outras críticas sinalizam olhares diferenciados. O jornal O Estado de São Paulo de 23 de novembro de 2001 publica crítica em que a montagem surpreende por ser despojada e clara, mas dispensa emoção: “sua frieza distancia a plateia”. Sob forma de mural, conforme a matéria, o elenco ilustra no lugar de representar as ações. Ao condensar o poema, os realizadores alcançam a abrangência, para desagrado dos puristas. Ainda assim, salienta que o espectador sai do espetáculo com “boa noção dos passos da obra e seu entrecho”, pois a trama ilustra com clareza o percurso da epopeia. Elogiosos escritos também à cenografia limpa e aos figurinos:

Talvez esta seja a primeira vez em que Os Lusíadas chegam à cena sem panos crus, pendentes do urdimento, figurando as velas das naus. Nos trajes dos marinheiros Daniela adotou a forma de escafandros de astronautas, estabelecendo ligação entre

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feitos portugueses da Renascença com a exploração do espaço. Aproximação simpática, mas discutível em tempos de redução do alcance e das verbas dos programas espaciais. Nos demais trajes, soube sintetizar com poucos elementos

civilizações inteiras. Usando com habilidade essa moldura, Márcio Aurélio desenhou uma montagem ritualística, que remete às linhas do formalismo e retoma pesquisas datadas do início do século 20. Não há dúvida de que elaborou uma bela obra. [...] A beleza da montagem não se transforma, porém, em emoção. O diretor parece ter adotado uma estética que evita o emocional. Busca narrar as histórias com frieza, despojamento distante. A encenação distancia a platéia. E talvez seja essa a intenção. Tal atitude propicia a reflexão, a observação crítica dos fatos narrados. [...] A interpretação rígida de Conde impede o ator de estabelecer uma ponte com o espectador. Seu Vasco da Gama é uma figura estranha, hirta, pela qual não se sente temor ou respeito. Mais próximo de se comunicar com quem o vê fica o ótimo João Carlos Andreazza, que vive o Escrivão, porta-voz da palavra de Camões. (OESP, 2001).

A matéria também se refere ao trabalho dos muitos atores, bailarinos e performers que executam coreografias em imagens coesas de conjunto e insinua questões a respeito do figurino dos astronautas, colocado como simbólicas alusões presentes e futuristas, mas discutível, segundo a crítica, em tempos de redução do alcance das verbas de programas espaciais no princípio do terceiro milênio. A observação não altera nenhum mérito da montagem. O tema das viagens interplanetárias, por sua vez, continua a ampliar seus percursos. Iniciadas em 1968 com a ida do homem à Lua, o tema teve impacto e esteve muito presente nos imaginários e na concepção da montagem de Nunes e Telles, além de ilustrar o cartaz do

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espetáculo. Na montagem de Aurélio ganha concretude no figurino dos nautas. A crítica continua a sua reflexão:

A montagem insinua uma crítica ao colonialismo, mas não o condena explicitamente, já que é um dos esteios, parte da razão de ser da epopéia camoniana. Se a intenção do encenador era esfriar Os Lusíadas, tornar mais evidente o tempo que nos separa da era camoniana, atingiu com perfeição o escopo, ainda que isso dificulte a empatia com os personagens que vivem o drama das descobertas. Esse teatro, elaborado, requintado, racional, abre mão de instrumentos poderosos, próprios do palco, em nome da eficiência. Não resta dúvida, chega à meta. Mas, no processo, suprime a cumplicidade. Como se Márcio Aurélio dissesse à plateia que a era da diversão acabou e chegou a hora de se pensar a sério, pois não há mais tempo a perder. Isso, sem dúvida é verdadeiro. Justifica, porém, um teatro que abre mão de parte de seus instrumentos mais persuasivos? (OESP, 2001).

A pergunta no final da matéria é perspicaz e pertinente,

posto que convertida e aberta em forma de reflexão. Por outro lado, sinaliza como uma necessidade do espectador para que o teatro, na concepção do que seja essa palavra para ele, responda completamente às suas expectativas. E o espetáculo não se presta a isso.

A cumplicidade requerida e não realizada é como um hiato criado no imaginário do espectador – que a pergunta da crítica deixa entrever – a respeito da experiência vivida na encenação. A meu ver, é o que justifica todo o trabalho.

Em outra crítica na revista IstoÉ, de 19 de novembro de 2001, Cristian Cancino escreve que a nova montagem do poema é “rocambolesca e irregular”, posto que não se desvencilha do tom operístico determinante da primeira, mas há “muita gritaria” e alguns trechos do poema soam como incompreensíveis. Porém, o espetáculo não repete “associações óbvias” como a embarcação

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do espetáculo anterior, segundo o crítico:

Agora, o público sente o cenário de outro ponto de vista, como se fizesse parte do grupo de tripulantes que se conduz em direção ao Oriente. Por outro lado, a direção de arte (a cargo de Daniela Thomas e André Cortez) escorrega feio num dos trechos finais da peça ao mostrar um Camões escrevendo sua história épica numa espécie de prancheta escolar. São pequenos deslizes que comprometem a atenção do espectador e parecem injustificáveis para uma produção orçada em R$ 550 mil. Rocambolesco, Os Lusíadas avança irregular pelo palco do Estação das Artes. Dentre os “argonautas” que se destacam na nova montagem (que ainda não honra a grande história do escritor português), ponto para Magda Pucci, à frente da direção musical. (CANCINO, 2001).

Matéria relativa ao espetáculo que estrearia em Portugal é

lançada pelo jornal Folha de São Paulo, em 21 de janeiro de 2002. Aqui também se divulga o elenco de número pertencente ao espetáculo anterior.

Ruth Escobar, produtora da peça, disse que o espetáculo exibido em Lisboa, e que ficou dois meses em cartaz em São Paulo, foi montado especialmente para Portugal, já que a versão inicial de "Os Lusíadas", apresentada na cidade paulista durante oito meses, era feita numa caravela com 12 metros de cumprimento e a assistência estava colocada em volta do palco. Como era impossível transportar essa caravela e porque o palco do Centro Cultural de Belém (CCB) tem uma configuração diferente foi necessário fazer uma nova montagem, adiantou Ruth Escobar. [...] Realçou que o palco continua tendo o mesmo efeito: um barco. Disse ainda que depois de Lisboa o espetáculo volta a São

Paulo com o mesmo cenário. [...] Segundo

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Ruth Escobar, em São Paulo a peça foi vista por 62 mil estudantes, que aplaudiram “Os Lusíadas” e compreenderam o seu conteúdo, já que a obra é uma das matérias escolares e muitos alunos têm dificuldades em entender a

obra épica de Camões. [...] Produtora desde 1964, Ruth Escobar sublinhou que esta montagem do espetáculo significa “um encerramento de ouro” da sua carreira e “um ato de amor por Portugal”. [...] é “um espetáculo extremamente moderno e desafiador”. [...] A narrativa da viagem do navegador Vasco da Gama à procura do caminho marítimo para a Índia, escrita por Camões, é apresentada nesta versão numa ordem alterada, mas o texto do poeta português não é mexido, salientou.[...] Ruth Escobar disse ainda que o espetáculo teve uma grande receptividade por parte do público e da crítica brasileira, esperando que em Portugal seja igualmente visto como uma peça de “grande qualidade”. (FSP, 2002).

A matéria publicada em Portugal em 23 de janeiro de 2002 mescla informações que pertencem às duas montagens brasileiras. Ela pontua, por exemplo, como um dos espetáculos mais aplaudidos em São Paulo no ano de 2001, um elenco de “mais de meia centena” de atores, e que “esteve em cartaz por mais de oito meses com lotação esgotada”. No espetáculo de Hillel foram 52 atores no elenco e por aproximadamente sete meses em cartaz. Na montagem de Aurélio, 42 atores e dois meses de temporada até a viagem a Portugal. A matéria ainda esclarece que a encenação é parcial, já que somente alguns cantos são dramatizados, e que as histórias se desenvolvem em um processo cronológico. Isso mostra que as fontes dessas informações aproveitaram ambos os processos artísticos para a feitura da propaganda e nada consta sobre trocas de encenadores, de dramaturgos ou de elencos, embora se esclareça que houve modificações no espetáculo:

A peça conta com um elenco de mais de meia centena de actores, bailarinos e acrobatas,

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que num processo cronológico desenrolam as histórias e as aventuras dos heróis aclamados n’ “Os Lusíadas”. Valderez Cardoso Gomes, professora de Literatura da Universidade de São Paulo, seleccionou os cantos dramatizados. A escolha recaiu nos trechos mais conhecidos do épico, entre os quais se contam “O Velho do Restelo”, “Inês de Castro” ou “Fogo de Santelmo”. Para as representações em Portugal, o espectáculo sofreu algumas alterações, já que no Brasil uma caravela de 12 metros de comprimento servia de palco. O episódio da “Ilha dos Amores” assinala a abertura da peça, seguindo-se a narração dos textos pela voz de Vasco da Gama, um escrivão e três marinheiros. A linguagem original manteve-se, mas existem alguns rasgos de contemporaneidade nesta encenação. (PUBLICO, 2002).

Na volta a São Paulo, o espetáculo entra em cartaz no

Teatro Sérgio Cardoso em nova temporada brasileira. O jornal O Estado de São Paulo publica matéria a respeito da montagem e sua boa acolhida em Portugal, com novas apresentações agendadas:

Em abril, o espetáculo volta a Portugal,

para apresentações nas cidades de Braga,

Porto, Aveiro, Faro, Coimbra e mais uma vez em Lisboa. Márcio Aurélio foi feliz em sua

encenação ao optar por uma linguagem concisa e poética. [...] Na sua concepção, ele

usa o palco como metáfora - ali também é um

local de exploração ou viagem por terras desconhecidas. [...] Outro aspecto da

concepção de Márcio Aurélio serviu para dar ritmo e colorido ao espetáculo: a ideia do

marinheiro como um contador de histórias, consequência natural da ideia de

um palco/navio. As várias narrativas do

poema épico são contadas - e representadas - pelos próprios marinheiros, como se fosse

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uma forma de preencher o tempo na longa

travessia pelo oceano. [...] Os cenários e a

direção de arte de Daniela Thomas e André Cortez valorizam o contraste entre as cores

neutras do palco/navio e o intenso colorido

nos figurinos, maquiagens e adereços das populações das "estranhas terras da África e

da Índia", onde aportam os portugueses.

Eduardo Conde interpreta um Vasco da Gama de pulso forte e capacidade de liderança.

No elenco de 42 atores, destacam-se ainda

João Carlos Andreazza e Rogério

Bandeira. (OESP, 2002).

Os distintos olhares para o espetáculo de Aurélio, mais do

que contraposições, mostram o baú simbólico repleto de significados da montagem. Impossível agradar aos puristas neste caso e nos outros investigados de Nunes e Hillel. O poder de síntese de uma encenação necessita precisão cirúrgica. O poema de fato suscita questões e comporta as tantas interpretações e nuances entre o individual e o social em um mar de símbolos que negam enquadramentos e rótulos de leituras únicas e/ou rígidas. Nessa mescla, torna-se cada vez mais difícil se perceber as sutis relações entre comandantes e comandados e essa sutileza a montagem discute, embora os nautas – no coletivo – realizam a volta não obstante as cruzes do caminho e as queixas individuais.

Para se buscar as sequências que se iria utilizar no palco de forma a encontrar plenitude dramática, Aurélio lembra das conversas para alterações de efeitos de luz, com Daniela, André e Valderez: “A gente se permitia a esse fazer e desfazer, porque aí o trabalho cresce, porque é um tipo de escritura também, só que tridimensional.” Além de colaborar para sugerir o dia, a noite, a tarde, o sol que se põe, a luz altera atmosferas, conforme o encenador. A mudança espacial ótica tinha a cada momento um objetivo preciso: “O movimento, que oscila de frente para trás, da direta para a esquerda, da esquerda para a direita, tem sempre a luz caminhando no sentido da luz, a possibilidade da luz, a possibilidade do novo.” (AURÉLIO, 2011). Nos ensaios, segundo Gomes, todos eram chamados para trocarem ideias do entendimento de toda a história. Elenco e equipe inteira, cenógrafos, figurinistas, sentavam e assistiam a história, para

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tecerem seus comentários. Sobre a dramaturgia e outros detalhes importantes, a dramaturga pontua:

Depois que eu fiz a adaptação, fiquei até a estreia e até depois da estreia eu procurava ator por ator e mexia nos textos. Porque eu fiz uma colagem. Não só os cortes, uma colagem inteira para dar os diálogos. Então chamava ator por ator, verificava e mexia. Aprendi isso com o Antunes também: depois que estreia o espetáculo continua, as mudanças continuam, vai mexendo aqui, mexendo ali, até aprimorar todo o espetáculo. A cada hora chama um ator, a cada hora melhora o corte, melhora aqui e ali. Inclusive tinha uma menina com um ouvido excelente. Ela vinha me propor melhoras, eu discutia com ela, uma menina simples e um ouvido para Camões. Todo dia eu conversava para melhorar a adaptação, para os versos ficarem mais de acordo com a fala do ator, de acordo com a direção. E eu coloquei tudo falando no “você”, o verbo no você para ficar mais coloquial, embora não colocasse a palavra “você”. E aí quando fui a Portugal, chamei os atores e falei: vou mudar. Tudo é no “tu”. Portugal ou usa tu, usa vós, ou usa a forma verbal correspondente à segunda pessoa. E eles aceitavam, porque a toda hora eu mudava tudo, mexia tudo. (GOMES, 2011).

Em relação ao trabalho com o elenco, o encenador acentua

o trabalho com as ações físicas. Mais de oitenta por cento do elenco conhecia a versão do espetáculo anterior e assim a tendência a encaixar tudo o que já sabiam, sublinhada pela urgência da nova montagem, era clara. Conforme Aurélio, a necessidade de desmontar tudo e começar de novo com os atores, um a um, fazia o trabalho grande e exaustivo. Era preciso que os atores e os bailarinos tivessem claro onde estava o foco, fosse verbal ou corporal. O trabalho iniciava com aquecimentos, seguidos de exercícios que visavam ampliar percepções. Para o encenador, principalmente, o trabalho estava centrado no foco de atenção:

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Quando o foco vai junto, quando o foco passa e quando o foco continua. Quer dizer, diferentes olhares sobre a sua experiência, assim como o campo de visão, que precisa ser alargado. Então, tem sempre um líder, que começa a desenvolver um plano de movimentos, e as pessoas que vem, porque entram no seu campo de visão do movimento, tentam reproduzir como uma espécie de coral de movimentos. Esse é um exercício que a gente fazia diariamente antes de começar o ensaio. Precisava de atores muito ligados, muito objetivos, porque não havia tempo, eu tinha que ter respostas imediatas. Então ia todo mundo para cá, ia todo mundo para lá com foco, com objetivo, é um plano militar mesmo, nesse sentido é o que eles eram. (AURÉLIO, 2011).

O espetáculo foi concebido para funcionar no mesmo

espaço do anterior, porém, dada sua monumentalidade, precisava ser diminuído para a nova proposta frontal à italiana. Para Aurélio (2011), era um templo arquitetônico com uma moldura, com um suporte de uma cena que vem dentro. Ele não queria as opções tecnológicas e as projeções que foi a opção do espetáculo anterior, porque interessava, segundo ele, a máquina humana em funcionamento coletivo. Para Thomas (2001, p. 10), a inspiração maior era a metáfora da ideia de passagem humana pela terra, uma “sincronia entre prospecções para fora e para dentro de nós mesmos”, segundo ela. E a universalidade latente na obra de Camões, ressaltada como ideia central, que faz de Vasco da Gama à altura das personagens que povoam a literatura e o imaginário coletivo: “Ulisses, Dante, Quixote. Gama como o herói que testa as fronteiras da mortalidade, que desafia os desejos divinos, os espectros fantasiados de realidade e ao fim da viagem encontra-se a si mesmo.” (THOMAS, 2001, p. 10-11).

Gomes endossa as questões levantadas por Thomas. Para a dramaturga, porém, que estabelece um herói coletivo, o chamado se expande ao grupo. Se cada um segue alguma coisa que o chame, o mar desconhecido chamava um coletivo que pactuava de objetivos comuns. Os objetivos, bastante concretos –

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ir para a Índia, descobrir especiarias, mobilizar comércios, ganhar dinheiro, descobrir novas terras, dominar o mundo –, segundo Gomes, não escondiam outra espécie de busca: “Como diz Bachelard, não mudamos de lugar, mudamos de natureza. Os marinheiros voltavam transformados, voltavam outras pessoas, pela experiência da viagem.” (GOMES, 2011).

Magda Pucci, que havia assinado a direção musical no espetáculo anterior e decidiu continuar em novo desafio, agora tem o trabalho reelaborado e destacado, embora se perceba a redução quantitativa das inserções em relação ao espetáculo anterior. Pelo olhar do encenador, as questões a respeito da música do espetáculo e das relações estabelecidas foram permeadas de sensibilidade:

Essa ideia da remontagem, que chegou de repente, o que eu fiz e o máximo que eu podia fazer, era rever o material da Magda. E aí a gente se deu muito bem, porque ela compreendia que a música não era uma música somente, era feita para o espetáculo. O que antes, em momentos, ela usava altura, precisou equalizar. Não só em cima, na lateral, por trás, porque a arquibancada era quase uma torre. Quem estava sentado em determinado lugar tinha que receber o som correspondente. Então, a gente reorganizou a plástica do som, de forma que o público recebesse a música, não um bate-estaca para jovem gostar. Magda foi muito sensível ao escolher determinados temas que ela punha junto com a fala, e isso fazia toda a diferença. É outra trilha sonora. Ela remasterizou, retransou sons, introduziu outros e foi um trabalho onde exigia a presença muito constante da equipe não só artística como técnica, porque enfim, tinha que estar o tempo inteiro cuidando pra ajustar no mesmo diapasão a retórica cênica. (AURÉLIO, 2011).

A compositora escreve que a trilha sonora d’Os Lusíadas

busca encontros e denuncia confrontos:

O encontro dos sons das tablas indianas, dos

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djembés africanos e dos derbaks árabes – como as tão desejadas especiarias das Índias – com as vanguardas tecnológicas representadas pelas caravelas, símbolo maior do movimento expansionista português. Sendo assim, a trilha une duas pontas dessa história e evidencia o aspecto contemporâneo da montagem, que busca a essência do texto de Camões: a reflexão sobre o mundo contemporâneo, o embate entre os diferentes povos do planeta e o eterno desejo de poder das grandes potências. (PUCCI, 2001, p. 12-13).

As assinaturas dos profissionais que trabalharam no

processo são primordiais e valorizadas, como se percebe aqui e nos outros trabalhos desse estudo, ainda que muito discutidas e abominadas por vezes nos processos colaborativos de grupos constituídos. As qualidades e as habilidades artísticas e técnicas são consideradas e levadas em conta quando dos convites efetuados. Pavis realça suas importâncias e amplia a quantidade de funções para além das criativas – no que denomina “novas identidades profissionais” –, dados os complexos avanços tecnológicos que exigem cada vez mais uma profissionalização competente. A criação teatral solicita novas especializações que passam a integrar os processos criativos, como tarefas complexas de iluminação e sonorização, por exemplo, que não precisam necessariamente fazer parte das concepções estéticas de encenadores, de autores e de cenógrafos, mas são essenciais também no resultado coletivo de um espetáculo.

Em meio a reflexões sobre o curto espaço de tempo para a composição da montagem, Aurélio constata que a fundamental harmonia do conjunto da equipe foi a base para a consecução dos objetivos propostos, e que isso compensa o exaustivo trabalho. E, lembrando as transmutações de pensamento e ações dos homens ontem e hoje, conclui:

Imagino o que devia ser isso na cabeça daquela gente, sair para um mundo que se dizia quadrado, toda uma transformação do pensamento, e ter que lidar com isso, porque o mundo passou a ter outra organização para

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eles. Me lembro que o Brecht tem uma frase que acho que cabe muito nisso. Ele fala que enquanto Galileu mudava a visão de mundo, Shakespeare, no Globe, analisava a transformação do homem no mundo. (AURÉLIO, 2011).

As cumplicidades mútuas em nome do fazer artístico são

também inegáveis nesta montagem, onde se percebe novo disfarce teatral colocado à mostra, outra constatação de sua linguagem autônoma. Sobre essa gama de relações de confiança que se estabelece no fazer teatral, Brecht pontuaria poeticamente esses encontros humanos que ultrapassam os cenários externos do cotidiano diante dos acontecimentos de sua época: “A mim, o teatrólogo, a guerra separou de meu amigo, o cenógrafo. As cidades em que trabalhamos já não existem. Andando pelas cidades que ainda existem digo por vezes: aquela peça azul de

roupa, meu amigo a teria colocado em lugar melhor.”98 A encenação parece ser, como lembra Pavis (2010, p. 356), “a última utopia de uma experiência e de uma entrega coletivas”, um lugar que procura reconectar elos sociais. Quem sabe é esse o ideário possível que a mantém em ebulição e em constante movimento.

98 Os amigos. In: BRECHT, Bertolt. Poemas (1913-1956). São Paulo: Editora 34, 2000.

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FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO

OS LUSÍADAS, de Luís de Camões. São Paulo, Novembro de 2001

Adaptação e Dramaturgia: Valderez Cardoso Gomes

Direção de Arte: Daniela Thomas

Música e Direção Musical: Magda Pucci

Iluminação: Márcio Aurélio

Assistente de Direção: Paulo Marcello

ELENCO

Eduardo Conde: Vasco da Gama/Velho do Restelo (Ator Convidado)

João Carlos Andreazza: Escrivão

Rogério Bandeira: Baco

Paulo Renato César: Marinheiro 1

Luciano Alves: Marinheiro 2

Marcelo de Andrade Melo: Marinheiro 3

Bartholomeu de Haro: Marinheiro 4

Andréa Pozzi: Vênus

Carlos Henrique Pessoa: Marinheiro

Claudete Neves: Thétis (Adamastor)

Daisy Carvalho: Marinheiro/Ninfa

Elza Gonçalves: Mãe

Fabiana Barbosa: Marinheiro/Ninfa

Fábio Ferreira Dias: Júpiter

Giballin Gilberto: Marinheiro

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Halei Rembrant: Mercúrio

Jaqueline Momesso: Ninfa

Jardel Gley: Éolo

José Augusto Marin: Marinheiro

Juliana Pires: Ninfa

Júlio Machado: Contramestre

Luís Mendes: Marinheiro

Malcon Soares: Marinheiro

Marcello Bosschar: Marinheiro

Marcelo Góes: Marte

Marcelo M’Dambi: Mombaça

Márcio Mehiel: Catual

Marco Xavier: Netuno

Nill de Paula: Adamastor

Patrícia Franco: Inês de Castro

Paulo Marcello: Samorim

Regina França: Leda Miranda/Ninfa

Rodrigo Manzelli: Marinheiro

Rodrigo Souza: Marinheiro

Rogério Romera: Rei de Melinde

Silvia Patzsch: Thétis (Máquina do Mundo)

Silvio Giraldi: Monçaide

Valmir Marcellino: Governador

Wellington Duarte: Mouro

Willams Aris: Jogador de faca

Zuzu Abu: Dançarina/Ninfa

Encenação: Márcio Aurélio

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Realização: Ruth Escobar

PRODUÇÃO

Equipe de Figurinos

Coordenação: Marco Nasci

Assistente: Márcia Moon

Costureiras: Bene Calistro, Cecília Calistro, Regina Spagnolo, Júlia

Alves da Silva, Vanderlita Silva da Conceição, Nanci de Souza

Corrêa

Aderecistas: Osvaldo Piva Filho, Márcia Moon, Márcio Junji, Júlio

Dojcsar, Jairo Dojcsar

Equipe de Cenografia

Coordenação: André Cortez

Cenotécnico: Ridan Gomes dos Santos

Serralheiro: Cândido Neto de Sá Ramos

Soldador: Antonio dos Santos Brito

Ajudantes: Carlos Reis Boaventura, Jadson Gomes dos Santos

Equipe Musical

Música e Direção Musical: Magda Pucci

Colaboradores: Maurício Bussab, Miguel Barella, Anvil FX, Ratnabali

Adhikari, Marcus Santurys, MAWACA, Dalga Larrondo, LCD,

BigNois

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Mawaca/Cantoras:

Angélica Leutwiler, Christina Guiçá, Cris Miguel, Magda Pucci,

Sandra Oak, Susie Mathias, Zuzu Abu

Mawaca/Instrumentistas:

Sax Soprano e Sax Alto: Ramiro Marques

Violino: Cíntia Zanco

Acordeom e Kalimba: Gabriel Levy

Violoncelo e Flauta: Ana Eliza Colomar

Fagote: Luis Antonio Ramoska

Tabla, Djembé e Berimbau: Armando Tibério

Vibrafone, Djembé, Derbak e Pandeirão: Valéria Zeidan

Orquestra de Cordas:

Violinos: Luiz Britto Passos Amato, Heitor Hideo Fujinami, Nadilson

Martins Gama, Ênio Antunes, Graziela Fortunato Rodrigues, Otávio

Scoss Nicolai

Violas: Ricardo Zwietisch Pellegrino, Roberta Lizandra

Marcinkowski, Adriana Schincariol Vercellino, Alexandre de Leon

Violoncelos: Angelique Camargo, Patrícia Mendonça Ribeiro, Raiff

Dantas Barreto

Contrabaixos: Ney Vasconcelos Carvalho, Célio Barros

Produção Musical: Magda Pucci

Produção Executiva: Aline Perez, Janaina Alejandra Ormart

Produção Administrativa: Ethos Produtora de Arte e Cultura Ltda

Trilha gravada e masterizada nos estúdios 1701 (Magda Pucci) e no

Zabumba (Marco Antônio e André Magalhães) em 2001, São Paulo

– SP

Equipe de Produção

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Coordenadora de Produção: Eliana de Almeida

Produtores Executivos: Tony Júnior e José Vicente da Silva Neto

Motoristas: Marcelo Jorge Lima e Silas César

Equipe Técnica

Operadora de Luz: Marina Stoll

Operador de Som: André Lemes

Maquinistas: André da Silva Alves, Evaine Todão, Márcio Renato de

Jesus, Sérgio Barbosa

Camareiras: Maria Lúcia Nunes dos Santos e Marilene Nunes dos

Santos

Operador de Vídeo: Clayton Boezo Xavier

Equipe Administrativa

Coordenação Geral do Projeto: Eliana de Almeida

Gerente Financeira: Eliete Aparecida da Silva

Assessoria Financeira: Silvia Regina da Silva

Assessoria Administrativa: Ernesto Bergamini

Assessoria Contábil: Estrutura Assessoria Empresarial S/C Ltda

Assessoria Jurídica: Rodrigues Barbosa, McDowell de Fegueiredo e

Dr. Ivan D’Angelo

Auditoria: Normas Auditores Independentes S/C

Captação de Recursos: Empório das Artes Produções Artísticas S/C

Ltda

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Assessoria de Imprensa: Editor Comunicação

Fotografia: Lenise Pinheiro

Produção: Integração Promoções Artísticas e Culturais Ltda e

Associação Festival Internacional de Artes Cênicas

Direção Geral: Ruth Escobar99

99 Os Lusíadas. Programa do Espetáculo. São Paulo, Nov. 2001.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O poema, como as encenações aqui estudadas, são obras abertas (ECO, 2003), campos de probabilidades e de situações ambíguas, capazes de distintas escolhas interpretativas. A Antiga Musa ainda canta a utopia que acredita no aperfeiçoamento do ser humano. Dessa maneira, ela serve para caminhar. Mas os rumos dessa suposta caminhada podem se alterar na pretensa busca dos ideais elevados e amadurecidos de sua condição primeva. Pode-se dizer que os mitos trazem consigo os desejos de saber e de superação, mas estes são pervertidos com facilidade quando desviados para a ilusão. O mundo ilusório, por sua vez, abriga ideologias e idolatrias, ambas produtos secundários do mito. Ele tem sua potência reduzida quando transformado em ideologias de quaisquer matizes e deixa de existir quando encapsulado em certezas absolutas. O mito permanece vivo enquanto se mantém aberto a inúmeras leituras, significados, sentidos. Assim, a fantasia da narrativa mitológica pode preservar um fundo de verdade sobre questões há muito buscadas, mas esse fundo se mantém tão recôndito que pode não passar de véu a esconder a mais nua realidade.

A musa ainda canta porque a obra camoniana que a resgata ainda canta em muitas línguas e porque centra foco no homem, no ser humano, na coragem de uma raça e de seus desdobramentos em relação com outras não menos corajosas, da qual fazem parte Ruth Escobar como portuguesa que é e os demais artistas brasileiros que, envolvidos pelo canto da musa, participaram dos três projetos de encenações no Brasil. Os artistas, à luz dos dias atuais e como os aedos na Antiguidade, continuam cantando o homem e suas interrogações inerentes ao tempo que caminha. A encenação teatral pode ser vista como instrumento para a propagação dos cantos dos aedos, que ecoam no espaço e no tempo de agora. Desse modo e pelo resultado da investigação, pode-se concluir que a caminhada é cheia de percalços e sem garantia de alguma chegada, portanto, o mérito está em sair do ponto neutro e movimentar-se.

Camões, ao propor o silêncio do canto antigo em favor de outro renovado está enunciando uma formulação paradoxal. Embora ele anuncie o valor do novo canto, este é embebido pelos ideais da antiga musa. Sua épica não rechaça o imaginário

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primitivo, mas coloca em relevo feitos reais dos homens de seu tempo e na história e sua visão crítica transparece tanto na voz do Velho do Restelo como em suas próprias reflexões que interferem de quando em quando no andamento da narrativa. Assim, solicita a releitura da mitologia à luz do seu tempo. Esse outro olhar não desrespeita a tradição e nem procura se contrapor a ela. Antes, vê a necessidade de recriar ludicamente uma função maior e vital presente no âmago das narrativas mitológicas e que parece ultrapassar satisfações e aspirações literárias. Se tomados individualmente no poema, os episódios tendem a elevar sem precedentes o discurso opressor. É bastante provável que o grande poema épico teve a aceitação que teve porque não escapa de ser um relato colonizador, mas o conjunto todo que o compõe mostra ser maior que suas partes, também notado pela alteridade das propostas cênicas.

As releituras e interpretações dessas narrativas míticas podem apontar, dessa maneira, tanto para a tolerância e o respeito contemporâneos às diferenças culturais como servir para novas e justificadas invasões bárbaras. Essas são questões importantes para os encenadores. Peter Brook (2000b), a respeito de suas impressões quando encerrado o processo de trabalho sobre o poema hindu Mahabharata, argumenta nesse sentido. Para o encenador, o presente deve sempre conter o passado e um mito é um modo, um meio bastante preciso de expressar simbolicamente verdades ocultas e profundas sobre a condição humana. Mas, ao mesmo tempo, essa verdade é somente fantasia se não puder passar redescobertas e experimentos à luz do presente.

Ontem e hoje, as relações políticas entre nações e seus discursos permeiam as velhas questões entre colonizador e colonizado, em que pese que as hegemonias europeia e norte-americana passam por transformações internas e não mais exercem a influência esmagadora de outrora. A economia de cada nação estabelece protecionismos e interesses justificados cada qual a seu modo. Os acordos entre governos aparecem de formas pouco nítidas, embora hoje se apresente um panorama abundante de informações, graças às tecnologias da comunicação cada vez mais aperfeiçoadas. Essa falta de nitidez deixa no ar uma indefinição duvidosa e permanente de quem é quem e de quem representa quem no panorama político e econômico mundial.

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Desse modo, as relações de poder entre nações estão sutilmente maquiadas e técnicas teatrais são utilizadas por relações diplomáticas para a manutenção do status quo. As quedas contínuas de totalitarismos, sejam eles de oligarquias ou de comunismos, aparecem como acontecimentos positivos, mas o liberalismo econômico não parece apresentar soluções para os difíceis problemas relacionados com fronteiras, conquistadores e/ou conquistados. Para além das polaridades que estabelecem dois caminhos históricos, a do caminho liberal e a do materialismo histórico, procuram-se outras possibilidades. O caminho liberal, permeado de figuras heroicas e de cultos a personalidades como expoentes máximos do progresso humano não apresenta respostas convincentes à expansão das liberdades e o caminho do materialismo dialético histórico tampouco, já que se percebe serem as massas também capazes de exercerem ditaduras à sua maneira. No caminho teológico, o paraíso não se encontra no plano do humano e do agora e pode levar a outras e inúmeras formas de dominação e controle.

Culturas foram dizimadas quando os povos do Hemisfério Norte resolveram desbravar o Hemisfério Sul no período das Grandes Navegações. Nas Américas, por exemplo, grandes templos Incas e Astecas foram transformados em firmes bases para apoio de catedrais religiosas, principalmente cristãs, impostas autoritariamente nos processos das colonizações, tudo a convencer que é depois desta vida que virá o paraíso. Essa justificativa do sofrimento na Terra para uma nobre vida no Céu é cantilena ainda muito difundida. Os portugueses, assim, atuaram como raça dominadora, não obstante Camões ter-se esforçado para fazer heróis Vasco da Gama e os seus. Os viajantes desbravadores sempre estiveram a serviço de interesses dos Estados. Desde os gregos essas aventuras do espírito humano visaram conquistas, dinheiro, aumento de territórios pela usurpação de patrimônios alheios. Também os primeiros astronautas atuavam na disputa de poder entre URSS e USA, em 1968, e não é diferente com os atuais. Os poderes estatais sempre necessitaram – e necessitarão – de homens valorosos, os quais legitimam suas ações políticas, sociais e religiosas.

A ilha mítica do poema Os Lusíadas é uma figura de linguagem que pressupõe afastamento crítico do observador diante do que ele pretende conhecer. A observação crítica amplia

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a percepção para maior clareza do funcionamento da Máquina do Mundo e suas engrenagens que arquitetam e governam as leis, as nações, os homens. De outro ponto distinto da dicotomia entre o certo e o errado, pode-se compreender melhor a natureza das coisas e o discernimento se aperfeiçoa. Se D. Manuel teve um sonho que inspirou conquistas ou não, ninguém saberá com certeza. Podem ser somente palavras a encobrir estratégias políticas mirabolantes. Nem tampouco parece ser somente sonho de Ruth Escobar levantar três grandes produções a custos tão elevados, financeira e humanamente, embora o sonho seja visível e palpável, parte inegável e isento de dúvidas para tão grandes feitos. Pelo que emerge da pesquisa, bons contatos políticos no Brasil e em Portugal é que também inspiraram sonhos teatrais. Mas o sonho de se colocar o clássico de Camões em palcos brasileiros aponta para fragmentos pontuais. Nesses fragmentos aparecem até pés e corpos de atores com figurinos de baixo custo e sandálias em revezamento, costuradas e coladas por algumas mãos hábeis de artesãos/atores enquanto o espetáculo era apresentado.

O gosto pelas poéticas teatrais e as reflexões teóricas que se entrelaçam complementarmente emergem como força preponderante que estrutura e realça as aventuras teatrais e seus criadores, o mesmo favor que acende o engenho em relação à poesia, para Camões. Essa inquietude dos criadores independe do que se capta em verbas públicas ou privadas, ou ainda, independe da importância dada ao Teatro e sua arte pelas pátrias, amadas ou não, e às suas máquinas governamentais ontem e hoje. Nesse sentido, se pode dizer que o poema e as consequentes encenações brasileiras investigadas mantém um evidente compromisso artístico. Assim, e pela diversidade explícita de suas formas, a encenação se confirma enquanto arte autônoma.

Na primeira montagem, com direção de Celso Nunes e adaptação de Carlos Queiroz Telles, ficaram realçados os ideais do Renascimento, em montagem que se caracterizou pela ousadia das relações diferenciadas entre atores e espectadores, do espaço e da cenografia, que privilegiaram subir literalmente da treva/porão para a luz/andar de cima, com ironias contundentes aos discursos dos poderes da Corte e do Clero. Insere-se também nas propostas contraculturais, dentro de uma prática estética que

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privilegia a sensorialidade e a sensualidade na cena. O corpo humano tem forte simbologia no estabelecimento de vínculos comunicativos com o espectador, calcado fortemente dentro das premissas do teatro antropológico que aparenta mais robusto em 1972 em comparação a um teatro mais narrativo em 2001 no Brasil, e o conjunto da encenação se configura contrário aos desmandos autoritários e seus dedos em riste. Os recursos dramatúrgicos contaram com a música e o coro dos jograis para o andamento da narrativa. O figurino, a iluminação, as músicas e as coreografias eram corroborações que simbolizavam sentidos de libertação individual e social, pelas vias do corpo e da mente. O espetáculo e seu coletivo atuante de individualidades deixou um lastro maior que a antítese da morte, do poder e da repressão política no Brasil daquele tempo, seja pela proposta do encenador e do dramaturgo, seja pela característica da época.

A exploração de expedientes épicos da dramaturgia e da encenação mostra um Camões diluído e Vasco da Gama é a representação do herói, em nome de um coletivo maior. Em 1972, as fronteiras entre o regime militar instaurado e a resistência diante de suas forças repressoras eram mais explícitas do que atualmente, e o espetáculo de Nunes e Telles toma partido pela causa libertária. Desse modo, um lirismo ambíguo vêm à tona, demonstrando que o lema da paz e do amor não significava ter olhos alienados pela crua realidade das ruas, justamente propunha-o em contraposição ao estado repressivo do período. Ao mostrar simultaneamente as ambiguidades dos olhares do colonizador e do colonizado e suas relações simultaneamente, grita ser um hino à vida livre, condensação e apelo de sensualidades dentro da concepção libertária daqueles anos.

Pode-se questionar o modo aparentemente maniqueísta da encenação em tratar das questões relativas aos períodos históricos da Idade Média versus o Renascimento. A rigidez estabelecida entre escuridão e claridade já não se sustenta atualmente, como transparece nas reflexões desta investigação. Mas, se pensados dentro do contexto social e político vivido à época do espetáculo, a simbologia contrastante tem a sua razão de ser. Além disso, a presença dos jograis de arlequins – figuras destacadas da Commedia Dell’Arte que narram e amarram cenas –, aponta as artimanhas teatrais presentes à época medieval como elementos desafiadores àquelas ordens vigentes. Desse

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modo, o complexo período da transição entre o medievo e a renascença, com todas as suas imbricações, é realçado e posto a dialogar criticamente no contexto contemporâneo pelo espetáculo.

Na segunda montagem, com direção de Iacov Hillel e adaptação de José Rubens Siqueira, a passarela por onde navegava a encenação era observada por espectadores nas arquibancadas de ambos os lados. Eles assistem não só a uma histórica alegoria poética que se descortina ante seus olhos, como ao outro espectador do lado oposto, testemunha que também presencia o mesmo fenômeno e que serve, assim, de contraponto para um distanciamento crítico simultâneo. A caravela deslizava no mar do palco real da Estação Júlio Prestes, dando voz e vez às conquistas portuguesas diante das adversidades. Apesar dos comentários descontentes da produtora em relação ao tempo do espetáculo e aos figurinos, por exemplo, não foram estes os motivos cruciais para a brusca interrupção da sua temporada.

O principal aspecto que emerge do conjunto das análises é o fato dele não ter sido concebido para o palco italiano, condição primeira para a possibilidade de viajar e se deslocar principalmente para o destino previamente planejado: Lisboa, Portugal. Nesse sentido, nem o primeiro nem o segundo espetáculo ofereceram essa hipótese, dadas as opções e concepções cênicas e espaciais das encenações. O espetáculo de Hillel caminhou, em vários aspectos, para o traço épico. Os deuses, que apareciam em imagens gravadas em vídeo, tinham suas projeções em grandes telas por boa parte da sala. Camões se apresenta como uma personagem que presencia tudo, embora por vezes distanciada e invisível dentro da trama e, em outros momentos, presente e participante, como na cena em dueto com o Velho do Restelo nas suas ferozes críticas ao movimento expansivo. Um narrador diferenciado, em outro tempo e espaço, em movimento para dentro e para fora da trama, é uma atitude constante no espetáculo.

Pode ser uma postura filosófica defendida pelo dramaturgo e pelo encenador no sentido de mostrar em cena o apurado discernimento do poeta, uma maneira de estar dentro e fora do acontecimento, e assim diferenciar-se de sua própria obra. Os monólogos e os solilóquios ganham relevo, em detrimento dos diálogos, mais raramente ocorridos, em elenco coeso e preciso nas muitas marcações de conjunto. Povoado de muitas cenas com

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elenco numeroso, é esse elenco que desponta, em lugar de destaques individuais de atores, com exceção do poeta e das figuras principais da trama. O movimento e a ação sem palavras também são perceptíveis na encenação, que opta pela reprodução de época.

O que parece enfraquecer na trama é o conflito entre os deuses. A cena do encontro das personagens perde muito de sua força conflitante, seja pelo mesmo tom proferido por eles no início do espetáculo, a respeito de outro tema – a História de Portugal –, seja pelas imagens sequenciais nas gravações, que impossibilita as reações simultâneas do embate discursivo em participações nos concílios. As guerras projetadas no vídeo também não parecem acrescentar, dadas tantas incursões nesse sentido via cinema e outras linguagens midiáticas. Os deuses e seu modo de exposição no vídeo – colocado no alto do espaço da sala –, remetem a obras que questionaram as antenas tecnológicas controladoras dos totalitarismos. No entanto, talvez corroborados pela presença de um elenco bastante conhecido do público brasileiro como Juca de Oliveira, Raul Cortez e Fúlvio Stefanini em interpretações naturalistas, a vinculação a essas questões ficam mais nos aspectos da forma e menos nas questões políticas sociais repressivas que suscitaram em outros contextos.

No conjunto, o espetáculo procura evocar a face esotérica do poema de Camões, que o mostra tolerante com todas as culturas. Também mostra as equivalências das línguas das culturas destacadas. Esses contrapontos, porém, não diminuem a grandiosidade das façanhas dos navegantes, que soam mais evidentes em favor de uma raça, a dos conquistadores. O tratamento operístico, a bela música e cenografia em meio a grandes recursos tecnológicos, figurinos e iluminação realçada com telas que se desfazem e se recompõem de formas diversas e em distintos pontos do espaço, fazem do espetáculo um conjunto harmônico.

A terceira encenação, com direção de Márcio Aurélio e adaptação de Valderez Cardoso Gomes, realizou o intento da produtora de viajar a Portugal, a qual estabelece de antemão como espaço cênico o palco à italiana, também na Estação Júlio Prestes. A cenografia que dispensa panos que remetem a velas e passados distantes vislumbra um olhar mais presente ou futurista, também realçado pelos figurinos dos argonautas no patamar de

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astronautas. Uma espécie de moldura metálica deixa transparecer o interior de uma embarcação e o balanço do mar é sugerido pelos nautas em contínuo movimento dos corpos, mesmo sem sair do lugar. Tábuas fixas que se tornam móveis e flexíveis, por um momento optam pelo mimetismo, em cena de grande tempestade sofrida pelos marinheiros ao sabor das ondas ou entregues a elas. A cenografia também estabelece diálogo entre elementos estruturais do teatro e das embarcações náuticas.

Camões cede lugar a um escrivão, que divide a narração com Vasco da Gama e os marinheiros como fios condutores da epopeia. Com relação às questões dos poderes entre nações, o espetáculo mais sugere as diferenças. Não há conflitos armados, por exemplo, as relações são construídas de outra maneira. A impressão de merecimento glorioso por Júpiter e os deuses sem ainda um devido esforço dos navegantes porque resulta rapidamente na montagem devido à viagem praticamente nos seus começos, motivo caro à tradição literária, permanece. Isso ocorre porque foram suprimidas do original todas as passagens do passado de glórias dos portugueses, que Júpiter relembra rapidamente como elementos de persuasão em seu discurso de convencimento aos demais. Ele refaz a rota das memórias vitoriosas para chegar ao momento presente dos nautas no duvidoso mar com ventos inimigos, ou seja, é a mesma gente valorosa que já atravessou tantos outros desafios e agora atravessa o oceano. Mas essa abreviação das dinastias é justificada em favor do ritmo da cena. Refazer todo o longo discurso do bardo no original sobre a gênese da pátria não acrescenta no conjunto da encenação. Assim, a licença poética fala mais alto, e em favor da linguagem teatral.

O elenco equilibrado e atento de bons atores e atrizes, performers e bailarinos não perde o ritmo estabelecido pela direção cerebral de Aurélio e transita com segurança pelas marcações precisas e enxutas. Eduardo Conde como o Velho do Restelo e posteriomente Vasco da Gama e João Carlos Andreazza como o escrivão de bordo encabeçam o grande elenco, este último roubando a cena por vezes. Em pontos determinados da encenação há uma aproximação do público, quase convidado a rir juntamente com os atores, mas na maior parte há certa distância, proposital, que estimula a observação e reflexão. As cenas de conjunto formam imagens bem construídas e eficientes.

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A iluminação transita mais pelo tempo e pela beleza do que produzindo atmosferas, e estabelece contínuas conexões harmônicas com a música e a cenografia. O espetáculo não chega a estabelecer fortemente um contraponto crítico ao colonialismo, o que pode ser intencional por parte da direção, já que a qualidade da interpretação não pretende estabelecer empatias pela verosimilhança, mas o jogo de poder se insinua com frequência e sutilmente.

Todas as adaptações aproveitaram a força de determinadas passagens do poema, integralmente assimiladas para as encenações. Noutras partes, desobedeceram completamente o esquema das rimas, posto que fizeram inversões, aproveitaram um verso de cada estrofe – sequencial ou não –, operaram supressões de palavras dentro dos versos, bem como saltaram à vontade entre os cantos originais. Dessa forma, os espetáculos adaptados reveem princípios instaurados por Camões, agora também escultura simbólica e de referência. Nesses cantos cênicos brasileiros e do Terceiro Mundo sobrevivem propostas libertárias de outros novos homens e mulheres. Estes e estas desconfiam de quaisquer discursos totalitários, com juízos críticos embasados em argumentos convincentes e cada qual a seu modo, à luz do pensamento contemporâneo. Nos espetáculos, eles são tratados ora com ironia e sarcasmo, ora com respeito crítico ou mesmo com pouca ênfase repetitiva – o que implica consequente perda da sua força original – e/ou ainda simplesmente eliminados por não estarem em primeiro plano nas novas criações. Há que se destacar a enorme tenacidade de todos os realizadores e há que se questionar, como se comprovam os depoimentos da maior parte dos envolvidos – considerados os entrevistados aqui –, os métodos adotados nas relações profissionais e humanas para a produção e realização dessas novas epopeias.

Aspectos relacionados aos personagens e o tratamento dado a eles dentro das encenações, analisados comparativamente, deixam rastros da autonomia da encenação. Diferentemente da matriz original do poema – por onde passaram todos os escritores e os encenadores –, no espetáculo de Nunes e Telles o poeta Camões se dilui nos jograis de arlequins, que perambulam pelo espaço cênico. Em Hillel e Siqueira, ele inicia entorpecido de lembranças. Quando desperto, decide ora narrar e ora distanciar-se dos fatos, sem contar as personagens dos

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deuses que narram em boa parte da trama em seu nome. Na montagem de Aurélio e Gomes, o poeta divide-se entre o Escrivão, Vasco e Vênus, além dos marinheiros. Vasco da Gama, n’ A Viagem de Nunes, está no globo de Da Vinci, alçado a herói. Em Hillel ele perde esse posto, mas a montagem também considera em relevo a renascença pelo símbolo semelhante, embora aqui Camões é quem aparece no globo. Não obstante, Vasco desempenha a função do líder de vigoroso espírito, bem como no espetáculo de Aurélio, aqui como líder de viés mais diplomático e com ares mais comerciais do que de batalhas rústicas.

O Velho do Restelo, na encenação de Nunes, discursa enquanto empreende ações definidas. A fala do ator acompanha as ações que procuram impedir a passagem dos espectadores para o plano superior, a qual dá sequência à encenação e que sai do espaço físico do porão – representação da Idade Média – para outro plano que simboliza o Renascimento, e, além disso, também retira os escravos dos seus lugares de trabalho. Em Hillel, a personagem utiliza-se da voz como elemento primeiro e principal – e voz é corpo – em dueto com o próprio Camões, quando este se coloca presente, como marinheiro, no discurso. No espetáculo de Aurélio, quase que solitário em destaque frontal característico do palco italiano, o Velho do Restelo faz um discurso contundente e direcionado tanto aos nautas quanto à plateia, esta em suposto plano do Cais em relação aos nautas que partem, dentro da história. O pensamento retrógrado representado pelo Velho do Restelo parece não mais se sustentar, nem tampouco o pensamento colonizador a mascarar dominações.

Os reis e personagens importantes das outras culturas são apresentados com poucas nuances e quase que de forma semelhante nas três encenações e nos textos adaptados, não obstante seus redutos nobres se apresentarem de formas distintas, adaptadas às estéticas e espaços de cada espetáculo. O gigante Adamastor é descrito como figura disforme e ameaçadora pela voz de um marinheiro e a cena é acompanhada de efeitos de luz e som que perpassam o espaço da cena e o público, na montagem de Nunes. A adaptação reúne o longo prenúncio de mortes e desgraças em uma frase. No espetáculo de Hillel, a personagem é uma voz que vem do alto e também preenche o espaço todo, em evidente sentido de ameaça opressiva aos nautas e por consequência a todos os espectadores

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dentro da sala. Na montagem de Aurélio, um ator que representa o gigante se traveste de poderes, aparecendo em plano superior ao de Vasco, portanto falando de cima para baixo, com figurino portentoso que lembra os deuses e o filme The Matrix. No entanto, nesse caso, o personagem utiliza indumentária que se aproxima do mentor de Neo, Morfheus, mas defende o pensamento totalitário das sentinelas do sistema, encabeçado pelo agente Smith.

Os deuses, no espetáculo de Hillel, à primeira vista aludem à sociedade vigiada pelo aparato tecnológico, hoje elevado à potência máxima, mas são enfraquecidos nesse sentido talvez pelo elenco bastante conhecido do público e pelos ares naturalistas de suas interpretações. Eles têm atitudes mais brandas, com exceção de Baco que se insinua em ira constante, atitude normal para o personagem dentro da trama do poema e nas três encenações. Na montagem de Nunes, os deuses também se apresentavam do alto e com distintas marcas do poder, mas não foram concebidos para uma linguagem multimídia. Desse modo, não reportam diretamente a outras linguagens e estabelecem o poder e as intrigas no etéreo em cena aberta sobre plataformas. No espetáculo de Aurélio, os deuses revestem seus poderes divinos pelas posturas eretas e rígidas e nos figurinos negros com aparência de monásticos ortodoxos. Comandam cenas e episódios por vezes, e circulam como que invisíveis em determinadas cenas a mostrar sua (oni) presença constante.

As renovações no que se refere às maneiras de interpretar de um ator são múltiplas e sempre recolocadas em questão, pelo viés positivo que isso significa, e parecem tender atualmente a um teatro mais calcado na narrativa em detrimento de uma antropologia do ator, mas os processos psicológicos aplicados às composições das personagens continuam discutidos e aplicados, bem como o trabalho psicofísico. No fundo, é sempre o trabalho humano como instrumento a ser aperfeiçoado para servir à arte. No caso das encenações investigadas, o realismo psicológico pouco se aplica, mas a voz e o corpo são preponderantes em todas elas, percebidas nas atuações e nos processos de trabalho.

Os espaços cenográficos dos espetáculos são distintos entre si, como mostra a investigação. Na montagem de Nunes o espaço estabelece principalmente a verticalidade na cena, mas não se atém a ela somente. Em Hillel, a longitudinalidade define o

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espaço; e no espetáculo de Aurélio é escolhida a frontalidade do palco italiano. A cenografia das encenações soube extrair o máximo das condições espaciais concedidas. Ao se referir principalmente à cenografia e à fundamental aliança entre encenadores e cenógrafos, Pavis (2010) reitera a importância das fidelidades artísticas expandidas a todos os artistas em seus agrupamentos integrados em torno de um espetáculo. Ainda que realçadas por nuances, elas somam talentos individuais em trabalho e fricção de confiança mútua na concepção das criações artísticas. É o momento vivo que conta quando a cena tem início.

Se a encenação é o teatro recolocado no seu lugar e “se concebe como uma performance que implica atividades e tarefas vivas e efêmeras” (PAVIS, 2010, p. 371), que se diversifica e se enriquece, o teatro pode-se colocar como um lugar, um espaço, um refúgio de vivências humanas para além dos cotidianos e para encontros significativos entre artistas e espectadores inquietos, em efemeridades instantâneas que não param de se movimentar em linha evolutiva. Diante das constatações que decompõe quaisquer certezas estéticas herdadas e deixam tudo com sinais de interrogação diante das novas criações, a encenação não parece, no entanto, esmorecer. Por instinto de sobrevivência, mascara suas formas e se transmuta constantemente, de modo a procurar a cumplicidade do espectador, do qual não pode prescindir. Lehmann (2007, p. 175) se esmera em conceituar a ilusão e suas camadas para mostrar que o teatro pode ir além do ilusionismo sem deixar de ser teatro. Pavis (2010, p. 365) reitera os fatores sociológicos que interferem na criação, como os efeitos da globalização e da economia privada.

No âmbito das verbas públicas, há uma recorrência de captações para poucos e grandes eventos, constatado pelo autor visivelmente na Europa e não apenas por lá, aspecto também percebido nas encenações investigadas e dentro da realidade brasileira. Torna-se óbvio que a produção de espetáculos e suas opções estéticas são atreladas às possibilidades de captação em maior ou menor grau pelas companhias. O teatro depende sim das leis do mercado e de condições econômicas. Demagogicamente, as velhas e novas artimanhas políticas utilizam-se das subvenções para continuar o entretenimento da sociedade do espetáculo. Assim, as receitas tendem mais às tentações decorativistas decantadas por Pavis (2010, p. 364), que

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apresentam os materiais construídos e expostos a provar os valores aplicados das subvenções, do que distribuídas em melhores remunerações aos atores, aos encenadores, aos escritores e à equipe de trabalho. O suor das horas de trabalho dos artistas e artesãos, assim transformados em peças de uma engrenagem maior, pouco aparece e portanto tem menor reconhecimento enquanto tal.

O teatro pós-dramático tem como uma de suas características um explícito desapego à demasiada importância dada ao texto, mas isso não é novidade. Constantin Stanislávski já deixava claro que o texto dramático tinha imenso valor em si, mas quando transposto para o teatro, esse valor deixava de ser preponderante. Somente ganhava sentido quando incorporado pelo ator, este indo além das camadas textuais, atravessado pela vida da personagem dentro da trama e pelas circunstâncias dadas a ela em relação com as demais personagens pela dramaturgia. O teatro, dessa maneira, novamente (ou antigamente) deixa clara a sua autonomia como linguagem. A relação entre o texto e a cena possivelmente sempre será complementar, nisso implicando um conflito permanente, nunca tido como aspecto negativo e sim como impulso provocadoramente criativo e essencial.

Afora esse aspecto, Lehmann (2007, p. 246) aponta como relevos do teatro pós-dramático a respiração, o ritmo e o instante da presença carnal do corpo e frisa que a procura agora é de um espaço e de um discurso sem hierarquia, unidade e sentidos fixáveis em uma multiplicidade de vozes. Nos espetáculos investigados estes termos todos encontram eco e são propícios a inúmeros questionamentos que se desdobram e mantém a discussão ativa sobre o próprio fazer artístico. Será porque estão enquadrados dentro das perspectivas pós-dramáticas ou porque o teatro nunca foi somente diálogo e sim multiplicidades de vozes, de signos, de símbolos, de sentidos? As desconstruções e a fragmentação do sentido, enfim, sempre geram novos e outros sentidos e construções.

As dificuldades de se colocar um trabalho teatral em cena no Brasil são notórias. A estética do cifrão – aquela que influencia na escolha de um espaço em detrimento de outro, de um elemento de cena em lugar de outro, de distintas possibilidades cenográficas, de um cachê aos atores e técnicos envolvidos – é largamente utilizada em uma infinidade de situações e não pode

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nem deve ser negligenciada. Um espetáculo teatral está em processo permanente dada a sua natureza e mesmo depois de sua estreia sofre alterações na sua espiral de fases, todas elas de vital importância para a vida cênica de uma proposta artística. Iluminar as polaridades e prismas a essas questões deixadas por vezes à sombra dos palcos e das coxias do cotidiano é oportuno. As poéticas teatrais sugerem sempre estar a serviço de um fazer coletivo. Tão impregnada de talentos individuais necessários, é obra essencialmente coletiva. Essa complexidade cênica deixa entrever fissuras e espaços que são preenchidos pelas questões que permeiam estudos históricos, antropológicos, psicanalíticos, linguísticos, semânticos entre outros, o que exige graus maiores de compreensão e estudo dos mais variados campos do conhecimento. Todo esse trabalho sem uma infraestrutura embasada de produção não existe e a autonomia de um encenador, portanto, é sustentada até certo ponto.

As três encenações, como se pôde perceber ao longo da pesquisa, contaram com estreitas cumplicidades. Os processos colaborativos, assim, mostram não ser novidade no panorama teatral brasileiro, ainda que por outros meios de organização da produção. O “como” se deram essas produções é, nesse sentido, diferenciado dos grupos constituídos e suas outras e novas formas de produção teatral. Estas pactuam de outras dinâmicas participativas quanto ao modus vivendi de núcleos coletivos de criação. Nesse sentido, as três montagens pesquisadas explicitam relações horizontais no que tange às questões da criação artística no feitio das obras e relações por vezes verticais no que dizem respeito às questões da produção executiva e financeira.

Essas dificuldades, no entanto, ficam ao longo do caminho e as poéticas teatrais permanecem como força de combate. As três abordagens são provas de um teatro vivo e vibrante, suas diferenças dialogam e se complementam, enquanto deixam vestígios de suas elaborações criativas e da receptividade junto a público e crítica brasileiros. O diálogo entre práticas e teorias da arte contemporânea, em particular o teatro, não estipula mais oposições determinadas entre artistas e espectadores, entre as práticas e as teorias, entre, enfim, a arte e o discurso sobre ela. E, em defesa do teatro e das relações entre as pessoas para além de bandeiras e nacionalidades, o tempo e a arte conseguiram unir autor e produtora portugueses e artistas criadores brasileiros,

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ainda que com inúmeros conflitos: encenadores, dramaturgos, atores, atrizes, músicos, compositoras, compositores, cantoras, cantores, bailarinas, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, músicos, administradores, costureiras, técnicos de palco..., em espetáculos que deixaram marcas nas memórias do seu público. O teatro canta, assim, outros imaginários permeados pela musa antiga, que fala a língua dos homens, deles e para eles, enquanto o tempo desfila suas datas.

As poéticas teatrais sinalizam criticamente as pretensões ufanas herdadas, mas reconhecem outros prismas da tradição que falam à atualidade e os mostram em distintas roupagens no contexto contemporâneo. No meio da miscelânea da vida, o teatro brasileiro está vivo enquanto se rein (Venta). No cenário atual brasileiro, o sentido de um texto para o palco e deste para o público pode continuar a ser uma das finalidades do trabalho teatral, embora se saiba claramente que o teatro não é mais – se é que de fato um dia foi ou era apenas sombra de imaginários ufanos da vocação em desespero – uma tábua de salvação para as agonias do mundo real. Antes tende a ser agonia e êxtase para os artistas e pode assemelhar-se mais a uma imagem sensível e em movimento do mundo na busca do sensível no homem que o habita.

As encenações, portanto, vagam entre a construção e a desconstrução, mas não são vagas e não se prestam a leituras interpretativas únicas, cada qual a seu modo. E fazem isso sem se importar demais com as muitas noções e nomenclaturas, que no fundo são mais irmãs que inimigas e só fazem confirmar batismos metafóricos de suas muitas máscaras, incessantemente, em águas sempre inquietas. As montagens aqui escolhidas comprovam e detectam a repetição dos mitos no teatro, mesmo nas formas atuais mais radicais. A memória individual é constituída e “iniciada” pela memória coletiva. Desse modo, qualquer individualismo – distinto do termo individualidade – autossuficiente se mostra limitado à arte teatral. O teatro, como espaço de memória frisado por Lehmann (2007, p. 317), precisa estar liberto das expectativas de ser soma de todas as artes. Disponível e aberto, pode assim continuar na busca de novos olhares calcados no presente, que mudam a cada piscar de pálpebras, sem perder a perspectiva do legado recebido nem tampouco do horizonte à frente. O teatro é o teatro.

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