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23-03-2017 Geração imparável. "Já passou mais um ano e ainda não dei a volta ao mundo" A carreira profissional já não é uma prioridade para todos, os planos de criar uma família ficam adiados para mais tarde. Pelo mundo, diz-se que são jovens irrequietos, imparáveis. Mas será que são? ZOOM (Texto) zoom pt Chamam-lhes "millennials" porque nas- ceram na viragem do milénio. Uma gran- de parte desta geração teve oportunida- de de concluir uma formação superior, cresceu com uma grande familiaridade com os novos meios de comunicação, informáticos e digitais, mas vive num contexto de indefinição e incerteza. A carreira profissional já não é uma prioridade para todos e os planos para constituir família ficam adiados para mais tarde. O dinheiro importa mas é para melhorar a qualidade de vida e não pela cegueira de possuir coisas. Pelo mun- do, diz-se que são jovens irrequietos, imparáveis. E em Portugal? O i vai publicar, nas próximas sema- nas, um conjunto de artigos sobre as ambições. preocupações e dificulda- des destes jovens, hoje entre os 22 e os 35 anos. O sociólogo Elísio Estanque considera que os jovens desta geração - a que nos referiremos como "geração í" - debatem- se com mudanças muito significativa no mundo do emprego e da atividade profis- sional. O professor da Universidade de Coimbra, assinala que estes jovens cres- ceram num contexto de grande flexibili- zação das relações de trabalho, de globa- lização da economia e da digitalização. O contexto é de "risco e indefinição, de blo- queio de expectativas e de grande perple- xidade", afirma Estanque. Para o sociólo- go, não há dúvidas: estes jovens estão numa numa espécie de "encruzilhada", em que tudo é indefinido. "O conceito de carreira profissional está em desapareci- mento, as ideias de futuro parecem estar acorrentadas e condicionadas." Hoje, falamos de um dos impulsos peran- te a incerteza. Sair da zona de conforto para conhecer o mundo e em busca de si próprios. OS IMPARÁVEIS Rui Coelho tem 24 anos, é de Viana do Castelo e lembra que o seu fascínio por viajar começa logo em criança, quan- do ia a Amarante, de quinze em quin- ze dias, cortar o cabelo. "É claro que não cortava o cabelo com essa regula- ridade, mas o meu pai era de lá, usáva- mos isto como pretexto". Licenciado em Biologia, não sabe ao certo o que a vida profissional lhe reser- va. Entretanto, já fez de tudo um pouco, desde cuidar de vacas quando trabalha- va numa quinta nos Alpes suíços, a ser guia turístico pelas paisagens do Gerês. A grande paixão é a escrita e já foi premiado pelo talento mais do que uma vez. Os trocos que junta são para as via- gens que planeia: já visitou grande par- te da Ásia e já sonha com os próximos destinos. Rui fala de uma geração "abençoada" por muitos lugares do mundo ainda se manterem puros o suficiente para lhe ensinarem a ser e a estar de forma dife- rente, apesar da globalização existir. Este é um dos motivos para os millenials que- rerem desbravar o mapa-mundo. "Há sítios que ainda não se perderam como o nosso Porto ou Lisboa, que estão a ficar cidades turísticas. Hoje, neste tipo de cidades, muitas vezes apanhas um avião e sentes que não saíste do mesmo sítio: as lojas são as mesmas, as pessoas falam todas inglês, os restaurantes são todos iguais e não há nada de novo". Para Rui, as memórias da cidade de Amarante, que descobria em miúdo, são comparáveis ao que sente hoje quan- do ruma a um lugar remoto. "Viajar até a Amarante ou até ao Nepal tem o mes- mo sabor, porque o fascínio de viajar de quando era puto vinha pelos lugares valerem-se a si mesmos", diz. "Não é tanto a ânsia de andar de um lado para o outro, é mais o encanto de chegar a um lugar com uma identidade". Tiago Pinho, de 27 anos, é de Sever do Vouga mas está em Lisboa desde os 22. Quando era mais novo, "não percebia muito bem como é que os nossos ante- passados tinham descoberto o mundo se não ouvia as pessoas à minha volta falarem em viajar, era bué estranho", conta, sem esconder as palavras que a "geração i" usa inconscientemente e a demarcam dos mais velhos. Foi ainda em adolescente que Tiago começou a imaginar-se a fazer grandes viagens pela Europa, a planear "road trips" com os amigos e assim que come- çou a ganhar dinheiro, fez por concreti- zar todos os projetos. A trabalhar aqui e ali enquanto estudava, a carreira profis- sional nunca fez parte do menu do dia. Reinou sempre a ansiedade de "não estar a viver completamente". O medo de envelhecer e de não gozar a vida "como deve ser" criam uma pres- continua na pagina seguinte »

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Page 1: Geração imparável. Já passou mais um ano e ainda não dei a ... · 23-03-2017 01 >> 04 01 Rui, natural de Viana, é biólogo e trabalhou em La Fordaz, numa quinta produtora de

23-03-2017

Geração imparável. "Já passou mais um ano e ainda não dei a volta ao mundo" A carreira profissional já não é uma prioridade para todos, os planos de criar uma família ficam adiados para mais tarde. Pelo mundo, diz-se que são jovens irrequietos, imparáveis. Mas será que são?

ZOOM (Texto) zoom pt

Chamam-lhes "millennials" porque nas-ceram na viragem do milénio. Uma gran-de parte desta geração teve oportunida-de de concluir uma formação superior, cresceu com uma grande familiaridade com os novos meios de comunicação, informáticos e digitais, mas vive num contexto de indefinição e incerteza.

A carreira profissional já não é uma prioridade para todos e os planos para constituir família ficam adiados para mais tarde. O dinheiro importa mas é para melhorar a qualidade de vida e não pela cegueira de possuir coisas. Pelo mun-do, diz-se que são jovens irrequietos, imparáveis. E em Portugal?

O i vai publicar, nas próximas sema-nas, um conjunto de artigos sobre as ambições. preocupações e dificulda-des destes jovens, hoje entre os 22 e os 35 anos.

O sociólogo Elísio Estanque considera que os jovens desta geração - a que nos referiremos como "geração í" - debatem-se com mudanças muito significativa no mundo do emprego e da atividade profis-sional. O professor da Universidade de Coimbra, assinala que estes jovens cres-ceram num contexto de grande flexibili-zação das relações de trabalho, de globa-lização da economia e da digitalização. O contexto é de "risco e indefinição, de blo-queio de expectativas e de grande perple-xidade", afirma Estanque. Para o sociólo-go, não há dúvidas: estes jovens estão numa numa espécie de "encruzilhada", em que tudo é indefinido. "O conceito de carreira profissional está em desapareci-mento, as ideias de futuro parecem estar acorrentadas e condicionadas."

Hoje, falamos de um dos impulsos peran-te a incerteza. Sair da zona de conforto para conhecer o mundo e em busca de si próprios.

OS IMPARÁVEIS

Rui Coelho tem 24 anos, é de Viana do Castelo e lembra que o seu fascínio por viajar começa logo em criança, quan-do ia a Amarante, de quinze em quin-

ze dias, cortar o cabelo. "É claro que não cortava o cabelo com essa regula-ridade, mas o meu pai era de lá, usáva-mos isto como pretexto".

Licenciado em Biologia, não sabe ao certo o que a vida profissional lhe reser-va. Entretanto, já fez de tudo um pouco, desde cuidar de vacas quando trabalha-va numa quinta nos Alpes suíços, a ser guia turístico pelas paisagens do Gerês.

A grande paixão é a escrita e já foi premiado pelo talento mais do que uma vez. Os trocos que junta são para as via-gens que planeia: já visitou grande par-te da Ásia e já sonha com os próximos destinos.

Rui fala de uma geração "abençoada" por muitos lugares do mundo ainda se manterem puros o suficiente para lhe ensinarem a ser e a estar de forma dife-rente, apesar da globalização existir. Este é um dos motivos para os millenials que-rerem desbravar o mapa-mundo. "Há sítios que ainda não se perderam como o nosso Porto ou Lisboa, que estão a ficar cidades turísticas. Hoje, neste tipo de cidades, muitas vezes apanhas um avião e sentes que não saíste do mesmo sítio: as lojas são as mesmas, as pessoas falam todas inglês, os restaurantes são todos iguais e não há nada de novo".

Para Rui, as memórias da cidade de Amarante, que descobria em miúdo,

são comparáveis ao que sente hoje quan-do ruma a um lugar remoto. "Viajar até a Amarante ou até ao Nepal tem o mes-mo sabor, porque o fascínio de viajar de quando era puto vinha pelos lugares valerem-se a si mesmos", diz. "Não é tanto a ânsia de andar de um lado para o outro, é mais o encanto de chegar a um lugar com uma identidade".

Tiago Pinho, de 27 anos, é de Sever do Vouga mas está em Lisboa desde os 22. Quando era mais novo, "não percebia muito bem como é que os nossos ante-passados tinham descoberto o mundo se não ouvia as pessoas à minha volta falarem em viajar, era bué estranho", conta, sem esconder as palavras que a "geração i" usa inconscientemente e a demarcam dos mais velhos.

Foi ainda em adolescente que Tiago começou a imaginar-se a fazer grandes viagens pela Europa, a planear "road trips" com os amigos e assim que come-çou a ganhar dinheiro, fez por concreti-zar todos os projetos. A trabalhar aqui e ali enquanto estudava, a carreira profis-sional nunca fez parte do menu do dia. Reinou sempre a ansiedade de "não estar a viver completamente".

O medo de envelhecer e de não gozar a vida "como deve ser" criam uma pres-

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01 Rui, natural de Viana, é biólogo e trabalhou em La Fordaz, numa quinta produtora de queijo, onde juntou dinheiro para a viagem à Ásia

02 Ângela viajou pela primeira vez sozinha para a África do Sul. Tirou este registo no mecado de Rosebank art and Craft

03 Ângela, 24 anos, de Torres Vedras está a a viajar sozinha pela Ásia

04 Inês Vouga, 27 anos, é licenciada em Direito e mestre em Economia Social.

—23 março 2017 O 27

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23-03-2017

Rita Miguel numa das suas viagens a Marrocos Dl<

• continuaçào da página anterior

são que é o mote energético para mais uma jornada fora de casa, explica.

Com esse embalo, Tiago já foi de Mar-rocos à Costa do Marfim sozinho, pas-sando por oito países a usar apenas transportes públicos. E já fez outras via-gens, mas mesmo assim não chega. Sen-te-se assombrado pela rapidez com que o tempo passa: "dou por mim a pensar já passou mais meio ano e ainda não dei a volta ao mundo", sorri. Para os millenials como o Tiago, uma coisa é certa: não gostam do que está pronto a consumir•. No caso das viagens e do turis-mo massificado, pior um pouco. "Gos-to de ir e conhecer a forma como as pes-soas vivem, conhecer a cultura, respei-tar as tradições dos sítios".

A constante insatisfação é uma sensa-ção partilhada por Ângela Pereira, de 24 anos, que está agora no Vietname. A semente que daria origem a uma viajan-te imparável foi alimentada pela curio-sidade inata mas também pelos pais que a levaram sempre a viajar em família.

"Faz parte da minha personalidade a constante insatisfação", explica Ângela. "Não é repúdio à rotina mas, se os dias se tornam muito parecidos, começo a sentir-me doida".

A jovem de Torres Vedras, licenciada em Ciências da Comunicação, diz que a felicidade "tem passado muito pela incer-teza, pela descoberta, pelo novo." Despe-diu-se do trabalho que tinha, interrom-peu o mestrado e foi, no ano passado, sozinha durante três meses para a Áfri-ca do Sul. Hoje, considera que fez uma boa escolha para a sua primeira grande viagem sozinha, mas admite que se man-dou de cabeça. E ao início foi complica-do. "Não que tenha batido no fundo, andei ali a patinar. Foi um choque, mas acho que aprendemos com as dificuldades e é assim que crescemos. Tomei-lhe o gosto e fez-me abrir os olhos para a realidade".

Assim que voltou a Portugal, Ângela já tinha a ideia de trabalhar durante o verão para voltar à estrada. Despediu-se nova-mente e mandou-se numa aventura pela Ásia. Para Ângela esta geração está a mudar a forma de estar no mundo, a mudar um ciclo. "Já não compramos casa, trabalhamos a recibos verdes, a sociedade em si empurra-nos para esta incerteza, tudo é inconstante. Eu sinto que estamos a contrariar o passado, tor-namo-nos cada vez mais espirituais e damos valor a coisas que os nossos pais não davam".

Rui Coelho, o jovem vianense, concor-da com 'Angela. Depois de ter feito sete vezes várias etapas do Caminho de San-tiago, considera que a viagem é um pro-cesso espiritual e de autoconhecimento. "A nossa geração é muito diferente da dos nossos pais. A nossa infelicidade e o estado precário das coisas abrem portas para muitos caminhos".

Os três jovens concordam que a "gera-ção i" quer cortar com aquilo que eram as necessidades das gerações passadas, acima de tudo por não concordar com elas. Rui não tem meias palavras: para ele, a geração dos pais pode ser descri-ta como disfuncional. "Eles eram ricos e não sabiam, eram cegos pelo 'ter coi-sas'. Mas nós vimos que viveram uma mentira, crescemos a vê-los afundar, a perder o que compraram com dinheiro que não tinham, a divorciar-se de pes-soas que não amavam. Então porquê acreditar no estilo de vida deles?".

Micael Azevedo, de 27 anos, tem a mes-ma opinião. Desistiu da faculdade quan-do foi de intercâmbio para o Brasil. "Esta-va farto de 'power points', queria ver o mundo. Decidi ir para o Brasil por isso mas chego lá e levei outra vez com o mes-mo estilo de ensino. Pensei: vou viajar pelos países aqui à volta."

Ninguém quis ir com ele, por isso foi sozinho. É isto que fazem os "impará-veis" da "geração i". O jovem natural do

Porto, começou por visitar família que tinha no Rio de Janeiro e a seguir foi conhecer o resto da América do Sul. Che-gou a viver numa comunidade indígena como intérprete de português/inglês e quando voltou a Portugal sentiu que tinha de voar outra vez.

Hoje já passaram seis anos desde que saiu de Portugal, onde vem sempre de passagem apenas matar saudades e ago-ra está na Bulgária, onde trabalha numa companhia aérea. Para Micael, "é preci-so uma boa dose de loucura para sermos felizes". Mas também é preciso algum tino."Cheguei a dormir na praia, a can-tar na rua para desenrascar, mas sem-pre soube que, se precisasse, tinha uma família para onde voltar". O ímpeto para querer sempre descobrir mais assenta numa ideia simples: vivemos num pla-neta com "infinitos sabores para provar, cheiros diferentes, pessoas e línguas novas para conhecer. Não quero saber do número de países que já conheci mas sim do que aprendi em cada um".

"Espero que daqui a dez anos olhemos para esta

geração e vejamos Os resultados de uma

geração irrequieta"

"É preciso uma boa dose de loucura para sermos

felizes, mas é preciso termos noções de segurança"

Rita, 23 anos é do Porto e está neste preciso momento sozinha a viajar pela América Central. Agora encontra-se na Costa Rica, onde tem estado a trabalhar em troca de estadia Em breve segue para a Nicarágua e ainda não sabe se irá fazer voluntariado ou continuar a trabalhar• em troca de teto.

Sair da zona de conforto sempre fez parte dos planos. Até porque se sente inconformada com a situação do país: quando voltou a Portugal no meio de uma das suas várias viagens, tentou encontrar trabalho mas sempre sem efeito.

Cansada de enviar currículos, decidiu que manter-se pela estrada era uma melhor opção. Agora tem um lugar na internet "onewayticket.website" onde partilha as suas aventuras juntamente com os amigos com quem viajou à boleia mais que uma vez.

Há quem viaje para se conhecer, há quem esteja viciado na adrenalina de conhecer o que está longe, há quem gos-te da incerteza, mas para Inês Vouga, 27 anos, especializada em Economia Social, as viagens têm de ter um caráter inter-ventivo. Ou não fossem as causas outro motor dos millennials.

Inês passou por vários países, em Áfri-ca e na Europa e sente que faz parte de uma geração cada vez mais irrequieta. resultado da constante informação com a qual é bombardeada desde sempre. É responsável por projetos de intervenção social a nível local e internacional e sen-te que, neste momento da sua vida, qua-se dez anos depois de ter iniciado a sua jornada por vários lugares e contextos sociais, sente que pode fazer a diferen-ça estando na sua cidade.

Inês acha gritante a desigualdade social dos nossos dias e espera que a sua gera-ção possa fazer a diferença. "Espero que daqui a dez anos olhemos para esta gera-ção e vejamos os resultados de uma gera-ção irrequieta".