geografia isso serve em primeiro lugar pra fazer a guerra - yves lacoste

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A GEOGRAFIAISSO SERVE, EM PRIMEIRO LUGAR, PARA FAZER A GUERRA

Y V E S

L A C O S T E

APRESENTAO- Jos William Vesentini No se deve aceitar sem mais os termos usuais de um problema, escreveu em 1935 um conhecido filsofo. A atitude crtica implica aqui em repropor, recriar a interrogaao, pois no h uma pergunta que resida em ns e uma resposta que esteja nas coisas: a soluo est tambm em ns e o problema reside tambm nas coisas. H algo da natureza da interrogao que se transfere para a resposta. Yves Lacoste, neste livro, parece ter assimilado de forma notvel esse ensinamento. Procurando interrogar a geografia, o saber geogrfico e as prticas que o constituem ou implementam, Lacoste deixa de lado algumas velhas e renitentes questes e prope outras. A pergunta essencial, que perpassa todos os captulos da obra e norteia seus contedos, esta: para que serve a geografia? Ou, em outros termos, qual a sua funo social? Possui ela alguma outra utilidade que no seja a de dar aulas de geografia? (e, afinal, por que existem essas aulas?) Os termos usuais dessa problemtica, como sabemos, costumam ser outros: o que geografia? Ela ou no uma cincia? Ao reelaborar essas questes, o Autor evita o ardil positivista do "objeto especfico de estudos" a ser delimitado - complementar quele da cientificidade como deus ex machina dos dramas da Razo -, enveredando por um terreno mais profcuo: o da prxs dos gegrafos, do papel poltico-estratgico desse saber denominado geogrfico. A principal resposta que Lacoste fornece ao seu questionamento constitui o prprio ttulo do livro: isto - a geografia - serve em primeiro lugar (embora no apenas) para fazer a guerra, ou seja, para fins politico-militares sobre (e com) o espao geogrfico, para produzir/reproduzir esse espao com vistas (e a partir) das lutas de classes, especialmente como exerccio do poder. Ser ou no ser de fato uma cincia pouco importa, em ltima anlise, argumenta o Autor. O fundamental, a seu ver, que, malgrado as aparncias mistificadoras, os conhecimentos geogrficos sempre foram, e continuam sendo, um saber estratgico, um instrumento de poder intimamente ligado a prticas estatais e militares. A geopoltica, dessa forma, no uma caricatura e nem uma pseudogeografia; ela seria na realidade o mago da geografia, a sua verdade mais profunda e recndita. Duas so as formas de geografia que existem hoje, na interpretao de Lacoste: aquela dos pesquisadores universitrios e dos professores, das teses e monografas, das lies de sala de aula e dos livros didticos - e tambm a "turstica" dos meios de comunicao de massas e das enciclopdias (o Autor no homogeneiza todas essas variadas modalidades de "geografia", mas apenas as coloca num mesmo lado dessa sua percepo binria); e aquela outra, a fundamental, praticada pelos estados-maiores, pelas grandes empresas capitalistas, pelos aparelhos de Estado. Esta ltima a mais antiga, tendo surgido desde o advento dos primeiros mapas, que seriam provavelmente coevos da organizao societria com o poder poltico institudo enquanto Estado. E a "geografia dos professores" mais recente, do sculo XIX, tendo sido engendrada especialmente para servir como discurso ideolgico de mistificao do espao, de "cortina de fumaa" para escamotear a importncia estratgica de saber pensar o espao e nele se organizar. Ao se dirigir de forma particular a estes ltimos, aos pesquisadores universitrios e professores de geografia, que so os interlocutores

por excelncia desta obra, Lacoste reitera insistentemente uma advertncia: temos que assumir aquilo que sempre exorcizamos, isto , nossa funo de estrategistas, de saber-pensar o espao para nele agir mais eficientemente. Superar o vis ideolgico da geografia, nesses termos, nada mais seria do que encetar uma geopoltica dos dominados", um saber-pensar o espao na perspectiva de uma resistncia popular contra a dominao. Incorporar e primaziar o poltico na abordagem geogrfica: esta , portanto, a grande proposio que este livro divulga e ilustra em filigrana praticamente a cada pgina. Mas no se trata de a poltica e sim de o poltico. No o indivduo que se ocupa profissionalmente dessa atividade e sim o processo, o fenmeno ou o enigma do poltico enquanto experincia fundante do social-histrico e, dessa forma, tambm do espacial (ao menos na sociedade moderna). A poltica sugere lugares tericos ou fatos institudos, com inteligibilidade pressuposta (temos o "espao" da poltica com referncia ao da economia da cincia, etc.), ao passo que o poltico pretende dar conta tambm do instituinte e do indeterminado, do poder como relao social que vai muito alm das idias, smbolos ou prticas engendradas a partir (ou com vistas) do Estado e dos partidos polticos (sejam legais ou clandestinos). A razo-de-ser da geografia seria ento a de melhor compreender o mundo para transform-lo, a de pensar o espao para que nele se possa lutar de forma mais eficaz. Mas de que mundo se trata? Qual a expresso ontolgica desse espao tematizado pela geografia? Apesar das implacveis e pertinentes crticas que faz escola geogrfica francesa, neste Ponto Lacoste se revela um herdeiro e continuador dessa tradio: a geograficidade (neologismo criado por analogia com historicidade), para ele, se define essencialmente com referncia cartografia e, de forma especial, noo de escala. Assim como o grande pensador de lena proclamava que tudo que real racional e tudo que racional real, pode-se dizer que para Lacoste o "real", o espao geogrfico, to somente aquilo que pode ser mapeado, colocado sobre a carta, delimitado portanto com preciso sobre o terreno e definido em termos de escala cartogrfica. Temos aqui o aspecto nodal da metodologia lacosteana, o aproche a partir de onde esse gegrafo francs profere agudas crticas s referncias espaciais de militantes polticos, historiadores, socilogos e outros, mas que, paradoxalmente, permite revelar com clareza os limites dessas mesmas crticas e das propostas de anlise que elas implicitamente encenam. Procurando construir uma rica estrutura conceitual que d conta do espao geogrfico hodierno, sendo este visto por um prisma emprico-cartogrfico, Lacoste exproba as ambigidades de noes como "pas", "regio", "Norte-Sul", "Centro-Periferia", "imperialismo" e outras, e prope como ponto de partida para se redefinir tais problemas as idias complementares de "espacialidade diferencial" e diferentes "ordens de grandeza", em termos de escala dos fenmenos espaciais. Nesse ato de identificao do geogrfico ao cartografvel, contudo, acaba-se estreitando o campo do poltico e denegando importantes aspectos das relaes de dominao. O corpo, os conflitos de geraes, os problemas da mulher e do feminismo, as classes sociais como autoconstituio pelas experincias de lutas: esses temas, e outros congneres, esto a princpio interditados ao mtier do gegrafo, conforme fica explcito na parte do livro onde o Autor desanca aqueles que pretendem orientar uma geografia poltica em direo ao poder visto ao nvel de relaes no-cartografveis. No se estaria assim condenando o gegrafo a somente estudar as aparncias? Apesar da palavra dialtca, que Lacoste utiliza neste e noutros livros, no seria essa uma opo de reservar geografia apenas

certos aspectos da realidade tal como ela pode ser entendida pela lgica identidrla? fora de dvida que este um trabalho (ou um ensaio-panfleto, na designao que lhe deu Franois Chtelet, aceita depois por Lacoste e incorporada terceira edio francesa) polmico, de denuncia e de chamamento responsabilidade poltica. Inmeras idias poderiam ainda ser questionadas: a simplificao do papel social da "geografia dos professores", a no-percepo das relaes sujeito-objeto e da historicidade do saber e da prtica na concepo demasiado ampla de geopoltica, a mitificao ou fetichismo das cartas elaboradas pelos poderes institudos, etc. Mas nenhum questionamento de tal ou qual aspecto da obra poder anular os seus mritos, que so muitos e significativos. Trata-se seguramente de uma das mais importantes anlises crticas feitas nas ltimas dcadas, no bojo da "crise da geografia", com idias extremamente controversas, porm originais e instigantes. Em suma, um texto de leitura obrigatria para todos aqueles que se preocupam com a histria dos conhecimentos geogrficos, com o ensino da geografia, com o espao enquanto dimenso material dos entrelaados dispositivos de poder e de dominao. A presente edio brasileira deste livro, nas atuais circunstncias, deveras oportuna. Devido a certas vicissitudes*, as idias aqui expostas acabaram no conhecendo no Brasil a circulao e os debates que elas merecem. certo que surgiu, por volta de 1978, uma "edio pirata" da obra, feita a partir da traduo de Portugal; e tambm foram tiradas centenas ou milhares de cpias xerografadas de livros dessa edio, face ao interesse que o texto despertou. Mas isso tudo foi ainda insuficiente. A expectativa de uma nova edio tem sido grande, nos ltimos anos, por parte de professores, pesquisadores e estudantes de geografia. E isso no s devido ao esgotamento dessas edies, a portuguesa e a "pirata", mas tambm por causa de alguns qiproqus interpretativos suscitados por essa traduo (ou, talvez, pelo prprio texto original de 1976, pois Lacoste reelaborou determinados pontos na segunda edio francesa de 1982, e principalmente na terceira e ltima at o momento, de 1985, admitindo, com autocrtica que s o engrandece, que alguns deles no estavam formulados corretamente na primeira edio). Entre esses imbrglios que convm tentar desfazer, adquire especial relevo, pelo menos no contexto intelectual e poltico brasileiro, a leitura "marxista" dogmtica das idias aqui desenvolvidas. O prprio Lacoste no est completamente isento de culpa na medida em que, no texto de 1976, a par da marcada influncia de Foucault (uma referncia sem dvida antpoda a qualquer forma de dogmatismo), existia igualmente um certo flerte com Althusser. Na presente edio brasileira, com nova traduo feita a partir da edio francesa de 1985, pode-se avaliar com clareza que as reflexes do Autor no sentido de aprimorar este trabalho acabaram distanciando cada vez mais suas idias do althusserianismo, que afinal se constitui no somente numa certa leitura economicista de Marx, mas, e principalmente, numa prtica poltica caracteristicamente stalinista*. Procurando enfatizar o poltico, as relaes de poder, as estratgias que no seu entrechoque (re)instituem permanentemente o social e o espacial, Lacoste adverte que necessrio recusar o primado do econmico, recusando ipso facto os rgidos conceitos prefixados e a percepo teleolgica do processo histrico. O Autor se serve de Marx - como tambm de Foucault, de Clausewitz e at de Lefort (cuja leitura pode ser deduzida em especial

na questo do poltico)-, mas sem cair no dogmatismo, na exegese de textos (ou conceitos) sagrados. H cerca de dez anos atrs, quando este trabalho na sua verso primeira circulou entre ns, gegrafos brasileiros, vivencivamos ento um confronto entre tradicionalistas e adeptos de uma geografia nova ou crtica. As idias lacosteanas, bem ou mal, por via direta ou, principalmente e infelizmente, indireta (atravs de obras que reelaboraram suas idias, em geral por uma tica economista e dogmtica, e acabaram preenchendo o vcuo deixado pelo esgotamento do livro e sua no-reedio em portugus), desempenharam um importante papel de fomento da renovao, de subsdios para a crtica da geografia tradicional e tentativas de construo de um saber geogrfico comprometido com as lutas sociais por uma sociedade mais justa e democrtica. J esta nova edio da obra vem encontrar a geografia brasileira noutra situao, num momento em que a polmica geografia tradicional versus geografia crtica vai paulatinamente cedendo terreno s disputas no interior mesmo desta(s) ltima(s). medida que se desenvolve e ganha espaos, a geografia nova ou crtica se revela cada vez mais como plural. H aqueles que procuram reduzir o discurso geogrfico a uma "instncia" do marxismo-leninismo (e stalinismo): apenas se acrescenta, sem grande reflexes filosficas, a palavra "espao" aos conceitos j institucionalizados - formao econmico-social, modo de produo, classes sociais definidas pela produo, imperialismo, ideologia como mistificao, etc. - e, abracadabra, j se tem a "cincia do espao" no interior do materialismo histrico entendido de forma mecanicista e at positivista. Mas h tambm aqueles que recusam a supervalorizao de sistemas e conceitos, que procuram apreender o real em seu movimento - com a ajuda de textos clssicos, inclusive de Marx, mas sem mitific-los -, o que vale dizer que esse real no tomado como pretexto para se ilustrar a teoria "revolucionria" j pronta, mas sim que sua natureza "viva" ou histrica determina uma recriao constante das expresses tericas. com estes ltimos que esta obra que temos em mos dever se identificar mais. Porque ela uma obra "aberta" no sentido de "ao pensar, dar a pensar", no sentido de no apresentar ao leitor um sistema fechado e fruto de uma pretensa "iluminao" (qualquer que seja a forma pela qual ela se consubstancie: pelos debates no "coletivo" do partido, pela representao da "comunidade" de interessados, etc.), e sim de deixar s vistas os prprios rastros de seu caminho. Cabe agora a ns, leitores, examinar este livro com esprito crtico, mas livre de preconceitos ou pr-julgamentos, com o esprito de se acercar da obra no como algum que contempla uma teoria acabada e determinada e sobre ela sentencia, mas sim como quem mergulha nos resultados (provisrios, mas importantes) e no percurso (tortuoso, certo) de um trabalho de reflexo que constitui um fruto de toda uma vida de pesquisa e docncia em geografia, de debates e trocas de experincias com colegas de mltiplas tendncias, com alunos, com setores populares, com militantes, polticos da esquerda. Enfim, uma expresso terica originria de uma experincia de vida com a qual grande parte de ns poder se identificar, mutatis mutandis e que por esse motivo nos ensinar muito inclusive naqueles pontos em que estivermos em desacordo. So Paulo, abril de 1988 Jos William Vesentini

A PROPSITO DA TERCEIRA EDIOQuando este pequeno livro surgiu em 1976, houve um belo escndalo na corporao dos gegrafos universitrios, um escndalo to grande que muitos deles se asfixiavam de indignao: foi o caso, por exemplo, daquele que dava as cartas no "Collge de France", e que, estando na poca encarregado da crnica mensal de geografia do Le Monde, escrevia nas colunas desse jornal que ele se recusava a tomar conhecimento desse "pequeno livro azul" (de fato sua capa era azul), por lhe parecer terrvel o que ali se podia ler, Se houve poucas resenhas nas diversas revistas de geografia, as intenes implcitas nos corredores eram claras: venenosas e triunfantes entre aqueles que j no tinham simpatia por mim (desde minha Geografia do subdesenvolvimento); incrdulas e constrangidas por parte de meus amigos. Por causa disso perdi muitos amigos, entre os quais um dos mais estimados e antigos, apesar de meus esforos para dissipar os mal-entendidos. que para esta corporao aparentemente serena, mas no fundo bastante complexada, to pouco afeita reflexo epistemolgica, mas to ansiosa de ser reconhecida como cincia, esse pequeno livro dizia coisas de tal forma chocantes e provocava um tal mal-estar que o significado de seu ttulo foi, voluntariamente e/ou involuntariamente, deformado: em lugar de ler "a geografia, isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra" subentendido : isso serve, tambm, para outras coisas e isso est sobejamente claro no texto) quiseram provar, exausto, que Lacoste, gegrafo levado por no se sabe que tipo de delrio masoquista ou suicida, tinha proclamado que a geografia servia somente para fazer a guerra. Era, para certos indivduos um meio cmodo de tentar desqualific-lo facilmente; outros reduziam o alcance do livro quilo que os havia mais surpreendido e causado mal-estar, pois era difcil refut-lo. Com a exceo de alguns, os marxistas gegrafos (aqueles para os quais o discurso marxista tem mais importncia do que o raciocnio geogrfico) no foram os ltimos a condenar ... em nome da cincia. Se esse ttulo escandalizou os gegrafos, ele encantou, em contrapartida, todos aqueles - e eles so numerosos - que, desde o curso secundrio, conservam uma pssima lembrana da geografia e sobretudo os historiadores, porque eles tiveram de "fazer geografia" contrariados e forados, para obter a licena ou para se submeter a "agrgation"*; a lembrana dos cortes geolgicos lhes d um gosto de vingana. Para todos estes, mormente se so "de esquerda" e compartilham suas tradies antimilitaristas, se um gegrafo vem proclamar que a geografia basicamente uma questo de foras armadas, isto vem a ser a prova de que essa disciplina, que eles j consideravam como imbecil, fosse, no fundo, bem malfica. Para eles era, portanto, um novo motivo, e excelente, de reduzir ainda mais a audincia. Contudo, no houve na seara dos historiadores maior nmero de resenhas que entre os gegrafos. De fato, aqueles que haviam se rejubilado de incio com o ttulo, descobriam sem dvida, ao ler o livro, que o mecanismo da geografia

socialmente bem mais importante do que eles queriam pensar e que a crtica que se fazia do discurso tradicional dos gegrafos era, com efeito, o meio de mostrar a utilidade fundamental de verdadeiros raciocnios geogrficos, no somente para os militares, mas tambm para o conjunto dos cidados, sobretudo quando eles precisam se defender. Em revanche, esse livro interessou os jornalistas - mesmo que tenha sido somente em razo do seu gosto pela novidade - e foi, em grande parte, graas a eles, que foi lido por um grande nmero de pessoas, no somente estudantes, mas tambm sindicalistas, militantes; no somente na Frana, mas tambm nos pases em que a vida poltica no repousa em bases democrticas. Foram impressos 24.000 exemplares deste livro - e ele foi abundantemente fotocopiado. A 2a edio (1982) apareceu com um volumoso posfcio. Realmente pareciame til republicar o texto inicial, mas tambm dizer sobre que pontos minha maneira de ver tinha se tornado diversa daquela de alguns anos atrs. para mim uma regra deontolgica, embora ela seja muito raramente aplicada no domnio das cincias sociais. Para esta 3a edio que aparece na srie "Fondations" eu preferi, finalmente, reintegrar ao texto inicial diferentes partes do prefcio de 1982 e novas proposies, lembrando contudo quais haviam sido meus pontos de vista anteriores. Eu acredito ser oportuno juntar no fim desta obra trs textos recentes que me parecem teis. Com efeito, muitas coisas se agitam agora entre os gegrafos. Quando eu escrevi este livro, em 1976, comeava a aparecer Hrodote, a revista que eu pude criar, graas ao apoio de Franois Maspero. A nmero 1, hoje no mais encontrada, foi, de fato, o primeiro escndalo que abalou a corporao dos gegrafos universitrios, em primeiro lugar devido ao subttulo que indica as orientaes da revista: Estratgias - Geografias - Ideologias. Que escndalo confrontar a geografia no cincia e aos seus critrios, mas s estratgias e ideologias! Tambm, escndalo para os historiadores que gegrafos se apoderem do "pai da histria", no Ocidente. Mas Herdoto tambm o primeiro verdadeiro gegrafo e ele no escreveu uma histria mas sim uma enqute sobre os pases com os quais Atenas mantinha relaes ou estava em conflito. Esse primeiro nmero do Hrodote se iniciava com um manifesto editorial estardalhante redigido pelos jovens membros do secretariado da revista "Ateno Geografia!" Volta-se a l-lo com interesse. Foi porque nesse primeiro nmero muito se disse, mas no o bastante, que me pareceu necessrio escrever este livro o mais depressa possvel. Mas desde ento as idias continuaram a progredir no seio do pequeno grupo que anima a revista, desde suas origens: Batrice Giblin, Michel Foucher, Maurice Ronai, Michel Korinman.

Hrodote continua a existir em 1985: 35 nmeros foram publicados, cada qual centrado num tema preciso. Desde 1983 a revista aparece com o subttulo Revista de Geografia e de Geopoltica, o que explicita suas orientaes iniciais que no mudaram na essncia. Os gegrafos tm coisas a dizer em geopoltica.

Enquanto cada um no meio das cincias sociais reclama de uma interdisciplinaridade que uma forma de se esquivar dos problemas epistemolgicos especficos dos diferentes saberes, Hrodote fala da geografia e mostra o papel que podem ter os gegrafos. tambm a nica revista de geografia na qual regularmente escrevem cientistas polticos, socilogos, orientalistas, historiadores, antroplogos, filsofos, urbanistas ... e ela no somente lida por gegrafos, mas tambm por todos aqueles que comeam a se interessar pelo raciocnio geogrfico.

Hrodote se tornou, ao menos em volume de tiragem, a mais importante revista francesa de geografia e me agradvel lembrar que ela foi (e ainda o , em grande parte) a expresso das reflexes concernentes geografia de um pequeno grupo da universidade de "Vincennes" (hoje Paris - VIII) que nasceu dos fatos de Maio 68. Nos seus primeiros anos, Vincennes foi, sem dvida, um local de tumultos e de desordem, mas tambm (esquece-se bastante) um lugar de debates estimulantes e de discusses inovadoras entre os professores de diversas disciplinas, militantes de tendncias mais ou menos antagnicas da esquerda e da extrema-esquerda, jovens que acabavam de sair do secundrio, trabalhadores que nunca estiveram nos colgios, estudantes avanados que haviam obtido seus diplomas em outras universidades e que tinham vindo a Vincennes para ali encontrar outra coisa! Entre estes ltimos, os estudantes de histria eram muito crticos em relao geografia, sobretudo por causa do discurso sistematicamente apoltico que lhes havia sido transmitido at ento, e foram, no entanto, alguns deles que se interessaram por essa disciplina, a ponto de consagrar a ela o essencial de suas reflexes, aps eu ter lhes mostrado ser a geografia menos imbecil do que parecia.Sem dvida, a geografia se mostra burra, e necessrio diz-lo. Mas s se v uma parte e, tal como os grandes icebergs em que o essencial est imerso, preciso tomar cuidado: ela serve para fazer a guerra, para organizar os homens, mas tenta mostrar quais foram os desgnios da natureza - de Deus? Estratgias, ideologias: so os dois eixos deste livro e da reflexo da Hrodote para procurar compreender as funes desse saber enorme, e aparentemente to insignificante, que a geografia. Reflexo irreverente - mas no s isso: uma vez que se ousou dizer que o rei est nu, falta explicar por que ele rei, apesar de tudo. Na capa deste livro, o smbolo da revista, o ingnuo Herdoto, visto pelo talento impertinente de Wiaz. Ele empunha um instrumento anacrnico e um tanto quanto esdrxulo: um revlver munido de um silenciador, a terra, e o olhar de Herdoto inquietante, pois ele observa coisas que os outros no vem.

UMA DISCIPLINA SIMPLRIA E ENFADONHA ?

Todo mundo acredita que a geografia no passa de uma disciplina escolar e universitria, cuja funo seria a de fornecer elementos de uma descrio do mundo, numa certa concepo "desinteressada" da cultura dita geral ... Pois, qual pode ser de fato a utilidade dessas sobras heterclitas das lies que foi necessrio aprender no colgio? As regies da bacia parisiense, os macios dos Pr-Alpes do Norte, a altitude do Monte Branco, a densidade de populao da Blgica e dos Pases Baixos, os deltas da sia das Mones, o clima breto, longitude-latitude e fusos horrios, os nomes das principais bacias carbonferas da URSS e os dos grandes lagos americanos, a txtil do Norte (Lille-Roubaix-Tourcoing), etc. E os avs a lembrar que outrora era preciso saber "seus" departamentos, com suas circunscries eleitorais e subcircunscries ...tudo isso serve para qu? Uma disciplina maante, mas antes de tudo simplria, pois, como qualquer um sabe, "em geografia nada h para entender, mas preciso ter memria ..." De qualquer forma, aps alguns anos, os alunos no querem mais ouvir falar dessas aulas que enumeram, para cada regio ou para cada pas, o relevo - clima vegetao - populao agricultura - cidades - indstrias. Nos colgios se tem de tal forma "as medidas cheias" da geografia que, sucessivamente, dois Ministros da Educao (e entre eles, um gegrafo!) chegaram a propor a liquidao desta velha disciplina "livresca, hoje ultrapassada" (como se tratasse de uma espcie de latim). Outrora, talvez, ela tenha servido para qualquer coisa, mas hoje a televiso, as revistas, os jornais no apresentam melhor todas as regies na onda da atualidade, e o cinema no mostra bem mais as paisagens? Na Universidade onde contudo se ignora as "dificuldades pedaggicas" dos professores de histria e de geografia do secundrio, os mestres mais avanados constatam que a geografia conhece "um certo mal estar; um dos reitores da corporao declara, no sem solenidade, que ela "entrou na era dos quebras1". Quanto aos jovens mandarins que se lanam na epistemologia, eles chegam a ousar questionar se a geografia mesmo uma cincia, se este acmulo de elementos do conhecimento "emprestados" da geologia, da economia poltica ou da pedologia, se tudo isso pode pretender constituir uma verdadeira cincia, autnoma, de corpo inteiro ... Mas que diabo, diro todos aqueles que no so gegrafos, no h problemas mais urgentes a serem discutidos alm dos mal-estares da geografia ou, em termos mais expeditos, "a geografia, no temos nada a ver com ela..." pois isso no serve para nada. A despeito das aparncias cuidadosamente mantidas, de que os problemas da geografia s dizem respeito aos gegrafos, eles interessam, em ltima anlise, a todos os cidados. Pois, esse discurso pedaggico que a geografia dos professores, que parece tanto mais maante quanto mais as mass media desvendam seu espetculo do mundo, dissimula, aos olhos de todos, o temvel instrumento de poderio que a geografia para aqueles que detm o poder. Pois, a geografia serve, em princpio, para fazer a guerra. Para toda cincia, para todo saber deve ser colocada a questo das premissas epistemolgicas; o processo cientfico est ligado uma histria e deve ser encarado, de um lado, nas suas relaes com as ideologias, de outro, como prtica ou como poder. Colocar como ponto de partida que a geografia serve, primeiro, para fazer a guerra no implica afirmar que ela s serve para conduzir operaes militares; ela serve tambm para organizar territrios, so somente como previso das batalhas que preciso mover contra este ou aquele adversrio, mas tambm para melhor controlar os homens sobre os quais o aparelho de Estado exerce sua autoridade. A geografia , de incio, um saber estratgico estreitamente ligado a um conjunto de prticas polticas e militares e so tais prticas que exigem o conjunto articulado de

informaes extremamente variadas, heterclitas primeira vista, das quais no se pode compreender a razo de ser e a importncia, se no se enquadra no bem fundamentado das abordagens do Saber pelo Saber. So tais prticas estratgicas que fazem com que a geografia se torne necessria, ao Chefe Supremo, queles que so os donos dos aparelhos do Estado. Trata-se de fato de uma cincia? Pouco importa, em ltima anlise: a questo no essencial, desde que se tome conscincia de que a articulao dos conhecimentos relativos ao espao, que a geografia, um saber estratgico, um poder. A geografia, enquanto descrio metodolgica dos espaos, tanto sob os aspectos que se convencionou chamar "fsicos", como sob suas caractersticas econmicas, sociais, demogrficas, polticas (para nos referirmos a um certo corte do saber), deve absolutamente ser recolocada, como prtica e como poder, no quadro das funes que exerce o aparelho de Estado, para o controle e a organizao dos homens que povoam seu territrio e para a guerra. Muito mais que uma srie de estatsticas ou que um conjunto de escritos, a carta a forma de representao geogrfica por excelncia; sobre a carta que devem ser colocadas todas as informaes necessrias para a elaborao de tticas e de estratgias. Tal formalizao do espao, que a carta, no nem gratuita, nem desinteressada: meio de dominao indispensvel, de domnio do espao, a carta foi, de incio criada por oficiais e para os oficiais. A produo de uma carta, isto , a converso de um concreto mal conhecido em uma representao abstrata, eficaz, confivel, uma operao difcil, longa e onerosa, que s pode ser realizada pelo aparelho de Estado e para ele. A confeco de uma carta implica num certo domnio poltico e matemtico do espao representado, e um instrumento de poder sobre esse espao e sobre as pessoas que ali vivem. No de se estranhar que ainda hoje um nmero bem grande de mapas e sobretudo de cartas em escala grande, bastante detalhadas, aquelas que so chamadas correntemente de "cartas do estadomaior', tenham surgido do segredo militar em vrios pases. E particularmente o caso dos Estados comunistas. Se a geografia serve, em princpio, para fazer a guerra e para exercer o poder, ela no serve s para isso: suas funes ideolgicas e polticas, paream ou no, so considerveis: no contexto da expanso do pangermanismo (os imperialismos francs e ingls se desenvolveram mais cedo, em ambientes intelectuais diferentes) que Friedrich Ratzel (1844-1904) realizou a obra, que, ainda hoje, influencia consideravelmente a geografia humana; sua Antropogeografia est estreitamente ligada sua Geografia poltica. Retomando inmeros conceitos ratzelianos, tal como o do Lebensraum (espao vital) e os dos gegrafos americanos e britnicos (como Mackinder), o general gegrafo Karl Haushofer (1869-1946) d, em seguida Primeira Guerra Mundial, um impulso decisivo geopoltica. Sem dvida, numerosos gegrafos consideraro que a ltima incongruncia estabelecer uma aproximao entre sua geografia "cientfica" e o empreendimento do general, estreitamente ligado aos dirigentes do Partido Nacional-socialista. A geopoltica hitleriana foi a expresso, a mais exacerbada, da funo poltica e ideolgica que pode ter a geografia. Pode-se mesmo perguntar se a doutrina do Fhrer no teria sido largamente inspirada pelos raciocnios de Haushofer, de tal forma foram estreitas as suas relaes, particularmente a partir de 1923-1924, poca em que Adolf Hitler redigiu Mein Kampf, na priso de Munique. De 1945 para c, no mais de bom tom fazer referncias geopoltica. Contudo, de uma forma mais direta, as estratgias das grandes potncias continuam o gnero de pesquisa que os institutos de geopoltica de Munique e de Heidelberg haviam empreendido. Particularmente nos Estados Unidos, essa tarefa de pessoas que trabalharam sob orientaes de homens como Henry Kissinger (ele

fez seus primeiros estudos na qualidade de historiador; mas sua tese gira, j nessa altura, sobre uma discusso geopoltica por excelncia: o Congresso de Viena). Hoje, mais do que nunca, so argumentos de tipo geogrfico que impregnam o essencial do discurso poltico, quer se refiram aos problemas "regionalistas", ou sobre os que giram, a nvel planetrio, em torno de "centro" e "periferia", do "Norte" e do "Sul". Mas a geografia no serve somente para sustentar, na onda de seus conceitos, qualquer tese poltica, indiscriminadamente. Na verdade, a funo ideolgica essencial do discurso da geografia escolar e universitria foi sobretudo a de mascarar por procedimentos que no so evidentes, a utilidade prtica da anlise do espao, sobretudo para a conduo da guerra, como ainda para a organizao do Estado e prtica do poder. E sobretudo quando ele parece "intil" que o discurso geogrfico exerce a funo mistificadora mais eficaz, pois a crtica de seus objetivos "neutros" e "inocentes" parece suprflua. A sutileza foi a de ter passado um saber estratgico militar e poltico como se fosse um discurso pedaggico ou cientfico perfeitamente inofensivo. Ns veremos que as conseqncias desta mistificao so graves. E o porqu de ser particularmente importante afirmar que a geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, isto , desmascarar uma de suas funes estratgicas essenciais e desmontar os subterfgios que a fazem passar por simplria e intil. Dizer que a geografia serve antes de tudo guerra e ao exerccio do poder no significa lembrar as origens histricas do saber geogrfico. A expresso antes de tudo deve ser entendida aqui, mas no no sentido de "para comear, outrora... mas no sentido de, "em primeiro lugar, hoje.... A rigor, os gegrafos universitrios consentem em evocar, da boca para fora, o papel de uma espcie de "geografia primitiva" (Alain Reynaud) na poca em que o saber estabelecido pela geografia do rei estava destinado no aos jovens alunos ou a seus futuros professores, mas aos chefes de guerra e queles que dirigem o Estado. Mas os universitrios de hoje consideram, todos, quaisquer que sejam suas tendncias ideolgicas, que a verdadeira geografia, a geografia cientfica (o Saber pelo Saber), a nica digna de se falar, s aparece no sculo XIX, com os trabalhos de Alexandre von Humboldt (1769-1859) e com os de seus sucessores nessa famosa Universidade de Berlim, criada por seu irmo, homem de primeiro plano do Estado prussiano. Na verdade, a geografia existe h muito mais tempo, no importa o que dizem os universitrios: as "grandes descobertas" no seriam talvez geografia? E as descries dos gegrafos rabes da Idade Mdia, tambm no? A geografia existe desde que existem os aparelhos de Estado, desde Herdoto (por exemplo, para o mundo "ocidental"), que em 446 antes da era crist, no conta uma Histria (ou histrias) mas procede a uma verdadeira "enqute" ( o ttulo exato de sua obra) em funo das finalidades do "imperialismo" ateniense. De fato, foi somente no sculo XIX que apareceu o discurso geogrfico escolar e universitrio, destinado, no que tinha de essencial (ao menos estatisticamente) a jovens alunos. Discurso hierarquizado em funo dos graus da instituio escolar, com seu coroamento sbio, a geografia na sua feio de cincia "desinteressada". Sem dvida, foi somente no sculo XIX que apareceu a geografia dos professores, que foi apresentada como a geografia, a nica da qual convm falar. Desde essa poca, a geografia dos oficiais, para se fazer discreta, no deixa contudo de existir com um pessoal especializado, cujo nmero no desprezvel, com seus meios que se tornaram considerveis (os satlites), seus mtodos, e ela continua a ser como h sculos, um temvel instrumento de poder. Esse conjunto de representaes cartogrficas e de conhecimentos bem variados, visto em sua relao com o espao terrestre e nas diferentes formas de prticas do poder, forma

um saber claramente percebido como estratgico por uma minoria dirigente, que a utiliza como instrumento de poder. geografia dos oficiais decidindo com o auxlio das cartas a sua ttica e a sua estratgia, geografia dos dirigentes do aparelho de Estado, estruturando o seu espao em provncias, departamentos, distritos, geografia dos exploradores (oficiais, freqentemente) que prepararam a conquista colonial e a "valorizao" se anexou a geografia dos estados-maiores das grandes firmas e dos grandes bancos que decidem sobre a localizao de seus investimentos em plano regional, nacional e internacional, Essas diferentes anlises geogrficas, estreitamente ligadas a prticas militares, polticas, financeiras, formam aquilo que se pode chamar "a geografia dos estados-maiores", desde os das foras armadas at os dos grandes aparelhos capitalistas. Mas essa geografia dos estados-maiores quase completamente ignorada por todos aqueles que no a executam, pois suas informaes permanecem confidenciais ou secretas. Hoje, mais do que nunca, a geografia serve, antes de tudo, para fazer a guerra. A maioria dos gegrafos universitrios imagina que, aps a confeco de cartas relativamente precisas para todos os pases, para todas as regies, os militares no tm mais necessidade de recorrer a este saber que a geografia, aos conhecimentos disparatados que ela rene (relevo, clima, vegetao, rios, repartio da populao, etc.). Nada mais falso. Primeiro porque as "coisas" se transformam rapidamente: se a topografia s evolui muito lentamente, a implantao das instalaes industriais, o traado das vias de circulao, as formas do habitat se modificam a um nico ritmo bem mais rpido e preciso levar em considerao essas transformaes para estabelecer as tticas e as estratgias. De outro lado, a elaborao de novos mtodos de guerra implica numa anlise bem precisa das combinaes geogrficas, das relaes entre os homens e as "condies naturais" que se trata justamente de destruir ou modificar para tornar tal regio imprpria vida, ou para encetar um genocdio. A guerra do Vietn forneceu numerosas provas de que a geografia serve para fazer a guerra de maneira a mais global, a mais total. Um dos exemplos mais clebres e mais dramticos foi a execuo, em 1965, 1966, 1967 e sobretudo em 1972 de um plano de destruio sistemtica da rede de diques que protegem as plancies densamente povoadas do Vietn do Norte: elas so atravessadas por rios caudalosos, com terrveis cheias que escoam no por vales mas, ao contrrio, sobre elevaes, terraos, que so formados por seus aluvies. Esses diques cuja importncia , de fato, absolutamente vital, no poderiam ter sido objeto de bombardeamentos macios, diretos e evidentes, pois a opinio pblica internacional ali teria visto a prova da perpetrao de um genocdio. Seria preciso, portanto, atacar essa rede de diques, de forma precisa e discreta, em certos locais essenciais para a proteo de alguns quinze milhes de homens que vivem nessas pequenas plancies, cercadas por montanhas. Era necessrio que esses diques se rompessem nos lugares em que a inundao teria as mais desastrosas conseqncias2. A escolha dos locais que era preciso bombardear resulta de um raciocnio geogrfico, comportando vrios nveis de anlise espacial. Em agosto de 1972, foi pela elaborao de um conjunto de raciocnios e de anlises que so especificamente geogrficas que eu pude demonstrar, sem ter sido contraditado, a estratgia e a ttica que o Estado-maior americano executava contra os diques. Se foi um procedimento geogrfico que permitiu desmascarar o Pentgono, isso se deu exatamente porque sua estratgia e sua ttica se aliceravam essencialmente sobre uma anlise geogrfica. Coube a mim reconstituir, a partir de dados eminentemente

geogrficos, o raciocnio elaborado para o Pentgono por outros gegrafos ("civis" ou de uniforme, pouco importa). O plano de bombardeamento dos diques do delta do rio Vermelho no deve ser considerado como um cometimento excepcional, aproveitando condies geogrficas muito particulares mas, bem ao contrrio, como uma operao que decorre de uma estratgia de conjunto: a "guerra geogrfica", que foi executada maciamente na Indochina e sobretudo no Vietn do Sul durante mais de dez anos; ela foi conduzida com uma combinao de meios poderosos e variados. Esta estratgia foi, freqentemente cognominada "guerra ecolgica" sabe-se que a ecologia um termo em moda. Mas de fato geografia que se deve referir, pois no se trata somente de destruir ou de transformar relaes ecolgicas; trata-se de modificar bem mais amplamente a situao em que vivem milhares de homens. De fato, no se trata somente de destruir a vegetao para obter resultados polticos e militares, de transformar a disposio fsica dos solos, de provocar voluntariamente novos processos de eroso, de desviar certas redes hidrogrficas para modificar a profundidade do lenol fretico (para drenar os poos e os arrozais), de destruir os diques: trata-se de modificar radicalmente a repartio espacial do povoamento praticando, por meios vrios, uma poltica de reagrupamento nos "hameaux* estratgicos" e a urbanizao forada. Essas aes destrutivas no representam somente a conseqncia involuntria da enormidade dos meios de destruio executados hoje, sobre um terminado nmero de objetivos, pela guerra tecnolgica e industrial. Elas so ainda o resultado de uma estratgia deliberada e minuciosa, na qual os diferentes elementos so cientificamente coordenados, no tempo e no espao. A guerra da Indochina marca, na histria da guerra e da geografia, uma nova etapa: pela primeira vez, mtodos de destruio e de modificao do meio geogrfico conjuntamente nos seus aspectos "fsicos" e "humanos" foram executados para suprimir as condies geogrficas indispensveis vida de vrias dezenas de milhes de homens. A guerra geogrfica, com mtodos diferentes segundo os locais, pode ser executada em todos os pases. Afirmar que a geografia serve fundamentalmente para fazer a guerra no significa somente que se trata de um saber indispensvel queles que dirigem as operaes militares. No se trata unicamente de deslocar tropas e seus armamentos uma vez j desencadeada a guerra: trata-se tambm de prepar-la, tanto nas fronteiras como no interior, de escolher a localizao das praas fortes e de construir vrias linhas de defesa, de organizar as vias de circulao. "O territrio com seu espao e sua populao no unicamente a fonte de toda fora militar, mas ele faz tambm parte integrante dos fatores que agem sobre a guerra, nem que seja s porque ele constitui o teatro das operaes..., escreveu Carl von Clausewitz (1780-1831), sobre o qual Lnin pode dizer que era "um dos escritores militares mais profundos... um escritor cujas idias fundamentais se tornaram hoje o bem de todo pensador. O livro de Clausewitz, Da guerra, pode e deve ser lido como um verdadeiro livro de "geografia ativa". Vauban (1633-1707) no foi somente um dos mais clebres construtores de fortificaes; foi tambm um dos melhores gegrafos de seu tempo, um daqueles que melhor conheceu o reino, particularmente no plano das estatsticas e das cartas; sua idia de "dizimo real" traduz uma concepo global do Estado que ele precisava reorganizar. Vauban aparece como um dos primeiros tericos e praticantes, na Frana, daquilo que hoje se chama de "amnagement"* do territrio. Preparar-se para a guerra, seja para a luta contra outros aparelhos de Estado, como para a luta interna contra aqueles que colocam em causa do poder, ou querem dele

se apossar, organizar o espao de maneira a ali poder agir do modo mais eficaz possvel. Em nossos dias, a abundncia de discursos que se referem ao "amenagement" do territrio em termos de harmonia, de melhores equilbrio a serem encontrados. serve sobretudo para mascarar as medidas que permitem s empresas capitalistas, sobretudo s mais poderosas aumentar seus benefcios. preciso perceber que o "amenagement " do territrio no tem como nico objetivo o de maximizar o lucro mas tambm o de organizar estrategicamente o espao econmico, social e poltico, de tal forma que o aparelho de Estado possa estar em condies de abafar os movimentos populares. Se isto bem pouco ntido nos pases h muito industrializados, os planos de organizao do espao so manifestamente bastante influenciados pelas preocupaes policiais e militares nos Estados em que a industrializao um fenmeno recente e rpido. importante hoje, mais do que nunca, estar atento a esta funo poltica e militar da geografia que sua desde o inicio. Nos dias atuai, ela se amplia e apresenta novas formas, por fora no s do desenvolvimento dos meios tecnolgicos de destruio e de informao, como tambm em funo dos progressos do conhecimento cientfico.

DA GEOGRAFIA DOS PROFESSORES AOS CRANS DA GEOGRAFIA-ESPETCULODesde o fim do sculo XIX pode-se considerar que existem duas geografias: - Uma, de origem antiga, a geografia dos Estados-maiores, um conjunto de representaes cartogrficas e de conhecimento variados de representaes cartogrficas e de conhecimento variados referentes ao espao; esse saber sincrtico claramente percebido como eminentemente estratgico pelas minorias dirigentes que o utilizam como instrumento de poder. - A outras geografia, a dos professores, que apareceu h menos de um sculo, se tornou um discurso ideolgico no qual uma das funes inconscientes, a de mascarar a importncia estratgica dos raciocnios centrados no espao. No somente essa geografia dos professores extirpada de prticas polticas e militares como de decises econmicas (pois os professores nisso no tem participao), mas ela dissimula, aos olhos da maioria, a eficcia dos instrumentos de poder que so as anlises espaciais. Por causa disso a minoria no poder tem conscincia de sua importncia, a nica a utiliz-las em funo dos seus prprios interesses e este monoplio do saber bem mais eficaz porque a maioria no d nenhuma ateno a uma disciplina que lhe parece to perfeitamente intil. Desde o fim do sculo XIX, primeiro na Alemanha e depois sobretudo na Frana, a geografia dos professores se desdobrou como discurso pedaggico de tipo enciclopdico, como discurso cientfico, enumerao de elementos de conhecimento mais ou menos ligados entre si pelos diversos tipos de raciocnios, que tm todos um ponto comum: mascarar sua utilidade prtica na conduta da guerra ou na organizao do Estado.

Entre, de um lado, as lies dos manuais escolares, o resumo ditado pelo mestre, o curso de geografia na Universidade (que serve para formar futuros professores) e, de outro lado, as diversas produes cientficas ou o amplo discurso que so as "grandes" teses de geografia, existem, evidentemente, diferenas: as primeiras se situam ao nvel da reproduo de elementos de conhecimentos mais ou menos numerosos, enquanto que as segundas correspondem a uma produo de idias cientficas e informaes novas - seus autores no imaginando, na maioria das vezes, o tipo de utilizao que poder ser feito. Eles vem os seus trabalhos por excelncia como um saber pelo saber e nem se pense em perguntar numa tese de geografia para o que, para quem todos esses conhecimentos acumulados poderiam servir (aos que esto no poder). Mas essas teses e essas produes cientficas s so lidas por uma pequena minoria e seu papel social bem menor que o dos cursos, das lies e dos resumos. Tambm no se pode julgar a funo ideolgica da geografia dos professores levando-se em considerao apenas suas produes mais brilhantes ou as mais elaboradas. Socialmente, apesar do seu carter elementar caricatural ou insignificante, as lies aprendidas no livro de geografia, os resumos ditados pelo mestre, tais reprodues caricaturais e mutilantes tm uma influncia consideravelmente maior, porque ,tudo isso contribui para influenciar permanentemente, desde sua juventude, milhes de indivduos. Essa forma socialmente dominante da geografia escolar e universitria, na medida em que ela enuncia uma nomenclatura e que inculca elementos de conhecimento enumerados sem ligao entre si (o relevo - o clima - a vegetao - a populao...) tem o resultado no s de mascarar a trama poltica de tudo aquilo que se refere ao espao, mas tambm de impor, implicitamente, que no preciso seno memria ... De todas as disciplinas ensinadas na escola, no secundrio, a geografia a nica a parecer um saber sem aplicao prtica fora do sistema de ensino. O mesmo no acontece com a histria, onde se percebe, no mnimo, as ligaes com a argumentao da polmica poltica. A exaltao do carter exclusivamente escolar e universitrio da geografia, tendo como corolrio o sentimento de sua inutilidade, uma das mais hbeis e das mais graves mistificaes que j tenha funcionado com eficcia, apesar de seu carter muito recente, uma vez que a ocultao da geografia na qualidade de saber poltico e militar data apenas do fim do sculo XIX. chocante constatar at que ponto se negligencia a geografia em meios que esto, no entanto, preocupados em repelir todas as mistificaes e em denunciar todas as alienaes. Os filsofos, que tanto escreveram para julgar a validade das cincias e que exploram hoje a arqueologia do saber, mantm um silncio total em relao geografia, embora esta disciplina, mais do que qualquer outra, merecesse ter atrado suas crticas. Indiferena ou conivncia inconsciente? A geografia dos professores funciona, at certo ponto, como uma tela de fumaa que permite dissimular, aos olhos de todos, a eficcia das estratgias polticas, militares, mas tambm estratgias econmicas e sociais que uma outra geografia permite a alguns elaborar. A diferena fundamental entre essa geografia dos estados-maiores e a dos professores no consiste na gama dos elementos do conhecimento que elas utilizam. A primeira recorre, hoje como outrora, aos resultados das pesquisas cientficas feitas pelos universitrios, quer se trate de pesquisa "desinteressada" ou da dita geografia "aplicada". Os oficiais enumeram os mesmos tipos de rubricas que se balbuciam nas classes: relevo - clima - vegetao - rios - populao ..., mas com a diferena fundamental de que eles sabem muito bem para que podem servir esses elementos do conhecimento, enquanto os alunos e seus professores no fazem qualquer idia.

preciso analisar os procedimentos que acarretam essa ocultao. Pois ela no o resultado de um projeto consciente, voluntrio, dos professores de geografia: deveras suas tendncias ideolgicas esto longe de serem idnticas. Se eles participam da mistificao, eles prprios so mistificados. Contudo, antes de procurar esclarecer isso, preciso assinalar que a geografia dos professores no o nico pra-vento ideolgico permitindo dissimular que o saber referente ao espao um temvel instrumento de poder. Em vrios pases, a geografia est ausente dos programas de ensino primrio e secundrio: o caso dos Estados Unidos, GrBretanha, e as massas a tambm no esto mais conscientes da importncia estratgica das anlises espaciais. que existe um outro pra-vento ideolgico. Sem dvida, as cartas, os manuais e os testes de geografia esto longe de ser as nicas formas de representao do espao; a geografia tambm se tornou espetculo: a representao das paisagens hoje uma inesgotvel fonte de inspirao e no somente para os pintores e sim para um grande nmero de pessoas. Ela invade os filmes, as revistas, os cartazes, quer se trate de procuras estticas ou de publicidade. Nunca se comprou tantos cartes postais, nem "se tiraram" tantas fotografias de paisagens como durante essas frias em que "se fez", com guias nas mos, a Bretanha, a Espanha ou ... o Afeganisto1. A ideologia do turismo faz da geografia uma das formas de consumo de massa: multides cada vez mais numerosas so tomadas por uma verdadeira vertigem faminta de paisagens, fontes de emoes estticas, mais ou menos codificadas. A carta, representao formalizada do espao que somente alguns sabem interpretar e sabem utilizar como instrumento de poder, largamente eclipsada no esprito de todos pela fotografia da paisagem. Esta ltima, segundo os "pontos de vista" e de acordo com as distncias focais das lentes das objetivas, escamoteia as superfcies, as distncias da carta, para privilegiar silhuetas topogrficas verticais que se recortam, em diorama, sobre fundo de cu. todo um condicionamento cultural, toda uma impregnao que incita tanto que ns achamos belas paisagens s quais no se prestava nenhuma ateno antes. No somente preciso ir ver tal ou tal paisagem, mas a fotografia, o cinema reproduzem infatigavelmente certos tipos de imagens-paisagens, que so, se as olharmos de mais perto, como mensagens, como discursos mudos, dificilmente decodificveis, como raciocnios que, por serem furtivamente induzidos pelo jogo das conotaes, no so menos imperativos. A impregnao da cultura social pelas imagens-mensagens geogrficas difusas, impostas pela mass media, historicamente um fenmeno novo, que nos coloca em posio de passividade, de contemplao esttica, e que repele ainda para mais longe a idia de que alguns podem analisar o espao segundo certos mtodos a fim de estarem em condies de a desdobrar novas estratgias para enganar o adversrio, e venc-lo. Assim, essa geografia-espetculo e a geografia escolar que se processam com mtodos to diferentes que pode at parecer paradoxal aproxim-las uma da outra, colocando em paralelo os efeitos ideolgicos dos westerns e o dos manuais de geografia, levam, contudo, aos mesmos resultados: 1 - dissimular a idia de que o saber geogrfico pode ser um poder, que certas representaes do espao podem ser meios de ao e instrumentos polticos: 2 - impor a idia de que o que vem da geografia no deriva de um raciocnio, sobretudo nenhum raciocnio estratgico conduzido em funo de um jogo poltico. A paisagem! Isso se contempla, isso se admira: a lio de geografia! Isso se aprende, mas no h nada para entender. Uma carta! Isso serve para qu? uma imagem para agencia de turismo ou o traado do itinerrio das prximas frias.

UM SABER ESTRATGICO EM MOS DE ALGUNSEm contrapartida, em numerosos Estados, a geografia claramente percebida como um saber estratgico e os mapas, assim como a documentao estatstica, que d uma representao precisa do pas, so reservados minoria dirigente. Os casos extremos dessa confiscao dos conhecimentos geogrficos em proveito da minoria no poder so fornecidos pelos Estados comunistas, onde as cartas detalhadas em grande escala so estritamente reservadas aos responsveis do Partido e aos oficiais das foras armadas e da polcia. Na URSS os estudantes de geografia so privados delas e fazem seus trabalhos prticos sobre cartas imaginrias. Explicam-se tais precaues pela ameaa externa, mas estas so bem suprfluas numa poca em que os satlites permitem a outra superpotncia estabelecer cartas, as mais detalhadas, do territrio adversrio. Esse confisco dos conhecimentos geogrficos essencialmente devido a problemas de poltica interna. O mesmo se passa em muitos pases do Terceiro Mundo, onde a venda de cartas em grande escala, que era relativamente livre na poca colonial, interditada hoje, por causa das tenses sociais. Na guerrilha, uma das foras dos camponeses a de "conhecer taticamente muito bem o espao no qual eles combatem mas, entregues a si prprios, sua capacidade se desmorona face a operaes de nvel estratgico, pois estas devem ser conduzidas numa outra escala, sobre espaos bem mais amplos que s podem ser representados cartograficamente. Uma etapa muito importante transposta no desenvolvimento da guerra dos "partisans"* quando se constitui um estado-maior onde se capaz de ler cartas; estas so, freqentemente, obtidas ao preo de grandes sacrifcios. A necessidade de saber ler uma carta se coloca tambm nas manifestaes urbanas, a guerrilha urbana, a guerra de rua; em certos pases (comunistas ou no), o pblico no pode conseguir um plano da cidade, mas somente os croquis dos locais freqentados pelos turistas; essa medida permite polcia montar um esquema, tanto mais eficaz quanto mais difcil for para outros conseguir representlo espacialmente. Aps vrias experincias desastrosas, o aprendizado da leitura de cartas aparece como tarefa prioritria para os militantes, num grande nmero de pases. No entanto, na maioria dos pases de regime democrtico, a difuso de cartas, em qualquer escala, completamente livre, assim como a dos planos da cidade. As autoridades perceberam que poderiam coloc-las em circulao, sem inconveniente. Cartas, para quem no aprendeu a l-Ias e utiliz-las, sem dvida, no tm qualquer sentido, como no teria uma pagina escrita para quem no aprendeu a ler. No que o aprendizado da leitura de uma carta seja uma tarefa difcil, mas ainda preciso que se veja o interesse em prticas polticas e militares: a livre circulao das cartas nos pases de regime liberal o corolrio do pequeno nmero daqueles que podem pretender investir contra os poderes estabelecidos,

em lugar de outros tipos de ao diversos daqueles convencionados num sistema democrtico. Contudo, a importncia da anlise geogrfica no se coloca somente no domnio da estratgia e ttica sobre o terreno, embora isso seja essencial em certas circunstncias. A ausncia quase total de interesse, em amplos meios, numa reflexo de tipo geogrfico, permite aos estados-maiores das grandes firmas capitalistas desdobrar estratgias espaciais onde a eficcia permanece, e em boa parte, no tanto por causa do segredo que os cerca, mas por causa da despreocupao dos militantes e dos sindicalistas quanto aos fenmenos de localizao; a anlise dos marxistas, que fundamentalmente de tipo histrico, negligencia quase totalmente a repartio no espao dos fenmenos que ela apreende teoricamente. Dever-se-ia citar e analisar mais freqentemente um dos mais clebres exemplos de estratgia espacial do capitalismo na regio de Lyon, a propsito do trabalho da seda, evocado, no entanto, em todos os manuais de geografia. De fato, na primeira metade do sculo XIX os capitalistas de Lyon encetaram uma verdadeira estratgia geogrfica para quebrar a fora poltica dos operrios: o trabalho da seda, at ento concentrado em Lyon, foi esfacelado num grande nmero de operaes tcnicas; eles foram disseminados por um grande raio, no campo: somente cada um dos mercantes-fabricantes sabia onde se encontravam seus ateliers. Com isso, os trabalhadores, dispersados, no podiam mais empreender ao conjunta. Belo exemplo de estratgia geogrfica do capitalismo que deveria ser motivo de meditao para cada militante. Longe de pertencer ao passado, esta estratgia sistematicamente empreendida desde alguns decnios, com o desenvolvimento dos fenmenos de sublocao e com as polticas de descentralizao industrial e de "amnagement" do territrio. Boa parte do pessoal que trabalha de fato para esta ou aquela grande firma industrial no se encontra mais nos estabelecimentos que dependem juridicamente dessa firma; ela se encontra dispersa numa srie de empresas dependentes: onde se encontram elas? Em quais pequenas cidades? Em quais campos? Onde elas recrutam seus operrios? No seria impossvel juntar informaes, mas por no se ter o hbito de prestar ateno a esses problemas, geralmente no se sabe nada, para a maior convenincia dos estados-maiores das grandes firmas. Nos meios "de esquerda denuncia-se regularmente a derrota da poltica de "amnagement" do territrio, sem se procurar ver em que tais "derrotas" (em vista dos objetivos oficialmente proclamados) permitem, de fato, frutuosos negcios para as empresas que, numa verdadeira estratgia de movimento, desviam rapidamente seus investimentos para se beneficiarem das numerosas vantagens que lhes so concedidas na instalao de uma nova fbrica revendida ou liquidada um pouco mais tarde ... Essa estratgia bem flexvel transportada para espaos mais amplos pelos dirigentes das multinacionais: eles investem e desinvestem em diversas regies de numerosos Estados para tirar o melhor proveito de todas as diferenas (salariais, fiscais, monetrias) que existem entre locais diversos. O sistema das multinacionais , sem dvida, bem analisado, mas somente no plano terico: uma anlise geogrfica precisa dos mltiplos pontos controlados por essas organizaes tentaculares no impossvel de ser feita e isso permitiria dirigir contra elas, aes imbricadas, denunciar bem mais eficazmente suas condutas concretas (sempre aperfeioando a teoria)- o saber geogrfico no deve permanecer como apangio dos dirigentes de grandes bancos; ele pode ser voltado contra eles, na condio de prestar ateno s formas de localizao dos fenmenos e cessar de evoc-los abstratamente.

Numa outra escala, a dos problemas que se colocam na cidade, surpreendente constatar a que ponto os habitantes (e mesmo os mais preparados politicamente) se acham incapacitados de prever as conseqncias desastrosas que acarretaro tal plano de urbanismo, tal empresa de renovao, que no entanto lhes concerne diretamente. As municipalidades, os promotores esto agora to conscientes desta incapacidade que eles no hesitam mais em praticar o "acordo" e de apresentar os planos dos futuros trabalhos, pois as objees so raras e fceis de iludir. Deveras, as representaes espaciais s tm verdadeiro significado para aqueles que as sabem ler, e esses so raros; dessa forma, as pessoas no iro perceber at que ponto foram enganadas, se no aps o trmino dos trabalhos, quando as modificaes se tomarem irreversveis, em boa parte. Esses poucos exemplos, sumariamente evocados, so suficientes, sem dvida, para dar uma idia da gravidade das conseqncias que resultam dessa miopia, dessa cegueira que, s vezes, mostram tantos militantes com respeito ao aspecto geogrfico dos problemas polticos. Quanto mais esses responsveis polticos, esses sindicalistas desempenham, um papel importante junto s massas explicando-lhes as origens histricas de uma situao, analisando as contradies de uma formao social, tanto mais eles negligenciam o saber estratgico que a geografia, da qual eles deixam o monoplio para uma minoria dirigente que, ela sim, sabe se servir, para manobrar eficazmente.

MIOPIA E SONAMBULISMO NO SEIO DE UMA ESPACIALIDADE TORNADA DIFERENCIAL preciso, pois, procurar quais podem ser as causas desta miopia, desta falta de interesse em relao aos fenmenos geogrficos e, sobretudo, compreender por que seu significado poltico escapa geralmente a toda gente, salvo aos estadosmaiores militares ou financeiros que, estes sim, esto perfeitamente conscientes. preciso, de incio, fazer referncias ao conjunto das prticas sociais e s diversas representaes de espaos que lhe so ligadas. Para compreender como possvel colocar esse problema, hoje, til ver como ele se transformou historicamente. Outrora, na poca em que a maioria dos homens vivia ainda para o essencial, no quadro da auto-subsistncia alde, a quase totalidade de suas prticas se inscrevia, para cada um deles, no quadro de um nico espao, relativamente limitado: o "terroir* da aldeia e, na periferia, os territrios que relevam das aldeias vizinhas. Alm, comeavam os espaos pouco conhecidos, desconhecidos, mticos. Para se expressarem e falar de suas prticas diversas, os homens se referiam, portanto, antigamente, representao de um espao nico que eles conheciam bem concretamente, por experincia pessoal. Mas, desde h muito, os chefes de guerra, os prncipes, sentiram necessidade de representar outros espaos, consideravelmente mais vastos, os territrios que eles dominavam ou que queriam dominar; os mercadores, tambm, precisam

conhecer as estradas, as distncias, em regies distantes onde eles comercializavam com outros homens. Para esses espaos muito vastos ou dificilmente acessveis, a experincia pessoal, o olhar e a lembrana no eram mais suficientes. ento que o papel do gegrafo-cartgrafo se toma essencial: ele representa, em diferentes escalas, territrios mais ou menos extensos; a partir das "grandes descobertas", poder-se- representar a terra inteira num s mapa em escala bem e este ser, durante muito tempo, o orgulho dos soberanos que o detm. Durante sculos, s os membros das classes dirigentes puderam apreender, pelo pensamento, espaos bastante amplos pata t-los sob suas vistas e essas representaes do espao eram um instrumento essencial da prtica do poder sobre territrios e homens mais ou menos distantes. O imperador deve ter uma representao global e precisa do imprio, de suas estruturas espaciais internas (provncias) e dos Estados que o contornam - uma carta em escala pequena que necessria. Em contrapartida, para tratar problemas que se colocam nesta ou naquela provncia, precisam de uma carta em escala maior, a fim de poder dar ordens a distncia, com uma relativa preciso. Mas para a massa dos homens dominados, a representao do imprio mtica e a nica viso clara e eficaz a do territrio aldeo. Hoje, as coisas mudaram muito e a massa da populao se refere, mais ou menos conscientemente, atravs de prticas as mais diversas, a representaes do espao extremamente numerosas que permanecem, na maioria dos casos, bastante imprecisas. De fato, o desenvolvimento das trocas, da diviso do trabalho, o crescimento das cidades, fazem com que para cada um o espao (ou espaos) limitado do qual ele pode ter o conhecimento concreto no corresponda mais que a uma pequena parte somente de suas prticas sociais. As pessoas, cada vez mais diferenciadas profissionalmente, so individualmente integradas (sem que elas tomem claramente conhecimento disso) em mltiplas teias de relaes sociais que funcionam sobre distncias mais ou menos amplas (relaes de patro e empregados, vendedor e consumidores, administrador e administrados ...) Os organizadores e os responsveis por cada uma dessas redes, isto , aqueles que detm os poderes administrativos e financeiros, tm uma idia precisa de sua extenso e de sua configurao; quando um industrial ou um comerciante no conhece bem a extenso de seu mercado, ele manda fazer, para ser mais eficaz, um estudo onde ser possvel distinguir a influncia que ele exerce (e a que ele pode ter) a nvel local, regional, nacional, levando em considerao as posies de seus concorrentes. Em contrapartida, na massa dos trabalhadores e dos consumidores, cada qual s tem um conhecimento bem parcial e bastante impreciso das mltiplas redes das quais ele depende e de sua configurao. De fato, no espao, essas diferentes redes no se dispem com contornos idnticos, elas "cobrem" territrios de portes bastante desiguais e seus limites se encavalam e se entrecruzam. Antigamente, cada homem, cada mulher percorria a p o seu prprio territrio (aquele no qual se inscreviam todas as atividades do grupo ao qual pertencia); ele encontrava seus pontos de referncia, sem dificuldade, nesse espao contnuo, no qual nenhum elemento lhe era desconhecido. Hoje, sobre distncias bem mais considerveis que, a cada dia, as pessoas se deslocam; seria melhor dizer que elas so deslocadas passivamente, seja por transportes comunitrios, seja por meios individuais de circulao, mas sobre eixos canalizados, assinalados por flechas, que atravessam espaos ignorados. Nesses deslocamentos quotidianos de massa, cada qual vai, mais ou menos solitariamente, em direo ao seu destino particular, S se conhecem bem dois lugares, dois

bairros (aquele onde se dorme e aquele onde se trabalha); entre os dois existe, para as pessoas, no exatamente todo um espao (ele permanece desconhecido, sobretudo se atravessado dentro de um tnel de metr), mas, melhor dizendo, um tempo, o tempo de percurso, pontuado pela enumerao dos nomes de estaes. H tambm, para aqueles que no so os mais desprovidos, as migraes de fins de semana, a menor ou maior distncia, em direo "residncia secundria", e os deslocamentos de frias, quando se vai passar algum tempo "em casa de papai e mame". Para ilustrar cartograficamente a considervel transformao, de um sculo para c, das prticas e representaes espaciais num pas como a Frana, imaginemos um exemplo terico relativamente simples, o de um grupo de aldees, embora ele no seja mais representativo, hoje, seno de uma minoria da populao francesa.

O esquema terico acima simboliza aquilo que poderia ser outrora, numa poca na qual relativa auto-subsistncia existia ainda, as representaes prticas espaciais de um grupo de aldees. O esquema seria sensivelmente mais complexo no caso de um habitat disperso. Os aldees que so ainda, em grande parte, agricultores, no fim do sculo XIX conheciam muito bem o "terroir de sua comuna, os limites de sua parquia onde se exerciam ento a maioria de suas prticas espaciais (deslocamentos para os trabalhos agrcolas e para a caa, por exemplo). Conheciam menos os "terroir das comunas vizinhas, mas eles tinham ali relaes familiares. Alm de um crculo de uma dezena de quilmetros de raio, eles no conheciam mais grande coisa, salvo ao longo da estrada que leva cidade, onde alguns deles iam para o mercado semanal. Da mesma forma a capital de canto, onde se encontram o mdico, o escrivo, os policiais. Os aldees escutam falar do departamento e da nao ou do Estado, mas essas so, para eles, representaes bastantes vagas, que tm, sobretudo a nao, um papel ideolgico importante. A maioria das prticas espaciais habituais do grupo aldeo (e mesmo de cada famlia) se inscreve num pequeno nmero de conjuntos espaciais de dimenses relativamente restritas e encaixadas umas nas outras.

O esquema terico acima simboliza as representaes e prticas de um grupo aldeo, hoje. Graas ao automvel, as ligaes rodovirias a distncias mais ou menos grandes se multiplicaram e se intensificaram, e as prticas espaciais se estenderam e se diversificaram socialmente. No corao da aldeia, os agricultores no so mais to majoritrios como o foram em outros tempos. Alm disso, mesmo para eles, os limites comunais representam o quadro de uma parte, apenas, de suas prticas agrcolas: eles cultivam terras nas comunas vizinhas e dependem diretamente de um certo nmero de grandes redes comerciais (coleta do leite, por exemplo) e de reas de influncia (crdito agrcola), das quais eles no conhecem nem a extenso, nem os contornos. Mas a aldeia tambm habitada por pessoas que vo, a cada dia, trabalhar na cidade vizinha, onde os nibus de coleta escolar conduzem tambm os alunos, todas as manhs. A escola comunal est fechada, assim como a Igreja paroquial, onde a missa no mais celebrada, seno em alguns domingos do ano. A cidade vizinha, onde vo cada vez com maior freqncia, no , contudo, a nica relao urbana desses aldees que vo, uma ou outra vez, em direo a centros citadinos mais importantes, para compras excepcionais ou para consultar, por exemplo, um mdico especialista. A diversificao das prticas sociais no seio do grupo aldeo que no tem mais sua coerncia de outrora, a diversidade das prticas espaciais de um mesmo casal, de um mesmo indivduo, podem se traduzir sobre a carta num grande nmero de conjuntos espaciais, com contornos e dimenses bem diferentes uns dos outros. De fato, as diversas prticas sociais tm, cada qual, uma configurao espacial particular. Chega-se assim uma superposio de conjuntos espaciais que se interceptam uns os outros. As prticas e representaes espaciais de um grupo citadino so bem mais complicadas. uma perfeita banalidade dizer, nos dias de hoje, que tudo aquilo que est longe sobre a carta bem perto com determinado meio de circulao. A proporcionalidade do tempo e do espao percorrido, durante sculos, ao ritmo do pedestre (ou a passo de cavalo, para os poderosos) comeou a se romper no sculo XIX, em certos eixos, onde a estrada de ferro diminuiu dez vezes as distncias. Hoje, ns nos defrontamos com espaos completamente diferentes, caso sejamos pedestres ou automobilistas (ou, com mais razo ainda, se somarmos o avio). Na vida cotidiana, cada qual se refere, mais ou menos confusamente, a representaes do espao de tamanhos extremamente no-semelhantes (desde um "cantinho" de algumas centenas de metros, at grandes pores do planeta) ou,

antes, a pedaos de representao espacial superpostos, em que as configuraes so muito diferentes umas das outras. As prticas sociais se tomaram mais ou menos confusamente multiescalares. No passado vivia-se totalmente num mesmo lugar, num espao limitado, mas bem conhecido e contnuo. Hoje, nossos diferentes "papis" se inscrevem cada um em migalhas de espao, entre os quais ns olhamos sobretudo nossos relgios, quando nos fazem passar, a cada dia, de um a outro papel. Se os sonmbulos se deslocam sem saber por que num lugar que eles conhecem, ns no sabemos onde estamos nos diversos locais onde temos algo a fazer. Vivemos, a partir do momento atual, numa espacialidade diferencial2 feita de uma multiplicidade de representaes espaciais, de dimenses muito diversas, que correspondem a toda uma srie de prticas e de idias. mais ou menos dissociadas; pode-se distinguir esquematicamente: - de um lado, as diversas representaes do espao que dizem respeito a nossos diferentes deslocamentos; bem vagas para a maioria das pessoas, corresponderiam, se elas soubessem l-las, ao plano do bairro e ao do metr, carta de aglomerao onde se efetuam as migraes diuturnas, carta na escala de 1/200.000 dos deslocamentos de week-end, ou carta em escala menor que representa os grandes eixos rodovirios; - de outro lado, as configuraes espaciais das diferentes redes das quais dependemos objetivamente (mesmo sem o saber): redes de tipo administrativo (comuna, departamento), a "carta escolar" que determina a admisso dos alunos nesse ou naquele estabelecimento, o espao de comercializao de um supermercado, a zona de influncia de tal cidade, a rede de filiais de tal grande empresa, o grupo financeiro que o controla - esses diversos conjuntos espaciais no coincidem; - enfim, desde algumas dezenas de anos para c, o papel crescente das mass media impe, ao esprito de cada um, toda uma gama de termos geopolticos que correspondem a representaes espaciais (a Europa dos Nove), a Europa do Oeste, a Europa do Leste, os pases subdesenvolvidos, os pases do Sahel, a Amrica Latina, o confronto Leste-Oeste ou o "dilogo" Norte-Sul, etc.) e toda a srie de paisagens tursticas. Essas representaes, freqentemente bem imprecisas, mas que so mais ou menos familiares, proliferam, medida em que os fenmenos relacionais de todas as espcies se multiplicam e se ampliam e que a "vida moderna" se propaga na superfcie do globo. O desenvolvimento desse processo de especialidade diferencial se traduz por essa proliferao das representaes espaciais, pela multiplicao das preocupaes concernentes ao espao (nem que seja por causa da multiplicao dos deslocamentos). Mas esse espao do qual todo mundo fala, ao qual nos referimos todo tempo, cada vez mais difcil de apreender globalmente para se perceber suas relaes com uma prtica global. sem dvida uma das razes prioritrias pelas quais os problemas polticos so to raramente colocados em funo de espao por aqueles que no esto no poder. De fato, os problemas polticos correspondem a toda uma gama de redes de domnio que possuem configuraes espaciais bem diversas e que se exercem sobre espaos mais ou menos considerveis (desde o nvel da aldeia e do canto, at a dimenso planetria). Num Estado, quanto mais o sistema poltico se tomou complexo, mais as formas de poder se diversificaram e mais se emaranham os limites das circunscries administrativas, eleitorais e os contornos mais ou menos vagos e discretos, de formas mltiplas de organizao, que tm um papel poltico; por exemplo, o papel de tal rede bancria em tal regio, as "reservas e mercado", as

zonas em que se exerce determinada influncia hegemnica, de forma mais ou menos oculta, a extenso espacial de certa "clientela", etc. O confronto das foras ao nvel planetrio se desenrola no somente atravs das estruturas nacionais, mas at no emaranhado dos componentes polticos de certos lugares. Para se reconhecer bem facilmente nesse emaranhado, em boa parte constitudo de informaes confidenciais, para estar em condies de utiliz-los com eficincia, no preciso ser um gnio; preciso, sobretudo, fazer parte do grupo no poder e ter a sustentao das classes dominantes. Uma das funes das mltiplas estruturas do aparelho de Estado a de recolher informaes, em carter permanente ( uma das primeiras tarefas dos policiais), e os privilegiados so, tambm, pessoas bem informadas e muito desejosas de que saibam disso "na alta esfera". Em contrapartida, as relaes entre as estruturas de poder e as formas de organizao do espao permanecem mascaradas, em grande parte, para todos aqueles que no esto no poder. Para se ver mais claro isso, melhor do que tentar furar o segredo que cerca certas informaes muito precisas, cujo interesse acima de tudo bastante conjuntural, dispor de um mtodo que permita organizar uma massa confusa de informaes parciais; elas so, em grande parte acessveis, desde o momento em que ns atingimos as razes de prestar ateno nisso.

A GEOGRAFIA ESCOLAR QUE IGNORA TODA PRATICA TEVE, DE INICIO, A TAREFA DE MOSTRAR A PTRIAA impregnao da cultura social por um amontoado de representaes espaciais heterclitas faz com que o espao se tome cada vez mais difcil de ser ali reconhecido, mas tambm cada vez mais necessrio, pois as prticas espaciais tm um peso sempre maior na sociedade e na vida de cada um. O desenvolvimento do processo de espacialidade diferencial acarretar, necessariamente, cedo ou tarde a evoluo a nvel coletivo de um saber pensar o espao, isto , a familiarizao de cada um com um instrumento conceitual que permite articular, em funo de diversas prticas, as mltiplas representaes espaciais que conveniente distinguir, quaisquer que sejam sua configurao e sua escala, de maneira a dispor de um instrumental de ao e de reflexo. Isso que deveria ser a razo de existir da geografia. Durante sculos, o desenvolvimento dos conhecimentos geogrficos esteve, em grande parte, estreitamente ligado unicamente s necessidades das minorias dirigentes, cujos poderes se exerciam sobre espaos muito vastos para se ter deles um conhecimento direto: a massa da populao, por viver ento da autosubsistncia alde ou no quadro de trocas, muitas limitadas parcialmente, no tinha necessidade de conhecimento do espao longnquo. Hoje, o conjunto da populao vive, cada vez mais, uma espacialidade diferencial, o que implica que, cedo ou tarde, necessariamente, ela esteja em condies de se comportar de outra forma, alm daquela de sonmbulos teleguiados ou canalizados. Durante sculos o saber ler, escrever e contar foi o apangio das classes dirigentes e, desse monoplio, elas obtinham um acrscimo de poder. Mas as transformaes econmicas, sociais, polticas, culturais na Europa

do sculo XIX, como hoje nos pases "subdesenvolvidos" fazem com que tenha se tornado indispensvel que o conjunto da populao saiba ler. E torna-se indispensvel que os homens saibam pensar o espao. Deveras, hoje os fenmenos relacionais adquiriram tal intensidade, os efetivos em deslocamento sobre certos eixos atingiram tal amplitude, que o estado de miopia coletiva em relao aos fenmenos espaciais comea a colocar problemas graves, se bem que tal miopia no deixe de ter suas vantagens para aqueles que detm um poder. Entre as dificuldades de funcionamento que conhecem as sociedades ditas "de consumo", algumas, as mais espetaculares, esto estreitamente ligadas aos problemas de especialidade diferencial: por exemplo, a paralisia total da circulao, durante horas, ou at dias, sobre centenas de quilmetros de estradas. Esta situao dramtica, que se repete cada vez com maior freqncia por ocasio das migraes de vero, nos grandes week-ends, adquire, com evidncia, as dimenses do absurdo, quando se sabe que h centenas de quilmetros de estradas livres, de um lado e de outro do eixo paralisado pela interminvel fila de carros. Mas a maior parte dos motoristas no ousa ir ali experimentar, ou s vezes nem imagina poder utiliz-las, mesmo se eles possuem todas as cartas necessrias para se orientar nessa rede. Elas no lhes so de nenhuma utilidade, pois, apesar do auxlio de mltiplas placas indicadores, eles no sabem ler essas cartas rodovirias, que so, bem simples e bem cmodas. E so os policiais que vm dizer ser preciso ensinar as pessoas a ler uma carta! O exemplo dessa incapacidade coletiva no quadro de uma prtica to simples, cuja eficcia contudo to imediatamente evidente, d uma idia do desligamento intelectual no qual se encontrariam as pessoas se lhes fosse preciso construir um raciocnio um pouco mais complexo, um pouco menos ligado diretamente ao concreto. Ora, todas essas pessoas sabem ler, elas foram escola e elas ali, como se diz, "fizeram a geografia", sobretudo se freqentaram o ginsio e o colgio. A idia que se possa colocar o problema da geografia com relao aos engavetamentos rodovirios no pode deixar de parecer a todo mundo perfeitamente ridcula, e talvez, sobretudo, maioria dos professores de geografia. Isso d a medida da ruptura que existe entre o discurso da geografia dos professores e uma prtica espacial qualquer, sobretudo se ela totalmente usual. "A geografia, isso no serve para nada... ." Na Frana, o ensino da geografia foi institudo no fim do sculo XIX, j exatamente na poca em que o processo de especialidade diferencial comeava a se expandir para a maioria da populao. A geografia est, ento, a tal ponto ligada escola, na representao coletiva, que a carta da Frana ou o globo terrestre figuram sempre em local destacado, entre as imagens que esto expostas numa sala de aulas. Vai-se escola para aprender a ler, a escrever e a contar. Por que no para aprender a ler uma carta? Por que no para compreender a diferena entre uma carta em grande escala e uma outra em pequena escala e se perceber que no h nisso apenas uma diferena de relao matemtica com a realidade, mas que elas no mostram as mesmas coisas? Por que no aprender a esboar o plano da aldeia ou do bairro? Por que no representam sobre o plano de sua cidade os diferentes bairros que conhecem, aquele onde vivem, aquele onde os pais das crianas vo trabalhar, etc.? Por que no aprender a se orientar, a passear na floresta, na montanha, a escolher determinado itinerrio para evitar uma rodovia que est congestionada? Pode-se pensar que se trata de receitas pedaggicas bem indulgentes; elas no so executadas seno excepcionalmente, quer por causa da imposio dos programas, quer devido propenso dos professores, no importa qual seja a

tendncia ideolgica que tenham, de reproduzir a geografia dos seus mestres, que uma outra. Pode-se pensar que essa orientao prtica do ensino da geografia perfeitamente ilusria e que ela no poderia ter interessado ningum no fim do sculo XIX , no entanto, a geografia que esteve mais prxima daquela dos oficiais e esse tipo de formao que, em grande parte, explica o sucesso do escotismo nas classes dirigentes. Este saber agir sobre o terreno (saber ler uma carta, saber seguir uma pista ... ), o escotismo, cujo interesse poltico e militar explicitamente assinalado, foi reservado aos jovens das classes dirigentes, sobretudo nos pases anglo-saxes (o verbo to scout: ir em reconhecimento). O discurso geogrfico escolar que foi imposto a todos no fim do sculo XIX e cujo modelo continua a ser reproduzido hoje, quaisquer que pudessem ter sido, alis, os progressos na produo de idias cientficas, se mutilou totalmente de toda prtica e, sobretudo, foi interditada qualquer aplicao prtica. De todas as disciplinas ensinadas na escola, no secundrio, a geografia, ainda hoje, a nica a aparecer, por excelncia, como um saber sem a menor aplicao prtica fora do sistema de ensino. Nenhuma esperana de que o mapa possa aparecer como uma ferramenta, como um instrumento abstrato do qual preciso conhecer o cdigo para poder compreender pessoalmente o espao e nele se orientar ou admiti-lo em funo de uma prtica. Nem se pensar que a carta possa aparecer como um instrumento de poder que cada qual pode utilizar se sabe interpret-la. A carta deve permanecer como prerrogativa do oficial, e a autoridade que ele exerce em operao sobre "seus homens" no se deve somente ao sistema hierrquico, mas ao fato de que ele s quem sabe ler a carta e pode decidir os movimentos, enquanto aqueles que ele mantm sob suas ordens no o sabem. Contudo o instrutor, o professor, sobretudo outrora, mandavam "fazer" cartas. Mas no cartas em grande escala nas quais cada um pudesse ver como elas do idia de uma realidade espacial que se conhece bem, mas sim cartas em pequenssimas escalas, sem utilidade no quadro das prticas usuais de cada um; so, na realidade, imagens simblicas que o aluno deve redesenhar: antigamente era mesmo proibido decalcar, talvez, para se impressionar melhor. A imagem que devia ser, inmeras vezes, reproduzida por todos os alunos (hoje no mais assim) era, primeiro, a da ptria. Outros mapas, representando outros Estados, entidades polticas cujo esquematismo dos caracteres simblicos vem tanto melhor ainda reforar a idia de que a nao onde se vive um dado intangvel (dado por quem?), apresentado como se tratasse no mais de uma construo histrica, mas de um conjunto espacial engendrado pela natureza. sintomtico que o termo "pas", que particularmente ambguo, tenha suplantado, e em todos os discursos, as noes mais polticas de Estado, nao ... Provavelmente esse corte radical que o discurso geogrfico escolar e universitrio estabelece em face de toda prtica, essa ocultao de todas as anlises do espao, na grande escala, que o primeiro passo para apreender cartograficamente a "realidade", resulta, em boa parte, da preocupao, inconsciente, de no se renunciar a uma espcie de encantamento patritico, de no arriscar o confronto da ideologia nacional com as contradies das realidades. Hoje ainda, em todos os Estados, e sobretudo nos novos Estados recentemente sados do domnio colonial, o ensino da geografia , incontestavelmente, ligado ilustrao e edificao do sentimento nacional. Que isso agrade ou no, os argumentos geogrficos pesam muito forte, no somente no discurso poltico (ou politizado), mas tambm na expresso popular da idia de ptria, quer se trate de reflexos de uma ideologia nacionalista invocada pelos coronis, uma pequena oligarquia, uma "burguesia nacional", uma burocracia de grande potncia, ou se refira aos sentimentos do povo vietnamita. A idia nacional

tem algo mais que conotaes geogrficas; ela se formula em grande parte como um fato geogrfico: o territrio nacional, o solo sagrado da ptria, a carta do Estado com suas fronteiras e sua capital, um dos smbolos da nao. A instaurao do ensino da geografia na Frana no fim do sculo XIX no teve portanto como finalidade (como na maioria dos pases) difundir um instrumental conceitual que teria permitido apreender racionalmente e estrategicamente a especialidade diferencial de pensar melhor o espao, mas sim de naturalizar "fisicamente" os fundamentos da ideologia nacional, ancor-los sobre a crosta terrestre; paralelamente, o ensino da histria teve por funo a de relatar as desgraas e os sucessos da ptria. A funo do discurso geogrfico tem uma tal importncia que durante decnios ele impregnou o essencial das leituras de milhes de pequenos franceses: o famoso Tour de France de deux enfants (Volta da Frana por duas crianas), livro de leitura corrente da escola primria, que detm de longe, logo aps o catecismo, o recorde de edies: oito milhes de exemplares, desde 1877. A geografia dos professores, tal como ela se manifesta nos manuais antes dos anos vinte, oculta j, com certeza, os problemas polticos internos da nao, mas ela no dissimula jamais os sentimentos patriticos que so, muito freqentemente, do mais belo chauvinismo. Em livros do ensino primrio, recenseava-se, ento, o nmero de couraados e o efetivo das foras armadas das grandes potncias.

A COLOCAO DE UM PODEROSO CONCEITOOBSTCULO: A REGIO-PERSONAGEMNo faltar quem venha objetar que essa geografia de farda desapareceu h cinqenta anos - o que verdade - e que desde ento as lies de geografia, ao menos nas classes mais avanadas do secundrio no so mais essa enumerao relevo - clima - vegetao populao, mas um estudo das diferentes "regies". No deixaro sobretudo de afirmar que inadmissvel fazer o processo da geografia s levando em considerao suas formas mais elementares ou caricaturais, metamorfoses que afetariam toda a "disciplina cientfica" quando ela ensinada na escola ou no liceu. Claro, as melhores produes universitrias so apresentadas como "modelos" aos estudantes que se tomaro professores. Mas, uma vez no ensino, que podero eles fazer, quaisquer que sejam sua conscincia e sua inteligncia (profissional e poltica)? E, alis, seria verdade que a existe, quanto s funes sociais, uma diferena assim to fundamental, como dizem os gegrafos universitrios, entre a geografia das "grandes teses", que fizeram o prestgio da "escola geogrfica francesa", e essa geografia dos liceus, cujos alunos hoje em dia no querem mais ouvir nela falar? Uma e outra (com a diferena da geografia de farda que no dissimulava suas preocupaes de poltica externa) se caracterizam pela ocultao de todo problema poltico. Elas so um saber pelo saber, procedem, ambas, da obra de Vidal de La Blache (1845-1918), que considerado unanimemente como o "pai" dessa "Escola geogrfica francesa" que foi reputada no mundo inteiro, onde ela exerceu uma grande influncia, tanto por sua orientao em direo "geografia regional" como

pela despolitizao do discurso que ela impunha. Seu papel ideolgico foi considervel. Antes de falar logo adiante do papel de Vidal de La Blache, preciso sublinhar que na verdade a corporao dos gegrafos universitrios s reteve um aspecto do seu pensamento, o Quadro da geografia da Frana, e que ela esqueceu, sistematicamente, o outro grande livro de Vidal, A Frana de leste (1 916) porque ali ele d uma enorme importncia aos fenmenos polticos. Trata-se, com efeito, de um livro de geopoltica. Nessas pginas bastante crticas a respeito do pensamento "vidaliano" s se trata do primeiro aspecto da obra de Vidal de La Blache, aquele que a corporao privilegiou: o outro Vidal, que ela ignora completamente, s ser lembrado ulteriormente, pois s recentemente ele foi redescoberto. Com seu Quadro da geografia da Frana (1905), modelo tantas vezes retomado por tantas teses, cursos e manuais ou com os quinze tomos da Geografia universal (A. Colin) cuja concepo ele influenciou, Vidal de La Blache introduziu a idia das descries regionais aprofundadas, que so consideradas a forma, a mais fina, do pensamento geogrfico. Ele mostra como as paisagens de uma "regio" so o resultado da superposio ao longo da histria, das influncias humanas e dos dados naturais. Mas em suas descries, Vidal d maior destaque para as permanncias, a tudo aquilo que herana duradoura dos fenmenos naturais ou de evolues histricas antigas. Em contrapartida, ele baniu, em suas descries, tudo que decorre da evoluo econmica e social recente, de fato, tudo o que tinha menos de um sculo e traduzia os efeitos da "revoluo industrial". Claro, Vidal de La Blache combateu a tese "determinista", segundo a qual os "dados naturais" (ou um deles) exercem uma influncia direta e determinante sobre os "fatos humanos" e ele d um papel capital histria para avaliar as diversas maneiras pelas quais os homens esto em relao com os "fatos fsicos". Vidal de La Blache instala (com que estilo!) sua concepo do "homemhabitante" e essa expulsa para fora dos limites da reflexo geogrfica o homem nas suas relaes sociais, e com mais forte razo ainda, nas relaes de produo. Alm do mais, o "homem vidaliano" no habita as cidades, ele mora sobretudo no campo, ele sobretudo o habitante de paisagens que seus ancestrais longnquos modelaram e organizaram. Hoje, os gegrafos tm um consenso de que Vidal falou muito pouco das cidades, s o tendo feito para evocar sua fundao e as primeiras etapas do seu crescimento e que ele no prestou ateno a fenmenos to espetaculares, tal como o descobrimento da indstria. Mas a maioria dos gegrafos de hoje acredita que nada impede de completar e de atualizar o Quadro da geografia da Frana que Vidal traou nos