Capítulo Um

A assinatura filmográfica do Diretor

Debruçar-se sobre a filmografia de Kubrick requer o reconheci-mento na sua obra, de um traço marcante em seu estilo, que per-passa sua vida pessoal, seus interesses e a forma de materializar os desejos nos distintos dispositivos cinematográficos.

Pode-se distinguir cinco grandes períodos na filmografia de Stanley Kubrick:

1. Curta-metragens documentários: Day of the fight – Dia de luta (1951); Flying Padre – O Padre voador (1951) e The Sea-farers – Os Marítimos (1952).

2. Obras de juventude: Fear and Desire – Medo e desejo (1953); The Killer’s Kiss – A morte passou por perto (1955) e The Killing – O grande golpe (1956).

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3. Reconhecimento da crítica e do público: Paths of Glory - Glória feita de sangue (1957); Spartacus (1960); Lolita (1962); The Doctor Strangelove or how I learned to stop worrying and love the bomb – Doutor Fantástico (1964).

4. A maturidade: 2001: a space odyssey – 2001: uma odisséia no es-paço (1968); A Clockwork Orange – Laranja Mecânica (1971); Barry Lyndon (1978) e The Shining – O Iluminado (1980).

5. Obras derradeiras: Full Metal Jacket – Nascido para matar (1987) e Eyes Wide Shut – De olhos bem fechados (1999).

Por isso, neste Capítulo inicial, oferecem-se alguns dados bio-gráficos sobre a vida do diretor e realizador, que foram decisivos na hora de assumir o papel de grande gênio na história do cinema. Abordam-se o início de sua carreira e o conteúdo de suas primeiras produções feitas em curta-metragem ao estilo documentário. Men-cionam-se as obras de juventude que lhe valeram o reconhecimento da crítica e do público; e as obras da maturidade, em que revela-se a eficácia de sua mensagem crítica e humanista. Por fim, trata-se de um aprofundamento na obra derradeira do cineasta em que o desejo vem à cena pela lente perspicaz daquele que reconhece no público seu maior e melhor interlocutor, em um processo de identificação que vai da visão ao olhar profundo do espectador.

1. Stanley Kubrick – A visão original da fotografia

Stanley Kubrick nasceu no dia 26 de julho de 1928, no bairro de Bronx, em uma família de classe média, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos.

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A carreira do roteirista, produtor e diretor caracterizou-se pela paixão com que se envolveu em tudo o que fez, desde jogar xadrez, tocar e ouvir jazz, até a maior afeição de todas: a fotografia.

Nestas atividades, Kubrick define seu caráter e os motivos que mais tarde levará à tela.

O pai o presenteou com uma câmera fotográfica Gaflex com a qual descobriu os segredos do enquadramento. Participou no jornal da Escola William Taft e no Taft Swing Band, um grupo de jazz no qual desenvolveu suas habilidades e gosto musical. Nessa escola, estudou e começou a fotografar.

Aos dezessete anos, trabalhando para a Revista Look, conse-guiu fazer uma foto em que flagra um vendedor de jornais e revistas, entristecido com a morte do então presidente Roosevelt, em abril de 1945. Essa imagem circulou o mundo todo e o fez conhecido no âmbito jornalístico. Trabalhou vários anos nessa revista, percorrendo os diferentes Estados em busca de imagens e entrevistas que ilus-trassem o tempo que se vivia em seu País.

O fracasso nos estudos, por causa das más notas, levou o jovem Kubrick a frequentar apenas como ouvinte a Universidade de Co-lumbia, na qual supervisionou as aulas de Lionel Trilling, Mark Van Dore e Moses Hadas.

Assistia a todos os filmes que podia no Loew’s Paradise e no Museu de Arte Moderna, daí suas referências artísticas usadas na maioria dos filmes. Kubrick afirma em entrevistas que, nessa época, orientava-se pela consigna de aprender, sobretudo, dos filmes que eram ruins, sabendo que ele mesmo podia os melhorar.

Os produtores que mais influenciaram a carreira de Kubrick fo-ram Max Ophüls (1902-1957), um alemão exilado na França, por seu trabalho com a câmera – domínio fluído da câmera/framing, seja na escala ou na angulação – por meio da qual dava a seus filmes um tom poético característico, sendo o primeiro diretor internacional

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conhecido na história do cinema, sensível às diferenças nacionais e às qualidades humanas comuns em seus personagens, e Sergei Ei-senstein (1898-1948) pelo pioneirismo no uso das técnicas de mon-tagem no cinema. Entende-se por montagem a ordenação narrativa e rítmica dos elementos objetivos do relato. Consiste em escolher, antes da filmagem ou da gravação, ordenar e unir uma ideia e uma dinâmica determinada, tendo como referência o roteiro, a ideia do diretor e a contribuição daquele que exerce esta tarefa.

Sob esta perspectiva, o jovem Kubrick abriu horizontes na cine-matografia. Em conversa com um colega de estudos, que trabalhava para The Mach of Time, este incentivou-o a conhecer o cinema, co-mentando sobre orçamentos para um curta-metragem.

Kubrick, pensando que poderia conseguir essa proeza por me-nos, fazendo-se cargo ele mesmo do processo técnico, entrou nessa empreitada.

Em 1951, Kubrick filma o curta-metragem Dia de Luta, base-ado em um trabalho seu para a Revista Look; narra aí a vida em um dia do boxeador Walter Cartier. O custo do filme foi relativamente baixo e conseguiu vendê-lo a RKO por um preço melhor e obter be-nefícios. Nesse mesmo ano, lança outro curta-metragem, O Padre voador, para o qual tirou a licença de piloto de aviação civil; nele documenta a vida de um sacerdote que viaja de avião para exercer seu apostolado.

Mais tarde, em 1952, é a hora de Os Marítimos, um curta-metragem em cores feito para a União Internacional de Marítimos, no qual mostra o ambiente de um encontro sindical reunindo mari-nheiros e pescadores que trabalham a bordo de navios de bandeira norte-americana e canadense.Depois disto, Kubrick entra de fato na indústria do cinema com o longa-metragem Fear na Desire – Medo e desejo, considerado por ele “um erro de juventude”. Trata-se de um pelotão de soldados que luta em uma terra sem-nome. Após as

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filmagens, separa-se de sua primeira mulher Toba Metz. Com um escasso êxito de bilheteria, o dinheiro ajudou só a financiar o pró-ximo filme Killer’s Kiss - A morte passou por perto, um suspense sobre um boxeador que conhece e que apaixona-se pela mulher de um mafioso.

No filme, aparece no papel da dançarina Ruth Soboka, que seria sua segunda mulher. O trabalho de fotografia em branco e preto des-se filme chamou a atenção de James B. Harris, um grande produtor da NBC.

Kubrick e Harris associaram-se em uma produtora da qual surge The Killing – O grande golpe, a primeira obra-prima baseada na novela de Lionel White e o roteiro de Jim Thomson. O filme trata de um assalto ao hipódromo.

A utilização do tempo cinematográfico pressupõe uma inovação de Kubrick para a época. O motivo central é a luta de um anti-herói no seu confronto com o mundo e sua derrota final. O grande golpe chamou a atenção de personalidades de Hollywood, entre elas, Kirk Douglas, que assinou contrato com a dupla por pelo menos cinco anos.

Nasce assim Glória feita de sangue, filme no qual Douglas interpreta o coronel Dax, encarregado de defender seus soldados acusados de covardes perante o inimigo, no marco das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. A partir daí, formula-se a grande po-lêmica de Kubrick com a mensagem antibélica de seus filmes, que afetou diretamente nesse caso o exército francês.

Mostra-se no filme uma veia mais humanista e sentimental de Stanley Kubrick, pois os filmes a seguir são mais frios, mas não me-nos humanistas. Na rodagem, conhece Suzanne Christianne, sua terceira e última mulher.

Depois de concluído esse filme, Kubrick trabalhou com Marlon Brando em One Eyed Jacks – Rosto impenetrável (1961); sai dessa

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experiência, despedido por problemas com o próprio ator.

Nesta situação, encontra-se mais uma vez com Douglas que buscava um diretor para substituir Anthony Mann à frente de Es-partacus, sendo um filme de altíssimo orçamento, que o poderia alavancar na sua carreira.

No entanto, no filme, apenas consegue interferir no roteiro, em compensação, foi ele mesmo o diretor de fotografia e realizador. O filme foi um êxito comercial e a carreira de Stanley Kubrick estava definitivamente lançada.

Frustrado com os procedimentos de Hollywood, Stanley Kubrick foi morar na Grã-Bretanha, onde estabelece-se definitivamente com o fruto do capital norte-americano.

O primeiro filme britânico que veio à luz em terra saxônia foi Loli-ta, adaptação da novela de Vladimir Nabokov com um alto teor erótico; depois veio Doutor Fantástico, protagonizado por Peter Sellers em que trata o tema nuclear com chave irônica de humor.

Estes dois filmes colocaram o diretor em uma posição de destaque, tanto com a crítica quanto com o público, proporcionando liberdade financeira e artística. Entrou em contato com o escritor de ciência fic-ção Arthur Clarke, que propôs-se a adaptar para o cinema sua novela “Sentinela”; escreveram juntos, o roteiro para o filme, nascendo assim 2001: uma odisséia no espaço, que mais tarde converteu-se no mais forte objeto de culto e ponto de inflexão cinematográfica do gênero. Documentado com pesquisas feitas na NASA e com os fabricantes de produtos informáticos e tecnológicos, entre eles, a IBM, criou-se um computador mítico chamado HALL, que rouba a cena do filme.

Laranja Mecânica, que veio na sequência, conseguiu ser o

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filme mais controvertido em razão da violência e do conteúdo sexual tratado sob o olhar do instintivo Alex. Na adaptação, usam-se ten-dências musicais de sintetizador, a arte e a arquitetura, arte moderna

“A sensação de mistério é a única emoção que se experimenta com mais força na arte do que na vida.”

Stanley KubricK

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e pop art para mostrar a transgressão em cena.

Em contrapartida, Barry Lyndon, protagonizado por Ryan O’Neal, insere-se no cinema de época, inspirado em quadros do século XVIII que permitiram a Kubrick inovar do ponto de vista fo-tográfico, usando velas na iluminação de seus cenários e causar vi-sualmente os efeitos da pintura.

Já O Iluminado, que contou com a participação de Jack Ni-cholson, em um filme de suspense e terror, trouxe como resultado da pesquisa e do trabalho com Garrett Brown a invenção do slady-cam, uma câmera superestável que transita pelos labirínticos espa-ços da psique de um pai assassino.

Sete anos passaram-se até Nascido para matar, filme no qual Kubrick critica a anulação da personalidade dos soldados do exército dos Estados Unidos na considerada, pelo diretor, “a absurda guerra do Vietnã1.

1 MagiD, Ron. Full Metal Jacket: Cynic’s Choise. american Cinematographer, setember 1987, v. 68, n. 9. Este artigo traz comentários gerais sobre o filme, mas prima pelo enfoque que dá à entrevista com Douglas Milsome, o diretor de fotografia do filme. O autor aponta que já em Paths of Glory, Kubrick tenta provar que o ser huma-no comum seria apenas um peão no absurdo jogo da guerra. Já em Full Metal Jacket, Kubrick teria ido mais longe: o soldado não seria apenas um peão – o preço a pagar seria maior do que a própria vida, o soldado deveria perder sua humanidade no absur-do (p. 74).