gabriela a representação do passado nos estudos históricos de athos damasceno: a história do rio...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Gabriela Correa da Silva A REPRESENTAÇÃO DO PASSADO NOS ESTUDOS HISTÓRICOS DE ATHOS DAMASCENO: A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO SUL ESCRITA A PARTIR DA CIDADE (1940-1970) Porto Alegre, 2014.

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A representação do passado nos estudos históricos de Athos Damasceno: a história do Rio Grande do Sul escrita a partir da cidade (1940-1970)

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Gabriela Correa da Silva

    A REPRESENTAO DO PASSADO NOS ESTUDOS HISTRICOS DE ATHOS

    DAMASCENO: A HISTRIA DO RIO GRANDE DO SUL ESCRITA A PARTIR DA

    CIDADE (1940-1970)

    Porto Alegre,

    2014.

  • Gabriela Correa da Silva

    A REPRESENTAO DO PASSADO NOS ESTUDOS HISTRICOS DE ATHOS

    DAMASCENO: A HISTRIA DO RIO GRANDE DO SUL ESCRITA A PARTIR DA

    CIDADE (1940-1970)

    Dissertao (Mestrado em Histria)

    apresentada como pr-requisito para obteno

    do ttulo de Mestre em Histria pelo

    Programa de Ps-Graduao em Histria do

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

    RS.

    Orientadora: Profa. Dra. Mara Cristina de

    Matos Rodrigues.

    Porto Alegre,

    2014

  • GABRIELA CORREA DA SILVA

    A REPRESENTAO DO PASSADO NOS ESTUDOS HISTRICOS DE ATHOS

    DAMASCENO: A HISTRIA DO RIO GRANDE DO SUL ESCRITA A PARTIR DA

    CIDADE (1940-1970)

    Dissertao (Mestrado em Histria)

    apresentada como pr-requisito para obteno

    do ttulo de Mestre em Histria pelo

    Programa de Ps-Graduao em Histria do

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

    RS.

    Aprovado em __/__/2014

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________________________

    Profa. Dra. Mara Cristina de Matos Rodrigues (orientadora)

    _____________________________________________________________

    Prof. Dr. Alessander Kerber

    _____________________________________________________________

    Prof. Dr. Fernando Nicolazzi

    _____________________________________________________________

    Profa. Dra. Letcia Nedel

  • AGRADECIMENTOS

    Depois de digitar tantas palavras calculadas a tal ponto de estar muito perto de

    transformar o idealmente to belo ato de escrever em uma espcie de cincia pseudoexata,

    finalmente chego aos agradecimentos. Supostamente a parte mais livre da escrita, na qual eu

    no deveria estar preocupada em cumprir o pacto de leitura firmado com a banca e com os

    imaginrios futuros leitores deste texto. E, no entanto, aqui estou novamente procurando pelas

    palavras.

    Sendo assim, talvez seja melhor comear pela instituio que viabilizou este trabalho.

    Agradeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pelo ensino de excelncia, e

    ao CNPq, pela bolsa concedida.

    Agradeo imensamente aos professores Alessander Kerber, Fernando Nicolazzi e

    Letcia Nedel por se disporem a ler esta dissertao. Em particular, quero agradecer aos dois

    primeiros, os quais deram, no exame de qualificao, importante contribuio para o

    desenvolvimento desta pesquisa.

    Mara, minha professora orientadora, expresso minha gratido. Obrigada pela

    orientao cuidadosa, competente e paciente. Pela compreenso de que a vida dos mestrandos

    no se circunscreve (infelizmente, s vezes) ao mundo da pesquisa.

    Obrigada aos professores e colegas do programa de ps-graduao pelas discusses

    que enriquecem a nossa formao. Aos colegas da Aedos, especialmente a Silvnia, o Rafael e

    o Telles, meus sinceros agradecimentos pela experincia editorial e pelo aprendizado.

    Aos meus alunos do Ensino Mdio da escola pblica, agradeo por terem me feito

    recuperar o fascnio pelas perguntas aparentemente simples.

    Aos meus queridos amigos, Bibi, Gabi, Rafa do Canto e Melissa Barbosa, reafirmo

    meu carinho e minha dvida afetiva.

    Entre tantas coisas, agradeo Bibi principalmente pelo amor de irm e por ser uma

    pessoa to importante na construo da minha identidade.

    Gabi, pela sensibilidade e pela habilidade de tornar a vida mais leve, menos sria

    o que para mim costuma ser difcil.

    Ao Rafa, pela amizade, pelas discusses sobre as dificuldades de pesquisadores

    iniciantes na rea de histria, pelas dicas de histria da frica e pelo exemplo de que sempre

    possvel recomear.

  • Melissa, que foi uma grata surpresa do magistrio, agradeo pela interlocuo

    inteligente, pertinente e sincera. Pelas dicas, pelas trocas, por me permitir ver o mundo

    momentaneamente com os olhos de sociloga. Exerccio que, apesar do ensino mdio

    politcnico, conforma uma imagem diferente da que eu vejo pela minha janela de

    historiadora.

    Ao Srgio, por tanto... Pelo amor, pelo companheirismo, pelo estmulo constante. Por

    debater assuntos que no o interessam diretamente, por ler meus textos, pela exigncia,

    pacincia e lealdade. Ao teu lado, me sinto uma pessoa melhor. Obrigada, amor.

  • RESUMO

    Esta dissertao tem por objetivo investigar a representao do passado sul-rio-

    grandense desenvolvida nos estudos histricos do escritor e pesquisador porto-alegrense

    Athos Damasceno, entre as dcadas de 1940 e 1970. Para tanto, analisa, sobretudo, alguns dos

    principais textos por ele publicados, os quais adotam, em geral, a cidade de Porto Alegre

    como objeto. A partir desta pesquisa, prope-se que a interpretao acerca da histria da

    regio decorrente dos estudos deste autor configura-se em uma espcie de retrica da

    identidade regional que aponta para a existncia de um Rio Grande do Sul urbanizado e

    modernizado. Esta retrica pode ser dividida em dois momentos, que indicam algumas

    diferenas entre si em relao representao da temporalidade e da identidade. As

    divergncias observadas na primeira (1940-1950) e segunda (1950-1970) fases relacionam-se

    principalmente questo da modernizao da cidade, vista inicialmente com desconfiana e,

    posteriormente, de uma forma mais otimista. Ademais, nota-se na narrativa do pesquisador

    um esforo em afirmar as semelhanas da regio com a nao, a fim de reivindicar um espao

    para aquela no seio desta. Damasceno aproxima a parte ao todo atravs do reconhecimento da

    relativa pluralidade de sujeitos que habitaram o passado e o presente do estado e,

    principalmente, pela ascendncia, segundo ele, predominantemente aoriana do gacho. Tal

    vnculo seria o principal fator de ligao entre a cultura regional e nacional.

    Palavras-chave: identidade, regio, nao, representao;

  • ABSTRACT

    This research has the objective of analyze the sul-rio-grandense past representation

    developed by Athos Damascenos historical studies, between the period of 1940 and 1970.

    For that, this work analyses, especially, some of the most important texts of Damasceno,

    which adopt the city of Porto Alegre as object. This study suggests that in the texts of the

    author there is a kind of rhetoric of regional identity that shows a Rio Grande do Sul

    urbanized and modernized. This rhetoric can be divided in two moments. Firstly (1940-1950),

    the city modernization is faced with distrust. But, in a second moment (1950-1970), the same

    matter is seen in a more optimistic way. Furthermore, we can see in the authors texts an

    effort to shows the similarities between region and nation. To prove it, his researches

    approach the diversity of subjects who lived in the province and, also, by the ascendancy

    Azorean of the gaucho. This nexus would be the main factor linking regional and national

    culture.

    Key-words: identity, region, nation, representation.

  • SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................... 9

    1 A IDENTIDADE REGIONAL E O LUGAR SOCIAL DO INTELECTUAL ..................... 32

    1.1 O Regionalismo em debate: literatura, histria e identidade ............................................ 32

    1.2 Os espaos de renovao dos estudos regionais .............................................................. 45

    1.3 A incluso de outros sujeitos na representao de uma regio diversa ............................. 57

    2 A MODERNIDADE BATE PORTA: A REPRESENTAO DA TEMPORALIDADE E

    DA IDENTIDADE NA NARRATIVA NA DCADA DE 1940 .......................................... 68

    2.1 Gnero e estilo da narrativa ............................................................................................ 68

    2.2 O primeiro tempo da representao do passado de Athos Damasceno: as transformaes

    na cidade dos nossos antepassados ...................................................................................... 82

    2.3 As sacadinhas das nossas avs em perigo ....................................................................... 92

    3 A MODERNIDADE REPENSADA: A REPRESENTAO DA TEMPORALIDADE E

    DA IDENTIDADE NOS ANOS 1950-1970 ....................................................................... 101

    3.1 O segundo tempo da representao do passado de Athos Damasceno ........................... 101

    3.2 Os agentes do processo civilizador da cultura regional: a imprensa e o teatro ............... 107

    3.3 O carter do humor local ............................................................................................. 119

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 129

    REFERNCIAS ................................................................................................................ 136

    BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................................................. 139

    ANEXO A ......................................................................................................................... 149

    ANEXO B ......................................................................................................................... 150

    ANEXO C ......................................................................................................................... 151

  • 9

    INTRODUO

    Busco compreender o rio-grandense de um modo geral, no gosto de falar

    em gacho. A tradio, para mim, lastro de cultura, e no ornamento.

    Quero-a racional e no sentimental, em termos de utilizao empenhada e

    em caso algum de fruio gratuita.(FERREIRA apud SONDERMANN, 1974, p. 23)

    O discurso identitrio regionalista tem um grande potencial de adaptao e, em funo

    disso, parece sempre atual. Sua persistncia no tempo presente informando aspectos da vida

    cotidiana flagrante e no casual. A identidade regional gacha frequentemente afagada e

    reivindicada na aproximao das efemrides farroupilhas, nas datas comemorativas em que o

    estado do Rio Grande do Sul exerceu algum tipo de protagonismo e, sobretudo, semanalmente

    nos estdios de futebol. O regionalismo sul-rio-grandense motivo de riso, como no caso do

    jornal O Bairrista, no qual diariamente so atualizados gracejos do tipo: Brazilian Day atrai

    pouco pblico no RS: festa dos imigrantes brazileiros no agrada populao1 referindo-se ao

    desfile de 07 de setembro. Manifestaes como esta demonstram que a construo social da

    identidade gacha constantemente atualizada, reposta e evocada, tendo como tema

    reincidente a tenso entre autonomia e integrao na relao com o Brasil (OLIVEN, 1992).

    Partindo desta realidade, a questo que se coloca ao pesquisador ou mesmo ao simples

    curioso do passado regional a de como foi possvel a constituio de um discurso to

    aderente e, talvez no seja exagero diz-lo, no raro passional, em relao ao pertencimento

    regional.

    Esta pesquisa tem como objeto de estudo a obra de um escritor que no se considerava

    regionalista. Entretanto, no possvel compreender sua escrita sem considerar o peso do

    regionalismo para sua gerao. Athos Damasceno (1902-1975) preferia ser chamado de

    escritor. Nem poeta, nem romancista, nem historiador. Apenas escritor2. Talvez seja mesmo a

    maneira mais adequada de se referir a um autor que, como tantos de sua poca, se dedicou a

    muitas reas. O escritor teve diversos vnculos, institucionais ou no. Integrou o Grupo da

    Globo, foi scio do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul (a partir de 1957) e

    da Comisso Estadual do Folclore (1948). Foi servidor pblico estadual, com passagens pela

    1 BRAZILIAN Day atrai pouco pblico. Festa dos imigrantes brazileiros no agrada populao. Jornal O

    Bairrista, 8 set. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 10 set. 2011. 2 SONDERMANN, Susana. Entrevista com Athos Damasceno. Heri o homem de todos os dias. Correio do

    Povo, Porto Alegre, 22 de dez. 1974, p. 23.

  • 10

    Secretaria do Interior e da Educao e Cultura3. Tambm foi, ocasionalmente, tradutor da

    Editora Globo e colaborador da Revista Provncia de So Pedro, da mesma editora.

    Esta pesquisa se vale da categoria regionalismo a fim de compreender a representao

    do passado de Athos Damasceno. Para tanto, consider-lo- um autor que esteve envolvido

    em debates cujos objetivos eram a renovao da produo regionalista, que contribuiu para

    ela e que, tendo ele escrito sobre a regio levando em conta novas possibilidades de

    abordagem do passado desta, pode ser considerado um autor regionalista, se pensarmos tal

    definio em um sentido ampliado. O termo marcado por uma variedade de sentidos. Em

    razo disso, necessrio um esclarecimento sobre o significado a ele aqui atribudo.

    Para a historiadora francesa Anne-Marie Thiesse (1995), o regionalismo no se

    desenvolve em oposio ao sentimento de identidade nacional, mas como forma consensual

    de reunio nacional. Assim, a representao regionalista um elemento forte da identidade

    nacional, sendo que a valorizao da diversidade do territrio no exercida em

    contraposio, mas complementarmente representao da nao como una e indivisvel.

    Alm disso, em termos bourdianos, o regionalismo pode ser definido como um campo de

    disputas, no qual se enfrentam grupos com diferentes posies e interesses (BOURDIEU,

    2011).

    Dessa forma, com base nestes autores, esta anlise considera Athos Damasceno como

    um escritor regionalista. Justifica-se tal classificao pelo fato de que sua escrita opera em

    uma lgica de conformao de determinada identidade para a regio e seus porta-vozes,

    construda em um campo de disputas entre diferentes grupos4. Assim, estabeleo como foco

    da anlise a contribuio de determinada narrativa de pertencimento regional, no caso em

    questo, da escrita de Athos Damasceno, para a definio das relaes com a nao,

    descentralizando a definio que circunscreve regionalismo a tudo o que se refere ao mundo

    rural. De modo mais direto, busco evidenciar que por Athos Damasceno no ter escrito sobre

    um Rio Grande do Sul rural no se pode concluir que ele estivesse alheio s recorrentes

    3 Um breve comentrio sobre a trajetria profissional do autor pode ser encontrado em Csar (1994). 4 Ao atentarmos aos diversos estudos acerca do fenmeno regionalista, podemos constatar a presena da

    constante tenso entre regio e nao no discurso historiogrfico, que, como sabido, teve expressiva

    atuao na constituio das identidades, sejam elas nacionais ou regionais. Pelo menos desde os oitocentos a

    iniciativa de reforar ou atenuar o pertencimento da regio nao vem preocupando os letrados do extremo

    sul do pas, que, em geral, formularam tais questes no mbito daquilo que nomeamos vagamente de

    regionalismo. Nesse sentido, em relao produo historiogrfica no sculo XIX no estado so referncias

    para esta pesquisa os estudos de Lazzari (2004) e Boeira (2009).

  • 11

    tentativas de forjar um discurso de pertencimento regional que, por certo, ambicionava um

    lugar para o estado no todo nacional5.

    Nesse sentido, importante retomar que, segundo Dante de Laytano (apud NEDEL,

    2005, p. 474), Damasceno era um dos poucos entre seus contemporneos que no era

    regionalista. No entanto, necessrio esclarecermos o que o autor e seus pares compreendiam

    por regionalismo, uma vez que a definio adotada nesta dissertao bem mais ampla.

    Damasceno nem mesmo gostava de se referir ao gacho. Para ele o habitante do estado do

    Rio Grande do Sul era simplesmente rio-grandense. Suas reservas para com a questo foram

    explicitadas em uma querela com o poeta Vargas Netto, em 1932. Na ocasio, Athos defendia

    a necessidade de renovar a produo escrita sul-rio-grandense cujos temas levavam a uma

    representao da regio circunscrita ao gacho dos pampas. Era necessrio englobar nela o

    estudo das cidades e dos imigrantes, tornando-o mais atual.

    No debate fica mais compreensvel o cuidado no emprego do termo gacho: para

    Athos a expresso tenderia a limitar-se apenas ao habitante da regio da Campanha do Rio

    Grande do Sul. Regionalismo, neste caso, seria aquela produo que teria por objeto apenas o

    gacho definido nestes termos. Na polmica, Damasceno sustenta a necessidade de

    transformar o regionalismo, a fim de que o termo viesse a contemplar uma produo que

    pudesse dar conta da multiplicidade de objetos, temticas e sujeitos inerentes regio. A

    histria da capital tambm deveria estar includa nessa nova perspectiva. As ideias da

    mocidade no foram plenamente concretizadas, e de 1932 at 1974, data da entrevista

    concedida a Sondermann (1974), muitos debates se travaram, inclusive no sentido de renovar

    a produo regionalista o que de fato ocorreu em alguns aspectos. Mas o escritor que se

    empenhara no estudo da histria do estado a partir do estudo do passado da cidade no chegou

    a ser considerado regionalista. Da a afirmao de Laytano. Aos 73 anos, ento, Damasceno

    continuava a manter suas reservas com o termo gacho.

    5 Em relao ao uso da categoria regionalismo, interessante a proposta de Fischer (2007). Ao questionar a

    centralizao excessiva que o modernismo paulista ocupa na descrio da literatura e da cultura brasileira, o

    autor prope o abandono das categorias regionalismo e modernismo e a adoo de divises analticas de

    obras literrias que as classifique em tema rural e tema da cidade grande. Fischer afirma que a categoria

    regionalismo, por ter assumido contornos pejorativos, implica na desvalorizao dos escritores nela

    classificados. Cabe aqui, ento, um esclarecimento quanto manuteno de ambas as categorias para a compreenso da representao do passado de Athos Damasceno. Primeiramente, necessrio destacar que

    estou preocupada com a produo de histria deste autor. Sendo assim, as questes apontadas em relao

    subvalorizao de escritores classificados como regionalistas em nome de uma esttica paulistocntrica no assumem, em princpio, as mesmas configuraes em ambas as reas. Por outro lado, entendo que pensar o

    regionalismo como um campo de disputas simblicas para fazer ver e crer em determinada imagem da regio, como sugere Bourdieu (2011), um interessante procedimento de anlise que permite transcender as

    divises campo/cidade.

  • 12

    A proposta de abordagem desta dissertao levar em conta que no decorrer do sculo

    XX houve uma ressignificao do regionalismo, tendo o prprio Athos Damasceno se

    inserido neste movimento. Sendo assim, no podemos utilizar a categoria de modo unvoco e

    homogneo ao estudarmos a histria da historiografia sul-rio-grandense. Se a

    compreendermos como a produo escrita, seja ela literria ou historiogrfica, que se dedica

    representao da regio, o que invariavelmente leva questo de seu espao junto nao,

    ento plausvel considerarmos a representao do passado de Athos Damasceno como

    regionalista.

    O recorte temporal aqui realizado estende-se da dcada de 1940 at os anos 1970 e

    justifica-se por ser este o perodo em que Damasceno dedica-se de modo mais enftico

    pesquisa histrica. O problema deste estudo pode ser enunciado com um questionamento

    principal, inevitavelmente associado s relaes entre regio e nao: qual o tipo de

    representao do passado regional elaborado na narrativa de Athos Damasceno?

    Sendo assim, o conceito de representao fundamental para este trabalho. De acordo

    com Paul Ricoeur (2007), o termo carregado de uma rica polissemia e est presente em

    vrios momentos da sua reflexo6. Sendo uma operao que evidencia a visada referencial do

    discurso histrico, a representao historiadora busca atender s expectativas do leitor, que

    procura no texto histrico um relato verdico acerca do passado. Em outras palavras,

    diferentemente do pacto entre um autor e um leitor de fico, que se baseia na conveno de

    suspender qualquer expectativa de qualquer situao de um real extralingustico e, em

    contrapartida reter o interesse do leitor, o autor e o leitor de um texto histrico

    convencionam que se tratar de situaes, de acontecimentos, encadeamentos, personagens

    que existiram realmente anteriormente, isto , antes que tenham sido relatados (RICOEUR,

    2007, p. 289). Nesta situao, o interesse ou o prazer de leitura resulta como que por

    acrscimo. Dessa forma, ser enfatizado aqui o uso da noo de

    representao/representncia na etapa da representao-operao, termo utilizado por Paul

    6 No captulo A Representao Historiadora de A Memria, a Histria, o Esquecimento, Ricoeur explica o

    sentido que d ao termo: [...] representao mnemnica segue-se no nosso discurso a representao histrica. Esta a razo profunda da escolha do termo representao para denominar a ltima fase de nosso percurso epistemolgico. Ora, essa correlao fundamental impe ao exame uma modificao terminolgica

    decisiva: a representao literria ou escriturria dever deixar-se soletrar, em ltima instncia como representncia, a variao terminolgica proposta enfatizando no s o carter ativo da operao histrica,

    mas tambm a visada intencional que faz da histria a herdeira erudita da memria e sua aporia fundadora.

    Assim, ser fortemente enfatizado o fato de que a representao no plano histrico no se limita a conferir

    uma roupagem verbal a um discurso cuja coerncia estaria completa antes da sua entrada na literatura, mas

    que constitui propriamente uma operao que tem o privilgio de trazer luz a visada referencial do discurso

    histrico. (RICOEUR, 2007, p. 248)

  • 13

    Ricoeur para designar a terceira fase da operao historiogrfica, nomeada por ele de literria

    ou escriturria. Procuro, com isso, compreender como se manifesta na representao de Athos

    Damasceno o cumprimento do pacto de leitura e quais so as relaes que se estabelecem

    entre referencialidade e prazer de leitura nos textos do autor.

    ***

    Decorre do problema aqui proposto a ateno constituio e, sobretudo, s

    transformaes pelas quais passou a produo regionalista no estado sulino, porquanto h uma

    clara relao entre a narrativa do autor e as representaes da regio elaboradas por estes

    estudos. Esta tambm uma forma de acompanhar como a bibliografia publicada pelos

    letrados sulinos contribuiu para a constituio do regionalismo enquanto manifestao

    cultural, indicada no primeiro pargrafo desta introduo. Nesse sentido, de acordo com

    Luciana Boeira (2009), a histria da construo mental que deu significado ao homem sulino

    como heri rio-grandense e o investimento da histria regional em promov-lo como o mtico

    grande homem do Rio Grande podem ser percebidos nos discursos dos letrados e polticos da

    segunda metade do sculo XIX, que compunham o setor mais influente da sociedade. Desse

    modo, com a criao do Instituto Histrico e Geogrfico da Provncia de So Pedro (1860-

    1863) possvel observar a constituio de um discurso valoroso e guerreiro para a

    regio (BOEIRA, 2009). Na condio de primeira instituio afiliada do Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro em solo nacional, o Instituto assumiu a misso de integrar o passado

    glorioso do Rio Grande de So Pedro histria geral do Imprio. Est claro que, apesar desse

    propsito geral, o sentimento de pertencimento regional estava muito presente na fala dos

    letrados da poca.

    Aps a tentativa do IHGPSP, teve incio o empreendimento dos letrados da Sociedade

    Partenon Literrio (1868-1885), os quais, atravs das pginas da Revista do Parthenon

    Literrio (1869-1879), construram uma literatura genuinamente rio-grandense.7 Segundo a

    autora, a instituio defendeu um nacionalismo autonomista para o pas, valorizando os

    habitantes da terra sulina e, a partir da histria destes, produziu um passado heroico e

    guerreiro, mas tambm civilizado e ilustrado para a Provncia.

    7 Athos Damasceno (1975), em sua Imprensa Literria de Porto Alegre no sculo XIX, dedica algumas pginas

    ao empreendimento do Partenon. Embora reconhea que a iniciativa dos animadores da Revista tenha concorrido para a crescente autonomizao da literatura na provncia com seus primeiros ensaios

    regionalistas, afirma que no produziram uma literatura que formasse a essncia de uma cultura local (tal qual produziria Simes Lopes Neto): Nada mais fazamos do que recolher as receitas de uma civilizao a que pertencramos no passado e da qual nos afastvamos cada vez mais, por fora de novos padres de

    existncia que a Amrica nos impunha. (FERREIRA, 1975, p. 62).

  • 14

    Letcia Nedel (2005), por sua vez, localiza entre meados do sculo XIX e os anos

    trinta do sculo XX a primeira fase de inveno do acervo sul-rio-grandense de especificao

    regional8. Tal processo se deu com a apropriao, por letrados eruditos (do Partenon Literrio,

    por exemplo), dos valores ligados a grupos e ordens culturais iletradas, em um jogo de

    aproximaes e distanciamentos estratgicos, tanto em relao ao gaucho platino quanto aos

    tipos representativos das demais regies brasileiras9.

    No momento seguinte, com a fundao do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio

    Grande do Sul, em 1920, os historiadores vinculados instituio trataram de investir na

    configurao da imagem do gacho sentinela do Brasil, descendente dos heris militares e

    baluartes da resistncia da ameaa vinda da fronteia. A nfase na ascendncia lusitana dos

    sul-rio-grandenses. Nesse sentido, h um ponto de contato entre a narrativa de Athos

    Damasceno e a do IHGRGS. Neste perodo, o escritor era ainda um jovem identificado,

    principalmente, com a poesia, mas em menos de uma dcada surge o Athos preocupado com o

    passado regional, de tal modo que as investigaes acerca deste passado se tornam o centro de

    seu trabalho. Ao contrrio do Instituto, entretanto, o escritor estar completamente atento

    histria da cultura no estado e bastante distanciado da histria militar e heroicizante

    largamente praticada na instituio. Para auxiliar a compreender melhor suas preferncias

    tericas e temticas, importante percorrermos as alteraes na produo regionalista em

    voga a partir dos anos 1920, a comear pela mudana observada em outras regies.

    Segundo Albuquerque Jr. (2001), no incio do sculo XX se deu o pice da emergncia

    de um novo regionalismo, que extrapolou as fronteiras dos estados e que buscava o

    8 Esse acervo identificvel na prosa jornalstica, histrica e literria, revelando grande capacidade de

    permanncia e, de modo geral, composto por: um hino e de uma bandeira (Farroupilhas), de um linguajar tpico (variao aoriana do portugus, enriquecida de expresses vindas do trabalho nas estncias, comuns a

    sul-riograndenses e castelhanos), de mitos e de heris ancestrais (o gacho, soldado e trabalhador do campo),

    de monumentos para represent-los e aos ideais polticos que eles teriam legado (as esttuas de Bento

    Gonalves e Osrio, o monumento a Julio de Castilhos; perto dali, o Museu abrigado na casa do patriarca, os

    bustos dos santos de Augusto Comte na fachada da Biblioteca Pblica, a capela Positivista da avenida Joo Pessoa), de certas especialidades gastronmicas a carne bovina, consumida larga e capturada com o auxlio de seu animal alegrico, o cavalo; o mate (herana de ancestrais indgenas); certos textos cannicos

    (os relatos de viajantes, as memrias de administradores, Antnio Chimango, os contos de Simes Lopes

    Neto) e, finalmente, de uma designao gentlica que, neste caso, coincide com o nome do heri fundador. (NEDEL, 2005, p. 103)

    9 Conforme Nedel (2005), inicialmente, os autores ocupados da estilizao literria dos costumes do Rio

    Grande de So Pedro, ainda que se valessem da temtica farroupilha na ambientao de suas histrias,

    negligenciaram a explorao do linguajar gacho em detrimento da boa gramtica e do linguajar culto. Na literatura de ento havia um esforo para integrar o campeiro rio-grandense narrativa da nao em formao. Dessa forma, a ateno linguagem e aos costumes populares da Campanha s se generalizou nos

    anos imediatamente anteriores ao advento do Modernismo. Este o caso da obra do escritor pelotense Joo

    Simes Lopes Neto.

  • 15

    agrupamento a um espao maior10

    . O regionalismo deste perodo refletia as diferentes formas

    de se perceber e representar o espao nas diversas reas do pas11

    . Despontou uma nova forma

    de olhar e um novo objeto para ser visto. Emergiu a uma nova formao discursiva, nomeada

    pelo autor como formao discursiva nacional-popular (anos 1920) que reservava para o

    regional uma posio subordinada12

    . Em funo da crescente presso para se conhecer a

    nao, form-la e integr-la, os diferentes discursos regionais confrontaram-se na tentativa de

    fazer com que os costumes, as crenas, as relaes sociais, as prticas sociais de cada regio

    que se institui neste momento, pudessem representar o modelo a ser generalizado para o

    restante do pas. (ALBUQUERQUE Jr., 2001, p. 48). Buscava-se, portanto, a imposio da

    hegemonia de um discurso regional localizado aos demais estados do pas. o momento do

    movimento modernista.

    O modernismo foi bastante significativo na trajetria de Athos Damasceno, tendo ele

    inclusive participado do corpo editorial da Revista Mscara (1926), rgo do grupo

    modernista no estado (GOLIN; RAMOS, 2007). Outra situao que indica a influncia do

    movimento no percurso de Damasceno pode ser encontrada em sua correspondncia pessoal.

    Em carta enviada por Lgia Chiappini Leite, que o havia entrevistado durante sua pesquisa de

    doutorado, o autor recebe a entrevista transcrita para confirmar as informaes13

    . Entre as

    afirmaes de Damasceno em relao ao modernismo no Rio Grande do Sul est a de que a

    polmica de 1932, com Vargas Netto, poderia ser relacionada s ideias novas. De fato, na

    ocasio da querela, a argumentao de Athos toda no sentido de chamar a ateno para a

    intensa modernizao da cidade e seus potenciais efeitos na forma como se devia narrar a

    regio. Nesse sentido, apropriada para o caso em questo a reflexo de Fernando Nicolazzi

    (2008) sobre o contexto intelectual brasileiro das primeiras dcadas do sculo XX. Conforme

    o autor, havia uma sensao de desordem temporal e um lapso de tempo entre sociedade e

    10 Para Albuquerque Jr. (2001), o antigo regionalismo surge na segunda metade do sculo XIX, paralelo

    construo da nao e determinao da centralizao poltica do imprio. A partir da imposio da ideia de

    ptria, houve grande reao nas diferentes partes do pas. Este antigo regionalismo considerava as diferenas

    entre os espaos do pas como um reflexo imediato da natureza, do meio e da raa. Desse modo, as diferenas

    de clima, vegetao e composio racial da populao esclareciam a psicologia dos diferentes tipos regionais,

    servindo como explicao para as variaes de costumes, hbitos, prticas sociais e polticas. 11 O centro-sul, principalmente So Paulo, passava por mudanas significativas nos campos econmico e

    tcnico, como a industrializao, a urbanizao, a imigrao em massa e o fim da escravido. Alm disso, as

    inovaes trazidas pelo Modernismo se desdobraram em novas concepes acerca da sociedade, da

    modernizao e da modernidade (ALBUQUERQUE JR., 2001). 12 Segundo Albuquerque Jr., uma das reaes a esse processo foi a emergncia do Regionalismo

    Tradicionalista, que teve em Gilberto Freyre um de seus expoentes. Esta leitura da regio buscava [...] a unidade do todo, a partir da observao profunda de suas partes fragmentadas. Ele surge das prticas polticas

    que levam descoberta da regio como uma arma contra a excessiva centralizao poltica e econmica, uma

    reao aos processos centralizadores do desenvolvimento capitalista. (ALBUQUERQUE Jr., 2001, p.87). 13 LEITE, Lgia Chiappini. So Paulo, 1971. In: Arquivo Athos Damasceno Ferreira/IHGRGS, correspondncia

    passiva/outros estados.

  • 16

    histria. Profundas diferenas e lapsos de tempo separavam a cultura brasileira da civilizao

    ocidental. Passado e futuro coexistiam de maneira catica no presente. Progresso e tradio

    coabitavam em estruturas sociais arcaicas.

    nessa atmosfera, de certa maneira angustiante, que surge o modernismo. Segundo

    Eduardo Jardim de Moraes (1988), a modernizao exaltada a partir de ento era percebida

    como atualizao do Brasil em relao s naes civilizadas.14 Contudo, existia a noo

    (sobretudo a partir de 1924, na segunda fase do movimento) de que a modernizao da cultura

    s se viabilizaria se estivesse assentada em tradies nacionais caracterizadas como

    populares15

    .

    No Rio Grande do Sul, a Semana de Arte Moderna de 1922 desencadeou uma srie de

    debates e polmicas acerca de temas como brasilidade, regionalismo e arte moderna, bem

    como sobre o papel do intelectual sul-rio-grandense ante a modernizao (VIANNA, 2006). O

    futuro identitrio do homem do pampa em tempos de progresso estava em questo16

    . Segundo

    14 Por seu turno e enfatizando outro aspecto da questo, Velloso (1993) aponta que o ps-Primeira Guerra

    Mundial levou a alteraes fundamentais na forma de se pensar o Brasil. A crise de valores do cenrio

    europeu manifestou-se no pas com a evocao, pelos intelectuais, do discurso da nova versus a velha

    civilizao. Era necessrio que o jovem Brasil superasse o atraso e a dependncia cultural. O mito

    cientificista do progresso indefinido cara por terra. A decadncia da civilizao europeia era interpretada

    como o advento de uma nova Era, na qual a Amrica exerceria o papel de lder mundial. O surgimento do

    movimento modernista relaciona-se busca por expressar simbolicamente o fluxo da vida moderna. A

    Paulicia Desvairada (1922), de Mrio de Andrade, representa bem o esprito do perodo. So Paulo a

    imagem da modernidade e do pas do futuro. 15 Conforme Velloso (1993), na medida em que o modernismo confere notria importncia ao folclore e aos

    costumes das diferentes regies culturais brasileiras, ele introduz uma nova concepo do regional. As

    diferenas regionais brasileiras passam a ser vistas como partes de uma totalidade corporificada pela nao. A perspectiva de anlise extrair do singular os elementos capazes de informar o conjunto. Portanto, a noo de conjunto cultural que deve direcionar a pesquisa do regional (VELLOSO, 1993, p. 97). Os modernistas criaram uma nova verso sobre a formao tnica brasileira, inovadora em relao clssica teoria da

    trindade racial composta pelo branco, o negro e o ndio. Um exemplo disso o lugar especial reservado imigrao. De modo geral, a imigrao era vista como elemento passvel de ser integrado pela cultura

    nacional, no sendo uma ameaa. O grupo dos verde-amarelos, por exemplo, defende o nacionalismo integralizador, apontando a influncia estrangeira, se reduzida ao denominador comum da nacionalidade, como benfica ao pas. O imigrante sempre visto como elemento integrvel, capaz de contribuir para o

    enriquecimento da nao. (VELLOSO, 1993, 106) 16 Outro exemplo de polmica influenciada pelo modernismo foi o debate entre Rubem de Barcellos e Moyss

    Vellinho (1926). O objeto da discusso foi o livro de Alcides Maya intitulado Runas Vivas, publicado em

    1910. A polmica teve incio quando Vellinho, sob o pseudnimo de Paulo Arinos, criticou Maya e Barcellos saiu na defesa do autor de Runas Vivas. Inicialmente, a divergncia entre os crticos se centrava nos critrios

    legtimos para a representao literria da sociedade regional. Em sintonia com os modernistas de 1922,

    Vellinho criticava o saudosismo de Maya, entendendo ser esta uma atitude inadequada abordagem do

    passado bem como seu estilo academicista. Para representar a regio, seus verbalismos eram inadequados.

    Como assinala Rodrigues (2006), o crtico denunciava a desconformidade entre linguagem, estilo e objeto na

    obra de Maya e questionava a relao entre experincia e expectativa que deveria ser de esperana, e no de

    destruio.

  • 17

    Lgia Chiappini Leite (1978), na dcada de 1920 havia um projeto explcito de renovao da

    produo regionalista entre a intelectualidade sul-rio-grandense17

    .

    O impacto do modernismo na narrativa de Athos Damasceno pode ser associado

    grande ateno que o autor confere, a partir dos anos 1930, modernizao da cidade, aos

    imigrantes e s manifestaes culturais dos ascendentes aorianos18

    . As trs temticas

    convergiam para uma representao da regio vinculada culturalmente nao, de modo que

    a identidade regional fosse intimamente atrelada identidade nacional. A partir dos anos 1940

    se observa com maior nitidez os esforos do autor neste sentido. Tambm neste momento

    que os porto-alegrenses experimentam mais intensamente a modernizao do espao urbano

    (MONTEIRO, 2006).

    A propsito desta temtica, interessante mencionar a reflexo de Marshall Berman

    (1986) segundo a qual na modernidade todos os indivduos so movidos, ao mesmo tempo,

    pelo desejo da mudana de si e do mundo e pelo terror da desorientao e da

    desintegrao. Dessa forma:

    A experincia ambiental da modernidade anula todas as fronteiras

    geogrficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religio e ideologia:

    nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espcie humana.

    Porm, uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos

    despeja a todos num turbilho de permanente desintegrao e mudana,

    de luta e contradio, de ambigidade e angstia. Ser moderno fazer

    parte de um universo no qual, como disse Marx, tudo o que slido desmancha no ar. (BERMAN, 1986, p. 15)

    Conforme o autor, no sculo XX este processo de modernizao se expande a ponto de

    abarcar virtualmente o mundo todo. Dessa maneira, a ideia de modernidade, concebida em

    inmeros e fragmentrios caminhos, perde muito de sua nitidez e profundidade tornando- se

    incapaz de organizar e dar sentido vida das pessoas.

    17 A partir da anlise dos principais livros de contos publicados por volta de 1925 e da comparao entre

    Simes Lopes Neto (modelo a ser seguido) e Alcides Maya (modelo a superar), Chiappini (1978) constatou o fracasso quase total, na prtica, na proposio de um regionalismo renovado. Para Chiappini, a presena do Modernismo no Rio Grande do Sul verdadeira quanto aos fatos verificados: a constituio de um grupo que

    reunia os escritores, a criao de uma revista e de uma pgina literria no Dirio de Notcias e o

    envolvimento em discusses de ideias de vanguarda e em polmicas. Quanto s obras produzidas, porm, sua

    presena no propriamente verdadeira (do ponto de vista esttico). 18 Outro movimento que colabora para a compreenso da narrativa de Athos Damasceno o movimento

    folclrico, estudado por Letcia Nedel (2005). Este vnculo ser explorado no captulo I.

  • 18

    Outro pensador que auxilia na compreenso do fenmeno da modernidade Anthony

    Giddens (2002)19

    . Ao buscar explicar a modernidade ele afirma que, em diversos aspectos

    fundamentais, as instituies modernas apresentam descontinuidades com as culturas e modos

    de vida pr-modernos. Da ser uma marca fundamental da era moderna o seu extremo

    dinamismo: O mundo moderno um mundo em disparada: no s o ritmo da mudana

    social muito mais rpido que em qualquer sistema anterior; mas tambm a amplitude e a

    profundidade com que ela afeta prticas sociais e modos de comportamento preexistentes so

    maiores. (GIDDENS, 2002, p. 21-22)

    Na outrora pacata capital da Provncia, em meados do sculo XX, o processo de

    modernizao citado por Berman parece iniciar sua marcha20. Est claro que uma marcha

    tmida se comparada das metrpoles do perodo. Tambm evidente que no podemos

    afirmar que a Porto Alegre de ento experimentava a anulao das fronteiras descritas por

    Berman. Todavia, ao analisarmos as narrativas dos intelectuais de ento, entre eles Athos

    Damasceno, podemos observar que a sensao de inconstncia, caracterstica da

    modernidade, est sendo experienciada neste momento. O fenmeno descrito por Berman e

    Giddens, portanto, pode ter influenciado sobremaneira a escrita de Damasceno sobre o

    passado e o presente da regio. A hiptese de que, a partir dos anos 1940, o autor d vazo

    s suas reflexes gestadas j desde os anos 1930 acerca do impacto da modernidade e suas

    consequncias manifestas na modernizao e urbanizao da cidade. A sua representao do

    passado da cidade tem como ponto de partida uma atmosfera de rpida transformao dos

    espaos e das relaes sociais. Sendo assim, parece-me que a convergncia destes processos

    contribui para o advento de duas grandes questes na representao do passado no autor: a da

    identidade dos sul-rio-grandenses e a das relaes da sociedade com o tempo.

    Acerca da primeira questo, fundamental atentarmos para o seu conceito. De acordo

    com Hall (2006), ele demasiado complexo, pouco desenvolvido e pouco compreendido

    pela Cincia Social contempornea (p. 87). Porm, a despeito da complexidade do termo

    identidade, o autor formula trs concepes acerca dele. A concepo do sujeito: 1) do

    19 O estudioso emprega o termo modernidade em um sentido geral para referir-se s instituies e aos modos

    de comportamento estabelecidos pela primeira vez na Europa depois do feudalismo, mas que no sculo XX se tornaram mundiais em seu impacto.

    20 Estou ciente de que a Porto Alegre da primeira metade do sculo XX era acanhada segundo os padres

    urbanos vigentes. No entanto, segundo Pesavento (1995), e pelo que se depreende da anlise de Damasceno,

    a cidade referida pelos contemporneos como metrpole, vivenciando um ritmo alucinante de progresso e desenvolvimento (1995, p. 282-283). A autora afirma que, mesmo no sendo factualmente uma metrpole, a capital sentida pelos escritores como tal. Esta afirmao orientar minhas consideraes no captulo dois.

  • 19

    Iluminismo; 2) Sociolgico e 3) Ps-moderno. Para os propsitos desta introduo, cabe

    aprofundar a caracterizao dos dois ltimos21

    .

    A noo de sujeito sociolgico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e

    a conscincia de que esse ncleo interior do sujeito no era autnomo e autossuficiente, tal

    como o sujeito do Iluminismo era compreendido, mas era formado na relao com outras

    pessoas importantes para ele (HALL, 2006, p.11), que mediavam para o sujeito valores,

    sentidos e smbolos a cultura dos mundos que ele/ela habitava. Esta , pois, uma

    concepo interativa da identidade e do eu. De acordo com essa viso, que se tornou a

    concepo sociolgica clssica da questo, a identidade formada na interao entre o eu e

    a sociedade. Entende-se que o sujeito tem um ncleo ou essncia interior que o eu real,

    mas este formado e modificado em dilogo com os mundos culturais exteriores e as

    identidades que esses mundos oferecem.

    Segundo Hall, este modelo sociolgico interativo, com sua reciprocidade estvel entre

    interior e exterior, , em grande parte, um produto da primeira metade do sculo XX.

    Ocorre que, exatamente no mesmo perodo, um quadro mais perturbador do sujeito e da

    identidade estava comeando a emergir dos movimentos estticos e intelectuais associado

    com o surgimento do Modernismo (HALL, 2006, p.32-33). Neste quadro:

    Encontramos, aqui, a figura do indivduo isolado, exilado ou alienado,

    colocado contra o pano-de-fundo da multido ou da metrpole annima e

    impessoal. Exemplos disso incluem a famosa descrio do poeta

    Baudelaire em Pintor da vida moderna, que ergue sua casa em meio ao ir e vir dos movimentos, em meio ao fugidio e multido, entra na multido como se fosse um imenso reservatrio de energia eltrica; o flaneur (ou o vagabundo), que vagueia entre as novas arcadas das lojas,

    observando o passageiro espetculo da metrpole que Walter Benjamin

    celebrou no seu ensaio sobre a Paris de Baudelaire [...]. Vrias dessas

    instncias exemplares da modernidade, como as chama Frisby, povoam as pginas dos principais tericos sociais da virada do sculo [...] todos os

    quais tentaram capturar as caractersticas essenciais da modernidade em

    ensaios famosos [...]. Estas imagens mostraram-se profticas do que iria

    acontecer ao sujeito cartesiano e ao sujeito sociolgico na modernidade

    tardia (HALL, 2006, p. 31-32)

    21 Em relao ao sujeito do Iluminismo, Hall afirma que estava baseado numa concepo da pessoa humana

    como um indivduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razo, de conscincia, de ao,

    cujo centro consistia num ncleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo contnuo ou idntico a ele ao longo da existncia do indivduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa [...] pode-se ver que essa

    era uma concepo muito individualista do sujeito e da sua identidade. (HALL, 2006, p. 10-11)

  • 20

    Est claro que o autor refere-se a uma situao experimentada, principalmente, pela

    Europa Ocidental, mas as definies de identidade por ele propostas talvez possam ser

    utilizadas para compreender a atmosfera em que se processa a representao do passado de

    Athos Damasceno. A proposta de que o sujeito narrado por Damasceno pode ser definido

    como sociolgico, tal qual descrito por Hall. A situao de intensa modernizao da cidade,

    entretanto, leva o historiador a visualizar imagens profticas tais como as citadas no excerto

    acima e, de certa forma, a recear uma possvel descontinuidade entre identidade e passado,

    ruptura esta caracterstica do sujeito da modernidade tardia de Hall. Esta questo ser

    aprofundada no captulo dois, com base, principalmente, no livro Imagens Sentimentais da

    Cidade (1940), no qual se tornam evidentes os receios do autor no que toca ao surgimento da

    multido indiferente ao passado da cidade. A problemtica da identidade est imbricada s

    relaes da sociedade com o tempo, tambm objeto das preocupaes de Athos Damasceno.

    De acordo com Monteiro (2006a) na dcada de 1940 a sociedade porto-alegrense

    experimentava uma acelerao da temporalidade. A experincia do fenmeno teria gerado

    na populao local uma demanda de memria, contemplada na obra dos intelectuais que

    escreviam sobre a cidade, tais como o cronista Nilo Ruschel, objeto de sua reflexo22

    .

    Segundo o autor, a Porto Alegre dos anos 1940-1970 passou por diversas transformaes na

    paisagem urbana e na forma de gesto do espao. No perodo houve um grande crescimento

    da populao urbana e da rea da cidade, que se estendeu e alcanou municpios vizinhos,

    integrando-os atravs de um processo de conurbao. Esse movimento foi acompanhado pela

    verticalizao da cidade atravs da construo de edifcios, de escritrios e de apartamentos,

    na rea central. Foi uma poca de diversas reformas urbanas realizadas pelo poder pblico,

    acompanhadas de uma srie de desapropriaes e demolies.

    Maronezze (2007), por sua vez, aborda os conflitos entre tradio e modernidade

    suscitados neste novo cenrio. Ao atentar aos relatos de memria de autores como

    Theodomiro Tostes, companheiro de gerao de Athos, publicados nos anos 1970, o autor

    sugere a ocorrncia de um declnio das ideias ligadas ao moderno e sua temporalidade. Isso

    se d em funo do impacto do tempo eletrnico, entre outros fatores, o qual altera

    22 Nesse sentido interessante a interpretao de Ricoeur (2007) que, ao refletir sobre as causas da fragilidade

    da memria (que leva manipulao da memria manifesta em excesso, abuso e, s vezes, sua insuficincia) aborda a questo em termos de um cruzamento entre a problemtica da memria e da

    identidade. Assim, a partir da problemtica da identidade que ele busca as causas da fragilidade da

    memria. Para o autor, duas causas da fragilidade da identidade seriam a sua difcil relao com o tempo,

    uma vez que esta uma dificuldade primria que, precisamente, justifica recurso memria, enquanto componente temporal da identidade, juntamente com a avaliao do presente e a projeo do futuro e o confronto com outrem, percebido como uma ameaa: um fato que o outro, por ser outro, passa a ser percebido como um perigo para a identidade prpria, tanto a do ns, como a do eu. (RICOEUR, 2007, p.94)

  • 21

    profundamente a ideia de cidade enquanto lugar do encontro pblico e suas sociabilidades.

    Desse modo: O conjunto da pesquisa sugere, ento, que o projeto de cidade moderna, a

    metrpole acalentada em Porto Alegre na primeira metade do sculo XX, transfigura-se com a

    mudana do regime de historicidade. (MARONEZZE, 2007, p. 15).

    A afirmao de que estaria ocorrendo uma mudana no regime de historicidade

    (HARTOG, 2003) na Porto Alegre da segunda metade do sculo XX talvez seja precipitada.

    A minha hiptese, elaborada a partir da anlise da narrativa de Athos, de que este um

    momento em que as relaes da sociedade com o tempo entraram em crise. Talvez esteja em

    questo, portanto, aquilo que Franois Hartog (2003) descreve como um perodo em que o

    regime de historicidade dominante est sendo questionado, o que no pressupe

    necessariamente o seu encerramento. Dessa maneira, perguntar sobre a relao que Athos

    evidencia, em sua representao do passado, com o tempo, contribuiria para apontar uma

    entre tantas possveis concepes de tempo que estariam coexistindo na sociedade porto-

    alegrense do sculo XX.

    ***

    A fim de introduzir os referenciais tericos aqui privilegiados, necessria uma

    reflexo sobre as abordagens com as quais este estudo busca estabelecer uma interlocuo e

    aquelas com as quais estabelecer um distanciamento. Em relao segunda possibilidade, no

    que toca historiografia sul-rio-grandense, busca-se problematizar os limites das pesquisas

    que, segundo Nedel e Rodrigues (2005), tiveram dois objetivos centrais: elaborar um

    recenseamento de autores e obras e analisar as relaes entre prtica historiogrfica e os

    processos de cooptao ideolgica.

    As primeiras anlises da produo de autores como Moyss Vellinho, Mansueto

    Bernardi, Darcy Azambuja e Othelo Rosa, que estiveram agrupados em torno do IHGRGS23

    ,

    buscavam estabelecer um rompimento com a tradio historicista destes pesquisadores. A

    maioria das anlises, no entanto, fornecia mais um desmentido que uma tentativa de

    23 A tradio historiogrfica desenvolvida pelos scios do Instituto, que contribuiu para a especializao da

    Histria no estado, marcada pela concentrao no tema das origens. A erudio documentria na qual baseavam suas pesquisas pressupunha o entendimento do objeto como uma realidade externa a qualquer

    problemtica levantada pelo pesquisador. O documento, dessa forma, era o fiel depositrio da verdade,

    assegurador da objetividade dos estudos histricos. De acordo com Nedel e Rodrigues, o saber assim

    produzido apenas conciliava o necessrio teor verdico das narrativas s funes seletiva e afetiva no crtica da memria, enquanto instncia de sacralizao do passado. (2005, p.166). Com isso, as pesquisas do IHGRGS concederam aos agentes da conquista lusitana e aos prceres farroupilhas o ttulo de

    fundadores do Rio Grande.

  • 22

    explicao legitimidade desfrutada pelo mito do gauchismo e seus derivados (NEDEL;

    RODRIGUES, 2005, p. 166).24

    As autoras propem que, ao invs de reputar esta produo como inverdica, talvez

    seja mais interessante perguntar como essa construo ideal das propriedades da regio se

    processou, de modo a adquirir feies de perenidade, naturalidade e um extremo potencial de

    adeso subjetiva entre diferentes grupos e reas do estado. (NEDEL; RODRIGUES, 2005, p.

    170). Para compreender a questo, seria mais profcuo tomar o discurso dos personagens

    envolvidos na profisso histrica no estado como o de enquadramento de uma memria

    oficial, em constante processo de reviso e construo, sujeita a disputas, pluralidades e

    contradies. dessa maneira que esta pesquisa busca oferecer uma contribuio ao estudo da

    historiografia sul-rio-grandense. Ao eleger como problema de pesquisa a anlise do tipo de

    representao do passado elaborada por Athos Damasceno Ferreira, pretende-se compreender

    como este autor constri a sua representao da regio, considerando que, ao mesmo tempo

    em que rompe com as outras imagens da regio at ento constitudas, preserva traos comuns

    para com elas.

    Dessa forma, em relao ao estado da pesquisa sobre a histria do Rio Grande do Sul

    no perodo em que Athos passou a se dedicar aos estudos histricos, importante ressaltar

    que ele foi includo por Nedel (2005) em um grupo de pesquisadores que defendia a

    diversificao relativa dos temas de pesquisa, a incorporao do linguajar e a contribuio

    tnica de negros e indgenas, bem como de seu folclore e sua religiosidade25

    . Entre estes

    autores esto os nomes de Dante de Layano, Manoelito de Ornellas e Walter Spalding.

    A partir deste novo olhar, o que se observa nos anos 1940 e 1950 o aporte de

    importantes mudanas no panorama intelectual do estado, visto que surgem abordagens

    diferenciadas sobre a sua histria e ocorre o alargamento do campo de atuao de

    pesquisadores. Apesar destas evidentes aproximaes, no entanto, necessrio destacar a

    especificidade de Athos em relao a este grupo, no sentido de que ele um dos poucos a

    escolher a cidade e a cultura que nela se desenvolveu como objeto de pesquisa e locus

    privilegiado de busca pelos elementos que pudessem conferir brasilidade regio. Subjacente

    escolha, parece-me, encontra-se a intencionalidade de explorar o processo de modernizao

    24 Exemplos destas anlises seriam a coleo Os gachos, lanada no incio dos anos 1990 e no diretamente

    voltada ao pblico acadmico, as obras e artigos formados pela coleo Documenta, publicados pela editora

    Mercado Aberto, a dissertao de Mestrado de Marlene Medglia Almeida (defendida em 1983 na UFRGS) Introduo ao Estudo da Historiografia Sul-rio-grandense: inovaes e recorrncias do discurso oficial

    (1920-1935) e a tese de doutorado de Ieda Gutfreind (USP, 1989) A construo de uma Identidade: a historiografia sul-rio-grandense de 1925 a 1975.

    25 No caso de Athos Damasceno, como veremos ao longo deste estudo, a ateno contribuio dos indgenas

    bastante marginal.

  • 23

    da regio desde o sculo dezenove at meados do sculo vinte. Esta era a face da regio a ser

    destacada. No um gacho congelado nos pampas, mas um sul-rio-grandense que

    experimentou um longo processo de transformaes, mudando tambm (mas no

    completamente) e se adaptando aos novos tempos.

    A temtica desta pesquisa vincula-se, pois, aos debates mais recentes acerca da teoria

    da histria e aos estudos sobre a historiografia brasileira e sul-rio-grandense que buscam uma

    perspectiva de anlise que privilegia os conceitos e contextos26

    . Ao ocupar-se de questes

    referentes produo do conhecimento histrico, esta dissertao insere-se na rea da

    historiografia, buscando contribuir para a discusso em torno da compreenso da historicidade

    do ofcio do historiador e da disciplina histrica, visto que, de acordo com Guimares (2000),

    a historiografia enquanto rea especfica de conhecimento e pesquisa dentro da disciplina

    histrica pode contribuir para repensar a historicidade da disciplina: preciso que a prpria

    escrita da histria se submeta ao rigor do exame crtico como forma de dessacralizarmos uma

    memria construda acerca desta mesma escrita. (GUIMARES, 2000, p. 22).

    Ao buscar o afastamento da chamada historiografia crtica dos anos 1980, esta

    dissertao se valer de perspectivas mais recentes (sobretudo a partir dos anos 2000) que

    vm sendo elaboradas de forma diversa, nas quais os textos deixam de ser meros pretextos,

    para se tornarem o ncleo central da investigao (GUIMARES, 2000). O tipo de anlise

    aqui exposta por meio das palavras de Guimares, por seu turno, est associado a um debate

    maior desenvolvido durante a dcada de oitenta, que incentivou as aproximaes entre

    historiografia e epistemologia. Nesse sentido, Pierre Nora (1993) afirma, em seu texto

    publicado originalmente na dcada de oitenta intitulado Les lieux de mmorie, que o despertar

    de uma conscincia historiogrfica na Frana um dos sinais de um arrancar da histria da

    memria. Com o nascimento de uma preocupao historiogrfica, a disciplina ingressa em sua

    era epistemolgica e empenha-se em buscar em si mesma o que no ela prpria,

    descobrindo-se como vtima da memria e fazendo um esforo para se livrar dela (NORA,

    1993, p. 10).

    26 Alguns exemplos dessa perspectiva so as pesquisas de Nedel (2005), Rodrigues (2006), Boeira (2009), Silva

    (2010) e Antoniolli (2011). Com relao rea da historiografia no pas, nos estudos mais recentes vm

    sendo aprofundadas as relaes entre escrita da histria e representao. Para o caso nacional, cito Manoel

    Salgado Guimares (1988) e Temstocles Cezar (2003, 2004), os quais contemplam de maneira privilegiada a

    historicidade das teorias, dos mtodos, tcnicas e estratgias de legitimao intelectual das escritas s quais

    se detm.

  • 24

    O movimento reflexivo dos anos 1980 j foi comentado por Franois Hartog27

    ,

    segundo o qual a partir de ento que ocorre uma maior conexo entre os termos

    historiografia e epistemologia, constituindo-se uma espcie de epistemologia histrica ou

    uma historiografia epistemolgica, na qual um termo completa o outro a fim de elaborar

    uma abordagem que privilegia os conceitos e contextos, as noes e os meios, mais vigilante

    s sirenes dos reducionismos (HARTOG, 2000, p. 81-82). De acordo com Oliveira (2006), a

    unio dos termos sinaliza a possibilidade de uma histria da histria em que obras e autores

    so tomados como objetos de uma reflexo terica sobre as condies que presidem a

    construo do saber historiogrfico. Uma das tarefas dos estudos realizados neste campo

    seria, portanto, responder questo colocada por Michel de Certeau (1982, p. 17): O que

    fabrica o historiador quando faz histria?

    O historiador francs, que introduz a noo atualmente clssica de operao

    historiogrfica (CERTEAU, 1982) ser um dos referenciais tericos centrais desta pesquisa,

    visto que justamente o texto de Athos Damasceno a fonte principal desta dissertao. Alm

    disso, ser considerada aqui a releitura desta operao proposta por Paul Ricoeur (2007).

    De acordo com Certeau (1982), encarar a histria como uma operao significa que

    devemos compreend-la como a relao entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma

    profisso), procedimentos de anlise (uma disciplina) e a construo de um texto (uma

    literatura). Para o autor, cada lugar de onde o discurso do historiador se articula possui as leis

    do meio, que de certa forma regulam o trabalho do historiador28

    . Antes de saber o que a

    histria diz de uma sociedade, necessrio saber como funciona dentro dela. A funo do

    lugar tornar possveis certas pesquisas, em funo de conjunturas e problemticas comuns, e

    impossibilitar outras. Sendo assim, um estudo particular definido pela relao que mantm

    com os contemporneos e com as problemticas exploradas pelo grupo e os pontos

    estratgicos que a constituem.

    Levando isso em conta, ser indagado qual era e como se estruturava o lugar social de

    onde Damasceno produzia seus textos, tendo em vista que o sentido que o historiador d a sua

    27 Em uma perspectiva crtica sobre a obra de Nora, Franois Hartog (1997) interroga sua interpretao sobre a

    histria da Frana e o projeto cultural que a sustenta. Assim, esse movimento reflexivo seria uma falncia dos

    grandes paradigmas explicativos dos anos 1960 (OLIVEIRA, 2006, p. 5). Hartog introduz a noo de regime

    de historicidade como sendo uma formulao sbia da experincia do tempo que, em retorno, modela nossos modos de dizer e de viver o nosso prprio tempo. (HARTOG, 1997, p.8). Nos anos 1980, quando da escrita dos Lieux, o regime moderno de historicidade, caracterizado pelo futurismo, estava em crise. Observa-

    se, ao longo do sculo XX, uma progressiva invaso de um presente cada vez mais inchado. Passou-se do

    futurismo para o presentismo. Hartog conclui que a obra de Nora sintomtica do presentismo. 28 A afirmao de que toda a pesquisa historiogrfica est ligada a um lugar de produo no quer dizer que o

    discurso seja reduzido ao lugar. A pesquisa est, isto sim, submetida a imposies e remete uma

    particularidade (CERTEAU, 1982).

  • 25

    produo est relacionado com o lugar a partir do qual ele produz. Partindo do fato de que

    Athos tinha diversos vnculos, farei neles um recorte substancial a fim de enfocar aquele que

    considero um dos principais espaos de sociabilidade do escritor: a Editora Globo. Alm

    deste, farei algumas consideraes a respeito de sua participao como afiliado da Comisso

    Estadual do Folclore.

    A justificativa da escolha reside no fato de que a Editora Globo reuniu durante vrios

    anos a intelectualidade local, parte fundamental da rede de sociabilidade do escritor. Ali o

    Grupo se reunia e debatia as questes quentes da gerao (TOSTES, 1989; CHIAPPINI,

    1978). Quanto Comisso Estadual do Folclore, da qual Athos foi um dos scios, sabe-se que

    havia ali desde fins dos anos 1940 uma preocupao em evidenciar os diferentes sujeitos que

    contriburam para a conformao da cultura regional, bem como uma expressiva ateno s

    manifestaes da cultura popular. Nesse sentido, a produo de Damasceno que buscou

    compreender as peculiaridades e costumes dos habitantes da capital, esteve em consonncia

    com o discurso e objetivos da associao. Sendo assim, cabe indagar quais eram as

    permisses e interdies inerentes a estes lugares29

    . As fontes utilizadas para a anlise do

    lugar social a partir do qual Athos escreve sua histria da regio so predominantemente

    livros de memrias de contemporneos do autor30

    e o seu fundo pessoal, composto por sua

    correspondncia passiva.

    semelhana da proposio de Michel de Certeau, para Ricoeur (2007) a constituio

    do conhecimento histrico se d por meio de uma operao composta por trs fases: a fase de

    documental, onde ocorre a seleo e anlise de vestgios, isto , o testemunho (daqueles que

    declaram ter se encontrado no local onde as coisas aconteceram), a fase

    explicativa/compreensiva, na qual se d a mediao de um esquema de

    explicao/compreenso, e a fase da representao historiadora escriturria ou literria que

    seria a aquisio de uma forma textual definitiva. As trs etapas da operao histrica no

    constituem estgios sucessivos, mas sim nveis intrincados que apenas para efeitos didticos

    assumem uma aparncia de sucesso cronolgica. Dessa forma, a operao de escrita da

    histria est presente em todas as fases.

    29 A influncia do modernismo paulista, por exemplo, no Grupo da Globo destacada por Erico Verissimo

    (1968), que o descreve como sendo, nos anos 1930, a cabea-de-ponta da Semana de Arte Moderna de 1922.

    30 H um grande nmero relatos de memria entre os companheiros de gerao de Athos. As principais para

    este estudo so: GOUVA. Paulo de. O Grupo: outras figuras outras paisagens. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1976; TOSTES, Theodemiro. Nosso Bairro: memrias. Fundao Paulo do Couto e Silva,

    Porto Alegre, 1989; BERTASO, Jos Otvio. A Globo da Rua da Praia. So Paulo: Globo, 1993.;

    VERISSIMO, Erico. Um certo Henrique Bertaso. Porto Alegre: Globo, 1973.

  • 26

    As consideraes de Ricoeur auxiliam na compreenso do redirecionamento da

    produo de Damasceno com enfoque na rea da histria a partir dos anos 1940. Uma das

    caractersticas da operao historiogrfica, segundo Ricoeur, a pretenso verdade que

    confere ao conhecimento histrico seu afastamento com relao fico31

    . Para legitimar o

    modelo de regio ao qual pretendia, construdo em dilogo com seus contemporneos,

    Damasceno entendeu que a histria era a melhor opo. A busca pela verdade inerente

    histria, sua visada referencial, justificaria, mais do que a fico da literatura, uma

    reordenao de valores do passado regional e a atualizao de temas da pesquisa. Seria

    reconfigurada, assim, por meio de um processo de reescrita da histria, uma outra imagem do

    passado (e do futuro) da regio.

    A noo de regime de historicidade, cunhada por Franois Hartog,32

    contribui para a

    compreenso da concepo de tempo do autor. Tais regimes so compreendidos por Hartog

    como uma expresso da experincia temporal, que no marcam o tempo de forma neutra, mas

    sim organizam o passado como uma sequncia de estruturas, visto que:

    Trata-se de um enquadramento acadmico da experincia (Erfahrung) do

    tempo, que, em contrapartida, conforma nossos modos de discorrer

    acerca de e de vivenciar nosso prprio tempo. Abre a possibilidade de e

    tambm circunscreve um espao para obrar e pensar. Dota de um ritmo a

    marca do tempo, e representa, como se o fosse, uma ordem do tempo, qual pode-se subscrever ou, ao contrrio, e o que ocorre na maioria das

    vezes, tentar evadir-se, buscando elaborar alguma alternativa.

    (HARTOG, 2003, p. 12)

    Conforme o autor, no antigo regime de historicidade, predominante at a Revoluo

    Francesa, o topos da histria mestra da vida era plenamente vlido. No regime moderno,

    emergente da experincia da Revoluo, o foco passa a se direcionar ao futuro, tornando-se o

    passado obsoleto. As divises entre um e outro regime no so automticas. Hartog destaca

    que um regime no uma entidade metafsica, mas um arcabouo durvel, que desafiado

    logo que se torna predominante. Dessa forma, existem diversos momentos em que h o seu

    31 O autor enfatiza na operao historiogrfica a visada referencial da histria. A referncia, aqui, remete

    exterioridade do discurso e a partir dela que conhecimento histrico se caracteriza pela busca da verdade. A especificidade da referencialidade em regime historiogrfico deve transitar pela prova documental, pela explicao causal/final e pela composio literria. Tal arcabouo trplice continua a ser o segredo do

    conhecimento histrico (RICOEUR, 2007, p. 263). 32

    A expresso surgiu pela primeira vez em 1993, em texto de Franois Hartog em parceria com Grard Lenclud

    e j foi comentada e aprofundada em diversos trabalhos posteriores do autor. Sobre a formulao da noo de

    regimes de historicidade ver DELACROIX, Christian; DOSSE, Franois; GARCIA, Patrick. Un nuevo rgimen de historicidad?. In: Historicidades. 1 ed., Buenos Aires: Waldhuter Editores, 2010, p. 143-229.

  • 27

    questionamento, o que no necessariamente leva ao seu esgotamento ou sucesso33

    . No se

    trata, evidentemente, de transpor a experincia europeia narrada pelo historiador francs

    artificialmente para o contexto regional, mas sim investigar a relao que o autor aqui

    estudado estabelece com o tempo e as maneiras por meio das quais articula passado, presente

    e futuro em sua narrativa.

    Em relao relevncia de se atentar composio narrativa do texto histrico, sero

    observadas as reflexes de Luiz Costa Lima (2006), o qual sugere que o pesquisador

    contemporneo considere o historiador como escritor, no sentido daquele que trabalha a

    construo do seu texto. Dessa forma, o pesquisador escaparia condio de mero

    comentador do texto historiogrfico e tambm crena literal na histria como aportica

    afirmao da verdade, admitindo a inevitvel parcialidade de quem escreve histria. Para

    Lima, preocupar-se com a construo do texto no supe considerar-se a verdade uma

    falcia, uma vez que a procura de dar conta do que houve e por que assim foi o princpio

    diferenciador da escrita da histria. Esta a aporia da histria. Ocorre que, se prprio de

    uma aporia tomar sua afirmao inicial como indemonstrvel, seu risco est em converter sua

    ausncia de poros a-poria em blindagem que impede o questionamento.

    Ao encontro das reflexes de Costa Lima dirige-se a tipologia de anlise proposta por

    Grard Genette (1997)34

    . O autor se detm sobre os textos de acompanhamento de uma obra,

    os chamados paratextos, que so responsveis por habilitar um texto a se tornar um livro e

    ser oferecido a seus leitores como tal e, mais amplamente, ao pblico. Dessa forma:

    Mais do que um limite ou uma fronteira cerrada, o paratexto ,

    preferencialmente, um limiar ou, para usar uma palavra que Borges utilizou a propsito do prefcio um vestbulo que oferece ao mundo em geral a possibilidade tanto de pisar dentro quanto de voltar atrs. Esta

    uma zona indefinida entre o interior e o exterior. (GENETTE, 1997, p.1-2).

    Exemplos de paratextos so informaes sobre o autor, notas da edio, glossrio,

    bibliografia, prefcios, posfcios, notcias de apresentao, citaes e referncias existentes.

    33 No caso europeu, mais especificamente francs, o regime moderno, aps dcadas de questionamento,

    sobretudo nos perodos dos ps-guerras, foi sucedido pelo que o autor chama de presentismo, marcado por

    uma nsia de memria e de identidade, obcecado pela comemorao: Assim fomos do futurismo para o presentismo e ficamos habitando um presente hipertrofiado que tem a pretenso de ser seu prprio horizonte:

    sem passado sem futuro, ou a gerar seu prprio passado e seu prprio futuro. (HARTOG, 2003, p, 27). Em entrevista a Estrada Rodrigues e Nicolazzi (2012), Franois Hartog, ao formular a questo nos termos de

    Koselleck, define o regime presentista como um momento no qual o presente est isolado, sem passado e

    sem futuro. A tenso entre espao de experincia e horizonte de expectativas fica em suspenso, gerando um

    prejuzo para a relao da sociedade com o tempo. 34 As tradues so de minha responsabilidade.

  • 28

    Para tornar a definio mais clara, o autor questiona: Limitados ao texto sozinho e sem a

    orientao de um conjunto de instrues, como leramos Ulisses, de Joyce, se ele no fosse

    intitulado Ulisses? (GENETTE, 1997, p.2). Ao dedicar alguma ateno aos paratextos dos

    livros de Athos, torna-se plausvel l-lo como um pesquisador preocupado com o estudo do

    cotidiano. Este aspecto da produo do autor j foi observado por diversos dos seus

    comentadores35

    e assumido aqui como chave de leitura para o estudo da narrativa do autor.

    A questo ser aprofundada no captulo dois.

    Por fim, cabe explicitar a apropriao das consideraes de Peter Gay (1990) acerca

    do estilo na histria. P. Gay afirma que o historiador um escritor profissional e, ao mesmo

    tempo, um leitor profissional. Entender o historiador como escritor profissional pressupe

    considerar que ele sofre as presses de se tornar estilista, mantendo-se cientista: Cabe-lhe

    proporcionar prazer sem comprometer a verdade. (GAY, 1990, p. 18). Assim, a ideia de

    estilo vem afetada por uma ambiguidade central: preciso dar informao e prazer. Athos

    Damasceno era reconhecido por seu estilo irnico desde os tempos de poeta, caracterstica

    esta bastante marcante em sua trajetria de escritor de histria. No possvel ignorar este

    aspecto de sua narrativa ao propor uma interpretao de sua obra. Nesse sentido, Peter Gay

    prope que o historiador da histria parta da subjetividade dos autores para a compreenso de

    suas narrativas. Lidos dessa maneira, os quatro ensaios que compe a obra de Peter Gay no

    se reduzem exposio dos limites impostos pelas propenses e revelados pelo estilo: expe

    tambm a capacidade especfica de cada um desses historiadores em ver realidades histricas

    inacessveis a outros. (GAY, 1990, p. 180). Assim, a viso irnica de Gibbon habilitou-o a

    entender as maquinaes fraudulentas dos polticos romanos e a humanstica mesquinharia

    dos Pais da Igreja. A questo aqui, ento, apontar a realidade histrica observvel por meio

    do estilo irnico de Damasceno, impossvel de ser acessada por outros autores, pelos motivos

    explicitados por Gay. Sendo assim, busca-se neste estudo atentar a alguns aspectos do estilo

    de Athos Damasceno e suas potenciais implicaes no sentido da narrativa.

    ***

    As fontes de pesquisa so publicaes de Damasceno em que se percebe uma

    significativa preocupao com as questes da temporalidade, da identidade regional e um

    35 Como por exemplo: FRANCO (1975) e CSAR (1994). Alm da caracterizao pstuma da obra do autor

    realizada pela crtica, tambm assumo o aspecto do cotidiano como fundamental para a compreenso da

    representao de Damasceno em funo de que mesmo antes de se direcionar aos estudos histricos, a partir

    dos anos 1940, o escritor j se ocupava de temticas que apontam para uma abordagem fundamentada na

    ateno ao cotidiano.

  • 29

    comprometimento com o estudo da histria do cotidiano da capital, temtica por meio da qual

    o autor contemplou a demanda acima referida de integrao da regio nao. Tais fontes so

    os livros intitulados Imagens Sentimentais da Cidade (1940), Palco, Salo e Picadeiro em

    Porto Alegre no sculo XIX (1956), Imprensa Caricata no Rio Grande do Sul no Sculo XIX

    (1962), O Carnaval Porto-alegrense no sculo XIX (1970a) e Colquios com a minha Cidade

    (1974). A seleo se justifica, por um lado, pelo fato de que nestes textos esto compiladas as

    principais reflexes do escritor em relao representao do passado da regio. Por outro

    lado, h neles, especialmente no livro de 1956, uma intensa preocupao com a metodologia

    de pesquisa e um visvel comprometimento com a renovao dos estudos histricos sobre o

    estado sulino (uso de fontes diversas, por exemplo), explicitada em vrios momentos da

    trajetria do autor como uma de suas prioridades enquanto pesquisador.

    Imagens Sentimentais da Cidade (1940) o trabalho a partir do qual o autor ingressa

    nos estudos histricos preldio de uma grande maratona, personalssima, de documentao

    do passado histrico do estado (FRANCO, 1975, p.11). O livro foi premiado no concurso

    promovido pela prefeitura municipal de Porto Alegre em homenagem ao bicentenrio da

    cidade. em funo da pesquisa realizada para a elaborao desta obra que Damasceno

    descobre a potencialidade do arquivo e do jornal como fonte histrica, embora no haja

    remisso direta s fontes, que parece ter sido feita apenas em artigo no qual expe seu

    itinerrio de pesquisa, sete anos depois. Ao demonstrar uma viso bastante negativa da

    modernizao da cidade, em curso nos anos 1940, o livro pode ser entendido como um indcio

    da crise das relaes da sociedade local com o tempo.

    Palco, Salo e Picadeiro em Porto Alegre no sculo XIX (1956) o primeiro estudo

    de pesquisa histrica de flego que o autor publica. Um ano depois ele ingressa no IHGRGS.

    Neste livro h um maior cuidado com o mtodo da pesquisa, observvel na remisso s fontes

    de arquivo, bem como uma inteno evidente de tornar acessveis determinadas fontes de

    pesquisa, inclusive com a transcrio de algumas delas nos anexos da obra. A temtica

    relaciona-se histria da construo das casas de teatro em Porto Alegre, dos artistas que

    nelas se apresentavam e das companhias circenses que passaram pela cidade. Estudar o teatro

    em Porto Alegre no sculo XIX foi uma forma de evidenciar o desenvolvimento do processo

    modernizador e civilizador na Capital. Dessa forma, o autor pde apontar que os porto-

    alegrenses no estavam dissociados dos debates travados no sculo XIX em vigor na Europa

    Ocidental e da Corte, visto que o teatro e a imprensa refletiam questes atuais.

    Ao leitor que quisesse se certificar da comunho da Provncia com o iderio do sculo

    XIX, o autor sugere a consulta imprensa da poca. O livro Imprensa Caricata em Porto

  • 30

    Alegre no sculo XIX (1962) , sob este ngulo, uma continuao de Palco, Salo e Picadeiro,

    porquanto um estudo que tem como objeto especfico a imprensa caricata da Provncia. O

    autor consulta peridicos de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Nele, ainda que sob outro

    enfoque, Damasceno d continuidade temtica da modernizao da Provncia, enlaando-a

    ao recorrente assunto da identidade do sul-rio-grandense. Neste estudo, ele assinala traos

    peculiares do humor local, salientando sua origem e o grau de cultura que refletia. O livro

    se pretende uma contribuio para a compreenso mais clara do nosso processo social.

    O Carnaval Porto-alegrense no sculo XIX (1970a) aborda as diferentes formas por

    meio das quais os porto-alegrenses comemoravam o Carnaval nos oitocentos. A popular

    prtica do Entrudo, muito presente no incio do sculo XIX, foi gradualmente sendo

    censurada pela polcia e imprensa local e, aps ser proibida, cedeu espao criao das

    sociedades carnavalescas e ao Carnaval de clubes. De certa forma, o livro pode ser lido como

    uma narrativa acerca da civilizao dos divertimentos pblicos na Capital.

    Colquios com a minha Cidade (1974) teve sua publicao patrocinada pela prefeitura

    municipal nas comemoraes da XV Semana de Porto Alegre e foi editado pela Editora

    Globo. So seis os ensaios que compem o livro. So eles: Fotgrafos em Porto Alegre no

    Sculo XIX, Sacadas e Sacadinhas porto-alegrenses, Breve notcia e ligeiras

    consideraes acrca da arte doceira no Rio Grande do Sul, Natal e Reis na Cidade de

    Outrora, Arsne Isabelle em Porto Alegre e Gambrinus por estas bandas. Dois destes

    textos no so inditos: o segundo, de 1945, e o terceiro, de 1957. Eles so bastante marcados

    por reflexes acerca da identidade regional e sero utilizados no primeiro e segundo captulos.

    ***

    Esta dissertao divide-se em trs captulos. No primeiro captulo sero abordados os

    debates travados por Athos em torno da questo da identidade regional, bem como a

    perspectiva de seus contemporneos em relao ao tema. Tambm ser investigado o lugar

    social a partir do qual Damasceno estuda o passado regional. A incluso da primeira temtica

    para estudar a representao do passado de Athos Damasceno leva em conta sua centralidade

    para a insero dos autores locais na vida intelectual. Esta primeira parte da pesquisa

    contempla as relaes do discurso regionalista com o advento do modernismo, nos anos 1920,

    a partir da anlise da querela travada entre Athos Damasceno e Vargas Netto, em 1932. A

    questo do lugar social do intelectual ser abordada especialmente a partir das relaes de

    Damasceno com a Editora Globo. Tambm sero feitas consideraes sobre seu vnculo com

  • 31

    a Comisso Estadual do Folclore. A ltima temtica tratada neste primeiro captulo a da

    ampliao, nos estudos de Damasceno, da identidade regional a outros grupos at ento

    negligenciados por grande parte dos pesquisadores. As fontes so principalmente os textos de

    Damasceno, seu fundo pessoal, arquivado no IHGRGS, e as biografias de coetneos do autor.

    No segundo captulo aprofundar-se- a investigao da representao do passado

    elaborada por Damasceno. Nesta parte da pesquisa ser intensificada a anlise da narrativa do

    autor a partir de algumas reflexes acerca do estilo do historiador e dos gneros textuais aos

    quais se dedica. Os objetos de estudo deste captulo so os textos intitulados Imagens

    Sentimentais da Cidade, de 1940 e Sacadas e Sacadinhas Porto-alegrenses, de 1945. As

    duas problemticas centrais da representao do passado de Athos sero aqui privilegiadas: as

    questes da temporalidade e da identidade diante do advento da modernizao da cidade.

    No terceiro e ltimo captulo ser concluda a investigao sobre a representao do

    passado do autor. As fontes principais so os livros Palco, Salo e Picadeiro em Porto Alegre

    no sculo XIX, de 1956, Imprensa Caricata de Porto Alegre no Sculo XIX, de 1962, e O

    Carnaval Porto-alegrense no sculo XIX, de 1970a. Busca-se, na parte final da dissertao,

    analisar as transformaes na representao do autor no que toca modernizao da cidade.

    Se no captulo dois possvel afirmar que o autor assume uma postura que enfatiza a

    negatividade das inovaes, neste segundo momento, a partir dos anos 1950, podemos

    observar uma transformao na maneira como Athos Damasceno encara a modernizao da

    Capital agora de modo mais positivo.

  • 32

    1 A IDENTIDADE REGIONAL E O LUGAR SOCIAL DO INTELECTUAL

    Esta primeira parte da pesquisa contempla as relaes do discurso regionalista com o

    advento do modernismo, nos anos 1920, a partir da anlise da querela de Athos Damasceno

    com Vargas Netto, em 1932. A questo do lugar social do intelectual, por sua vez, alm de

    considerar estes debates, abordar, com mais nfase, as relaes de Damasceno com a Editora

    Globo. Nesse sentido, tambm sero feitas algumas consideraes em relao vinculao do

    autor aqui estudado Comisso Estadual do Folclore. A ltima temtica tratada neste

    primeiro captulo a da ampliao, nos estudos de Damasceno, da identidade regional a

    outros grupos at ento negligenciados por grande parte dos pesquisadores. As fontes so

    principalmente os textos do prprio autor, as biografias de seus coetneos e seu fundo pessoal,

    arquivado no IHGRGS.

    1.1 O Regionalismo em debate: literatura, histria e identidade

    O debate travado entre Athos Damasceno e Vargas Netto no ano de 1932, tendo como

    veculos o jornal O Correio do Povo, para os artigos do primeiro, e A federao, para as

    rplicas do segundo, pode ser compreendido como um indicativo da influncia do movimento

    modernista no estado36, principalmente no que toca abordagem da questo da iminente

    modernizao da regio. Alm disso, as opinies de Athos auxiliam a refletir acerca da sua

    representao do passado a partir dos anos 1940, recorte desta pesquisa. Com isso, possvel

    evidenciar que temticas como a modernizao, a urbanizao e a necessidade de incluso da

    36 Como j mencionado, ao encontro desta afirmao vai a carta enviada pela pesquisadora Lgia Chiappini

    Leite (1971) que havia entrevistado Athos Damasceno durante sua pesquisa de doutorado na qual o autor recebe a entrevista transcrita para confirmar as informaes. Entre as afirmaes de Damasceno em relao

    ao modernismo no Rio Grande do Sul est a de que a polmica de 1932, com Vargas Netto, poderia ser

    relacionada s ideias novas. LEITE, Lgia Chiappini. So Paulo, 04 set., 1971. In: Arquivo Athos Damasceno Ferreira/IHGRGS, correspondncia passiva/outros estados. Ademais, na entrevista transcrita no

    livro que publica a tese da autora, ela afirma que Athos Damasceno, quando perguntado acerca do

    modernismo no Rio Grande do Sul, tambm salientou a importncia da obra de Ernani Fornari, Trem da

    Serra, por explorar um tema ainda inexplorado. Nas palavras da autora: o poema regional da serra: No h s campo no Rio Grande . O mesmo acontece com a obra de Rui Cirne Lima, Colnia Z, que focaliza a zona dos pescadores do litoral. Afirma que, antes da ida de Guilherme, j sabiam o que se passava nas Letras e Artes de So Paulo e Rio. Acredita que no houve manifestos, como em Pernambuco, Rio, So Paulo e

    Minas, talvez por causa da Revoluo de 1923. Salienta que das obras modernistas, diversas saram logo em

    1926. No acredita, portanto, que a origem delas tenha sido a visita de Guilherme. Muitas j deviam estar

    escritas quando le chegou. [...] Por fim, afirma que o centro do modernismo no Rio Grande no foi a Revista

    Madrugada, mas os jornais Dirio e Correio e, mais tarde, a Revista do Globo. (CHIAPPINI, 1972, p. 227-228).

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    figura dos imigrantes na representao da regio foram pensadas durante um longo tempo

    pelo autor aqui estudado.

    O objetivo desta seo , pois, abordar os principais pontos da referida polmica,

    enfatizando os posicionamentos de Athos Damasceno a fim de acentuar determinadas

    questes que sero importantes na trajetria posterior do pesquisador, bem como explicitar a

    centralidade do tema da identidade regional nos debates travados entre os intelectuais sulinos.

    Ademais, no final da seo realizar-se- uma reflexo acerca do ambiente a partir do qual os

    polemistas emitem suas falas. Este ponto articula esta seo prxima, a qual tratar dos

    espaos que informam acerca do lugar social de produo dos textos do pesquisador porto-

    alegrense.

    Antes de iniciar a anlise dos textos, so pertinentes alguns comentrios sobre os

    envolvidos na discusso. Em 1932, Athos Damasceno j era bastante identificado com a

    escrita sobre a cidade, que era o principal motivo de inspirao de seus versos enquanto poeta.

    O autor ainda no havia se lanado ao estudo da histria, mas, como veremos, j gestava

    algumas reflexes nesse sentido. Manuel Vargas Netto, nascido em So Borja/RS em 1903,

    foi, alm de poeta, jornalista e juiz municipal (era bacharel em Direito)37

    . Ambos os

    escritores, enquanto produtores de conhecimento histrico e literrio, so exe