g. myrdal -as ações afirmativas a partir da causalidade cumulativa

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 103 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 103-109, outubro/2009 AS AÇÕES AFIRMATIVAS A PARTIR DA TEORIA DA CAUSALIDADE CUMULATIVA DE GUNNAR MYRDAL RESUMO: Através de uma análise da Teoria da Causalidade Cumulativa, criada por Gunnar Myrdal, busca-se demonstrar a viabilidade das ações armativas recentemente implementadas  pelo Estado Brasileiro, como, por exemplo, as  políticas de cotas. Nesse sentido, alega-se que o círculo de exclusão sofrido por determinados grupos sociais discriminados pode ser quebrado através dessas ações e, por sua vez, converter-se em um “círculo virtuoso”, ou seja, um quadro favorável a esta parcela da sociedade. Palavras-chave : Ações armativas; discrimi- nação positiva; exclusão social; causalidade cumulativa; círculo vicioso. ABSTRACT: Through an analysis of the Theory of the Cumulative Causality, created for Gunnar Myrdal, it is tried to demonstrate the viability of the afrmative actions recently implemented  by the Brazilian S tate, as an example, th e quota  policy . In this direction, it is claimed that the circle of exclusion suffered by determined dis- criminated social groups can be broken through these actions and, in turn, to become itself into a “virtuous circle”, that is, a picture favorable to this portion of the society. Keywords:Afrmative actions; positive discri - mination; social exclusion; cumulative causality; vicious circle. AS AÇÕES AFIRMATIVAS A PARTIR DA TEORIA DA CAUS ALIDADE CUMULA TIV A DE GUNNAR MYRDAL Geziela Jensen * *Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela UEPG (PR). Especialista em Direito Constitucional, Bacharel em Direito. Membro da Société de Lé - gislation Comparée – SLC (Paris), da Associazione Italiana di Diritto Comparato – AIDC (Florença), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques – AISJ (Paris). Professora e graduação e pós-graduação em Direito. Autora de livros publicados por Sergio Antonio Fabris Editor (Porto Alegre – RS) e pela Juruá Editora (Curitiba – PR).  rt go

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g. Myrdal -As Ações Afirmativas a Partir Da Causalidade Cumulativa

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  • 103Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 103-109, outubro/2009

    AS AES AFIRMATIVAS A PARTIR DA TEORIA DA CAUSALIDADE CUMULATIVA DE GUNNAR MYRDAL

    RESUMO: Atravs de uma anlise da Teoria da Causalidade Cumulativa, criada por Gunnar Myrdal, busca-se demonstrar a viabilidade das aes afirmativas recentemente implementadas pelo Estado Brasileiro, como, por exemplo, as polticas de cotas. Nesse sentido, alega-se que o crculo de excluso sofrido por determinados grupos sociais discriminados pode ser quebrado atravs dessas aes e, por sua vez, converter-se em um crculo virtuoso, ou seja, um quadro favorvel a esta parcela da sociedade.

    Palavras-chave: Aes afirmativas; discrimi-nao positiva; excluso social; causalidade cumulativa; crculo vicioso.

    ABSTRACT: Through an analysis of the Theory of the Cumulative Causality, created for Gunnar Myrdal, it is tried to demonstrate the viability of the affirmative actions recently implemented by the Brazilian State, as an example, the quota policy. In this direction, it is claimed that the circle of exclusion suffered by determined dis-criminated social groups can be broken through these actions and, in turn, to become itself into a virtuous circle, that is, a picture favorable to this portion of the society.Keywords:Affirmative actions; positive discri-mination; social exclusion; cumulative causality; vicious circle.

    AS AES AFIRMATIVAS A PARTIR DA TEORIA DA CAUSALIDADE CUMULATIVA DE GUNNAR MYRDAL

    Geziela Jensen*

    *Mestre em Cincias Sociais Aplicadas pela UEPG (PR). Especialista em Direito Constitucional, Bacharel em Direito. Membro da Socit de L-gislation Compare SLC (Paris), da Associazione Italiana di Diritto Comparato AIDC (Florena), seo italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques AISJ (Paris). Professora e graduao e ps-graduao em Direito. Autora de livros publicados por Sergio Antonio Fabris Editor (Porto Alegre RS) e pela Juru Editora (Curitiba PR).

    Artigo

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    JENSEN, G.

    1. Introduo

    O presente artigo visa discutir o pensamen-to subjacente s aes afirmativas luz da teoria da causalidade cumulativa de Gunnar Myrdal, apresentada em sua clssica obra An American Dilemma: the negro problem and modern de-mocracy, cujo impacto foi to significativo a ponto de ter inclusive influenciado, segundo a literatura, a deciso da Suprema Corte Norte-americana no famoso leading case Brown vs. Board of Education of Topeka, e, a despeito dis-so, permanece ausente, s.m.j. do debate pblico acerca das aes afirmativas no Brasil.

    Portanto a pretenso singela do presente artigo consiste em nada mais do que expor sucin-tamente dita teoria, a fim de contribuir para com a compreenso da problemtica envolvendo as aes afirmativas e da lgica a elas subjacente.

    2. O leading case Brown vs. Board of Education of Topeka

    O caso Brown vs. Board of Education of Topeka (1954), ensejou o incio de um novo perodo no que diz respeito ao tema das relaes raciais nos Estados Unidos da Amrica, consti-tuindo um dos precedentes mais emblemticos da histria constitucional estadunidense e inau-gurando, a partir de ento, uma importante fase do ativismo judicial da Suprema Corte.1

    O juiz Earl Warren prolatou sua deciso revendo a segregao racial institucionalizada, cabendo a transcrio parcial dos argumentos por ele expendidos, in verbis:

    Separ-las [as crianas negras] de outras da mesma idade e qualificaes unicamen-te por causa de sua raa, gera um senti-mento de inferioridade em sua posio na comunidade que pode afetar seus coraes e mentes de uma forma que pode jamais ser desfeita. The effect of this separation on their educational opportunities was well stated by a finding in the Kansas case by a court which nevertheless felt compelled to rule against the Negro plain-tifOs efeitos desta separao sobre as suas oportunidades educacionais foram bem demonstrados no julgamento de um caso pela Corte de Kansas, a qual, no entanto, sentiu-se obrigada a decidir contra o pedi-do dos negros: A separao entre crianas brancas e de cor em escolas pblicas tem um efeito negativo sobre as crianas de cor. O impacto maior quando se tem o encorajamento da lei; a poltica de separar as raas geralmente interpretada como se denotasse a inferioridade do grupo negro. A sense of inferiority affects the motiva-tion of a child to learn. Um sentimento de inferioridade afeta a motivao da criana para aprender. ASegregation with the sanction of law, therefore, has a tendency to [retard] the educational and mental development of negro children and to deprive them of some of the benefits they would receive in a racial[ly] integrated school system. segregao com o encora-jamento da lei, portanto, tende a retardar o desenvolvimento mental e intelectual das crianas negras e a priv-las de alguns dos benefcios que receberiam acaso o sistema educacional fosse racialmente integrado. Brown vs. Board of Education 347 U.S 483 (1954). (Traduo livre).2

    1 No ano de 1948 Ada Lois Sipuel, estudante negra, provocou a Suprema Corte porque a faculdade de direito de Oklahoma indeferiu seu pedido de matrcula. A mesma universidade teve de deferir o pedido de C.W. McLaurin, que se matriculou num programa de ps-graduao em Educao. Porm o aluno foi obrigado a sentar-se em ambiente contguo sala de aula, em lugar separado na biblioteca, bem como foi constrangido a usar o refeitrio em horrio diverso dos outros estudantes. Sweatt, outro afro-descendente teve pedido indeferido para matricular-se na faculdade de Direito do Texas. Em 1952 a Corte preparava-se para apreciar casos do Kansas (Brown v.Topeka), da Carolina do Sul, da Virgnia, e de Delaware. As quatro aes, no obstante, versarem sob fatos e premissas distintas, a questo atinente segregao racial nas escolas, encontrava-se presente em todas, e desta feita, seriam julgadas conjuntamente.

    2 No original: To separate them from others of similar age and qualifications solely because of their race generates a feeling of inferiority as to their status in the community that may affect their hearts and minds in a way unlikely ever to be undone. The effect of this separation on their educational opportunities was well stated by a finding in the Kansas case by a court which nevertheless felt compelled to rule against the Negro plaintiffs: Segregation of white and colored children in public schools has a detrimental effect upon the colored children. The impact is greater when it has the sanction of the law, for the policy of separating the races is usually interpreted as denoting the inferiority of the negro group. A sense of inferiority affects the motivation of a child to learn. Segregation with the sanction of law, therefore, has a tendency to [retard] the educational and mental development of negro children and to deprive them of some of the benefits they would receive in a racial integrated school system.

  • 105Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 103-109, outubro/2009

    AS AES AFIRMATIVAS A PARTIR DA TEORIA DA CAUSALIDADE CUMULATIVA DE GUNNAR MYRDAL

    Warren procurou ressaltar a relevncia do caso no combate s medidas de segregao impostas no mbito educacional, bem como sublinhar os efeitos perversos da discriminao contra os negros, especialmente a irreparabilida-de dos prejuzos decorrentes de tais efeitos, em relao s crianas negras.

    Nesta ocasio decidiu-se que no mbito da educao pblica a doutrina do separate but equal, consubstanciada na deciso Plessy vs. Fer-guson (1896), que permaneceu como paradigma judicial por dcadas, no teria mais acolhida. A segregao baseada no critrio racial em escolas da rede pblica violaria a clusula da igual pro-teo prevista na 14 Emenda, pois, a separao era uma negativa da igual proteo das leis.

    No obstante, com a histrica deciso judicial no caso Brown v. Board of Education of Topeka (1954) a Suprema Corte no colocou termo, de maneira ampla, eficaz e imediata a segregao entre brancos e negros nas escolas do sul dos Estados Unidos, haja vista ter afirmado que a segregao dever ser eliminada progressi-vamente (with all deliberate speed), ao invs de imediatamente (immediately).3

    Vistas estas premissas, de se analisar o conceito e as distines de aes afirmativas e poltica de cotas, com vistas ao estudo do tema proposto.

    2. As Aes Afirmativas: conceito e origem

    A adoo de aes afirmativas constitui uma das medidas tendentes minorao do quadro de excluso social, econmica e cultural,

    que atinge parcelas vulnerveis da sociedade e implica necessariamente o reconhecimento de que tais parcelas necessitam de apoio para atingir a igualdade de oportunidades.

    Reputa-se ao afirmativa, para fins do presente artigo, toda distino instaurada com vistas a minimizar ou eliminar uma situao de vulnerabilidade decorrente de um quadro de desi-gualdade ou discriminao odiosa, por qualquer meio, desde que implique em uma promoo ou favorecimento tratamento seletivo ou diferen-ciado , visando os atingidos por uma situao desfavorvel.4

    Consiste, em outras palavras, na instaura-o de uma seletividade com vistas a compensar ou corrigir uma situao de vulnerabilidade de origem discriminatria ou fundada em desigual-dade socioeconmica ou de outra natureza.5

    Entre as tcnicas ou instrumentos possveis ou utilizveis para a instituio de aes afirma-tivas encontram-se, ao lado das mais conhecidas as polticas de cotas diversas outras, como os patamares mnimos, as metas, os programas de incentivo, desde que visem suprimir ou re-duzir quadros de desigualdade generalizada ou persistente.6 Portanto, tecnicamente, polticas de cotas e aes afirmativas no se confundem; antes aquelas constituem espcies destas.7

    Parte majoritria da literatura aponta os Estados Unidos da Amrica, como ptria de origem das denominadas aes afirmativas. Au-tores como John David Skrentny e Paul Singer vislumbram que as primeiras referncias a tais polticas, surgiram em 1935, na Lei das Relaes de Trabalho Nacionais (The 1935 National La-bor Relations Act), a qual propugnava o combate

    3 Nesse passo, cumpre aduzir que no ano seguinte ao julgamento do caso Brown, a Suprema Corte foi chamada novamente a se manifestar a respeito dos termos em que deveria ser efetivada a deciso anterior, caso este, que ficou conhecido como Brown II. Ver Brown v. Board of Education II, 349 U.S 294 (1955).

    4 LIMA JNIOR, J. B. Os direitos humanos econmicos, sociais e culturais, 2001, p. 143.5 Nesta perspectiva ampla, tanto as disposies que outorgam tratamento prioritrio e preferencial a idosos, crianas, portadores de necessidades

    especiais e afro-descendentes, quanto as disposies que estabelecem o combate s desigualdades regionais, sejam estas ltimas resultado da realidade socioeconmica ou mesmo de fatores alheios vontade humana ou ao agir social, como, por exemplo, regies suscetveis a prolongados perodos de estiagem, so reputadas aes afirmativas.

    6 GOMES, J. B. B. Ao Afirmativa & Princpio Constitucional da Igualdade. O Direito como Instrumento de transformao social. A experincia dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 40.

    7 Para aspectos relacionados constitucionalidade das aes afirmativas, bem como referentes aos requisitos que permitem a distino entre discri-minaes positivas, privilgios odiosos e discriminaes negativas, toma-se a liberdade de remeter a JENSEN, G; SGARBOSSA, L.F. A anlise da constitucionalidade das aes afirmativas em face do princpio isonmico atravs do princpio da proporcionalidade. Disponvel em . Acesso em 01 jun. 2009. Jus Navigandi (Teresina), v. 1309, 2007.

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    JENSEN, G.

    discriminao e visava reparar situaes de violao legal ou injustias j perpetradas.8

    Embora a expresso affirmative action aparea pela primeira vez nos Estados Unidos da Amrica, na Executive Order 10.925, de iniciativa do presidente John Kennedy9, foi seu sucessor, o presidente Lyndon B. Johnson, pro-curando abrandar as intensas presses exercidas pela sociedade civil organizada, quem buscou dar um significado mais prximo do instituto nos moldes em que adotado atualmente, promul-gando o Civil Right Act, de 2 de julho de 1964,10 e posteriormente a Lei sobre os direitos de voto Voting Rights Act de 1965.11

    O modelo norte-americano de tratamento diferenciado em estudo foi recepcionado tam-bm no Brasil, sendo conhecido ora como ao afirmativa, ora como discriminao positiva, prevalecendo entre ns a primeira denominao.

    a partir da dcada de 1990, notadamente na modalidade de cotas, que o tema comea a ga-nhar visibilidade no Brasil, especialmente, aps as reivindicaes empreendidas pelo movimento negro organizado12, que almejava especifica-mente maior incluso dos afro-descendentes, na mdia, no mercado de trabalho e no acesso ao ensino superior.13

    As polticas de cotas para o acesso de afro-descendentes s universidades pblicas, de todas

    as polticas reivindicadas, a que mais suscita polmica, possivelmente porque sua afirmao pe por terra o mito da democracia racial e a correlata falcia brasileira no sentido de inexiste racismo no Brasil.14

    Ademais, atualmente encontra-se em tra-mitao o Projeto de Lei n. 6264/2005 deno-minado Estatuto da Igualdade Racial o qual, caso seja aprovado pelo Congresso Nacional, entre outras disposies, instituir polticas de cotas para as Universidades Federais e para cargos pblicos.

    Evidentemente a matria polmica e tem suscitado acirrado debate no mbito da opinio pblica e do Parlamento, sendo que o conceito de causalidade cumulativa, cuja criao atribuda a Gunnar Myrdal.

    3. A poltica de cotas e a teoria da causalidade cumulativa de Gunnar Myrdal

    Gunnar Myrdal, jurista e economista sueco que em 1974 recebeu o Prmio Nobel de Eco-nomia, com sua teoria a respeito da teoria da moeda e das flutuaes econmicas e pela anlise percuciente da interdependncia dos fenmenos sociais, econmicos e institucionais.

    8 In verbis: an employer who was found to be discriminating against union members or unions organizers would have to stop discriminating, and also take affirmative action to place those victims where they would have been without the discrimination. SKRENTNY, J. D. The Ironies of Affirmative Action. Politics, Culture, and Justice in America. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1996, p. 6. Visando combater o tratamento discriminatrio dispensado a trabalhadores sindicalizados e viabilizar o carter preventivo e reparatrio de tais medidas, o The 1935 National Labor Relations Act destacava que, se um empregador fosse encontrado discriminando sindicalistas ou operrios sindicalizados, deveria cessar a discriminao e, ao mesmo tempo, adotar aes afirmativas que devolvessem s vtimas as posies nas quais estariam, se no tivessem sido discriminadas. Ibid.

    9 Kennedy soube fazer uma leitura apropriada dos anseios da sociedade americana naquele momento marcada por crescentes tenses sociais, geradas principalmente por razes de preconceito. MENEZES, P. L. de. A Ao Afirmativa (Affirmative Action) no Direito Norte-Americano, 2001, p.87.

    10 A Lei dos Direitos Civis de 1964, proibia a segregao em diversos locais, como escolas, acomodaes pblicas, programas de governo e emprego. MENEZES, P. L. de. Idem, p. 91.

    11 A Lei sobre os direitos de voto Voting Rights Act de 1965 garantia aos negros o direito de votar e de ser votado.12 Aduz-se como importante marco nas demandas e lutas das populaes afro-descendentes, a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida realizada em

    20 de novembro de 1995. O Movimento Negro ainda teve um papel decisivo no tocante a compromissos assumidos pelo Estado Brasileiro, nos ltimos anos, em fruns internacionais da Organizao das Naes Unidas, com destaque III Conferncia Mundial de Combate ao Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia, ocorrida em Durban, na frica do Sul, em 2001. Ademais, tais manifestaes foram decisivas para a implementao das primeiras aes afirmativas no mbito dos Ministrios, resultou ainda na criao da SEPPIR Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial em 2003, e na promulgao da Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade da disciplina Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas faculdades e escolas pblicas e privadas e por fim, no Estatuto da Igualdade Racial, que se encontra tramitando no Congresso Nacional, desde 1999. Alm disso, a III Conferncia Mundial teve reflexos internos, dentre os quais, o Programa Nacional de Direitos Humanos II, em 2002, o qual estabelecia um conjunto de medidas tendentes a promover os direitos da populao negra.

    13 GOMES, J. J. B. O debate constitucional sobre as aes afirmativas. In: SANTOS, E. dos; LOBATO, F. (Orgs.). Aes Afirmativas, 2003, p. 17.14 No obstante, o racismo brasileira poder ser considerado diferente do norte-americano ou do sul-africano, diversos autores propugnam que

    tambm os programas positivos aqui adotados, devem possuir nuances prprios de nosso contexto. Dentre os quais, OLIVEIRA, L. R. C. Direito legal e insulto moral. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002, p. 47-50, KAUFMANN, R. F. M. A Ao Afirmativa (Affirmative Action) no Direito Norte-Americano, 2001. HASENBALG, C. O contexto das desigualdades raciais. In: SOUZA, J. (Org.). Multiculturalismo e Racismo, 1997, p. 67. RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil. So Paulo: Editora das Letras, 1995, p. 56.

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    AS AES AFIRMATIVAS A PARTIR DA TEORIA DA CAUSALIDADE CUMULATIVA DE GUNNAR MYRDAL

    O pensamento subjacente s aes afirma-tivas parece remontar a Gunnar Myrdal, que, em seu clssico An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy (1944), livro clebre inclusive por ter influenciado a deciso da Suprema Corte norte-americana no leading case Brown vs. Board of Education of Topeka (1954), aqui j sucintamente examinado.15

    O livro constitui fruto de pesquisa levada a cabo por Myrdal na dcada de 1940, financiada pela Carnegie Fondation, livro cujo sucesso pode ser expresso em nmeros: mais de 100.000 exemplares e 25 reimpresses antes da segunda edio, no ano de 1965.

    Na obra, o autor identifica o que denomina causalidade cumulativa (cumulative causality). Segundo Myrdal:

    Uma razo mais profunda para a unidade da questo negra pode emergir quando tentamos formular nossa hiptese relativa dinmica de suas causas. O mecanismo que opera aqui o princpio da cumu-lao tambm comumente chamado de crculo vicioso. Tal princpio tem uma aplicao muito ampla em matria de relaes sociais. Ele , ou deveria ser convertido em, uma ferramenta teortica central para estudar a mudana social.16 (traduo livre da autora).

    Sustentando uma compreenso global ou holstica da questo racial norte-americana vi-so esta que, em nosso juzo, aplica-se questo racial brasileira mutatis mutandis Myrdal expli-cita que o denominado efeito cumulativo consiste na retro-alimentao de quadros de excluso pelos efeitos de outros quadros de excluso, atingindo todas as esferas da vida dos afetados:

    Ao logo de todo este estudo, nos devemos assumir uma interdependncia geral entre os fatores envolvidos na questo negra. O

    preconceito e a discriminao dos brancos rebaixam o negro em termos de seus pa-dres de vida, sade, educao, maneiras e moral. Isso, por sua vez, retroalimenta o preconceito dos brancos. Portanto o preconceito racial e os padres negros do causa mutuamente um ao outro. Se as coisas permanecerem tal qual elas esto e tm estado, o resultado ser que ambas as foras equilibraro uma outra.17 (tradu-o livre da autora).

    Segundo Myrdal, a causalidade cumulativa implica, ainda, a amplificao e perpetuao dos efeitos do primeiro empuxo ou influxo:

    Se um dos fatores muda, isso pode causar uma mudana no outro fator tambm, e dar incio a um processo de interao no qual a mudana ocorrida em um fator seja con-tinuamente suportada pela reao do outro fator. O sistema inteiro pode modificar-se na direo da mudana primria, mas muito alm. isso que se quer dizer com causalidade cumulativa.18 (traduo livre da autora).

    Por outro lado, segundo o cientista social sueco19, o crculo vicioso pode, atravs de mu-danas causadas por um estmulo adequado, converter-se em um crculo virtuoso, por fora da mesma lei ou princpio da causao cumulativa:

    No campo da poltica racial relativa questo negra qualquer elevao promo-vida em qualquer desses fatores se nossa hiptese central estiver correta mover todos os demais fatores na mesma direo e exercer, por intermdio de todos eles, um efeito cumulativo sobre o status geral do negro. Um aumento Uma tendncia ascendente pode ser afetada por qualquer nmero de medidas, independentemente de onde o impulso inicial exercido. Atra-

    15 Igualmente o relatrio da UNESCO de 1950, intitulado The Race Question e igualmente confiado a Myrdal apontado como influente sobre a deciso de Brown vs. Board of Education of Topeka.

    16 MYRDAL, G. An American dilemma: The Negro Problem and Moderny Democracy. New York: Harper & Brother, 1944, p. 75.17 MYRDAL, G. Idem, pp. 75-76.18 Ibidem. O Autor explicita a interdependncia dos diversos fatores na questo dos afrodescendentes: A rise in the Negro employment, for instance,

    will raise family incomes, standards of nutrition, housing, and health, the possibilities of the Negro youth more education, and so forth, and all of these effects on the initial changes, will, in their turn, improve the Negroes possibilities of getting employment and earning a living. Ibidem.

    19 Embora economista por formao e prmio Nobel de Economia, Gunnar Myrdal no restringiu sua produo exclusivamente ao mbito da teoria econmico, como parece evidente. Seu livro An American Dilemma, por exemplo, um clssico da sociologia.

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    JENSEN, G.

    vs do processo de cumulao, ele pode ser transferido atravs do sistema todo.20 (traduo livre da autora).

    4. Concluso

    O conceito de causalidade cumulativa de Myrdal valioso para compreender a com-plexidade da situao de excluso dos afro-descendentes no Brasil, denunciada de forma inequvoca pelos indicadores sociais, nos quais constituem maioria entre os excludos.

    Explicita, sobretudo, como uma cadeia de fatos negativos escravido, obstruo do acesso aos meios de subsistncia e produo (terra), ausncia de indenizao no ps-abolio, preconceito e discriminao gerou um quadro de excluso crescente e perene, cujos efeitos chegam at a contemporaneidade.21

    Por conseguinte, as aes afirmativas recentemente estatudas no Brasil visam no somente coibir a discriminao do presente, mas, sobretudo, eliminar os efeitos persistentes psi-colgicos, culturais, comportamentais, sociais e econmicos da discriminao, dominao e explorao do passado historicamente recente e seus impactos negativos na realizao dos direitos fundamentais dos afro-descendentes.22

    O conceito de causalidade cumulativa per-mite compreender, outrossim, a lgica subjacente

    ao instituto das aes afirmativas: da mesma ma-neira que afetaes negativas como excluso e discriminao originam toda uma cadeira de negatividades que se acumulam em detrimento dos afetados, um apoio ou incentivo em qualquer dos fatores implicados renda, educao, etc. tem o condo e provocar uma melhoria global na condio dos afrodescendentes, conforme demonstrou Gunnar Myrdal.

    Sobretudo em matria de cotas para o acesso de afro-descendentes educao supe-rior, as implicaes positivas so evidentes. Pois conforme j observara o Juiz Warren em Brown vs. Board of Education of Topeka, ainda no ano de 1954:

    Hoje, educao talvez a mais impor-tante funo do Estado e dos governos locais. Tanto a legislao estabelecendo o comparecimento obrigatrio s escolas e os crescents gastos com educao de-monstram nosso reconhecimento quanto importncia da educao para nossa so-ciedade democrtica. Ela requisito para o desempenho de nossas mais elementares responsabilidades pblicas, mesmo o servio nas foras armadas. Ela o ver-dadeiro fundamento da boa cidadania.23 (traduo livre da autora).

    E no somente. O exerccio dos direitos mais elementares e, como o direito ao sufrgio exercido atravs do voto, requerem acesso a um nvel educacional adequado, constituindo

    20 MYRDAL, G. Idem, p. 77.21 De se rememorar que, no Brasil, em lugar de vir acompanhada de uma reforma agrria que proporcionaria aos ex-escravos o acesso subsistncia,

    a alguma renda e, qui, a um desenvolvimento futuro adequado, a abolio foi precedida pelo Estatuto da Terra, segundo alguns editado preven-tivamente, exatamente com vistas iminente libertao da mo de obra. Para tal corrente da historiografia, a modificao do regime fundirio do pas visou exatamente manuteno da separao da mo-de-obra em relao ao meio de produo por excelncia do perodo a terra. Tal painel auxilia a compreenso da complexa situao de excluso do negro na sociedade brasileira contempornea, em que se articulam aspectos variados, que vo da discriminao racial ainda que velada vulnerabilidade econmica, cujas conseqncias perduram, protraindo os efeitos do perodo escravagista no tempo e fazendo com que desbordem parcialmente nas contemporneas questo agrria e questo racial, ambas ainda no resolvi-das. ANDRADE, M. C. Op. cit., p. 08. interessante observar o paralelo que se pode traar entre as consideraes de Max Weber com relao concentrao dos meios de administrao e de guerra em mos do soberano e sua expropriao em relao aos estamentos, de um lado e, de outro, a separao dos operrios em relao aos meios de produo que se encontra base do capitalismo, segundo Karl Marx, para com a situao ora relatada. Parece, s.m.j., constituir-se de uma regularidade, sempre significando a concentrao de poder seja ele poltico ou econmico com vistas manuteno de situaes de dominao e explorao. Tal complexidade e seus efeitos ganham em nitidez e compreenso a partir das teorizaes de Gunnar Myrdal acerca da causalidade cumulativa, sobre a qual se discorrer adiante. MYRDAL, G. An American dilemma: The Negro Problem and Moderny Democracy. New York: Harper & Brother, 1944, p. 75.

    22Tais efeitos se revelam na denominada discriminao estrutural, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados. Segundo MASSEY, D.; DENTON, N., apud GOMES, J. B. O debate constitucional sobre as aes afirmativas. In: SANTOS, R. E.; LOBATO, F. (Orgs.). Aes Afirmativas, 2003, p. 30.

    23 Today, education is perhaps the most important function of state and local governments. Compulsory school attendance laws and the great expen-ditures for education both demonstrate our recognition of the importance of education to our democratic society. It is required in the performance of our most basic public responsibilities, even service in the armed forces. It is the very foundation of good citizenship. Brown vs. Board of Education of Topeka (1954).

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    AS AES AFIRMATIVAS A PARTIR DA TEORIA DA CAUSALIDADE CUMULATIVA DE GUNNAR MYRDAL

    uma evidncia inegvel a militar em favor da interdependncia dos direitos.24

    Desse modo, parece essencial a incluso de elementos tericos fundamentais, como o conceito ora estudado e elaborado por Myrdal, para a compreenso adequada da justificativa, do funcionamento e da finalidade das aes afirmativas, e para um debate pblico e poltico cientificamente esclarecido, e no fundado sobre preconceitos e idiossincrasias.

    Referncias bibliogrficas

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    24 Os princpios da interdependncia e da indivisibilidade dos direitos humanos e fundamentais expressam a realidade de que todos os direitos, sejam de que dimenso ou gerao forem, dependem uns dos outros de maneira intrnseca, de modo a denunciar o carter ideolgico das distines entre as categorias e a exporem, ainda, os efeitos nefastos oriundos da violao de determinados direitos fundamentais, como os de natureza social, sobre outros direitos fundamentais, como os civis e polticos, sendo a recproca verdadeira. Com base em ambos os princpios postulou-se aqui uma concepo holstica ou integral dos direitos humanos fundamentais, como nica apta a respeitar um patamar mnimo de realizao dos direitos fundamentais, seja de um ponto de vista individual, seja de um ponto de vista transindividual. Neste sentido CANADO TRINDADE, A. A. Tratado de Direitos Internacionais dos Direitos Humanos. v. I. 2. ed. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 2003, p. 475.