futebol na tv

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Resumo. A primeira transmissão de uma Copa do Mundo de Futebol pela televisão, para o Brasil, foi em 1970, via Embratel. Antes disso, a população acompanhava os jogos da Seleção Brasileira pelo rádio. Aos poucos, os donos das redes de televisão perceberam que o futebol poderia gerar bons resultados financeiros, com a veiculação de propagandas comerciais durante as transmissões, a exemplo do que já era feito no rádio. Com isso, a televisão, de olho no crescimento da audiência e no número de anunciantes, revestiu o futebol com uma linguagem de espetáculo. A narração das partidas, em que a figura do locutor se parece mais com a de um animador, e o aperfeiçoamento das tecnologias de transmissão, que melhoram, a cada dia, a qualidade da imagem, tiram do futebol a característica de ser apenas um esporte para passar a ocupar o lugar de um show. Nesse contexto, o esporte torna-se artigo de compra e venda. O objetivo desse trabalho é demonstrar como se constituiu esta linguagem de espetáculo na televisão brasileira, tendo como base as transmissões esportivas, especialmente as de futebol, e como a televisão, que representou um salto tecnológico no país em relação ao rádio, se apropriou do esporte mais popular do país como uma mercadoria, interferindo na dinâmica da sociedade brasileira. Enfim, trata- se de uma tentativa de entender como as pesquisas que permitem uma evolução tecnológica modificam comportamentos e vice-versa, ou seja, de que forma as demandas da sociedade provocam uma corrida rumo ao desenvolvimento de novas tecnologias. Palavras-chave: futebol, televisão, mercadoria, espetáculo, linguagem. Abstract. The first broadcast of a World Cup football on television, to Brazil was in 1970, via Embratel. Before that, the people followed the games of the Brazilian team on the radio. Gradually, the owners of television networks realized that football could generate good financial results, with the exposing of advertisements during the broadcasts, similar to what was already done on the radio. Thus, the television, focused on the growth of audience and number of advertisers, covered football with a language of entertainment. The narration of the matches, in which the figure of the narrator is more like that of an entertainer, and improvement of the transmission technologies that improve the image quality every day, take away from football the characteristic of being just a sport to occupy the place of an entertainment. In this context, the sport becomes an article of purchase and sale. The purpose of this study is to demonstrate how this entertainment language was made up on Brazilian television, based on the broadcast sports, especially football, and like the television, which represented a technological leap in the country over the radio, assumed of the sport, country’s most popular as a commodity, interfering with the dynamics of Brazilian society. Finally, an aempt to understand how the researches that allow a technological development change behaviors and vice versa, that is, how the demands of society lead to a race to develop new technologies. Key words: football, television, commodity, enter- tainment, language. Verso e Reverso, XXV(58):22-31, janeiro-abril 2011 © 2011 by Unisinos - doi: 10.4013/ver.2011.25.58.03 ISSN 1806-6925 Futebol na TV: evolução tecnológica e linguagem de espetáculo Football on television: Technological evolution and entertainment language Igor José Siquieri Savenhago Centro Universitário Barão de Mauá – Unidade Independência Rua José Curvelo da Silveira Jr, 110, Jardim Califórnia, 14026-240, Ribeirão Preto, SP, Brasil [email protected]

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Artigo sobre futebol e evolução da TV

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  • Resumo. A primeira transmisso de uma Copa do Mundo de Futebol pela televiso, para o Brasil, foi em 1970, via Embratel. Antes disso, a populao acompanhava os jogos da Seleo Brasileira pelo rdio. Aos poucos, os donos das redes de televiso perceberam que o futebol poderia gerar bons resultados nanceiros, com a veiculao de propagandas comerciais durante as transmisses, a exemplo do que j era feito no rdio. Com isso, a televiso, de olho no crescimento da audincia e no nmero de anunciantes, revestiu o futebol com uma linguagem de espetculo. A narrao das partidas, em que a gura do locutor se parece mais com a de um animador, e o aperfeioamento das tecnologias de transmisso, que melhoram, a cada dia, a qualidade da imagem, tiram do futebol a caracterstica de ser apenas um esporte para passar a ocupar o lugar de um show. Nesse contexto, o esporte torna-se artigo de compra e venda. O objetivo desse trabalho demonstrar como se constituiu esta linguagem de espetculo na televiso brasileira, tendo como base as transmisses esportivas, especialmente as de futebol, e como a televiso, que representou um salto tecnolgico no pas em relao ao rdio, se apropriou do esporte mais popular do pas como uma mercadoria, interferindo na dinmica da sociedade brasileira. En m, trata-se de uma tentativa de entender como as pesquisas que permitem uma evoluo tecnolgica modi cam comportamentos e vice-versa, ou seja, de que forma as demandas da sociedade provocam uma corrida rumo ao desenvolvimento de novas tecnologias.

    Palavras-chave: futebol, televiso, mercadoria, espetculo, linguagem.

    Abstract. The rst broadcast of a World Cup football on television, to Brazil was in 1970, via Embratel. Before that, the people followed the games of the Brazilian team on the radio. Gradually, the owners of television networks realized that football could generate good nancial results, with the exposing of advertisements during the broadcasts, similar to what was already done on the radio. Thus, the television, focused on the growth of audience and number of advertisers, covered football with a language of entertainment. The narration of the matches, in which the gure of the narrator is more like that of an entertainer, and improvement of the transmission technologies that improve the image quality every day, take away from football the characteristic of being just a sport to occupy the place of an entertainment. In this context, the sport becomes an article of purchase and sale. The purpose of this study is to demonstrate how this entertainment language was made up on Brazilian television, based on the broadcast sports, especially football, and like the television, which represented a technological leap in the country over the radio, assumed of the sport, countrys most popular as a commodity, interfering with the dynamics of Brazilian society. Finally, an a empt to understand how the researches that allow a technological development change behaviors and vice versa, that is, how the demands of society lead to a race to develop new technologies.

    Key words: football, television, commodity, enter-tainment, language.

    Verso e Reverso, XXV(58):22-31, janeiro-abril 2011 2011 by Unisinos - doi: 10.4013/ver.2011.25.58.03 ISSN 1806-6925

    Futebol na TV: evoluo tecnolgica e linguagem de espetculo

    Football on television: Technological evolution and entertainment language

    Igor Jos Siquieri Savenhago Centro Universitrio Baro de Mau Unidade Independncia

    Rua Jos Curvelo da Silveira Jr, 110, Jardim Califrnia, 14026-240, Ribeiro Preto, SP, [email protected]

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    Igor Jos Siquieri Savenhago

    Introduo

    H muito tempo, a televiso vem estudan-do um meio de obter lucros com o futebol. Se-gundo Barros (1990), o ataque certeiro ocorreu nos momentos de instabilidade desse esporte. A televiso cedeu suporte nanceiro e o fute-bol virou fantoche nas mos dela. Dessa for-ma, as emissoras, principalmente a TV Globo, passaram a exercer presso cada vez maior no planejamento de um campeonato, reivindican-do o direito de interferir na criao do regula-mento e na determinao dos horrios e locais dos jogos, de forma a adequ-los grade de programao.

    Durante as Copas do Mundo, essa forte in uncia da televiso no esporte ca mais evidente. A TV Globo, por exemplo, pagou, de acordo com Jimenez e Saito (2002), cerca de 380 milhes de dlares para ter os direitos de transmisso exclusivos das Copas de 2002 e 2006, com a certeza de um retorno satisfatrio, tanto nanceiramente quanto no nmero de televisores sintonizados na emissora.

    Debord (1997, p. 24-25) ressalta que um dos objetivos da mdia, e neste ponto se inclui a televiso, produzir espetculos, por meio da valorizao permanente de celebridades, atores e outras personalidades. En m, tudo o que falta vida do homem comum e que con-fere uma sensao de aventura, grandiosidade e ousadia. Em troca dos grandes investimen-tos, so esperados audincia e retorno nan-ceiro. O espetculo na sociedade corresponde a uma fabricao concreta da alienao. [...] O espetculo o capital em tal grau de acumula-o que se torna imagem.

    Para Morin (1969, p. 96), a valorizao das celebridades contribui para a criao dos he-ris, pessoas que representam a busca pela superao pessoal, um reforo positivo para auto-estima. Segundo ele, a torcida pelo suces-so do heri, constitui uma valorizao mi-tolgica da felicidade. O heri simptico [...] o heri ligado identi cativamente ao espec-tador. Ele pode ser admirado, lastimado, mas deve ser sempre amado.

    O jogador Ronaldo Nazrio de Lima, o Ro-naldinho, por exemplo, representou esse heri durante duas trs Copas do Mundo (1998, 2002, 2006). Nas ruas das cidades brasileiras e em muitas do exterior, milhares de crianas corta-ram o cabelo e se vestiram como ele, que prati-camente foi transformado num deus da bola pelos locutores e comentaristas esportivos. Para Sodr (1977, p. 135), esse sempre ser um dos

    pontos reforados pela televiso: a imitao das personalidades do futebol, e consequentemen-te, o consumo de camisas dos clubes de fute-bol, chaveiros, canetas, chuteiras e bolas com as fotos dos jogadores. Os valores capitalistas so institudos no cotidiano dos seres humanos para que, no m das contas, se transformem em mercadoria. Para o autor, com a in uncia da televiso, o futebol perde o carter de manifes-tao cultural. O que seria o futebol apenas visto e no praticado? No dependeria o fute-bol brasileiro, enquanto fenmeno cultural re-almente signi cativo, da presena fsica do tor-cedor no estdio e da sua participao concreta nas circunstncias do jogo?

    A pergunta pode parecer lgica, mas a tele-viso transformou essa concepo de que o fu-tebol no existe sem torcedor. Trouxe o esporte para dentro das casas e foi alm: interpretou, in-crementou efeitos especiais, narrou tudo o que acontece nos gramados, deu uma outra roupa-gem. Alm de oferecer todo o aparato tecnol-gico que permite presenciar imagens nicas, de-talhes de lances, repeties de algumas jogadas, que no podem ser vistos no estdio, a televiso representa segurana, j que o torcedor assis-te ao jogo do sof, no precisando enfrentar as ameaas de violncia entre as torcidas organiza-das, to difundidas nos ltimos tempos.

    Sodr (1977, p. 140) relata que, quando surgiu, o aparelho de televiso signi cava a contradio entre o campo e a cidade, entre pobres e ricos, mas, agora, com a populariza-o deste meio de comunicao, a indstria precisa da mo-de-obra de reserva para acu-mular um novo tipo de excedente: o da audi-ncia. Por isso, segundo ele, o futebol, mais do que mero esporte, tende a se transformar num grande espetculo de massa.

    A partir disso, pretende-se analisar como se deu essa passagem, do esporte enquanto mani-festao cultural para espetculo e, consequen-temente, produto de consumo. Como a evoluo tecnolgica dos meios de comunicao, princi-palmente a televiso, contribuiu para isso e de que maneira os narradores, comentaristas e de-mais pro ssionais envolvidos na transmisso do futebol participam da constituio de um dis-curso que gera no telespectador um processo de identi cao com aquilo que transmitido.

    Breve volta no tempo: o rdio

    Desde 1894, quando o estudante paulis-ta Charles Miller trouxe as regras do futebol da Inglaterra onde o esporte surgiu para

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    Futebol na TV: evoluo tecnolgica e linguagem de espetculo

    o Brasil, o jogo comeou a virar mania entre os jovens, e, em pouco tempo, passou a ser praticado e acompanhado em todo o territ-rio nacional. Segundo Lyra Filho (1973, p. 284-285), o futebol, no Brasil, valorizado como um consolo para as massas, um alento para as di culdades do cotidiano. O povo brasileiro vale se de um jogo de futebol para pr fuga aos aperreios acumulados no seu dia-a-dia.

    Meihy e Wi er (1982, p. 14) concordam com tal posicionamento. Para eles, o futebol se tornou uma espcie de marca nacional e sempre esteve relacionado arte de driblar, como no jogo, os problemas da vida. Os as-pectos positivos da nacionalidade transfor-maram o futebol no cimento da integrao.

    Na opinio de Sodr (1977, p. 148), o fute-bol representa o cotidiano da vida humana. Quando o time do corao vence como se o torcedor vencesse junto. O futebol expressa a batalha do dia-a-dia e a luta para triunfar, a vontade que cada um tem de ver o heri, aque-le jogador que possui as caractersticas que o telespectador valoriza, superar as adversida-des. A torcida pela vitria, por exemplo, uma forma de superao pessoal. O futebol capi-talizou aspectos de uma ideologia populista difusa nos quais se misturam anseios de entre-tenimento com aspiraes de ascenso social.

    A facilidade de entender as regras do jogo tambm colaborou para que futebol se popula-rizasse de forma rpida. Atentos a isso, os do-nos de veculos de comunicao entenderam que era preciso traz-lo para a mdia. At 1931, as partidas de futebol eram reportadas apenas pelos jornais impressos. De l para c, o rdio passou a transmitir os jogos. A di culdade, no entanto, era passar ao ouvinte um relato el do que acontecia em campo. Soares (1994, p. 30) explica que, ao iniciarem uma transmisso, os narradores pediam para aqueles que estives-sem acompanhando a partida imaginarem um retngulo, em que do lado direito estava uma equipe e do esquerdo, a outra. Determinado a cumprir a misso de lmar oralmente o jogo, o locutor obrigado a narrar em alta velocida-de, enunciando os detalhes como uma metra-lhadora de palavras.

    Para manter o ouvinte ligado, o locutor ti-nha, ainda, outra di culdade: No havia pu-blicidade no rdio. Tampouco comentaristas ou reprteres. Por causa disso, ele tinha de preencher, sozinho, os 90 minutos de jogo. Quando a bola pra, ele continua a falar: o clima do local, como est o pblico nas arqui-bancadas, a lotao do campo e relembra para

    os ouvintes a situao de cada time (Soares, 1994, p. 30).

    Em 1932, o governo de Getlio Vargas au-torizou a veiculao de publicidade no rdio. A partir da, as emissoras tiveram que refor-mular a programao e criar formas para atrair mais ouvintes. Com essa reformulao, a transmisso esportiva surgiu como um bom apelo para conquistar a audincia, ainda mais porque o crescimento da divulgao do fute-bol no rdio coincidiu com o incio da pro s-sionalizao do futebol no Brasil, em 1933, e o conseqente crescimento do interesse da populao pelo esporte. O futebol, naquele momento, passava a representar uma fonte de receita para o rdio.

    Embora tenha sido a rdio Educadora Pau-lista a primeira emissora a realizar uma trans-misso de futebol no Brasil, foi a Rdio Re-cord, fundada em 1928, tambm em So Paulo, que mais se destacou no incio das irradiaes no pas. Comandada por Paulo Machado de Carvalho, a emissora ampliou a programao destinada ao futebol e criou um servio para informar resultados de outros jogos. O pr-prio Paulo Machado de Carvalho explicou cer-ta vez, como era o servio, ao programa So Paulo Agora, da Rdio Jovem Pan. O depoi-mento consta da obra de Soares (1994, p. 32).

    [...] no era nada mais que uma srie de telefone-mas, daqueles telefones de manivela em que se falava do campo, do campo se dava uma notcia: Fulano de tal marcou um gol. Ento o Siquei-ra, que recebia esse noticirio vastssimo, pode-se imaginar que ele recebia do campo duas, trs, quatro notcias por jogo. [...] Ele escrevia num papel e passava ao locutor, que dizia: acabou-se de marcar um gol no Parque Antarctica.

    As di culdades dos locutores, porm, ain-

    da eram muitas. A irradiao era feita atravs de linhas telefnicas precrias. Os microfones eram pesados e funcionavam a carvo. Os lo-cutores davam-lhes socos para conseguir um som um pouco melhor (Soares, 1994. p. 33).

    Mesmo assim, as iniciativas da Rdio Re-cord geraram uma repercusso positiva entre os ouvintes. E, por causa disso, surgiram, na capital paulista, outras emissoras voltadas s transmisses esportivas, principalmente de futebol, como a Cruzeiro do Sul e a Cosmos. Durante a Copa de 1938, a persistncia em me-lhorar as transmisses representou mais um passo para consolidar o rdio no pas.

    Doze anos depois, em 1950, a televiso chegou ao Brasil, mas os jogos de Copas do

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    Igor Jos Siquieri Savenhago

    Mundo e outras transmisses de futebol ain-da eram acompanhados pelo rdio. Como j foi mencionado, a primeira Copa transmitida pela televiso ao Brasil foi a de 70. At l, foi o rdio que irradiou as vitrias e derrotas da Seleo Brasileira. Antes disso, no havia apa-rato tecnolgico para fazer transmisses inter-nacionais pela TV.

    Foi justamente em 1950, ano da instalao das primeiras televises no Brasil que o rdio atingiu o pice, j que, naquele ano, a Copa do Mundo foi realizada no Brasil. A derrota da Seleo Brasileira na poca, por 2 a 1, na nal contra o Uruguai, disputada no estdio do Maracan, no Rio de Janeiro, ecoou por todo o pas, via ondas do rdio. O narrador da Rdio Panamericana, Pedro Lus, fez, aps a partida, um depoimento emocionado, em que procurou demonstrar qual era o sentimento da populao com a perda do ttulo. Um depoi-mento que misturou consternao, surpresa, espanto e que se confunde com a vida cotidia-na. Como se o futebol, naquele momento, fos-se a reunio de todas as esperanas do povo brasileiro. A derrota em campo signi cava tambm uma derrota para a auto-estima.

    Nas palavras de Pedro Lus, o futebol era o espelho da realidade do pas, trgica aps a partida contra o Uruguai. Como se a grande-za de uma nao, as aspiraes individuais, os sonhos de cada brasileiro, a vontade de viver num pas organizado e com igualdade social estivessem depositadas, apenas, numa parti-da de futebol. Como se todos os problemas e todas as desgraas de uma nao estivessem reduzidas a uma derrota da Seleo Brasileira no Maracan. O depoimento tambm citado na obra de Soares (1994, p. 66).

    A surpresa nal do Campeonato do Mundo! Os uruguaios, campees de 1930, cam de posse do ttulo de 1950. Depois da mais brilhante cam-panha cumprida pela Seleo do Brasil, no nal do certame da Copa Jules Rimet. Parece mentira aquilo que estamos vendo! Quan-do tudo era favorvel, quando tudo estava do nosso lado, quando o nosso time acertou, quando exibiu um futebol para todo o mundo no Mara-can, quando ningum no mundo tinha dvida da vitria, eis que o Uruguai, lutando com bra, lutando com denodo, lutando com con ana, le-vanta o ttulo, tira ltima hora do Brasil o ttulo de campeo do mundo de 1950. Depois de uma festa grandiosa e espetacular, que chamou a ateno de todos os brasileiros para o Maracan, a nossa equipe no acerta sua parti-da, no acerta o ritmo de seu jogo. Vence a meta do Uruguai. Parecia o caminho aberto para a

    vitria. Cede o empate. E depois o Uruguai pres-siona e desempata a partida. Ns pressionamos, lutamos, camos em campo, e no conseguimos. So coisas de futebol.

    Pode-se notar que o narrador fala da Se-leo Brasileira em primeira pessoa, como no trecho: Ns pressionamos, lutamos, camos em campo, e no conseguimos. a frustra-o pela derrota de um time em um jogo de futebol transferida para o cotidiano de cada brasileiro. A unio, a solidariedade e o esprito de luta no foram su cientes para transformar as esperanas em realizaes. A esperana do progresso caiu por terra e todo mundo perdeu. A populao perdeu. O pas, como nao, per-deu. Dessa forma, Pedro Lus e o rdio torna-vam-se agentes disseminadores de sentimen-tos de nacionalidade.

    O locutor esportivo, mesmo quando tenta limi-tar-se descrio do jogo, no processo de trans-crio do visual em oral altera a realidade. Sua preocupao pelo espetculo transforma em ci-dado de um outro pas, o Pas do Futebol, que sobrevive alienado dos problemas sociais. o multiplicador de um processo de divulgao de um crculo concntrico de emoes primrias: vo do clube, onde os jogadores devem honrar a camisa e defender o distintivo, para o campeonato nacional, quando o bairrismo estadual explora-do exausto pela crnica esportiva; at quatro anos depois, Copa do Mundo, em que a Seleo do Brasil tem a obrigao de resgatar todas as frustraes nacionais, as taxas de mortalidade infantil, o estado de misria absoluta de grande parte da populao, o analfabetismo, os ndices de criminalidade e corrupo (Soares, 1994, p. 80).

    Com o advento da televiso, esta realidade foi intensi cada, como poder ser observado a seguir.

    Futebol e televiso

    Segundo William (2002), poucos meses aps sua inaugurao, o primeiro canal de te-leviso do Brasil, a TV Tupi, j transmitia jogos de futebol realizados em So Paulo e cidades prximas. Em 1952, foi fundada a TV Paulis-ta, atual Rede Globo, que viria para concorrer com a Tupi nas transmisses esportivas.

    Mas foi s em 1956 que a televiso conse-guiu transmitir uma partida interestadual. Era o dia 1 de julho. Record e TV Rio entraram em cadeia e mostraram, ao vivo, imagens de um amistoso do Brasil contra a Itlia, no Maraca-n. Essa proeza da Record impulsionou de-

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    Futebol na TV: evoluo tecnolgica e linguagem de espetculo

    nitivamente a venda de televisores. A popu-lao comeou a achar alguma vantagem em comprar aqueles aparelhos, que ainda eram novidade (William, 2002, p. 37).

    O sucesso da primeira transmisso interes-tadual de um jogo de futebol e o aumento na venda de aparelhos estimularam as emissoras a investir em tecnologia. No entanto, ainda no havia estrutura para uma transmisso interna-cional. Na Copa de 1958, a Rdio Bandeirantes despontava como a mais ouvida pelos amantes do esporte em So Paulo. O diretor artstico e co-mercial da emissora, dson Leite, queria apro-veitar o evento para promover a emissora no pas inteiro. Contratou o narrador Pedro Lus e remontou uma grande rede chamada Verde e Amarela, que havia sido criada para a trans-misso dos Jogos Panamericanos em 1955, na Cidade do Mxico. Durante os jogos da Copa, vrios rdios, de Norte a Sul do pas, captavam o som em ondas curtas da Rede Bandeirantes e faziam a retransmisso do sinal. Nas parti-das da Copa do Mundo de 1958 a Bandeirantes chegou, segundo Pedro Lus, a uma audincia mdia de 85%. No jogo contra a Sucia (deci-so da Copa) a audincia da Bandeirantes foi de 92,5% (Soares, 1994, p. 55).

    Na Copa de 1962, realizada no Chile, outra inovao da Rdio Bandeirantes. Naquele ano, os videoteipes dos jogos da Seleo Brasileira j eram transmitidos por algumas emissoras de televiso. Mas eles s chegavam ao Brasil tarde e eram exibidos s no dia seguinte aos jogos. Por isso, a Rdio Bandeirantes montou um esquema especial para que os torcedores da capital paulista pudessem acompanhar o desempenho da Seleo no momento em que o jogo era realizado. Construiu um painel lumi-noso na Praa da S, no centro So Paulo, rode-ado por alto-falantes. O painel reproduzia um campo de futebol e era coberto com lmpadas, controladas por um sistema de interruptores.

    Os locutores que irradiavam os jogos receberam instrues para dar permanentemente a posio da bola no campo, no Chile. Em So Paulo, o operador acendia as lmpadas de acordo com o movimento da bola. Esse arremedo de irradiao direta da imagem atraiu multides de torcedores Praa da S (Soares, 1994, p. 55).

    Com a conquista do bicampeonato mun-dial pela Seleo Brasileira, em 1962, o futebol, no Brasil, passava por uma poca de ouro. No exterior, foi aberto um grande mercado para os times nacionais, que eram convidados para disputas de amistosos e podiam divulgar pro-

    dutos, como camisas, cales e outros artigos com a marca da equipe. O Santos, que acaba-va de conquistar o seu primeiro Campeona-to Mundial Interclubes, era uma das equipes mais conhecidas na Europa, principalmente porque tinha no elenco o jogador que se torna-ria o rei do futebol: Pel.

    Com o fracasso na Seleo Brasileira na Copa de 1966, os torcedores brasileiros depo-sitavam a con ana nos jogadores que dispu-tariam o Mundial de 1970, no Mxico, prin-cipalmente em Pel, que h doze anos no se destacava em Copas do Mundo. Na Copa de 1958, na Sucia, o mundo conheceria o futebol daquele garoto, que, com apenas 17 anos, mar-cara dois gols na nal contra a Seleo da casa.

    Na Copa de 1962, porm, Pel teve que ser substitudo no segundo jogo por causa de uma contuso. Amarildo, que entrou em seu lugar, jogou at a nal. Em 1970, porm, a conquista do tricampeonato mundial pela Seleo consa-grou Pel, de nitivamente, como um mito do esporte. E acarretou, tambm, trs mudanas na realidade scio-cultural brasileira.

    (i) O sucesso de Pel consolidou uma vitria dos negros. Nas primeiras dcadas do es-porte no Brasil, segundo Soares (1994), a maioria dos clubes brasileiros s aceitava brancos no elenco de jogadores. A mesma autora menciona que antes de jogar no San-tos, Pel, por exemplo, chegou a ser ofere-cido ao Palestra Itlia, hoje Palmeiras, e ao Corinthians, que o recusaram.

    (ii) No ano da Copa, o Brasil vivia o auge da ditadura militar, com o governo do general Emlio Garrastazu Mdici. A conquista da Seleo Brasileira foi usada pelos milita-res para mostrar populao a imagem de um pas forte e vitorioso, que mascarava o terror da censura. En m, um pas glorio-so, at no esporte. O governo procurava ir ao encontro das aspiraes do povo, que desejava a conquista da Copa de 70. Uma conquista que servia para ocultar os pro-blemas do pas, como as torturas de presos polticos e as mazelas sociais. Abaixo, um trecho de uma reportagem retrospectiva da revista Veja, publicada na dcada de 80 e citada por Cotrim (1988, p. 479), que lem-brou como cou o pas depois da Copa.

    Em 1970, no domingo em que o capito Carlos Alberto fez o quarto gol contra a Itlia, na Copa do Mxico, e deu Seleo a Taa Jules Rimet e o cobiado tricampeonato mundial -, andar

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    Igor Jos Siquieri Savenhago

    de carro nas ruas brasileiras sem uma bandeira verde-amarela tornou-se uma temeridade. Os adesivos Brasil ame-o ou deixe-o gruda-ram em todas as faces de um pas em que o PIB (Produto Interno Bruto) subia 10% ao ano, as bolsas de valores disparavam, as obras da Transa-maznica comeavam e 160 milhes de dlares eram torrados na compra de 16 avies supersni-cos Mirage. O Brasil estava arrebatado. Mas o momento ines-quecvel da auto-estima nacional estava aplicado sobre um fundo falso. O Brasil Grande apenas virtual. Assim, Mdici chorou diante da seca nordestina, ao descobrir que a economia ia bem, mas o povo ia mal. A Transamaznica, at hoje, uma miragem de empreiteiro.A classe mdia, entretanto, comemorava as novas possibilidades de consumo. O paraso dos anos 70 consistia em tirar o Corcel da garagem, fazer compras no supermercado Jumbo, ver futebol na maravilha do ano a TV em cores e sonhar com a prxima viagem a Bariloche, na Argentina.

    A Copa de 1970 foi transmitida ao vivo para todo o Brasil. A televiso tambm con-tribura para consagrar Pel como mito. Tanto que, com as novas possibilidades de consumo, mencionadas no fragmento de texto acima, ele se tornaria marca de vrios produtos, des-de camisas at bonecos de brinquedo. A par-tir da, tendo o futebol e a propaganda como aliados, a televiso se tornaria uma poderosa arma de persuaso.

    Os esportes e a Rede Globo

    Fundada em 1965, a TV Globo possui, se-gundo o documentrio Brasil: alm do Cida-do Kane, de 1993, dirigido pelo cineasta in-gls Simon Hartog e que trata do surgimento da emissora, uma histria atrelada ao poder poltico. Em 1964, foi instalada a ditadura mi-litar no pas e como o governo precisava de um canal de difuso de uma propaganda positiva do Brasil suas belezas naturais e suas con-quistas abriu-se o campo para uma emissora poderosa. A Globo surgia, ento, com o obje-tivo de apoiar o governo militar, procurando mostrar populao que o pas estava em boas mos. Roberto Marinho, o dono da emissora, gozava de prestgio entre os militares e, numa troca de gentilezas, daria prestgio a eles. Nes-se jogo de interesses, a Globo foi a emissora que cou com a maior fatia dos gastos publici-trios do Governo Federal.

    As primeiras transmisses foram feitas com materiais arcaicos, se comparados aos atuais, mas j antecipavam o poderio tecno-

    lgico da emissora. Rapidamente, a Globo se modernizou, principalmente com a chegada de Hans Donner, um austraco que revolucio-nou o meio televisivo atravs do seu conheci-mento em tcnicas gr cas. O advento da ima-gem, que at ento j fascinava os brasileiros, fez com a televiso passasse a integrar, cada vez mais, a rotina da populao. A venda de aparelhos crescia a cada dia e a delidade para com a Globo tambm, visto que, em matria de pro ssionalismo, ela j gurava frente de outros canais, como a Excelsior, por exemplo.

    Ainda segundo Hartog, o padro de qua-lidade proposto pela Globo passou a ser ad-mirado nos quatro cantos do pas. Roberto Marinho percebia a grandeza do poder que possua em mos. Sabia que a emissora tinha credibilidade e o que colocasse no ar seria acei-to como verdadeiro pela maior parte da popu-lao. A partir da, as mazelas que a ditadura causava no pas eram amenizadas pelo discur-so ldico, atravs de programas e novelas que mostravam um pas sem problemas. Torturas foram escondidas. As manifestaes contra a ditadura, quando eram mostradas, vinham acompanhadas de um discurso maniquesta: eram comunistas e prejudicariam o pas. Por isso, deveriam ser dissolvidas.

    No governo Mdici, perodo em que a tor-tura se intensi cou, um poderoso trabalho de propaganda ideolgica foi feita pelos militares com o apoio da TV Globo, que ajudou a difun-dir a campanha Brasil: ame-o ou deixe-o e a conquista da Copa de 70. Num perodo em que se posicionar contrariamente forma de gover-no era motivo de censura, a Globo foi o brao direito dos militares. Para Arbex Jnior (2001, p. 98), a televiso nunca foi apenas observado-ra ou reprter dos acontecimentos. Sempre in-terferiu nas informaes que veicula de acordo com o interesse poltico de seus dirigente.

    O telenoticirio dirio adquiriu o estatuto de uma pea poltica, cuja lgica determinada pelas re-laes de cada veculo da mdia com o sistema poltico, nanceiro e econmico do pas ou regio em que ele se encontra. A notcia, como produto nal, uma sntese desse conjunto de relaes.

    Segundo o mesmo autor (2001, p. 47), o ob-jetivo da televiso gerar, no pblico, um pro-cesso de identi cao com o que veiculado.

    bvio, h uma elevada dose de narcisismo nesses processos de identi cao. Mesmo inconsciente-mente, escolho os aspectos que merecem ser ilumi-nados na composio de tal ou qual personagem, os

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    Futebol na TV: evoluo tecnolgica e linguagem de espetculo

    aspectos que melhor me descrevam para mim mes-mo e para os outros, de acordo com aquilo que penso a meu respeito. Ou, ao contrrio, escolho a gura que deve ser odiada para se opor minha imagem real. Projeto minha imagem ideal naquelas com a qual me identi co, e os meus problemas, minha sombra, a rea escura eu jogo na lata do lixo.

    De acordo com Giuliano i (2002, p. 120), esse processo de identi cao intensi ca o as-pecto comercial da televiso, j que as empre-sas procuram aliar a imagem do seu produto a de um ator ou de uma personalidade esportiva valorizada pelo pblico.

    A base de vendas e o poder nanceiro da Nike, por exemplo, cresceram rapidamente por meio da assinatura de contratos com as personalidades americanas de esportes, principalmente Michael Jordan, Tiger Woods e Pete Sampras. [...] Mas a mercantilizao do corpo ganhou maior dimen-so quando a Nike entrou no mundo do futebol. [...] Inevitavelmente, esteve no centro das especu-laes quando assinou um contrato com Ronaldo, do Brasil, em 1996, considerado o seu patrimnio no futebol. [...] Quando Ronaldo assinou contra-to com a Inter de Milo, que tinha a Nike como patrocinadora, o time italiano vendeu 35 mil camisas com a estampa de Ronaldo em dez dias.

    O exemplo demonstra que os personagens com quem o pblico se identi ca acabam se tor-nando, tambm, agentes estimuladores do mer-cado. Na televiso, Ronaldo (ou Ronaldinho) era exaltado nos jogos pela Seleo e depois aparecia fazendo propaganda da Nike. O produto, aliado imagem do jogador, tido como o sucessor de Pel, teve crescimento nas vendas no por acaso.

    Forma-se, ento, um tringulo entre o telespectador, a emissora de televiso e os anunciantes. Um d sustentao s aspiraes dos outros dois, o que explica o sucesso das transmisses de futebol, especialmente em pocas de Copa do Mundo. A transformao do esporte em mercadoria representou, princi-palmente Globo, segundo Ramos (1984), um estrondoso sucesso nanceiro com a comercia-lizao de cotas publicitrias durante a Copa de 82. Nas Copas seguintes, novos saldos al-tamente positivos. A partir da, o futebol se tornaria, de nitivamente, um grande negcio para a televiso brasileira.

    O futebol como espetculo

    Mas para que a estratgia de transmitir futebol pela televiso atingisse o auge do su-cesso no bastava, somente, trazer o esporte

    para a telinha como um elemento do folclore brasileiro. Como os meios de comunicao nos pases capitalistas visam o lucro, era preciso transformar o futebol em algo vendvel, que atrasse a ateno de possveis anunciantes em funo dos nmeros da audincia. Transfor-mar a cultura popular em cultura de massa, um dos fatores principais da chamada inds-tria cultural.

    Muito mais que lmar as partidas, o que se discutia nos canais de televiso era como ir alm disso, mostrando os bastidores dos clu-bes, como eles se preparavam para uma par-tida, informando estatsticas, quais os times que mais ganharam competies, quem eram os astros de cada equipe. Esperava-se atrair cada vez mais telespectadores promovendo rivalidades entre torcedores de uma equipe e outra, revestindo, dessa forma, o futebol com uma linguagem de espetculo.

    A estratgia envolvia imagens inditas e exclusivas, em cmera lenta para mostrar o es-foro do atleta dentro de campo, incentivo para que as torcidas levassem bandeiras, bales e camisetas coloridas para o estdio e locutores encarregados de apresentar os embates entre os times concorrentes, no de uma forma fria, mas com envolvimento, torcendo, vibrando junto, como se traduzissem o sentimento da populao brasileira, principalmente em jogos de Copas do Mundo. Esse jeito de transmitir futebol pela televiso permanece desde que os primeiros jogos saram do rdio para serem apresentados em imagens. O que mudou de l para c foi o aperfeioamento das tecnologias de transmisso a mais recente foi a chegada da TV digital ao Brasil , que permitem maior interao entre os veculos de comunicao e seus espectadores. Hoje, as emissoras usam at a Internet como aliada para que os amantes do esporte inter ram nas partidas, enviando perguntas aos comentaristas esportivos.

    Para Marcondes Filho (1988, p. 71), a vitria de uma equipe pela qual se torce, ressaltada pela televiso, um artifcio para que o torce-dor se fortalea perante as adversidades do co-tidiano. Ele passa a acreditar que os problemas que enfrenta podem ser amenizados.

    Num jogo de futebol, evidenciam-se rivalidades, disputas e desa os entre torcedores. Psicologica-mente, o torcedor da equipe vitoriosa coloca-se em superioridade perante a equipe perdedora e seus fs. Pelo menos nessa hora, o Z-ningum al-guma coisa. Pelo menos o seu time pode demons-trar sua glria, sua virtude, e oferecer a vanta-gem de se torcer por uma equipe que s traz feli-

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    cidade. Atravs dela, ele poder rir de seu colega de trabalho, infeliz torcedor de times ruins, um pobre diabo. Sua equipe campe vinga por ele os dissabores da vida. Nos jogos internacionais e especialmente na Copa do Mundo o processo assume dimenses nacionais e patriticas: o prazer da vitria se re-aliza, aqui, associado a um ajuste de contas. O Brasil se vinga batendo, surrando o adversrio, pois ns, como um pas explorado, humilhado, dominado, ameaado pelas naes mais ricas, vingamo-nos atravs do futebol. O esporte, que na ordem econmica e poltica da sociedade no tem grande importncia, faz o homem simples re-criar a hierarquia e as diferena sociais, transfor-mando seu dia-a-dia para melhor, mesmo durante um curto espao de tempo.

    O autor (1988, p. 71-72) enfatiza, ainda, que a televiso a responsvel por acentuar esse sentimento de patriotismo.

    Mais do que a telenovela ou qualquer outro pro-grama, por meio da TV que o futebol adquire um peso excepcional, a cada quatro anos, por ocasio da Copa do Mundo. Promovido intensamente pelos programas de esporte, pelos jornais e pelas prprias expectativas populares, o futebol as-sume uma carga emocional (e agressiva) equiva-lente dos desa os militares sofridos por um pas em poca de guerra. Nenhum outro objeto con-centra tanta energia de massas como esse esporte, nessas pocas. Na ausncia de um fato que sin-tetize, que condense as aspiraes por naciona-lidade, por unidade, por revolta (cultural e at poltica), o futebol funciona como um oportuno (e inofensivo) substituto.

    Coelho (2003, p. 64) refora a tese de trans-formao do futebol em mercadoria, por meio de uma linguagem de espetculo. Ele escreve que, nas transmisses da TV Globo, por exem-plo, nada sai errado. Se existem problemas no gramado, na estrutura do estdio ou se o p-blico do jogo pequeno, a emissora procura ameniz-los. Numa transmisso de futebol da Globo quase nada anda errado. Quase no se nota que o estdio, cenrio do evento, anda s moscas. No se fala do gramado, do nvel tcnico, de nada. Tudo absolutamente lindo.

    Para o jornalista, a discusso onde termi-na o show e comea o jornalismo no existe na TV Globo quando o assunto futebol. Ele salienta que, numa transmisso esportiva, h diversos elementos que poderiam fazer parte de uma boa matria jornalstica, como os er-ros do rbitro, a m atuao de um jogador, mas a Globo prefere salientar a grandeza do evento, o que j est escancarado, aquilo que o

    espectador quer ouvir: A matria jornalstica o que menos aparece nas transmisses es-portivas. Tudo o que importa, a nal, o show [grifo do autor] de jornalistas e reprteres (Coelho, 2003, p. 64).

    Isso acaba sendo con rmado pelo prprio Galvo Bueno, narrador esportivo mais antigo da TV Globo. Numa entrevista ao jornal O Es-tado de So Paulo, concedida em 2 de fevereiro de 2002, Bueno se de ne como um vendedor. Vejamos alguns trechos:

    Estado - Como voc se de ne? Galvo - Sou um vendedor de emoes.

    Estado - O narrador tem de ser torcedor tambm? Galvo - O esporte basicamente emoo. En-to, meu papel falar sobre a tcnica, a ttica, o confronto de inteligncia, mas tambm vender essa emoo. por isso que o esporte mobiliza um pas, pra um pas. por isso que enlou-quece as pessoas, que existe a rivalidade entre os torcedores.

    Estado - Qual o limite? Galvo - completamente diferente transmitir Corinthians x Palmeiras e Brasil x Alemanha. Vou torcer para quem? evidente que toro para o Brasil. O telespectador tambm est angusti-ado, tambm torce para o Brasil, grita de forma to histrica como eu, mas tem uma vantagem: pode xingar. Eu toro mesmo, e da? Claro que te-nho limites, que o compromisso com a verdade. Existem pessoas que me do retorno durante as transmisses. No estou ali sozinho. Recebo al-guns toques.

    Estado - Qual a maior di culdade do seu trabalho? E o que mais grati cante? Galvo - O mais legal que eu fao o que gosto. O mais difcil continuar competitivo. A cada cinco minutos, falam no meu ouvido como est a audincia. E, cada vez que sobe o ibope, sobe a minha adrenalina. Quanto mais agitado eu es-tiver, melhor vou trabalhar. Dizem que sempre arrumo discusso antes de entrar no ar para dar uma pilhada.

    Percebe-se que Bueno parte do jogo que transmite. Con rma a opinio do jornalista Paulo Vincius Coelho de que o narrador muito mais um apresentador de um grande show do que um jornalista. Quando Bueno se de ne como um vendedor de emoes, ele insere as transmisses esportivas no conceito de espetculo, que, segundo Marcondes Filho (1988), a nica lgica possvel da televiso. Isso signi ca que o narrador tem a funo

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    Futebol na TV: evoluo tecnolgica e linguagem de espetculo

    de usar um discurso previamente construdo para fazer vir tona, na mente do torcedor, lembranas de momentos agradveis. Vencer uma Copa do Mundo, por exemplo, represen-taria, para o telespectador, reviver a emoo de uma conquista pessoal, por exemplo. Sen-do assim, Bueno transforma o evento Copa em momento de expectativa, em possibilidade de alcanar a emoo desejada. Quando isso no acontece, o resultado a frustrao, j que os telespectadores voltam vida real, aos proble-mas cotidianos.

    O incentivo ao consumo atravs das trans-misses esportivas um elemento desse pro-cesso de negao do fracasso e da busca cons-tante da felicidade. Para Debord (1997, p. 30), na sociedade capitalista, o mundo sensvel do ser humano, ou seja, sua subjetividade, subs-tituda por uma srie de imagens, que so ape-nas uma representao desse mundo sensvel. A realizao pessoal, portanto, representada pela posse de uma mercadoria.

    O espetculo o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. No apenas a relao com a mercadoria visvel, mas no se consegue ver nada alm dela: o mundo que se v o seu mundo. A produo econmica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura.

    Consideraes nais

    Tomando como base esta ltima citao de Debord (1997) e a a rmao de Marcondes Fi-lho (1988) de que o espetculo a nica lgica possvel da televiso, pode-se concluir que um dos grandes papis da televiso , sem dvi-da, estimular a posse de mercadorias. Assim, as transmisses de futebol tambm possuem a funo de incentivar o consumo. As emisso-ras compram os direitos de transmisso de um campeonato em troca de audincia e retorno nanceiro, atravs da venda de cotas publicit-rias. Dessa forma, o futebol se consolida como espetculo e tem a funo de reforar os obje-tivos da indstria cultural, ou seja, conquista audincia para que as empresas possam divul-gar seus produtos para um grande nmero de telespectadores. Age, portanto, no sentido de possibilitar o mximo consumo.

    Para concentrar consumidores em poten-cial, a televiso usa uma linguagem de espe-tculo, que gera no telespectador um processo de identi cao com o que est sendo veicula-do: desperta a emoo, que faz com o telespec-tador se distancie dos seus problemas cotidia-

    nos para acreditar que os conceitos emitidos pela televiso so sinnimos de sucesso e feli-cidade. O telespectador passa a no questionar sua condio de vida e a realidade em que est inserido. No questiona se h, realmente, essa possibilidade de realizao pessoal.

    Desde quando surgiu na Inglaterra, o fu-tebol tornou-se um elemento apaziguador do questionamento sobre a situao de vida. Para a burguesia, representou um meio de despo-litizao dos trabalhadores. O esporte provo-cou o rompimento das organizaes de classe e, com isso, uma posio acrtica diante das desumanas condies de trabalho impostas pela Revoluo Industrial e das di culdades de sobrevivncia.

    Sendo assim, pode-se notar que, de l para c, a funo do futebol na sociedade capitalis-ta no mudou muito. Permanece como agente despolitizador, padronizando comportamen-tos, principalmente em poca de Copa do Mundo, e diminuindo a capacidade de crtica lgica do sistema capitalista.

    A TV Globo, por exemplo, maior investi-dora do Brasil nas transmisses esportivas, acentua, desde que foi fundada, a funo des-politizadora do futebol, como na Copa de 70, por exemplo, em que a conquista da Seleo Brasileira foi exaltada para ocultar as mazelas da ditadura militar. O futebol, portanto, virou uma poderosa arma de persuaso. Atualmen-te, por causa dos altos ndices de audincia, provoca uma concorrncia entre algumas das maiores empresas instaladas no Brasil, que tm interesse em divulgar seus produtos du-rante as transmisses pela televiso.

    A televiso, que at sobreviveria sem o fu-tebol, no quer car sem ele. Os lucros justi- cam os investimentos. Os times conseguem boas rendas graas aos direitos de transmisso pagos pelas emissoras de TV e os telespecta-dores provam, atravs dos nmeros da audi-ncia, que o futebol pela televiso virou mania nacional. Todos esses fatores reunidos per-mitem considerar que a tendncia da relao comercial futebol-televiso permanecer por perodo indeterminado.

    Isso signi ca dizer, tambm, que novas tec-nologias e possibilidades, que ainda no foram exploradas pela indstria do entretenimento, esto a caminho, j que o contato entre televi-so e telespectador uma relao de mo du-pla. Uma se aproveitou do processo de identi- cao popular para com o futebol para iniciar as transmisses esportivas. O outro lado da relao, o pblico, gostou da novidade e exi-

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    giu que a qualidade da imagem melhorasse a cada dia. En m, uma relao mediada pela cincia e pela tecnologia, numa demonstrao de que esses dois conceitos andam de mos dadas com a sociedade. A evoluo tecnolgi-ca depende, portanto, dessa interdependncia. E o que determina se essa evoluo ser usada para alienar os indivduos ou politiz-los a capacidade crtica da sociedade. Quanto maior for o nvel de exigncia intelectual, maior ser a produo do conhecimento voltado a dimi-nuir os problemas sociais. Um desa o cons-tante para ns, pesquisadores. Um desa o constante para a cincia.

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    Submetido em: 03/02/2010Aceito em: 12/03/2011