fundação getulio vargas centro de pesquisa e documentação

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Fundação Getulio Vargas Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais INVISÍVEIS Uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania nas trajetórias de brasileiros sem documento Fernanda Melo da Escóssia Rio de Janeiro 2019

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Fundação Getulio Vargas

Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil

Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais

INVISÍVEIS

Uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania

nas trajetórias de brasileiros sem documento

Fernanda Melo da Escóssia

Rio de Janeiro

2019

ii

INVISÍVEIS

Uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania

nas trajetórias de brasileiros sem documento

Fernanda Melo da Escóssia

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História, Política e Bens Culturais do

Centro de Pesquisa e Documentação em História

Contemporânea do Brasil, Fundação Getulio Vargas,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Doutor.

Orientadora: Profª Drª Letícia Carvalho de

Mesquita Ferreira

Rio de Janeiro

Abril de 2019

iii

iv

INVISÍVEIS

Uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania nas trajetórias de brasileiros sem

documento

Fernanda Melo da Escóssia

Orientadora: Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e

Bens Culturais do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação em História

Contemporânea do Brasil), da Fundação Getulio Vargas, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de doutora. Aprovada por:

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira, Presidente da Banca

CPDOC/FGV

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Mariza Peirano

PPGAS/UnB

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Adriana Vianna

PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Cristina Rego Monteiro da Luz

PPGTLCOM/ECO/UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Angela Moreira Domingues da Silva

v

PPHPBC/CPDOC/FGV

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Karina Kuschnir (suplente)

Departamento de Antropologia Cultural/IFCS/UFRJ

______________________________________________________________________

Prof. Dra. Laura Lowenkron (suplente)

IMS/UERJ

vi

vii

RESUMO

Esta tese é uma etnografia sobre brasileiros que viveram sem nenhum tipo de

documentação até o momento em que buscaram um serviço público e gratuito de emissão

de certidão de nascimento instalado em um ônibus na Praça Onze, no centro do Rio de

Janeiro. O atendimento do ônibus resulta de uma parceria entre dois projetos do Tribunal

de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Sepec (Serviço de

Promoção e Erradicação do Sub-registro de Nascimento e a Busca de Certidões). A tese

é resultado de dois anos de trabalho de campo nesse ônibus, acompanhando alguns de

seus usuários também fora dele. Em diálogo com o conceito de “margens do Estado”

proposto por Das e Poole (2004), mostra como as pessoas sem documento se

desconstituem como sujeitos, examinando os motivos que as levaram a buscar a certidão

de nascimento e interrogando os sentidos que atribuem a esse documento. Tal abordagem

permite refletir sobre o papel do documento como chave para o controle estatal, mas

também para acesso a direitos. A partir do recurso a histórias de vida, o trabalho descreve

a chamada “síndrome do balcão”, detalhando os meandros da busca pela documentação

no arcabouço burocrático estatal por parte dos usuários do ônibus. Reconstitui as

audiências judiciais nas quais, frente à ausência do documento, pessoas indocumentadas

constroem a verdade de sua existência diante de um juiz, a fim de provar que são quem

de fato dizem ser, e apresenta narrativas dos juízes sobre os atendimentos que prestam no

ônibus. Em diálogo com Bourdieu (1996), a tese analisa ainda a certidão de nascimento

como resultado de um rito de instituição e problematiza as capacidades atribuídas ao

documento pelos usuários, numa busca que é não só por um papel, mas também por

direitos, cidadania e recuperação da própria história.

Palavras-chave: etnografia; certidão de nascimento; documentação; direitos; cidadania.

Rio de Janeiro

Abril de 2019

viii

ABSTRACT

This thesis is an ethnography about Brazilians who lived without any kind of

documentation until the moment they looked for a free public service of emission of birth

certificate installed in a bus in Praça Onze, in the center of Rio de Janeiro. The bus service

is the result of a partnership between two projects of the Rio de Janeiro State Court of

Justice (TJRJ), the Traveling Justice and the Sepec (Service for the Promotion and

Eradication of Birth Registration and the Search for Certificates). The thesis is the result

of two years of fieldwork on this bus, accompanying some of its users outside of it as

well. In a dialogue with the concept of the "margins of the state" proposed by Das and

Poole (2004), it shows how undocumented people disregard themselves as subjects,

examining the reasons that led them to seek the birth certificate and interrogating the

meanings they attribute to this document. Such an approach allows us to reflect on the

role of the document as a key to state control, but also for access to rights. Drawing from

life histories, the work describes the so-called "counter syndrome" (when one has to go

from one counter to another), detailing the intricacies of the search for documentation in

the state bureaucratic framework by bus users. Furthermore, it reconstitutes judicial

hearings in which, faced with the absence of the document, undocumented persons

construct the truth of their existence before a judge in order to prove that they are, in fact,

who they claim to be, and presents narratives of the judges about the services they render

on the bus. In a dialogue with Bourdieu (1996), the thesis also analyzes the birth

certificate as a result of a rite of institution and inquires the capacities attributed to the

document by the users, in a search that is not only an official paper, but also for rights,

citizenship and for one’s own history.

Key words: ethnography; birth certificate; documentation; rights; citizenship.

Rio de Janeiro

Abril de 2019

ix

Para Ana e Daniel, os nomes do meu amor sem fim

x

AGRADECIMENTOS

Esta tese encerra um ciclo iniciado há 25 anos, quando me mudei de Fortaleza

para o Rio de Janeiro a fim de cursar o mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ.

Com o mestrado concluído, em 1996, optei por viver o jornalismo em grandes redações.

O doutorado foi adiado por muitos anos. No regresso à vida acadêmica, agradeço a quem

me pegou pela mão para me guiar nos caminhos da etnografia.

Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira, minha querida orientadora, me recebeu

sem me conhecer e enxergou meu projeto de pesquisa numa perspectiva além do que eu

mesma podia descortinar. Pelas indicações preciosas de textos e livros, pela leitura atenta,

pela revisão minuciosa, por me ouvir nos dias de lágrimas e nos dias de vitórias, pela

generosidade imensa, muito obrigada.

Agradeço também às professoras Mariza Peirano, Adriana Vianna, Angela

Moreira e Cristina Rego Monteiro da Luz, que aceitaram compor a banca, e à professora

Laura Lowenkron, suplente, pela contribuição durante o processo de qualificação.

Agradeço ao CPDOC e ao professor Celso Castro, diretor da instituição, a

acolhida sem reservas no PPHPBC (Programa de Pós-Graduação em História, Política e

Bens Culturais). O apoio acadêmico e financeiro do CPDOC, a dedicação e a excelência

de sua equipe técnica asseguraram, durante o curso de doutorado, o acesso a uma

fenomenal biblioteca e a participação em eventos científicos no Brasil e no exterior. Aos

professores e colegas de doutorado do CPDOC, agradeço o compartilhamento de ideias,

dúvidas e soluções.

Agradeço à Escola de Direito da FGV, em especial ao professor Joaquim Falcão,

pelo período de seis meses em que permaneci como Pesquisadora Fellow da instituição.

A bolsa da FGV Direito Rio me permitiu um período de tranquilidade num momento em

que a pesquisa de campo demandava atenção intensa. Agradeço também a Eduardo

Jordão, Michael Mohallem, Thiago Bottino, Thomaz Pereira e Rodrigo Vianna pelo

diálogo permanente sobre o direito e os direitos.

A equipe de juízes, promotores, defensores e técnicos do ônibus da Justiça

Itinerante permitiu que eu acompanhasse de dentro a rotina do meu objeto de pesquisa.

Agradeço pela confiança renovada a cada sexta-feira. Pioneira no combate à falta de

xi

documentação no Brasil, a juíza Raquel Acioly me apresentou o ônibus e se tornou, mais

do que fonte, interlocutora nesta pesquisa. Thereza Guimarães me abriu caminhos no

ônibus e no Tribunal de Justiça. Erika Santos me apresentou a expressão “síndrome do

balcão”, central neste trabalho. Tula Brasileiro e Cláudio Machado ajudaram a procurar

perguntas e respostas sobre o tema da documentação.

No triênio de 2016 a 2018, vivi intensamente a UFRJ, maior universidade federal

brasileira – foram dois anos como professora substituta da ECO (Escola de Comunicação)

e um como repórter da Adufrj (Associação dos Docentes da UFRJ). Na ECO, agradeço

aos colegas professores, em particular a Cristiane Costa e Paulo Cesar Castro, e, na

Adufrj, a Ana Beatriz Magno, que me fez olhar a UFRJ com olhos de repórter, e Kathlen

Barbosa, superestagiária responsável pela edição do vídeo com a síntese da tese. A UFRJ

me trouxe ao Rio, e a ela devo muito do que sou. Obrigada, Minerva.

Na UFRJ, na FGV e no IBMEC, o convívio com alunas e alunos me fez renovar

esperanças em um futuro melhor. Eu era jornalista, eles me tornaram professora.

Karina Kuschnir é amiga dos tempos das fraldas dos nossos bebês. Dividiu

angústias sobre a pesquisa, o país, os alunos e os filhos. Em seu blog com dicas sobre a

vida acadêmica, escreveu uma frase que guardo comigo: “Primeiro a gente faz, depois a

gente desiste”. Karina, segui seu conselho.

A Eliane Neves e Viviane Barros, agradeço o apoio familiar e doméstico no Rio.

Aos meus pais, Lauro e Sylvia, agradeço o amor infinito, que as brumas da velhice

não apagam. Aos meus irmãos, agradeço por cuidarem dos meus pais na minha distância.

À minha irmã Ilná, que partiu antes da hora, agradeço pela trajetória de luta contra o

câncer e pela coragem diante de tudo. À irmã que me restou, Carla, agradeço por tanta

coisa que não caberia nem em mil páginas. Agradeço, assim, pelas risadas e pelas

conversas ao primeiro toque da alvorada.

Ao meu amor, Mário, agradeço a paciência para ouvir as histórias do ônibus e a

parceria numa vida inteira.

Meus filhos, Ana e Daniel, são uma inspiração diária. Recompensam com alegria

e inteligência o tempo que passamos separados.

xii

Meu maior agradecimento, por fim, vai para as pessoas que dão vida a esta tese:

os brasileiros indocumentados que buscaram a certidão de nascimento no ônibus da Praça

Onze. Agradeço por terem aceitado que eu os escolhesse e, mais que isso, por terem me

escolhido para ouvir suas histórias de vida. Sem eles este trabalho não existiria.

xiii

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ARPEN-RJ Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro

ANOREG Associação dos Notários e Registradores do Brasil

BPC Benefício de Prestação Continuada

CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do

Brasil

CPF Cadastro de Pessoa Física

CRVS Civil Registration and Vital Statistics

CTPS Carteira de Trabalho e Previdência Social

DEPEN Departamento Penitenciário Nacional

Detran Departamento Estadual de Trânsito

DNV Declaração de Nascido Vivo

FAC Folha de Antecedentes Criminais

Funbel Fundação de Desenvolvimento Social de Belford Roxo

Fundação CASA Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INSS Instituto Nacional de Seguridade Social

ITS Instituto de Tecnologia e Sociedade

MMA Mixed Martial Arts

ONG Organização não governamental

PT Partido dos Trabalhadores

PSDB Partido da Social-Democracia Brasileira

PSL Partido Social Liberal

RCPN Registro Civil de Pessoas Naturais

RG Registro Geral

SEAS Secretaria de Estado de Assistência Social

SEPEC Serviço de Promoção e Erradicação do Sub-registro de Nascimento e

a Busca de Certidões

SIRC Sistema Nacional de Informações de Registro Civil

TJRJ Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

UFI Unidad Fiscal de Instrucción

xiv

SUMÁRIO

Introdução 1

Documentação, controle e cidadania 4

Registro e sub-registro no Brasil 8

Dentro de um ônibus, um pedaço de um país: nota metodológica 15

Organização da tese 20

1. “Sou uma pessoa que não existe”: quem sou quando não tenho documentos

1.1. Três gerações sem documentos 22

1.2. Quem sou quando não tenho documentos? 26

1.3. A vergonha de Rita: problema de quem? 30

1.4. Valderez e o fio da vida: por que quero um documento? 34

2. A síndrome do balcão e a chegada ao ônibus

2.1. A cartela de carimbos 48

2.2. “Quem é seu responsável?”: a cidadania mediada 54

2.3. “Mulher não precisa de registro”: as tutoras em ação 60

2.4. De checkpoint a ponto de chegada: o lugar do ônibus 67

3. Nas audiências, as provas de vida e a vida como prova

3.1. “Vi minha mãe grávida da minha irmã”: testemunho e memória como prova da

existência 73

3.2. A história dos presos invisíveis: a punição chega antes dos direitos 77

3.3.“As pessoas sentem muito poder em dizer não”: do Direito aos direitos 82

4. “Agora eu vou viver a vida”: o rito em funcionamento 99

xv

Considerações finais

“Eu até me sinto uma pessoa melhor”: a existência ganha registro 107

Referências bibliográficas 114

Apêndice 126

1

Introdução

Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância

e da Juventude, na Praça Onze, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir

das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase

todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e

esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para

conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da

vida – a certidão de nascimento.

Resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do

Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Sepec (Serviço de Promoção e Erradicação

do Sub-registro de Nascimento e a Busca de Certidões), o ônibus da Praça Onze é o

coração de um projeto mantido pelo TJRJ com a finalidade de reduzir o chamado sub-

registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento. É também o objeto desta

pesquisa. Inspirada pela indagação de Peirano (2006) – de que serve um documento? –,

busco analisar de que modo o processo de obtenção da certidão de nascimento traz à tona

concepções de direitos e cidadania expressadas pelos usuários que procuram o serviço da

Justiça Itinerante no Centro do Rio de Janeiro, problematizando de que forma, nesse

processo, as concepções vividas e relatadas por esses usuários também se transformam.

Esta tese analisa de que modo pessoas que buscam a certidão de nascimento se

apresentam como sujeitos de direitos e de que forma, em sua busca, noções de identidade,

direitos e cidadania também se modificam. A busca pelo documento transforma aquele

que busca: o ato de receber o registro de nascimento depois de anos sem ter nenhuma

identificação legal é ressignificado pelas pessoas que chegam ao ônibus da Praça Onze

como algo que abre caminhos para o reconhecimento de si mesmo como sujeito de

direitos, para a obtenção de direitos até então negados e para a reconstituição de trajetórias

familiares.

A fim de valorizar a experiência e as vivências das pessoas sem documento,

construí metodologicamente esta pesquisa como uma etnografia, com observação

participante no ônibus da Praça Onze, de setembro de 2016 a dezembro de 2017. Depois

disso, fiz novas idas ao ônibus ao longo de 2018, e até janeiro de 2019 mantive contato

com as pessoas cujas trajetórias são abordadas na pesquisa. Acompanhei toda a rotina do

2

atendimento no ônibus, tentando encontrar respostas para algumas perguntas: como um

adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Por que, em determinado

momento da vida, este adulto procura seu registro de nascimento? Como chega ao serviço

da Praça Onze, muitas vezes depois de anos de busca? Como se vê sem documentos? Que

papel atribui ao registro de nascimento?

“Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família”, dizia um. “Quero

o registro de nascimento para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero o

registro de nascimento para poder dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro.

“Quero o registro de nascimento para colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto.

As respostas de quem chegava ao ônibus indicavam inicialmente que o registro de

nascimento teria uma finalidade imediata, pois os indivíduos entrevistados afirmavam

que buscavam o documento para conseguir alguma coisa, muitas vezes outro documento

(carteira de trabalho), acesso a políticas públicas e benefícios sociais (inclusão no Bolsa

Família, aposentadoria) ou serviços (vaga em escola, atendimento médico).

Diante de tantas perguntas, a opção pela etnografia foi decisiva para buscar

interpretações sobre o significado de ter e não ter documentos. Nesse sentido, foi profícuo

o diálogo com estudos na área de antropologia do Estado e antropologia do direito. A

abordagem antropológica nos leva a estudar o Estado e suas margens em duas dimensões

(Sharma, Gupta, 2006): as práticas cotidianas (as rotinas, os procedimentos burocráticos

que muitas vezes parecem banais); e as representações deste Estado, ou seja, as formas

que ele assume e através das quais se apresenta. Neste diálogo teórico-metodológico, a

antropologia auxilia na compreensão de como o Estado e seus limites são construídos.

Etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole categorizam

como “margens do Estado” (2004), “os lugares a partir dos quais tentamos entender o que

conta no estudo do Estado na antropologia” (2004, p.3), ou seja, práticas, lugares e

linguagens existentes em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento

regulamentado do estado-nação, entendido o estado como a presença que formata o

sentido e as formas do poder em qualquer sociedade. No entanto, o desafio trazido pela

reflexão de Das e Poole, e que tento incorporar a esta pesquisa, é refletir sobre que

relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas

quais o Estado parece não estar presente – mas está, ainda que de modo não regular nem

regulamentado. O objetivo, assim, é refletir sobre como as margens do Estado também

3

constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens. (Das e

Poole, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes

entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor sua ordem e como lugares

onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam continuamente suas práticas e

experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas

margens do Estado, a observação etnográfica dessas práticas e vivências mostra que

exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.

É possível analisar a chegada das pessoas sem documento ao ônibus como o

momento de um encontro formal, com agentes do Estado, de indivíduos que sempre

viveram nas margens deste Estado. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar

nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens

em seu nome. Só consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído

em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas exigem

documentação para matricular crianças. Durante a pesquisa de campo, pude observar uma

dupla operação: a reconstituição, pelos usuários do ônibus da Praça Onze, de suas

existências nas margens do Estado, e o encontro destes usuários com agentes do Estado

e, mais que isso, com a ideia que esses usuários construíram de Estado, aqui representado

pela Justiça Itinerante.

Aos poucos, a observação cotidiana do atendimento no ônibus foi me indicando

que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas imediata. Os

relatos obtidos por mim durante o trabalho de campo permitiram inferir que, no processo

de obtenção do documento, muitos usuários buscavam reconstruir a própria história e

recuperar laços familiares, no processo que Schritzmeyer nomeia como recuperação dos

“fios de suas vidas” (Schritzmeyer, 2015). Elaborei então a hipótese de que, na busca pela

documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de

nascimento” se junta a uma outra, que remete a outra busca, agora por direitos, acesso à

cidadania e recuperação da própria história familiar.

Assim, a questão teórica desta pesquisa é analisar como o processo de busca pelo

registro de nascimento transforma a concepção que o usuário tem de si mesmo como

sujeito de direitos e do documento como chave para acesso a esses direitos. A busca pelo

registro de nascimento e o exercício de direitos aos quais este documento garante acesso

são parte de um processo maior de construção da própria identidade, muitas vezes

4

associada à reconstituição da história familiar. Nesse percurso teórico, analiso como o

processo de busca pelo registro de nascimento também expressa a ideia de um Estado que

deveria ser garantidor de direitos, mas nem sempre o é, e do documento como chave para

acesso a esses direitos. A busca pelo registro de nascimento e o exercício de direitos aos

quais este documento garante acesso são parte de um processo maior de construção da

própria identidade, muitas vezes associada à reconstituição da história familiar.

Documentação, controle e cidadania

O Estado-sistema, tal como definido por Abrams (2006), tem entre suas práticas

fundamentais a identificação de pessoas, e registrar os indivíduos foi uma atividade

constitutiva da formação dos Estados-nacionais (2011). A prática hoje corriqueira de

registrar e contar pessoas remonta à Antiguidade e sofreu inúmeras transformações

através dos tempos. Nas sociedades antigas, relata DaMatta (2002), os censos

populacionais e dos animais domésticos serviam como instrumento de cobrança de

impostos, de controle da produção, dos movimentos da população e da identificação de

pessoas potencialmente perigosas. Era preciso saber quantos homens estariam em

condição de lutar e quem poderia pagar impostos. Na Grécia antiga, narra Makrakis

(2000), era preciso fazer registros pessoais em três épocas da vida dos cidadãos: na

infância, quando o pai atestava que seu filho nascera vivo e requeria a inscrição da criança

num livro de cidadãos livres; na maioridade, quando o cidadão ateniense novamente era

registrado no momento que completava o seu nome; e aos 21 anos, quando ele então

atingia a plenitude de direitos privados e públicos. Tais registros eram mantidos em

sigilo. Brasileiro (2008) relata que pelo menos dois séculos antes de Cristo havia um

sistema de registro civil na China, e os antigos incas tinham um sistema de anotações de

nascimentos e óbitos.

A Igreja Católica também tinha o hábito de manter registros eclesiásticos sobre

batizados de seus fiéis, passando posteriormente a fazer o mesmo quanto a casamentos e

óbitos. (Makrakis, 2000) No século XVI, o Concílio de Trento tornou obrigatória a prática

já corrente na Igreja Católica de fazer e conservar registros paroquiais com dados sobre

batismos, nascimentos e casamentos; os matrimônios que não eram celebrados

publicamente – in facie ecclesiae – tornavam-se proibidos. O registro eclesiástico acabou

sendo estendido também aos óbitos. (ALMEIDA, 1966)

5

Álvaro Júdice, oficial do registro civil de Portugal, historia como, em paralelo aos

registros eclesiásticos, o registro civil laico vai sendo introduzido lentamente,

extinguindo-se o caráter eminentemente religioso e consolidando-se a figura do escrivão,

responsável pelos registros e assentos. Segundo este autor, desde 1211 se tinha

conhecimento, nas cortes portugueses, de casamentos civis; o registro da vida em

instituições da vida civil também ocorria em outros países da Europa. Na Europa pós-

reforma protestante, o Édito de Nantes, de 1598, concedeu permissão para que ministros

protestantes lavrassem os registros de batismos, casamentos e enterros de seus fiéis. Em

1667, a “ordennance de Saint-Germain-em-Laye” criava a obrigação dos párocos

enviarem cópias dos assentos dos livros aos escrivães. Dessa maneira, os interessados

poderiam requerer certidões dos atos tanto na Igreja quanto junto aos escrivães. Com a

declaração de 1736, a legislação cria o “duplo registro”, fazendo constar um dos

exemplares do assento com o pároco e outro com o escrivão, sendo que a ambos era dada

a categoria de original. (Júdice, 1927) Um édito de 1787 obrigou os clérigos católicos a

fazer o registro dos fatos relativos ao estado civil dos protestantes e judeus, nascendo

assim a instituição do registro civil para todos, católicos e não-católicos.

A Revolução Francesa é listada por variados autores (DaMatta, 2002; Makrakis,

2000; Júdice, 1927) como marco no aprofundamento da necessidade de inventariar as

populações e seus movimentos, e o registro civil é o grande instrumento jurídico deste

momento. É a Constituição Francesa de 1791 que reconhece o casamento como um

contrato civil, não eclesiástico, e é a partir daí que o registro civil se torna definitivamente

uma obrigação do poder civil. A lei revolucionária de 20 de setembro de 1792 atribuía

aos municípios as funções de registro do estado civil, e o Código de Napoleão

estabeleceu, em 1804, a necessidade de definir formas rígidas e força de prova no que se

referia aos registros de nascimentos, casamentos e óbitos. DaMatta (2002) situa, assim, a

Revolução Francesa como grande marco de uma onda de modernização e de aumento do

controle do Estado sobre o cidadão. O registro passa a ser entendido também pelo Estado

como ferramenta para o monitoramento contínuo do cidadão, e DaMatta (2002) explicita

o papel dos documentos, em qualquer lugar do mundo, como forma de controle do

Estado-nacional sobre os cidadãos diante da “necessidade de inventariar os recursos

humanos disponíveis na sociedade, pela contagem e classificação de seus habitantes”.

(DaMatta, 2002, p.51) Na França revolucionária, a documentação identifica, no conjunto

da população, aliados e inimigos, permite o monitoramento das massas em deslocamento

6

pela Europa e marca grupos específicos, como os ex-condenados. (DaMatta, 2002)

Torpey (2001) analisa como, após a Primeira Guerra Mundial, o controle de passaportes

se torna instrumento de vigilância de visitantes indesejados, estrangeiros ou não.

Na análise do sistema de documentação, a leitura de Foucault (2015) auxilia a

compreender tanto o sentido da vigilância do poder público, na qual o documento é peça-

chave, como o poder disseminado nas relações cotidianas. Foucault assinala que, a partir

do século XVIII, a questão da saúde e da doença dos pobres se desloca do mundo da

caridade para a forma de uma “polícia médica”, com obrigações e serviços, numa

mudança que se associa à ideia de preservação da força de trabalho e aos efeitos

econômico-políticos da acumulação:

“O grande crescimento demográfico do Ocidente europeu durante o século

XVIII, a necessidade de coordená-lo e de integrá-lo ao desenvolvimento do

aparelho de produção, a urgência de controlá-lo por mecanismos de poder

mais adequados e mais rigorosos fazem aparecer a ‘população’ _ com suas

variáveis de números, de repartição espacial ou cronológica, de longevidade e

de saúde_ não somente como problema teórico, mas como objeto de

vigilância, análise, intervenções, operações transformadoras etc.”

(FOUCAULT, 2015, p.303)

A partir do diálogo com Foucault, é possível entender o registro de nascimento

como um mecanismo de controle, que possibilita a realização de estatísticas, o

planejamento de ações de políticas públicas e a maior vigilância das populações. Ao

mesmo tempo, é um dispositivo de estruturação da família moderna, uma estratégia de

micropoder que interfere diretamente na vida da família. Documentos, censos,

estatísticas, registros, são práticas do estado-sistema que torna as pessoas legíveis e

localizáveis dentro de um determinado grupo populacional. Sobre essas pessoas legíveis

o estado-sistema tem controle, mas garante a elas acesso a políticas públicas – o que

permite o entendimento do documento como chave para acesso a direitos, ideia

fundamental para esta pesquisa.

Sem refutar a dimensão de controle levantada por Foucault, Peirano (2006),

Santos (1979) e DaMatta (2002) desenvolvem a noção da documentação como

garantidora de direitos. Santos (1979) analisa como, no Brasil, a cidadania foi

historicamente regulada pelo Estado e como outro documento, a carteira de trabalho, se

tornou a partir de 1930 passaporte para o mundo dos direitos.

7

DaMatta (2002) afirma que o sistema de documentação brasileiro é todo

encadeado e para se obter um documento é sempre exigido um anterior. Este autor fala

em documentos centrais e periféricos e cita como documento fundador o registro de

nascimento, que origina a certidão de nascimento e insere a criança na família e na

sociedade. A criança é registrada pelo pai no cartório, que emite gratuitamente a primeira

via do documento. O registro de nascimento insere a criança na família e na sociedade. A

criança também pode ser registrada pela mãe, sem o nome do pai, graças a uma mudança

recente na legislação, dando à mãe um poder antes exclusivo do pai.

Carvalho (2001 e 2008) cunha a ideia de estadania, entendida como uma relação

clientelista do cidadão com o Estado, ou uma cidadania construída de cima para baixo,

com fortíssima presença do Estado e sem a consequente garantia de direitos de todos.

“Não é um poder público garantidor dos direitos de todos, mas uma

presa de grupos econômicos e cidadãos que com ele tecem uma

complexa rede clientelista de distribuição particularista de bens

públicos. A isso chamo de estadania” (CARVALHO, 2001, p.2).

Em “Cidadania Insurgente”, estudo etnográfico e político ambientado em bairros

populares de São Paulo, Holston recupera o conceito de “cidadania regulada” de Santos

e traz outro, que muito ajuda a analisar a condição dos sem-documento. Para Holston, a

partir de dois pilares – a incorporação da cidadania pelo Estado e distribuição de direitos

para os que são considerados cidadãos – o Brasil construiu historicamente um tipo

peculiar de cidadania, que o autor define como “cidadania diferenciada”: “uma cidadania

que desde o início foi universalmente includente na afiliação e maciçamente desigual na

distribuição de seus direitos” (HOLSTON, 2013, p.258). Em outras palavras, a cidadania

brasileira, tecnicamente, é universal e oferece direitos a toda a população, mas é de fato

desigual na distribuição desses direitos. O trabalho de Holston prossegue com a discussão

sobre cidadanias insurgentes, que resultam, justamente, dessa distribuição desigual de

direitos e mobilizam os cidadãos a fim de buscar os direitos negados.

O diálogo desta investigação com a obra de Holston ocorre a partir do conceito de

cidadania diferenciada, uma ideia que salta aos olhos na pesquisa sobre os sem-

documento. Tecnicamente, nada nunca lhes foi negado, já que o registro de nascimento é

um direito garantido em lei e gratuito a qualquer cidadão. Na prática, observo como, para

uma parcela da sociedade brasileira, o processo de cidadania diferenciada se reflete na

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ausência de vários direitos – e como, no processo de busca pela regularização daquele

direito, ressurge o conceito de cidadania universal, do documento como direito de todos,

das implicações de sua ausência e dos motivos para obtê-lo.

Citada por muitos autores, a ideia de Santos se atualiza: documentos ainda hoje

são a chave para o acesso a políticas públicas e projetos sociais no Brasil. Peirano (2006)

também discorre sobre a ausência de documentos e afirma que o contraponto à exigência

de documentação é a punição de quem não a possui. DaMatta (2002) analisa o receio

difuso dos brasileiros de serem interpelados sem que estejam de posse de seus

documentos – rotina com a qual os invisíveis, tema deste projeto, convivem

cotidianamente –, e Peirano (2006), o temor do brasileiro de perder documentos,

lembrando casos em que ladrões devolvem os documentos de pessoas assaltadas, tal a

importância dos papéis como chave de acesso para obtenção de direitos:

“O documento possui uma força (ilocucionária) que transforma o

indivíduo em cidadão de um determinado Estado nacional e o qualifica

para determinadas atividades. O vínculo entre o indivíduo e o

documento que o identifica, portanto, não é apenas de representação,

mas também de contiguidade e/ou extensão. Quando o indivíduo perde

sua identidade, essa experiência é verdadeira em todos os sentidos.”

(PEIRANO, 2006, p.34)

Registro e sub-registro no Brasil

No Brasil Colônia, o registro de nascimento era lavrado nas paróquias, pouco

depois do batismo da criança e, mesmo no Brasil Imperial, só valiam registros religiosos.

Makrakis (2000), lembra como historicamente, no Brasil, devido à forte ligação entre

Igreja e Estado, os registros religiosos nos livros das paróquias tinham valor de prova e

perduraram longamente como forma de identificação. O registro civil de nascimento só

se tornou ato do Estado na República, com a separação entre Igreja e Estado. Com a lei

1.829, de 1870, o governo imperial determinou a execução do primeiro recenseamento

do Império e a organização dos registros de nascimento, casamentos e óbitos para a

população em geral. Foi criada a Diretoria Geral de Estatística, responsável pelos

trabalhos do censo e pela organização dos quadros anuais dos nascimentos, casamento e

óbitos. (Makrakis, 2000).

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Segundo Makrakis, paralelamente à instituição do registro civil laico o Império

Brasileiro concede às instituições cartorárias no Brasil, instituições privadas, a função de

efetuar os registros. Desde a época do império, os cartórios funcionavam em regime de

concessão governamental, com cargos vitalícios para seus dirigentes (os tabeliães) e o

repasse hereditário da função a seus sucessores.

“Dessa forma, o regime de concessão governamental para exploração

da atividade cartorária, praticado desde a época imperial, criou cargos

vitalícios para seus dirigentes e estabeleceu uma espécie de direito da

hereditariedade para as vagas de seus sucessores, além de ter propiciado

verdadeiros monopólios de regiões e cidades com apenas um cartório

de registro civil, levando-se em consideração que as concessões eram

esporádicas e segmentadas. Criou-se, assim, no Brasil, um sistema

atípico e peculiar que perdura por mais de um século. (Makrakis, 2000,

pp.32-33)

Só com a Constituição de 1988 foi vedado o direito de nomeação dos dirigentes

de cartório por livre decisão do governante, prevendo-se a realização de concursos

públicos para preenchimento das vagas existentes. Em 1994, a lei 8.935 regulamentou as

normas para os concursos e instituiu a aposentadoria compulsória aos 70 anos para

tabeliães que ainda se mantinham nos cargos. Faço aqui este breve histórico da instituição

do registro civil e do funcionamento dos cartórios por entender que tais informações são

relevantes para a compreensão do que encontrei durante a pesquisa de campo. Muitos dos

problemas que pude verificar, no campo, para a obtenção de registro civil pelos usuários

são diretamente relacionados ao funcionamento do sistema cartorário ou amplificados por

esse sistema, e tratarei melhor deles no capítulo intitulado “A síndrome do balcão”.

O Sistema de Registro Civil é atualmente regulamentado no Brasil pela Lei 6.015,

de 31 de dezembro de 1973 e, de acordo com o artigo 50 dessa mesma lei, o registro de

nascimento deverá ser realizado nos cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais

(RCPN), entidades privadas que exercem essa função por delegação do poder público,

dentro do prazo máximo de 15 dias, a partir do nascimento da criança. O registro deve

ser feito pelos pais, mediante apresentação de seus documentos e da DNV (Declaração

de Nascido Vivo), documento emitido pelos hospitais. O prazo pode ser prorrogado por

até três meses, para os casos nos quais os lugares de ocorrência do evento distam mais de

30 km da sede do cartório. Depois desse registro nos livros, o cartório de RCPN expede

a certidão de nascimento da criança, que se torna, então, o primeiro documento do cidadão

brasileiro. A lei 9.534, de dezembro de 1997, estabelece que a primeira via deste

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documento é gratuita para o cidadão. Por este serviço, os cartórios recebem um

pagamento cujos recursos são originários das Corregedorias de Justiça, órgãos ligados

aos Tribunais de Justiça dos Estados. Os cartórios de RCPN também realizam todos os

atos de registro da vida civil, tais como o registro de óbitos, casamentos e divórcios.

(IBGE, 2016) Tradicionalmente, a legislação brasileira determinava que a criança fosse

registrada pelo pai no cartório. A mãe só poderia fazer o registro por ocasião de ausência

e morte do pai, ou omissão do mesmo, caso em que a criança ficaria sem o nome paterno

no registro. Desde 2015, a Lei 13.112 modificou esta condição e passou a permitir que a

criança também seja registrada pela mãe, com a indicação do nome paterno.

Pelas leis do Estado brasileiro, o registro civil é o primeiro ato legal que certifica

a existência de alguém, e tal ato gera o primeiro documento, a certidão de nascimento.

Relembrando, DaMatta (2002) cita a certidão de nascimento como documento fundador,

que abre caminho para a obtenção dos demais. A apresentação da certidão de nascimento

é obrigatória para que o cidadão obtenha seu próximo documento, que costuma ser a

carteira de identidade – documento que, além de trazer as informações do registro civil,

exige a produção dos dados da biometria de cada um, com a coleta das impressões

digitais. A partir daí, sempre com a exigência de contra-apresentação de um documento

anterior, normalmente a certidão de nascimento ou a carteira de identidade, outros

documentos virão: CPF, carteira de motorista, certificado de reservista (que os cidadãos

do sexo masculino recebem quando prestam o serviço militar obrigatório), título de

eleitor, passaporte e certidão de óbito. Quando o indivíduo morre, em sua certidão de

óbito (também emitida pelos RCPNs), constarão dados de outros documentos seus; quem

não tem documentos não tem o nome na certidão de óbitos e é enterrado como indigente,

em sepultura sem identificação.

Apesar da lei da gratuidade, dados oficiais do IBGE situavam em 20,3%, 2002, o

percentual de sub-registro1, nome técnico para o fenômeno de crianças sem registro de

nascimento. São considerados tardios os registros feitos até três anos depois do

nascimento da criança. Foi pelos idos de 2002, como jornalista da “Folha de S.Paulo”,

que travei contato pela primeira vez com o tema do sub-registro. O nascimento da minha

1 O subregistro é definido pelo IBGE como o conjunto de nascimentos não registrados no ano de ocorrência

ou naté o fim do primeiro trimestre do ano seguinte. A estimativa é calculada pela diferença entre os

nascimentos estimados e os informados pelos cartórios. (IBGE, 2014)

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filha, em 2000, me fez olhar para a certidão de nascimento como eu nunca a tinha

entendido antes: era aquele papel que me permitir viajar com um bebê, de forma que todos

acreditassem que era minha filha. Em dezembro de 2002, fui escalada pela “Folha” para

cobrir o lançamento do Registro Civil, pesquisa anual realizada pelo IBGE, compilando

dados de nascimentos, casamentos e óbitos. Propus uma reportagem especial de fim de

ano sobre o tema do sub-registro, publicada em 1º de janeiro de 2003 e intitulada “País

forma gerações de sem documentos” (DA ESCÓSSIA, 2003). A partir daí, comecei a

acompanhar, como repórter, o sub-registro como uma questão social brasileira, bem como

políticas públicas que levaram à redução do sub-registro infantil e a falta de dados sobre

os adultos sem documento.

Uma das medidas de impacto na identificação do sub-registro foi a criação pelo

governo federal, em 2001, do Cadastro Único, um banco de dados do qual deveriam

constar famílias em situação de pobreza e que deveriam ser alcançadas pelos programas.

Para entrar no Cadastro, porém, era preciso ter documento – e a orientação da Seas

(Secretaria de Estado de Assistência Social), órgão do governo federal encarregado do

cadastro era que as prefeituras registrassem as famílias sem documento em arquivos à

parte, dando orientação sobre como obter a documentação. (DA ESCÓSSIA, 2003) A

partir daí, foi possível descobrir famílias que, por falta de documentação, não podiam ter

acesso a políticas sociais de transferência de renda, como o Bolsa Escola, implementado

em 2001, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Em 2003, com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), iniciou-se, sob a

coordenação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, um

movimento de redução do sub-registro, com a criação de comitês no âmbito da União,

dos Estados e dos municípios para implementar ações efetivas de combate ao problema.

Em entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do

Brasil (CPDOC)2 em 27 de março de 2015, o deputado Nilmário Miranda, que assumiu

em 2003 Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, reconstituiu o início do combate

ao sub-registro. Segundo Miranda, o presidente Lula pediu a cada ministro que escolhesse

2 Entrevista realizada no âmbito do projeto de pesquisa “Arqueologia da reconciliação: formulação,

aplicação e recepção de políticas públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura

militar”, coordenado por Angela Moreira Domingues da Silva e financiado pela Faperj em parceria com a

Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro.

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três ações baratas, mas que trouxessem resultados concretos. Na área de Direitos

Humanos, uma das três prioridades, ao lado do combate ao trabalho escravo e à

exploração sexual infantil, foi a redução do sub-registro.

“O Lula falou: “O que é isso?” Eu falei: “Ué! Porque existem milhões

de pessoas que não têm a certidão de nascimento”. O Lula falou: “Você

está brincando! Não existe quem não tem certidão. Quem não tem

certidão não existe. Eu não conheço ninguém que não tenha certidão”.

Eu falei: “Esse que é o problema. E são milhões”. Eram milhões,

milhões de pessoas, muito mais do que a gente pensava.” (Arquivo do

CPDOC).

A definição de Lula, relatada por Miranda, resume frases e sentimentos que se

repetirão ao longo desta pesquisa, refletindo a ideia de que quem não tem documento não

existe e reforçando a ideia do documento como definidor da identidade. O sub-registro é,

assim, referenciado por Miranda como algo ligado à negação de direitos e à exclusão

absoluta do que é associado à cidadania. Neste trecho da entrevista, Miranda fala da

carteira de trabalho como símbolo da cidadania:

“(O sub-registro) É a negação da pessoa, da cidadania, porque a pessoa

não existe: a pessoa nunca vai transmitir um bem; e quem não tem

certidão de nascimento não vai ter a certidão de óbito, vai ser enterrada

sem registro; não vai ter a carteira de trabalho, que é o símbolo da

cidadania.” (Arquivos do CPDOC)

O governo petista decidiu unificar os programas sociais de transferência de renda e,

em outubro de 2003, foi criado o Programa Bolsa Família, por medida provisória

convertida em lei em janeiro de 2004. (Thomé, 2013) Para entrar no programa, era preciso

que todos os membros da família tivessem registro de nascimento e CPF – o que permite

refletir sobre o Bolsa Família também como uma política de acesso à documentação. Na

mesma entrevista, Miranda relata a decisão do governo de fazer das mulheres titulares

dos programas sociais e afirma que mulheres eram a maioria esmagadora dos adultos sem

registro. Em 2007, no segundo governo Lula, a União lançou, por intermédio do Decreto

6.289, o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento

e Ampliação do Acesso à Documentação Básica, um programa nacional, com a

participação da União, dos Estados e dos municípios, além de órgãos do governo e da

Justiça (BRASIL, 2007). Este plano estabeleceu como documentação básica o Cadastro

de Pessoas Físicas – CPF; a Carteira de Identidade ou Registro Geral – RG; e a Carteira

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de Trabalho e Previdência Social – CTPS. O programa nomeava o sub-registro como um

problema social brasileiro e traçava estratégias para combatê-lo.

O Censo de 2010 contabilizou 599 mil crianças com menos de dez anos sem

registro de nascimento, 2% do total dessa faixa etária. (IBGE, 2012) Em 2014 foi

instituído o Sirc (Sistema Nacional de Informações de Registro Civil), com o objetivo de

captar informações de registros de nascimento, casamento e óbitos gerados pelos cartórios

e armazená-los numa base de dados centralizada, que possa subsidiar políticas públicas.

(GARRIDO e LEONARDOS, 2017) Em 2015, o sub-registro de crianças havia caído

para 3,2% (IBGE, 2015), e a experiência brasileira passou a constar, com referências

elogiosas, em relatórios internacionais elaborados pelas Nações Unidas.

Em estudo sobre o tema, Hunter e Sugiyama analisam o resultado do programa

nacional de combate ao sub-registro e apontam a implementação de políticas de

transferência de renda, entre elas o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada

(BPC), como um dos fatores decisivos para a redução do problema, pois, para serem

atendidas pelas políticas sociais, as famílias precisavam estar com todos os seus membros

devidamente documentados. (HUNTER e SUGIYAMA, 2011) O Bolsa Família aparece

nas minhas entrevistas durante a pesquisa de campo como um dos motivos mais citados

pelos usuários para obter o registro de nascimento para si e seus filhos. Mais difícil, quase

impossível, tem sido obter dados estatísticos sobre os adultos sem documentação, pois

eles não constam de nenhum banco de dados específico. Como não existem oficialmente,

não podem ser contados. O IBGE não tem uma estimativa do total de adultos sem

documentação no Brasil.

Como jornalista, voltei ao assunto do sub-registro e da falta de documentação

algumas vezes (DA ESCÓSSIA, 2005, 2014). Em 2014, ao fazer uma série de reportagens

sobre o assunto para o jornal “O Globo”, conheci o ônibus da Justiça Itinerante na Praça

Onze e uma das juízas responsáveis pelo trabalho, que identificarei daqui por diante como

Dra. Esther. Conheci também muitas pessoas que se tornariam fundamentais para esta

pesquisa. A primeira reportagem da série chamava-se “A fila dos invisíveis”, e começo

esta introdução com o parágrafo inicial dessa reportagem, descrevendo a fila de pessoas

sem documento diante do ônibus do sub-registro na Praça Onze.

No doutorado, decidi retomar a temática as pessoas sem registro de nascimento,

agora olhando com outros olhos a questão social que eu até então abordara como

14

jornalista. Se a técnica jornalística me fez encontrar meu objeto, meu desafio

epistemológico foi encontrar uma outra forma de compreendê-lo e analisá-lo, no salto de

transformar a pauta em problema sociológico. Contra a ilusão do saber imediato

(BOURDIEU, CHAMBOREDON, PASSERON, 2002) que a familiaridade com meu

objeto me oferecia, busquei um olhar etnográfico sobre a temática dos sem-documento.

Ao mesmo tempo, ferramentas treinadas nos tempos de repórter, como a escuta e a

capacidade de observação, me ajudaram nesse exercício etnográfico.

Sayad, ao estudar a imigração, salienta a necessidade de, como cientista social,

não atenuar a complexidade dos fenômenos que se tornam objetos de pesquisa, e sim

explicitá-la:

“Isto quer dizer que o discurso do sociólogo não existe para atenuar,

com observações linguísticas ou etnográficas e com comentários

esclarecedores, logo reconfortantes, a opacidade do discurso autêntico,

que mobiliza todos os recursos de uma cultura e de uma língua originais

para expressar experiências que essa língua e essa cultura desconhecem,

ou recusam.” (SAYAD, 1998, p.25)

Voltei, assim, ao ônibus, decidida justamente a explicitar a complexidade da

temática das pessoas sem registro, um objeto que permite refletir sobre muitas coisas,

pois se entrelaça com questões ligadas a políticas públicas e pobreza, mas também raça,

gênero, cidadania e identidade. Com a intermediação da Dra.Esther, procurei na Praça

Onze a equipe do ônibus do sub-registro – era assim que ele era chamado por quem nele

trabalhava e por quem de seus serviços precisava. Assim passo a nomeá-lo, incorporando

a expressão como categoria nativa, resultante da experiência próxima de quem assim o

definia sem esforço. (GEERTZ, 1997)

Aos poucos, decidi fechar o foco de pesquisa e discutir não toda a questão do sub-

registro, mas apenas o registro tardio de adultos. Iniciei no ônibus uma pesquisa de cunho

etnográfico. Algumas perguntas orientavam o campo, principalmente a necessidade de

entender como adultos sem documentação trafegavam por esferas – escola, trabalho,

saúde – nas quais apresentar um documento era requisito mínimo. Outra questão relevante

era saber como essas pessoas se viam como cidadãs e por que haviam decidido buscar

sua documentação. Por fim, também me intrigava o papel da Justiça em todo o processo.

Por que era tão difícil registrar um adulto? Como alguém sem documentos prova que é

quem diz ser? Por que a questão só podia ser resolvida por um juiz? A pesquisa de campo,

15

com a observação do atendimento no ônibus do sub-registro da Praça Onze, me permitiu

responder a essas questões.

Dentro de um ônibus, um pedaço de um país: nota metodológica

O ônibus azul e branco estaciona no pátio do Juizado da Infância e da Juventude,

no Centro do Rio de Janeiro, por volta das 8 horas de sexta-feira. No pátio já estão

espalhadas cadeiras, aos poucos ocupadas pelas pessoas que também vão chegando. O

atendimento do ônibus, iniciado em 2014, é um serviço que resulta da parceria entre dois

projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: a Justiça Itinerante, que visa

facilitar o acesso do cidadão fluminense à prestação de serviços judiciários, e o Sepec

(Serviço de Promoção a Erradicação do Sub-registro de Nascimento e a Busca de

Certidões), criado no bojo da política nacional de redução do sub-registro. A criação da

Justiça Itinerante em todos os Estados foi determinada pela Constituição Federal de 1988

no artigo 125, §7º, em emenda incluída em 2004: “O Tribunal de Justiça instalará a Justiça

Itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional,

nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e

comunitários”. No Rio, a Justiça Itinerante começou a funcionar em 2004 (GAULIA,

2018), levando serviços judiciais a áreas pobres ou distantes, por intermédio de ônibus

que percorriam as comunidades. Outra forma comum era através de mutirões firmados

com empresas de comunicação ou organizações não governamentais. Segundo Gaulia

(2014), em 2014 a Justiça enviava seus ônibus para 19 localidades do Rio de Janeiro. Em

2018, segundo informações da assessoria de comunicação do TJRJ, atuava em 24

localidades. De 2004 a janeiro de 2018, realizou um total de 1.029.921 atendimentos.

Diferentemente de outras unidades da Justiça Itinerante, o ônibus da Praça Onze,

cujo trabalho começou em 2014, é especializado em registros tardios e atende apenas

casos de pessoas que buscam a certidão de nascimento. Funciona sempre às sextas-feiras.

A cada sexta, Lúcia, comissária de Justiça, toma assento na cadeira da ponta esquerda e,

com folhas de papel ofício na mão, vai escrevendo manualmente, por ordem de chegada,

os nomes das pessoas que buscam atendimento. Pergunta o que as leva até ali, e a resposta

tem poucas variações: todos buscam para si ou para parentes próximos o registro de

nascimento. Lúcia é responsável pela triagem, que na verdade é uma listagem das pessoas

que desejam atendimento naquele dia.

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Durante a pesquisa de campo, escolhi a triagem como meu ponto inicial para

começar a perceber a trajetória daquelas pessoas, pois ali elas dizem quem são e do que

precisam. Como o ônibus da Praça Onze realiza atendimento apenas para emissão do

registro de nascimento, quem já tem o registro mas quer outro documento, como carteira

de trabalho ou CPF, é encaminhado a outro endereço. Toda sexta-feira o ônibus realiza

pelo menos 50 atendimentos. O atendimento exclusivo e especializado fez com que eu

escolhesse o ônibus da Praça Onze como campo principal para esta pesquisa.

Na triagem começa mais uma sexta-feira das 40 que acompanhei ao longo do

trabalho de campo para esta pesquisa, período durante o qual tive acesso amplo e irrestrito

ao funcionamento do ônibus. Fiz a opção metodológica pela etnografia, com observação

participante, por entender que tal metodologia permite reconstituir as experiências

daqueles usuários em sua vida indocumentada, bem como compreender as dinâmicas de

atendimento do ônibus. Becker (1997) destaca que a observação participante tem o mérito

de abordar as pessoas “enredadas em relações sociais que são importantes para elas”

(Becker, 1997, p.75), e são justamente essas relações que ao cientista social interessa

conhecer.

No período em que realizei trabalho de campo, entrevistei beneficiários, juízes,

promotores, defensores, funcionários. Observei e perguntei. Mas também entreguei

documentos, carreguei processos, tirei cópias, dei informações, preenchi formulários,

ofereci biscoito e água a crianças, dei recados... Houve o dia em que ajudei uma mulher

semianalfabeta, mãe de quatro filhos, a assinar quatro vezes o próprio nome para solicitar

o registro de nascimento dela e das crianças, copiando cada letra.

Fui apresentada à equipe do ônibus por uma juíza que conheci quando escrevia

uma reportagem sobre adultos sem documento (DA ESCÓSSIA, 2014). Imagino que,

graças a seu aval, meu trabalho de campo tenha sido muito mais fácil, pois sua indicação

me facilitou contatos com todos os outros funcionários. Durante a pesquisa de campo,

Clara, coordenadora geral do atendimento no ônibus, se tornou uma de minhas principais

interlocutoras. “Diga o que você precisa e nós vamos te mostrar”, ela dizia, e eu me sentia

como Foote-Whyte ao encontrar Doc (WHYTE, 2005). Graças a essa funcionária,

trajetórias, documentos, audiências e processos se abriram para mim, e sem ela esta

pesquisa teria sido muito mais difícil. Desconfio de que muitas vezes as pessoas que

buscavam atendimento falavam comigo por confundirem minha pesquisa com o trabalho

17

dos funcionários da Justiça Itinerante, como se falar comigo pudesse ajudá-las a obter o

que buscavam. Ao final, entendiam que era “um trabalho para a universidade” ou “um

livro com a história do ônibus”.

Toda a pesquisa foi metodologicamente construída a partir da observação

participante. Acompanhei na totalidade o processo de atendimento no ônibus, que inclui:

triagem, entrevistas dos usuários realizadas pelos funcionários do ônibus, audiências com

os juízes e recebimento, no cartório do Juizado da Infância e da Juventude, da certidão de

nascimento. Havia muitas conversas informais e observação de minha parte.

Ao observar a triagem, eu selecionava pessoas com as quais gostaria de conversar,

me apresentava e iniciava uma entrevista. A cada uma delas pedia que contassem o que

buscavam, como haviam chegado até ali e por que buscavam o documento, além de

informações sobre idade, renda, escolaridade e ausência de documentação na família.

Umas falavam mais, outras menos, mas ninguém se recusou a falar. Gravei algumas

entrevistas, mas percebi que as pessoas ficavam um tanto intimidadas, então optei por

anotar tudo em cadernos. Outro elemento que dificultava as entrevistas gravadas era o

alto grau de ruído ambiente, que prejudicava muito a qualidade do áudio.

Aos poucos decidi selecionar algumas histórias de vida que me serviriam como

fios condutores na pesquisa. Foi fundamental aqui a leitura de autores como Langness e

Schritzmeyer na solidificação do conceito de história de vida. Apesar de não ser método

exclusivo da antropologia, diz Langness (1973), a história de vida oferece, entre suas

vantagens, a possibilidade de compreender, em dados biográficos de um indivíduo, as

relações entre os membros de um grupo social, e sua força como método cresce a partir

dos anos 1920, junto com o maior interesse pelo estudo de valores, por mudança cultural

e aculturação pelo crescimento do movimento científico do comportamento (Langness,

1973, p.27). Em Langness, a expressão história de vida é usada

“Para exprimir os dados ao longo da vida de uma pessoa, tanto os

relatados pela própria pessoa como os relatados por outras ou ainda por

ambas, e mesmo se tais dados foram escritos ou foram escritos ou foram

colhidos em entrevistas ou em ambos os casos” (Langness, 1973, p.17)

A literatura disponível sobre histórias de vida permite problematizar o conceito, e

é válido lembrar que o antropólogo Franz Boas (1943) questionava o valor desse método.

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Para Boas, descrições específicas de alguns poucos informantes poderiam representar

apenas parcialmente o grupo em análise, e a história de vida, embora seja útil ao permitir

analisar como comportamentos individuais se relacionam a mudanças políticas, religiosas

ou econômicas, pode levar ao erro de fazer generalizações baseadas em declarações de

um interlocutor. Boas, como Bourdieu (2011) faria mais tarde, alerta para as peças que a

memória prega e aponta riscos em aceitar autobiografias como dados factuais confiáveis.

Em Bourdieu (2011), a ilusão biográfica nos faz acreditar que a vida, tal como narrada

por quem a vive, é um conjunto coerente e orientado, com uma ordem lógica e

cronológica que aceita o postulado de uma existência contínua, o que o leva a desconfiar

do relato da vida como um modelo da apresentação oficial que cada um faz de si mesmo.

O autor atenta para a necessidade de buscar entender os acontecimentos biográficos como

deslocamentos no espaço social, necessariamente compreendendo a trajetória dentro de

estados sucessivos do campo em que ela se desenrolou e considerando as relações

objetivas que atuaram sobre aquele agente e os demais agentes com os quais ele interagiu.

No entanto, mesmo seguidores fiéis de Boas defendem o valor das histórias de

vida como metodologia por entender que o valor delas era justamente, a partir de

experiências de integrantes de uma determinada cultura, mostrar o efeito desta cultura em

suas vidas. Este é o caminho seguido por Mintz (1984), que, em estudo sobre

trabalhadores de cana porto-riquenhos, utiliza uma história de vida para compreender uma

situação coletiva, aliando metodologicamente etnografia e história de vida em sua análise.

Mintz relata como realizou mais um ano de intenso trabalho de campo na comunidade

antes de se voltar para a reconstrução daquela história de vida em especial e como

estabelece uma relação particular com Taso – o que, para alguns antropólogos,

impossibilitaria uma pesquisa convincente, enquanto, para outros, muitas histórias de

vida são significativas nesse aspecto. Segundo Mintz, as razões da escolha de um ou outro

informante são recorrentes entre os antropólogos: 1) um informante particularmente

competente em descrever sua cultura e a si mesmo; 2) um informante que já teve contatos

externos e já trabalhou previamente com outros antropólogos; 3) uma espécie de simpatia

mútua entre o antropólogo e seu informante. O autor relata como se aproximou de seu

informante e como este se tornou sujeito do livro.

“A resposta é mais simples do que parece: eu não ‘escolhi’ Taso, ele

me ‘escolheu’. Ele poderia ter me recusado no primeiro dia em que

nos encontramos; mas, em vez disso, colaborou comigo. (...) Ele me

19

escolheu. Trabalhando com ele, eu descobri mais sobre mim mesmo.”

(Mintz, 1984, p.57)

Em diálogo com esta metodologia, na pesquisa sobre o ônibus do sub-registro,

minha opção foi mesclar a observação participante com o recurso a algumas histórias de

vida, como tentativa de compreender histórias coletivas a partir das vivências individuais.

Ao longo de mais de um ano de trabalho de campo, selecionei algumas histórias de vida

para serem melhor trabalhadas na pesquisa. Os critérios usados para selecionar as

histórias foram: disponibilidade do interlocutor para falar, clareza das informações e

diálogo da história de vida com categorias trabalhadas. Em agosto e setembro de 2017

voltei a procurar alguns dos entrevistados cujas histórias de vida haviam sido selecionadas

– e consegui, em alguns casos, saber o que havia acontecido com aquela pessoa depois da

obtenção do documento. Ao mesmo tempo, o poderoso texto sobre Taso me lembra que

talvez eu não tenha escolhido ou selecionado aquelas pessoas. Eu também me senti

escolhida por elas, e agradeço por terem aceitado falar comigo.

Para facilitar a compreensão do leitor, esclareço que o ônibus, por dentro, é

dividido em pequenos espaços. Permanecem na dianteira o banco do motorista e mais

quatro poltronas originais, duas de cada lado. Dali para trás, o espaço é todo dividido. No

primeiro ambiente há computadores, a impressora e uma mesinha com computador,

ocupada pela escrivã do cartório da Justiça Itinerante. Os computadores são interligados

ao sistema do Tribunal de Justiça, ao banco de dados do Sepec e à base de dados do

Detran. Esse sistema permite que os técnicos busquem informações para saber se a pessoa

que busca o documento tem antecedentes criminais, trabalho que não costuma ser feito

diante do interessado.

O segundo ambiente abriga duas minissalas de audiência, com mesinhas e

cadeiras, e em cada uma ficam um juiz e as pessoas que são atendidas. O terceiro ambiente

é uma sala de audiência um pouco maior, com uma mesa maior e mais bancos. Lá fica o

terceiro juiz, comandando mais uma audiência. Um promotor e um defensor público

revezam-se entre as três salas de audiência para que, em cada caso, haja sempre o

posicionamento da Defensoria Pública, do Ministério Público e do juiz. No final do

ônibus há uma minicopa, com pia, frigobar e um banheiro. Muitas vezes ouvi dos usuários

que não se sentiam bem em ir ao tribunal de justiça ou aos cartórios, preferiam ser

atendidos no ônibus – “uma coisa assim do nosso meio”, como me disse um usuário. O

20

ônibus era assim visto – assim me foi relatado pelos usuários – como um lugar de acesso

e acolhida.

Organização da tese

O primeiro capítulo da tese tem o propósito de, a partir dos relatos e das

experiências dos usuários do ônibus, reconstituir suas trajetórias, mostrando quem são,

como se veem, que estratégias utilizaram para viver sem documentos e por que

resolveram buscar no ônibus o registro de nascimento. O foco aqui é a temática da

identidade: mostrar como essa busca pelo registro de nascimento é um processo no qual

eles relatam as concepções que têm de si mesmos e do Estado. O capítulo detalha como,

na ausência de documentação, o usuário relata ter sobre si mesmo o conceito de uma não

pessoa, uma pessoa que não existe; ao mesmo tempo, surge aqui a ideia que eles

apresentam do Estado, como um ente capaz de, pela documentação, transformá-los de

ninguém em alguém. Por fim, o capítulo problematiza a forma como ausência de

documentação é associada pelos usuários a uma dimensão moral, uma vergonha, algo que

ele fez de errado.

O segundo capítulo retrata a síndrome do balcão, expressão cunhada por uma

assistente social que atua na redução do sub-registro no município de Belford Roxo, na

Baixada Fluminense. “Cada vez que alguém se dirige a um balcão do serviço público para

tirar o registro de nascimento, ouve que não é ali. Então a busca recomeça. É a síndrome

do balcão”, ela me contou. Assim, o capítulo analisa a ideia de síndrome do balcão, o

conceito de burocracia, em diálogo com Weber, e apresenta o ônibus como um

checkpoint, lugar a partir do qual a existência daquele indivíduo sem documentação ganha

legibilidade diante do Estado.

O terceiro capítulo se debruça sobre um momento específico do trabalho

etnográfico: a audiência entre o usuário do ônibus e agentes do Estado, personificado na

figura do juiz que comanda a audiência. Em diálogo com a antropologia do direito, o

capítulo mostra como o usuário tenta provar que é quem de fato diz ser e como o aparato

do estado-sistema é mobilizado nesse processo. Problematiza também o papel da justiça

no acesso a direitos e a interpretação do direito, a partir dos relatos de juízes que trabalham

no ônibus do sub-registro.

21

O quarto e último capítulo analisa a obtenção do registro de nascimento como um

rito de instituição, na acepção de Bourdieu, reconstitui cenas em que os usuários

receberam seu documento e problematiza o significado que o usuário atribui ao momento

e ao documento em si. Muitos usuários, ao receber o registro de nascimento, expressam

sobre a ele a expectativa de uma redenção e de resolução de todos os seus problemas. Ao

longo da pesquisa, voltei a procurar usuários que haviam recebido a certidão de

nascimento; analiso neste capítulo de que forma o documento teve impacto em sua vida

e na concepção que ele tem de si mesmo.

De 2 de setembro de 2016 a 24 de janeiro de 2019, entrevistei cerca de 80 pessoas,

entre usuários do ônibus, funcionários da Justiça Itinerante, juízes, defensores e

promotores. Gravei cerca de 12 entrevistas, fiz mais de 250 fotos e cerca de 30 vídeos

durante a pesquisa etnográfica. Durante a pesquisa, fiz leituras sobre “etnografia

multissituada” (Marcus, 1995), o que me impeliu a sair dos limites do ônibus.

Acompanhei também o trabalho na sede do Sepec, no prédio do Tribunal de Justiça, e

uma audiência realizada por uma juíza para que um rapaz de 21 anos, preso, obtivesse a

certidão de nascimento. A audiência foi realizada por videoconferência. O preso estava

em Bangu 4; no Tribunal estavam a juíza, uma promotora, uma defensora pública, a mãe,

a avó e o padrasto do rapaz preso. E eu.

Todo o material coletado no trabalho de observação está anotado em cadernos de

campo. As entrevistas gravadas foram transcritas. Criei também uma tabela resumindo as

entrevistas. Ao longo do texto, marquei em negrito expressões criadas pelos meus

interlocutores e que se constituíram em categorias nativas, como síndrome do balcão,

tutor social e ônibus do subregistro. As falas dos interlocutores estão destacadas em

recuos. Por decisão metodológica e para proteger meus interlocutores de qualquer tipo de

retaliação, as identidades de todas as pessoas que trabalham no atendimento do ônibus da

Justiça Itinerante da Praça Onze foram preservadas. Quanto às pessoas buscavam

atendimento no ônibus, optei por identificá-las apenas pelo prenome, e justifico a decisão:

achei injusto chamar de forma diferente quem demorou tanto tempo para obter um

documento com o próprio nome.

22

Capítulo 1

“Sou uma pessoa que não existe”: quem sou quando não tenho documentos

1.1. Três gerações sem documentos

O primeiro caso daquela sexta-feira, 21 de outubro de 2016, é uma audiência de

uma família de mulheres negras na qual três gerações estão sem registro de nascimento:

Cristiane, 36 anos, sua filha Krícia, de 19 anos, e sua neta Mayra, de 2 anos, filha da

jovem. A família mora em Belford Roxo e chegara ao ônibus encaminhada pela Funbel

(Fundação de Desenvolvimento Social de Belford Roxo). Cristiane conta que precisa se

registrar para registrar a filha, para que ela possa depois registrar a neta. “Por quê?”,

insisto. “Quero pedir o Bolsa Família para a menina, minha neta. Nunca liguei para

documentos, mas agora é urgente”, resume Cristiane. Caçula de uma prole de 17 filhos,

Cristiane conta que não conheceu o pai e que sua mãe, sem condição de criar os filhos,

distribuiu-os entre parentes. Cristiane foi “dada” para viver com uma tia no interior do

Rio. Nunca foi registrada, mas seus irmãos, sim. Quando voltou a morar com a mãe, já

na adolescência, as duas foram ao cartório, que não aceitou registrar a adolescente. “Aí

eu deixei para lá”, diz ela.

Conta que certa vez, ao ver uma irmã com o registro, perguntou à mãe por que

não tinha o documento.

“Ela não soube me dizer. Fiquei chateada, mas acho que era muito

filho... Ela não teve responsabilidade. Fiquei triste por saber que só eu

não era registrada, me senti diferente dos meus irmãos. Quando ela

morreu, vi que a certidão dela também não tem nome. Quer dizer que

ela também não tinha documento, né? Acho que o meu pai registrou os

filhos mais velhos, mas eu não.” (Cristiane, 36 anos)

Cristiane concluiu o ensino fundamental e começou a trabalhar como doméstica

em casas de família para ajudar sua mãe, que também era doméstica. Com as indicações

da mãe, nunca faltou serviço, conta, mas também nunca apareceu um patrão que a

ajudasse a tirar a documentação. Quando a conheci, Cristiane trabalhava como cuidadora

de idosos e ganhava R$ 1.800 mensais, sem carteira assinada. A falta de registro de

nascimento era empecilho para obtenção de qualquer outro documento, tais como CPF,

título de eleitor ou carteira de identidade. Nunca havia votado. Pagava R$ 450 de aluguel.

Tinha emprego e renda fixa, raros entre os usuários do serviço do ônibus. Viveu com um

23

companheiro, pai de Krícia, que compareceu à primeira audiência no ônibus, meses antes,

e manifestou a vontade de que seu nome constasse nas certidões de nascimento da filha e

da neta.

Krícia não trabalhava fora e dedicava-se a cuidar da filha e da casa. Observo, na

audiência, que seu braço direito está queimado. Depois, enquanto a família aguardava o

documento, pergunto o que aconteceu. “Foi o pai dela”, diz Krícia, apontando para

Mayra, “que me queimou com a prancha de alisar o cabelo”. Ela conta que conheceu o

rapaz num baile há uns dois anos e logo foram morar juntos. A jovem engravidou e teve

um menino, Enzo, que morreu uma hora depois de nascido. Pergunto qual a causa da

morte.

“Não sei muito bem não, coisa de criança. Acho que a gravidez foi ruim

porque o pai dele me batia todo dia. Foram muitas vezes, nem me

lembro quantas. Ele me chutava na barriga, batia na minha mãe

também. Ele era envolvido. Roubava carro, moto, entrou no tráfico. Foi

preso uma vez. A gente se separou, mas voltou, e eu engravidei de novo.

Antes de ela nascer, ele me mandou embora, e voltei pra casa da minha

mãe”. (Krícia, 19 anos)

Krícia segue contando:

“Um dia, ele me viu na rua de cabelo arrumado e foi lá em casa dizer

que não era para eu alisar o cabelo. Ele pegou a prancha e me queimou.

Aí falei pra mim mesma que não queria mais, botei na cabeça que não

queria. Ele me agrediu de novo, dei queixa, mas não deu em nada...”.

(Krícia, 19 anos)

Pergunto sobre a falta de documentos, e Krícia diz que o pior foi não ter podido

estudar, porque a escola, depois das séries iniciais, exigia alguma documentação dela ou

da mãe.

“Eu já tive oportunidade de trabalho e perdi porque não tinha

documento. Se eu tivesse documento, eu queria ser arquiteta, ou ser

médica da Marinha, ou fazer enfermagem.... Mas ainda não desisti de

tudo, ainda tenho meus direitos.” (Krícia, 19 anos)

A história de vida de Cristiane, ao lado da filha Krícia, permite refletir sobre duas

categorias fundamentais nesta pesquisa: direitos e cidadania. Tomemos inicialmente a

24

afirmação de Cristiane, presente de modo frequente, mas com o mesmo tom vago, em

várias entrevistas: “também quero meus direitos”. Analisarei agora como, para cobrar

seus direitos – explicitando o entendimento de que, portanto, se entende como sujeito de

direitos – Cristiane, assim como muitos outros usuários do ônibus, reconstrói em seu

relato a sua trajetória e se apresenta inicialmente como alguém destituído de direitos.

Tema de convenções mundiais, tratados internacionais e compêndios, direitos são

uma categoria amplamente tratada nas ciências sociais e jurídicas, dentro de variados

matizes teóricos e metodológicos. O diálogo desta pesquisa com o tema dos direitos, no

entanto, não se dará a partir da definição legal, jurídica, histórica ou filosófica do

conceito; construo este diálogo a partir de outra clave, que privilegia os direitos como

experiências e vivências, evidenciando, assim, a dimensão simbólica e discursiva dos

direitos, no plural. Autores como Schritzmeyer (2012), Vianna (2013), Souza Lima

(2012), Ferreira (2013) e Fonseca (2003) usaram a perspectiva antropológica na

observação etnográfica de experiências e vivências daqueles que buscam direitos junto a

instâncias do Estado. Não se trata, como bem alerta Vianna (2013), de menosprezar o

arcabouço legal, mas de “tomá-lo em diálogo com usos, contradições e conflitos

movimentados com base na própria ideia de que há algo que sejam ‘os direitos’.” (Vianna,

2013, p. 16). Souza Lima destaca a forma como os direitos unem esferas sociais:

“Os direitos surgem como categoria associada ao que chamarei de

comunicação entre esferas sociais, esferas estas que tradicionalmente

surgem separadas. Assim, emoções, sentimentos e afetos circulam e

entrelaçam-se em instituições como a Polícia, o Legislativo ou

instâncias do Judiciário, em suma com o que também os atores sociais

concretos chamam de Estado, aqui não apenas tomado enquanto

conceito científico, mas também categoria dos pesquisados falados e

articulados via luta pelos direitos.” (SOUZA LIMA, 2012, p.12, grifos

do autor)

Deste modo, o diálogo com a antropologia do direito ajuda a enfatizar a escolha

analítica para esta pesquisa: a compreensão de como e por que a documentação se insere

no campo dos direitos, investigando qual o impacto da ausência da documentação sobre

o exercício desses mesmos direitos. Fundamental para esta abordagem é o enfoque

proposto por Vianna (2013) ao afirmar que seu objetivo é tratar tanto a “dimensão de ação

social dos direitos” – as normativas legais, as tradições e a construção de sujeitos legais

– como a dimensão processual e dinâmica desses direitos. Na introdução de um volume

25

sobre experiências etnográficas no mundo da administração pública, Vianna afirma que,

mais do que definir o conceito jurídico de direitos, a proposta é tomar o conceito em

diálogo com usos, contradições e conflitos presentes no exercício cotidiano desses

direitos. A legislação, os aparatos judiciais e burocráticos, as instituições, todos esses

domínios são propícios à realização de estudos etnográficos interessados em abordar

dissidências, contradições, silêncios, estratégias acionadas de modo pessoal ou coletivo

em face da letra da lei seja o balcão da delegacia ou do ônibus da Justiça Itinerante.

“Atravessando e transitando entre domínios que podem ser

classificados pelos próprios atores como políticos, judiciais,

administrativos ou de políticas públicas, a linguagem dos direitos

reafirma dissensões morais, oferecendo espaço para que sejam tecidas

contranarrativas e para que novos sujeitos se façam presentes em cenas

públicas.” (VIANNA, 2013, p.16)

Freire, em análise sobre pedidos de alteração de nomes de pessoas transexuais

feitos na Defensoria Pública, problematiza o modo como essas pessoas são construídas

enquanto “sujeitos de direitos” e como seus pedidos são avaliados pelos funcionários do

serviço. O objetivo, ao final, é de decidir quem, entre aqueles usuários, é de fato legítimo

para se apresentar como “sujeito de direitos”, a partir de critérios como idoneidade e

sofrimento. Freire conclui que o processo de requalificação civil implica a fabricação de

uma figura que é uma espécie de vítima incontestável, cujo sofrimento comprovado a

torna “merecedora” do “direito” de mudança de nome. (Freire, 2015) Sua análise mostra

como essa figura é fabricada discursivamente pelos usuários, com relatos de vitimização

e necessidade, e ratificada pelos funcionários de acordo com critérios de enquadramento

que criam, por exemplo, a produção discursiva sobre o verdadeiro transexual (merecedor

do benefício) ou falso transexual (que não alcançará a mudança de nome como prêmio

almejado). Assim, Freire mostra como os usuários são simbolicamente construídos como

pessoas que tiveram “sofrimentos que importam” e por isso podem ser “classificados”

como dignos de dar entrada na solicitação de mudança. Ao mesmo tempo, alerta, um

outro grupo de usuários não é considerado como legítimo a fazer o pleito, evidenciando

uma questão: o estabelecimento de uma categoria que é sujeito de direitos, por um critério

ou outro, implica a exclusão de outra categoria que não se encaixa naquele critério.

Do estudo de Freire, interessa-nos a reflexão sobre quem tem mais ou menos

direitos, em estreita relação com a reflexão proposta por Schritzmeyer (2012), quando

26

esta autora alerta que é preciso estranhar “o aparente consenso que ronda os termos

direito, direitos e Justiça” (Schritzmeyer, 2012, p.262). Mesmo no interior de sociedades

com Estado, afirma a autora, convivem vários sistemas de obrigações que resultam em

conjuntos de normas sociais sobrepostas, competitivas ou desarticuladas. O consenso

sobre os direitos não é previamente dado, é disputado e negociado – mesmo quando se

fala de um direito garantido pela legislação nacional e internacional, além dos tratados

internacionais sobre o tema dos quais o Brasil é signatário. Szreter sustenta que a

identificação em si deve mesmo ser entendida como um direito humano, o “direito de ter

a identidade legal e suas relações com outras pessoas publicamente reconhecidas,

seguramente registadas e acessíveis para seu uso pessoal” (SZRETZER, 2007, p.67).

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão

da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, estabelece em seu

artigo 24, parágrafo 2º: Toda criança deverá ser registrada imediatamente após seu

nascimento e deverá receber um nome. Em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, também tratou do direito ao

registro, explicitando o direito ao prenome e aos nomes dos pais no documento, mediante

nomes fictícios3, se necessário. No Brasil, só com o fim da ditadura militar e após a

promulgação da Constituição de 1988 o Brasil aprovou o Pacto sobre Direitos Civis e

Políticos, por meio do Decreto Legislativo número 226, de 12 de dezembro de 1991. Em

1992, aderiu também ao Pacto de San José. A Constituição Federal Brasileira e o Código

Civil também tratam do nome como um direito, e do registro civil como expressão desse

direito.

1.2. Quem sou quando não tenho documentos?

Sem consensos prévios, situo, assim a reflexão sobre a busca pelo registro de

nascimento no debate mais amplo sobre acesso a direitos e Justiça no Brasil (FALCÃO,

1983, GRYNSPAN, 1999), problematizando a forma como estas pessoas sem

documentação se inserem na sociedade documentada e como se apresentam, no ônibus

3 Em seu artigo 18, a Convenção da Costa Rica trata do direito ao nome: “Toda pessoa tem direito a um

prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos

esses direito, mediante nomes fictícios, se for necessário.” (BRASIL, 1992)

27

da Justiça Itinerante, como merecedoras do direito de ter o documento. A história de vida

de Cristiane, relatada no início deste capítulo, serve como fio condutor para uma primeira

discussão sobre como os usuários do ônibus se apresentam. Pacheco (2017), em artigo

sobre a criação do Sepec (Serviço de Promoção e Erradicação do Sub-registro de

Nascimento e a Busca de Certidões), afirma que pessoas sem registro de nascimento “são

pessoas geralmente desfavorecidas economicamente, com baixa escolaridade e que, em

consequência, apresentam dificuldades de se expressar diante de autoridades ou órgãos

públicos”. (PACHECO, 2017, p.214)

Percebi que a maioria das pessoas poderia ser identificada como preta ou parda.

Não fiz a elas essa pergunta sobre como se identificariam quanto a cor ou raça, o que me

impede de ter, pelo critério da autodeclaração, um número exato sobre quantas das mais

de 80 pessoas que entrevistei eram negras. Como atesta Pacheco (2017), pude perceber a

pobreza ou a extrema pobreza como um traço comum da quase totalidade das pessoas que

chegam ao ônibus, e dados mostram que no Brasil a pobreza também está associada à

questão racial. Dados da Pnad Contínua de 2017 indicam que a renda média do resultante

de todos os trabalhos, entre os brasileiros brancos, era R$ 2814; entre os que se

identificavam como pardos, R$ 1606, e, entre os que identificavam como pretos, R$ 1570.

Os números do IBGE mostram ainda que, apesar de pretos e pardos representarem 54%

da população, entre os mais pobres eles eram 75%. (IBGE, 2018) Na fila do ônibus era

significativa também a presença de mulheres, e essa presença é explícita nessa pesquisa:

são elas que aparecem majoritariamente buscando documentos para si ou para pessoas

próximas. A observação do campo do sub-registro, assim, apresenta uma interface com

categorias como gênero e raça.

O primeiro ponto para o qual chamo a atenção é que a história de vida de Cristiane

e Krícia pode ser entendida como uma contínua negação de direitos vivida por pessoas

quase sempre pobres ou muito pobres, quase sempre pretas ou pardas. A falta de registro

de nascimento alonga o caminho para obter outros direitos – outros documentos, escola,

atendimento médico. Ao dizer que busca seus direitos, Cristiane relata sua experiência de

vida repetidamente desconstituída não só de direitos, mas do direito a ter direitos. Sem

registro de nascimento, outros direitos lhe foram barrados, como emprego formal e voto.

E é assim que Cristiane fala de si mesma, como alguém que, por não ter o registro de

nascimento, acabou sendo impedido de usufruir de outros direitos. Esse relato se repete

28

em numerosos interlocutores, como mostram os extratos abaixo, todos retirados de

entrevistas feitas por mim com pessoas atendidas no ônibus:

“A pessoa quando não se registra fica como um ninguém, a pessoa não

existe.” (Carlos, 22 anos)

“Eu me sinto como um nada, a gente não existe.” (Fátima, 57 anos)

“Eu me sinto um cachorro. Sou uma pessoa que não existe.” (Maria da

Conceição, 52 anos)

“Sou um zero à esquerda.” (Reginaldo, 63 anos)

Um relato específico, o de Elisabeth, uma jovem de 22 anos, grávida do quarto

filho, explicitou o racismo, implícito e explícito, presente na sociedade brasileira:

“Minha mãe não quis me registrar porque disse que eu era muito preta,

nem parecia filha dela. Disse que eu nem parecia da família”.

(Elisabeth, 22 anos)

Entrevistei Elisabeth em 31 de março de 2017, enquanto ela aguardava

atendimento no ônibus. Nem ela nem as crianças – Miguel Lucas, de 4 anos, Mirela

Vitória, de 2, e Mikaelly, de um – tinham certidão de nascimento. O pai das crianças,

marido de Elisabeth, estava preso no Complexo de Água Santa, suspeito de ligação com

o tráfico de drogas. A jovem foi até o ônibus levada por uma amiga, Luana, que soube do

serviço. Sua história transparece o abandono contínuo, o racismo, a negação de direitos.

O pai não quis registrá-la, a mãe explicitou um motivo. O pai de Elisabeth abandonou a

família, e sua mãe, segundo ela, também a maltratava e batia sua cabeça na parede.

Elisabeth saiu de casa aos 17 anos e, aos 18, conheceu o rapaz que se tornou seu marido

e pai de seus filhos. Elisabeth queria tirar o documento para visitar o companheiro na

prisão, mas também para melhorar a condição de vida dela e dos filhos, tentar matriculá-

los na escola e tentar entrar em algum projeto social. No fundo, queria que sua história

não se repetisse com os filhos: “Não quero deixar meus filhos do jeito que minha mãe me

deixou, uma pessoa que não é nada”.

Ao longo do discurso desses entrevistados, fica clara a forma como os usuários se

definem: “zero à esquerda”, “cachorro”, “um nada”, “pessoa que não existe”, entre outras,

todas são expressões que conformam claramente a ideia da pessoa sem registro de

nascimento sobre si mesma como uma pessoa sem valor, cuja existência nunca foi

29

oficialmente reconhecida pelo Estado – uma pessoa, portanto, que até aquela altura da

vida não se constituiu em sujeito de direitos. Ao verbalizar o fato de “não ser ninguém”,

ou não existir, embora, naturalmente, seja alguém, a pessoa sem documentos explicita o

modo como se vê diante do Estado. No entanto, diferentemente do que foi observado no

estudo de Freire – que aponta claramente estratégias de “merecimento” das pessoas

transexuais que conseguirão alterar o nome na identidade –, no caso das pessoas sem

documento não pude visualizar que essas estratégias de “construção de merecimento”

tenham sido estimuladas pelos funcionários encarregados do atendimento do ônibus.

Como o registro de nascimento é um direito garantido em lei, minha observação aponta,

novamente, o ônibus como um local de acolhida: entende-se que o usuário tem este direito

(embora ele lhe tenha sido negado ou dificultado durante anos), e a questão é como

garantir o acesso a este direito. Ninguém precisa mostrar sofrimento para merecer o

documento. Mesmo assim, as pessoas que lá chegam ao ônibus têm a impressão de que

precisam se mostrar “mais merecedoras”, detalhando suas trajetórias nas quais direitos

foram continuamente negados.

Peirano (2006) define o documento como algo que identifica o indivíduo para fins

de cessão de direitos e cobrança de deveres, ao mesmo tempo em que analisa o preço da

inexistência de documentação: a negação da existência daquele indivíduo como cidadão.

“O documento, assim, legaliza e oficializa o cidadão e o torna visível,

passível de controle e legítimo para o Estado; o documento faz o

cidadão em termos performativos e obrigatórios. Essa obrigatoriedade

legal de possuir documentos naturalmente tem seu lado inverso: o de

remover, despossuir, negar e esvaziar o reconhecimento social do

indivíduo que não possui o documento exigido em determinados

contextos” (PEIRANO, 2006, p.26-27)

Em diálogo com a análise de Peirano, é possível problematizar a compreensão dos

usuários do ônibus sobre o papel da documentação. A história de vida de Cristiane

explicita como ela, para se reivindicar como sujeito de direitos (“eu também tenho

direitos”), primeiro se desconstrói como sujeito ao dizer que não é ninguém _ assim como

outros usuários se apresentaram como “um nada”, um cachorro ou uma pessoa que não

existe. Sem documento, o indivíduo esvazia o reconhecimento de si como merecedor de

direitos para, em seguida, voltar a pleiteá-los a partir da obtenção do registro civil.

30

1.3. A vergonha de Rita: problema de quem?

Rita é uma mulher negra de 32 anos e mãe de quatro filhos de 8,10, 15 e 20 anos.

Auxiliar de cozinha numa pizzaria e diarista, moradora de Madureira, relatou que

respondia sozinha pelo sustento da casa, pois havia alguns anos não vivia mais com o

antigo companheiro. Disse que recebia na pizzaria cerca de R$ 900 mensais, mais as

diárias de faxina (ela cobrava R$ 150 pela diária). Esse trabalho era todo realizado na

informalidade, já que Rita, sem registro, não possuía carteira de trabalho ou nenhum outro

documento. A renda era completada com “bicos” feitos pelos dois filhos mais velhos,

Rodrigo e William. Nem Rita nem os filhos têm documentos, e por isso ela procurou o

ônibus da Justiça Itinerante, encaminhada pelo padre de sua comunidade. Agora Rita

trouxe a irmã, a também diarista Claudete, de 42 anos. As duas irmãs me relataram a

mesma história: a mãe delas teve 11 filhos, mas nenhum chegou a ser registrado.

Enquanto espera, Rita vai reconstituindo sua trajetória e me dando entrevista,

sentada nas cadeiras dispostas no pátio da Juizado da Infância e da Juventude. Conta que

nunca teve documentos, foi à escola ou votou. Segundo ela, a busca pelos documentos

começou por volta dos 14 anos, quando foi com a mãe ao cartório da região onde a família

vivia para tentar tirar o registro, mas a tentativa acabou esbarrando nas dificuldades que

a lei prevê para registrar alguém com mais de 12 anos de idade. Aquela era sua segunda

passagem pelo ônibus: na primeira, cerca de dois meses antes, passou pela triagem, foi

entrevista pela assistente social e teve a primeira audiência judicial. Após as buscas em

cartórios e no sistema do Detran, a equipe do Sepec concluiu que ela nunca fora registrada

e convocou-a para a audiência final, que aconteceu no dia em que ela me concedeu

entrevista.

Quando pergunto a Rita como é viver sem documentos, ela responde: “A pessoa

(sem documento) não é nada na vida, é um palito de fósforo que você amassa e joga fora,

um papel em branco. Sem documento a gente não é nada”. Observa-se aqui a expressão

da ideia do documento como peça fundamental para a constituição da identidade, num

movimento que articula os planos individual e coletivo e que, como alertam Caplan e

Torpey (2001), expressa relações e tensões:

“Identificação como individual quase não é pensável sem categorias da

identidade coletiva, e isolar uma metade desse par pode desse modo

parecer artificial” (CAPLAN, TORPEY, 2001, p.3; tradução minha)

31

Rita é muito falante, muito risonha, concorda em gravar a entrevista. Pergunto por

que ela quer os documentos, e ela me diz: “Vou tirar meus documentos tudinho, estudar,

tirar meus documentos, abrir conta pra minha filha. Estudar. Ser alguém na vida, né?”

Conta que nunca foi à escola, porque pediam o documento e ela não tinha. Sabe ler e

escrever “só mais ou menos”, porque uma patroa lhe ensinou. Pergunto se ela sabe quem

é o presidente, ela não sabe. Ou o governador. “Não é o Lula? O Sergio Cabral? Não sei.

Ah, é Dilma”. Uma palavra começa a se repetir na sua entrevista: vergonha. “Eu tenho

até vergonha de falar que não tenho documentos. Eu achava vergonha. Pra mim é uma

vergonha, né não?”. Por quê?, pergunto:

“Pra mim é. Eu tenho vergonha. Não é para ter vergonha? Eu acho uma

vergonha não ter documento. Trabalha num lugar pede documento, não

tenho. Pedem muito. No hospital. Fui tirar um telefone, pedem

documento, não tenho. Quero abrir uma conta para os meus filhos, não

tenho. (Quero pedir) Bolsa Família, não tenho documento. Pra mim é

vergonha.” (Rita, 32 anos)

Rita me diz que tem namorado há dois anos e quatro meses, mas ele não sabe que

ela não tem documentos.

“Não falei nada pra ele. Vou falar para quê? Isso não é vergonha? É

vergonha. Estou há dois anos e quatro meses com ele, mas nunca falei

que não tenho documento não. Só vou falar quando estiver com meus

documentos na minha mão. Eu sinto vergonha. E muita. É bonito (ter

o documento). Você vai no mercado, faz compra, mostra o documento.

Vai numa loja, mostra o documento. Agora você chegar numa loja, tem

documento? Cadê a identidade? Não tenho. Pra mim é vergonha.” (Rita,

32 anos)

As ciências sociais têm examinado o tema da documentação como elemento

constitutivo da formação dos Estados nacionais (Bourdieu, 2011), como forma de

controle do cidadão (Foucault, 2015) e como chave de acesso a benefícios e direitos

(Peirano, 2006; DaMatta, 2002; Carrara, 1984; Santos, 1979). Carrara (1984) relata como,

após a instituição do registro civil, o Brasil adotou, no começo do século XX, a

identificação civil pelo novo método de digitais do servo-argentino Vucetich. A

identificação civil traz à tona o debate sobre a possibilidade de que o Estado tivesse

32

controle das características de todos os cidadãos. O tema da vigilância social aparece

claramente, e o invento de Vucetich é a chave para controlar não só os delinquentes, os

temíveis, como os chamou Afrânio Peixoto, mas o conjunto da sociedade.

E, se o documento identifica e controla, sua ausência é também um sinal a ser

notado. Ferreira (2009), em estudo sobre indivíduos enterrados sem identificação no Rio

de Janeiro, aprofunda-se no estudo da ausência de documentação como marca do

“elemento desconhecido” e, por conseguinte, imediatamente suspeito do ponto de vista

de perspectivas médico-legais. No caso dos cadáveres não-identificados analisados pela

autora, também a eles é aplicado o método datiloscópico de identificação criminal,

supostamente garantindo à sociedade uma espécie de proteção diante da ameaça do

homem desconhecido:

“Nesta sociedade eminentemente criminosa, o homem desconhecido

seria suspeito, embora não se definisse exatamente do que, pelo simples

fato de ser desconhecido _ isto é, por não ser identificado nos termos

específicos estabelecidos pelos documentos. Ser propriamente

identificado, dando-se a conhecer nestes termos, por outro lado, por si

só reconfiguraria esta suspeita” (FERREIRA, 2009, p.38)

Pude observar, durante a pesquisa de campo, que a ausência de documentação é

reiteradamente associada pelas pessoas que buscam atendimento no ônibus a duas

dimensões contíguas: como “uma vergonha” ou como “algo suspeito”, e ambas apontam

para uma característica que deve ser escondida. A entrevista de Rita é explícita sobre isso:

não ter documentos é ser imediatamente associado a algo que, supostamente, o indivíduo

fez de errado. Outros usuários me relataram esse mesmo sentimento pelo fato de não

terem documentos, e destaco aqui alguns desses relatos:

“É muito ruim não ter nada, já fui pra delegacia porque não tenho

documento. Dá até vergonha.” (Davi, 22 anos)

“Quando a gente chega no posto de saúde tem de mentir que

esqueceu os documentos. Acham logo que a gente fez alguma

coisa ruim. É uma vergonha, né?” (Marta, 17 anos)

“É horrível, você quer ir para um lugar e não pode. Tenho

vergonha. Às vezes me perguntam por que eu não fiz o serviço

militar, como se fosse culpa minha.” (Dani, 25 anos)

33

“É muito ruim, a gente não consegue trabalho. Acham logo que a

gente fez algo de errado. Tenho muita vergonha de não ter

documento.” (Raiane Pereira Silva)

“É muito ruim, tenho vergonha. Meu pai só fez merda na vida.”

(Raquel, 18 anos)

As percepções relatadas pelos usuários conduzem exatamente à análise de Ferreira

– a associação da ausência do documento ao elemento suspeito, associação que se

transforma em ação concreta na situação relatada por Davi: ser conduzido para uma

delegacia por não ter documentos, prática comum ainda hoje. Do mesmo modo, assim

como não ter o registro de nascimento impossibilita que o indivíduo exerça outras

atividades – como votar ou, para os homens, prestar serviço militar – algumas pessoas

que conheci no ônibus também relataram que já foram cobrados por terceiros, em

instâncias variadas, por não terem os documentos. Não ter documentos aparece, nos

relatos dos usuários, como um “problema pessoal”, um assunto que o indivíduo não

resolveu apenas e tão somente porque não quis, e este usuário sente-se também

moralmente culpado por isso.

É possível perceber, nos relatos dos usuários do ônibus, uma dimensão moral na

qual eles expressam um duplo julgamento: o que receberam dos outros e o que fazem de

si mesmos por não terem documentos. Vergonha, não conseguir trabalho, fazer algo de

errado, uma coisa ruim, são expressões dessa dimensão moral acionada num espaço pleno

de formalidade, afinal, a Justiça Itinerante é uma das representações do Estado-sistema

(Abrams, 2006). Em estudo etnográfico sobre pessoas que buscam seu cadastramento no

Programa Bolsa Família, programa de distribuição de renda do governo brasileiro, Marins

(2014) observa que as relações entre beneficiários e não beneficiários do programa se

fundam em uma matriz moral, com a presença de fofocas, julgamentos e controles sociais

específicos em torno da figura daquele que busca ser incluído no Bolsa Família. Os

beneficiários ouvidos por ela relatam experiências de constrangimento, humilhação e

preconceito por buscarem acesso a um programa que os torna dependentes. Freire (2015),

Ferreira (2015) e Viana (2013) também mostram, em seus estudos etnográficos, como

práticas de Estado associam técnica e moralidade, formalidade e sentimentos morais.

Em metodologia e temática, tais estudos dialogam com esta pesquisa: claramente,

nos relatos dos usuários do ônibus há uma matriz moral nas cobranças que eles dizem ter

34

sofrido pelo fato de não terem documentos – cobranças que vão desde constrangimentos

concretos (como ser levado para a delegacia pela polícia ou ter que explicar o motivo da

não prestação do serviço militar), até soluções momentâneas encontradas por eles para

resolver um problema – como o fato de Marta dizer que mentiu no posto de saúde que

esqueceu os documentos, pois, se dissesse que não os tinha, o atendimento seria mais

difícil ou talvez não acontecesse. São notáveis também as situações que não

necessariamente envolvem uma situação concreta, mas o sentimento difuso de vergonha,

de ter feito algo de errado – “acham logo que a gente fez coisa ruim”, como atesta Marta.

A vergonha levou Rita a, num relacionamento de quase dois anos, não contar ao

namorado que não tinha documentos. O relato de Rita demonstra que a vergonha

ultrapassa limites de domínios que nos acostumamos a ver como apartados: o público e o

privado. A vergonha não se restringe ao fato de ser cobrada no hospital, no posto de saúde

ou em interações com agentes e repartições estatais. Está presente nos relacionamentos

íntimos, no namoro, no mundo doméstico. Rita expressa de modo claro o que o relato de

Cristiane deixava subjacente: só quando a mãe morreu ela descobriu que a mãe não tinha

documentos. Ou seja, a mãe também lhe escondera algo que a constrangia. A dimensão

moral se traduz na vergonha, uma vergonha que inibe, emperra a vida e os sentimentos.

Do mesmo modo, assim como não ter o registro de nascimento impossibilita que

o indivíduo exerça outras atividades – como votar ou, para os homens, prestar serviço

militar – alguns usuários do ônibus também relataram que já foram cobrados por terceiros,

em instâncias variadas, por não terem os documentos. A documentação adquire aqui a

configuração do “problema pessoal”, de um assunto individual e referente àquele usuário.

As pessoas sem documentos são muitas vezes cobradas por não terem algo que lhes devia

ter sido oferecido pelo Estado como direito. A pessoa, além de não ter tido acesso a

direitos, sente-se também moralmente culpada por isso.

1.4. Valderez e o fio da vida: por que quero um documento?

Margens do Estado, a partir do conceito proposto por Das e Poole (2004), são

comumente entendidas como: 1) periferias onde vivem pessoas consideradas

insuficientemente socializadas de acordo com leis e ordem vigentes, que etnógrafos têm

analisado interrogando os modos utilizados pelo Estado para, através da força ou do

35

convencimento, ou de ambos, enquadrar esses sujeitos no arcabouço estatal; 2) lugares

onde direitos podem ser violados mais facilmente, e cujos habitantes são muitas vezes

ilegíveis pelo Estado; os documentos adquirem aqui papel fundamental, já que tornam

tais pessoas legíveis por esse mesmo Estado; 3) um espaço localizado entre corpos, lei e

disciplina, isto é, não necessariamente um espaço geográfico, mas um conjunto de

articulações e relações. (Das e Poole, 2004, p.10)

Todos os entendimentos até aqui, destacam Das e Poole, compreendem as

margens do Estado como um lugar de exclusão e desorganização social, lugar de falta e

de ausência. A contribuição das autoras, fundamental para esta pesquisa, é ir além da ideia

de margem apenas como lugar de exclusão e desorganização. Das e Poole afirmam que

as margens do Estado não são inertes, pois também se apresentam como espaços de busca

de soluções – o que não significa negar os problemas, os perigos e exclusão cotidiana.

Para as autoras, populações das margens, apesar de sua rotina de exclusão, não se

submetem a tais condições passivamente e também desenvolvem modos criativos de

sobrevivência. (Das e Poole, 2004, pp. 19) As margens do Estado, assim, também são

Estado – embora as populações dessas margens vivenciem de modo distinto a relação

com este Estado.

Para esta pesquisa, é fundamental o diálogo com o conceito de margens, pois

pessoas sem nenhuma documentação vivem nas margens do Estado brasileiro, menos no

sentido geográfico ou étnico a que pode levar a primeira compreensão do conceito, mas

principalmente pelo fato de serem ilegíveis por este Estado, como aponta a segunda

concepção indicada por Das e Poole. Ao mesmo tempo, entender as margens como

ambivalentes e não inertes permite que nós, cidadãos documentados, possamos

compreender de que modo se constrói uma vida inteira sem documentação. Nesse sentido,

qualifico aqui essas pessoas como invisíveis, no sentido de que foram legalmente ilegíveis

pelo arcabouço estatal. Os relatos dos usuários, colhidos durante a pesquisa de campo,

mostram de que modo as pessoas sem documentação vivenciaram a ambivalência das

margens e acionaram repetidamente estratégias alternativas de inserção social para tentar

obter, com mais ou menos sucesso, algum acesso a políticas de saúde e educação – até o

momento em que, por algum motivo, elas chegam ao ônibus para obter o registro de

nascimento.

36

Ao longo da pesquisa de campo, foi possível reconstituir e analisar os motivos

apresentados pelos usuários do ônibus da Praça Onze para que pudessem obter o registro

de nascimento e se tornar legíveis diante do Estado. O que fez essas pessoas que sempre

viveram nas margens do Estado, tal como definem Das e Poole (2004), buscarem a

certidão de nascimento? Por que elas decidiram buscar o documento? Com base nas

entrevistas realizadas por mim com os usuários, mas também com juízes, promotores,

defensores públicos e técnicos da Justiça Itinerante, tentei classificar os motivos, sabendo

que as motivações se entrelaçam e que dificilmente um usuário apresenta uma única razão

em sua busca pelo documento.

De acordo com minha pesquisa de campo, um motivo frequente para a busca pelo

registro de nascimento é o acesso a políticas públicas e benefícios sociais. Como já

explicado anteriormente, o sistema de documentação brasileiro funciona por

encadeamento, e para obter qualquer documento exige-se um documento anterior, sendo

que a certidão de nascimento é o documento fundador (DaMatta, 2002). Sem a certidão,

é impossível obter carteira de identidade e CPF. Assim, o ônibus da Praça Onze é

procurado continuamente por indivíduos que desejam obter outros documentos para, com

eles, solicitar acesso a programas e benefícios sociais, notadamente o Programa Bolsa

Família. Criado em 2003, o programa se baseia na transferência de renda, com concessão

de bolsas a indivíduos abaixo de determinado patamar de renda. Para se cadastrar no

programa e receber a bolsa, é preciso ter certidão de nascimento, identidade e CPF –

inclusive das crianças da família.

Obter o Bolsa Família para si e seus filhos era o propósito de Damiana, de 28 anos,

moradora de Costa Barros, na zona norte do Rio, quando chegou ao ônibus da Justiça

Itinerante. Entrevistei-a no dia 14 de outubro de 2016, em sua segunda ida ao ônibus,

quando recebeu então as certidões de nascimento sua e dos filhos Lázaro, de 10 anos, e

Ana Raquel, de 4. Sem emprego nem renda fixos, analfabeta, Damiana era responsável

por uma família que em situação de extrema vulnerabilidade social e vivia num barraco

em Costa Barros, zona norte do Rio. Cresceu na rua, filha de uma mãe alcoólatra, a

doméstica Marly, enterrada como indigente por não ter nenhum documento de

identificação. Sempre viveu sem documentos, na representação do que Das e Poole

(2004) chamam de margens do Estado, tanto no sentido de alguém habitante de uma

periferia em que a pessoas são menos socializadas na lei, quanto na acepção de alguém

ilegível pelo Estado e cujos direitos são mais facilmente violados. Ao mesmo tempo, a

37

reflexão de Das e Poole (2004) ajuda a refletir sobre como, nas margens, o Estado também

se faz presente. Damiana não chegou ao ônibus por sua própria iniciativa: foi localizada

pela assistente social Yara, funcionária de uma ONG que, através de um convênio com a

prefeitura, busca crianças que não estão frequentando a escola e tenta encaminhá-las para

a rede de ensino. De acordo com o relato de Yara, sua ONG, graças ao convênio, faz nas

ruas o trabalho de busca ativa, percorrendo comunidades e tentando achar crianças que

não estão estudando. Um dia, quando percorria Costa Barros, ela achou Lázaro jogando

bola de manhã. Perguntou quem era sua família e por que não estava na escola, chegando

em seguida à casa de Damiana, um barraco na comunidade Terra Nostra, em Costa

Barros.

Como em outros casos já abordados neste capítulo, a trajetória de Damiana traz

uma contínua negação de direitos através de gerações. Sua mãe também não tinha

documentos e foi enterrada como indigente. A própria Damiana nunca estudou nem

conseguiu trabalho. Sem documentos, não registrou os filhos, que também não estavam

na escola. A ideia de uma cidadania diferenciada definida por Holston (2013) – concessão

universal, mas distribuição desigual de direitos – pode ser utilizada para compreender a

trajetória de Damiana enquanto pessoa ilegível pelo Estado. O documento representaria,

para ela, o acesso a políticas sociais – no caso, o Bolsa Família – e a chance de se tornar

legível.

Damiana também me fez refletir sobre uma situação que encontrei frequentemente

durante a pesquisa de campo: o fato de que muitos usuários do ônibus só chegaram ao

local graças à ação de um mediador. No caso de Damiana, foi Yara que a localizou e a

levou até o ônibus; a ONG pagou o transporte de Damiana e seus filhos até o centro da

cidade. Muitas pessoas que entrevistei no ônibus dependiam desse apoio de um assistente

social, um funcionário público, um parente ou um vizinho para que lhe estimulasse a

procurar o documento e a acompanhasse na fila – num trabalho de mediação que

aprofundarei no capítulo 2.

A pesquisa de campo mostra outro motivo frequente para que os usuários do

ônibus busquem o registro de nascimento: a ocorrência, em suas vidas, de algum evento

que os obrigue a ter um documento de modo urgente, caracterizando o que, a partir do

conceito original de legibilidade de Das e Poole (2004), chamo aqui de urgência de

legibilidade. O usuário precisa do documento para que possa fazer uso, de modo urgente

38

e imediato, de um serviço público. Nas margens do Estado, território físico e simbólico

no qual ele está acostumado a transitar, as estratégias de negociação se esgotaram para

resolver um determinado problema que se apresenta e, para lidar com tal situação, é

indispensável um documento.

Telles (2010, 2013), Feltran e Cunha (2013), em pesquisas de cunho etnográfico

sobre territórios urbanos, analisam as experiências de informalidade que se constroem nas

margens. Nos ilegalismos cotidianos na cidade de São Paulo, do trabalho informal na rua

aos bicos no narcotráfico, pontua Telles, em diálogo com a ideia de “margens” (DAS e

POOLE, 2004), há uma tessitura urbana construída por meio de jogos de poder e relações

de força. Segundo a autora, nessas zonas de turbulência há o embaralhamento das

fronteiras da legalidade, e uma pessoa que trabalha no comércio durante o dia pode,

durante a noite, ser colaborador do tráfico. Isso tudo reconfigura as cidades e suas relações

de força, exigindo de quem vive nas zonas de turbulência capacidade de se adaptar a essa

permanente transformação. A gestão dos ilegalismos, afirmam Feltran (2010) e Telles

(2010), na perspectiva de Foucault (1987), ajuda não a coibir ou eliminar o que parece

fora da legalidade, mas a diferenciá-los, definir limites, utilizar uns e tirar proveito de

outros. Pois, para Foucault (1987), os ilegalismos também fazem parte do funcionamento

social e compõem os jogos de poder.

De modo análogo, na pesquisa sobre pessoas sem documento, é possível observar

como elas geriram a própria inexistência indocumentada. Sem usar a palavra ilegalismo,

prefiro falar em ilegibilidade, no sentido de impossibilidade de ser contabilizado pela

governamentalidade. Mas, nas margens, na ilegibilidade, é possível observar a

ininterrupta construção e reconstrução de estratégias – o trabalho informal, o bico, a ajuda

de alguém para matricular um filho em escola. Há, porém, um momento em que essas

estratégias se esgotam.

Um exemplo claro da urgência de legibilidade aconteceu com a doméstica Maria

da Conceição, de 52 anos, que veio de Pernambuco para o Rio há cerca de 30 anos, já

sem documentação. Maria é uma das personagens mais marcantes de minha pesquisa e

tive a oportunidade de entrevistá-la várias vezes ao longo do trabalho. Já falei de Maria

neste capítulo ao analisar a forma como a pessoa sem documento fala de si mesma, pois

é dela a frase: “Eu me sinto um cachorro. Sou uma pessoa que não existe”. Parafraseando

Mintz (1984), Maria me escolheu e deixou que eu reconstituísse sua trajetória.

39

Maria sempre trabalhou como diarista, sem carteira assinada nem documento

algum. Teve companheiros, tem filhas e netas. Nunca votou e não sabe ler nem escrever.

Construiu sua existência nas margens do Estado, sem legibilidade diante do mesmo.

Conseguiu comprar um barraco na região de São Gonçalo, município da Região

Metropolitana do Rio. Há mais ou menos 15 anos começou a sentir um caroço na mama

esquerda, mas, sem documento, conseguiu apenas tratamento de emergência na rede

pública de sua cidade. Em setembro de 2016, quando a conheci, o caroço em seu peito

tinha crescido e alcançava o tamanho de uma laranja, projetando-se para fora do corpo.

No posto médico, o caso foi diagnosticado como um tumor maligno que precisava ser

operado, mas tanto o tratamento quimioterápico quanto a cirurgia só poderiam ser feitos

caso ela apresentasse documentos.

A situação de Maria é chave para esta pesquisa porque traz de volta algumas

questões já expostas aqui, como o papel do documento como chave para acesso a políticas

públicas – e chave para a cidadania, tal como analisam Peirano (2006), DaMatta (2002)

e Santos (1979). Do mesmo modo que Maria, outros adultos sem-documento buscam o

registro de nascimento para resolver essa urgência de legibilidade, quando há um

problema que não mais pode ser solucionado pelas estratégias até então utilizadas por

eles. Vânia sempre conseguiu matricular a filha na escola, mesmo sem documentos,

porque conhecia a diretora do estabelecimento. Quando a jovem chegou ao ensino médio,

mudou-se para uma escola estadual que lhe apresentou nova regra: sem documento não

há matrícula, o que obrigou Vânia a buscar uma solução fora das margens do Estado. A

urgência de legibilidade se caracteriza, assim, por essa situação extrema, que exige a

apresentação de documentação oficial e exige uma tomada de atitude por parte do usuário

– e o leva a procurar o ônibus do sub-registro na Praça Onze.

A urgência de legibilidade aciona ainda na fala dos usuários e dos juízes do ônibus

outro argumento, o de prioridade, traduzido no raciocínio de que todos que estão naquela

fila têm direitos, mas o direito de alguns é mais urgente que o de outros. A cirurgia

iminente, a vaga para o filho, o direito de ter atendimento médico, são situações com as

quais o usuário se depara e nas quais as estratégias de solução até então mobilizadas nas

margens do Estado não mais resolvem. Voltarei a este tema em capítulo posterior, quando

analiso o papel do juiz como agente capaz de garantir essa urgência antes mesmo da

emissão do documento.

40

O terceiro motivo que faz com o usuário procure o ônibus é o que chamo de

conversão – não necessariamente conversão religiosa, ainda que muitas vezes o processo

inclua a conversão religiosa. São casos de pessoas cujas trajetórias são marcadas por

abuso de drogas ou álcool e que não tinham documentos, e meu encontro com eles no

ônibus da Praça Onze se dá ao final de um processo de mudança de vida, com o abandono

ou a redução do uso. Opto pela categoria conversão por causa dos relatos que obtive

durante a pesquisa de campo, e uso tal categoria em diálogo com vários estudos (Lins e

da Silva, 1989; Cunha, 2008; Teixeira, 2009; Corrêa, 2015) que analisaram, em áreas

pobres do Rio, a conversão a denominações evangélicas pentecostais ou neopentecostais

vivida por pessoas ligadas à criminalidade. Desde o estudo pioneiro de Lins e da Silva

(1989) sobre a Cidade de Deus até trabalhos mais recentes, como o de Corrêa (2015), o

fenômeno vem sendo entendido como um elemento crucial na construção de uma nova

identidade nos grupos analisados. O crescimento das denominações evangélicas

pentecostais e neopentecostais é um fenômeno mundial desde os anos 1960, com a perda

de fiéis das igrejas evangélicas tradicionais, chamadas Históricas ou de Missão4. No

Brasil, é explicitado no Censo de 2000, quando a proporção de evangélicos subiu de 9%

para 15,4%, e confirmado no de 2010, quando chegou a 22,2%. (IBGE, 2010). Freston

(1994) salienta que o crescimento evangélico não é exclusivo das camadas mais pobres,

mas destaca que estratos populacionais de maior vulnerabilidade econômica e social têm

sido atraídos em maior número pelas novas denominações.

Teixeira (2009), em estudo etnográfico sobre os chamados ex-bandidos que se

tornaram evangélicos, observa, nas narrativas destes, de que modo sua conversão é um

processo atravessado por numerosas mediações e não pode ser entendida apenas como

uma mudança individual, subjetiva; ao contrário, afirma, é preciso considerar o contexto

social no qual a transformação acontece. Assim, afirma, “a conversão não aparece como

um ‘evento transformador’, mas como o ápice de um processo que envolve o indivíduo e

os contextos (social e religioso) em que ele está inserido”. (Teixeira, 2009, p.81) As

respostas às questões levantadas por Teixeira – quando começa a conversão? a partir de

que momento os ex-bandidos entrevistados por ele têm noção disso? – surgem de uma

pesquisa etnográfica que busca, nas narrativas desses ex-bandidos, as relações entre a

4 Para saber mais sobre o crescimento de denominações evangélicas neopentecostais, ver NOVAES,

1998, MARIANO, 2005, MAFRA, 2011, entre outros.

41

transformação individual, o contexto social em que aquele indivíduo está inserido e a

cosmologia pentecostal. Teixeira analisa a imagem que o ex-bandido tem de si e de que

modo se reinterpreta na religião pentecostal, mostrando também que caminho ele

percorre. Em outro estudo etnográfico, Corrêa (2015) aborda as relações entre

evangélicos e traficantes de drogas, analisando trajetórias de vida e suas modificações no

processo de conversão. No que define como uma “sociologia dos problemas íntimos”,

busca apreender os atores através de seus problemas, analisando os processos de

transformação experimentados por esses atores e recorrendo à categoria de conversão

como eixo principal de sua análise.

Durante a pesquisa de campo, deparei-me, no ônibus da Praça Onze, com

numerosos usuários que traduziam na categoria da conversão o motivo principal de sua

busca pelo registro de nascimento. Diferentemente do verificado nas pesquisas de Corrêa

(2015) e Teixeira (2009), nenhum se identificou como ex-chefe do tráfico em sua área.

Eram principalmente ex-usuários de drogas que, ao longo dos anos de dependência

química, perderam seus documentos ou nunca os tiveram. Localizei também três

mulheres que haviam sido usuárias, e todas me relataram que, nesse período,

sobreviveram vendendo drogas, roubando e trabalhando como prostitutas. Aproximei-me

mais de Natália, que me deu entrevista pela primeira vez em novembro de 2016, quando

foi ao ônibus pela primeira vez dar entrada no pedido do registro de nascimento. Depois

disso, voltei a entrevistá-la mais duas vezes em agosto de 2017. Quando chegou ao

ônibus, Natália tinha 30 anos e, de acordo com seu relato, nunca tivera nenhum

documento. Sua primeira lembrança, disse, era do Conjunto Amarelinho, onde vivia na

casa de uma mulher que cuidava de muitas crianças – e, segundo Natália, espancava todas.

“Eu resolvi fugir, porque ali não dava mais pra viver. Aí fui ficando

pela rua, aqui, ali, vivendo de pedir, fazendo tudo de ruim. Roubei, me

prostituí na avenida Brasil, usei maconha, cocaína, crack. Fiquei muitos

anos na droga, mendigando na rua, roubando... Tava na pior mesmo foi

com a pedra, o crack. Aí na rua conheci o Alessandro, que também

usava droga, era crackudo, mas não tanto quanto eu. A gente trocou

telefone, ficou namorando. Ele me levou pra casa dele, e a mãe dele

começou a cuidar de mim, me levou pra igreja. Agora faz três anos

que não estou usando mais. O Alessandro saiu da rua também. Paramos

de usar juntos. Mudei totalmente de vida.” (Natália, 30 anos)

Natália relatou que, com a ajuda de Nilza, mãe de Alessandro, entrou para uma

igreja evangélica em Santa Cruz, uma das muitas novas denominações neopentecostais

42

que proliferam na zona oeste do Rio. Saiu da rua, deixou de consumir crack e de se

prostituir. Começou também a trabalhar como faxineira. Vivenciou, assim, o processo de

mudança de vida que defino como conversão – e que, no caso dela, incluiu de fato uma

conversão religiosa. Segundo o relato de Natália, o que lhe faltava na nova vida era um

documento, para que pudesse voltar a estudar e buscar um emprego de carteira assinada,

e por esse motivo ela procurou o ônibus da Praça Onze.

Um processo parecido de conversão foi vivenciado por Márcia, de 40 anos, que

entrevistei no dia 17 de março de 2017, quando ela chegou ao ônibus levada por uma

sobrinha e uma vizinha. Acompanhei a entrevista de Márcia feita pela assistente social

do Sepec e depois continuei conversando com ela até o momento da entrega de sua

certidão de nascimento. Márcia relatou que tinha nascido na roça, no interior do Rio, e

que sua mãe tivera mais de dez filhos, nenhum registrado. A mãe também não tinha

documentos e viveu com vários companheiros uma história frequente de violência e

pobreza, relembrou Márcia: “Todo marido que ela arrumava batia nela. E a gente muitas

vezes não tinha nada para comer”. A própria Márcia também era frequentemente

espancada por um de seus irmãos, que, segundo ela, sofria de alcoolismo e, quando bebia,

batia nela “até tirar sangue”. Contou que, com medo do irmão, saiu de casa e foi morar

na rua. Nunca tivera documentos e assim ficou. Por volta de 18 anos, foi morar com um

companheiro, também usuário de drogas. Márcia também usou drogas. “Caí no mundo,

pedia, roubava, me prostituía, fazia de tudo”, relembrou. Passou mais de 20 anos com

este companheiro, que também a espancava e trancava em casa. A sobrinha disse que a

família sabia da vida que Márcia levava, mas nunca se meteu: “A gente sabe que ela não

era santa não”. Um dia uma vizinha encontrou-a desmaiada e muito fraca, depois de dias

sem se alimentar, chamando a família, que a levou a um hospital. Na emergência, após

vários exames, foi diagnosticado um câncer do colo do útero. O hospital, para fazer a

cirurgia e o tratamento, exigiu documentos, e a família então foi encaminhada ao ônibus

da Justiça Itinerante. Durante o tratamento médico, Márcia começou a frequentar com a

sobrinha uma igreja evangélica. Quando a conheci, estava sem usar drogas, mas se movia

com dificuldade e tinha as pernas muito inchadas. Esperava o documento para poder se

registrar e pedir a aposentadoria. Saiu da Praça Onze com o registro de nascimento na

mão. Sua história de vida mescla vários motivos para obter um documento, pois ela

buscava tanto o acesso a políticas públicas (aposentadoria) como vivenciava a urgência

de legibilidade, já que a cirurgia dependia da documentação. Destaco também a

43

conversão, num processo que passa pelo abandono das drogas, e no qual o documento

poderia ser uma espécie de chave para uma vida diferente.

Embora nestes dois casos o processo que chamei de conversão inclua a conversão

religiosa, no meu estudo ela não é obrigatória, diferentemente das pesquisas realizadas

por Teixeira (2009) e Corrêa (2015). As irmãs Kamila, de 22 anos, e Raquel, de 18 anos,

nunca tiveram documentos porque nunca foram registradas pelos pais, Marcelo e

Jaqueline. Questionei a família sobre os motivos de nunca terem registrado as jovens. A

mãe explicou que, como as duas nasceram em casa, não possuíam a DNV (declaração de

nascido vivo). O pai justificou dizendo que “tinha uma vida louca”: era viciado em drogas

e vivia na rua. Recuperado e cobrado pelas filhas – que nunca estudaram e, analfabetas,

assinaram com a impressão digital o requerimento para obter o registro – , resolveu

registrá-las. As jovens queriam estudar, tirar a carteira de trabalho, mas, sem

documentação, tudo isso era inviável. O pai, já longe das drogas, completou seu processo

de conversão acompanhando as filhas no processo de registro tardio.

Ao longo da pesquisa de campo, pude observar que a busca pelo documento podia

não ter apenas uma única causa, ao contrário, muitas vezes os motivos para a busca se

entrelaçavam, como já apontei na trajetória de Márcia. Constatei também que muitos

usuários do serviço da Justiça Itinerante expressavam não um propósito facilmente

definível, mas sim um sentimento difuso sobre conhecer melhor suas origens e

reconstituir a própria história, no que defino aqui como recuperação da trajetória

familiar. Estabeleço essa categoria em diálogo direto com o que propõe Schritzmeyer

(2015) em estudo etnográfico sobre adultos que foram internos da Fundação CASA

(Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), leitura fundamental para esta

pesquisa. Neste trabalho, a autora analisa de que forma os ex-internos buscam seus

prontuários nos abrigos públicos do estado de São Paulo, num processo que ela denomina

de recuperação dos “fios das vidas” (Schritzmeyer, 2015). Por que aqueles adultos

buscavam seus prontuários, indaga a autora? Que importância teria para eles recuperar

esses registros oficiais de um período de suas vidas? Em sua análise, para aqueles ex-

internos, agora adultos, acessar traços do passado era um processo que fazia com que eles

se reelaborassem; a busca potencializava a construção de suas identidades, permitindo

que aquelas pessoas se apropriassem de registros do passado para trazer novos

significados à sua vida presente e aos projetos futuros.

44

“Com a busca dos prontuários, ao menos os três “ex-menores” e aqueles

com quem eles vêm construindo a “família Batatais” expressam o

desejo de (re)elaborar seus cursos de vida e seus arranjos de mundo na

tentativa de construí-los, senão com novas perspectivas, ao menos com

o intuito de dar maior inteligibilidade ao que veem como trajetórias

plenas de esforços, de lutas e de sucessos em meio a agruras de toda

ordem. O que eles encontraram nos prontuários parece completar suas

experiências identitárias, cumprindo o papel de provar que são pessoas

dignas e íntegras, tanto porque foram “bons menores” quanto porque se

tornaram “bons maiores” (SCHRITZMEYER, 2015, p.109)

Os relatos obtidos por mim durante o trabalho de campo indicam que, no processo

de obtenção do documento, o registro de nascimento tem uma finalidade imediata, mas

não apenas imediata. Muitos usuários buscam reconstruir a própria história e recuperar

laços familiares, os “fios de suas vidas”. Essa reflexão foi decisiva para o rumo da

pesquisa e me permitiu elaborar a hipótese de que, na busca pela documentação, a ideia

de “para que serve o registro de nascimento” se junta a uma outra, que remete a outra

busca, agora por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar.

Digo que este diálogo teórico foi fundamental porque me obrigou a abrir a pesquisa para

incluir um grupo de usuários que, tecnicamente, não seria abrangido por ela. Eram

pessoas que já tinham algum documento, mas mesmo assim buscaram o ônibus da Praça

Onze. Passo a falar deles agora, a partir de uma história de vida muito marcante para mim,

a de Valderez.

Conheci-a no ônibus, em 2 de setembro de 2016, enquanto ela esperava na fila

para ser chamada para a primeira audiência. Gravei parte de sua entrevista neste dia,

reencontrei-a outras duas vezes e segui alternando conversas gravadas e outras sem

gravação. Valderez me contou que nasceu e foi registrada em Maceió, Alagoas, em 1970.

Quando tinha oito anos, a mãe foi assassinada a facadas pelo pai. Ela e os irmãos, trazidos

para o Rio, foram divididos entre parentes. A jovem foi expulsa de casa pela tia aos 15

anos, passou a viver na rua e perdeu a documentação. Encontrou uma família que a

acolheu e, tempos depois, levou-a a um cartório para fazer o registro de nascimento.

Valderez foi registrada pela segunda vez, agora no Rio de Janeiro e com um nome

completamente distinto, Fabiana, e mais dois sobrenomes inventados. “O homem do

cartório disse que Valderez era nome de homem”, lembrou ela. O novo documento,

emitido como um favor feito à sua patroa, alterou sua data de aniversário e omitiu os

45

nomes dos pais. Com o novo documento, a jovem obteve identidade, título de eleitor,

casou e registrou suas filhas.

Assim, Valderez não era, tecnicamente, uma “invisível”, ausente dos cadastros

nacionais e tema principal desta pesquisa. Tinha casa registrada em seu nome, uma vida

organizada na pobreza, documentos, filhos e netos registrados com seu nome de Fabiana.

Tinha acesso a políticas públicas e legibilidade. Não vinha de um processo de conversão.

Por que queria um documento? Quando a conheci no ônibus, no dia 02 de setembro de

2016, resolvi entrevistá-la porque sua história de vida me trouxe uma nova reflexão,

justamente a questão da identidade, eixo teórico importante no projeto. Isso me alertou

para a busca pela recuperação da trajetória familiar e me obrigou a agregá-la à pesquisa.

Moradora de Belford Roxo, município da Baixada Fluminense, Valderez/Fabiana

procurou o serviço de erradicação do sub-registro oferecido pela Prefeitura porque jamais

se conformou em ter o nome dos pais retirados de sua certidão. A partir das informações

fornecidas por ela, o serviço municipal conseguiu localizar seu documento no cartório de

Alagoas onde ela fora registrada e obteve uma segunda via. Com os nomes dos pais, o

mesmo serviço municipal localizou uma de suas irmãs, Valdenice, e as duas se

reencontraram após 21 anos de separação. Conheci as duas na Justiça Itinerante, e elas

ficavam de mãos dadas. Quando perguntei a Valderez/Fabiana por que estava no ônibus,

ela me contou que desejava ter em seus documentos o nome antigo. Os técnicos da Justiça

Itinerante explicaram-lhe que, se anulasse a certidão com o nome de Fabiana, ela

automaticamente anulava os documentos dos filhos, registrados por Fabiana. Valderez

decidiu ficar com o documento de Fabiana, mas queria que a ele fossem acrescentados os

nomes de seus pais.

Valderez, reitero, já tinha acesso a políticas e benefícios sociais, não vivia uma

situação de urgência de legibilidade nem passara por uma conversão. Sua busca era

motivada por algo que até então eu não havia percebido, mas que naquele momento me

saltou aos olhos: ela queria recuperar sua história familiar. Como havia se separado de

sua família biológica, queria pelo menos em seu documento ter os nomes de seus pais. A

busca do documento fez com ela mesma se transformasse, achasse a família de origem,

repensasse quem ela era.

Reencontrei Valderez no dia 30 de setembro de 2016, ao lado da irmã Valdenice.

Assisti à audiência dentro do ônibus da Justiça Itinerante. Uma nova juíza apresentou a

46

Valderez outro argumento: legalmente, a certidão que a nomeava como Fabiana era

completamente falsa, pois fora emitida para registrar alguém que já era registrado, o que

é proibido por lei. Colocar os nomes dos pais na certidão falsa seria tentar validar um

documento falso. Uma opção, caso ela gostasse muito do nome Fabiana, seria acrescentá-

lo ao documento original, e ela passaria a se chamar Valderez Fabiana da Silva. Mas, de

qualquer modo, os documentos dos filhos de Valderez/Fabiana teriam de ser modificados.

Assim, foram oferecidas a Valderez/Fabiana duas opções: ou ela seguia como

Fabiana e sua certidão cheia de falsificações, como se nunca tivesse sido registrada antes,

e não mudava nenhum documento, nem dela nem dos filhos; ou optava pelo documento

correto, anulando o documento falso em que ela era identificada como Fabiana, e teria de

modificar todos os seus documentos e os de seus filhos. No caminho para recuperar o que

ela considerava sua “verdadeira identidade”, Valderez/Fabiana viu-se obrigada a fazer

uma escolha entre duas certidões de nascimento, sendo que cada certidão representava,

na verdade, uma de suas vidas: Valderez, a menina que perdeu a mãe e foi expulsa de

casa, ou Fabiana, a jovem que reconstruiu a vida e teve filhos.

Valderez assistiu à audiência ao lado da irmã, Valdenice. Mostrou à juíza uma

foto de sua mãe, Elza, assassinada pelo marido. Ela e a irmã choraram várias vezes.

Depois de pensar e conversar com a irmã, Valderez anunciou sua decisão: queria o nome

da mãe e do pai no documento e, para recuperar esses nomes, abria mão de todos os seus

documentos como Fabiana. A juíza emitiu então uma ordem determinando que todos os

documentos com o nome Fabiana fossem alterados para Valderez e explicando a quem

fosse realizar o processo que as duas eram a mesma pessoa, que não havia falsidade

ideológica ou tentativa de burlar a Justiça. A decisão valia também para qualquer

programa social ou escritura de imóvel. Valderez teria de chamar seus filhos e pedir que

mudassem toda a documentação, para que o nome verdadeiro dela ocupasse o lugar que

lhe era devido na vida. Queria o registro por um motivo de foro íntimo, a fim de reescrever

sua trajetória e validá-la. Valderez decidiu ser Valderez.

Ao longo da pesquisa de campo, tive a oportunidade de encontrar outros usuários

que, como Valderez, já tinham registro de nascimento, mas buscavam o ônibus da Praça

Onze como solução para essa busca pelo fio da vida, pela recuperação da trajetória

familiar. Falarei deles ao longo dos outros capítulos. Uso aqui a trajetória de Valderez

como representativa dessa busca pelo registro de nascimento, que é também a busca pela

47

própria história. O documento, mais do que nunca, surge como rastro para recuperação

da trajetória familiar, do fio de sua vida, e definidor de sua identidade.

48

Capítulo 2.

A síndrome do balcão e a chegada ao ônibus

2.1. A cartela de carimbos

Corria dezembro de 2014 quando cheguei ao Comitê de Erradicação do Sub-

registro de São João de Meriti, município na Baixada Fluminense. À época, eu era

repórter do jornal O GLOBO e escrevia uma série de reportagens sobre pessoas sem

documento, tema que acompanhava desde 2002 (DA ESCÓSSIA, 2014, 2014b). A

coordenadora do comitê, assistente social concursada do município, concordara em me

atender por sugestão da juíza Esther. Fora esta juíza que, em novembro daquele ano, me

convidara para conhecer o ônibus da Praça Onze, quando conversamos sobre meu

interesse na temática das pessoas sem documento.

Em São João de Meriti, a coordenadora do Comitê de Erradicação do Sub-registro

do município me relatou que o mesmo fora criado em março daquele ano. Era um dos

nove comitês existentes até então no Estado do Rio, como parte da política nacional de

erradicação do sub-registro implementada no Brasil a partir de 2007. (GARRIDO e

LEONARDOS, 2017) A assistente social me descreveu o tipo de trabalho realizado no

comitê do município e apresentou-me várias pessoas que estavam sendo atendidas, cujas

histórias foram narradas na reportagem publicada no dia 11 de dezembro de 2014. (DA

ESCÓSSIA, 2014)

Naquela conversa a coordenadora do comitê usou a expressão que dá nome a este

capítulo. Disse perceber, nos relatos das pessoas que buscavam o registro, como elas

tinham percorrido vários lugares em busca do documento. Em suas palavras: “Cada vez

que alguém se dirige a um balcão do serviço público para tirar o registro de nascimento,

ouve que não é ali. Então a busca recomeça. É a síndrome do balcão”. Com esta

expressão, que incorporo a esta pesquisa como categoria nativa, a assistente social se

referia às dificuldades enfrentadas por quem buscava documentos e, especificamente, ao

modo como o funcionamento dos balcões – usados por ela como sinônimos de instâncias

estatais – atrasava a busca5.

5 Não utilizo o nome verdadeiro desta coordenadora para me ater ao princípio que utilizei desde o início

da tese, a proteção da identidade e a garantia do anonimato dos funcionários públicos. No caso dela, a

49

O senso comum costuma entender burocracia num sentido pejorativo, como atraso

e mau funcionamento do aparelho estatal. Esta pesquisa, porém, dialoga com a definição

de burocracia no âmbito das Ciências Sociais, a partir do conceito fundador de Weber

(1982). Na formulação weberiana, burocracia é uma forma de administração;

especificamente, uma das formas de que o tipo de dominação racional-legal pode tomar.

Nos Estados-nacionais modernos, essa dominação racional-legal é característica. Em

Weber, a autoridade democrática do Estado moderno tem três pilares, quais sejam, a

distribuição de atividades regulares como deveres oficiais; a distribuição estável dessa

autoridade, com uso de meios de coerção pelos funcionários do Estado; a adoção de

medidas metódicas para a realização desses deveres e dos direitos correspondentes, sendo

que apenas quem tem a qualificação prevista pode executar tais medidas. (Weber, 1982,

p.229). Assim, falar da síndrome do balcão também é percorrer os meandros da

burocracia, no sentido weberiano, que deu ao estado-sistema (Abrams, 2006) o poder de

registrar pessoas – para controle dos indivíduos e para concessão de direitos a eles.

Herzfeld (2016) reflete sobre como o edifício burocrático e seus burocratas criam

práticas, técnicas e procedimentos repetidos à exaustão, como forma de mostrar eficiência

e controle – mas que também são fundamentais na construção do que ele categoriza como

produção social da exclusão e da indiferença. Trata-se mesmo, diz o autor, de “exclusão

categorial”, amparada em classificações, procedimentos e taxonomias que permitem ao

burocrata isentar-se de responsabilidade na solução das demandas que lhe são

apresentadas. Herzfeld também cita a forma como burocratas incorporam a prática de

“passar a batata quente” (to pass the buck) adiante, numa tentativa de se eximirem da

responsabilidade por mais um adiamento de direitos. Essa produção social da indiferença

é facilmente verificável no caminho percorrido pelas pessoas sem documento até o

momento em que chegam ao ônibus, e seus relatos mostram como essa indiferença é

construída ao longo de anos. Passar a batata quente adiante é prática recorrente na

síndrome do balcão.

Esta pesquisa busca uma abordagem etnográfica do cotidiano de como a

burocracia é exercida numa instância estatal específica, a da documentação, num percurso

que permite dialogar com Ferreira (2009), Peirano (2006), Pinto (2014, 2016) e Miranda

medida é um tanto inócua, já que a reportagem está publicada e a própria coordenadora escreveu um texto

sobre o papel do poder municipal na erradicação do registro, texto que integra a bibliografia desta

pesquisa.

50

(2000). Tal abordagem se dá a partir de alguns eixos, quais sejam: a reconstituição de

como os usuários do ônibus relataram suas formas de enfrentamento das práticas

burocráticas do Estado-sistema, no que a assistente social denominou de síndrome do

balcão; as representações que eles expressam deste estado, no sentido de estado-ideia de

que fala Abrams (2006); o acompanhamento do atendimento desses usuários no ônibus,

permitindo analisar de que forma uma representação do Estado-sistema se configura, para

esses usuários, na ideia de um Estado que, depois de empurrar um problema durante anos

com a síndrome do balcão, irá finalmente apresentar alguma proposta de solução. É o

que Peirano chama de o “Estado em ação”. (PEIRANO, 2002)

Como já explicado na introdução desta tese, os cartórios de RCPN (Registros

Civis de Pessoas Naturais) recebem do Estado a concessão que os torna responsáveis por

lançar em seus livros ocorrências de nascimentos e mortes, emitindo a partir daquele

registro uma certidão – de nascimento ou de óbito (MAKRAKIS, 2000). Assim, o cartório

é o primeiro balcão procurado por quem deseja um registro de nascimento tardio, emitido

fora do prazo. Quando se trata de um adulto, é preciso que seja feita uma busca para saber

se aquela pessoa ainda não foi registrada, evitando duplicidade, e também para saber se a

pessoa não está apenas querendo mudar de nome por algum motivo – fugir de dívidas ou

acusações criminais, por exemplo, na concretização da documentação como instância de

controle, na perspectiva de Foucault (2015).

Durante o trabalho de campo para esta pesquisa, relatos de funcionários do ônibus

da Praça Onze ajudaram a consolidar a reflexão sobre a síndrome do balcão e permitiram

analisar de que modo a vida daquelas pessoas foi afetada. Destaco, entre eles, o relato da

juíza coordenadora do serviço de sub-registro da Justiça Itinerante, que identificarei

apenas como Dra. Sylvia. Em entrevista concedida a mim no dia 10 de março de 2017,

Dra. Sylvia contou como, há mais de 15 anos, se deparou com a temática do sub-registro

em sua rotina profissional:

“Eu estava chegando para uma audiência na Vara de Família em São

João de Meriti, quando vi no cartório da Vara um homem fora de si. Eu

disse que ele não poderia agir daquela forma e indaguei do que se

tratava. Ele tinha na mão uma folha de ofícios com vários carimbos.

Disse que não tinha registro de nascimento e tentara tirar um na minha

Vara. O cartório tinha então dado a ele uma lista de cartórios aos quais

ele deveria ir, para saber se não fora previamente registrado em nenhum

deles. Em cada cartório ele deveria obter um carimbo, uma espécie de

nada consta, dizendo que não fora registrado. Ele já estava naquela

51

busca fazia cinco anos, e não tinha nem metade da folha preenchida.”

(Dra.Sylvia)

A juíza relatou seu espanto diante da solução imposta:

“Como uma pessoa pobre vai ter tempo e dinheiro para percorrer

dezenas de cartórios em busca de um carimbo atestando que ele não

fora registrado ali? Enquanto isso, a pessoa continuava sem registro.

Aquilo me chocou muito, porque eu esperava ver tal situação no

Nordeste, não no Rio de Janeiro. Para uma pessoa conseguir um registro

tardio levava mais de dez anos.” (Dra. Sylvia)

A partir do relato da Dra. Sylvia, é possível perceber como se exigia, daquele

adulto que procurava obter sua certidão de nascimento, que ele próprio construísse, com

a busca nos cartórios, a prova de que não tinha certidão de nascimento – quando, na

verdade, se ele tivesse certidão, não precisaria fazer a busca. Sabendo que a falta de

documentação é um problema normalmente associado à pobreza e à extrema pobreza

(PACHECO, 2017), o pedido se torna mais difícil de cumprir, alongando ainda mais a

espera. A burocracia exige a comprovação de algo dentro de sua lógica, e a prova

documental seria representada, naquele caso, pelo carimbo na cartela.

Durante a pesquisa de campo no ônibus da Justiça Itinerante, numerosos usuários

me relataram, naturalmente sem usar a expressão da assistente social de São João de

Meriti, como vivenciaram a síndrome do balcão e a espera. Contaram como haviam

procurado durante meses, às vezes anos, com mais ou menos empenho, mas até ali sem

sucesso, instâncias do Estado para obter o registro de nascimento. No arcabouço do

estado-sistema (ABRAMS, 2006), haviam percorrido numerosos balcões, especialmente

de cartórios, juizados e fóruns, sem sucesso.

“Faz oito anos que tento registrar. Já fui à maternidade, e lá me disseram

que o livro (onde os nascimentos haviam sido anotados) pegou fogo.

Fui ao Conselho Tutelar, à Defensoria Pública. Lá me mandaram para

o comitê de Belford Roxo” (Jaqueline, mãe de Kamila, 22, e Raquel,

18, ambas as filhas sem documento)

“Já fui no cartório, no fórum, já me mandaram fazer busca em cartórios

não sei quantas vezes. Já faz seis anos que estou nessa busca, parece

que o Estado faz pra gente não conseguir” (Cristiane, mãe de David, 22

anos)

52

“Mandaram que eu fizesse a busca nos cartórios, não tenho condição. É

uma burocracia danada, o Estado não está nem aí pra nós” (Jefferson,

27 anos, instrutor de surfe)

“Tentei tirar o registro várias vezes, fui num canto, em outro. Fui no

cartório, no fórum, nada. É a maior burocracia. E a gente que leva a

culpa. Dá muita vergonha” (Dani, 25 anos)

“Desde que vim do Recife tento essa certidão de nascimento. É muito

tempo esperando, como é que o Estado faz isso com a gente?” (Maria

da Conceição, 54 anos)

Os relatos mostram claramente que, a partir de seus encontros com instâncias do

Estado-sistema, esses usuários constroem uma ideia particular de Estado: aquele que, de

balcão em balcão, alonga a espera de quem busca documentos e atrasa a obtenção de

direitos aos quais o documento garante acesso. Não são só eles que são ilegíveis para o

Estado; no caminho inverso, o Estado também se torna ilegíveis para eles, um ente opaco,

pouco compreensível e inacessível. Reis (1990), em estudo sobre cartas enviadas por

brasileiros no final dos anos 1970 ao então ministro da Desburocratização, recupera,

nesses relatos, como o cidadão se diz oprimido por uma sucessão de exigências.

“O que elas relatam são normalmente situações em que normas e

exigências irracionais, burocratas desinteressados, falta de recursos

financeiros ou simplesmente ineficiência administrativa as impedem de

ter acesso a direitos legalmente adquiridos.” (Reis, 1990, p.164)

Na análise das cartas, Reis alerta para alguns pontos que podem dialogar com esta

pesquisa, como o fato de que, para quem relata, dramatizar o problema vivido pode ser

uma forma de tocar o destinatário – e o valor estratégico da carta é justamente agregar

pessoalidade em meio a um arcabouço burocrático e impessoal. A autora aponta ainda

nas cartas características que ajudam na compreensão deste objeto, desde o mito da boa

autoridade (que demonstra interesse em resolver o problema que lhe é apresentado) até a

ideia de que direitos são vistos como favores, o que torna a obtenção desses direitos alvo

da gratidão dos missivistas.

Como nas cartas ao ministro, as pessoas que procuram o ônibus também se sentem

oprimidas por essas exigências da burocracia de um Estado que se configura diante deles

como ilegível. Comumente, elas utilizam o termo burocracia no sentido pejorativo que o

53

termo tem no senso comum – como sinônimo de exigências excessivas e por vezes

descabidas feitas pelas instâncias do estado-sistema, exigências essas que atrasam a busca

de direitos.

Muitas vezes, Clara, técnica do ônibus, me repassava relatos dos usuários sobre

exigências e erros dos cartórios. Um erro comum era a pessoa receber apenas o papel _a

certidão de nascimento – sem o respectivo registro nos livros cartorários. Com isso,

aquele documento dos cartórios, aparentemente perfeito, não tinha de fato lastro civil, ou

seja, a pessoa nunca fora propriamente registrada. A nulidade do documento só vinha à

tona quando seu dono precisava de uma segunda via – e aí descobria que nunca houvera

uma primeira via. Uma das principais responsáveis pelo atendimento no ônibus, dona de

uma visão peculiar da forma como as questões eram resolvidas nos cartórios, me

explicava:

“Diziam para eles (os usuários) que tinha sido um erro, um equívoco do

cartório. Diante de tantos erros, aqui brincamos que esse tal de

Equívoco trabalha em vários cartórios.” (Entrevista concedida a mim

no dia 31 de março de 2017)

Nesse sentido, esta pesquisa dialoga com o estudo de Ayuero (2011) sobre o

atendimento de pessoas inscritas em programas sociais da Prefeitura de Buenos Aires e

sobre como essas pessoas eram submetidas à espera. Para Ayuero, as experiências dessas

pessoas são conduzidas de modo a persuadi-las de que precisam esperar indefinidamente,

sem reclamar, para obter acesso ao programa. Seu trabalho indaga que efeitos a espera

longa e forçada produz naqueles que esperam e, especificamente, como a espera produz

os efeitos subjetivos de dependência e subordinação. “Como a espera objetiva se torna

submissão subjetiva?”, indaga. (AYUERO, 2011, p.8, tradução minha). De acordo com

os relatos dos usuários do ônibus, o mesmo processo de transformar a espera objetiva em

submissão subjetiva acontece nestes anos em que eles percorreram variados balcões em

busca de documentos. A síndrome do balcão não apenas atrasa a obtenção de direitos:

também fortalece nas pessoas sem documentos a submissão a um estado-sistema

onipotente diante delas e a ideia de passividade na busca por direitos.

A espera, diz Bourdieu, “é uma das maneiras privilegiadas de experimentar o

poder e o vínculo entre o tempo e o poder” (BOURDIEU, 2001, p.279). Fazer alguém

esperar, portanto, é um exercício de dominação que implica a submissão daquele que

espera. No caso das pessoas sem documento, a síndrome do balcão é construtora de uma

54

espera submissa – que pode chegar ao ponto final quando o usuário recebe seu documento

no ônibus, ou não, como mostraremos em capítulo posterior. Novamente se consolida a

ideia de uma cidadania diferenciada, “universalmente includente na afiliação e

maciçamente desigual na distribuição de seus direitos” (HOLSTON, 2013, p.258). De

que modo um direito universal se transforma num direito desigualmente distribuído? Para

os brasileiros que procuram o ônibus para obter a certidão de nascimento, a cidadania

diferenciada se reflete na ausência de vários direitos e na dificuldade de pessoas que, na

busca desses direitos, esbarram na síndrome do balcão, que as obriga a esperar anos.

Pude observar que os anos durante os quais esses brasileiros vivenciam a síndrome do

balcão fazem com que eles se acostumem, na busca pela documentação, a um tipo

peculiar de convívio com a ideia de cidadania: uma cidadania que percebe o Estado como

uma sucessão de balcões, paralisada e paralisante, e que não soluciona o problema a ele

apresentado. Acima de tudo, uma cidadania forjada numa espera que aponta para a

submissão.

2.2. “Quem é seu responsável?”: a cidadania mediada

Os relatos dos usuários do ônibus refletem ainda sua incapacidade de cumprir as

exigências que lhe são apresentadas pelos cartórios ou por outros balcões – característica

já observada por Pacheco (2017). Segundo a autora, pessoas sem registro de nascimento,

por sua condição financeira, não conseguem pagar advogado e se sentem incapazes de

acompanhar um processo judicial por não conseguirem acompanhar as determinações do

juiz sem que haja assistência de algum conhecido ou familiar. Durante todo o trabalho de

campo pude observar, nas pessoas sem documento, a necessidade de auxílio para cumprir

o que era pedido, seja pela condição financeira, seja pela baixa escolaridade, que

dificultava o entendimento deles diante das solicitações judiciais. Muitas tinham

dificuldade em fornecer nomes, dados, datas, ou de relatar a própria trajetória numa linha

organizada.

Constatei também a presença constante de mediadores, pessoas que, por motivos

pessoais, como amizade e parentesco, ou função profissional, ajudavam as pessoas que

buscavam seus documentos. Os mediadores são tão comuns que, nas audiências, é comum

que os juízes perguntem, mesmo a adultos, questões como: “Quem é seu responsável?”

ou “Quem trouxe o senhor?” Responder a essas perguntas é mais um passo para

55

reconstituir o caminho desses adultos sem documento até o ônibus da Praça Onze. A juíza

Esther, em entrevista concedida a mim no dia 28 de julho de 2017, referiu-se a esses

mediadores como tutores sociais, expressão que se impõe como categoria nativa que

passo a incorporar. Esses tutores indicam ao adulto sem documento como funciona o

serviço de documentação no ônibus da Praça Onze e tomam para si a responsabilidade de

acompanhar aquele caso. Ainda de acordo com o relato da juíza, a importância do tutor

social cresce ainda mais diante de observação de que, para aquelas pessoas em situação

de pobreza ou extrema pobreza, uma exigência que parece simples para alguém

documentado – trazer a segunda via de um documento – se transforma numa tarefa maior

que eles.

Ao longo do trabalho de campo, observei dois grupos principais de tutores

sociais: um que transita pela esfera privada do usuário e o que transita pela esfera pública,

ligada a representações do Estado-sistema (Abrams, 2006). Na esfera pública, destaco

alguns desses mediadores: os comitês de acesso à documentação criados nos municípios

e uma série de órgãos públicos, como a Defensoria Pública, as Secretarias de Assistência

Social do Rio e de municípios vizinhos, além de ONGs. Pude constatar que a maior parte

dos usuários vem encaminhada pelos comitês municipais de acesso à documentação e

pela Defensoria Pública, e é neles que passo a me deter agora.

Durante o período da pesquisa de campo, obtive informações sobre o trabalho dos

comitês de acesso à documentação dos municípios de São João de Meriti e Belford Roxo,

ambos na Baixada Fluminense, e surgidos no âmbito da política nacional de acesso à

documentação. Antes deles, porém, é necessário relembrar a criação do Comitê Gestor

Estadual de Políticas de Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento e Ampliação

do Acesso à Documentação Brasileiro, daqui por diante chamado apenas de Comitê

Estadual. Segundo Brasileiro (2017), o Comitê Estadual foi instituído pelo decreto

43.067, de julho de 2011, e seus membros, empossado um ano depois. É coordenado pela

Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos e composto por

representantes de vários órgãos estaduais e da sociedade civil6. Em texto de avaliação

sobre a atuação do Comitê, Brasileiro relata (2017) o plano de trabalho a partir de quatro

6 Compõem o Comitê Estadual as secretarias estaduais de Educação, Saúde, Fazenda, Segurança,

Administração Penitenciária, Planejamento e Casa Civil, além do Tribunal de Justiça, do Ministério Público

e da Defensoria Pública. Pela sociedade civil, participam as seguintes instituições: Associação dos

Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-RJ), Associação dos Notários e Registradores (Anoreg-RJ),

56

estratégias, assim definidas pela autora: “secar o chão”, ou seja, providenciar a

documentação de pessoas que nunca haviam sido registradas ou que precisavam da

segunda via da certidão de nascimento; “fechar a torneira”, que seria a construção de

estratégias permanentes para universalizar o registro de nascimento; “organização

interna”, a própria estruturação do comitê; e capacitação, divulgação e produção de

materiais. (BRASILEIRO, 2017, p.54)

Brasileiro relata também como o Comitê Estadual estimulou a criação dos comitês

municipais, a partir de encontros e visitas aos 30 municípios fluminenses com maiores

índices de crianças sem registro de nascimento. Em 2017, havia, segundo a autora, 13

comitês municipais instalados, sendo que cinco ficavam em cidades definidas pelo

governo federal como prioritárias. (BRASILEIRO, 2017, p.55) Vale ressaltar aqui dois

pontos: o fato de as prioridades serem apontadas com base nos dados do Censo de 2010,

já citados aqui, e que apontavam a existência de aproximadamente 600 mil crianças sem

registro no Brasil; e o fato de não haver dados disponíveis sobre adultos, tema desta

pesquisa. O trabalho dos comitês municipais, analisa Brasileiro, foi fundamental para a

descentralização do projeto de acesso à documentação. Os comitês se encarregaram do

trabalho de busca ativa, tentando identificar naquele município crianças e adultos sem

documentação; também realizavam mutirões, com a ajuda da Justiça, para emissão de

documentos. Brasileiro não deixada de perceber que a atuação desses comitês era muitas

vezes atravessada pelas questões partidárias locais.

“Os comitês municipais de sub-registro têm sua construção e

funcionamento altamente permeados pela política partidária local.

Muitas vezes, o clientelismo e a luta por terrenos eleitorais se

sobrepuseram ao trabalho, retardando ou apressando a posse de

membros de determinado comitê. Alguns mutirões de emissão de

documentos realizados por comitês também foram atravessados por

essa dinâmica, seja na escolha do bairro a ser contemplado, seja nas

datas dos eventos ou na definição de parceiros.” (BRASILEIRO, 2017,

p.58)

A atuação dos comitês não é o foco desta pesquisa. O resultado do trabalho dos

comitês aparece, porém, como um dos caminhos pelos quais pessoas adultas sem

documento chegavam ao ônibus em busca de seu registro de nascimento. Esses órgãos

Conselho Regional de Serviço Social, Organização Cultural Remanescentes Tia Ciata, Instituto Nelson

Mandela e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação. O Unicef (Fundo das Nações Unidas

para a Infância) participa como convidado. (BRASILEIRO, 2017; MARINHO, 2017)

57

foram alguns dos balcões procurados pelos usuários ao longo de sua busca e, pelo relato

desses usuários, quando a resposta obtida foi além do “esse problema não é com a gente”,

os comitês se tornaram fundamentais no encaminhamento dos usuários até o ônibus.

Durante a pesquisa de campo, entrevistei vários usuários levados até o centro do

Rio pelo comitê de São João de Meriti, aquele cuja funcionária falou da síndrome do

balcão. Os usuários seguiam até a Praça Onze em ônibus ou vans e recebiam lanche. No

dia 11 de novembro de 2016, Liliane desceu do ônibus pago pela prefeitura de São João

de Meriti, atravessou o pátio com quatro filhos de seus seis filhos e subiu no ônibus da

Justiça Itinerante para a audiência. Liliane era o que a assistente social do município

classificou como um caso de “extrema vulnerabilidade”. Só sabia informar seu prenome,

não tinha pais vivos nem contato com os irmãos. Analfabeta, não sabia a própria idade

nem a data de nascimento. Na audiência com a juíza e o promotor, mal conseguia falar e

parecia não entender o que lhe era perguntado. Não tinha, segundo seus filhos, nenhuma

deficiência de cognição ou entendimento; apenas não compreendia o vocabulário, os

personagens, as questões feitas. Liliane não tinha trabalho fixo e ganhava alguns trocados

capinando quintais no bairro. Os filhos também sobreviviam de pequenos trabalhos, bicos

em construção civil. Só o mais velho, Henrique, fora registrado pelo pai, sem o nome de

Liliane na certidão de nascimento.

Nas anotações que fiz sobre essa audiência, registrei o momento em que acabei

interferindo na identificação de Liliane. A juíza, o promotor e a defensora pública

precisavam saber algum dado aproximado sobre a idade de Liliane, mas ela nada sabia

dizer. Não fazia ideia de quantos anos tinha, o que criava uma dificuldade para que fossem

feitas buscas nos cartórios da região onde ela dizia ter nascido, a fim de confirmar se ela

não fora mesmo registrada. Sugeri que lhe perguntassem com quantos anos ficara grávida.

Catorze, ela me respondeu. Entendera perfeitamente. Como Henrique, o primogênito de

Liliane, tinha 31 anos, segundo seu registro de nascimento, inferia-se que Liliane tria

aproximadamente 45 anos, a minha idade à época. Por mais de uma vez minha observação

participante se tornou, de fato, participação observante, e registro a entrevista de Liliane

como um desses momentos. Mesmo sem data exata, Liliane foi registrada com data de

nascimento arbitrariamente estipulada em 1º de janeiro do ano calculado como tendo sido

o de seu nascimento.

58

Outro comitê que levava muitos usuários ao ônibus da Praça Onze era o de Belford

Roxo, ligado à Fundação de Desenvolvimento Social de Belford Roxo (Funbel) e à

Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do município. O serviço municipal

providenciava transporte e lanche para os usuários, e o transporte permanecia na Praça

Onze até o fim do atendimento, para levar as pessoas de volta à Baixada. Foi este comitê

que, procurado por Valderez, em caso relatado em capítulo anterior, localizou a primeira

via de sua certidão de nascimento. De posse dos nomes dos pais de Valderez, o comitê

buscou nos bancos de dados do Detran outras pessoas registradas como filhas do mesmo

casal. Esse trabalho permitiu que Valderez reencontrasse uma irmã de quem se separara

havia 21 anos.

Para proteger meus interlocutores, não identificarei os funcionários dos comitês

nem os municípios para os quais eles trabalhavam. Depois da eleição para prefeito em

2016, alguns mencionaram o risco de que o trabalho fosse suspenso com a mudança do

grupo político que controlava a administração municipal. “A gente não sabe se o trabalho

vai continuar”, me confidenciavam, e eu me lembrava da análise de Brasileiro (2017)

sobre a influência político-partidária local nos comitês. Um funcionário de um desses

comitês, que chamarei de João, disse que muitos candidatos a vereador os procuravam

com o objetivo de descobrir se os comitês também emitiam títulos. Outros tentavam obter

endereços das pessoas sem documentação, para tentar capitalizar como sendo deles o

resultado da obtenção da certidão de nascimento. “Mas quando eles veem a dificuldade

que é para registrar um adulto já vão logo embora. Candidato quer alguém com título, e

rápido, a tempo de votar neles”, resumiu João. Deixo registrada uma cena que presenciei

em 17 de fevereiro de 2017: um candidato a vereador num município da Baixada

Fluminense, agora coordenador de projetos de cidadania da prefeitura e do comitê, tirava

fotos com os usuários que saíam do ônibus com a certidão de nascimento. Os usuários,

por sua vez, agradeciam a ele o sucesso na busca pelo documento – num entendimento

que transforma o direito em favor concedido por uma autoridade benevolente, e que se

repetiu muitas e muitas vezes no ônibus.

Em 9 de setembro de 2016, assisti à entrevista realizada pela assistente social do

ônibus com Elizabeth, uma mulher que vivia no Jardim Nossa Senhora das Graças e

queria a segunda via de sua certidão de nascimento. Para uma pessoa documentada e com

algum recurso financeiro, moradora de uma zona urbana, tirar a segunda via de uma

certidão de nascimento é simples: vai-se ao cartório e paga-se pela segunda via, que sai

59

naquele mesmo dia. Elizabeth, porém, sofria para obter o que os especialistas do ônibus

chamavam de “segunda via inacessível”. Ela fora registrada na Paraíba quando criança,

mas nunca tirara os outros documentos. Quando perdeu a via original da certidão de

nascimento, tornou-se invisível como alguém que nunca tivesse sido registrado. Não tinha

dinheiro para ir à Paraíba. Quando, num cartório, solicitava a segunda via, diziam-lhe que

só o estabelecimento onde fora registrada podia emitir a segunda via. A segunda via

inacessível não é tema desta pesquisa, mas abordo esse caso pela dificuldade que a

emissão de uma segunda via traz ao cidadão que pena pelos balcões e, principalmente,

pela forma como Elizabeth chegou até o ônibus da Praça Onze.

A seu lado estava uma mulher identificada pela própria Elizabeth como “assistente

social de candidato”. A assistente social não me deu seu nome nem de que município

vinha, o que constrangeu Elizabeth dali por diante e dificultou nossa conversa. Pelo que

pude entender, Elizabeth, embora não tivesse título de eleitor, poderia conseguir votos

para aquele candidato em sua região. Ao observar, no trabalho de campo, tanto o resultado

do trabalho dos comitês como a atuação de cabos eleitorais, esta pesquisa dialoga com a

análise de Kuschnir (2000) sobre as relações que uma vereadora do subúrbio do Rio de

Janeiro constrói com seu eleitorado a partir de uma atuação contínua que a própria

vereadora caracteriza como “atendimento” – oferta de serviços médicos,

encaminhamento de demandas ao poder públicos, busca de empregos, vagas de escola e

solução de problemas cotidianos. Para Marta e seu grupo, relata a autora, o vereador tem

que fazer este tipo de “atendimento”, e Kuschnir (2000) explica o motivo: o entendimento

de que a política é um meio para que o cidadão comum tenha acesso a direitos, ou seja,

as pessoas “ajudam” o vereador votando nele e esperam ser recompensadas com tais

acessos.

Do mesmo modo, a assistente social do candidato fala de seu trabalho como uma

forma de ajudar Elizabeth a obter acesso à documentação, assim como o candidato a

vereador transformado em secretário diz entender que seu trabalho é uma forma de

garantir direitos. Muitas vezes perguntei aos usuários levados no ônibus das prefeituras

se a eles era pedida alguma forma de compromisso eleitoral, na linha “vamos ajudar você

a obter documento e você vota conosco”. Nunca ouvi uma resposta explícita, talvez pelo

fato de o título de eleitor, para quem não tem registro de nascimento, ser uma perspectiva

ainda longínqua: antes do título é preciso ter o registro de identidade. Kuschnir (2000)

dialoga com as reflexões de Mauss (1988) sobre a dádiva para entender a lógica de

60

atendimento realizada pela vereadora como um sistema de distribuição de favores a fim

de manter a autoridade. Do mesmo modo, o candidato a vereador que controla o comitê

municipal, assim como a assistente social de candidato, acionam a mesma lógica de

oferecer serviços e dar acesso a direitos – em tese, universais, mas, na prática,

diferenciados, como lembra Holston (2013) – como forma de operar politicamente na

comunidade. São mediadores dos acessos da população a benefícios e serviços públicos.

Órgãos públicos, como a Defensoria Pública e as Secretarias Municipais de

Assistência Social, têm papel fundamental no encaminhamento de usuários ao ônibus da

Praça Onze. Também são balcões procurados por quem precisa obter o registro de

nascimento. No entanto, nem uma nem outras têm condição de, sozinhas, fornecer o

primeiro registro de nascimento a um adulto jamais registrado. Como aprofundaremos

em capítulo a seguir, esse poder é exclusivo da Justiça – o que acaba fazendo com que

Defensorias, Secretarias e órgãos públicos não consigam solucionar a demanda de quem

os procura com este fim. Uma solução possível para não prolongar o balcão é encaminhar

as pessoas a serviços judiciais capazes de tomar a decisão final sobre o registro – como o

ônibus da Praça Onze.

2.3. “Mulher não precisa de registro”: as tutoras em ação

Ao longo da pesquisa de campo, pude observar ainda o fato de que adultos sem

documento, além do encaminhamento de um órgão público, muitas vezes precisavam de

um acompanhante que, do mesmo modo, funcionava como um responsável, um tutor

social, mas oriundo de suas relações pessoais. Uso aqui a expressão tutor social como

uma categoria nativa, tal como me foi dita por uma juíza que atua no ônibus, mas é preciso

esclarecer que esse tipo de tutoria não tem relação com a curatela formal, que dá ao

curador amplos poderes sobre aquele por quem é responsável. Aqui, trata-se de uma

tutoria informal, que pode – no caso dos filhos menores ou presos – se transformar em

curatela formal. Nesse grupo de tutores sociais, destacam-se ascendentes e descendentes

diretos (pais, mães, filhos, filhas, netos, netas, avós, irmãos) ou próximos, com primos,

além dos amigos e vizinhos. Esses mediadores do círculo privado são fundamentais na

busca pela documentação. São eles que, sozinhos ou por indicação de outras instâncias

da esfera pública, descobrem o serviço do ônibus, levam a pessoa sem documento até o

local, ajudam com o dinheiro do transporte, fazem companhia em novas diligências

61

solicitadas e, muitas vezes, assumem a responsabilidade de fazer com que o usuário volte

ao ônibus.

Não previ fazer nesta pesquisa um recorte de gênero, mas o leitor perceberá a

predominância feminina entre as pessoas entrevistadas, e o gênero acabou se impondo

como categoria que auxilia a pensar a questão da ausência de documentação. Nesse

sentido, a sociologia brasileira tem, na discussão sobre gênero e trabalho, percurso de

mais de meio século, desde as primeiras pesquisas de Blay (1978), passando por Lavinas

(1992) e Sorj (1999), às quais foram sendo agregados instrumentos analíticos para a

compreensão de especificidades de etnia e posição na família. Os estudos de care (Hirata,

2015; Hirata e Kergoat, 2007; Hochschild, 2004) mostram como relações sociais e

familiares reproduzem desigualdades de gênero, permitindo analisar de que forma

mulheres em condições precárias atuam cotidianamente na vida de pessoas em situação

de vulnerabilidade e dependência. No Brasil, políticas públicas como o Bolsa Família e o

Benefício de Prestação Continuada têm focalizado esse papel da mulher como decisivo

em seu núcleo familiar e social (REGO, PINZANI, 2014; Marins, 2014), bem como na

administração dos recursos financeiros advindos desses programas; estudos recentes na

área do care interpretam a dimensão feminina do papel das cuidadoras, profissionalizadas

ou não. Tais análises mostram como essas mulheres atuam nas esferas pública e privada,

reconfigurando relações e atuando de modo decisivo para que as pessoas assistidas

superem ou pelo menos confrontem a situação de vulnerabilidade e dependência.

(GEORGES, SANTOS, 2014)

Thurler (2009) e Brasileiro (1998), ao estudar o sub-registro infantil, destacam o

papel das mulheres e alertam para um ponto basal na formação do sub-registro: a recusa

ou o desinteresse paterno por registrar a criança. Em diálogo com esses estudos, pude

observar esse mesmo tipo de ausência paterna como fator decisivo para o sub-registro de

adultos que chegavam ao ônibus em busca da certidão de nascimento. Do mesmo modo,

era comum que mulheres, muitas sem documento, fossem as responsáveis por toda a

família, em consonância com estudos na área. A partir dados do IBGE, Cavenaghi e Alves

(2018) mostram que, de 2001 a 2015, o número de famílias chefiadas por mulheres

dobrou em termos absolutos, aumentando em 105% em 15 anos, passando de 14,1

milhões em 2001 para 28,9 milhões em 2015. No mesmo período, o número total de

famílias no país aumentou 39%, e o de famílias chefiadas por homens, apenas 13%.

62

No ônibus, eram mulheres que assumiam a responsabilidade por buscar

documentos para pessoas próximas, consolidando a ideia da mulher a quem é socialmente

atribuído o papel pelos diversos cuidados com a família. No papel de tutoras sociais,

mães, avós, filhas, irmãs, tias, madrinhas, amigas e vizinhas tomam para si a tarefa de

buscar o documento de uma pessoa de sua convivência.

Quando conheci Fátima, no dia 30 de setembro de 2016, ela era a responsável por

um domicílio no qual viviam três gerações de mulheres sem documento: a própria Fátima,

as filhas Monique e Fernanda e as filhas das duas. De família muito pobre, vinda de

Minas, Fátima contou que sua mãe perdeu os documentos numa enchente e nunca

conseguiu voltar à terra natal para conseguir uma segunda via. Segundo Fátima, seu pai

morreu quando ela era criança. Sem documentos, não conseguiu registrar as filhas.

Moradora da comunidade Gardênia Azul, na região de Jacarepaguá, zona oeste do

Rio, Fátima chegou ao ônibus por intermédio do Conselho Tutelar de sua região. Contou

ter procurado a Fundação Leão XIII7, órgão do governo do Rio de Janeiro que atua na

área de assistência social. Lá recebeu um papel que entendeu ser uma certidão de

nascimento, mas era, na verdade, um pedido de isenção – uma requisição para que ela

pudesse dar seguimento, sem custos, ao processo de documentação. A história de vida de

Fátima expõe ainda um problema relatado por vários usuários do ônibus: eles procuraram

a Fundação Leão XIII e lá obtiveram um papel que em tudo parecia uma certidão de

nascimento. No entanto, quando, de posse desse papel, foram tentar tirar a identidade,

souberam que ele não tinha validade legal. Idealizado menos como fraude e mais como

uma forma de não deixar sem identificação quem chegava ao balcão da Leão XIII, aquela

certidão era muito aceita em escolas e estabelecimentos hospitalares do Rio. Cumpria um

papel de facilitar o acesso imediato de seu portador a alguns direitos. Não tinha, porém,

valor legal nem permitia a emissão de novos documentos com base em suas informações

– e, quando o portador percebia isso, sentia-se logrado. Em suas palavras:

“Eu me sinto como um nada. A gente sem documento não existe, é uma

vida assim de improviso. Pensei que esse papel tinha valor, agora dizem

que não tem. O Estado nunca deixa você ter as coisas se você não provar

que você é você mesmo”. (Fátima, 57 anos)

7 A Fundação Leão XIII é vinculada à Secretaria de Vice Governadoria do Estado do Rio. Atua na assistência

social aos grupos populacionais de baixa renda, principalmente em favelas, conjuntos habitacionais e áreas periféricas.

Costuma atuar em mutirões de ação social, ao lado de outros órgãos, para facilitar o acesso a documentos. Não tem,

porém, poder de emissão de certidões de nascimento.

63

Ao mesmo tempo em que formaliza a sua ideia de si como alguém sem

documentos (“um nada”, “uma vida de improviso”), já abordada em capítulo anterior,

Fátima expõe sua ideia de Estado (que “nunca deixa você ter as coisas”) e expressa a

dificuldade que lhe é imposta (“se você não provar que você é você mesmo”), tema do

capítulo seguinte desta pesquisa.

Cristiane, Rita e Fátima, assim como outras mulheres que entrevistei ao longo da

pesquisa de campo permitem afirmar que, na busca pela documentação, mulheres são as

protagonistas, ainda que, ao longo da vida, tenham sido continuamente alvo da negação

de direitos. Suas trajetórias são marcadas pela pobreza, mas também pela exclusão de

gênero, como emprego precário, violência doméstica, salários menores e acesso

diferenciado a direitos, apenas por serem mulheres. Nesse aspecto é explícito o relato de

Monique, de 31 anos, que entrevistei em 26 de maio de 2017. Negra, analfabeta, moradora

de Duque de Caxias, Monique queria a certidão de nascimento o documento para tentar

um emprego com carteira assinada. Contou-me que seu pai e sua mãe tinham documentos,

mas nunca a registraram. Perguntei o motivo:

“Meu pai e minha mãe tiveram três homens e cinco mulheres. Mas meu

pai só registrou os homens. Dizia sempre, me lembro bem: Mulher não

precisa de registro” (Monique, 31 anos)

“Mulher não precisa de registro”. Guardei a frase e a trajetória de Monique entre

minhas anotações, para me lembrar de refletir sobre ela cada vez que encontrava uma

mãe, uma avó, uma irmã, uma vizinha, como protagonista dessa busca de um lugar de

legibilidade e de justiça. Dados do relatório “Leaving No One Behind: CRVS, Gender

and the SDGs”, elaborado pela organização internacional não-governamental Centre of

Excellence for CRVS (Civil Registration and Vital Statistics) Systems (2018), mostram

que, em termos globais, o acesso ao conjunto da documentação é marcado por diferenças

de gênero, sendo mais difícil para as mulheres. Não há um gap significativo quando se

trata da certidão de nascimento, mas a diferença vai aumentando no acesso a outros

documentos, como a carteira de identidade.

Das (2011) e Vianna e Farias (2011) alertam que, num Estado-ideia de

configuração eminentemente masculina, em que as relações de gênero se apresentam

cotidianamente, configura-se como feminina a construção de uma insurgência que dá voz

64

à dor e expõe danos. Em estudo sobre mães de pessoas mortas pela polícia no Rio de

Janeiro, Vianna e Farias mostram como essa dimensão do feminino se apresenta:

“As ‘mães’ tornadas protagonistas políticas, capazes de englobar

simbolicamente todos os outros ativistas do mesmo movimento, sejam

familiares ou não de vítimas, homens e mulheres, falam, assim, de uma

insurgência política definida em estreitas conexões com as construções

– sempre em processo – de gênero” (VIANNA, FARIAS, 2011, p.93)

Do mesmo modo, no ônibus, o protagonismo feminino era explícito, num trabalho

social de resiliência e testemunho, mas também de cobrança por direitos. A pesquisa de

campo foi revelando outras tutoras sociais dos homens de suas famílias. Quando mães

faltam, filhas, irmãs e avós assumem a responsabilidade. Maria Cristina levou o pai,

Severino, caseiro de um sítio em Magé. Aos 75 anos, ele vivia sem documentos. Natural

da Paraíba, acreditava, sem certeza, ter sido registrado pelos pais em algum cartório da

região de Campina Grande. Severino gostava de contar, sempre mostrando as mãos muito

marcadas, que sempre trabalhou na roça. Veio da Paraíba para o Rio ainda jovem, com

os pais, mas não se lembrava de algum dia ter usado ou apresentado um documento. Em

Magé, era caseiro do mesmo sítio havia 32 anos, 28 com o mesmo patrão. Não registrou

os filhos, que, adultos, registrados apenas com o nome da mãe. Agora já entrado na idade,

precisava do registro de nascimento para tentar se aposentar. Queria também a carteira de

trabalho – “esse aí é que é documento”, dizia.

Sua filha, Maria Cristina, contou que, ao saber que ela ia procurar organizar a

documentação do pai, o patrão dele perguntou: “Você quer me complicar, né?” A

complicação apontada pelo patrão, relatou Maria Cristina, era a possibilidade de que,

documentado, Severino movesse uma ação judicial cobrando direitos trabalhistas. A

história de vida de Severino é exemplar da reflexão sobre a cidadania diferenciada de que

fala Holston (2009): em tese, universal, na prática, restrita.

Em outro caso que me marcou muito, foi o abandono materno fez Isabelle assumir

a responsabilidade por Paulo, seu irmão por parte de mãe. Entrevistei os dois no ônibus,

em 17 de fevereiro de 2017, quando esperavam na fila de atendimento. Quando crianças,

os dois irmãos foram deixados com uma tia. A mãe era dependente química e passava

longos períodos desaparecida, segundo o relato feito a mim por Isabelle:

“O que a gente soube é que a nossa mãe tinha uma vida errada.

Que fugiu do hospital com o Paulo pequenininho. Ela ia e vinha.

65

Deixava a gente com alguém e ia pra rua. Ela está viva, mas pra

vir aqui no ônibus vai ser fogo, a gente nem tem contato com ela.”

(Isabelle, 25 anos)

Isabelle, mais velha e já crescida, foi registrada pelo pai. O pai de Paulo, porém,

morreu quando ele era criança, e o menino cresceu sem documentação. Nunca foi à escola

e aprendeu a ler com as aulas particulares da irmã e de uma explicadora contratada pela

família. Trabalhava fazendo bicos, biscates como ajudante de obra, e entrou num grupo

de luta, na modalidade esportiva do MMA. Às vezes o grupo viajava e ele não podia ir,

porque não tinha documentos. Quando os dois irmãos chegaram ao ônibus, Paulo achava

que conseguiria resolver tudo ali naquele mesmo dia e viajar com seu grupo de luta. Seu

caso foi atendido pela Dra. Esther, a juíza que foi minha primeira interlocutora no

acompanhamento do trabalho realizado pelo ônibus, e de quem falarei em detalhes no

capítulo seguinte. Dra. Esther explicou aos irmãos que, como o pai de Paulo tinha

morrido, precisava da presença da mãe ou pelo menos da tia, de alguém que

testemunhasse. Quando entendeu que viveria mais alguns dias sem documento, caiu num

choro intenso, ali mesmo, na frente de todo mundo, sem disfarçar nem conter as lágrimas.

Quem estava perto estranhou ver aquele rapaz alto e musculoso chorando como criança.

Ele explicou:

“Podia ser mais fácil, não é? Eu já perdi tanto por não ter um

documento. Faz muito tempo que estou perdendo, minha vida vai

passando, não consigo ter carteira assinada, um emprego decente,

você não consegue ser nada na vida” (Paulo, 23 anos)

Dra. Esther conseguiu acalmá-lo marcando para dali a 15 dias uma nova

audiência. Os irmãos compareceram na data marcada e levaram a tia, pois não foi possível

localizar a mãe. Muitas vezes voltei a conversar sobre caso de Paulo com a dra.Esther,

que também guardara a cena do choro do lutador de MMA. A juíza entendia que o

abandono materno, embora dificultasse o registro, não podia impedir Paulo de ter o direito

ao documento. Em sua avaliação, é possível e preciso compreender os rearranjos

familiares decorrentes de situações como aquela, e a presença de irmãos e parentes tinha

de ser considerada. No caso de Paulo, a irmã Isabelle, que ao longo da vida assumira a

responsabilidade pelo irmão, funcionava como tutora social.

66

Destaco ainda que, frente ao Estado de configuração eminentemente masculina

verificado por Vianna e Farias (2011), o ônibus se apresenta como um ponto de inversão.

Na distribuição de tarefas, trabalho e poder, o Estado dentro do ônibus é feminino. Há

homens, há juízes, promotores e técnicos trabalhando, mas a cadeia de organização,

processamento e decisão é feminina, como o leitor poderá observar ao longo da tese. Da

triagem à emissão da certidão, passando pela busca em cartórios, pelas entrevistas e pelas

decisões judiciais, mulheres estão no centro da tomada de decisões: são técnicas, escrivãs,

assistentes sociais, defensoras públicas, promotoras e juízas a alma do trabalho do ônibus.

Outro caso que representa bem a figura da tutoria social é o de Isaías, morador

de São Gonçalo. Numa configuração rara entre as que encontrei no ônibus, marcadas pela

tutoria feminina, Isaías teve não uma tutora, mas um tutor pela vida inteira: o primo

Márcio, que nasceu na mesma época que ele. Entrevistei os dois no dia 31 de março de

2017, enquanto aguardavam atendimento ao lado da mãe de Isaías, Maria Tereza. Márcio,

que era quem falava em nome da família, resumiu a história assim: Maria Tereza teve

complicações no parto de Isaías, entrou em coma e quase morreu. O bebê não foi

registrado. Maria Tereza voltou para casa e deixou para depois o registro da criança. Mais

ou mesma época, uma irmã de Maria Tereza teve Márcio, registrado nos conformes da

lei. Os primos cresceram em casas vizinhas, Márcio registrado, Isaías sem registro. Na

hora da escola, Márcio foi aceito, e Isaías entrou de favor, porque a diretora conhecia a

família. Com o passar dos anos, a escola passou a exigir a certidão de nascimento do

menino que se tornara adolescente sem ter qualquer documentação. Isaías parou de

estudar, Márcio seguiu. Isaías, agora um adulto sem documentação, passou a viver de

pequenos trabalhos e da ajuda da mãe, pensionista do INSS depois da morte do marido.

Na escola o tempo foi passando, e o menino cresceu sem registro de nascimento.

O pai de Isaías teve câncer e, por muito tempo, Maria Tereza se ocupou dos cuidados com

o marido. Registrar o filho, agora adulto, se tornou uma tarefa quase impossível. A família

foi a vários cartórios, sem sucesso. Isaías nunca soube o dia do seu aniversário.

Comemorava junto com o primo Márcio, pois os dois haviam nascido na mesma época.

Isaías pouco falava, Márcio era conversador. Contou que sempre tentou ajudar o primo a

se registrar, mas nunca conseguiu: “São anos nessa luta”. Voltei a entrevistar Márcio no

dia 8 de agosto de 2018 e perguntei por Isaías. O tutor respondeu que ele conseguira o

registro, mas não tirara os outros documentos nem registrara a filha. “Ele é muito parado.

Estou muito ocupado esses dias, mas vou arrumar um tempo e resolver isso com ele.”

67

Durante a pesquisa de campo, pude observar a relevância da figura desse tutor

social, mãe, pai, avó, amigo, parente ou contraparente, vizinho ou mesmo um conhecido

que se dispunha a ajudar. No dizer da juíza Esther, esse tutor social na verdade ajuda a

reconfigurar a ideia de família, num vínculo construído no cotidiano e sem necessária

ligação familiar.

Por outro lado, a necessidade de um tutor social é mais um traço da frequente

dificuldade desse adulto sem documento de lidar, ao longo de tantos anos, com a

continuada negação de direitos. O sub-registro segue sendo um problema associado à

exclusão social e à cidadania diferenciada a que uma parcela da população brasileira é

submetida. A baixíssima escolaridade, a falta de dinheiro, o subemprego e a péssima

condição financeira e social, muitas vezes em condições de miséria e doença, acabam

transformando o adulto sem documento num cidadão pouco autônomo e com baixa

capacidade de inserção no mundo do trabalho. É o resultado de uma cidadania construída

na negação de direitos ou no acesso marginal a eles, e uma cidadania passiva, paciente,

forjada na síndrome do balcão, e que não tem pressa para assegurar direitos alheios.

2.4. De checkpoint a ponto de chegada: o lugar do ônibus

Cristiane, Maria, Fátima, Paulo e Rita, assim como todos os usuários do ônibus,

chegaram até lá depois de uma longa busca, marcada pela espera, pela ida a vários

cartórios – a síndrome do balcão – e pela falta de informações sobre como obter, já

adulto, o registro de nascimento. Nesse sentido, o ônibus da Justiça Itinerante pode ser

entendido como um checkpoint, uma zona de fronteira, onde receberá o documento que

o tornará legível aos olhos do Estado. Em estudo sobre os refugiados do Sri Lanka,

Jeganathan (2004, p.74) afirma que o checkpoint é um estabelecimento que integra uma

arquitetura epistemológica, na qual o posto que concede ou checa documentação é, na

verdade, um lugar de sentido, onde os usuários são escrutinados e o que eles dizem é

considerado ou não verdade – para, a partir da verdade aceita e oficializada, ser concedido

a cada usuário um documento que se tornará chave para acesso a direitos num Sri Lanka

marcado pela guerra.

Numerosos estudos (Sayad, 1998; Drotbohm, 2017; Gonzales e Chavez, 2012;

Verón, 2017) permitem refletir sobre identidade, imigração e documentação. Sayad

(1998) mostra como a ideia, a condição do imigrante, seu estatuto como tal, está

68

intimamente relacionada à sua condição social, e essa condição é associada à

invisibilidade social e como pessoa. Gonzales e Chavez (2012) analisam etapas de

separação, transição e incorporação de novas experiências de imigrantes mexicanos que

cruzam ilegalmente a fronteira americana, mostrando também como se estabelecem sem

documentação no novo país e constroem suas experiências. Verón (2017), em estudo

etnográfico sobre imigrantes indocumentados na Argentina, na França e no Canadá,

analisa a construção da fronteira como um lugar de separação e os efeitos de sentidos

expressados por quem vive na clandestinidade. Drotbohm (2017), em análise etnográfica

sobre migrantes de Cabo Verde, mostra como todo o processo de obtenção de vistos se

constrói dentro da administração burocrática estatal de forma porosa e seletiva, criando

diferenças e selecionando cidadãos que se tornem elegíveis para obter a documentação.

Além de entender as formalidades e os requerimentos, os candidatos a migrar precisam

também se submeter a julgamentos morais e os documentos necessários passam por um

processo de fetichização que os transforma em objetos do desejo. (Drotbohm, 2017)

É também profícua a linha de investigação sobre a representação discursiva de

imigrantes, com e sem documentação, nos meios de comunicação (Hernandez, 2008; Van

Dijk, 2006; Lirola, 2008, 2014, 2016). A opção desta pesquisa, porém, não é analisar o

discurso mediatizado sobre essas pessoas sem documento, mas sim, pelo aporte

etnográfico, observar a forma como essas pessoas sem documento tomam a palavra e

falam de si e de suas vidas, expressando vivências e experiências. Outra diferença é que

esta pesquisa não analisa a situação de imigrantes: seu foco são brasileiras e brasileiros

sem documento dentro de seu próprio país, em uma condição que se associa à pobreza e

às dificuldades com as instâncias estatais. Os invisíveis de que trata este trabalho não são

estrangeiros, mas brasileiras e brasileiros indocumentados em seu país, e refletir sobre tal

condição é uma das contribuições que esta investigação deseja oferecer para a formulação

de políticas públicas sobre o tema.

Apesar dessas diferenças, há diálogos possíveis na situação de imigrantes

indocumentados e brasileiros indocumentados. Como a zona de fronteira no Sri Lanka, o

ônibus da Justiça Itinerante é um checkpoint: para lá converge uma longa busca por

legibilidade e reconhecimento, e destaco nesse sentido a atitude que ouvi de todos os

funcionários do serviço quando um usuário lhes perguntava se ali era o lugar certo para

obter o documento. Em vez de “não é com a gente, você tem de procurar em outro lugar”,

a resposta era “é aqui com a gente, vamos resolver seu caso”. O conceito de burocracia

69

escapa ao sentido que lhe é atribuído pelo senso comum – e que encontra lastro na ideia

da síndrome do balcão – e se reapresenta no sentido weberiano de uma forma de

administração racional-legal, marcada pela distribuição de atividades regulares, pela

especialização de funções e pela adoção de um método de trabalho a ser seguido no intuito

de garantir direitos e deveres. Bourdieu (1996), ao sociologizar a constituição do campo

burocrático, propõe reformular a proposição de Weber segundo a qual o Estado é uma

comunidade humana que reivindica com sucesso o monopólio do uso da violência física

em determinado território. Na reformulação de Bourdieu, o Estado reivindica com

sucesso o monopólio da violência física e simbólica e se torna detentor de um metacapital

que lhe permite exercer poder sobre os outros campos. O controle dos atos de nomeação

é parte desse metacapital, numa divisão especializada de trabalhos e funções.

O ônibus tem funcionários especializados em localizar registros perdidos e

pesquisar outras formas de identificação. Pude observar e sintetizo agora, por entender

ser relevante para esta pesquisa, o passo a passo do trabalho burocrático para emissão do

registro de nascimento de um adulto. A rotina começa na triagem: quem chega procura a

funcionária responsável, dá o nome e diz o que procura. Caso não seja o registro de

nascimento e sim outro documento, a funcionária já o encaminha a outro endereço, pois

o ônibus é especializado e exclusivo para registro de nascimento. O passo seguinte é

chamar as pessoas, uma a uma, para entrevistas com as assistentes sociais ou psicólogas

do serviço, nas quais o usuário relata o que precisa, dá nome, dados, endereço e telefone

de contato. Ao fim dessa conversa, a funcionária preenche uma ficha intitulada “história

de vida”, resumindo a vida da pessoa, por que não tem documentos, se e onde estudou,

indicando os nomes e as idades de pais e irmãos. Essa ficha acabou me inspirando a adotar

também, em diálogo com a observação participante, o recurso a histórias de vida,

distribuídas ao longo da pesquisa.

Depois da entrevista, o usuário vai para a mesa da Defensoria Pública, que também

participa do trabalho no ônibus. A Defensoria Pública inicia, em nome daquela pessoa,

um processo judicial de requisição de registro tardio. Destaco a situação que se cria a

partir daqui: o fato de aquela pessoa sem documentos e até então sem identidade

legalmente reconhecida se torna titular de um processo judicial diante do

Estado que até então não havia sido capaz de reconhecê-la. E o indivíduo até então

ilegível entra com um processo para se tornar legível perante quem lhe negou acesso, por

algum motivo, ao documento. Tal equação só é possível graças a uma instância do Estado

70

– a Defensoria Pública – presente num serviço do Estado – a Justiça Itinerante. Ao mesmo

tempo, tal situação explicita e revira a tautologia classificatória observada por Herzfeld

(2016) como parte da produção social da indiferença: quem não tem documento não existe

legalmente, portanto não pode requisitar direitos. Para requisitar direitos, é preciso ter

documento. Por isso o ônibus do sub-registro é um lugar tão significativo nessa

arquitetura burocrática, porque lá quem não existe legalmente, por não ter documentos,

encontra enfim uma forma de ser legível e de buscar essa legibilidade.

Ferreira (2013), Vianna (2013) e Carrara (1984) ajudam a entender o documento

como artefato central das burocracias modernas. Ao analisar registros policiais de casos

de desaparecimento de pessoas produzidos e arquivados em delegacias do Rio de Janeiro,

Ferreira (2013) argumenta que tais papéis não são apenas informações das ocorrências,

mas sim artefatos centrais para que tais processos sejam administrados. Aqueles papéis

tanto provocam uma tomada de posição de policiais como delegam responsabilidades às

famílias dos desaparecidos, que acabam por gerir e mesmo solucionar os casos.

“Documentos são artefatos que, como toda prática burocrática, afirmam

a teleologia básica do Estado e sua autoridade quase demiúrgica sobre

atos oficiais de consagração (Herzfeld 1992; Bourdieu 1996). Sua

produção, sua circulação e seu arquivamento reproduzem tanto o

Estado-ideia quanto o Estado-sistema que, para fins de análise,

podemos distinguir como partes constitutivas do Estado moderno

(Abrams 1988). Se, por um lado são materializações de vínculos

entendidos como permanentes entre sujeitos e Estados,

performativamente fazendo desses sujeitos cidadãos, por outro,

documentos são também condições para que procedimentos, trâmites e

demandas sejam desembaraçados em diferentes aparatos de

administração pública.” (FERREIRA, 2013, p.53)

No ônibus essa centralidade do documento no arcabouço burocrático é explícita,

construída tanto na existência da documentação, como mostrou Ferreira (2013), mas

também na ausência. Na busca para obter um documento que o deixe legível, o usuário

torna-se sujeito de um outro documento, o processo, que exige por sua vez outros

documentos – mesmo que o usuário não tenha os seus. Ao ser atendido pela Justiça

Itinerante, o usuário deve fornecer aos técnicos qualquer informação e ou documento que

ajude a descobrir se ele já foi registrado, aí incluídos a declaração de nascido vivo (DNV),

declaração de batismo, documentos dos pais e dados sobre local e data de nascimento. A

71

partir daí, os técnicos do ônibus e do Sepec fazem buscas em cartórios e hospitais da

região informada pelo usuário. O Sepec é também interligado aos bancos de dados do

Detran e das polícias, e nesse banco seus técnicos obtêm, caso exista, a FAC (Folha de

Antecedentes Criminais) daquela pessoa. O objetivo dessa busca é saber se aquela pessoa

foi registrada em algum lugar – em caso positivo, será pedida uma segunda via do registro.

Em caso negativo, será preciso emitir um registro, e o processo segue. Essa busca é um

serviço burocrático altamente especializado e difícil, senão impossível, de ser realizado

pelo cidadão comum, tal como lembra a cartela de carimbos citada no início desse

capítulo. Ao final dessa busca, de tempo variável, os técnicos entram em contato com o

usuário e avisam o que descobriram. Caso não exista registro de nascimento prévio, a

pessoa é chamada para uma audiência judicial.

Nas audiências, abordadas em detalhes no capítulo seguinte, o juiz confere os

dados, ouve o usuário e testemunhas. Representantes do Ministério Público e da

Defensoria Pública são ouvidos. Ao final, caso tenha sido convencido pelo conjunto de

evidências apresentada, de que aquele usuário é quem de fato diz ser e não foi registrado

previamente, o juiz determina a emissão do registro de nascimento – feita no 3º Cartório

de Registro Civil de Pessoas Naturais, que funciona dentro do Juizado da Infância e da

Juventude, em cujo pátio o ônibus fica estacionado.

Dados obtidos por mim junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

mostram que, de 2015 a 2017, o cartório da Justiça Itinerante do Sub-Registro iniciou 893

novas ações de pessoas solicitando o registro tardio. Foram emitidas 795 certidões de

nascimento, e os demais casos continuavam em tramitação. O número não inclui pessoas

que solicitaram mudança de nome, segunda via da documentação ou reconhecimento de

paternidade. Refere-se apenas e tão somente a pessoas jamais registradas, que obtiveram

o primeiro documento oficial de suas vidas. Destaco ainda que, pelo que pude

acompanhar, a regra é que, a partir do atendimento no ônibus, a pessoa sem documento

consiga a certidão de nascimento. Não localizei, no período da pesquisa de campo,

alguém que não tenha obtido o documento. O prazo médio para a obtenção da certidão é

de dois meses, segundo o relato da dra. Esther e o que pude acompanhar no atendimento

do ônibus. Ainda segundo a juíza, no início do trabalho do ônibus, em 2014, era possível

perceber casos que ela chama de “estranhos”:

“A gente percebia sinais de uma possível fraude, principalmente em

adoção. Mulheres muito idosas dizendo que tinham acabado de ter um

72

bebê, por exemplo. Aos poucos, isso deixou de acontecer. Hoje a nossa

média para emitir uma certidão é de dois meses. Acontece às vezes de

perdermos o caso, como chamamos aqui, porque a pessoa morre. Já está

velhinha e morre. É muito triste, é uma derrota nossa, uma falha. Mais

uma” (Dra. Esther)

Ao longo desta pesquisa, tive a oportunidade de entrevistar alguns dos usuários

do ônibus mais de um ano depois de terem obtido o registro de nascimento para analisar

o significado do documento neste sentido e saber se, agora documentados e legíveis pelo

Estado (o que, em termos estritamente legais, poderia retirá-los das margens), essas

pessoas continuam vivendo em situações e condições que também são consideradas

margens do Estado. Voltarei a este tema no último capítulo.

O que destaco aqui, para encerrar esta reflexão sobre burocracia e busca, é a forma

como o ônibus se torna um lugar de acolhimento de quem passou anos buscando um

direito, um checkpoint, uma zona de fronteira na qual se emite um documento – o registro

de nascimento – que pode se transformar em chave para acesso a direitos e cidadania.

Aos poucos entendi, porém, que o ônibus também se transforma, que é também um lugar

de múltiplos sentidos. Assim, ele é escrutinador e verificador, como precisa ser um

checkpoint, mas não é apenas isso. Diferentemente da rotina de produção social da

indiferença com que aquelas pessoas se depararam durante anos, pude perceber na equipe

do ônibus tentativas de aproximação solidária com os indivíduos sem documento, e a

principal quebra na rotina de indiferença era esse acolhimento, explicitado quando

alguém perguntava se era ali que poderia tirar a certidão de nascimento e ouvia uma

resposta até então inédita: é aqui sim, é aqui com a gente. A quebra na rotina de produção

de indiferença também se dava por ações individuais dos técnicos – quando um juiz, por

exemplo, brincava com uma criança – ou quando a coordenadora do ônibus comprava

lanches para distribuir a crianças e velhos. A ação tantas vezes desumanizadora do

edifício burocrático permite espaços mínimos de empatia, mas eles existem, apesar da

demora, dos prazos e das exigências. No ônibus da Praça Onze, representação de um

microcosmo do campo burocrático no qual o Estado exerce seu poder de nomeação e

controle, a indiferença de muitos anos se transforma em acolhimento.

73

Capítulo 3

Nas audiências, as provas de vida e a vida como prova

3.1. “Vi minha mãe grávida da minha irmã”: testemunho e memória como prova da

existência

Uma das questões que perpassa esta pesquisa é o papel do documento como

elemento constitutivo da identidade, como já trataram Santos (1979), DaMatta (2002) e

Peirano (2006). Se alguém perde um documento, pode mostrar outro. Ou ir ao cartório,

ao Detran e à Polícia Federal, cumprir os trâmites previstos, pagar as taxas devidas e

receber nova certidão de nascimento, nova carteira de identidade, novo passaporte.

Quando não se tem nenhum documento, porém, a situação muda de figura. E às perguntas

que tentei responder até aqui – “para que serve um documento?” e “quem sou quando não

tenho documentos?” – soma-se outra: quando não tenho documentos, como provo que

sou quem digo ser? Essa foi a pergunta que vários dos meus interlocutores nesta pesquisa

tiveram de responder diante de um juiz ou uma juíza, nas audiências realizadas nos ônibus

do sub-registro da Justiça Itinerante.

Dentro da sistemática de trabalho do ônibus, a audiência é o momento em que o

usuário relata sua história diretamente ao juiz ou juíza que o atende. Na tentativa de

reconstituir e analisar essas audiências, o foco deste capítulo se desloca da motivação dos

usuários e dos caminhos que percorreram até ali para o outro lado do balcão. Por isso, a

partir daqui, irei me deter menos nos relatos dos usuários e mais na observação da

audiência em si, na forma como o Direito é acionado por seus operadores e no

encaminhamento dado pela Justiça às demandas.

Observarei também a partir de agora de que modo, diante da Justiça Itinerante,

uma instância do Estado-sistema, será construída a prova de que as pessoas sem

documentos são quem de fato dizem ser. O que nos leva de volta à antropologia do direito,

privilegiando não a abordagem legal, filosófica ou jurídica do Direito, mas a

antropológica, a compreensão dos direitos, no plural, como experiências e vivências, diz

Vianna (2013), como busca e cidadania, da forma como proponho eu. Geertz (1997) nos

ajuda a compreender o saber jurídico e a construção dos fatos jurídicos como um saber

local, um conhecimento alicerçado na observação de especificidades, práticas, casos,

relatos, histórias e soluções, para, a partir daí, identificar princípios. Também a etnografia,

74

como o direito, afirma Geertz, produz conhecimento dessa forma, entregando-se “à tarefa

artesanal de descobrir princípios gerais em fatos paroquiais” (Geertz, 1997, p.249).

O diálogo com Geertz se apresenta como iluminador para esta pesquisa, porque

descortina a possibilidade de valorizar os pequenos relatos, os contextos particulares,

diante do que poderia ser entendido como um quadro legal fixo e imutável. Ao longo de

dois anos de trabalho etnográfico, pude observar, no cotidiano de audiências do ônibus

da Justiça Itinerante, a força imensa das histórias individuais frente ao que pensei serem

conceitos rígidos do Direito, e a forma como tais conceitos eram negociados e

renegociados a cada audiência. Consta do arcabouço jurídico brasileiro a previsão de

acesso universal ao sistema de registro civil8. Na prática, entretanto, há diferentes motivos

para não ter o documento e para buscar o acesso ao dito registro, diferentes caminhos para

comprovar a identidade e muitos meandros nesses percursos, até que o registro seja

concedido. E, na falta de documentos, sobressai o papel da memória.

A orientação dos técnicos da Justiça Itinerante aos usuários era que mostrassem

nas audiências, a fim de ajudar a comprovar seus relatos, quaisquer documentos que

pudessem ser úteis – aí incluídos, por exemplo, as DNVs (Declaração de Nascido Vivo)

dos hospitais, certidões de batismo, documentos dos pais. Muitas vezes, porém, a prova

escrita estava perdida. Durante a pesquisa de campo, percebi uma prática comum: para as

audiências, as pessoas sem documento levavam pessoas da família, parentes próximos e

distantes, vizinhos, colegas. Na ausência dos pais, por abandono ou morte, esses

testemunhos adquiriam relevância maior ainda.

Raquel e Kamila foram ao ônibus no dia 2 de setembro de 2016. Um pouco da

história das duas está relatada em capítulo anterior, quando falei do pai delas, Marcelo,

como um dos casos que remetia à situação de conversão: um ex-dependente químico que,

livre das drogas, resolvia registrar as filhas. As trajetórias das duas irmãs, como as de

muitos usuários do ônibus, falam do abandono paterno e da contínua negação de direitos.

Mas destaco aqui um ponto que ajuda a compreender o processo de construção da prova

8 Como já referido em capítulo anterior, a legislação sobre o registro civil no Brasil inclui: a Lei 6.015, de 31 de

dezembro de 1973, determinando que o registro seja feito pelos pais nos cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais

(RCPN); lei 9.534, de dezembro de 1997, que concedeu a gratuidade do serviço ao cidadão; lei 13.112, de 2015,

permitindo que a criança também seja registrada pela mãe, com a indicação do nome paterno.

75

de identidade: a família levou duas vizinhas que relataram na audiência ter visto a mãe

das duas jovens grávida delas. Na falta de papel, a memória constituiu a prova.

No caso de Paulo, o lutador de MMA, a irmã era sua tutora, mas também a

memória de sua infância e de seu abandono. Márcia, a mulher que tinha câncer de útero,

levou vizinhos e parentes para ajudar a comprovar sua história. Damiana, a que foi

localizada pela assistente social, não tinha quem levar. Vivia pela rua, sem parentes nem

conhecidos. Registrou-se no mesmo dia que os filhos Lázaro, de 10 anos, e Ana Raquel.

O menino era o mais falante dos três e foi quem ajudou a contar a história da família: “Vi

minha mãe grávida da minha irmã”.

Já relatei aqui que, antes de começar o trabalho etnográfico no ônibus, cheguei ao

local para fazer uma reportagem, em dezembro de 2014. (DA ESCÓSSIA, 2014b) Foi

quando conheci a família de Jean, preso sob acusação de roubo. Retomo aqui este caso

por entender que ele é crucial para o entendimento desse papel da memória como

produtora de verdade e por ter sido o início de uma reflexão que desenvolvo a partir de

agora: a constatação de que, na ausência do documento, a punição chega antes dos

direitos. No caso de pessoas sem documento que são presas, como Jean, mais ainda.

Quando Jean deu entrada na unidade penitenciária Jonas Lopes de Carvalho

(Bangu 4), no Rio de Janeiro, pediram-lhe documentos. Não tinha. Nunca teve certidão

de nascimento. Nem documento de identidade, CPF, carteira de motorista ou título de

eleitor. Foi identificado, no sistema penal, pelas impressões digitais – o que tecnicamente

se chama de identificação criminal, ou, vulgarmente, “tocar piano”. Sua mãe, Márcia,

queria visitá-lo no presídio, mas, como o rapaz não tinha documentos, era impossível –

situação que caracteriza a urgência de legibilidade já descrita anteriormente.

A juíza comandava a audiência sobre o caso do rapaz, preso, sob custódia legal

do Estado e ainda assim sem identificação. Jean, detido em Bangu 4, não compareceu à

audiência na Justiça Itinerante. Do encontro participavam a mãe do rapaz, Márcia, o

padrasto, Luiz, uma vizinha, uma tia e algumas pessoas apresentadas como colegas de

infância do rapaz. O objetivo da audiência era, a partir dos relatos daquelas pessoas,

provar que Jean era quem dizia ser. Márcia, mãe de Jean, relatou:

“Ele nunca teve documentos porque, quando ele nasceu, logo

depois eu fui presa. Artigo 157, roubo. Vacilei. Mas é meu filho.

76

Ele ficou com a tia, minha irmã, que não cuidou de registrar”.

(Márcia, 40 anos)

Depois da mãe, apresentou-se a tia, Marta, que confirmou a história. O padrasto,

Luiz, pintor de paredes, levou fotos e boletins da escola que o menino frequentara, no

bairro do Rio Comprido, e relembrou que, como o registro de nascimento era obrigatório

para a matrícula, só conseguiu a vaga para o garoto porque mantinha relações de amizade

com a diretora da unidade de ensino frequentada por ele.

Na audiência no ônibus da Justiça itinerante, pais, parentes e vizinhos começam,

diante da autoridade judicial, um processo de construção da identidade legal daquele

indivíduo preso sob custódia do Estado. Na busca pelo registro realiza-se o trabalho de

tornar verdadeira aquela existência diante da autoridade judicial. Jean permaneceu

durante anos nas margens do Estado, sem legibilidade; ao cometer um crime e ser preso,

tornou-se visível, mas ainda assim ilegível, porque, oficialmente, não existia nos

registros. A tautologia classificatória de que fala Herzfeld (2016) aplicada ao acesso à

documentação – se não tem documentos não é legível, se não é legível não pode ter acesso

a direitos – mais uma vez se confirma e, pela necessidade de punição, começa a ser

desfeita. Começa então o processo de dar legibilidade àquele detento, e tratarei disso em

detalhes adiante.

Por enquanto, quero abordar, na audiência, o papel fundamental da memória, pois

é justamente a memória dos parentes de Jean que se transforma em mecanismo de prova

da existência dele. Halbwachs (2006) fala da necessidade de entender a memória como

um fenômeno social e não apenas individual – abordagem pioneira no início do século

XX para uma dimensão até então compreendida majoritariamente a partir de visões que

destacavam um ponto de vista introspectivo. No dizer de Halbwachs (2006), é imperativo

associar memória à relação entre indivíduo e sociedade, destacando o papel do grupo na

construção das lembranças. Halbwachs (2006) afirma que a memória é um mecanismo

social e estabelece os conceitos de memória individual (as lembranças individuais) e

memória coletiva, associando esta última à noção de história vivida, para além da história

que se baseia em fontes, documentos e na divisão do tempo.

Pollak (1992) trata da relação entre memória e identidade, entendendo-se

identidade como a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria,

imagem esta que constrói e apresenta aos outros e a si própria. (POLLAK, 1992, p. 204)

Elabora a ideia de “enquadramento da memória”, ou seja, a forma como o conjunto de

77

lembranças de um indivíduo ou um grupo é alvo de uma disputa de sentidos, com o

objetivo de construir uma identidade individual e do grupo. É uma espécie de controle de

lembranças, que selecionar o que de fato permanecerá na narrativa que se quer ter de

determinado conjunto de acontecimentos.

“A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das

interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como

vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar

sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de

tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões,

famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão

dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir

seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições

irredutíveis.” (POLLAK, 1989, p.9)

Dentro do ônibus da Justiça Itinerante, famílias fazem um trabalho de

acionamento da memória para construção da trajetória de um indivíduo, mas também um

trabalho de enquadramento a fim de encaixar peças da história. Não se trata, como se

poderia pensar, de negar autoria de crimes. O que importa é, de modo coerente,

reconstruir a trajetória de Jean como sujeito ligado àquele núcleo familiar. “É meu filho”,

diz a mãe. “Vacilou, foi preso”, completa a tia. “Consegui vaga na escola porque

conhecia a diretora”, informa o padrasto. “Jogávamos futebol”, conta o vizinho, e um

personagem até então invisível vai criando visibilidade. Numa operação feita e refeita

dezenas de vezes, retalhos da memória são unidos pela narrativa da experiência vivida.

3.2. A história dos presos invisíveis: a punição chega antes dos direitos

A reportagem sobre Jean despertou meu interesse sobre a temática dos presos sem

documento. À época, de acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária

do Rio de Janeiro, havia nos presídios estaduais pelo menos 3.988 detentos — 10% da

população carcerária fluminense — sem documentos de identificação civil (registro de

nascimento e carteira de identidade). (DA ESCÓSSIA, 2014b) Tais detentos eram

mantidos no sistema penitenciário apenas com a identificação criminal – as acusações

contra eles, as impressões digitais e o “vulgo”, o nome pelo qual eram mais conhecidos.

Quando iniciei a pesquisa etnográfica, decidi voltar ao assunto. Não consegui

mais, infelizmente, localizar a família de Jean para saber o que havia sido feito do rapaz.

78

Não obstante, durante o trabalho de campo no ônibus da Praça Onze, tive a oportunidade

de manter contato com pessoas que buscavam o serviço depois que um integrante da

família era preso. Em sua maioria, quase totalidade, eram mães cujos filhos haviam sido

presos e não tinham registro de nascimento. Sem o documento dos filhos, as mães não

podiam visitá-los no sistema penitenciário. Como provar que elas estavam mesmo

visitando seus filhos?, indagava o sistema. Eram situações que, mais uma vez, classifico

e analiso como sendo casos de urgência de legibilidade: pessoas que até então haviam

vivido nas margens do Estado, como ilegíveis, mas em determinado momento

necessitavam da legibilidade pelo Estado a fim de garantir o direito de visita.

Para reconstituir essas trajetórias, as mães buscavam o ônibus, se apresentavam,

narravam os crimes dos filhos e pediam a documentação. Ao contrário de negar crimes,

tratava-se de admiti-los, reconhecer que aquele que estava preso havia, sim, cometido

crimes – mas eram filhos delas, e elas tinham o direito de visitá-los. Assim conheci Samia,

que buscava o documento do filho Tyrone, preso em Bangu 10 por envolvimento com o

tráfico; e Rosemary, que acompanhava o filho Carlos, em liberdade condicional depois

de uma condenação a 5 anos de prisão por roubo. Mesmo detido por mais de três anos

numa penitenciária pública, ou seja, dentro de uma instância de controle do Estado-

sistema, Carlos nunca conseguiu tirar a certidão de nascimento, pela dificuldade já

relatada aqui de registrar um adulto. Assim, a cada mês, quando se reapresentava diante

do juiz da condicional, Carlos tinha de provar sua identidade pela conferência das

impressões digitais, como me contou em 9 de setembro de 2016:

“O mais difícil é convencer os caras lá de que eu sou eu mesmo,

entendeu? Porque não tenho nenhum papel. Eles me deram um número

lá, tiraram as digitais, aí todo mês conferem pra ver se sou eu mesmo.

Engraçado que ninguém pra me arranjar uma certidão de nascimento.

Preso também tem direito” (Carlos, 21 anos)

Das trajetórias de pessoas presas sem documento, uma das mais marcantes foi a

de Adriano, preso desde 2014 e condenado por roubo. Como ele não tinha certidão de

nascimento, sua mãe, Aparecida, não podia visitá-lo, o que a levou ao ônibus em busca

do documento. O rapaz estava preso, e a dra. Esther, a juíza responsável pelo caso, marcou

uma audiência por videoconferência: no Tribunal de Justiça, a juíza ouviria,

presencialmente, a mãe, e, com o auxílio das câmeras instaladas no complexo de Gericinó,

Adriano. Por essa época, eu havia feito leituras sobre etnografia multissituada

79

(MARCUS, 1995), e decidi então sair dos limites do ônibus. Para Marcus, é possível falar

em etnografia multissituada quando se sai dos lugares e situações locais da investigação

etnográfica entendida como convencional a fim de examinar a circulação de significados,

objetos e identidades culturais (MARCUS, 1995, p.96) – o que, como mostra o autor, é

um movimento que caracteriza inclusive etnografias clássicas. Embora o meu campo de

pesquisa fosse majoritariamente constituído e delimitado pelo ônibus, entendi que poderia

ultrapassar o espaço do ônibus e seguir investigando a temática em outros espaços. Assim,

pedi autorização judicial e, com a concordância de Aparecida, acompanhei a audiência

de Adriano.

Compareci ao tribunal na data marcada, 28 de julho de 2017. A audiência foi

presidida pela Dra.Esther, com participação de uma promotora e uma defensora pública.

Dra.Esther foi a juíza que me levou ao ônibus pela primeira vez e abriu portas para a

realização da pesquisa. É uma ativista na causa do acesso dos brasileiros à documentação,

com atuação significativa tanto no Estado do Rio como no plano nacional. A audiência

de Adriano foi presidida por ela. Clara, minha principal interlocutora no ônibus, também

estava lá, e mais uma vez me ajudou. Assisti a toda a audiência e tirei fotos. Aparecida,

mãe de Adriano, levou também a avó do rapaz, Heloisa. No dia da audiência, Aparecida

não via o filho havia três anos e nove meses. O motivo para a proibição da visita era o

mesmo: como Adriano não tinha registro de nascimento nem qualquer outro documento,

era impossível saber se Aparecida era mesmo mãe dele.

A história de vida de Adriano era, como a de outros adultos sem documentos que

conheci durante a pesquisa de campo, marcada pela contínua negação de direitos, tema já

abordado no capítulo 1, quando detalhei a trajetória de Cristiane. Mesmo que a

recuperação das trajetórias não seja mais o foco deste capítulo, tentarei resumir como o

rapaz foi parar na prisão. De acordo com o relato de Aparecida, Adriano nasceu em 1990

e não foi registrado. Aparecida era muito pobre e não vivia com o pai de seus filhos.

Adriano, junto com mais dois irmãos, se alternava entre as casas do pai e da mãe. Aos

poucos, começou a cometer pequenos delitos ao lado de colegas do bairro, passando

depois a roubar e participar do tráfico de drogas na região. Por tráfico foi preso e

condenado.

A juíza seguiu perguntando sobre o passado da família, e Aparecida contou que

se separou do marido porque ele bebia muito e batia nela. As crianças viviam com a mãe

80

quando o mais velho desapareceu no centro do Rio de Janeiro. Assim contou Aparecida

durante a audiência:

“Eu procurei, procurei meu filho, mas nunca achei. Fiquei perdida na

vida, comecei a beber. Deixei o Adriano com a avó dele, minha mãe. O

mais novo ficou com uma tia. Sei que a fiz uma coisa horrível, dei meus

filhos, mas não conseguia criar, não conseguia nem viver direito depois

que meu filho desapareceu” (Aparecida, 52 anos)

Aparecida puxou o fio da memória, e a avó de Adriano, Heloisa, ajudou-a neste

sentido. Lembrou o tempo em que o rapaz morou com ela, do pouco tempo em que

frequentou a escola, de como gostava de jogar bola. Relembrou o desaparecimento do

neto mais velho e a forma como Aparecida se tornou alcoólatra. Na ausência de papéis, a

memória das duas mulheres ajudou a reconstituir a trajetória de Adriano, sem negar

delitos – pelo contrário, assumir os delitos ajudava a provar que ele era sim, o rapaz que

aparecia na televisão e que precisava de um documento. Aparecida também falou de sua

culpa, repetindo o discurso de vergonha e culpa que percebi em muitos outros adultos

sem documento. No caso dela, Aparecida se sentia culpada pelo fato de o filho não ter

documento:

“Dói ver o filho assim preso e não fazer nada. Se eu tivesse sido uma

mãe melhor, talvez ele não estivesse aí. Mas Adriano não é um mau

filho. Foram as más companhias que fizeram o Adriano roubar”

(Aparecida, 52 anos)

Nesse processo de reconstrução da trajetória de Adriano, foi fundamental o

diálogo dele com a mãe. O rapaz começou tomando a bênção da mãe que não via fazia

três anos e nove meses. Perguntou pela irmã mais jovem, Rafaela, e Aparecida disse que

ela estava com 15 anos, planejando fazer um curso de auxiliar de enfermagem. Aparecida

pediu que a juíza lesse para ele uma carta escrita por Rafaela. Depois, pediu perdão ao

filho. Sentada no canto, observando a audiência, entendi que aquele pedido de perdão ao

filho também expressava um pedido para que ela mesma se perdoasse. Como outras

mulheres que conheci no ônibus, Aparecida tivera uma trajetória de direitos negados: o

filho desaparecido, o marido violento, o alcoolismo, a necessidade de deixar os filhos

com outras pessoas da família. O rapaz imediatamente respondeu: “Tira isso da cabeça,

mãe, não tenho que perdoar nada”. Aparecida e a avó, Heloisa, choravam, e Adriano

81

também estava muito emocionado. A avó disse: “Olha, seus amigos não perguntaram por

você, não. Nós é que viemos aqui pra te ver”.

Sem entrar no mérito da responsabilidade penal de Adriano, pois ele já fora

condenado pelo crime e cumpria pena, Dra. Esther discutiu com a promotora e a defensora

pública alguns pontos cruciais para este trabalho. Informou que o Sepec já realizara a

busca nos cartórios pelo registro de nascimento de Adriano, em vão. A Folha de

Antecedentes Criminais (FAC) também fora checada, e as evidências indicavam, assim,

que o filho de Aparecida, neto de Heloísa, era mesmo o rapaz que aparecia no monitor de

TV durante a teleconferência. Dra. Esther tratou ainda na audiência de dois eixos basilares

para esta pesquisa: o primeiro, o fato de alguém que comete crimes não estar alijado do

direito à documentação; o segundo, o fato de o preso sem documento, mesmo sem

identificação civil, receber assim a identificação criminal, que permite que ele entre no

sistema e seja legível por esse sistema em particular – mas não no conjunto de políticas

públicas.

“É como se a pessoa tivesse um RG para ser punido, apenas para

responder ao processo e sofrer a punição. Entendeu? Ele não recebeu o

RG verdadeiro, porque não tem certidão de nascimento. Recebeu, na

prisão, o número do que será o RG quando ele tiver certidão de

nascimento”. (Dra.Esther)

O caminho trilhado a partir de Foucault (1987, 2015) permite refletir sobre como

o sistema prisional integra um sistema disciplinar amplo, marcado pela vigilância, e no

qual a identificação do criminoso é um dos instrumentos da vigilância e do controle. Em

estudos etnográficos sobre prisões brasileiras, Mallart (2017), Rui (2017) e Godoi (2015)

ajudam na compreensão das dinâmicas do sistema carcerário nacional, com fluxos

próprios, como a superlotação, a demora nos julgamentos e o entra-e-sai de presos,

chamado por Rui e Mallart (2017) de “cadeia ping pong”. Para Godoi, a prisão deve ser

compreendida

“como um espaço poroso no interior de um dispositivo de governo,

como uma tecnologia (entre outras) de gestão de populações, de

agenciamento e regulação de fluxos (de pessoas, objetos e

informações), de condução de condutas, de produção e administração

de determinadas formas de vida”. (Godoi, 2015, p.19)

82

No caso dos presos sem documento, as dinâmicas do sistema carcerário

encontram uma falha capaz de ameaçar seu princípio basal: identificar o criminoso e puni-

lo. Ao mesmo tempo, o próprio sistema opera o que parece ser uma solução para permitir

a punição: identificar o detento apenas criminalmente, já que o registro civil do adulto,

como dá detalhado, requer investigação de antecedentes e uma decisão judicial. De modo

excepcional, o documento zero daquele indivíduo não é a certidão nascimento, o registro

civil, mas o registro criminal. Preso, com a identificação criminal feita, mas sem registro

civil, Adriano vivia uma situação peculiar, e, no entanto, comum a presos sem

documentação. Eram legíveis para a punição do crime, mas ilegíveis para o conjunto mais

amplo dos direitos.

Segundo a Dra. Esther, esta era uma situação que afetava aproximadamente 4.500

detentos no Estado do Rio em 2017. No mesmo ano, levantamento do Departamento

Penitenciário Nacional (Depen) indicava que nove de cada dez detentos brasileiros não

possuíam qualquer documento pessoal em seu prontuário na prisão. A falta de

documentação, segundo o Depen, afetava diretamente a possibilidade de ressocialização

dos presos, e motivou uma cooperação entre a Associação dos Notários e Registradores

do Brasil (Anoreg-BR) e o Depen para fazer o registro civil de presos em 16 estados.

(CNJ, 2017)

3.3.“As pessoas sentem muito poder em dizer não”: do Direito aos direitos

Da porta do ônibus, uma funcionária chama alto o nome completo de Raimundo.

É o início de uma sexta-feira nublada, 26 de maio de 2017, e mais de 40 pessoas esperam

espalhadas pelo pátio do Juizado da Infância e da Adolescência. Quando Raimundo se

levanta e atravessa o pátio, os olhares o acompanham, e o meu também: ele tem na cabeça

um vistoso cocar indígena, de penas coloridas em azul, vermelho, verde, amarelo e preto.

Veste bermuda branca e camiseta. O rosto está pintado de preto e vermelho, e no pescoço

ele traz um colar de peças brancas, parecendo dentes. Os braços estão cobertos de pinturas

e adornados com braceletes de pena. Raimundo entra no ônibus acompanhado por uma

mulher baixinha, de short e camiseta. Ela também usa um cocar de penas e traz o pescoço

coberto por colares de sementes vermelhas.

Raimundo não é uma pessoa sem documento. Tem certidão de nascimento, RG e

documentação em dia. Diante da juíza, conta que está ali porque deseja trocar de nome.

83

Fala sem parar, e eu também escuto. Nascido numa aldeia tabajara no Ceará, ele quer que

em seu documento conste oficialmente o nome Akazu-j (pronuncia-se Akasui), pelo qual

é conhecido em sua tribo, no Ceará, e também pelos amigos do Rio de Janeiro, para onde

se mudou quando tinha 20 anos. Agora tem 69. Akazu-j, diz, significa cajueiro, árvore

comum em sua tribo e nome pelo qual a Aldeia Cajueiro, na região de Poranga (CE), é

conhecida. O cajueiro é uma árvore importante para o sustento do povo dessa etnia, que

se alimenta da castanha, do próprio caju, faz suco, doce e vende os produtos.

Ao longo do trabalho de campo, pude compreender que cada caso seria um caso,

que a decisão tomada em um processo não valeria automaticamente para os demais, pois

cada usuário teria uma demanda, uma justificativa, e cada juiz ou juíza, uma interpretação,

apesar dos princípios jurídicos legais pelos quais deveriam se pautar, entre eles a lei

brasileira, a Constituição e os tratados internacionais. A busca pelo direito à certidão de

nascimento ou, em alguns casos, à alteração de nome – como no caso de Akasu-j – tinha

desdobramentos de sentido diferentes em cada trajetória desenhada na sala de audiência.

Exatamente como analisa Geertz, pude constatar que

“A parte ‘jurídica’ do mundo não é simplesmente um conjunto de

normas, regulamentos, princípios, e valores limitados, que geram tudo

que tenha a ver com o direito, desde decisões do júri, até eventos

destilados, e sim parte de uma maneira específica de imaginar a

realidade. Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que

acontece aos olhos do direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro,

de uma época a outra, então o que seus olhos veem também se

modifica.” (Geertz, 1997, p.259)

O que acontece aos olhos do Direito, nesta pesquisa, acontece no entorno do

ônibus da Praça Onze, mas também, e principalmente, dentro dele, no momento da

audiência do usuário. É quando a demanda por documentos, direitos, nomes, será

analisada por um juiz ou uma juíza. Na introdução, já detalhei como é o ônibus, mas, para

facilitar a vida do leitor, relembro: o ônibus é todo dividido em pequenos espaços. Depois

do banco do motorista e quatro cadeiras poltronas originais do veículo, o primeiro

ambiente é um misto de secretaria e cartório, onde fica a escrivã do cartório da Justiça

Itinerante. Os computadores são interligados ao sistema do Tribunal de Justiça, ao banco

de dados do Sepec e à base de dados do Detran, que permite saber se o usuário tem

antecedentes criminais.

84

O segundo ambiente abriga duas minissalas de audiência, que chamarei doravante

de salas 1 e 2, com mesinhas e cadeiras, e em cada uma ficam um juiz e as pessoas que

são atendidas. O terceiro ambiente é uma sala de audiência um pouco maior, que chamarei

de sala 3, com uma mesa maior e mais bancos. Lá fica o terceiro juiz, comandando mais

uma audiência. Um promotor e um defensor público revezam-se entre as salas de

audiência 1, 2 e 3 para que, em cada caso, haja sempre o posicionamento da Defensoria

Pública, do Ministério Público e do juiz.

Na sala 1 aconteceu a audiência de Akasu-j. Ele contou à juíza que no Rio,

trabalhou como biscateiro, camelô, pedreiro, fez de tudo um pouco, e agora vive de

produzir artesanato. Há dez anos, mais ou menos, começou a participar de maratonas e se

tornou um personagem conhecido nas corridas de rua. Corre de pés descalços. Procurou

a Defensoria Pública e de lá foi encaminhado ao ônibus da Justiça Itinerante com um

objetivo: quer trocar o nome cristão que recebeu pelo nome Akazu-j. “Eu sou índio, né?

Quero meu nome de índio”, explicou, pondo sobre a mesa os documentos com o nome

cristão que lhe deram.

A passagem de Akasu-j pelo ônibus foi um dia marcante, indicam minhas

anotações. Juízes e funcionários da Justiça Itinerante pediram para tirar fotos com ele, e

me pediram que eu fotografasse também. Guardei esse dia porque normalmente eu pedia

licença para tirar fotos, e daquela vez o pedido foi feito pelas pessoas que trabalhavam no

ônibus. Enquanto Akasu-j era atendido com fotos na sala 1, bem ao lado, na sala dois,

Igor, um rapaz negro, de 19 anos, ao lado da mãe, Rosemary, tinha sua audiência.

Rosemary fora uma sem-documento até 2016, quando, também no ônibus, obteve seu

registro. Agora queria a certidão de nascimento do filho. Era uma demanda como tantas

que observei ao longo da pesquisa – só um registro de nascimento. Não pude deixar de

notar que um brasileiro índio e um brasileiro negro levavam suas demandas a duas juízas

brancas, do lado de cá do balcão.

Neste capítulo, como já explicitei, volto a análise não para o motivo da demanda

pelo documento, mas para o outro lado do balcão, a forma como aquela demanda era

analisada pelos juízes e pelas juízas. Se, na sala de audiência 2, a demanda de Igor era

simples – era um rapaz sem registro que precisava ser registrado, e a mãe estava ali para

fazê-lo –, a de Akasu-j exigiu uma negociação. Se ele já era registrado, por que ter outro

registro, o que é proibido por lei? As buscas indicavam que a folha de antecedentes dele

não tinha anotações criminais. Não se tratava, portanto, de uma tentativa de encobrir

85

algum malfeito, um crime, caso em que a mudança de nome seria um cobertor para

proteger um ilícito. Akasu-j poderia também ter procurado a Funai e pedido um registro

de seu nome indígena. No entanto, ao procurar outra instância do Estado-sistema, a

Defensoria Pública, foi encaminhado à Justiça Itinerante, e era dela que esperava uma

solução.

A juíza responsável pela audiência de Akasu-j era uma mulher baixinha e muito

simpática, que sempre respondia aos meus questionamentos e não se importava que eu

acompanhasse as audiências, permitindo que eu fizesse perguntas a ela ou ao usuário que

estava sendo atendido. Não teve dúvidas diante da demanda que lhe era apresentada e

disse que faria o registro de Akasu-j com o nome indígena. “O índio não é invisível, não

pode ser registrado como invisível”, justificou ela. Disse que seu pai fora um estudioso

da causa indígena e que se sentia pessoalmente tocada por aquele processo. Entendeu que

se tratava “de uma questão de identidade” e concedeu o pedido sem delongas. “Não acho

complicado. As pessoas sentem muito poder em dizer não, mas pra mim isso é simples”,

resumiu. Akasu-j foi encaminhado direto ao cartório e lá recebeu sua certidão de

nascimento. Sãmehy, a mulher indígena que o acompanhava, sua companheira de vida,

deu entrada num processo semelhante naquele mesmo dia, também para obter a certidão

de nascimento com o nome indígena.

A solução dada ao caso de Akasu-j pode ser analisada a partir do diálogo desta

pesquisa com estudos no campo da antropologia do Estado e antropologia do direito, em

especial, com os que se debruçam sobre o funcionamento do sistema jurídico brasileiro.

Torna-se crucial relembrar o entendimento, proposto por Foucault (1987, 2015), de que

normas e instituições judiciais são atravessados por dispositivos de poder, relacionados à

disciplina e à governamentalidade. Já falamos aqui do documento como esfera de

controle, e a perspectiva foucaultiana surge novamente diante das audiências da Justiça

Itinerante.

Numa outra perspectiva, DaMatta (1997) mostra que a sociedade brasileira se

organiza num dilema entre práticas hierárquicas, no qual cada pessoa tem um “lugar” com

direitos e deveres bem definidos, e relações jurídicas são representadas como igualitárias,

universais. Esse dilema é continuamente colocado em cena, para DaMatta, no

acionamento do que o autor entende como um rito de autoridade: a famosa pergunta

“Você sabe com quem está falando?”. A articulação entre essas duas perspectivas aparece

86

em estudos de autores como Kant de Lima (2010, 2000), Misse (2000) e Sinhoretto

(2011), permitindo questionar, no dizer de Sinhoretto,

“a possibilidade de pensar a sociedade brasileira como plenamente

disciplinar (no sentido foucaultiano), uma vez que a coexistência das

lógicas jurídicas igualitária e hierárquica torna muito difícil a introjeção

subjetiva das regra pelos indivíduos, que nunca estão bem certos sobre

qual sistema de regras será validado nas interações com outros

indivíduos, principalmente se eles forem agentes estatais”.

(SINHORETTO, 2011, p.27)

Na etnografia das audiências, outro conceito que emerge é o de campo como um

lugar de disputa de sentidos (Bourdieu, 1989), um espaço social simbólico estruturado

por relações de força, no qual se manifestam posições de poder marcadas pela disputa.

Se, no percurso até o ônibus, os brasileiros sem documento se confrontaram com o campo

burocrático, tal como já analisei em capítulo anterior, agora o que se sobressai é o campo

jurídico, descrito por Bourdieu (1989) como o lugar por excelência do “monopólio do

discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos” (BOURDIEU, 1989,

p.237). Os agentes deste campo, segundo o autor, são investidos da competência que lhes

autoriza a interpretar textos que consagram a visão considerada justa.

Sinhoretto (2007), em pesquisa etnográfica sobre a reforma da Justiça, analisa a

implementação, em São Paulo, dos Centros de Integração e Cidadania (CIC), programa

implantado pelo governo do estado de São Paulo desde 1996 para melhorar o acesso da

população pobre à Justiça. O programa apostava ainda na melhor articulação das

instituições de justiça (Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário, entre outros).

A partir da ideia de campo jurídico de Bourdieu, a autora formula a ideia de um campo

estatal de administração de conflitos (2007, 2011). A chave para seu conceito é propor

que este campo de administração de conflitos incorpora, em seu funcionamento, a

informalidade e as técnicas não judiciais. Assim, o campo de administração de conflitos

“Considera que práticas informais, ilegais ou não, referenciadas às leis

escritas não são apenas defeitos de aplicação do direito ou falhas na

implementação da lei cometida por maus profissionais, mas são parte

não negligenciável de rituais de administração de conflitos que estão

em disputa no interior do campo.” (SINHORETTO, 2011, p.28)

Pela abordagem utilizada, a etnografia, e pelo objeto em questão, a administração

de conflitos, a pesquisa de Sinhoretto oferece chaves precisas para a compreensão das

87

audiências realizadas no ônibus da Praça Onze para atender pessoas sem documento. Num

exercício teórico de descrição do que denominou de campo de administração de conflito,

a autora aponta quatro lógicas, ou quatro níveis hierárquicos, pelos quais acontecem

interações entre o público e a instância estatal. O primeiro nível é protagonizado por

pessoas de alto prestígio social, com grande capital simbólico e financeiro, que têm

questões judiciais; o segundo se refere ao das pessoas comuns, que buscam a Justiça, mas

encontram barreiras tradicionais de acesso à Justiça; o terceiro surge como uma criação

recente, que busca oferecer respostas aos defeitos do sistema judicial clássico, e aqui

apareceriam os Juizados Especiais, ou de pequenas causas; e a quarta escala, por fim, é

a de conflitos considerados não só pequenos, mas irrelevantes, para serem tratados pelas

instâncias formais do campo. Nesse nível, diz Sinhoretto (2007), o grau de informalidade

é ainda maior, e os agentes legais mais subalternos, como policiais e mediadores leigos,

assumem um papel de centralidade.

Caso eu decidisse usar, para a Justiça Itinerante, a classificação proposta por

Sinhoretto, diria que se situa entre os níveis 3 e 4. No terceiro nível, pelo que surge como

resposta a falhas do sistema judicial clássico, ou a obstáculos intransponíveis

apresentados por esse sistema a uma população de baixa renda; e, no quarto nível, pelo

papel central, ocupado na busca pela documentação, por esses agentes legais de níveis

subalternos, de funcionários de comitês a técnicos de cartório, principalmente no caminho

até o ônibus, como mostrei no capítulo dedicado à “síndrome do balcão”.

Mais que a classificação de Sinhoretto, interessa-me, porém, seguir em sua

reflexão sobre como esse campo que ela caracteriza como de administração de conflitos

não ficou inerte diante das pressões sociais por reformas no Judiciário. Gaulia (2014) e

Galanter (2016) demonstram de que forma a expressão “acesso à Justiça” adquire seu

atual significado, associado tanto ao benefício da assistência judiciária como à garantia

de igualdade perante a lei, e, a partir dos anos 1970, como capacidade de utilizar as várias

instituições, governamentais e não governamentais, judiciais e extrajudiciais, para que

um requerente pleiteasse justiça. No Brasil, afirma Gaulia (2014), a Constituição de 1988

situa-se como marco ao incluir afirmar em seu artigo 5º, dedicado aos direitos

fundamentais, que cabe ao Poder Judiciário analisar lesão ou ameaça a direitos. No artigo

107, a Constituição instituiu a Justiça Itinerante e os Juizados Especiais. Mais tarde, esse

mesmo conjunto de demandas sociais diante de “defeitos” do sistema judicial permitiria

a criação das delegacias e Varas Especializadas no tratamento da violência contra a

88

mulher. A Justiça Itinerante, sob esse aspecto, se constitui como uma conquista social

num quadro em que o acesso à Justiça passa a ser entendido como um direito – e a

dificuldade de acesso a ele, como a negação desse direito.

A análise das audiências realizadas no ônibus da Praça Onze permite refletir sobre

como elas se transformam em pequenos palcos onde saberes locais são acionados na

discussão de questões centrais que perpassam o sistema de justiça e de acesso à justiça no

Brasil. Em cada audiência, o que está em jogo é, essencialmente, o acesso não só ao

Direito, ou à Justiça, mas aos direitos: afinal, quem tem direito a buscar direitos? Que

direitos devem vir primeiro? Quem garante o direito aos direitos? Qual o papel da Justiça

na garantia desses direitos?

Depois de tantos anos de espera na síndrome do balcão, a urgência de

legibilidade vivida por aqueles usuários chegava, assim, aos juízes e às juízas de plantão

no ônibus da Justiça Itinerante. Integrantes da elite do funcionalismo público brasileiro,

os juízes eram confrontados com essas pessoas que viviam nas margens do Estado e que

viam no ônibus um checkpoint para sua busca. Ao longo dos dois anos de pesquisa,

conversei com vários dos juízes que comandavam as audiências no ônibus.

Não há um corpo fixo de magistrados dedicado só à Justiça Itinerante nem ao

ônibus da Praça Onze. Os juízes que iam ao ônibus passavam a semana trabalhando em

outros processos em suas varas em diferentes áreas: cível, criminal, fiscal, de família. Às

sextas-feiras, voluntariavam-se para, em vez de trabalhar em sua vara de origem, atuar

nas audiências. Não recebem diária extra por isso. Percebi que cerca de dez juízes se

repetiam mais, sendo sete mulheres e três homens. Os relatos desses juízes consolidam

reflexões feitas ao longo da pesquisa, como o lugar do registro de nascimento como

símbolo de cidadania e do sub-registro como traço característico de um grupo que vive

nas margens do Estado. Acrescentam outras, sobre o papel do juiz e da Justiça como

garantidores de direitos.

Selecionei um primeiro grupo de falas dos juízes, para ajudar na reflexão sobre

registro de nascimento, cidadania, direito garantido e direito negado. É persistente, no

discurso dos juízes, a associação entre registro de nascimento e cidadania, repetindo uma

chave já verificada no discurso dos usuários:

“A gente quer trazer cidadania para eles.” (Dr. João)

“A pessoa não se reconhece como pessoa.” (Dra. Carla)

89

“É como se a gente desse a vida, desse uma chave para abrir portas

que se fecharam. Devolve a dignidade que foi roubada ou negada.”

(Dra. Gina)

“A gente vê a gratidão das pessoas. A gente insere, dá dignidade, dá

nome. (Dr. João)

Os relatos dos juízes remetem de imediato à ideia de direitos como “dádivas”

concedidas pelas autoridades. Abrir portas, dar a vida, trazer cidadania, devolver

dignidade, são resultados que os magistrados enxergam como efeito de suas ações. É a

ideia de uma “autoridade bondosa”, ou, pelo menos”, uma autoridade consciente de seu

poder e de seu papel social, retribuído com a gratidão das pessoas. Reis (1990) reporta

esse mesmo tipo de reação nas cartas de pessoas que tiveram demandas atendida no antigo

Ministério da Desburocratização brasileiro, mostrando a forma como a ação

desempenhada pela autoridade pública é vista como um favor, uma dádiva, e merece

como tal o reconhecimento e a retribuição em forma de gratidão. No caso do ônibus, os

juízes relatam a forma como muitos usuários vêm lhes agradecer.

Ao mesmo tempo, também pude constatar, nas falas dos juízes, o entendimento

de que houve uma falha no funcionamento do Estado-sistema e de que eles, ao atuar na

concessão do registro, solucionam, a partir de suas competências burocráticas, o problema

criado para o cidadão. É explícito, para os magistrados, que o usuário sem documento

está sendo punido e, indiretamente, visto como culpado da falha, quando, na verdade, era

prejudicado por ela – porque a essa pessoa foi negado um direito, o registro, e, a partir

dessa negativa, muitos outros direitos ficam pelo caminho.

“A pessoa está sendo punida por uma falha do Estado.” (Dra. Tania)

“Eu não estou lhe ajudando, é direito seu.” (Dra. Esther)

“As pessoas chegam aqui e dizem que não foram competentes, não

foram fortes para conseguir o registro. Quem não conseguiu é que não

foi forte, e não o Estado, que não concedeu. Assim, a prática é

culpabilizar a pessoa que não foi beneficiada. É colocar a culpa no

excluído.” (Dra. Tania)

90

“É um sistema muito injusto. A gente aqui está tapando buraco. A ideia

é ninguém mais ficar à margem. Você dá um sistema que dá privilégios

a determinadas camadas” (Dra. Ilná)

“Não é só a questão do documento. Eles não conseguem outros direitos.

A pessoa não se vê como pessoa de direitos. Depois que conseguem,

falam pra nós: agora eu sou alguém, como se para existir a pessoa

precisasse de documento.” (Dra. Dayse)

“As pessoas ficam envergonhadas, a gente percebe a vergonha das

pessoas. “ (Dra. Sylvia)

“Nós, como Estado, não conseguimos achar o registro daquela pessoa.

E aí, o que fazemos? Vamos continuar prejudicando essa pessoa? (Dra.

Esther)

“Vejo que a gente assimila esse senso comum. A gente pensa: como

uma mãe engravida se não tem não registro? A gente reproduz isso. É

dizer sempre que a responsabilidade é do outro.” (Dra. Carla)

Assim, se os usuários atribuíam, em parte a si, em parte ao Estado, uma espécie

de culpa por não terem documentos, os juízes são unânimes em responsabilizar pela falta

de documentação o “Estado”. Responsabilizar o Estado é parte do que Herzfeld (2016)

nomeia como teodiceia secular da burocracia, em diálogo com a teodiceia religiosa de

que fala Max Weber (1989). Se a teodiceia weberiana permite compreender como as

crenças religiosas se mantêm diante de evidências de um mundo falho e permite explicar

a persistência do mal em um mundo divinamente ordenado, a teodiceia secular de

Herzfeld “provê as pessoas de meios sociais para lidar com o desapontamento”.

(HERZFELD, 2016, p.16) E, se a teodiceia religiosa busca respostas na transcendência

(WEBER, 1989), a teodiceia secular permite compreender por que a burocracia se

mantém.

“O conceito de teodiceia secular é parte de um argumento maior, no

qual eu proponho tratar a burocracia do Estado-nação como diretamente

análoga ao sistema ritual de uma religião. Ambos são fundados no

princípio da identidade: os eleitos como uma comunidade exclusiva,

cujos pecados individuais dos membros não podem solapar a perfeição

última do ideal partilhado por todos” (HERZFELD, 2016, p.19)

91

A teodiceia secular é claramente acionada nas falas dos juízes, que identificam

“um sistema injusto” e cheio de “privilégios”, no qual o usuário é injustamente culpado

por não ter documentos, quando, na verdade, é uma vítima. Uma das falas (“nós, como

Estado”) é explícita ao situar os juízes como parte desse Estado que não foi eficaz na

garantia de direitos. Mais uma vez, questões morais entram em cena, e uma das juízas

percebe isso quando critica o fato de pessoas documentadas muitas vezes reproduzirem o

senso comum e culparem a pessoa sem documento por sua condição. Essa juíza me disse:

“A gente pensa na situação deles e já pensa criticando: como uma mãe

engravida se não tem nem registro? Ou então algum colega ou técnico

fala para a mãe: mas você tem um filho atrás do outro, não é?” (Dra.

Esther)

Por isso, na avaliação dela, um dos exercícios cotidianos mais difíceis de seu

trabalho era evitar esse tipo de julgamento moral e entender que o direito ao registro

independe do fato de a pessoa ter ou não cometido crimes, ter ou não se preocupado em

registrar seu filho mais cedo, ter ou não se preocupado com métodos anticoncepcionais.

Dupret (2006) e Eilbaum (2012), em análises etnográficas sobre instâncias judiciais,

explicitam a clara relação entre a administração da justiça e as moralidades, e o modo

como as interações entre operadores do direito e aquelas pessoas que buscam a Justiça

culminar nas ações e decisões judiciais. Pude observar, nas audiências do ônibus do sub-

registro, como elas refletem moralidades.

Entre as falas dos juízes e as falas dos entrevistados, fica muito claro um ponto

de contato: o entendimento de que o registro abre caminho para outros direitos. Nas

interpretações dos juízes sobre o papel da certidão do nascimento está explícito o

reconhecimento do documento como acesso a direitos (“Não é só o documento. Eles não

conseguem outros direitos”) e a redução do significado atribuído ao registro como

“definidor” de existência (“como se para existir a pessoa precisasse de documento”).

Outro conteúdo que se repete nas falas dos juízes é a discussão sobre o que chamo

de primazia de direitos. Há um direito que deve preceder outro, uma ordem de direitos

mais ou menos importantes? Nessa discussão, são essenciais os casos que tratei como

“urgência de legibilidade”. A cirurgia de Maria, a vaga na escola para a filha de Vânia,

as visitas de Aparecida e Samia aos filhos presos são situações em que os usuários buscam

a certidão de nascimento por algum motivo especial que exige solução rápida. Durante as

audiências dessas pessoas, a pergunta que destaco, a partir da pesquisa etnográfica, é

92

outra: por que é preciso esperar o documento para garantir um outro direito, como, por

exemplo, uma cirurgia? Mais do que pedir o que até então lhe fora negado, mesmo sendo

direito, era essa a questão que surgia nas mesas das audiências.

Questionei vários juízes sobre isso e não ouvi de nenhum deles outra resposta que

não alertasse para a compreensão de que, mesmo sem documento, era preciso garantir

direitos prévios a pessoas ilegíveis. “Não há motivo de negar atendimento a uma pessoa

por ela não ter documentos”, me disse a Dra. Vitória em entrevista no dia 5 de maio de

2017. Em todas as ações que recebia, Dra. Vitória costumava emitir uma ordem judicial

para que, enquanto a certidão de nascimento não ficasse pronta, pois era necessário fazer

pesquisas e verificações de praxe, o usuário não fosse impedido de conseguir o que

necessitava de modo urgente. Assim, determinava, com o poder que a autoridade judicial

lhe confere, que fossem garantidos a vaga na escola, o remédio, o tratamento médico, a

inscrição em programas sociais. “A gente não está fazendo favor. A gente está sanando

uma falha do Estado”, explicava a juíza. E seguia:

“É razoável negar atendimento médico a alguém apenas pelo motivo de

a pessoa não ter documentação? Não é. Entendo a necessidade de

identificação, os protocolos médicos, mas a saúde não pode depender

de um documento” (Dra. Vitória, entrevista em 26 de maio de 2017)

Outros eixos que destaco nas falas dos juízes são a preocupação com fraudes na

identificação dos usuários e o papel decisivo das diferentes interpretações dos juízes.

Selecionei algumas dessas falas:

“A gente tem que levar em consideração aspectos de segurança jurídica,

sempre de olho em possíveis fraudes. “ (Dra. Teodora)

“A gente pode se deparar com pessoas querendo apagar a identidade

pretérita, alguém que foi preso e quer mudar de nome, ou alguém que

quer assumir a identidade de alguém que morreu” (Dr. Aloisio)

“A gente tem que fazer uma reinterpretação do que é legal. A gente não

aplica só a lei, tem que pesar a decisão. O Direito é isso”. (Dra. Teodora)

“A gente não pode ser burocrático. Tem de seguir as regras todas para

não prejudicar a lisura do processo, mas esse trabalho exige um

engajamento muito maior, um olhar com visão social” (Dra. Vitória)

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“A subjetividade está sempre presente” (Dra. Tânia)

“Algum juízo de valor há. O que tentamos é fazer um registro correto,

com as informações, que não seja leviano.” (Dra. Marília)

Em sua análise sobre o trabalho de uma UFI (Unidad Fiscal de Instrucción) num

bairro da região metropolitana de Buenos Aires, Eilbaum sustenta a importância de uma

perspectiva sobre o funcionamento da justiça que, ao invés de priorizar apenas a “forma”,

quer dizer, o arcabouço legal, a validação jurídica, ou apenas “o fundo”, isto é, o conteúdo

de processos e decisões, observe precisamente a intersecção das formas jurídicas com o

esse “fundo”, as dissonâncias entre o saber técnico, as expectativas das pessoas

envolvidas e as decisões judicias resultantes desse contexto.

“Em algumas situações, o respeito à forma ganhava tal importância que

o fundo – o conteúdo dos relatos e das decisões – perdia consistência.

Mas, em outros casos, a ‘forma’ era utilizada e moldada com o único

fim de que o (um) ‘fundo’ fosse aceito como válido. Ora se priorizava

um, ora se priorizava o outro, tal como podia ser feito pelo observador

com aquelas figuras dos desenhos em preto e branco.” (EILBAUM,

2012, p.27)

Em sua etnografia, Eilbaum (2012) observa a preocupação constante de manter o

respeito à forma, a fim de que a decisão não acabasse sendo anulada por ilegalidade, e

demonstra que essa preocupação não anula a incidência decisiva de moralidades sobre as

decisões. No dia 2 de junho de 2017, um caso que acompanhei no ônibus me ajudou a

refletir sobre a interpenetração entre esses dois eixos de que fala Eilbaum, o fundo e a

forma, explicitando a preocupação com a fraude, a exigência da legalidade e o papel do

juiz na interpretação da questão, ratificando a construção do saber jurídico como um saber

local, no qual as ferramentas, técnicas e interpretações são decisivos.

Sônia, de 54 anos, chegou para a audiência no ônibus depois de ir ao Detran

renovar sua carteira de identidade e lá ser informada de que, antes, outro problema deveria

ser resolvido: no banco de dados do Detran, ela aparecia com duas certidões de

nascimento, nas quais variava apenas o nome do pai. Sônia contou sua história à juíza que

a atendia na sala de audiências 2: o pai biológico abandonara a família, sua mãe se casara

de novo e o novo companheiro a tratara como filha. Por isso resolveu registrá-la, fazendo

nova certidão de nascimento em um “cartório amigo”.

94

A juíza compreendeu e disse que não havia problema, pois mandaria recuperar no

banco de dados do Detran a certidão original, com o nome do pai biológico. Sônia teria,

assim, o registro original, “verdadeiro”. Ao receber a notícia, Sônia caiu em prantos.

Disse que o pai biológico a abandonara, e o padrasto a criara como filha, sendo, portanto,

seu pai. A juíza escutou, tranquila, e mais uma vez explicou que não havia solução, pois

o registro feito pelo padrasto era, legalmente, falso. Sônia disse que não queria o registro

com o nome do pai biológico. O caso parecia sem solução.

Da sala 3, o promotor de plantão naquele dia ouviu tudo. Sugeriu: “Doutora, por

que a senhora não faz com base no princípio da dignidade?” Diante da dúvida da juíza,

explicou que a Constituição Federal brasileira tem entre seus preceitos fundamentais o

fundamento da dignidade humana (CF, artigo 1º, III), e que isso permitiria a ela atender

a demanda de Sônia com bases constitucionais. Da sala 1, a juíza (a mesma que, 15 dias

antes, atendera o índio Akasu-j) ajudou a colega ao lado: “Sim, é possível alegar o

princípio da dignidade humana e, sem se alongar muito, dizer que, diante da demanda da

requerente, será dado o registro tal como solicitado por ela. Já fui defensora pública,

fizemos assim uma vez e foi aceito, sem problema”. A juíza da sala 2 relutava, afinal, o

registro “verdadeiro” era o que fora feito primeiro, com o nome do pai biológico. O

constrangimento era visível. O promotor percebeu: “Agora, se a doutora não se sentir à

vontade...” A juíza da sala 2 disse: “É, de fato, não me sinto”. E a juíza da sala 1

completou: “Mas eu me sinto! Quer mandar para mim? Faço na hora”. A juíza da sala 2

concordou, Sônia mudou de mesa e saiu de lá com autorização para ter em sua certidão

de nascimento o nome do padrasto.

Pedi que o promotor e a juíza da sala 1 falassem sobre aquele caso. O promotor

explicou: embora o registro original fosse o que trazia o nome do pai biológico, obrigar

Sônia a aceitá-lo era desconsiderar sua história, pois ela fora criada pelo padrasto, seu pai

adotivo, e não pelo pai biológico, que a abandonara. O registro “verdadeiro”, por lei,

confrontava Sônia com o abandono, enquanto o outro de fato lhe conferia uma família.

No entendimento do promotor, o princípio da dignidade, fundamento constitucional

brasileiro respaldado em longa tradição jurídica, permitia aquela “licença”, como

chamou. A juíza da sala 1 explicou:

“Eu poderia anular o primeiro registro. Isso é certo também. Você tem

uma interpretação mais restritiva ou mais elástica. Não é certo nem

errado. O Direito brasileiro tem como princípio geral a dignidade

95

humana. Essa é a finalidade do Direito, garantir essa dignidade. Minha

opção foi preservar esse direito, o direito à dignidade” (Dra. Carla)

Ao final, a juíza mandou conceder a Sonia o registro com o nome do padrasto. E

repetiu o que me dissera no processo de Akasu-j. “As pessoas sentem muito poder em

dizer não”, lembrou. Guardei essa frase como uma síntese do que as trajetórias das

pessoas sem documento me relatavam: ao longo de suas vidas, nos cartórios, hospitais,

balcões, juizados, muita gente “sentiu poder” em lhes dizer não.

Nos dois casos, de Akasu-j e Sônia, a luta para obter o registro de nascimento

reflete também uma das buscas que identifiquei nesta pesquisa: a certidão de nascimento

como elemento de recuperação e valorização da trajetória familiar. Era, assim, um

elemento decisivo na valorização da própria identidade, e assim foi entendido pela juíza.

Ao mesmo tempo, esses dois casos dialogam com a ideia do saber jurídico como um saber

local, no qual “o que acontece” só acontece quando isso se dá aos olhos do direito, como

alertava Geertz (1997). Clara, técnica do ônibus, me havia alertado que eu veria

diferenças dentre as decisões, dependendo do juiz que estava no plantão, embora a lei

fosse a mesma.

“Para trabalhar aqui no ônibus não pode ser um juiz que julgue só com

a lei, porque a gente se depara com casos que a lei nunca analisou antes.

Não pode ser um juiz que venha para cá para buscar culpados, como

aconteceu certa vez com um juiz muito famoso, estrela de uma vara

criminal aqui do Rio. Ele achou que todo mundo que vinha aqui pedir

o registro, na verdade, tinha cometido um crime e queria iludir a Justiça.

Temos que ter esse cuidado? Claro que sim, e por isso fazemos a busca

com a Folha de Antecedentes criminais. Mas, se a gente só enxergar

isso, não faz o trabalho” (Clara, em entrevista concedida a mim no dia

31 de março de 2017)

Por fim, na reconstituição da atuação dos juízes no trabalho do ônibus, destaco

dois últimos pontos. Um deles é a forma como o trabalho de combate ao sub-registro

oferece uma sensação de satisfação pessoal e profissional, além de muitas vezes comovê-

los e exigir deles um olhar mais amplo, e não meramente “técnico”. A seguir, alguns

relatos de juízes sobre esses dois pontos:

“O nosso contato com a parte aqui é muito direto. A gente fica frente a

frente. A pessoa agradece, quer abraçar, nos abençoa” (Dra. Vitória)

96

“Eles dizem, Deus lhe abençoe, doutor, o doutor me fez gente. Muita

gente aqui já saiu chorando” (Dr. João)

“Hoje o que mais gosto de fazer é isso. Me dá satisfação pessoal, pois

faz diferença na vida de alguém.” (Dra. Carla)

“Se emocionar, a gente se emociona sempre. As pessoas abraçam a

gente. O juiz do sub-registro tem que ter um perfil de sensibilidade. A

pessoa quer abraçar a gente, tirar foto. Tem um impacto direto na vida

da pessoa.” (Dra. Vitória)

“O sub-registro exige um zoom, um olhar além, entender o que faltou.

Olhar não só tecnicamente. O sub-registro tangencia outras causas,

raça, gênero.” (Dra. Esther)

Fica claro, assim, o reconhecimento, pelos juízes, da relevância do trabalho

desempenhado, bem como a relação momentânea de proximidade com o usuário. E, mais

uma vez, a ideia de que, do juiz que vai trabalhar no combate ao sub-registro, exige-se

um perfil específico, “de sensibilidade”. Por fim, destaco a compreensão expressada pela

Dra. Esther de que o sub-registro é uma questão que tangencia outras causas, como

pobreza, raça e gênero. De fato, pude perceber, durante a pesquisa de campo, o

entrelaçamento da temática do sub-registro com essas categorias, e tratei de algumas aqui.

Na temática de gênero, mulheres são as principais interlocutoras deste trabalho, tanto

como pessoas que buscam a certidão de nascimento para si ou para seus parentes, quanto

como cuidadoras, juízas, operadoras do direito.

Por fim, o último ponto que destaco das falas dos juízes é algo crucial para esta

pesquisa: a discussão sobre a Justiça como garantidora de direitos e da execução de

políticas públicas. Como enfrentar a questão do acesso à documentação no Brasil? O que

precisa ser feito? O que o juiz pode fazer, já que, no caso do adulto sem nenhum

documento, só um juiz pode garantir a emissão da certidão de nascimento? Alguns trechos

destacados das conversas com as juízas e os juízes estão a seguir:

“O que a gente não pode fazer é simplesmente mandar a pessoa embora.

Alguma coisa tem que ser feita. Toda vez que o registro é negado, o

direito é negado.” (Dra. Conceição)

97

“Vejo ainda um pouco de resistência dos cartórios, medo de fazer algo

errado, de ser uma tentativa de fraude. E a pessoa segue sem o direito”

(Dra. Hellen)

“Acho o trabalho do juiz muito violento. É um direito íntimo que não é

garantido se não tiver a violência do juiz que vai lá e diz: Registra.

Vivemos numa sociedade violenta, mas o trabalho do juiz é de uma

violência de igual intensidade” (Dra. Esther)

“Não vejo muita revolta não... Quando há revolta já é bom. A pessoa

pelo menos já entendeu que foi lesada. Vejo mais apatia que revolta.”

(Dra. Esther)

“Tem que ter mais orientação aos pais e aos cartórios. Alguma coisa

tem que ser feita.” (Dra. Flavia)

“O trabalho aqui no ônibus é um resgate de um papel que o Estado

deveria ter feito, mas agora, com um adulto, só a Justiça pode fazer. É

também uma forma de pacificar um conflito social e de resgatar a

pessoa com cidadã, como sujeito de direitos” (Dra. Margarida)

Nessa sucessão de falas evidencia-se a compreensão dos juízes de que, apesar dos

dados apontarem a eventual erradicação do sub-registro de crianças, ainda está longe a

solução para o problema do acesso à documentação no país. É claro também o

entendimento do papel da Justiça como instância que não pode se abster de atuar, pois

negar o registro é negar direitos. No caso de adultos sem documentos, Dra. Margarida

afirma: “Só a Justiça pode fazer”. Por fim, ainda destaco duas falas da Dra. Esther

explicitando a violência do papel da Justiça em meio a uma sociedade violenta e sua

percepção de uma apatia dos usuários, mais que revolta. A cidadania forjada na espera,

como já escrevi aqui, é uma cidadania marcada pela submissão.

Cidadania, punição, Direito e direitos são conceitos que emergem da etnografia

das audiências no ônibus da Justiça Itinerante. O trabalho de campo permitiu reconstruir

alguns eixos, como o lugar da memória, a punição que chega antes do benefício, a

construção da verdade jurídica como resultado de variadas teias que se cruzam. A partir

de tantos fragmentos, constrói-se no campo jurídico uma história com alguma inteireza,

que permita ao juiz decidir como agir na garantia de direitos. O registro de nascimento é

direito de todos – mas garantir a concessão desse direito a um brasileiro adulto é uma

operação em são mobilizadas muitas instâncias, como memória, conhecimento jurídico e

98

interpretação. É um ato que se dá na intersecção permanente entre “fundo” e “forma”,

entre saberes formais e vivências, entre legalidades e moralidades. Como bem percebeu

a clarividente Clara, para ser juiz no ônibus da Praça Onze “é preciso julgar com algo

mais que a lei”.

99

Capítulo 4

“Agora eu vou viver a vida”: o rito em funcionamento

O cartório do Juizado da Infância e da Juventude abre às 11h, e o corredor dentro

do prédio do Juizado vai aos poucos sendo ocupado por pessoas que concluíram naquele

dia as audiências no ônibus da Justiça Itinerante. Encaminhadas por um funcionário do

ônibus, elas atravessam o pátio, entram no prédio pela portaria da frente e esperam a

chegada da funcionária encarregada de fazer o registro de nascimento. Em setembro de

2016, a responsável pelo setor é Luísa, uma simpática estudante de história que demonstra

muito interesse pela minha pesquisa. Luísa recebe a decisão judicial referente a cada

processo e lança nos livros cartorários o registro do nascimento de cada uma daquelas

pessoas. A partir do registro, emite a certidão de nascimento. Vai até o corredor, fala em

voz alta o nome da pessoa e faz a leitura do documento com cada uma delas, conferindo

todos os dados. Se estão corretos, Luísa entrega o documento e orienta: “Aqui está sua

certidão, não pode perder nem plastificar”. Muitas vezes ela é abraçada pelos usuários do

ônibus, em sinal de gratidão.

Ao longo desta pesquisa, acompanhei muitas entregas de certidões de nascimento,

entre elas as de Rita, Cristiane e sua filha Krícia. Enquanto Luísa lê seus dados no

documento, Cristiane começa a chorar, e esse não foi o único choro que presenciei durante

o ato de entrega da certidão de nascimento. Luísa pede que Cristiane confira. Há um erro

no nome do pai de Krícia, e o documento será refeito naquele mesmo dia. Minutos depois,

Luísa volta com o documento correto e repete a orientação: “Aqui está sua certidão, não

pode perder nem plastificar”.

Já Rita é só sorrisos ao receber o documento. Não chora. Pergunto o que ela faria

a partir dali.

“Agora vou me sentir viva, né? Com o registro na mão. Meu maior

sonho era ter documentos, certidão. Sem documento não existe.

Enquanto não consegui, não sosseguei. Quero estudar, assinar minha

carteira, abrir conta, tirar Bolsa Família para os meus filhos, que eles

tenham direito. Quero a pensão dos meus filhos.” (Rita, 32 anos)

100

A observação de toda a rotina do ônibus da Justiça Itinerante me permite refletir

sobre o registro de nascimento a partir do conceito de rito de instituição presente na obra

de Bourdieu (1996) e central para esta pesquisa. Partindo do estudo sobre os ritos de

passagem de Van Gennep, Bourdieu formula a ideia de “rito de instituição”, propondo a

compreensão do rito como um processo que modifica a condição de quem passa por ele,

conferindo-lhe um novo status. O rito é a mediação que consagra, legitima e torna natural

o que na verdade é arbitrário. É um efeito “quase mágico”, diz, e o que o rito “declara”

se torna verdade. (BOURDIEU, 1996) Esta mudança de status faz com que o autor decida

designar tais ritos como “de instituição”, pois eles instituem de fato linhas, limites, que

separam as pessoas que passaram por esses ritos das pessoas que não o vivenciaram. Esta

linha consagra uma diferença entre os dois grupos, atribuindo a quem passou pelo rito

uma nova identidade.

“Assim, o ato de instituição é um ato de comunicação de uma espécie

particular: ele notifica a alguém sua identidade, quer no sentido de que

ele a exprime e a impões perante todos (“kategoresthat” significa,

originariamente, acusar publicamente), quer notificando-lhe assim com

autoridade o que esse alguém é e o que deve ser.” (BOURDIEU, 1996,

p.101)

Uma das histórias de vida relatadas nesta pesquisa foi a de Valderez, a alagoana

que teve a mãe assassinada pelo pai. No Rio, Valderez chegou a viver com uma tia, fugiu

de casa, morou na rua e perdeu a certidão de nascimento. Abrigada por uma família,

conseguiu, com a ajuda de um conhecido dessa família, fazer uma nova certidão. No

cartório, porém, o responsável achou que Valderez era nome de homem e lhe deu outro,

Fabiana, escrito em uma certidão sem os nomes dos pais. E relembro: na audiência ela

recebeu a opção de escolher entre duas certidões, dois nomes, duas vidas: Fabiana ou

Valderez. E ela escolheu seu nome original, o que a conectava aos pais e aos irmãos.

Outra escolha que ajuda a entender a conexão entre nome e identidade é a de Dani,

25 anos, personagem já citado em alguns depoimentos, mas cuja história de vida ainda

não detalhei. Entrevistei Dani no dia 25 de novembro de 2017, quando uma assistente

social do comitê de Belford Roxo fez as apresentações, achando que eu poderia me

interessar por aquele caso. “Venha conhecer Dani. O nome é de homem, mas ela tem o

fenótipo de uma mulher”, me contou a assistente social.

101

Dani nasceu biologicamente como um menino, mas me contou que sempre se

sentiu como uma menina. Gostava de brincar de boneca, casinha e ajudava com as

crianças da rua. O pai morreu logo depois que ela nasceu, e sua mãe entrou numa longa

e severa depressão, sem nunca ter cuidado de registrar a criança. O mesmo aconteceu com

a irmã de Dani, Ana Gracie. Dani foi crescendo e sempre se sentiu menina. Aprendeu a

ler e escrever “mais ou menos”, com explicadoras particulares ou em pequenas escolas,

mas interrompeu os estudos. Trabalhava de dia, como cuidadora de crianças, e de noite,

se prostituía.

Conversamos longamente, e Dani me concedeu uma entrevista gravada. Contou,

e já referi em capítulo anterior, da vergonha que sentia por não ter documentos: “É

horrível, você quer ir pra um lugar e não pode. Você praticamente não existe”, resumiu.

Disse que sua família aceitava sua identidade de gênero e que o problema prático mesmo

era a questão da documentação, pois Dani achava que isso a impedia de conseguir um

emprego melhor. Relatou-me ainda que não tinha certeza se faria a cirurgia de mudança

de sexo, e, na audiência, recusou a oferta da juíza para ser registrada com um nome

feminino, Danielle, ou apenas Dani. Usou o nome que lhe fora concedido pelos pais,

Daniel. Perguntei por que não mudava, e Dani respondeu:

“Acho que o nome do papel eu só vou mudar quando resolver fazer a

cirurgia, sabe? Mesmo me sentindo mulher, ainda preciso ser homem.

Quando faço programa, os homens querem que eu seja ativo com eles,

não o contrário, você entende, né? Não é uma coisa que eu gosto, mas

faço. Então, acho que, quando eu não precisar mais fazer isso, vou fazer

a cirurgia e mudar o nome” (Dani, 25 anos)

O nome também estava no centro da história de vida de Renata, que conheci no

ônibus no dia 10 de março de 2017. Renata cresceu numa família de muitos irmãos sem

documentos. Contou que não conheceu a mãe biológica e foi criada por uma prima, que

a registrou na adolescência, no estado do Espírito Santo, onde a família morava. Renata

me disse que, por um erro de cartório – e não posso deixar de me lembrar da afirmação

de Clara, técnica do ônibus, de que “o Equívoco trabalha em vários cartórios” – sua

certidão de nascimento foi expedida com o nome de Renato. O documento, em vez de

melhorar a vida de Renata, quem diria, trouxe um problema.

“Eu virei motivo de chacota na escola, na família. Só riam de mim,

diziam que eu tinha dois sexos, que eu era homem. Eu sabia que

102

precisava mudar o registro, sempre quis mudar, mas não conseguia”

(Renata, 38 anos)

Renata deixou a escola na quinta série. Trabalhava como diarista, copeira,

faxineira, fazia de tudo um pouco. Pariu oito filhos que, quando a conheci, contavam

idades de 3 a 19 anos. Como o pai nunca quis registrar as crianças, ela registrou-os

sozinha, com seu documento, como se fosse o pai, Renato. As crianças estudavam e

tinham cartão do SUS (Sistema Único de Saúde). O casamento, porém, desandava, e

Renata sofria em casa a violência do marido, dependente químico:

“Ele cheirava, bebia, fazia tudo. Queimava minhas coisas dentro de

casa. Um dia tentou me matar e jogou em mim a panela de arroz quente.

Quando estava doido, dizia que eu tinha nome de homem” (Renata, 38

anos)

Ao longo da vida, Renata deu entrada na Justiça com nove ações de retificação de

seu registro de nascimento e da certidão. Nunca obteve sucesso. No ônibus, checkpoint

das vidas, memórias e registros, encontrou uma solução. A equipe técnica localizou o

hospital em que Renata nascera e, a partir dali, o cartório que expediu a certidão errada.

Uma nova ação começou, e a certidão de nascimento foi retificada. A partir dali, Renata

conseguiu obter os outros documentos e modificou os documentos dos filhos, passando a

constar como mãe, com seu nome. Sorridente, mostrou-me a identidade e a carteira de

trabalho. Preparava-se para solicitar o Bolsa Família e entrar com uma ação contra o ex-

marido, cobrando pensão alimentícia para os filhos.

As histórias de vida de Valderez, Dani e Renata permitem voltar a Bourdieu e sua

reflexão sobre o papel dos nomes próprios como parte constitutiva das identidades

pessoais, sendo o nome um dispositivo que funciona como um marcador individual e

único, “que integra a identidade do indivíduo em todos os campos possíveis onde ele

intervém como agente, isto é, em todas as suas histórias de vida possíveis”. (BOURDIEU,

1998, p.186). Para Valderez, o nome tinha ligação com sua mãe, sua família, recuperava

sua história. Para Dani, o nome de registro, ainda que em discordância com sua identidade

feminina, lhe permitia acionar um duplo papel de gênero, de homem e/ou mulher. O

direito ao próprio nome, para Valderez, Dani e Renata, se transfigurava no próprio rito de

instituição: para uma, instituía a reconquista da família; para outro, instituía seu lugar

biológico de homem mesmo sendo uma mulher transexual, até que Dani desejasse e se

encontrasse em condições de sair daquele lugar – o que exigiria dela um novo rito, um

103

novo registro. Renata fez da luta pelo próprio nome um motivo de resistência contra sua

história de negação de direitos.

A partir do diálogo com Bourdieu, Ferreira (2009), em estudo etnográfico sobre

pessoas enterradas sem identificação, Brasileiro (2008), em análise sobre o sub-registro

de crianças, e Fonseca (2003), em estudo sobre batizados, recorrem ao conceito de rito

como uma chave fundamental para a compreensão de seus objetos. Com a mesma chave

fornecida pelo rito de instituição, Verón (2017), em estudo etnográfico sobre imigrantes

sem documentos na França, no Canadá e na Argentina, destaca que o limite do arbitrário

é instituído pelo rito que sanciona e santifica, e quem não é alcançado pelo rito torna-se

de seus efeitos excluído. É, mais uma vez, a ideia de uma linha, uma fronteira – nacional,

no caso dos imigrantes da etnografia de Verón, ou uma zona de incerteza, no caso dos

brasileiros sem documentação.

Busco nessa linha de trabalhos inspiração teórica e metodológica para, ao final

desta pesquisa de cunho etnográfico, afirmar que o registro de nascimento pode ser

entendido como um rito de instituição na definição bourdieusiana, pois o registro é um

passo fundamental para a inserção do indivíduo na sociedade documentada. O registro

identifica, define pertencimento, confere direitos e atribui ao agora cidadão o dever de

manter-se documentado na sociedade que exige papéis. A certidão de nascimento é o

documento resultante de um rito de instituição que define, atribui valor e gera obrigações

e direitos. E, porque é rito de instituição, o documento separa, com uma linha, quem tem

documentos e quem não tem. Esta linha é a invisibilidade social como cidadão – e quem

não tem registro não é cidadão.

Mais uma vez, a ideia de um Estado como ente (Abrams, 2006), nos auxilia a

problematizar o momento em que o usuário recebe sua certidão de nascimento. Como

aqueles usuários enxergam o documento e se enxergam dali por diante? Os relatos obtidos

na pesquisa de campo indicam que, do mesmo modo que a falta de documentação é

associada pelos usuários à sua desconstituição como sujeito (“ninguém”, “zero à

esquerda” e “pessoa que não existe”), a chegada do documento é relatada pelos usuários

como a redenção de todos os seus problemas anteriores. Rita, por exemplo, disse que se

sente viva. Uma síntese dessa expectativa – o documento como redenção – é trazida pela

reação de Damiana, uma mulher negra, analfabeta, mãe de cinco filhos, todos, como ela,

sem registro de nascimento.

104

Como já relatei em capítulo anterior, Damiana chegou ao ônibus levada por uma

assistente social que localizou seu filho jogando bola na rua em horário escolar.

Desempregada, em situação de extrema vulnerabilidade, Damiana falava pouco e dizia

que queria apenas o Bolsa Família para os filhos, ou seja, enquadrava-se no que

classifiquei como busca do registro de nascimento para acesso pleno a políticas públicas

e benefícios sociais. Recebeu a certidão no dia 14 de outubro de 2016, quando a

entrevistei e gravei alguns vídeos com ela e os dois filhos que acompanhavam – todos

foram registrados naquele mesmo dia.

Chamada por Luísa para receber a certidão, Damiana não escondia a felicidade.

Ria, pulava e confirmava com a cabeça os dados lidos pela funcionária do cartório. As

crianças, Lázaro e Ana Raquel, foram registradas apenas com o nome dela, sem

identificação paterna, situação comum no país e estudada por Thurler (2009) e Brasileiro

(1998). Damiana só ria. Ao final, abraçou Luísa. Gravei a cena e pedi que ela chamasse

os filhos. Perguntei o que ela faria a partir dali: “Agora eu vou viver a vida”, respondeu.

Insisti com Damiana, novamente gravando em vídeo. Perguntei o que ela esperava

dali por diante. Disse que queria uma casa, pois morava num barraco, e que queria um

trabalho melhor, além de matricular os filhos na escola. E queria o Bolsa Família. Assim,

“agora eu vou viver a vida”, a resposta que ela me concedeu, era também a síntese do que

ela esperava, desejava, necessitava: o acesso a direitos até então negados, e que ela

entendia como uma redenção. Ao seu lado, o filho completou: “Vamos comprar uma

casa”. “Agora eu vou viver a vida” era ao mesmo tempo o reconhecimento dessa

existência sem direitos e a esperança de que o documento a ajudasse a conseguir o que

até então lhe faltava.

Drotbohm (2017), em estudo sobre moradores de Cabo Verde que sonham em

deixar o país – emigrar é uma experiência rotineira para os cabo-verdianos – mostra como

a busca pelo visto e a obtenção do documento são associadas por essas pessoas a

sentimentos como incerteza, mas também, e principalmente, esperança. A autora observa,

em todo o processo de três jovens de busca pelo visto, três dimensões nas quais o

sentimento de esperança é produzido: a construção de redes de relacionamento, ou seja,

pessoas que precisavam ser buscadas, em Cabo Verde e no exterior, para permitir que o

jovem tenha contatos; a organização do conhecimento, traduzida na forma como o

105

candidato a migrante constrói seu dossiê de papéis e informações; e as performances

burocráticas na solicitação do visto.

Segundo Drotbohm (2017), o processo todo de obtenção do visto deve ser

entendido não apenas como uma rotina forma de juntar documentos e informações, mas

um processo afetivo e coletivo, no qual o sentimento de esperança está presente do início

ao fim, não de modo linear, mas em curvas irregulares, indo e vindo, perpassando as

esferas do individual, do social e do institucional.

“Essas dimensões coletivas, institucionais e afetivas da esperança não

acabam na fronteira. Requerentes do visto que negociaram com sucesso

essa longa trajetória de interpretação, relacionamentos, submissão,

diálogo e confiança, que conseguiram o visto e se transformação em

viajantes internacionais, serão sempre acompanhados pela esperança

dos que virão depois deles.” (DROTBOHM, 2017, p.36)

Drotbohm destaca que a esperança trazida pelo visto não se esgota em um caso.

Quem consegue sair de Cabo Verde para realizar o projeto de emigrar se transforma em

referência para outros, como um multiplicador de esperança renovada em telefonemas,

cartas, visitas. Pude observar esse mesmo sentimento de esperança, de redenção, trazido

pela certidão de nascimento para as pessoas que obtiveram o documento no ônibus. Como

mostram os relatos de Rita, Cristiane, Damiana, a certidão de nascimento era vista por

elas e pelos outros usuários do ônibus não apenas como um papel, mas como a chave para

uma nova vida, numa esperança impressa e carimbada.

Do mesmo modo, pude observar que todos os que obtiveram no ônibus suas

certidões de nascimento imediatamente se lembravam de alguém, amigo ou parente, que

também não tem o documento, e manifestavam interesse em levar essa pessoa para

conhecer o serviço do ônibus. Transformam-se, assim, em multiplicadores dessa noção

do documento como um direito que deve ser acessível a todos, multiplicadores dessa

esperança de uma vida documentada.

Porque é rito de instituição (Bourdieu, 1996), o registro de nascimento confere às

pessoas que obtêm a certidão um status que elas nunca tiveram, separando-as do conjunto

das pessoas adultas sem documentação. A partir dali, poderiam tirar outros documentos

e solicitar o Bolsa Família para seus filhos, e seus relatos explicitam uma expectativa de

que o registro possa reconstruir existências vividas nas margens do Estado (Das e Poole,

2004), o que em termos concretos significa, entre tantas outras experiências, trabalho

106

sempre informal e educação precária, quando não inexistente. O documento, como

explicitado por vários autores, é percebido por essas mulheres como chave para acesso a

direitos, benefícios e serviços – acesso à cidadania e à esperança.

107

Considerações finais

“Eu até me sinto uma pessoa melhor”: a existência ganha registro

Um ano depois, não consigo localizar Rita para saber o que aconteceu com ela.

Seus telefones não atendem. Tenho mais sorte com Cristiane, e volto a entrevistá-la em

18 de agosto de 2017. Cristiane continua trabalhando na mesma casa na zona sul do Rio,

como cuidadora de idosos, e me conta que, com a certidão de nascimento, tirou todos os

outros documentos, CPF, carteira de identidade, título de eleitor e carteira de trabalho.

Conseguiu inscrever-se no Programa Bolsa Família, seu objetivo imediato quando

procurou o ônibus, e passou a receber o benefício para a neta. Sua filha, Krícia, voltará a

estudar no ano seguinte. “Coisa impressionante como um papel muda a vida da gente.

Eu até me sinto uma pessoa melhor.”

Ao longo desta pesquisa, mesmo depois de ter encerrado o trabalho de campo no

ônibus, continuei mantendo contato com Cristiane. Um amigo me apresentou, no início

de 2018, a um grupo de pesquisadores do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade),

organização não governamental voltada para estudos de tecnologia e seu impacto no

cotidiano. Num evento realizado pelo ITS em agosto daquele ano, um dos temas foi de

que forma a tecnologia poderia melhorar o acesso à documentação no Brasil. Apresentei

Cristiane à equipe do ITS, e, a convite deles, ela participou do evento em São Paulo,

relatando sua experiência para conferencistas nacionais e internacionais.

Em 22 de janeiro de 2019, falei novamente com Cristiane. Ela me contou que

recebeu um cachê de R$ 5 mil por ter ido ao evento em São Paulo e que havia andado de

avião pela primeira vez. Continuava no mesmo emprego, como cuidadora de idosos, com

carteira assinada. Krícia, sua filha, estava trabalhando numa esmalteria, mas sem carteira.

Cristiane havia voltado a estudar, mas, como se mudou, saiu da escola e planejava voltar

para cursar a sétima série. Tinha também uma conta bancária e um telefone fixo em casa.

Perguntei em quem ela havia votado, e ela disse que em Jair Bolsonaro, para presidente,

Wilson Witzel, para governador9. Até o dia em que falei com Cristiane, ela disse que não

havia solicitado o Bolsa Família para neta, porque não sentia necessidade, pois seu

9 Nas eleições gerais de 2018, o candidato de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL), disputou a presidência

da República com Fernando Haddad (PT). O ex-presidente Luiz Inácio Lula Silva, inicialmente o candidato

petista, foi preso e não pode disputar. Haddad o substituiu. No Rio de Janeiro, o juiz aposentado Wilson

Witzel, aliado de Bolsonaro, foi eleito governador.

108

salário, mais a renda da filha, garantiam o sustento. Perguntei como estava sua vida com

documentos:

“A vida está melhor, não dependo mais de ninguém. Vou ao hospital,

mostro meus documentos, não tenho vergonha. Muda a vida da gente,

né? Tem gente que diz que não muda, mas muda sim. Agora quero

trazer uma prima, que também não tem certidão” (Cristiane, 36 anos)

Consegui localizar e entrevistar outras pessoas que eu havia conhecido no ônibus,

com o propósito de conversar sobre o impacto do documento em suas vidas. Obtive

informações sobre algumas delas por intermédio de assistentes sociais ou funcionários

públicos que os haviam acompanhado até o serviço do ônibus. Alguns daqueles com

quem consegui falar me trouxeram detalhes de como haviam obtido, graças ao registro,

direitos e benefícios aos quais nunca tinham conseguido acesso.

Em 24 de agosto de 2017, falei mais uma vez com Dani, a mulher trans que optou

pelo nome masculino na certidão. Ela me disse que, com o registro, tinha obtido os outros

documentos, como a carteira de identidade e o CPF. Apresentou-se para o serviço militar

e foi dispensada. Seguia sem fazer a cirurgia de mudança de sexo. Perguntei se estava

trabalhando, e ela me disse: “Continuo na mesma vida, de dia cuidando de crianças, de

noite fazendo aquilo que você já sabe”, referindo-se aos programas. Perguntei se a vida

dela estava melhor. Dani disse que sim, pois com os documentos conseguia fazer planos,

e o projeto daquele momento era fazer um curso prático de enfermagem. Voltou a falar

da vergonha por não ter documentos: “É uma coisa muito íntima, mas eu tinha vergonha

de não ter documentos. Hoje me sinto mais aliviada”.

Consegui também saber o que aconteceu com Paulo, o lutador de MMA que

chorou ao ver que não receberia sua certidão naquele dia. Em contato telefônico realizado

no dia 24 de agosto de 2017, sua irmã Isabelle me disse que ele, com a certidão de

nascimento, conseguiu tirar os outros documentos. Estava trabalhando de carteira

assinada num supermercado. Segundo Isabelle, Paulo estava namorando e planejava fazer

um curso supletivo, já que nunca fora à escola. O rapaz ainda não havia registrado a filha

de 2 anos que tivera de um relacionamento anterior. Isabelle disse ainda que os dois

conseguiram, a muito custo, levar até o ônibus a mãe que os abandonara na infância, para

que ela confirmasse a maternidade do rapaz. Entretanto, o contato com a mãe não foi

retomado depois daquele dia, e a recuperação dos laços familiares não se configurou.

109

No caso de Valderez, cuja história de vida já foi contada ao longo do texto, a busca

pela documentação de fato fez com que ela reconstituísse os laços familiares. Relatei

nesta pesquisa como, na busca pela certidão original, Valderez reencontrou uma irmã,

Valdenice, que não via havia 21 anos, e a partir dali reencontrou outros cinco irmãos.

Em 22 de janeiro de 2019, voltei a falar com Valdenice por telefone. Ela me

contou que continuava muito próxima de Valderez (então sem telefone) e que as duas

haviam passado o Natal juntas, com os respectivos filhos e netos. Valdenice contou que

os outros irmãos ficaram felizes de reencontrar Valderez, e afirmou que a irmã havia

concluído o processo de modificar toda a documentação para retirar o nome que lhe fora

imposto (Fabiana) e recuperar o original, Valderez. “Agora ela tem uma família,

conseguimos ficar juntas, como todo mundo. Ela é outra pessoa”, contou.

Falei muitas outras vezes com Maria da Conceição, a mulher que queria o registro

de nascimento para fazer uma cirurgia e retirar um tumor maligno no seio esquerdo,

depois daquela primeira entrevista, realizada no dia 14 de outubro de 2016. Antes mesmo

de conseguir o registro, Maria obteve, de um juiz do ônibus, a ordem judicial para que o

tratamento dela fosse iniciado. Depois, quando recebeu a certidão, o tratamento

continuou, e ela tirou a identidade, o CPF e o título de eleitor. Como nunca havia

contribuído para o INSS, não conseguiu aposentadoria, mas obteve o benefício do auxílio-

doença, que lhe garantia, em janeiro de 2019, cerca de R$ 930 mensais.

Em janeiro de 2017, Maria iniciou a quimioterapia no Hospital Antônio Pedro, em

Niterói. Em agosto, me relatou que o câncer era inoperável, mas o tumor vinha regredindo

bem com a medicação. Ela já tinha então identidade e CPF. Estava recebendo o auxílio-

doença. Em agosto de 2018, Maria me disse que o câncer se espalhara para os ossos, e

que ela já havia tirado o título de eleitor, mas não sabia em quem votar.

Em 22 de janeiro de 2019 telefonei novamente. Ela me disse que os médicos lhe

haviam dito que não havia mais muito a fazer, e que tomava comprimidos de morfina e

injeções da droga na veia, para diminuir as dores. Contou-me que se sentia muito fraca,

que estava pesando apenas 35 quilos e que perdera o tato, precisando agora de ajuda de

vizinhos para cozinhar e cortar sua comida. Uma filha, que morava perto, não lhe ajudava

muito. Contou-me que votara pela primeira vez. No primeiro turno, anulou tudo. No

segundo, votou, a pedido de amigos que conhecera no ônibus, num candidato, mas não

110

lembrava o número. “Votei nesse que perdeu”, lembrou, e confirmou que fora no 1310.

Perguntei como estava sua vida com os documentos.

“É uma vida muito diferente. Chego no hospital, me pedem a

identidade, eu mostro com o maior orgulho. É um ouro que não tem

preço. Antes eu não vivia. Agora eu sou rica. Eu antes não podia fazer

nada. Pra mim todo o ouro do mundo não tem o valor desse documento.

Se eu ganhasse na loteria eu não era tão feliz. Além do mais, quando eu

morrer vou ter nome no túmulo” (Maria da Conceição, 52 anos)

Maria, assim, encontrou no fim da vida a legibilidade que lhe foi negada ao longo

da existência. E, quando morresse, não seria enterrada como indigente, um dos temores

mais frequentes nos relatos que ouvi das pessoas sem documento. Na morte, ganharia a

legibilidade que tanto buscara em vida. Maria deixou de viver nas margens? Diante do

que sempre teve, sim. Diante do que poderia ter sido, não. Para Maria e para muitas

pessoas que conheci no ônibus, as margens, exatamente como lembram Das e Poole, são,

mais que um lugar, uma forma ambivalente de organização da existência, da qual não se

sai apenas com um papel.

Não consegui mais encontrar Damiana, a que ia “viver a vida”, nem Rita, que

escondera do namorado sua condição de pessoa indocumentada. Yara, a assistente social

que levara Damiana ao ônibus, disse que a vida dela seguia “no mesmo ritmo, no mesmo

barraco”. O conjunto dos relatos permite refletir sobre o efeito da obtenção do registro e

da certidão de nascimento. Cristiane tirou a carteira de trabalho e fazia planos de voltar a

estudar, mas sua filha seguia trabalhando na informalidade. Maria obteve o tratamento

contra o câncer e um auxílio-doença. Paulo conseguiu emprego formal. Dani conseguiu

os documentos, mas não obteve trabalho formal e seguia trabalhando no mercado do sexo.

Valderez seguia sem emprego, embora ao lado da família.

Com esta tese chegando ao final, é hora de consolidar algumas conclusões, talvez

mais que conclusões, caminhos de reflexão sobre a temática das pessoas sem documento.

Os relatos da vergonha por não ter documentos e as afirmações de que não existem,

embora existam, iluminam o lugar do nome como um direito e do registro de nascimento

como representação desse direito, sendo a falta do documento associada à ausência de

direitos. A reconstituição das histórias de vida dessas pessoas também permite concluir

10 13 era o número do candidato petista Fernando Haddad, derrotado por Jair Bolsonaro.

111

que o registro de nascimento tem uma finalidade imediata, mas não apenas imediata. No

processo de obtenção do documento, muitos usuários buscam reconstruir a própria

história e recuperar laços familiares. A busca pela documentação carrega uma outra

busca, por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história.

Outra conclusão obtida da pesquisa de campo vem da reconstrução do percurso

das pessoas sem certidão de nascimento. Na arquitetura do edifício burocrático estatal, a

síndrome do balcão pode ser entendida como parte do processo de construção de uma

espera submissa, que gera vergonha e culpa, atrasando ainda mais o acesso a direitos

negados, embora universais.

Nesse sentido, o ônibus da Praça Onze pode ser entendido como um checkpoint,

o lugar no qual o indivíduo vai encerrar a busca de balcão em balcão e onde receberá o

documento que o tornará legível aos olhos do Estado. O ônibus é um checkpoint no qual

as vidas dos usuários são escrutinadas para que eles provem que são quem de fato dizem

ser; a partir dali, são emitidos para aqueles usuários documentos que se transformam em

chave para acesso a direitos – teoricamente, a chave para que deixem de viver nas

margens do Estado. Mas o ônibus é também um lugar de acolhida, um ponto de chegada

no qual a busca se encerra.

No entanto, depois de tantos anos sem acesso pleno a direitos, será a certidão de

nascimento suficiente para que aquelas pessoas deixem as margens, como lugares de

exclusão e acesso reduzido a direitos? Desta pesquisa resta comprovado que o registro de

nascimento, para além de sua finalidade imediata – conseguir outro documento, uma vaga

em escola, o Bolsa Família – é também um documento que permite o acesso a outros

direitos. Facilita o acesso a políticas públicas, emprego formal e legibilidade, além de

carregar consigo condições para os processos de recuperação dos laços familiares. Pode

ser uma chave formal para que se tente garantir direitos e acesso a uma cidadania que, se

em tese é universal, muitas vezes se realiza como diferenciada.

Mais uma vez, percebe-se a falta de documentação de adultos como uma temática

transversal, em conexão com outras questões, como pobreza, desemprego e acesso a

políticas públicas. Esta pesquisa foi realizada no centro do Rio de Janeiro. Como será no

restante do país? A dificuldade que funcionários do ônibus expressaram para obter

informações em outros cartórios, por exemplo, é um indicador da falta de articulação

entre instâncias, formas e lógicas do sistema de documentação, edifício burocrático

112

crucial para o acesso a políticas públicas e direitos. Este é um dos motivos pelos quais

esta pesquisa não se encerra aqui, permitindo buscar novas reflexões e discutir políticas

públicas para a questão dos adultos sem documento. Depois de mergulhar nas vivências

das pessoas sem documento, desejo num futuro próximo investigar caminhos capazes de

melhorar o acesso à documentação.

Em 2017, a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão ligado ao Conselho Nacional

de Justiça, determinou a regulamentação e padronização das certidões de nascimento

emitidas no Brasil (CNJ, 2017). De acordo com o Provimento 23, a criança deverá receber

ao nascer um número de CPF, que deverá constar na certidão, incluindo assim o recém-

nascido num cadastro nacional. Permite também que as certidões tragam o nome de dois

pais ou duas mães, ou de padrastos, e que o local de nascimento não seja necessariamente

o local do parto, mas também o local de residência da mãe. As mudanças indicam o debate

contínuo sobre a temática do registro e do sub-registro, bem como ratificam as reflexões

desta e de outras pesquisas sobre a centralidade do documento como artefato burocrático

– centralidade que se apresenta repetidamente, como já explicitado aqui, na percepção

que as pessoas sem documento manifestam sobre o papel da certidão e sobre a falta dela.

Do relato de Cristiane, chamo a atenção para o fato de que ela diz se sentir “uma

pessoa melhor”. Afinal, ela não é a mesma pessoa? Bourdieu afirma que o rito de

instituição contém uma magia performativa: “‘Torne-se o que você é’, eis a fórmula que

subentende a magia performativa de todos os atos de instituição”. (BOURDIEU, 1996,

p.102) A magia da certidão de nascimento tem efeitos distintos para aqueles que obtêm o

documento. De modo imediato e universal, garante a legibilidade formal e a possibilidade

de acesso a outros documentos e direitos; mas a garantia de mudança da condição social,

de “saída” da margem, se relaciona a outros fatores, como inserção no mercado e

escolarização.

A certidão de nascimento é associada, por fim, à produção e à renovação de um

sentimento de esperança depois de tantos anos de direitos negados. Não à toa, muitos

usuários do ônibus dizem que “nasceram de novo” ao receber o documento. Maria, quase

morrendo, dizia que se ganhasse na loteria não sentiria a felicidade que sentia por ter o

documento – que ela comparava a ouro. Para muitas pessoas que entraram no ônibus sem

nenhum documento e saíram dele com a certidão, o registro representou o primeiro passo

para que conseguissem um papel que é ao mesmo tempo um documento, um

113

reconhecimento de um direito que até então lhes fora negado e a chave para novos

direitos. Um papel que traz esperança, embora seja só um passo no longo caminho da

cidadania.

114

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126

APÊNDICE

Ônibus do subregistro estacionado no pátio do Juizado da Infância e da Juventude,

na Praça Onze, centro do Rio

127

Fila de pessoas que esperam atendimento no ônibus

128

As audiências dentro do ônibus

Na sala de audiências 1, Akasu-j e Sãmehy; na sala 2, Igor e sua mãe, Rosemary; em

primeiro plano, as duas juízas

Família em audiência na sala 3

129

A entrega da certidão de nascimento

Krícia, Cristiane e Mayra

Damiana, Ana Raquel, Lázaro e Inês, assistente social

130

Valderez, as duas certidões e a audiência ao lado da irmã

131

Maria da Conceição recebe o documento

Audiência de Adriano, preso sem documento, no TJRJ

132

Certidão de um homem que buscava a segunda via do documento