fuga!

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Publicação final para artes gráficas B, leitura boa! obs: a versão digitalizada apresenta problemas de legibilidade, sinta-se livre para virar o monitor de cabeça pra baixo quando necessário.

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“eu pensei correr de mimmas aonde eu ia eu tavaquanto mais eu corriamais pra perto eu chegava”

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A Catarse e o Catarro.

Mesmo que ninguém queira, a ficção parte sempre de um terreno real para atingir o vazio do que é irreal e formar suas imagens.

Às vezes é melhor entendê-la quando bem apartada de mim, logo depois de olhar com medo o real nos olhos; ou simplesmente para abandoná-la ali, com muito esforço no papel e apenas esquecer. A coisa separada de mim é outra cosa, - ela

Laura Cohen.

Tantas vezes acabo pensando que uma das funções disso é sempre escapar do mal que causa a coisa em si.

sempre sozinha

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já não me pertence. Pode sofrer uma ação individual do tempo. Há sempre essa liber-dade no desprendimento dos fatos escritos: eles desaparecem da minha pele. Eu me separo disso porque não preciso supor-tar tudo. Nos separamos porque a coisa que deve ser escrita ou que já foi escrita é completamente diferente de mim. Vejo-a como um grande monte de lixo.

sempre sozinha

Ela apod-rece sozinha.Ela age sozinha. Ela não tem mais o meu nome.

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Não matar o próprio pai ou evitar o coito com a própria mãe é motivo o suficiente, mas, ainda assim, Sim, talvez a fuga mais clássica e menos agradável da história da minha visãozinha de mundo me faça acreditar em destino, afinal. É bem o que diria minha autoajuda na estante ao lado da janela: Eu preferiria não ter que citar os Wethers, os Kerouacks ou os Cobains, mas, se há algo de lógico nessa cronologia, não posso evitar tangenciá-la A fuga é parte dessas estéticas, porque ela é verda-deiramente linda, verdadeiramente plástica.

Eu vou organizar os termos: a fuga é um elemento plástico, um adjetivo, na verdade; talvez até um estado de espírito, cuja es-sência é aquilo que se pretende motivo. Em outras palavras, a essência da fuga é uma outra busca e, se é busca, então é possível afirmar que, enquanto houver visão, ou visi-bilidade, haverá fuga. Fugir, por outro lado, não é a prática dessa fuga, mas uma técnica. Evitar, por exemplo, é outra técnica – há milhões, que vão desde andar até colecionar botões, passando in-clusive, pelo jogo ou o sexo. já julguei que, talvez, fosse a escrita minha fuga. Não é. Quando escrevo, na verdade, é em fun-

Tulio Magno.

um bom motivo não quer dizer uma anulação.

“a fuga é só um outro caminho”.

(ótimo: evitar).

Aliás, ela é tão essencial à plasticidade que temos aí a técnica de milhões de quadros a

argumentar por mim.

Em um pensamento mais rasteiro,

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ção de permanecer, porque se trata de uma seleção, um trabalho árduo para encontrar o artifício com que eu sinto o mundo, logo, escrever é a afirmação interventiva do estar.

ou tenho nomes completamente novos, mas há uma insurreição e, como não?, algum fulgor, ou fugacidade, que, com sorte, deixa algum rastro que me é útil quando eu paro e me vasculho um pouco, já num momento posterior de intervenção. Faz todo sentido, nesse ponto, observar minha autoajuda, ou o In Utero em uma es-tante – essas já foram minhas fugas alguma vez na vida, assim como aquelas revistas que doei ao meu primo ou a cerveja que to-mei para mais certo dia na minha memória. Pois bem, mas, assim como não foi possível a Édipo evitar matar o próprio pai ou tran-sar com a própria mãe, não se pode evitar a ressaca, o fim de uma música ou de um livro.Tenho várias fugas, como todos que chegam

à fase adulta as têm. Quando tento defini-las, costumo me perder, porque o hábito,

que é também uma técnica de fuga – a que mais detesto, aliás – torna tudo mal engavetado em minha mente, como um

funcionário preguiçoso de repartição, que não sabe diferenciar o valor real das coisas e trata todos os documentos como simples

papéis.

Belo Horizonte, Outono de 2011.Francisco Manuel Gonçalves.

(ótimo: evitar).

A fuga é afirmação da mesma forma, mas não há interferência, se é que eu me faço claro.

Quando há fuga, não tenho nome para as coisas,

Descobrir o que foi fuga ou não só depende da existência dessa intervenção, dessa assunção, que depende da observação – o reverso da visão e da visibilidade que a permitem. Se eu fujo, bebo, ou coisa assim, o que me sobra é tomar alguma posse de mim mesmo, afirmar, intervindo, tudo o que eu vivi. E a esse respeito, como a Antígona para Édipo, eu tenho a escrita, minha cria e companheira.

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–Parece um balé. O que é que os filmes não colocam pra sempre na nossa cabeça né ? Enquanto eu me imagino ouvindo penso em como uma boa amiga estaria rindo de mim por eu lembrar uma hora dessas da Marilena Chaui.

Absoluto mais em um sentido de definitivo mesmo. Ele sempre esteve lá e ele sempre vai estar. Ou nunca mais. Isso talvez é que seja o vazio. O caso é que você se movimen-ta de maneira calculada, da pra quase ouvir algum lugar do seu cérebro contando Mas mesmo com tanto cálculo, a sensação de que você não foi criado pra esse lugar é absoluta. Igual ao

Matheus Ferreira.

“Also sprach Zarathustra”,

A quase nula influencia da gravidade te faz lembrar que o vazio é aterrador e absoluto.

“um... dois... três... agora.”

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vazio. Da pra questionar se você foi mesmo criado ou se sei lá o que quando você olha pra aquilo que você teme que de fato seja o infinito. Parece a vida toda a duração daquilo e você, apre-ensivo como se o resto dela dependesse de estar tudo no lugar certo e na hora certa. E depende.

posso estar enganado... tinha um negócio de que o termo era derivado de um verbo que significava “separar, ser amplo”.

E eu nem acredito em deus! Aquela coisa se ver a vida toda passando diante dos seus olhos é real, mas você faz isso não na hora que morre, mas na hora que nasce. A gente sempre vem equipado com alguma espécie de gravador. Só não da pra saber se ágüem vai ouvir um dia. Mas na hora o caos está dentro de você. Eu aperto o botão e digo “diário de bordo do naufrágio... primeira parte...”.Matheus Ferreira, 20 de junho de 2009.

“Um... dois... três... quatro.”

Eu lembro de ter lido que o deus “Caos” era inicialmente descrito como aq-uilo que ocupava o que havia entre o Éter e a Terra...

Eu estou exatamente no caos absoluto e é estranha a sensação de que em alguma in-stância, todo mundo sempre esteve. “Um... dois...” meu deus!

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Nunca tive muita coisa, mas sempre o que tive foi precioso. Agora pra mim eu orga-nizava num canto as minhas coisas e numa marmita de metal eu guardava coisas pra memória:

a unica cor que eu tinha - das pessoas importantes pra mim: a Yoko, minha cachorrinha, meus pais, meu irmão,

Poucas roupas e pertences e quase tudo molhado e sujo, naquela bagunça pós-tem-pestade e eu só conseguia me lembrar dos meus discos e de como devia ser naufragar no espaço como o Major Tom da musica do David Bowie.

Já faziam quatro semanas que eu não con-versava com ninguém e naquele momento aquilo parecia algo muito bom.

um pacote inteiro de massinha de modelar que eu usava pra fazer bonequin-hos - todos verdes,

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Gabriel Garcia Marquez e mais uma meia dúzia de pessoas que ainda estavam comigo sempre.

Pensei tanto que esqueci de pensar em o que que seria da minha vida: foram os primeiros dias que eu não pensei nisso, e justo quando eu aceitei a condição de náu-frago e já funcionava como um eremita perfeito, veio uma tempestade denovo e eu fui engolido sorrateiramente pelo mar e acordei na enfermaria de um clube à beira mar de uma praia de Santa Catarina.

Desde então, quando dá eu viajo pro litoral e perambulo de praia em praia atrás das

minhas pessoas de massinha e da saudade que eu tenho de mim.

Das nove semanas que eu passei naquela praia estranha e deserta, a ultima foi a que

eu mais pensei. Armazenei umas frutas de-baixo da árvore, um pouco de água, assentei

e pensei. Pensei muito. Pensei em como deve ser viver na pele de um cachorro, so-

bre como boa parte da vida é desnecessária, como as coisas não fazem muito sentido e

que a gente só fica em paz quando aceita isso, e como Tom Jobim errou na letra de

“Wave”: é plenamente possível ser feliz sozinho.Pessoas de massinha são seres

humanos perfeitos ainda que tortos e mal feitos, inclusive, porque os de verdade são

assim também.

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Laura Cohen.

O dente do Louco.

I. Ouço o que o louco diz. Ele ameaça tomar o lápis da minha mão e diz: Ele quase me faz tropeçar na calçada quan-do me faz olhar para uma no alto. A caminho do ponto de ônibus me encontro com Daniel em frente ao louco. Eu estou voltando para casa, Daniel está indo em-bora. Cumprimento a timidez dele com um abraço quase beijo no rosto( , diz o louco), a saudação híbrida daqueles que têm pouca intimidade.

“cinqüenta e sete!”.

nuvem

“agora estamos ouvindo música”

“Daniel!”

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,

diz o louco. Mando ele se calar. Daniel está de óculos escuros e carrega livros; pergunta se eu já revelei as fotos daquele dia. Digo que ainda não, mas que vou fazer isso hoje se eu tiver tempo.

Eu vejo o louco que Daniel tenta esconder com o corpo.

Penso que vou para a terra pura de Daniel um dia, e o meu louco irá comigo para berrar cada coisa que vê.

“cinqüenta e sete!”.

“agora estamos ouvindo música”

“Daniel!”

Daniel ouve muito o louco dele e finge não ouvir e se cala quando eu pergunto se o louco existe. Às vezes, quando se sente próximo de mim e confia em mim, Daniel sussurra as coisas que o louco dele diz. O louco dele diz: “Esquerda! Nanquim! Quadrado! Pedaço de pano!”. Eu vejo o louco que fica atrás da cabeça dele. O louco dele é bom. Ele tem vergonha do louco, ele não fala do louco. Quero que meu louco seja bom também. Daniel leva um cheiro de perfume forte que faz o louco ver o banho que ele tomou em casa. “A que horas Daniel acordou?”, o louco pergunta e exige que eu pergunte isso a Daniel. Mas deixo Daniel despedir-se de mim com sotaque e retomar o seu caminho. Penso que a mulher de Dan-iel também tem um louco, mas o louco dela é mulher.

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II. Faço isso para que ele não arranque os próprios dentes.

“Vê, a linha da terra?”,

Às vezes eu arranco sim um dente dele, e ele sofre. Faço isso para que ele não arranque os

meus. Ele desliza na minha boca úmida e belisca, eu cuspo ele pra fora gritando as palavras que ele gosta de ouvir. Às vezes, também, eu mato o louco: recuso a tentação de ir agora em direção a ele e obedecê-lo. Preciso esperar isso.

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ele diz, ressurgindo sem dor. Ele começa a crescer de novo como uma erva nas própri-as vísceras. “Você sente na ponta da língua

uma coisa escura e asquerosa? É tinta. Livre-se disso. Cadê sua palavra, hem? Fale

comigo!”, diz o louco. Ele coloca o lápis de volta na minha mão e diz que há mais san-

tidade no meu ato do que qualquer reza. Preciso acabar com isso logo, penso. “Então acabe”, diz o louco. Permaneço. “Diga logo”,

ele insiste. Sim, vou dizer tudo. Continuo calada. Ele olha para mim. “Lá vem o tem-po”, diz o louco, “você quer acabar igual a

mim?”. Eu rezo e falo com a terra e registro a minha palavra. Assim que eu escrevo o

nome do louco, ele adormece.

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III. O louco me lembra de uma coisa ruim depois me lembra de uma coisa boa depois me lembra de uma ruim e uma boa. O louco olha e vê os loucos atrás da cabeça dos out-ros, sempre grita a eles – “os seus sapatos, catequese, rotina, telescópio!”. Então eu vou e corto fora a língua do louco, sempre achando que ele não vai falar mais. Porém ele segue gritando e sua voz não parece parar de aumentar de som. Ele sabe que a dor daquele corte sempre recai sobre mim.

Ainda dói. Falo com o louco para ele não me matar, mas ele não se afasta de mim.

Então ele abre o próprio ventre – repete que quer dar o estômago para a terra comer.

Quando ele permanece, acho que nunca vou dar conta. Finalmente me sinto convencida

a perder tempo, me sento e escrevo de novo e o louco se cala de novo: a fala do louco só

é audível num tom mínimo agora, e se asse-melha ao som do lápis. Assim ele cala a

boca do meu ouvido e toda a gente sã pode ouvir seu discurso insistente de desordem.

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página foragida.

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Francisco Manuel.Can´t fin Se não fossmuito meno

I. Um dos grandes motivos que levam os homens às grandes mudanças pessoais é, muitas vezes, a vergonha.

d my way home

e Penélope, a Odisséia seriar.

É por isso que grandes mudanças não são, senão, o mais sincero fruto de uma fuga patética daquilo que não pode ser encarado com tanta freqüência assim.

Quando alcancei terras estrangeiras – era a Inglaterra – senti-me burro. Eu não sabia

pronunciar um inglês adequado e jamais conseguiria falar com alguém devidamente.

Senti um medo óbvio, paralisante e, espiri

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tuosamente, resolvi me apoiar em alguma bebida.

O fato é que comprei o cachorro nas primei-ras semanas, quando minha compreensão de mundo ainda estava em crise, graças a essa mudança repentina de língua. Aquele fora um dia em que eu resolvi passear por uma rua atraente, relativamente arbori-zada– era verão, não fazia muito frio.

o por um preço bom e ganhei um tapete. Percebi, assim que entreguei o dinheiro,

que ele era vira-lata e velho. Não me impor-tei. Encontrei uma espécie de apart-hotel

que aceitava animais de pequeno porte nos quartos, deixei o Bucks (pensei nesse

nome,ou em Reinaldo) por lá e fui bus-car minhas coisas no hotel em que eu me

hospedara até então.A morte dele, quatro meses depois, foi

triste, mas acho que tem a ver com a faxi-neira que, primeiro, alegara ser impossível

tirar os pêlos do carpete - que eu troquei pelo tapete de banheiro da búlgara; depois

começara a se dizer alérgica ao poo do cachorro.

e Penélope, a Odisséia seriar.

“Can you give me a beer?”

tentei sozinho antes de chegar a qualquer bar, pub ou restaurante.

Após dois meses, consegui pedir a minha cerveja. Antes, comprei um cachorro, com

quem eu pude falar português e ser enten-dido. Eu me guardava todos os dias da rua

e, ao chegar em casa, desatava a contar coisas e dar ordens.

Vi e me aproximei de um quintal com algu-mas bancadas espalhadas: nelas encon-

travam-se vasos diversos, alguns tapetes e coisas que soavam a artesanato. A mul-her se aproximou, vinda da porta, com um sorriso simpático. Ela era búlgara, vendia

algumas coisas e tinha um filhinho moreno brincando perto da porta com um cão. Ela virou-se da sua tentativa de me empurrar

um tapete de banheiro e deu a ralhar com o menino em sua língua. O cachorro apanhou

também e quando eu achei exagero o que ela fazia, disse “sell the dog to me”. Levei-

Desconfiei no dia em que ela pisou em algo e gritou “shit”, por uma coisa que, até

então, era só um poo.

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No dia seguinte, quando voltei do meu pas-seio na rua, vi a porta do banheiro fechada. Quando entrei, vi meu vidro de perfume quebrado no chão e o pote de shampoo esparramado. Bucks estava deitado ao lado da pia, com os olhinhos fechados e já sem respirar. Chorei, paguei a conta, comprei passagem e voltei pra cá.

Cabe ressaltar, antes, aqui, que não me refiro a nenhuma amnésia, que não falo, sequer, em esquecimento. Esquecer é outra coisa, exige laboro e qualquer dispêndio de energia – trata-se de uma arte, uma substi-tuição de uma coisa por outra, um processo paralelo e não antônimo ao da memoriza-ção. Não lembrar é que é a verdadeira pane; é no não lembrar que a memória e o con-trole nos fogem, e a sensação é de insu-ficiência e vazio.

Anos mais tarde, quando eu comecei a escrever isso, senti que me faltava conteúdo

nas mensagens e procurei alguma forma de preencher esse vazio. Por algum motivo,

a memória que eu possuía sumiu e eu não consegui me lembrar de nada.

Essa história é de não lembrar.

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Com ela, o que eu pude ver, no tamanho que eu pude ver, parecia uma saída para a monotonia: pude ver a capela da cidade de meus avós maior do que a igreja de Santo Rosário e constatei o quanto os meus jan-tares ali seriam ainda mais fartos, uma vez que a mesa suportava muito mais comida. Um dia, da janela, mirei além dos montes e vi o quanto Nova Promessa era próximo.

II. Fiz doze anos antes do dia do meu an-iversário, assim que ganhei uma luneta, a

única da minha vida, bonita como só.

Demorou uns cinco anos para que eu pudesse constatar o quanto Nova Promes-sa, uma cidadezinha menor que a Santa Fé

de meus avós, estava realmente ali ao lado.Saí para conhecer meu objetivozinho de

Deu tudo errado.

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mundo com algum dinheiro no banco, uma mochila bem arrumada e a intenção de, de-pois de conhecer Nova Promessa, conhecer um lugar por mês.

No entanto, é nessas horas em que me sinto sozinho e percebo o quanto eu tenho

medo de ficar sozinho. No momento em que me correspondi com Tomás, percebi que eu

deixara tudo para trás, mas jamais consegui deixar a culpa e nunca consegui, de fato,

desprender as pessoas de mim.

Apesar dessa viagem, estive o tempo todo em contato com meus entes. Para alguns

poucos, fui um tipo de herói que saiu por aí, mas o resto todo entende a farsa, pois não

há o menor propósito nisso aqui. Dói lem-brar que não há o menor propósito naquilo lá também, não há nada de grande me es-

perando – não tenho apego àquele porto.Mas eu tenho um enorme apego àquele

porto.Acontece de ser um desamparo enorme isso. Eu fugi para não ter que encarar os

fatos. O pior deles é o fato de que eu jamais consegui ser algo, à parte os sonhos. Não por não ter tentado, mas por não ter sido

bom mesmo. Como não sou bom aqui, ina-lando poeira e pó de asfalto sem o menor

propósito.

Deu tudo errado.

Ainda falo com ela ao telefone, que, quando eu voltar, haverá um lugar nos esperando com uma cama, um frigobar e nada mais a se fazer. E eu acredito nisso – eu apre-

ndi a mentir para mim mesmo. Desligo o telefone, venço alguns quilômetros, pouso-

me em algum lugar, olho o computador e, sociofóbico, correspondo somente com as

pessoas que não me machucam, as pes-soas que eu julgo não machucar – eu evito o Tomás. Devem sentir minha falta alguns

antigos amigos – ou talvez, estejam tão dis-tantes e incomunicáveis entre si lá quanto

eu aqui no sul do país. Ao pensar nisso, vejo que não volto por medo de me deparar com

essa obrigação de decidir me tornar algo. Quando eu paro e penso, vejo que eu devo ficar só – mas eu aprendi a desconfiar de

mim mesmo.

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III. Quando finalmente cheguei à Nova Promessa, fui conhecer a igreja, que, por

estar fechada, fez-me parar no hospital ao lado para pedir informações. Havia umas

três ambulâncias, todas muito sujas de ter-ra, recebendo alguns enfermos em macas e outros mais acompanhados de enfermeiros.

Perguntei o que acontecia ali.

- A Via do Cobre vai sofrer um desvio por causa dos acidentes e aí vão criar uma nova rodovia que vai cortar essa parte da cidade. O hospital vai se mudar lá pra cima – apon-

tou para algo que parecia ser a avenida principal da cidade, alguns morros além –

ao lado da matriz.

Jamais chorei naquela cidade, mas nunca consegui sentir-me exatamente bem por

ali. Só que eu fiquei...

- Estamos transferindo os internos para São Camilo de Lélis. – disse uma enfermeira jovem com olhos grandes e muito pretos, morena e muito bonita à qual tive a audácia de me dirigir. Entrei no hospital e o atendente protestou, dizendo que eram proibidas visitas naquele dia. Resolvi querer entender, admitindo-me forasteiro.

Só então reparei que as casas, que natural-mente se fecham aos domingos nos interi-ores, estavam um pouco mais do que cer-radas. Elas estavam interditadas, não por sinais ou placas, mas por um silêncio opaco daquilo que não tem nem mais uma broa para oferecer.

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O dia que senti vontade de chorar em Nova Promessa foi o dia em que eu peguei o

ônibus para São Paulo. Quis tentar alguma faculdade, mas não consegui – tudo muito

difícil ou caro.

Praticamente todos os dias de um determi-nado mês, eu desci com alguns amigos para

tomar alguma cerveja perto da rodovia, em uma pizzaria que vendia coisas baratas e

estava perto do bordel. Bêbados, íamos nos divertir um pouco às custas das moças feias

e baratas daquela cidade.

Segui o ritmo de seus passos.Disse-me que não poderia parar enquanto

não fechasse os olhos. Era assim que ele deveria se portar toda a noite do dia 23, quando sua viuvez comemorava datas.

Fiquei triste ao ouvir aquilo e questionei – e

se o senhor quebrar as pernas, ou arrumar uma irritação nos olhos justamente nesse

dia? E se o senhor piscar ou escolher fechar os olhos?

Resolvi continuar ganhando dinheiro como atendente disso ou daquilo. Juntei – nisso eu sou bom. Tive mais que o suficiente e decidi voltar à Santa Fé antes de viajar pra longe.

Certo dia desse mesmo agosto, acertei uma quadra na loteria. O dinheiro não era grande, portanto, permiti-me não guardá-lo. Fiz uma festa entre amigos naquele bordel, que foi fechado ao resto do público. Eu já estava muito bêbado e cansado quan-do abandonei o local. Fui andar pela estrada que tangenciava a cidade. Tive um medo ób-vio, principalmente ao perceber uma pessoa andando a passos largos atrás de mim.- Sem medo, sem medo – disse- me o bar-budo ao passar.

- Foi porque eu escolhi fechar os olhos que minha mulher morreu.

Não questionei mais nada.

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IV. Com a morte do meu avô e a aquisição de minha licença de motorista, ganhei um

carro, que eu prontamente usei para voltar a Belo Horizonte para tentar uma faculdade.

Meu pai, que estava morto desde os meus quinze anos, disse-me, certa vez, que eu

tinha habilidade para lecionar. Tentei uma faculdade particular para História e, com a ajuda de minha mãe somada às minhas

economias, consegui fazer um curso, inclu-sive, em tempo hábil. Ao me formar,

resolvi viajar um pouco e desisti de con-tinuar os estudos por aquela época. Fui parar em Batista, cidade em que me apa-ixonei pela terceira vez. Fui a uma festa de comemoração da colheita – herança alemã da cidade – e lá ajudei uma mul

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her a achar o telefone caído no chão.Algo aconteceu ali que a fez ir comigo

para a pousada. Foi maravilhoso, até o dia seguinte pela manhã, quando ela me contou

que seu recém-marido chegaria de uma viagem. Passei o dia no quarto da pousada tentando ligar para ela. À noite fiquei ainda

mais triste imaginando-a com ele.

A dona do restaurante desatou a conver-sar comigo. Era uma mulher maravilhosa,

já em seus setenta anos, que parecia ter projetado em mim algo maternal. Ela falou-me da importância de comer bem e dormir

bem. Contei do meu projeto de ir ao Sul. Ela falou de seus parentes lá, dos quais um

primo estava em leito de morte. Chamei-a para me acompanhar, já que o que a impe-dia de visitar o ente querido era o preço da

passagem. Ela aceitou. Dois dias depois, seguimos viagem e conversa.

Dia seguinte saí pela cidade à procura de um almoço decente. Vi um restaurante já na saída para a rodovia. Ele era pequeno e ser-via, no dia, um prato fumegante com frango e quiabo. Eu jamais consegui me esquecer desse prato.

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V. Dois anos após a morte de minha mãe, resolvi me mudar de Belo Horizonte. Fui para a cidade de Antônio Dias, pois tive um palpite que teria emprego certo como pro-fessor nesses grupos escolares de cidadez-inhas. Foi bem assim e, além de história, lecionei português. Ali conheci um homem muito humilde apegado à igreja, mas muito trans-tornado. Era o faxineiro da escola, seu nome

era Virgílio e eu o tratava por “senhor”, apenas respeitando seus cabelos brancos, pois ele não teria mais que quarenta anos

naquele tempo. Conheci Seu Virgílio ao sair cansado da sala, certo dia. Ele me pedira para conver-sar.

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- O senhor faz poema? Surpreendi-me com a pergunta. Questionei.- Eu era, antes, um freqüentador de bordel.

O senhor não se importa de eu falar isso, importa? – fiz-lhe um gesto efusivo para mandá-lo não se preocupar e continuar.

– pois é, eu era. Até que conheci Cecília... linda, grande, sabe? Conversei muito com

ela e mal podia esperar para receber, no fim do mês, para poder levar ela pro quarto.

Só que ela me contou um dia que tinha um segredo, sabe, menino? Eu fiquei foi muito bravo com aquele... quero dizer, eu briguei com ela e ela chorou. E foi por isso que eu perdi a Cecília e agora eu economizo todo

fim de mês.

pouco, conhecer mais cidades e andar com a mochila nas costas por aí. Decidi, então, pegar minhas economias e ganhos de her-ança para ir à Europa. Estive menos de um ano em Londres.

Já aos quase quarenta, senti o vazio de um não-saber maldito, das saudades de minha

mãe e do apego doloroso a algumas pes-soas. Eu namorava uma garota que tinha

esperanças demais, tinha um melhor amigo que era um amigo de caráter, também cheio

demais de força e vida e eu, agora, queria me estabelecer em um canto sem ter que

me responsabilizar por alimentar ou não os sonhos desse pessoal.

Decidi mentir uma bolsa de estudos nos EUA. Isso me envergonhou muito mais, mas o fiz, descendo, na verdade, para Curitiba, sem ter um plano de vida, sem uma susten-tação, querendo, além de outros motivos, não me encarar ali na minha cidade... Não consegui viver por lá e, ainda às custas da minha capacidade de guardar dinheiro à despeito das viagens, fui tentar outras cida-dezinhas no Sul.

“Veja bem, professor Plínio, eu quero chegar com flores e um poema, coisa que toda mulher gosta, sabe? Só que eu não sei escrever...”Só consegui fazer esse tal poema anos de-pois, em pleno carnaval, quando me envolvi com uma garota muito nova, na expectativa de superar minha ex-namorada, que mor-reria naquela quarta-feira de cinzas. Perdi as passagens de trem para Antônio Dias e, quando me encaminhei àquela cidade, fora de carro, pela BR 381.Fui para Londres logo que voltei de minha viagem para o Sul com a Dona Maria. Naquela região do Brasil, senti uma prom-issora idéia de moradia, de estadia perman-ente e vi que, antes, eu precisaria viajar um

Deu tudo errado.

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Encontrei uma cidade chamada Nova Estân-cia. Não tenho coragem de voltar a

Belo Horizonte.

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à todas as idéias que já me

fugiram.

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