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1 SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207 Freud e a religião Editorial O pai da psicanálise, Sigmund Freud, declarava-se ateu e sempre fazia fortes críticas às religiões. O tema da relação entre Freud, à psicanálise e as religiões é justamente o assunto que procuramos debater na IHU On-Line desta semana. Para o filósofo e teólogo alemão Hans Zirker, entrevistado nesta edição, “Freud agride de maneira bastante geral ‘a religião’ no singular. Ele procura compreender o homem e sua cultura tão radicalmente pela lei natural e estimula-o a uma condução tão autônoma da vida que mais ou menos todas as religiões devem parecer-lhe como sistemas de um pensamento não-esclarecido e de uma dependência imatura”. No entanto, um dos amigos com que Freud mais se correspondia e debatia idéias era um pastor protestante, Oskar Pfister. Essa intensa relação é analisada por Karin Wondracek, que afirma: “Pfister via em Freud a negação verbal de doutrinas religiosas, mas um comportamento cumpridor do Evangelho”. Também contribuem neste debate o filósofo e psicanalista francês Pierre- Christophe Cathelineau, membro da Associação Lacaniana Internacional, a psicanalista Grace Burchardt, o psicanalista Leonardo Francischelli, e Ana-Maria Rizzuto, psicanalista latino-americana radicada nos Estados Unidos e autora do livro Por que Freud rejeitou Deus?. Também reproduzimos sobre o tema um artigo do alemão Herbert Will. Nesta edição publicamos ainda uma entrevista exclusiva com um dos grandes teólogos da atualidade, Claude Geffré, professor do Instituto Católico de Paris. Uma ótima leitura e uma excelente semana a todas e todos!

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1SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Freud e a

religião

Editorial O pai da psicanálise, Sigmund Freud, declarava-se

ateu e sempre fazia fortes críticas às religiões. O tema

da relação entre Freud, à psicanálise e as religiões é

justamente o assunto que procuramos debater na IHU

On-Line desta semana.

Para o filósofo e teólogo alemão Hans Zirker,

entrevistado nesta edição, “Freud agride de maneira

bastante geral ‘a religião’ no singular. Ele procura

compreender o homem e sua cultura tão radicalmente

pela lei natural e estimula-o a uma condução tão

autônoma da vida que mais ou menos todas as religiões

devem parecer-lhe como sistemas de um pensamento

não-esclarecido e de uma dependência imatura”. No

entanto, um dos amigos com que Freud mais se

correspondia e debatia idéias era um pastor protestante,

Oskar Pfister. Essa intensa relação é analisada por Karin

Wondracek, que afirma: “Pfister via em Freud a negação

verbal de doutrinas religiosas, mas um comportamento

cumpridor do Evangelho”. Também contribuem neste

debate o filósofo e psicanalista francês Pierre-

Christophe Cathelineau, membro da Associação

Lacaniana Internacional, a psicanalista Grace Burchardt,

o psicanalista Leonardo Francischelli, e Ana-Maria

Rizzuto, psicanalista latino-americana radicada nos

Estados Unidos e autora do livro Por que Freud rejeitou

Deus?. Também reproduzimos sobre o tema um artigo do

alemão Herbert Will.

Nesta edição publicamos ainda uma entrevista

exclusiva com um dos grandes teólogos da

atualidade, Claude Geffré, professor do Instituto Católico

de Paris.

Uma ótima leitura e uma excelente semana a todas e

todos!

2SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Leia nesta edição PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa » ENTREVISTAS

PÁGINA 03 | Hans Zirker: “A crítica de Freud à religião”

PÁGINA 07 | Karin Wondracek: Abismo escancarado ou útil variação

PÁGINA 10 | Pierre Cathelineau: A psicanálise e o monoteísmo

PÁGINA 12 | Grace Burchardt: Freud e a abordagem racionalista das religiões

PÁGINA 14 | Leonardo Francischelli: “Deus e a psicanálise não casam bem”

PÁGINA 15 | Ana-Maria Rizzuto: “Por que Freud rejeitou Deus?”

PÁGINA 17 | Herbert Will: O aguilhão Freud. Crítica e superação da religião?

B. Destaques da semana » TEOLOGIA PÚBLICA

PÁGINA 22 | Claude Geffré: Retorno religioso

» ENTREVISTA DA SEMANA

PÁGINA 26 | Bat-Ami Bar On: Arendt e a reflexão sobre a violência política

PÁGINA 30 | Michelle-Irene Brudny: Um pensamento e uma presença provocativos

» LIVRO DA SEMANA

PÁGINA 32| JOHNSON, Steven. 2003. Emergência – a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares.

Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 231 p.

PÁGINA 36 | » TERRA HABITÁVEL

PÁGINA 37 | » DESTAQUES ON-LINE

PÁGINA 40 | » FRASES DA SEMANA

PÁGINA 41 | » CONJUNTURA DA SEMANA

C. IHU em Revista » EVENTOS

PÁGINA 47 | A alma como centro do filosofar de Platão

PÁGINA 50 | História, antropologia e música grega

PÁGINA 51 | O Rei da Vela

PÁGINA 53 | » SALA DE LEITURA

PÁGINA 53 | » IHU REPÓRTER

3SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

A crítica de Freud à religião ENTREVISTA COM ENTREVISTA COM HANS ZIRKER

“Enquanto o homem se mantém fiel a Deus, Freud o vê sujeito à imaturidade, à

consciência ilusória e à neurose coletiva”. Essas são as palavras do filósofo e

teólogo alemão Hans Zirker em entrevista exclusiva à IHU On-Line. Zirker ainda

acrescentou que Freud ”procura compreender o homem e sua cultura tão

radicalmente pela lei natural, e o estimula a uma condução tão autônoma da vida,

que mais ou menos todas as religiões devem parecer-lhe como sistemas de um

pensamento não-esclarecido e de uma dependência imatura”.

Hans Zirker é professor emérito de Teologia Católica e Didática na Universidade

Duisburg-Essen. A entrevista que segue foi concedida por e-mail.

IHU On-Line - Qual a posição de Freud ante as

religiões, sobretudo a cristã?

Hans Zirker - Freud dirige-se, em primeira linha,

contra as religiões monoteístas, nas quais ele fala de

Deus como “Pai”, são objetivadas a fé judaica e a fé

cristã (ao islã é estranha esta imagem de Deus); em que

ele critica a autoridade religiosamente imposta, todas as

três religiões se devem ver atingidas. Com boas razões,

porém, Freud agride de maneira bastante geral “a

religião” no singular. Ele procura compreender o homem

e sua cultura tão radicalmente pela lei natural e o

estimula a uma condução tão autônoma da vida, que

mais ou menos todas as religiões devem parecer-lhe

como sistemas de um pensamento não-esclarecido e de

uma dependência imatura. Freud vê o fim ideal de todo

o conhecimento na limitação em torno daquilo que pode

ser cientificamente demonstrado. E ele sabia que ele

próprio ainda não atingira este fim com sua psicanálise, e

ele também não nutria a esperança de que os homens em

sua maioria jamais alcançassem este fim. Apesar disso,

para ele, o pensamento religioso perdera

indiscutivelmente sua validade.

IHU On-Line - Sob que pontos de vista a crítica de

Freud se dirige de maneira mais dura contra a religião?

Hans Zirker - Freud acusa a religião de três grandes

males principalmente: Em primeiro lugar, ele vê que nela

os homens são mantidos na imaturidade. As crianças,

quando se sentem desamparadas e com medo, buscam

nos pais abrigo e proteção. Deles esperam amparo e

cuidado. Elas ainda não são responsáveis por si próprias,

mas são conduzidas. Mas, o que nos primeiros anos de

vida é natural, bom e necessário, não deveria

permanecer quando as pessoas se tornam adultas. Elas

devem poder libertar-se dos progenitores e tornar-se

autônomas, se não quiserem falhar em sua vida. Elas

devem aprender a superar sozinhas os medos e as

necessidades, onde estas puderem ser superadas e, onde

isso não for possível, a suportá-las. A isso, segundo

Freud, se contrapõe a religião: ela propõe Deus como

aquele que aparentemente faculta aos homens que eles

possam permanecer como crianças e não precisem

tornar-se adultos. Na realidade, porém, – segundo a

convicção de Freud – a religião não pode ajudá-los.

Perigos e miséria não são por ela afastados, porém

surgem tanto mais dura e perfidamente.

Em segundo lugar, a religião significa para Freud o mais

4SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

extremo domínio do pensamento desejoso. Que

tenhamos sonhos, saudades e desejos é novamente

natural, bom e necessário. Mas nós também devemos

poder reconhecer a realidade que se lhes contrapõe. Não

só é pernicioso, mas também indigno anestesiar-se de tal

maneira que já não se percebam as próprias condições e

relações. Isso, no entanto, o fazem, segundo Freud,

pessoas religiosas. Elas imaginam coisas divinas, para não

precisar posicionar-se ante seu mundo. Elas se entregam

à ilusão, elas recorrem à religião como a um ópio.

Em terceiro lugar, Freud vê na religião uma ordem

cultural imposta que se equipara a uma enfermidade

psíquica, a uma neurose. Muitas vezes, quando se sentem

sobrecarregadas, as pessoas procuram uma proteção

perigosa: elas atribuem, de maneira exagerada, um lugar

estável às coisas que as circundam, submetem-se, em

sua conduta, a regras estranhas, parecendo aos seus

concidadãos estranhos ou até perturbados. Eles o fazem

por não ter aprendido a entender-se razoavelmente com

seu mundo. Elas necessitam de seguranças adicionais.

Com isso, porém, eles estreitam violentamente seu

espaço vital e suas possibilidades vitais. Sua capacidade

de conduzir-se significativamente entre outras pessoas e

comunicar-se racionalmente com elas, se reduz e são

elas que mais sofrem com isso. A inquietude que as

conduz não pode ser afastada dessa maneira, mas até

ainda aumenta.

Programa saudável

O que, na vida individual, se manifesta dessa forma

como enfermidade, vê Freud realizado cultural e

coletivamente na religião. Também ela circunda e

concretiza a vida com ritos, para afastar experiências

caóticas por meio de uma ordem sagrada. Ela zela

angustiadamente pelo exato cumprimento das

cerimônias, para que nada apareça perturbado. No

entanto, com isso, segundo Freud, ela não obtém

estabilidade psíquica, porém escrúpulo, nem obtém

segurança, porém temores acrescidos. Diante destes três

aspectos da religião Freud concebe sua crítica como

programa saudável. As pessoas devem, enquanto isso for

possível, ser transpostas à condição de aceitarem a si

próprias e seu mundo assim como eles o são. Elas devem

ser capacitadas a aceitar a verdade e renunciar às

ilusões, para, desta forma finalmente, conquistar saúde

espiritual e psíquica.

IHU On-Line – O senhor crê que Freud era ateu?

Hans Zirker - Segundo sua própria compreensão, Freud

certamente era ateu, porque, como homem se mantém

fiel a Deus, Freud o vê sujeito à imaturidade, à

consciência ilusória e à neurose coletiva. Ele não admite

que a fé em Deus também possa capacitar o homem a

tornar-se maduro, a superar ilusões e afastar uma

conduta angustiada. Prestar-se-ia pouco serviço à

compreensão da crítica psicanalítica da religião, caso

realmente se quisesse interpretar Freud, em algum

“sentido mais profundo”, como um homem que

acreditava em Deus. Já em sua etimologia, porém, o

conceito “ateísta” [ateu: em alemão ‘A-theist’ - BD] tem

sentido meramente negativo. Por isso, este conceito não

faz suficiente justiça a Freud. Em primeira linha e em

ultima análise Freud é “humanista”. A controvérsia com

ele também deve, por isso, ser conduzida principalmente

em torno da compreensão do ser humano, e não com

relação a Deus.

IHU On-Line – Como pode a teologia contribuir para a

compreensão da psicanálise?

Hans Zirker - A psicanálise é um procedimento

direcionado para o autoconhecimento e a estabilização,

possivelmente para a cura do ser humano. Ela ultrapassa

amplamente a crítica de Freud à religião e, em seu todo,

não pode ser fixada na discussão da religião. De sua

parte, a teologia não pode pretender estar também

amplamente disponível para questões de psicanálise.

Aqui é adequada uma atitude de reserva. Mas, a teologia

5SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

deve, em todo o caso, refletir sobre o modo pelo qual ela

quer abordar a crítica da religião proposta por Freud.

Não seria suficiente que ela procurasse ver quais os

representantes da psicanálise que reconhecem mais valor

e validade à religião.

Quatro pontos a serem levados em consideração

Em primeiro lugar, a teologia deve levar a sério a

crítica de Freud. Há suficientes provas de que

determinados estilos de educação religiosa são

predominantemente direcionados para a obediência e

promovem a imaturidade; de que, com a religião, pode

ser apoiado o poder e ser desviado o olhar de situações

escandalosamente injustas; que sob influências religiosas

há pessoas que adoecem, etc. Isso também não pode ser

contestado com a alegação de que, nestes casos, sequer

se trata propriamente de religião, porém de

degenerescências e perversões da religião. Este

argumento seria demasiado simplório. Não, a própria

religião é algo ambivalente. Ela não cai do céu como dom

de Deus, mas também é sempre cultura humana. E assim

ela também contém comprometedoras possibilidades. Só

se poderia discutir, se seria conveniente reduzi-las, como

o fez Freud, às suas conseqüências malsãs.

Em segundo lugar, a teologia pode apelar precisamente

a Freud, quando ela admoesta à precaução em face do

juízo crítico, pois, para a psicanálise, Freud exige uma

conduta comunicativa: o médico ou psicólogo não

deveria antecipar-se com seu próprio julgamento à

concepção do outro, ao qual quer ajudar, não deveria

bloquear com suas próprias hipóteses a autocompreensão

do outro, porém abrir caminho a percepções que possam

ser convincentes para ambos os lados. Esta exigência

também pode ser transposta para o trato com religião e

pessoas crentes. Uma crítica que sabe de antemão como

se encontra a fé religiosa, ela própria viola o método

analítico exigido e não palmilha o penoso caminho do

entendimento comum para uma compreensão, quanto

possível, comum.

Em terceiro lugar, a teologia pode contribuir para uma

compreensão diferenciada da experiência. Quando Freud

fala “da realidade” com a qual é preciso relacionar-se,

ele pensa numa grandeza aparentemente inquestionável.

No entanto, a “realidade” não pode ser estabelecida tão

univocamente, ela não pode ser entendida tão

“objetivamente” como Freud o pensava numa

determinada tradição científica. O que vale como

“experiência” e “realidade”, já é amplamente

condicionado historicamente, cunhado culturalmente e

também dependente de caminhos e concepções pessoais

de vida.

Finalmente, e em quarto lugar, a crítica da religião e a

religião, a psicanálise e a teologia devem entender-se

sobre qual o significado que, na vida humana, também

na religião, se atribui às necessidades, desejos e

esperanças. Elas não podem ser contrapostas às

experiências, como se ambos os lados fossem algo

totalmente distinto e não tivessem nada a ver

reciprocamente. Saudades não só podem reprimir

experiências, como também despertar sensibilidade para

elas. As experiências nem sempre devem contrapor-se

aos desejos e esperanças, mas também podem fortalecê-

los.

IHU On-Line – Na visão da psicanálise, qual a

distinção entre crença e fé? Poderia a distinção entre

crença e fé contribuir ao entendimento pela

psicanálise?

Hans Zirker - A distinção entre fé e crença aponta para

o fato de que uma religião historicamente dada e

institucionalmente formulada sempre se refere a uma

convicção responsavelmente assumida e vivida. Caso

contrário, religião e fé tornam-se mero costume exterior

ou dever imposto. Somente em experiências

conquistadas pela crença se pode confirmar a fé. Por sua

vez, a crença pessoal também se refere sempre a uma fé

formulada, porque, caso contrário, ela não teria um

6SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

lugar histórico e social; sem uma linguagem comum ela

não poderia ser comunicada e não poderia confirmar-se

numa vida comunitária.

Por isso a distinção, mas também a relação entre

crença e fé é do maior significado para uma psicanálise

que não recusa, de antemão, qualquer valor à religião.

IHU On-Line – Que contribuição a psicanálise de

Freud pode dar à compreensão da fé?

Hans Zirker – Com base nos precedentes pontos de

vista, já deveria ter ficado claro quão importante é, para

a autocompreensão religiosa, a crítica psicanalítica da

religião, feita por Freud. Exige-se a análise e a discussão

desta crítica não só para a auto-afirmação religiosa, mas

também, em primeira linha, para o esclarecimento da

consciência religiosa. Esta é aguçada pela psicanálise a

reconhecer os perigos que se encontram na própria

religião (imaturidade, ofuscamento da realidade e

autoritarismo).

Por essa razão, a religião e a teologia também são

direcionadas pela psicanálise a verem quão significativas

são a necessidade, a saudade e o desejo para a força de

atração da religião. Contra a perspectiva de Freud, esta

percepção pode ser um enriquecimento religioso.

Religião e fé

Já que a religião e a fé não podem jamais ser

asseguradas com procedimentos científicos e, apesar de

todas as experiências, também são conduzidas por

desejos e saudades, elas também terão sempre objeções

contra si. A inquietude espiritual que parte da crítica da

religião permanecerá como algo fundamental. Mas, entre

pessoas de boa vontade e esclarecidas dever-se-iam

esperar pelo menos duas coisas: os crentes entre elas

deveriam ter consciência de que suas convicções, que

lhes são pessoalmente confiáveis, podem ser rejeitadas

por outros com respeitáveis razões. E os seus críticos,

apesar de seus argumentos contrários, deveriam poder

dispor-se a uma respeitosa percepção da religião e da fé.

7SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Abismo escancarado ou útil variação ENTREVISTA COM KARIN WONDRACEK

Karin Hellen Kepler Wondracek analisa, em entrevista concedida por e-mail para

a revista IHU On-Line, a correspondência entre Sigmund Freud, fundador da

psicanálise, e o pastor protestante Oskar Pfister. Segundo ela, “Pfister via em

Freud a negação verbal de doutrinas religiosas, mas um comportamento cumpridor

do Evangelho”.

Karin possui graduação em Psicologia pela PUCRS, especialização em Psicanálise

pelo Núcleo de Estudos Sigmund Freud e mestrado em Teologia pela Escola

Superior de Teologia. O título de sua dissertação de mestrado é O amor e seus

destinos: um estudo de Oskar Pfister para o diálogo entre a teologia cristã e a

metapsicologia. Atualmente, é funcionária do Seminário Teológico Batista do Rio

Grande do Sul, sócia titular do Núcleo de Estudos Sigmund Freud e professora da

Escola Superior de Teologia. Atua nos temas de Interdisciplinaridade, Psicanálise,

Teologia, Fé e razão, amor e metapsicologia.

É organizadora, entre outros, do livro O futuro e a ilusão: um embate com Freud

sobre psicanálise e religião. Petrópolis: Vozes, 2003; e autora de O amor e seus

destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre teologia e

psicanálise. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

IHU On-Line - Em que sentido a correspondência

entre Sigmund Freud, fundador da psicanálise, e o

pastor Oskar Pfister, reacende o diálogo entre

psicanálise e religião? Karin Wondracek - A correspondência mostra que o

tema psicanálise-religião teve, na vida de Freud, um

ângulo diferente do dos seus textos oficiais: ao trazer à

tona uma amizade de 30 anos entre Freud e um

religioso, inclui a dimensão da relacionalidade nesta

discussão, e com isso a possibilidade de ver outras

facetas, ou seja, “no calor da amizade”, este assunto foi

ventilado (arejado) de forma menos defensiva, menos

pronta. Por isso, há nas cartas declarações

e questionamentos que não se encontram nos livros de

Freud.

IHU On-Line – A senhora questiona se essa troca de

correspondência é um abismo escancarado ou uma útil

variação. Pode explicar essa questão? Karin Wondracek - Retiro estas duas expressões da

correspondência entre Freud e Pfister, de frases em

pelas quais eles definiram a sua relação, e as tomo como

símbolos das possibilidades de diálogo entre psicanálise e

religião. Útil variação é empregada por

Freud, quando responde a Pfister a respeito das

diferenças entre ambos: “Da sua carta obtenho a alegre

certeza de que a diferença entre nossas visões somente

começa quando moções emocionais passam a influir

sobre os processos de pensamento, portanto de que ela

somente pode ter a importância de uma útil variação”

(Freud, 20.2.1909).

8SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Abismo: alguns anos depois, Pfister assim descreve:

“No que concerne à ética, religião e filosofia existe uma

diferença, que nem o senhor nem eu percebemos como

abismo” (Pfister, 3.4.1922). Ou seja, as posições de

ambos são variações - que têm sua utilidade! - de um

mesmo tema: aliviar o sofrimento humano através do

resgate do amor”.

IHU On-Line - A correspondência entre Freud e

Pfister pode ser paradigmática? Se sim, em que

sentido? Karin Wondracek - Ela é um paradigma para estudos

que envolvam mais de um saber, onde cada um, a partir

da sua especificidade, tece suas observações a respeito

de um fenômeno complexo, sem pretender abarcar a

verdade. É o que o professor e psicanalista José Luiz

Caon escreveu a respeito da correspondência Freud-

Pfister: "Fundado na confiança a que podem aceder dois

homens que prezam, no outro, a humanidade de que

cada qual é feito, esse diálogo pode ser proposto como

modelo, como "construção auxiliar" (Hilfskonstruktion),

para nossas propostas de multidisciplinaridade,

interdisciplinaridade e transdisciplinaridade." (Caon in

Wondracek (org). O futuro e a ilusão, Vozes, 2003, p.

231).

IHU On-Line - Como entender que Freud,como judeu,

se correspondia com o pastor Pfister? Que tipo de

visão religiosa era retratada nas cartas? Karin Wondracek - Freud dizia-se judeu e ateu, que

traz desta herança a valorização da palavra e a busca

pelas forças em conflito no interior do ser humano.

Pfister se apresentava como pastor reformado, portador

de uma religião que não quer reprimir, mas anunciar o

amor redentor. A visão religiosa que Pfister retrata

baseia-se menos nos dogmas e mais na prática do amor,

tanto que na sua resposta contra o livro de Freud O

futuro de uma ilusão, [traduzida por nós no já citado

livro O futuro e a ilusão] Pfister compara o pai da

psicanálise ao filho mais velho da parábola de Mateus

21.28ss, aquele que recusou verbalmente a ordem do pai

de ir à vinha, mas acabou por cumpri-la na ação(p.18).

Em outras palavras, Pfister via em Freud a negação

verbal de doutrinas religiosas, mas um comportamento

cumpridor do Evangelho. Como Heinrich Meng expressa

no prefácio da correspondência, esta concepção religiosa

fazia-o ver na psicanálise "o instrumento que há tempos

procurava, e que o coloca na condição de poder auxiliar

de outra maneira as pessoas que antes, como cura de

almas espiritual, não conseguia ajudar suficientemente.

Abre caminho até as fontes inconscientes e

semiconscientes das situações de angústia, conflitos de

consciência e idéias obsessivas daqueles que o procuram,

e constrói de modo autônomo os fundamentos de uma

pedagogia e cura de almas orientadas psicologicamente."

(Cartas, p. 15). Esta visão religiosa privilegia o cuidado

ao que sofre, e por isso é na prática da cura de almas e

da psicanálise que ambos encontraram seu eixo comum.

IHU On-Line - Como a bagagem teológica protestante

do pastor Pfister era recebida por Freud? Karin Wondracek - Nas primeiras cartas Freud confessa

seu desconhecimento da teologia protestante, que o faz

não perceber a estreita relação entre a cura de almas e a

psicanálise. Depois de algumas cartas trocadas, expressa

a percepção já citada acima, de útil variação. À

medida que aumenta a intimidade entre ambos, surgem

as diferenças, mas com bom humor: numa carta, Freud

expressa que Pfister tem vantagens na cura de almas

porque pode encaminhar as pessoas a Deus; noutra,

lamenta que Pfister, como religioso, seja obrigado à

virtude do perdão; mais para o final, se expressa

surpreso e incapaz de compreender a dupla condição de

Pfister - analista competente e homem religioso. Em minhas pesquisas da dissertação de mestrado sobre

Pfister, encontrei algumas afirmações interessantes: para

9SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Peter Gay, Pfister foi o único religioso "sadio" com quem

Freud travou contato; o psicanalista espanhol Pedro

Villamarzo, fundador do Instituto Oskar Pfister de Madri

afirma que Pfister é o "duplo religioso de Freud ateu", ou

seja, pelo mecanismo de negação aparece em Pfister o

que está negado na personalidade de Freud e dos outros

pioneiros (O amor e seus destinos, p. 24s). Encontrar

seus aspectos negados e deslocados talvez explique as

seis vezes em que Freud escreve sobre o bem-estar que a

presença de Pfister lhe traz. Para Jung, Freud também o

afirma e acrescenta que Pfister exerceu uma influência

moderadora sobre seu complexo de pai.

IHU On-Line - Como se dá a inserção da psicanálise na

teologia cristã? Qual o papel aqui do amor de Cristo? Karin Wondracek - Pfister foi o primeiro a ver uma

relação que depois dele tem merecido muitos estudos,

tanto de psicanalistas como de teólogos/as, alguns mais

favoráveis, outros mais críticos. Entre os favoráveis,

como Pfister, há a percepção de que a psicanálise traz

verdades a respeito da importância do amor, da

relacionalidade, e também do conflito que permeia cada

ser humano e que o submete a forças estranhas à sua

vontade. Os mais críticos vêem na psicanálise uma

supervalorização da sexualidade, que leva ao hedonismo

e à frouxidão moral. Este tema também já era discutido

por Pfister, que sugeriu a Freud trocar a expressão

instinto sexual por instinto amoroso, pois temia que

houvesse uma interpretação errônea, como também

aconteceu. Penso que a melhor definição para a inserção

da psicanálise feita por Pfister está numa carta dele a

Freud: “Portanto, preciso situar o inconsciente dentro

da totalidade da vida anímica, esta na sociedade, no

cosmo e suas realidades transempíricas, e para isso

necessito primeiramente de uma teoria do

conhecimento. Se ainda se imiscuir o engano, o senhor,

conforme seu próprio julgamento, não tem melhor sorte.

(...) Assim, persiste entre o senhor e mim esta grande

diferença: Eu pratico a análise dentro de um plano de

vida, que o senhor, com bondosa consideração, tolera

como Servitut da minha profissão, enquanto que eu não

considero esta visão da vida apenas como poderoso

fomento para a cura (na maioria das pessoas), mas

justamente como conseqüência de uma filosofia mais

condizente com a natureza humana e o cosmos, que

ultrapassa o naturalismo e o positivismo, e que é bem

fundamentada em termos de higiene da alma e da

sociedade”.

Ao "situar o inconsciente dentro da totalidade da vida

anímica", Pfister é coerente com sua cosmovisão,

conseqüência de "uma filosofia mais condizente com a

natureza humana e o cosmos". Ou seja, há uma outra

antropologia de base, que toma o amor cristão como

fundamento, e assim chego à segunda parte da

questão. O amor foi o leitmotiv [fio condutor] de

Pfister. Seu primeiro sermão na Paróquia de Predigern foi

sobre o amor (Coríntios 13); e seu último também. Na

sua lápide, está escrito o versículo de I João 4.18: "O

perfeito amor lança forma o medo". Este tema perpassa

suas obras, como, por exemplo, na tradução do título de

um de seus livros: "Um novo acesso ao antigo Evangelho"

(Ein neuer Zugang zum alten Evangelium) onde aborda o

resgate que a psicanálise faz do amor como força

impulsionadora do ser humano, comparando-a ao bom

samaritano da parábola, o estrangeiro "impuro" que põe

mãos à obra: "somente o amor pode trazer o

restabelecimento ao corpo ensangüentado da

humanidade, tomada de assalto pelos ladrões". Durante

a Primeira Guerra sentiu-se especialmente convocado

a escrever sobre o amor em todas as suas formas, bem

como denunciar suas patologias. Estas idéias são

amplamente desenvolvidas na sua obra magna O

cristianismo e a angústia (Das Christentum und

die Angst) na qual, em mais de 500 páginas, com o

auxílio da teoria psicanalítica da angústia, faz uma

crítica aos desvios das igrejas cristãs da doutrina do

10SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

amor. Um tema que continua atual! Pode soar estranho

aos ouvidos seculares, mas Pfister também inclui a

dimensão da cruz e da ressurreição no seu conceito de

amor, pois vê nestas concepções cristãs um modo

de lidar com o sofrimento e a morte que não esteja

submetido à cosmovisão materialista subjacente à

doutrina freudiana da pulsão de morte. Morte, nesta

concepção, não seria o retorno ao inanimado, mas a

passagem para a vida em outra forma. A experiência

pascal torna-se paradigma da cura, lugar onde o amoroso

triunfa sobre o mortífero. Não como escapismo alienante

ou fuga da realidade, mas como possibilidade admitida

pelas ciências atuais...

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar mais algum

comentário sobre o assunto? Karin Wondracek - O final da questão anterior é um

desafio, que levo desde o mestrado, de analisar as

cosmovisões que embasam teorias e técnicas de terapia,

tema que agora sigo pesquisando. Com Pfister, tenho

aprendido, como psicanalista, a aproximar-me de Freud

tendo a liberdade de dialogar, de ser simultaneamente

discípula e pensadora autônoma. Em seus diálogos com

Freud, tenho encontrado intuições que ajudam a pensar

e tratar as fragilidades do ser humano na pós-

modernidade: individualismo, vazio, desespero, falta de

sentido. Este diálogo iniciado com Freud pode seguir

fecundando psicanalistas e teólogos/as de todos os

tempos, encorajando-os/as a seguirem construindo

criativamente modalidades de ajuda aos que sofrem.

A psicanálise e o monoteísmo ENTREVISTA COM PIERRE CATHELINEAU

O filósofo e psicanalista francês Pierre-Christophe Cathelineau é membro da

Associação Lacaniana Internacional. Ele concedeu a entrevista que segue, por e-

mail, para a IHU On-Line, contribuindo para o debate sobre a relação entre Freud

e a questão religiosa. Confira:

IHU On-Line - Quais são as relações entre a

psicanálise e os monoteísmos?

Pierre Cathelineau - A psicanálise se interessa

primeiramente pelas origens do monoteísmo, como o

próprio Freud havia feito com Moisés, uma vez que ele

constitui a base lógica da relação do sujeito com o Outro

em nossa civilização. A partir do monoteísmo, o real é

UM e é neste UM que o sujeito tem simplesmente relação

com o Real. Um estudo mais detalhado permite mostrar

que o judaísmo, o cristianismo e o Islã se distinguem,

como identidades religiosas, pelo sentido que eles

concedem ao real, ao simbólico e ao imaginário. A

psicanálise deve levar em conta estas singularidades,

ainda que para ouvir os sujeitos que se apropriam destes

monoteísmos e da significação dos fenômenos

comunitários.

IHU On-Line - Em que sentido a psicanálise de Freud

11SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

pode nos ajudar na compreensão das guerras em nome

das religiões?

Pierre Cathelineau - O delírio coletivo (e estruturado)

que constitui toda religião resulta de uma identidade

seguidamente fechada em si mesma. Nela, o sujeito

encontra o apoio para sua identificação. Ela o faz

imaginar que é esta identidade e nada além. Ele se

imagina, então, pertencer à multidão de crentes que

divide com ele esta identificação. A análise da psicologia

das massas, segundo Freud, é ainda atual. A partir disso,

ele orgulha-se de “sua pequena diferença” e encontra-se

pronto a combater e a destruir, de forma paranóica, tudo

o que lhe parece estranho, como se rejeitasse na

periferia de sua comunidade tudo o que era Outro nele.

De qualquer forma, o fato identitário simplesmente

contradiz uma propriedade do significante, salientada

por Lacan: um significante é diferente dele mesmo e a

identificação não saberia satisfazer-se da estase em um

sentido petrificado. Esta estase ainda é constitutiva das

identidades religiosas em particular, e nega o fato de

que o sujeito tem, em sua última instância, relação com

a diferença absoluta, e não mais com sua identidade.

Somente a cura analítica permite chegar a esta

conclusão aidentitária.

IHU On-Line - Quem é Deus para Freud? Como definir

Deus pelos olhos da psicanálise?

Pierre Cathelineau - Deus é o significante que na

revelação permitiu situar o Real com o Um, mas nesta

permissão deixando o sujeito crer que o Outro era

realmente habitado por um sujeito todo-poderoso,

onisciente etc. A cura analítica restitui ao Outro a

dimensão de uma falha, do obstáculo que é a própria

castração. No final de uma análise, o Outro e o sujeito se

descobrem ateus, uma vez que este Outro está vazio.

Isso não invalida o saber que decorre das revelações

sucessivas dos monoteísmos. São os textos dos quais

ainda somos capazes de falar.

IHU On-Line - Deus e Freud se encontram em campos

opostos?

Pierre Cathelineau - Dizer que eles estão em campos

opostos é caricatural. Lacan fazia um trocadilho sobre

Deus, passando de Deus a Dizor e a Dizer. No

monoteísmo, Deus deixa sua marca no campo da palavra

e do dizer pela experiência dos textos sagrados. Freud

não se enganou tentando por uma exegese da Bíblia dar

uma interpretação metapsicológica do monoteísmo

judeu. Ele tinha a intuição de que, nesta interpretação,

apostava-se igualmente o destino da psicanálise. Em seu

último livro, e sem dúvida o mais importante, ele diz que

o Pai sempre é Estranho. É uma maneira de situar a

alteridade do Outro para o sujeito que não pode ser mais

radical. A psicanálise tem lições a tirar da reflexão sobre

os textos sagrados, mesmo se as conclusões são atéias.

IHU On-Line - Qual a contribuição de Lacan, como

defensor das idéias de Freud, para a discussão sobre

religião e psicanálise?

Pierre Cathelineau - A que eu digo mais alto: “Sou o

que segue”. Eis uma maneira de situar o Real da qual a

própria psicanálise continua tributária...

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar outro

comentário sobre o tema?

Pierre Cathelineau - O estudo dos textos sagrados não

é nada mais do que o estudo do Texto que constitui uma

das tramas de nosso subconsciente. É onde surgem as

questões da dívida, da falta, da lei, do desejo, do sexo,

do amor etc. Veja a Bíblia. Uma entre outras, mas sem

dúvida a mais essencial, pois o outro texto, alternativo, é

o das escrituras científicas. O código genético é uma boa

referência para pensar o desejo? De tais considerações

não impede de se ser ateu, mas com rigor, com base em

interpretação dos textos.

12SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Freud e a abordagem racionalista das religiões ENTREVISTA COM GRACE BURCHARDT

A psicanalista Grace Burchardt, presidente do Centro de Estudos Psicanalíticos

de Porto Alegre, concedeu a entrevista que segue, por e-mail, para a revista IHU

On-Line. Em suas respostas ela afirma que “Freud critica a coerção precoce e

nefasta da razão e da inteligência infantil exercida pelas religiões e ainda a

tendência das religiões a impor um modelo de felicidade único e restritivo”.

Confira.

IHU On-Line - Que relações podemos estabelecer

entre Freud e as religiões, em especial as religiões

cristãs?

Grace Burchardt - É preciso dizer primeiramente que

Freud é um homem de seu tempo, um cientista, com um

projeto que ele próprio denomina de científico para a

psicanálise. É desta perspectiva, que podemos também

chamar de racionalista, herdeira do iluminismo, que ele

aborda as religiões. A religião é uma “poderosa

adversária da tarefa de esclarecimento e liberação”. Ele

analisa a religião como parte do “patrimônio espiritual

da cultura”, ao lado da filosofia, da arte e da moral, ou

seja, o conjunto de meios elaborados pela civilização

para defender-se das tendências destrutivas dos

indivíduos, tendências que a própria civilização engendra

pela exigência de renúncia às satisfações pulsionais.

Seu projeto de trabalhar a psicogênese das religiões

inicia-se em Totem e Tabu, considerado por Emilio

Rodrigué o “grande mito moderno do assassinato de

Deus”, desenvolvendo-se em Futuro de uma Ilusão, Mal

Estar na Cultura, e Moisés e o Monoteísmo, seu

“testamento literário” segundo Renato Mezan. O

argumento principal desenvolvido ao longo deste projeto

é o de que o sentimento religioso e as religiões nascem

do desamparo infantil. Hobbes e Espinosa já haviam

derivado as crenças religiosas dos sentimentos de medo e

angústia, a novidade freudiana é que o desamparo é

gerado pela morte do pai onipotente da infância, ou

melhor, pelo assassinato do pai mítico, que todos

devemos realizar no caminho da autonomia subjetiva. A

figura de Deus é o substituto paterno, ilusão criada pela

nostalgia do pai. A devoção a Deus, por sua vez, é fruto

do sentimento de culpa e da conseqüente dívida ao pai

que se instala pelo desejo de morte e pelo parricídio. Em

um artigo intitulado Neurose demoníaca do século XVII,

Freud analisa a figura do diabo como o substituto do pai

odiado. Encontramos ainda o tema da religião em

pequenos artigos como Atos obsessivos e práticas

religiosas e Moral sexual civilizada e o nervosismo

moderno.

Freud dedica-se às religiões monoteístas, em especial o

judaísmo e o cristianismo, dirigindo sua mais importante

crítica à Igreja. Não podemos esquecer que ele habitava

a Áustria católica. Entretanto, é na sua correspondência

com Oskar Pfister, um pastor protestante que se

apaixonou pela psicanálise e tornou-se interlocutor

privilegiado de Freud, que encontramos o mais

interessante debate sobre o cristianismo. Em uma

passagem Freud interroga Pfister: “E, incidentalmente,

por que a psicanálise não foi criada por um destes

inúmeros homens piedosos, por que foi necessário

esperar um judeu inteiramente ateu.” O artigo Futuro de

uma Ilusão, segundo Renato Mezan, tem Pfister como seu

destinatário primeiro, em outra carta Freud escreve:

13SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

“Não sei se o senhor percebeu o laço secreto entre a

Questão da análise por não-médicos e a Ilusão. Numa

quero proteger a psicanálise contra os médicos; na outra,

contra os padres. Gostaria de lhe atribuir o estatuto que

ainda não existe, o de Seelensorger (os que cuidam da

alma) seculares, que não teriam necessidade de ser

médicos nem o direito de ser padres”.

IHU On-Line - Qual a influência na concepção de

religião que Freud tinha do fato de ele ser judeu?

Grace Burchardt - Freud ele próprio definia-se como

um judeu ateu. E, sobretudo, como já disse, ele é

herdeiro das luzes, um homem universal. Sua relação

com o judaísmo se dá por uma identificação às suas

origens e à cultura judaica, não à mística ou à

espiritualidade judaicas. Penso que algumas de suas

manifestações são reveladoras de sua relação com o

judaísmo. Além de perguntar a Pfister por que teria sido

necessário um judeu ateu para “descobrir” o

Inconsciente e “inventar” a psicanálise, Freud responde

a Max Graff, pai do pequeno Hanns, que o consulta para

saber se deveria batizar seu filho (o que havia se tornado

uma prática depois da emancipação dos judeus feita por

Francisco José, embora o anti-semitismo permanecesse

na cultura burguesa austríaca, foi outorgada aos judeus a

igualdade de direitos civis, o que fez surgir o desejo de

assimilarem-se a cultura européia, muitos renunciando

ao iídiche e a religiosidade, o que foi chamado de

judaísmo liberal, porém era exigido daqueles que

abdicavam da religião filiarem-se a católica ou

protestante, dentre eles estão Marx e Heine): “Se não

permitir que seu filho cresça como judeu, o senhor irá

impedi-lo de desfrutar de uma dessas fontes de energia

que nada pode substituir. Como judeu, ele terá que

lutar, o senhor deve deixar que nele desenvolvam todas

as forças de que necessitará nesta luta. Não o prive desta

vantagem”.

IHU On-Line - Quais as críticas mais duras de Freud à

religião?

Grace Burchardt - A principal crítica à religião é a de

que ela falhou em sua função de conciliar o homem com

as renúncias pulsionais exigidas pela civilização, o mal-

estar persiste. A religião tampouco foi capaz de

contribuir para a elaboração psíquica das conseqüências

do assassinato primordial, sua função, ou seja, contribuir

para a sublimação da culpabilidade e sua transformação

em formas socialmente adequadas e não em ódio,

principal derivado do sentimento de culpa. Ora, as duas

grandes guerras, o nazismo e outras expressões violentas

na história da humanidade revelaram o que há de mais

cruel e destrutivo no homem e por conseqüência o

fracasso da função das religiões e mais propriamente da

missão da Igreja, após dois mil anos de era cristã. Freud

também critica a coerção precoce e “nefasta” da razão e

da inteligência infantil exercida pelas religiões, e ainda a

tendência das religiões a impor um modelo de felicidade

único e restritivo.

IHU On-Line - O que é um ateu para Lacan, que foi o

defensor das idéias de Freud?

Grace Burchardt - A associação que me ocorre é uma

ironia que Lacan faz, dizendo que os únicos ateus que ele

conhece são os teólogos, que passam o tempo tentando

provar a existência de Deus. Quanto a Lacan, o fato de

ele ser originário de uma família católica francesa é

relevante para o movimento psicanalítico, no sentido de

sua universalização. Freud tinha uma grande

preocupação neste sentido, tanto que o primeiro

presidente da Associação Psicanalítica Internacional,

fundada por Freud, foi Jung, um cristão.

IHU On-Line - Qual a diferença, sob o olhar da

psicanálise, entre crença e fé?

Grace Burchardt - Pensaria que crença e fé são

sinônimos, porém a discussão psicanalítica que pode ser

14SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

feita é a do valor de verdade das religiões. Freud

qualifica uma crença de ilusão, não é um erro como

propõem os iluministas, mas uma categoria intermediaria

entre a verdade e a sua falsidade. Freud diz:

“qualificamos de ilusão uma crença engendrada pelo

impulso à satisfação de um desejo, que prescinde de sua

relação com a realidade efetiva”. A fonte da ilusão é o

desejo, mas esta não perde todo o contato com a

realidade, o que acontece no delírio e na psicose. Freud

proporá que a verdade da ilusão religiosa não é material,

mas histórica.

“Deus e a psicanálise não casam bem” ENTREVISTA COM LEONARDO FRANCISCHELLI

O psicanalista Leonardo Adalberto Francischelli é membro titular da Sociedade

Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, membro pleno do Centro de Estudos

Psicanalíticos de Porto Alegre. Ele aceitou conceder a entrevista a seguir, por e-

mail, para a IHU On-Line, contribuindo no debate sobre a relação entre Freud e as

religiões.

IHU On-Line - Como o contexto de criação de Freud o

influenciou para sua concepção de religião?

Leonardo Francischelli - Freud é filho espiritual do

iluminismo que tinha como ideal para o homem a

racionalidade. O trabalho que Freud produziu em I927 O

futuro de uma ilusão serviria como testemunho dessa

verdade. Nesse texto, podemos ler a seguinte frase: "Não

há instância alguma acima da razão". Podemos

interpretar com alguma possibilidade de fidelidade para

onde apontava Freud com respeito à religião. Contudo,

tal perspectiva não se materializou, visto que, hoje, as

idéias religiosas vão bem. Em outras palavras, a força, o

poder e a influência do pensamento religioso são

vigorosos neste inicio do século XXI. Portanto,

observamos que alguma coisa do ideal freudiano ficou

pelo caminho.

IHU On-Line - Quem é Deus para Freud?

Leonardo Francischelli - Deus para Freud é o pai. Isso

é passível de sustentação segundo seu artigo de 1913,

Totem e tabu. Em breves palavras, é a imagem daquele

pai da nossa infância toda poderosa que será transferida,

posteriormente, a Deus. O trabalho Totem e tabu vai

repercutir em outros textos, porém localizaremos

maiores ressonâncias em Moisés e a religião monoteísta.

IHU On-Line - Quais as relações entre a idéia de Deus

e a psicanálise? Podemos relacionar Deus (o Pai) com a

figura do pai segundo a psicanálise?

Leonardo Francischelli - Sobre a idéia de Deus já

dissemos alguma coisa. Seguramente não o suficiente.

Deus e a psicanálise não casam bem na minha colocação

no mundo. Sim. Pai e Deus, como dissemos, são idéias

que se fundem na sua origem. Entretanto, os percursos,

quando matizados pelo pensar religioso, se bifurcam e

dificilmente se encontrarão.

IHU On-Line - Freud se mostra absolutamente

convicto de que a psicanálise só pode ser inventada

por uma pessoa não-crente. Podemos estabelecer a

15SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

relação psicanálise-ateísmo? Existe incompatibilidade

no exercício da psicanálise e da fé religiosa?

Leonardo Francischelli - Talvez. Parece que Freud

nunca se declarou religioso. É difícil, a meu ver,

contemplar a possibilidade de que alguém, embebido de

uma idéia espiritual com a marca da religiosidade,

pudesse fundar, criar a psicanálise. Basta pensarmos nas

três caídas narcisistas propostas por Freud, sendo a

última aquela que o homem é um produto da espécie e

não de Deus. Nessa medida, ainda com amigos queridos

próximos que defendem essa possibilidade, há sim

incompatibilidade entre as duas matérias: religião e

psicanálise representam duas formas de pensar que vejo

poucas possibilidades de andarem juntas, ainda que

analisemos alguém de origem religiosa.

IHU On-Line - Quais são as principais críticas de

Freud à religião?

Leonardo Francischelli - Talvez a crítica fundamental

de Freud às religiões a extraíssemos da obra já referida

O futuro de uma ilusão, em que pareceria, e isso tem

muito da visão, de uma conclusão da sua leitura, que ele

esperaria o fim, diremos assim, de todo pensar religioso.

Então, o homem, desprotegido de um Deus, terá que se

desfazer de um pensamento infinito, isto é, uma vida

além da morte para situar-se com a finitude.

Por que Freud rejeitou Deus? ENTREVISTA COM ANA-MARIA RIZZUTO

No livro Por que Freud rejeitou Deus ? a psicanalista Ana Maria Rizzuto

interpreta elementos contidos na teoria freudiana e em seu desenvolvimento para

mostrar as razões que fizeram de Freud um opositor ferrenho da religiosidade e

suas instituições. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Ana diz que

“circunstâncias pessoais da vida de Freud, durante seu crescimento, não lhe

permitiram a experiência da sensação de proteção”. Ana-Maria Rizzuto é

psicanalista latino-americana radicada nos Estados Unidos. Trabalha criticamente

as teorias de Sigmund Freud.

IHU On-Line – Por que Freud rejeitou Deus?

Ana-Maria Rizzuto – Circunstâncias pessoais da vida de

Freud, durante seu crescimento, não lhe permitiram a

experiência da sensação de proteção. Seus primeiros

anos de vida foram marcados por mortes significativas:

seu avô paterno, seu tio e seu irmão Julius. A última

morte marcou a experiência psíquica de Freud para toda

a vida. Ele teve outras perdas: sua babá, a quem foi

superapegado, desapareceu de sua vida sem dar notícia.

Freud, quando era pequeno, saiu de sua cidade natal, e

seu pai perdeu o emprego. Depois, entrou para a escola

pública, e pegaram seu tio favorito contrabandeando,

prenderam-no e julgaram-no. Em suma, nenhum dos

adultos com os quais Freud precisou contar foram

capazes de oferecer-lhe proteção e segurança. Eles

falharam com Freud de uma maneira ou de outra. Meus

estudos mostram que crianças precisam de modelos de

confiança e figuras adultas para dar forma a uma

representação de Deus que seja acreditável. Freud não

teve essa experiência. Ele sentiu que tinha que tomar

16SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

conta dele mesmo, sozinho. Para ele, em suas palavras,

“não há nenhuma Providência” para prestar atenção

nele. Como cientista, ele acreditou apenas nos métodos

científicos que implica que tudo que não é provado

cientificamente não existe. Esse segundo fator contribuiu

para consolidar sua descrença na existência divina.

IHU On-Line – Qual a imagem que Freud tinha de

Deus?

Ana-Maria Rizzuto – Eu não analisei Freud. Minha

resposta não vem da exploração de sua mente, mas dos

acessos indiretos que tive a seus escritos. De sua

experiência, Freud concluiu que Deus descrito pela

religião como uma divindade que nos protege, não

existe. Na consciência dele, a representação de Deus

clamava por um aspecto de proteção. A experiência

emocional de Freud indicava para ele que nenhuma das

figuras paternas nem os adultos de sua vida foram

capazes de protegê-lo das perdas profundas e do

sofrimento. Ele não teve experiências para formar sua

crença na representação da providência e proteção de

Deus.

IHU On-Line - Quem é Deus para Freud? Como definir

Deus pelo olhar da psicanálise?

Ana-Maria Rizzuto – Freud demonstrou com material

clínico que Deus e a opinião religiosa eram formadas

como resultado da transformação das representações

paternas, assim como no complexo de Édipo. Tal

conclusão foi a mais significativa contribuição de Freud

para a psicologia da religião. Pesquisas no mundo todo

confirmaram as conclusões de Freud. Para Freud, Deus é

construído sobre a representação do pai. Ele dizia que

Deus é “uma exaltação do pai”, “uma sublimação do

pai”, “um substituto do pai”, “uma cópia do pai” e

finalmente que “Deus é o pai”. Freud negligenciou

examinar o significado da mãe na formação da

representação de Deus. Psicanálise é uma disciplina

empírica e teórica. Sua metodologia não permite

nenhuma conclusão sobre a existência de alguma

divindade, pois tal divindade não pode ser sujeitada à

pesquisa empírica. Apesar de tudo, psicanalistas

observam que as pessoas acreditam em Deus ou que elas

rejeitam Deus. Isso significa que elas têm uma

representação de Deus que foi formada em suas mentes

durante seu processo de crescimento. Acreditando ou

não, a real existência de Deus não faz parte da

psicanálise. E isso está diretamente relacionado com a

qualidade das nossas relações emocionais com nossos

pais, adultos e figuras religiosas.

IHU On-Line - Deus e Freud estão em campos

opostos?

Ana-Maria Rizzuto – Não. Freud elucidou as Escolas de

Psicologia da crença em Deus e a elaboração psíquica da

representação da divindade. Freud, o homem, poderia

não acreditar por causa de suas próprias experiências,

cultura e circunstâncias científicas. Ele foi convencido de

que a religião era essencialmente uma defesa baseada na

projeção da figura paterna dentro de uma proteção e

providência de Deus. Ele acreditou que a ciência poderia

ajudar seres humanos a desistir da religião e renunciar ao

desejo por proteção, como ele escreveu em The Future

of an Illusion. Nas últimas décadas, a psicanálise aceitou

e ampliou as dinâmicas freudianas no entendimento da

formação da representação de Deus e aceitou que crença

e necessidades espirituais são componentes significativos

dos seres humanos.

17SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

O aguilhão Freud. Crítica e superação da religião? POR HERBERT WILL

Por ocasião do 150º aniversário de nascimento de Sigmund Freud (Moravia 1856

– Londres 1939), traduzimos e reproduzimos o texto a seguir, de Herbert Will, da

Alemanha. O texto foi publicado em Teologi@Internet, da Editoria Queriniana, de

Bréscia, na Itália, em 29-09-2006.

Por ocasião do 150º aniversário do nascimento de

Sigmund Freud (Moravia 1856 – Londres 1939) celebram-

se em todo o mundo, em particular no mundo de língua

alemã, jornadas de estudo sobre sua obra e sobre seu

legado cultural. Um Seminário de estudo foi realizado na

Academia Católica de Munique, na Baviera, onde sua

obra foi examinada sob o perfil religioso. Apresentamos

em síntese a relação do Dr. Herbert Will, docente na

Academia de psicanálise e psicoterapia em Munique.

Sobre o mesmo tema se pode consultar: Heinz Zahrt, O

desafio da moderna crítica da religião (GdT 133); e Hans

Zirker, Crítica da religião (GdT 187). Cada um destes dois

livros do Jornal de Teologia dedicam um capítulo à

crítica da religião desenvolvida por Freud.

Em sua contribuição para a revista Concilium, Paulo

Ricoeur, filósofo francês da religião, exprime o

pensamento que Freud, com sua crítica da religião,

interpele profundamente o homem de hoje. Isso teria a

ver com a intenção de Freud de revelar o homem a si

mesmo. Nós, no entanto, estamos ainda amplamente

longe, sustenta Ricoeur, de ter feito nossa a verdade do

freudismo sobre a religião. A via freudiana do

autodesvelamento é um percurso áspero. Porém vale a

pena, porque através dele chegamos a um

reconhecimento mais intenso do homem como homem.

Gostaria de assumir este pensamento de Paul Ricoeur.

A posição de Freud perante a religião é

pronunciadamente unilateral e monomaníaca – coisa que,

em meu parecer, não acontece somente nele, mas em

todos nós, porque em nosso modo pessoal de relacionar-

nos com a religião se articulam às nossas mais profundas

convicções vitais. Freud considera a religião do ponto de

vista de um cientista ateu. Este ângulo visual, no

entanto, não se limita à religião, mas contradistingue

todo o comportamento da sua psicanálise como projeto,

o último grande projeto do iluminismo, como o

evidenciou Peter Gay (1987). “Por que ninguém, entre

todas as pessoas piedosas, criou a psicanálise? e por que

foi preciso esperar um judeu totalmente sem deus?”,

escrevia Freud ao pároco e analista suíço Oskar Pfister

(Carta de 9.10.1918).

Contra ilusões

Gostaria de dirigir um breve olhar ao desenvolvimento

do trabalho de Freud, porque isso mostra quanto sua

teoria da religião se situa no complexo do seu

pensamento. Nos seus estudos sobre a histeria, ele se

interrogara de onde proviriam os enigmáticos sintomas

da doença histérica, em particular os sintomas físicos da

paralisia ou da cegueira. E descobriu que estes sintomas

representam uma cobertura atrás da qual estavam

escondidas reminiscências, recordações de experiências

altamente conflitantes, que tinham sido removidas e de

novo emergiam na forma transposta do ocultamento

sintomático. Conseguindo trazer à luz e desdramatizar o

18SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

conflito originário, o sintoma da doença ter-se-ia tornado

supérfluo.

Na Interpretação dos sonhos, Freud chega a uma

compreensão dos sonhos na qual o sonho manifesto –

aquele do qual nos recordamos e que podemos contar –

analogamente ao sintoma da doença, representa também

ele uma superfície sob a qual as idéias oníricas latentes

são os verdadeiros e próprios agentes do evento onírico.

Também aqui são motivações dinâmicas, inconscientes

que determinam o processo do sonhar, com suas

coberturas e fraturas. O sucessivo grande estudo d Freud

sobre a Psicopatologia da vida cotidiana mostra, num

outro campo, como o esquecer, o substituir uma palavra

por outra – o famoso “ato falho” freudiano – a

superstição e o erro funcionam igualmente segundo este

modelo. No ensaio sobre o movimento do espírito e sua

relação com o inconsciente, trabalho que lhe era

particularmente caro, desenvolve suas interpretações

dos movimentos do espírito precisamente a partir daquilo

que, incompreendido e incoerente, improvisamente se

torna manifesto e move ao riso.

Enfim gostaria de recordar os três ensaios sobre a

teoria da sexualidade. Aqui Freud aprofunda sua tese

sobre o significado central da sexualidade infantil. Ele

levanta a questão da razão pela qual a sexualidade das

crianças tenha sido tão pouco reconhecida em seu

significado e a reconduz, de um lado, ao modo

convencional dos seus contemporâneos de considerarem

a sexualidade como conseqüência de sua educação

pessoal e de suas concepções morais e, de outro lado, a

um fenômeno psíquico que, para a maior parte das

pessoas, se não todas, esconde os primeiros anos de sua

infância até o sexto ou oitavo ano: a amnésia infantil, a

perda da lembrança dos primeiros anos de vida. Esta se

refere agora precisamente às impressões que deixaram

as marcas mais profundas em nossa vida psíquica e que

se tornaram determinantes para todo o nosso

desenvolvimento ulterior. São precisamente estas que

são esquecidas, ou antes, como Freud as elabora,

removidas. Aqui radica, em última análise, o processo da

remoção - o surgimento de conflitos interiores

ansiógenos e sua localização no inconsciente – como um

processo normal na nossa biografia e subjetividade.

Com a psicanálise, Freud desenvolve como que uma

ciência das dimensões de nossa vida psíquica que nos são

desconhecidas, dificilmente acessíveis e, no entanto,

sumamente ativas. Podemos definir a psicanálise como a

ciência daquilo que nós não queremos saber. A superfície

não constitui aquilo que é autêntico, as forças da vida

psíquica operam do que é escondido. Essas coisas não

são, de fato, acessíveis, mas se opõe, ao invés disso, à

nossa percepção, expressando-se de forma transposta.

Disso se nutre o pathos iluminista que caracteriza a

psicanálise: esta se esforça por indagar e falar daquilo

que nós não queremos saber. Formula a tese que a

imagem que temos de nós mesmos consiste em grande

parte de ilusões. Se descobrirmos as motivações

incônscias sobre as quais se baseiam as nossas idéias,

estas ilusões desaparecem como neblina no sol. Somente

se nos desencantarmos das nossas ilusões, aprenderemos

a conhecer-nos realmente. Situa-se também da parte de

Freud, o modo de ver a religião. Sua teoria da religião

não é, de fato, uma cisma pessoal, e sim uma coerente e

corajosa continuação de sua abordagem psicanalítica.

O gênero humano cria para si as suas divindades

A psicanálise liberou a impertérrita e desbordante

produtividade de nossa vida psíquica. Nós produzimos

sintomas, produzimos sonhos, substituições de palavras,

atos falhos, remoções, fantasias sexuais, arte, literatura,

e produzimos também religião. Do ponto de vista de

Freud, a religião é uma produção do ser humano e,

precisamente, uma produção tanto individual como

coletiva. Freud afasta Deus de uma realidade

transcendente e o localiza na experiência intrapsíquica.

Ele conceitua a religião como uma criação do homem.

19SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Em Immanuel Kant já se pode encontrar a formulação:

“Soa, na verdade, como suspeito, mas, não é de fato

irrefutável dizer que cada um se faz um deus”. Freud

assume agora o empenho de elaborar a modalidade e de

dar nome aos motivos segundo os quais as pessoas criam

para si as suas divindades.

Ao fazer isso, ele, de resto, não está só. Ele antes faz

parte daquele movimento que, em seu tempo, a

psicologia da religião desenvolveu como disciplina

especializada. Com os seus contemporâneos ele começou

a formular um contexto científico e uma linguagem para

dizer o que Nietzsche aforisticamente chamou de morte

de Deus. Agora se diz que Deus desaparece como óbvia

grandeza transcendente, que constitui o horizonte para a

experiência do mundo dos homens – o Deus do além – e

ressurge como grandeza psicológica. A era de Freud é

caracterizada pela descoberta do nosso mundo interior e

também a religião é agora desenvolvida como parte do

mundo interior humano.

Antes de aprofundar a psicologia da religião de Freud,

gostaria de recordar os escritos que nos podem

interessar. Sobretudo, Comportamentos obsessivos e

práticas religiosas (1907), no qual ele compara o

comportamento religioso, entendido como uma neurose

coletiva, à neurose individual dos neuróticos obsessivos.

Em 1912 e 1913, ele escreve Totem e Tabu, onde realça

algumas correspondências na vida psíquica dos selvagens

e dos neuróticos. Aqui ele se confronta indiretamente

com Carl Gustav Jung e discute, com base num material

variado tomado da etnologia, o pensamento processual

primário. Enfim, ele desenvolve a hipótese histórico-

religiosa de que cultura e religião tenham emergido de

um evento originário pulsional: o assassínio primordial - o

parricídio da horda primitiva e as tentativas que lhe

seguem de superar esta ação primordial e, ao mesmo

tempo, da culpa, das rivalidades, da dinâmica sacrifical

e assim por diante. Aqui já se torna claro aquilo que

sempre mais emerge em primeiro plano nos escritos

ulteriores de Freud sobre a religião. É a necessidade de

resolver o problema da agressividade e da destrutividade

dos homens, e de reconduzi-lo a limites aceitáveis, o que

para ele se torna o núcleo central do fato religioso. A

religião serve para refrear o furor destrutivo dos homens.

O Futuro de uma ilusão, de 1927, é o escrito mais

conhecido de crítica à religião. Freud endurece ainda

mais sua linha de pensamento na lição de 1933, Sobre

uma visão do mundo. Nela argumenta que a psicanálise

deve proceder polemicamente contra a religião, porque

esta permaneceu como o inimigo mais sério da ciência,

combate o amor pela verdade e, em lugar dos

conhecimentos sempre provisórios e fragmentários da

ciência, tende a propor um sistema ideológico

onicompreensivo e intolerante.

Em O diálogo da civilização (1930), Freud se ocupa do

sentimento oceânico, do qual falara Romain Rolland.

Admite que pessoalmente, no que diz respeito a este

sentimento nada pode fazer e aos sentimentos religiosos

e às situações emotivas subjetivas ele não concede

nenhum valor geralmente válido.

O homem Moisés e a religião monoteísta (1939) surgiu

originariamente indicado por Freud como romance

histórico. É um estudo histórico-religioso e psicoistórico

altamente especulativo. A tese de Freud é que Moisés

não era de fato um hebreu, e sim um nobre egípcio que

conduziu para fora do Egito a tribo semítica, deu-lhe

como religião o monoteísmo espiritualizado do faraó

egípcio Echnaton e, no entanto, por motivo de suas

elevadas pretensões, foi morto pelos semitas. Estes,

depois, misturaram o seu rígido monoteísmo com a

popular divindade dos vulcões, Jahwe, [Javé]. O delito

produziu, no entanto, os seus efeitos. Num reemergir do

removido se impõe de novo, numa etapa sucessiva, o

deus altamente espiritual da religião de Moisés, que

domina até hoje o hebraísmo. Esta tese do assassínio do

pai como origem de religião e cultura, tomada de Totem

e Tabu, é aqui historicamente aplicada à pessoa do

20SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

homem Moisés. Hoje é claro que a construção de Freud,

considerada do ponto de vista histórico, é falsa. Como

concepção psicoistórica ela é, todavia, muito discutida.

Principalmente a tese de Freud que traumas originários

da história da humanidade e experiências coletivas

primordiais sejam transferidos para uma memória cultura

e – reemergindo do inconsciente – se tornem cultural e

histórico-religiosamente criativas, é uma tese que

encontra muita ressonância (cf. a discussão sobre os

trabalhos de Jan Assmann).

Cada pessoa cria o seu próprio deus

Vimos que o modo de ver a religião da parte de Freud

tem duas perspectivas: uma histórico-religiosa e

psicoistórica e uma outra individual. Dediquemo-nos

agora a esta segunda perspectiva, a gênese do desejo

religioso. Cada pessoa, assim sustenta Freud, cria sua

própria fé religiosa com os seus desejos mais profundos.

Cito uma passagem de O futuro de uma ilusão, na qual

Freud toma em consideração a gênese psíquica das idéias

religiosas:

“Estes, que se consideram como princípios, não são

reflexos da experiência ou resultados do pensar, são

ilusões, invenções dos desejos mais antigos, mais fortes,

mais prementes da humanidade; o mistério de sua força

é a força destes desejos. Sabemos já que a impressão

terrificante da impotência infantil suscitou a necessidade

de proteção – proteção graças ao amor – a cujo encontro

veio o pai, e o conhecimento do perdurar desta

impotência por toda a vida causou o agarrar-se à

existência de um outro pai, agora um pai mais potente.

Através da ação benévola da divina providência, a

angústia diante dos perigos da vida é abrandada, a

introdução de uma ordem moral universal assegura a

satisfação da exigência de justiça, que no interior da

civilização humana permaneceu tão freqüentemente

incompleta, a projeção da existência terrena numa vida

futura fornece o contexto local e temporal no qual estes

desejos devem ser satisfeitos. Respostas e interrogações

enigmáticas da humana curiosidade, por exemplo, sobre

o nascimento do mundo e a relação entre corpóreo e

psíquico, são desenvolvidas pressupondo este sistema; e

representa uma grandiosa facilitação para a psique

individual saber que os conflitos da idade infantil, jamais

de todo superados, que brotam do complexo do pai, lhe

são subtraídos e reconduzidos a uma solução por todos

aceita”.

E ainda uma citação: “Nós dizemos, pois, que uma fé é

uma ilusão se, em sua motivação, se evidencia a

satisfação de desejos, e prescindimos neste de sua

relação com a realidade, da mesma forma como a ilusão

renuncia à sua autenticação”.

Pois bem, Freud não é de parecer que todo indivíduo

singular possa criar-se livremente a própria, partindo do

seu íntimo. Isso antes acontece de um processo de

apropriação ou de recusa da tradição cultural na qual

crescemos. É a cultura que cria as concepções religiosas.

Ela confere a cada um estas idéias, “ele as encontra já

existentes, elas lhe são fornecidas já prontas, ele não

estaria em condições de encontrá-las sozinho. É a

herança de muitas gerações na qual ele entra e que ele

assume como a tábua pitagórica, a geometria e outras

coisas”.

Não nos surpreenderá o fato de que Freud proponho,

no final, deixar perder-se este mundo ilusório do desejo.

Ele se propõe agora como um severo educador da

humanidade e indica os princípios doutrinais religiosas,

por assim dizer, como sobras neuróticas da humanidade.

Hoje estaremos na condição de reconhecer tudo isso e de

a isso renunciar, substituindo-o por uma espiritualidade

mais elevada, que ele caracteriza com o primado da

razão, uma educação à realidade e uma modéstia que

sabe reconhecer a limitação e a provisoriedade de todos

os nossos conhecimentos.

Freud permanece também aqui um incorruptível e

21SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

intrépido racionalista, quando se volta polemicamente

contra o obscurecimento, a embriaguez e a narcotização

em funcionamento dos sentimentos religiosos. Como

escreve a Oskar Pfister, ele atribui a toda espécie de fé

religiosa uma parcela de infantilismo que não foi superada.

De superar estes modos infantis de pensar e de sentir,

todavia, são capazes somente poucas e fortes

personalidades, as quais conseguem renunciar à consolação

da religião (Carta de 26.11.1927).

Para uma avaliação de Freud

Gostaria de retomar a afirmação de Paulo Ricoeur, de

quanto seja centralmente importante o autodesvelamento

que Freud estimulou, se quisermos hoje falar da religião de

modo verídico. De Freud em diante tornou-se sempre mais

evidente que toda nuança da fé religiosa é, no mais

profundo, mesclada com nossos pessoais desejos, angústias

e conflitos, e é por eles plasmada. A religião é uma íntima

expressão da nossa subjetividade.

Isso naturalmente não vale somente para pessoas

religiosas, mas também para os ateus. Freud não

considerou este aspecto e, no entanto, seu desafio vale

também para ele mesmo. Um ponto de vista não-religioso

também é expressão de convicções pessoais, que, de algum

modo, se formaram no confronto com a religião dos pais. Se

uma pessoa não-religiosa aduz motivos puramente racionais

para justificar seu comportamento, isso é, então,

superficial da mesma forma como a ilusão religiosa.

Na ciência da religião, há uma ampla discussão sobre o

problema dos insider e dos outsider no modo de considerar

a religião. Em sua teoria da religião, Freud se posiciona

continuamente como um outsider, que olha a religião de

fora, reflete sobre ela e a julga, e ao fazer isso assume um

ponto de vista “objetivo”, de distanciamento. Eu penso que

isso lhe tornou possível o olhar agudo e perspicaz que lhe é

próprio.

No entanto, penso também que isso o impede de colher

depois emotivamente o mundo do religioso e desta forma

penetrar nele de um modo mais profundo. Nós estamos

hoje em condições de uma reflexão metodologicamente

mais adequada de quanto fosse possível ao tempo de Freud.

Penso que, quem hoje se confronta com a religião, do

ponto de vista psicanalítico, deve estar na condição de

poder assumir ambas as posições, seja aquela de um

outsider, como também aquela de um insider. Gostaria de

recordar brevemente os métodos psicanalíticos que nos

podem ajudar a tornar-nos insider de modo mais reflexo.

São a capacidade de pôr-se diante do problema e a

intersubjetividade com a qual nós podemos entrar, como

pesquisadores, na vida da religião, coisa natural e de novo

algo diverso de um comportamento religioso privado.

Gostaria de ressaltar três âmbitos temáticos aos quais

Freud, por causa de sua limitação, não encontrou nenhum

acesso. Pessoas religiosas exprimem quase sempre a idéia

de que o dinamismo na religião “provém de Deus” e que é

centralmente importante “abandonar o próprio Eu” ou

mesmo “deixar morrer o Ego”, para abrir-se àquilo que

provém da esfera transcendente. Não penso que o conceito

freudiano de projeção baste para clarear este fenômeno. A

práxis religiosa contempla quase todas as partes técnicas

que visam fatigosamente a uma transformação ou

transgressão. O conceito de Freud da regressão a um

infantilismo não é, de fato, suficiente para dar conta destas

correntes progressivas da práxis religiosa. Os fatores

emocionais da religião – tanto as profundas convicções com

ela conexas, como também o que de William James em

diante é designado como experiência religiosa ou o que

Romain Rolland chamou de o sentimento oceânico – esta

vivência emocional das pessoas religiosas dificilmente pode

ser entendido por Freud. São traços específicos essenciais

que constituem precisamente a peculiaridade da religião,

em relação às quais ele permanece pleno de

incompreensão. Isso não diminui, no meu modo de ver, sua

posição. Ninguém pode ter tudo presente. A unilateralidade

de Freud é um aguilhão que não deixa em paz, uma vez que

pungiu.

22SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Teologia Pública

Retorno religioso ENTREVISTA COM CLAUDE GEFFRÉ

Nesta semana, a Teologia Pública entrevistou o professor honorário do Instituto

Católico de Paris, Claude Geffré. A entrevista foi concedida por e-mail.

IHU On-Line - Nos últimos anos observamos um

grande aumento dos estudos das religiões. Como o

senhor avalia isso?

Claude Geffré - Ao menos na Europa, pode-se falar há

três ou quatro décadas de um retorno do religioso. Ele

coincide com certa crise da modernidade se, por

modernidade se entende uma razão convencida de si

mesma e em conflito com toda tradição e toda fé

religiosa. No final do século XX, vários pensadores

denunciaram a deriva da razão magnificada pelo

Aufklärung1, uma razão que se esgota na sua porta

instrumental, uma razão que teve como saída fatal as

diversas formas de totalitarismo. E, nos países como a

França, constatam-se os limites de uma sociedade

completamente secularizada e de um laicismo militante

e anticlerical que era um tipo de quase religião

republicana. Está-se em busca de um laicismo aberto que

compreende que o “religioso” é uma dimensão intrínseca

da cultura. Se, fala-se à vontade de pós-modernidade, é

justamente para designar a pesquisa de uma

racionalidade mais fundamental que não seja redutível

nem à racionalidade conceptual nem à racionalidade

formal das ciências. A ordem do razoável, que é da

ordem da ética e do político não está em oposição fatal

com o religioso. Mas fala-se das sociedades da América

do Norte ou da América do Sul. Estas jamais conheceram

1. Iluminismo (N.T.)

uma completa secularização, comparável à da Europa. É

por isso que é impróprio falar de um retorno ao

religioso. Seria mais apropriado tentar evocar um

despertar do fundamentalismo. Ele coincide com o

sucesso das igrejas evangélicas pela reação contra a

excessiva permissividade moral das sociedades

modernas, para conjurar a ameaça do terrorismo

internacional e da exploração de nosso meio ambiente.

IHU On-Line - Que conceito de religião orienta sua

reflexão enquanto teólogo? Como o senhor

fundamenta este conceito e que conseqüência tem isto

para pensar as religiões no atual contexto

sociocultural?

Claude Geffré - A palavra e a noção de “religião” têm

uma origem ocidental. A palavra remonta a Ciceron

(relegere) e a Lactance (religare). E é certo que a noção

de religião para designar uma dimensão estrutural da

vida dos indivíduos e das sociedades originou-se de uma

utilização corrente a partir do século III sob a influência

do cristianismo. Não existe uma palavra para designar a

religião nas línguas indo-européias. E muitas sociedades,

na África e na Ásia ignoravam a palavra e a noção de

religião. A noção de religião pressupõe, na verdade, uma

distinção clara entre o sagrado e o profano, distinção que

deve muito à noção de criação que é inerente ao

monoteísmo judeu-cristão. Mas, se é verdade que a

noção de religião não é universal, não é cair no

23SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

europeocentrismo utilizar hoje a palavra “religião” para

designar bem além da civilização ocidental, seja os

fenômenos religiosos, seja o próprio registro da vida

individual. Como teólogo, recuso uma definição

puramente sociológica ou funcional da religião e sou

tentado a discernir em todo ser humano um registro

próprio que não é redutível aos domínios do político, da

ética ou da estética. Há em todo ser humano uma

capacidade fundamental ou uma abertura a um absoluto

transcendente que foge à imanência da consciência e da

história. Mas pode-se falar de experiência religiosa sem

que este absoluto seja determinado como um Deus

pessoal. Pode-se tratar do Deus otiosus das religiões

africanas, da Realidade suprema além dos fenômenos

como no hinduismo, do Vazio como no budismo, ou do

Tao chinês.

IHU On-Line - O que o motivou, como teólogo cristão,

a tratar da questão das religiões – no livro Avec ou sans

Dieu? - em diálogo com o filósofo Regis Debray?

Claude Geffré - Na obra, Avec ou sans Dieu1?, aceitei

dialogar com o filósofo agnóstico Régis Debray, porque,

como mediólogo, ele está muito preocupado em mostrar

a permanência do fenômeno religioso nas sociedades

modernas. Nisso, ele mantém sua distância em relação

ao cientismo e ao laicismo de certo número de

representantes das Luzes que ainda confundem o

religioso com certo obscurantismo. Além disso,

encarregado pelo ministério francês da Educação

nacional de um relatório sobre o ensino do fato religioso

na Escola, quis mostrar a importância do “religioso”

como parte constitutiva da cultura em geral. E,

contrariamente à mentalidade dominante dos professores

do ensino público, que professam uma neutralidade

absoluta em matéria religiosa, sobretudo no caso do

cristianismo, ele provou que não somente era possível,

mas necessário ensinar o Fato religioso sem cair no

1 N. T: Com ou sem Deus?

confessionalismo ou apologética. Tratava-se, segundo

seus próprios termos, de substituir um laicismo de

incompetência por um laicismo de inteligência. Mas

apesar do título de nossa obra comum, nosso diálogo não

diz diretamente respeito à questão do ateísmo. Estamos

os dois convencidos da importância do fenômeno

religioso na vida das sociedades e dos indivíduos, mas

divergimos sobre a natureza da religião. E é por isso que

o verdadeiro título de nosso livro poderia ter sido

também: La réligion avec ou sans Dieu2?

IHU On-Line - Resumidamente, em que consiste sua

abordagem hermenêutica das religiões?

Claude Geffré - Como mediólogo, Régis Debray se

interessa antes de tudo pela religião como laço social. É

a religião que favorece a coesão e o dinamismo do grupo

humano. Seja ele benéfico ou maléfico, é o sagrado que

caracteriza a vitalidade de toda sociedade humana. É a

tese que é subjacente em seu grande livro que tem

justamente por título, O fogo sagrado. Como teólogo e

hermeneuta, interesso-me, sobretudo pelas religiões na

questão do sentido. Abordo então as religiões com base

em seus textos fundadores e de suas tradições

interpretativas. E, se considero também necessárias suas

práticas, seus rituais e sua liturgia, interesso-me pela

intencionalidade religiosa que revela ou manifesta esta

proliferação de gestos sagrados.

IHU On-Line - Como o senhor situa o lugar e/ou a

função da religião na vida dos indivíduos e da

sociedade? Considerando a especificidade de sua

posição como teólogo, o que o senhor faz questão de

enfatizar como acordo e desacordo entre seu

pensamento sobre as religiões em relação e o

pensamento de Régis Debray?

Claude Geffré - Interrogar-se sobre a função da

religião na vida dos indivíduos e das sociedades, é

2 N. T: A religião com ou sem Deus?

24SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

limitar-se a uma abordagem sociológica e psicológica da

religião. É - o que me parece - a abordagem de Régis

Debray mesmo se ele afirma ser um discípulo de

Durkheim. Ele se interessa primeiramente pela utilidade

social da religião. Eu prefiro me situar do ponto de vista

de uma antropologia religiosa que se interroga sobre a

irredutibilidade da dimensão religiosa do fenômeno

humano. Isso não revela nem o ter, nem o poder, mas o

valer, em questão de sentido, mas não se trata de

questões sem respostas. É mais precisamente a resposta

a um apelo que vem de fora e precede-nos sempre.

Mesmo se a religião é necessariamente um fenômeno

coletivo, não posso dissociar a religião da experiência

religiosa, pois não há experiência religiosa – ao que me

parece - sem experiência de certa gratuidade,

comparável à experiência de um amor incondicional ou à

experiência da beleza da natureza ou de uma obra de

arte. Régis Debray vale-se de um conceito homogêneo do

religioso através do tempo e do espaço. Sou mais sensível

a um conceito diferenciado do religioso, segundo as

épocas, as áreas culturais. Nas sociedades arcaicas, as

sociedades sem Estado, a religião era um poderoso fator

de coesão social e o homem religioso sentia-se sempre

em dívida com relação aos poderes religiosos invisíveis. A

história era como confiscada pela natureza plena de

sagrado. A noção de criação na religião bíblica e a da

encarnação de Deus no cristianismo favoreceu a

emergência de um homem livre e responsável por sua

história. Esta dessacralização do mundo que coincidiu

com o sucesso do monoteísmo judeu-cristão nos convida

a não definir exclusivamente a religião como fator de

coesão social. Este movimento conduzirá no Ocidente a

uma separação do poder religioso e do poder civil e

mesmo a um fim do controle da vida dos indivíduos pela

religião dominante. Isso, porém, não conduziria ao fim

da religião como crença religiosa. Era mais precisamente

uma busca da religião de outra forma, definida como

uma relação não-alienante com um Deus pessoal.

IHU On-Line - Que caminhos o senhor aponta para a

superação da violência e da dificuldade de

comunicação entre as religiões no mundo de hoje?

Claude Geffré - A história religiosa da humanidade

demonstra-nos que houve muito seguidamente uma

ligação entre a religião e a violência. Hoje ainda,

constatamos que uma grande religião como o islã pode

conhecer uma deriva que chega a ponto de legitimar uma

violência assassina em nome de Deus. Seguidamente

denunciou-se a intolerância das religiões monoteístas na

medida em que elas se reclamam de uma verdade

revelada por Deus. Elas produzem o fanatismo religioso e

o exclusivismo com relação aos membros das outras

religiões. Todas as religiões, contudo, de fato, podem

tornar-se violentas desde que elas sejam

instrumentalizadas pelo poder político a serviço de uma

terra, de uma raça, de uma etnia ou de uma nação. O

diálogo inter-religioso tal qual existe já no começo do

século XXI deve conduzir a uma conversa entre as

próprias religiões ao invés de estarem a serviço de seus

próprios interesses e de um espírito de conquista

procurem uma emulação recíproca no serviço das

grandes causas que solicitem a consciência humana

universal: a defesa e a promoção dos direitos do meio

ambiente do homem no mundo que está sob a ameaça de

um caos ecológico. Não se trata de sonhar com um tipo

de super-religião mundial que sacrificaria as riquezas

particulares das diversas tradições religiosas, mas de

salvaguardar sua própria identidade ao mesmo tempo

que manifesta seu respeito e sua estima pela verdade

dos outros. Não é cair no relativismo reconhecer que

nenhuma religião, nem mesmo o cristianismo, não pode

ter a pretensão de totalizar todas as riquezas de ordem

religiosa disseminadas na pluralidade das vias religiosas.

IHU On-Line - Como o senhor vê as relações entre

ciências e religiões? Que implicações isso tem para a

25SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

ética?

Claude Geffré - A credibilidade das grandes religiões

do mundo está de fato abalada pelos novos resultados

dos saberes científicos sobre a origem do universo e do

fenômeno humano. Mas, cada vez mais, convém não

confundir a originalidade de um ensino religioso em

relação aos dados do saber cientifico. É precisamente o

erro do fundamentalismo de procurar na Bíblia uma

resposta sobre a origem e o fim do cosmos ou sobre a

aparição do homo sapiens. Os textos bíblicos não nos

fornecem uma resposta sobre a natureza do Big Bang

original ou sobre a origem da vida. Eles contêm uma

mensagem essencialmente religiosa. É o Papa João Paulo

II que, diferentemente dos criacionistas americanos,

afirmava que a teoria da evolução era muito mais que

uma simples hipótese científica. Justamente é o próprio

de uma abordagem hermenêutica da Escrita, distinguir

bem a permanência de uma mensagem religiosa ou ainda

uma revelação que interpela o homem atual e, também

as “representações do mundo” que acompanham esta

mensagem ao mesmo tempo que estas “representações”

não fazem mais parte do credível disponível do homem

moderno. Não é somente próprio de nossa representação

do universo. É igualmente verdade de nosso saber inédito

sobre as leis da reprodução humana, sobre a sexualidade,

sobre as relações do homem e da mulher etc... Será

necessário levar em conta no futuro de uma interpelação

recíproca entre as exigências de uma técnica secular.

Existe na verdade certo consenso da consciência humana

universal sobre o que é propriamente contrária ao

humano verdadeiro. E as religiões que não respeitam as

aspirações da consciência humana são convidadas a uma

reinterpretação criadora de seus textos fundadores e de

suas tradições.

IHU On-Line - Que aproximações entre religião, arte

e política o senhor considera importantes na cultura

atual?

Claude Geffré - Na cultura moderna, a consideração do

fator religioso é uma vantagem importante na paz social.

Os decididores políticos devem respeitar a liberdade

religiosa de seus concidadãos. Deve ser possível

promover uma cidadania que assume um pluralismo

religioso e cultural cada vez maior. Este pluralismo deve

enriquecer uma sociedade civil que, antes de ainda fazer

apelo a um Estado-providência da prova de criatividade

na área do serviço dos mais necessitados e dos excluídos

de nossas sociedades modernas sob o signo do perfil e da

obsessão da conquista. Além disso, ante os conflitos

intermináveis que ensangüentam o Oriente Médio, é de

responsabilidade histórica de os homens políticos

denunciarem os fanatismos religiosos, de fazerem ouvir a

voz da razão, de lembrarem as exigências do direito

internacional e de praticarem a arte do compromisso.

Não há paz entre os povos sem justiça e não há justiça

sem perdão. Enfim, não se deve jamais esquecer as

relações estreitas entre a religião e a arte caso se queira

salvaguardar o imenso patrimônio cultural da

humanidade. O fogo sagrado das religiões esteve na

origem de uma formidável explosão de formas simbólicas

na área da escultura, da pintura, da arquitetura. É fato

nas artes primitivas nas civilizações mais antigas; é fato

em Sumer e no Egito; é fato nas grandes religiões do

Extremo-Oriente; é fato no Ocidente da Idade-Média

latina e no Renascimento. É sempre o caso das formas

mais abstratas da arte sacra contemporânea. No domínio

da literatura, da ficção e do cinema, a liberdade de

expressão e então de crítica das crenças e das práticas

religiosos tornou-se total. Esta critica pode estar no

limite da blasfêmia. Tal limite não pode ser superado se

ele fere gravemente a sensibilidade de tal grupo religioso

e compromete a ordem pública de uma sociedade

democrática sob o signo da pluralidade religiosa.

26SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Entrevistas da semana

Arendt e a reflexão sobre a violência política ENTREVISTA COM BAT-AMI BAR ON

Dando continuidade à discussão suscitada pela edição 206 da IHU On-Line,

publicada na semana passada, em 27-11-2006, a professora de Filosofia e Estudos

das Mulheres na Universidade de Binghamton, em Nova Iorque, Estados Unidos,

Bat-Ami Bar On foi enfática na entrevista exclusiva que concedeu: “Arendt é a

grande referência teórica para uma reflexão mais profunda acerca da violência

política”, e ela certamente reagiria à iconização da qual está se tornando

protagonista. Arendt “acreditava que seu pensamento e sua obra ocupavam um

espaço híbrido entre teoria, história e, às vezes, jornalismo”.

Ph.D. pela Ohio State University, Bar On leciona em Binghamton, desde 1991.

Suas áreas de pesquisa e ensino são teorias da violência, teoria social e política e

filosofia sociopolítico feminista. Suas publicações incluem as obras Daring to Be

Good: Essays in Feminist Ethico-Politics. New York: Routledge, 1998; Jewish

Locations: Traversing Racialized Landscapes. Lanham, MD: Rowman and

Littlefield, 2001 e The Subject of Violence: Arendtean Exercises in Understanding.

Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 2002. Publicou, ainda, inúmeras antologias

e artigos de jornais.

IHU On-Line - Qual é a atualidade do pensamento de

Arendt para a construção de uma ética-política

feminista?

Bat-Ami Bar On - Creio que Arendt teria desaprovado

o termo "ética política", devido à distinção por ela

estabelecida entre "ética” e “política". Isso não significa

que a política, na visão de Arendt, fosse destituída de

valor e meramente uma área de poder. Ao contrário.

Arendt foi uma das téoricas do século XX que considerava

a política normativa. Foi, também, uma das teóricas

políticas mais importantes desse mesmo século. O fato

de Arendt ser uma escritora prolífica (o que ela julgava

uma incapacidade de conseguir pensar sem escrever)

deixou como legado uma grande variedade de fontes

escritas disponíveis à análise e ao uso das feministas para

acompanhar a discussão acerca de políticas normativas,

e as feministas têm se utilizado dos insights de Arendt, e

também dos insights de outros grandes teóricos. Arendt

exerceu grande influência nas obras de Seyla Benhabib,

Iris Marion Young e Maria Pia Lara, que nela encontraram

aspectos únicos quanto ao entendimento da esfera

pública e à ênfase no discurso como ação na política, e

na própria ação. Iris Marion Young também recorreu a

Arendt em sua reflexão sobre poder, responsabilidade

política e moral, e a diferença entre ambas. Kathleen

Jones viu em Arendt uma fonte de inspiração para

27SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

repensar a questão da autoridade. Shoshana Felman

considera a obra de Arendt sobre o julgamento de

Eichman importante para que se pense a respeito das

leis. Em minha opinião, Arendt é a grande referência

teórica para uma reflexão mais profunda acerca da

violência política.

IHU On-Line - E quanto à participação política das

mulheres, a filosofia arendtiana serve de parâmetro e

inspiração?

Bat-Ami Bar On - Penso que Arendt se oporia ao uso de

sua tese como medida de conduta de quem quer que

seja. Contudo, de fato ela acreditava que o diálogo,

talvez nos moldes do diálogo socrático, era

extremamente importante para a política. Assim,

mulheres que desejem travar um diálogo político com

Arendt, utilizando suas obras como um interlocutor,

deverão encontrar nelas uma boa companhia. Arendt

também acreditava que o discurso pode ser

performativo, e algumas de suas obras podem ser

bastante inspiradoras para as mulheres que admitem a

possibilidade de envolvimento político. Leitoras dos

relatos biográficos de Rahel Varnhagen e Rosa

Luxemburgo encontrarão nestas duas personagens, na

representação de Arendt, pelos perfis por ela retratados,

exemplos de escolhas e atos muito comoventes.

IHU On-Line - Uma das grandes preocupações dessa

filósofa em relação à Modernidade era a tentação do

homem para a interiorização e a conseqüente perda do

espaço público, ou a dignidade política. Essa

preocupação ainda vale para o sujeito político

contemporâneo?

Bat-Ami Bar On - Esta é a razão para nos preocuparmos

com o sujeito político contemporâneo. Arendt não se

preocupava apenas com a tentação à interiorização.

Preocupava-se também com a percepção que se tem da

política e da participação política, as quais considerava

subjacentes à subjetividade política. A preocupação de

Arendt se justificava, e deve ser nossa preocupação

também, pois o que falta hoje, talvez ainda mais do que

no passado, são incentivos internalizáveis para que se

adentre a esfera política pública e lá se permaneça

mesmo que não nos tornemos políticos profissionais.

Nossos conceitos a respeito de uma boa vida não incluem

a participação política contínua, e temos por hábito ver

os políticos como pacientes ou possíveis herdeiros de

uma parcela dos bens públicos. Não temos um senso de

coragem política adequada a um envolvimento político

contínuo, especialmente em épocas e locais não-

heróicos. Também carecemos de uma noção de outras

virtudes políticas.

IHU On-Line - A destituição do humano, à qual se

refere Arendt, é um conceito atual? Podemos entender

os totalitarismos do século XXI com essa denominação?

Bat-Ami Bar On - Arendt acreditava na existência de

um certo tipo de libertação humana típica da

modernidade, dentre as condições possíveis do

totalitarismo. Em suas afirmações a respeito da

libertação moderna, Arendt tanto se assemelha quanto

difere de Marx, compartilhando com ele a visão de que a

atualidade destrói as emaranhadas teias das relações

humanas. Estamos testemunhando uma nova versão de

libertação, trazida pela globalização capitalista, que

dilui não apenas o capital, mas também o trabalho. A

libertação atual é uma condição possível do

fundamentalismo dos dias atuais (religioso ou

nacionalista) que possui características totalitárias.

IHU On-Line - A banalidade do mal como produto da

execução autômata do burocrata moderno vale como

argumento explicativo para os regimes de exceção que

existem hoje? Ela criou esse conceito tomando em

consideração como seu contrário o conceito kantiano

de autonomia?

28SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Bat-Ami Bar On - "A banalidade do mal" não é,

necessariamente, um efeito da burocratização. Arendt a

define como um efeito da "insensibilidade," em sua

opinião um traço de Eichmann, e de outros que ele

apoiava, e um exemplo passível de generalização. Ser

"insensível" como Eichmann é ser monológico devido a

uma incapacidade de ver o mundo sob a perspectiva do

outro e, em seguida, repensar as próprias crenças sob a

luz do ponto de vista diverso. Este tipo de

"insensibilidade" ou monologismo é comum, e para que

não participemos dele, é necessário fazermos um

treinamento e um retreinamento de nós mesmos “para

sairmos em visita” a outras pessoas, diferentes de nós,

de modo a torná-las parte de nosso senso comunitário

sem, contudo, assimilá-las ao que já somos. Claro que o

indivíduo "insensível" não é autônomo no sentido

kantiano. Não é evidente, contudo, que o indivíduo

"sensível" seja autônomo no sentido kantiano, isto é, um

autolegislador que legisla leis universais sem o benefício

da imaginação de como a vida pode ser sob outras

perspectivas porque não existem outras perspectivas,

exceto a perspectiva única e exclusiva da razão. O

indivíduo "sensível" talvez seja alguém como Sócrates

que, de acordo com Arendt, estava ciente da natureza

dialógica do pensamento, e cuja descrição kantiana não

era simples.

IHU On-Line - Arendt dizia que não era filósofa, mas

que sua profissão era a teoria política. Quais são suas

principais contribuições para se repensar a política na

atualidade?

Bat-Ami Bar On - Arendt se distanciou da filosofia por

acreditar que a própria filosofia, a partir de Platão, havia

se distanciado da política. Porém, Arendt não se

considerava apenas uma cientista política, pois criticava

a ciência política na medida em que fosse conduzida sob

pressupostos positivistas. Ela acreditava que seu

pensamento e sua obra ocupavam um espaço híbrido

entre teoria, história e, às vezes, jornalismo. Eu penso

que seu posicionamento em relação ao próprio

pensamento e obra serve de exemplo sobre como

conduzir o projeto de repensar a política de hoje, pois

sugere idéias sobre como fazê-lo, não do ponto de vista

da teoria ideal (como faz John Rawls), mas sem que se

desista de um horizonte normativo, caracterizado, na

visão de Arendt, por um profundo apreço pela liberdade.

Há algo mais que se pode extrair de Arendt se nos

dispusermos a repensar a política atual, e que está

intimamente ligado ao que foi exposto acima, ou seja,

devemos repensá-la sem idéias preconcebidas acerca do

que é bom e certo, e devemos pensar sobre nossos

conceitos acerca da política quando sobre ela

refletirmos. Se tentarmos recorrer a Arendt para a

obtenção de ferramentas conceituais específicas para

que se repense a política, devemos submeter também

essas ferramentas à reflexão crítica.

IHU On-Line - A própria Arendt sabia-se

inclassificável nas escolas de pensamento tradicionais.

Como ela absorve e supera as lições de seus mestres

filosóficos (Husserl, Jaspers, Heidegger e Bultmann)?

Bat-Ami Bar On - Creio que Dana Villa fez um ótimo

trabalho ao tentar mostrar como Arendt modificou a

fenomenologia (especialmente a versão de Heidegger),

ao mesmo tempo em que a organizou, na tentativa de

compreender a política e os fenômenos políticos.

Contudo, não é apenas o fato de Arendt ter ou não

seguido seus mestres que determina a dificuldade em

enquadrá-la nas escolas de pensamento tradicionais. As

demais escolas de pensamento onde não pôde ser

enquadrada eram políticas. Arendt não era liberal nem

conservadora, e muito menos socialista. Tampouco era

republicana, embora tivesse sido classificada como tal.

Atualmente, alguns a consideram uma teórica agônica da

democracia, uma classificação inexistente anteriormente

e que parece mais adequada, contanto que se admita a

29SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

combinação ímpar das diversas influências sofridas por

Arendt.

IHU On-Line - Em relação ao perdão, o entendimento

de Arendt de que se perdoa o agente, e não o ato,

pode dar espaço para se pensar em uma maior

tolerância entre os seres humanos?

Bat-Ami Bar On - Para mim, as idéias de Arendt sobre

o perdão são bastante perturbadoras. Além disso, o

perdão é essencial na complexa concepção de Arendt

sobre política, pois é o perdão necessário para que os

atores sejam libertados de seus atos anteriores, contanto

que acarretem em alguma infração ou possuam

conseqüências negativas. Arendt também salienta que

não se pode perdoar todos os atores, pois certos atos são

imperdoáveis. A classe de atos imperdoáveis inclui

genocídio, tortura, assassinato de cunho político. A

classe de atos perdoáveis que ela sugere parece trivial –

têm de ser do tipo de pecado considerado por Jesus

como ato perdoável. Mas talvez não o seja e Arendt, que

já havia identificado a classe de atos imperdoáveis, na

realidade nos convoca a considerar a maioria dos atos

mais semelhantes aos pecados do que normalmente

fazemos. Se for esse o caso, então eu creio que ela

esteja nos convidando a cultivar um certo nível de

tolerância do qual atualmente não dispomos. Arendt,

entretanto, teve um desafio maior. Ela não nos convidou

a meramente tolerar (e nesse sentido suportar algo que

sofremos), mas a incluir, especialmente na esfera da

política, a esfera que ela julgava ser a mais importante.

Tolerância e inclusão são muito diferentes um do outro,

e a tolerância não é uma condição para a inclusão. A

inclusão pressupõe tratar os outros como nossos

semelhantes ao mesmo tempo em que reconhecemos as

diferenças. Na minha opinião, Arendt acreditava que se

pudermos fazer isso, poderemos perdoar no sentido que

interessa à política.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto

não-questionado?

Bat-Ami Bar On - Gostaria de externar minha

preocupação a respeito da possível iconização de Arendt.

Ela era uma grande pensadora e como tal deve ser

tratada. Entretanto, existe a tendência de se iconizar

grandes pensadores, algo que Arendt desaprovaria.

Grandes pensadores o são enquanto seu pensamento

venha de encontro ao nosso, enquanto fizerem parte de

nosso senso comunitário. Grandes pensadores podem

pertencer a diversos sensos comunitários ao longo do

tempo e do espaço.

30SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Um pensamento e uma presença provocativos ENTREVISTA COM MICHELLE-IRÈNE BRUDNY

Segundo a filósofa francesa Michelle-Irène Brudny, tanto o pensamento quanto a

presença de Hannah Arendt são provocativos: “Hannah Arendt é por vezes

deliberadamente provocante, obrigando os outros à reflexão, sobre perspectivas

inesperadas”. E continua: “Segundo Irving Howe, para citar apenas um exemplo,

quando Hannah Arendt estava em um recinto, sua ascendência sentia-se por todas

as pessoas presentes”. As afirmações, feitas por e-mail respondendo ao convite de

entrevista da IHU On-Line, podem ser conferida na íntegra abaixo, com outras

constatações que fez sobre a importância do pensamento de Hannah Arendt. A

discussão faz parte do debate lançado pela IHU On-Line 206, de 27-11-2006, cuja

matéria de capa foi dedicada à filósofa alemã. Para conferir a edição, basta

acessar o site do IHU, www.unisinos.br/ihu.

Brudny é autora de Karl Popper: un philosophe heureux. Paris: Grasset, 2002 e

Hannah Arendt ou la seduction. Essai de biographie intellectuelle. Paris: Grasset,

2006. Leciona na Universidade de Rouen, França, e é uma das divulgadoras do

pensamento arendtiano na França.

IHU On-Line - Por que razão poucas vezes outro

pensador teria desencadeado tantas paixões e sedução

quanto Hannah Arendt? Seu pensamento é uma

provocação?

Michelle-Irène Brudny - Eu não sei se poucos entre

outros pensadores suscitaram tanta paixão, mas Hannah

Arendt é uma pensadora freqüentemente polêmica,

tanto mais por ter guardado um certo distanciamento em

relação à filosofia tradicional, como ela disse em várias

ocasiões e notadamente na entrevista com Gunter Gaus

em 1964, na televisão alemã. Hannah Arendt é por vezes

deliberadamente provocante, obrigando os outros à

reflexão sobre perspectivas inesperadas. O exemplo mais

conhecido de expressão de paixões no plural seria a

controvérsia em torno de Eichmann em Jerusalém, tanto

da parte de seus críticos quanto dela própria. Um certo

número de questões éticas está igualmente em jogo de

per si, e Léon Poliakov, o autor do célebre Breviário do

Ódio, desde 1951, perguntou-se mais tarde se era

possível debater de maneira inteiramente racional tais

questões. Muitos escritores e críticos literários

descreveram essa sedução, à qual gerações sucessivas

parecem receptivas. Segundo Irving Howe, para citar

apenas um exemplo, quando Hannah Arendt estava em

um recinto, sua ascendência sentia-se por todas as

pessoas presentes.

IHU On-Line - Em que sentido não é possível dissociar

a obra dessa filósofa de sua biografia? Ainda tomando

em consideração a trajetória de vida de Arendt, como

a influência de seus mestres filosóficos se revela e é

superada na filosofia que desenvolveu?

O que a pesquisa que a senhora desenvolveu nos

documentos inéditos de Arendt revelou sobre esse

31SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

aspecto? E por fim, há mudanças na filosofia de Arendt

em função de seu período americano? Quais seriam

essas mudanças?

Michelle-Irène Brudny - A vida de Arendt é como uma

“encruzilhada” muito exposta. Sua juventude na

Alemanha da República de Weimar, posteriormente em

Paris, seu refúgio provisório na Paris dos exilados do

nazismo, finalmente Nova Iorque e os Estados Unidos

durante a guerra e na efervescência do pós-guerra. Sua

primeira obra, após sua tese sobre o Conceito do amor

em Santo Agostinho, é precisamente uma biografia,

aquela de Rahel Varnhagen que mantinha um célebre

salão em Berlim. Em seguida, aparece um longo

manuscrito intitulado Antisemitismus, cuja publicação

está brevemente prevista no tomo IV das obras

póstumas, das quais Jerome Kohn é o incansável editor

científico, com o título The Jewish Writings. Entre a

maior parte redigida antes de 1933 de Rahel e

Antisemitismus (1938-40), Hannah Arendt “milita” para

salvar crianças judias. Esta dimensão militante

perdurará, como salienta, de uma outra forma, Miguel

Abensour.

Arendt explica que ela não antecipou o genocídio dos

Judeus, cuja antecipação teria sido, inclusive, impossível

visto que faltaria poder concebê-lo, mas que desde os

anos de 1929-1930 todo seu mundo havia mudado, e ela

compreendera quem era Hitler e o que ele fazia.

Seu período americano, que começa com a militância e

o engajamento, também me ressurge na continuação do

exílio em Paris. Uma das pistas para novas reflexões

seria, em última instância, a distinção entre o político e

o social que constitui, inclusive, um dos elementos

essenciais de Reflections on Little Rock.

IHU On-Line - Qual é a maior contribuição dessa

filósofa para inspirar a luta contra os perigos que

rondam a democracia no século XXI? E sobre os

totalitarismos que ainda existem nas sociedades, como

a filosofia de Arendt pode auxiliar-nos a entendê-los e,

sobretudo, a propor novas soluções políticas?

Michelle-Irène Brudny - O fato que o terrorismo, dito

da Al-Qaeda, constitua o terceiro grande totalitarismo, é

um problema e não uma afirmação, eis uma das mais

importantes questões dos dias de hoje. A inspiração é

simplesmente permanecer alerta, pensar o

acontecimento, perceber o que é inédito e não remetê-lo

ao que já é conhecido, como ela explica em seu artigo

Compréhension et politique, de 1953, a propósito do

totalitarismo. Esta vigília ou vigilância da reflexão não é

tarefa fácil, visto que, como bem o sabemos, a história

não se repete.

32SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Livro da Semana

JOHNSON, STEVEN. 2003. EMERGÊNCIA – A VIDA INTEGRADA DE FORMIGAS, CÉREBROS, CIDADES E SOFTWARES. TRADUÇÃO: MARIA CARMELITA PÁDUA DIAS, RIO DE JANEIRO, JORGE ZAHAR EDITOR, 231 P.

Reproduzimos a seguir a resenha sobre o livro Emergência – a

vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares feita

pelo professor de Filosofia e coordenador do Curso de Filosofia

da Unisinos, Celso Candido. O título e subtítulos são nossos.

Emergência – a vida integrada de formigas, cérebros,

cidades e softwares

Sobre o autor:

Steven Johnson, graduado em Semiótica e em Literatura

Inglesa, é um jovem autor americano nascido no histórico ano

de 1968. É autor dos livros: Interface culture: How New

Technology Transforms the Way We Create and Communicate;

Mind Wide Open: Your Brain and the Neuroscience of Everyday

Life (apenas este ainda sem tradução no mercado brasileiro);

Everything Bad is Good for You, além de Emergence: The

Connected Lives of Ants, Brains, Cities and Software traduzido e

publicado no Brasil como Emergência: a Vida Integrada de

Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares.

Emergência

Emergência é um livro que surpreende não apenas

pela relevância de seus conteúdos e seu alto padrão

estético literário, mas também pela sua densidade

conceitual.

Tudo começa com o incrível Dictyostelium discoideum,

“organismo semelhante a uma ameba”. Pesquisadores na

área de matemática aplicada se empenharam em um

conjunto de estudos acerca do comportamento desse

estranho organismo. Essas pesquisas, segundo Johnson,

contribuiriam para “transformar a nossa compreensão

não apenas da evolução biológica, mas também de

mundos tão diversos como a ciência do cérebro, o design

de software e os estudos urbanos”. (p. 10) O discoideum

tem uma vida dupla e paradoxal. Ora ele é um, ora ele é

muitos. Tudo dependendo das condições ambientais

33SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

favoráveis ou desfavoráveis que se lhe apresentem.

“Quando o ambiente é mais hostil, o discoideum age

como um organismo único; quando o clima refresca e

existe uma oferta maior de alimento, ‘ele’ se transforma

em ‘eles’. O discoideum oscila entre ser uma criatura

única e uma multidão”. (p. 10)

Trata-se de um caso bastante curioso de

“comportamento de grupo coordenado”. Mas como

explicar este “misterioso comportamento”?

Naturalmente, estamos acostumados a pensar em top-

down, em líderes. Assim, a resposta predominante foi,

durante longo tempo, a de que células líderes liberariam

ondas de acrasina, a fim de fazerem as outras células se

agregarem.

Mas, segundo Steven Johnson, o encontro de Keller

com o trabalho de Turing abriu uma nova perspectiva.

Turing construíra “um modelo matemático em que

agentes simples seguindo regras simples eram capazes de

gerar estruturas surpreendentemente complexas”. (p.

12) O discoideum talvez representasse um tipo de

comportamento emergente, independentemente da

iniciativa de qualquer “célula líder”. A hipótese da

célula líder, entretanto, reinou até o momento em “que

uma série de experimentos comprovasse que as células

do Dictyostelium discoideum se organizavam de baixo

para cima”. (p. 13) Sem dúvida, é surpreendente

perceber como temos dificuldade de pensar “em termos

de fenômeno coletivo”. Trata-se aqui, na verdade, de

um comportamento tipo bottom-up.

A emergência é precisamente o “movimento das regras

de nível baixo para a sofisticação do nível mais alto” (p.

14). As formas de emergência apresentadas no livro são,

então, aquelas que têm a qualidade de se tornarem mais

inteligentes, mais adaptáveis e mutantes ao longo do

tempo. De acordo com Johnson, a atual fase da teoria e

da pesquisa sobre a emergência é a mais revolucionária

de todas, pois, passadas a primeira fase, a da curiosidade

para entender o fenômeno da auto-organização, e a

segunda, na qual a questão da auto-organização tornou-

se um objeto de estudo em si mesmo, atualmente nós

estamos deixando de interpretar o “fenômeno da

emergência” para começar a criá-lo. “Até o momento, os

filósofos da emergência lutaram para interpretar o

mundo, mas agora estão começando a modificá-lo”. (p.

16)

O que a emergência tem a nos ensinar sobre o modo

como surgem, organizam-se e evoluem as cidades, os

cérebros, as corporações, os formigueiros, os softwares?

Colônia de formigas

Apoiando-se nos trabalhos de pesquisa de Deborah

Gordon sobre sistemas complexos autocoordenados,

Johnson vai apresentar o modo específico com que as

colônias de formigas se auto-organizam, ou seja, o modo

como constituem seu comportamento emergente

coordenado. Aí, o primeiro mito a ser colocado em

questão é o da “formiga-rainha”. Na verdade, a formiga-

rainha não tem um papel de autoridade como se costuma

pensar. Ela não comanda as ações das operárias, ao

contrário, as “colônias estudadas por Gordon mostram

um dos mais impressionantes comportamentos

descentralizados da natureza: inteligência,

personalidade e aprendizado emergem de baixo para

cima, bottom-up” (p. 23). E sem líder, ou líderes, as

formigas, através de relações colaterais e de feedback

intenso constroem e organizam “por si mesmas” todo o

trabalho do formigueiro, dando forma a um complexo

sistema ordenado, com seus aposentos, suas conexões,

seu “cemitério” e seu “lixão”.

O comportamento emergente, diz Johnson, é uma

mistura de “ordem e anarquia”. Gordon queria entender

a “conexão entre micro e macroorganização” em um

sistema capaz de se autocoordenar sem que os indivíduos

34SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

tivessem “acesso à situação global”. Sem que nenhuma

das formigas seja a responsável pela “operação global”,

elas conseguem um alto grau de coordenação. São

“comportamentos emergentes” em que as interações são

colaterais e em que se presta atenção nos “seus vizinhos

mais próximos” ao invés de ficar “esperando por ordens

superiores”. As formigas agem localmente, mas a “ação

coletiva produz comportamento global” (p. 54). Assim,

entre as principais regras de um sistema bottom-up,

encontramos a incessante tarefa de prestar atenção nos

vizinhos.

A cidade como formigueiro

A cidade, como o formigueiro, é também um fenômeno

emergente. E tem, no seu interior, seus próprios sistemas

emergentes; os das calçadas, das vizinhanças, das

praças, dos shoppings, nos quais interagem de modo

informal e improvisadamente os cidadãos que nela

habitam. A ordem e a vitalidade das cidades se definem

também e em grande parte nesta forma social

emergente. É o mundo das interconexões locais

“conduzindo à ordem global; componentes

especializados, criando uma inteligência não-

especializada; comunidades de indivíduos solucionando

problemas sem que nenhum deles saiba disto” (p. 69). A

cidade é o conjunto das múltiplas interações locais que

se misturam e formam a totalidade da vida urbana,

apesar de ou ao lado com todos os planejamentos

centralizados de tipo top-down.

A cidade como um “sistema emergente” é um “padrão

no tempo”. “A cristalização de um fenômeno bottom-up

que se mantém no tempo” é uma das principais “leis da

emergência”. Outra não menos importante é que um

sistema emergente é capaz de aprender, quer dizer, ele

vai ficando mais inteligente com o tempo. A cidade,

portanto, torna-se, segundo Johnson, “mais esperta,

mais útil para seus habitantes. E aqui, outra vez, a coisa

mais extraordinária é que esse aprendizado emerge sem

que ninguém tenha conhecimento dele” (p. 79).

World Wide Web

A World Wide Web é, tipicamente, um fenômeno

emergente. Mas estará a Web realmente aprendendo,

ficando mais inteligente, assim como as cidades e os

formigueiros ficam? A Web é um típico sistema

emergente, no qual o processo de feedback, ou seja, o

das “conexões de duas vias” fomenta “a aprendizagem

de nível mais alto”. O feedback intenso entre as formigas

é o que torna possível o funcionamento inteligente do

sistema. É o feedback que permite que o comportamento

complexo ocupe o lugar do caos sem sentido. É ele que

vai determinar a evolução do sistema para um nível

superior de organização. A possibilidade de um círculo de

feedback ocorrer “está diretamente relacionada à

interconexão geral do sistema” (p. 99).

Na indústria do software, os modelos bottom-up, de

que os sistemas open source são o melhor exemplo de

criatividade coletiva emergente, tornaram-se uma

realidade somente depois de décadas de seu nascimento.

Sem dúvida, os sistemas emergentes não existem sem

regras. Mas assim como os jogos e os instrumentos

musicais, o conjunto de regras básicas relativamente

simples pode evoluir para formas novas, mais complexas

e imprevisíveis. Desse conjunto de regras abre-se um

universo infinito de possibilidades.

A Web é um sistema aberto a infinitas possibilidades.

Sem dúvida, ela também está se tornando mais

inteligente. Assim, pondera Johnson, não estariam os

cérebros individuais conectando-se uns aos outros

através da Web e formando “algo maior do que a soma

de suas partes – o que o famoso filósofo/padre Teilhard

de Chardin chamou de noosfera?” (p. 85).

35SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Vida cognitiva

De acordo com Johnson, nossa vida cognitiva é também

um fenômeno emergente. Os seres humanos são tipos

extraordinariamente comunicativos. Eles são “leitores de

mente inatos”, ou seja, os humanos são seres capazes de

“imaginar os estados mentais das pessoas”, pois sem esta

faculdade eles não poderiam estabelecer o elo

comunicativo. Do mesmo modo, nossa autoconsciência

não teria sentido se não nos colocássemos diante das

outras mentes.

A faculdade de ler as outras mentes e a

autoconsciência que lhe é correspondente “é claramente

uma propriedade emergente das redes neurais do

cérebro. (...) essas faculdades são os exemplos

primordiais da emergência em atividade. Você não seria

capaz de ler essas palavras ou especular sobre os

trabalhos internos de sua mente, não fosse pela

proteiforme força da emergência”. (p. 153).

É neste sentido que o futuro do software emergente

consistirá em reconhecer nossos hábitos e gostos. Ele

deverá ser capaz de antecipar “nossas necessidades” e

será capaz de se adaptar mesmo a “nossas mudanças de

humor”. Ele deverá ser sensível às singularidades,

idiossincrasias e potencialidades. “Interagir com um

software emergente já se parece mais com cultivar um

jardim do que dirigir um carro ou ler um livro” (p. 154).

“Emergência aplicada”

Por fim, a “emergência aplicada” está transformando

nossa relação objetiva e subjetiva com a mídia e nossas

tradicionais noções de mundo público e privado. Assim,

por exemplo, a tremenda onda da convergência está

transformando indubitavelmente a “paisagem da mídia”.

Não é difícil imaginar os efeitos deste grande poder

comunicativo emergente: a navegação livre sobre todos

os bens culturais de áudio, texto e vídeo, armazenados

em um imenso disco, contendo todos os discos rígidos

existentes, como anunciam, por exemplo, os sistemas de

computação compartilhada peer-to-peer.

Mas, poderiam os princípios da emergência ser

utilizados nas organizações e instituições? São as

corporações capazes de conviver com estruturas de tipo

bottom-up, sem os tradicionais comandos centrais? Não

há dúvidas de que os sistemas emergentes podem ser

extremamente inovadores e criativos, e têm

naturalmente mais capacidade para se adaptaram às

novas situações do que os padrões de organização mais

rigidamente hierárquicos. O novo papel da alta

administração seria precisamente o de motivar os grupos

e os indivíduos na organização para a geração das idéias.

Os processos, a evolução e visão do futuro devem

emergir de múltiplas correlações bottom-up. Para

Johnson, os administradores de alta escalam terão

evidentemente seu lugar, mesmo nas organizações de

poder mais distribuído, mas não terão mais o papel de

líderes. O que importa é como extrair o máximo da

inteligência coletiva existente na instituição.

Escalas

Seja na escala das cidades, das colônias de formigas,

da Web, das organizações, das telecomunicações ou das

mentes humanas “nossas vidas englobam os poderes da

emergência.” Sem dúvida, não é nada fácil pensar em

termos de sistemas emergentes sem mecanismos de

controle. O modelo mental tipo top-down é ainda

predominante. Porém, diz Johnson, quando se trata de

um sistema emergente é preciso desistir de tentar

controlar. É preciso “deixar o sistema governar a si

mesmo tanto quanto possível, deixá-lo aprender a partir

de passos básicos” (p. 174).

Qual será o futuro e o poder real dos processos e

sistemas bottom-up? Serão eles mais poderosos e

36SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

criativos que os sistemas top-down desencadeados pela

sociedade industrial? Será a Emergência o modo como os

grupos sociais, as instituições e os indivíduos entenderão

a si mesmos e autoconstituirão as formas de suas

sociabilidades, institucionalidades e subjetividades?

Terra habitável

A editoria Terra habitável reproduz informações das Notícias

Diárias do sítio do IHU sobre meio ambiente. As notícias podem

ser conferidas na íntegra nas datas correspondentes.

Mortandade de peixes no Rio dos Sinos. Justiça decreta

prisão de empresário Responsável pelo tratamento e destino final de

resíduos gerados por cerca de 3,5 mil indústrias, a

empresa Utresa, de Estância Velha, é apontada pelo

Ministério Público (MP) Estadual e pela Fundação

Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) como a

principal responsável pela mortandade de 86,2 toneladas

de peixes no Rio dos Sinos, no mês passado. A notícia é

dos jornais Zero Hora e Estado de S. Paulo. Confira nas

Notícias Diárias de 29-11-2006.

Índio é “entrave ao desenvolvimento? Reproduzimos um artigo do jornalista ambientalista,

Washington Novaes sobre os conflitos com a cultura

indígena. O artigo foi publicado no jornal O Estado de

S.Paulo e pode ser conferido nas Notícias Diárias de 1-

12-2006.

A agricultura industrial nega aos animais uma vida

minimamente decente Reproduzimos um artigo do filósofo e professor de

bioética Peter Singer. Singer defende que a questão

moral em torno do tratamento de animais deveria ser

para os filósofos, uma questão ética. Peter Singer acaba

de publicar em parceria com Jim Mason, o livro The Way

We Eat - Why Our Food Choices Matter (Como Nos

Alimentamos - Por Que Nossas Escolhas Alimentares

Importam). "Estresse na fazenda” é o artigo publicado

originalmente no The Guardian e reproduzido pelo jornal

Folha de S.Paulo, 03-12-06. Confira nas Notícias Diárias

em 04-12-2006.

37SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Como nos alimentamos – por que nossas escolhas

alimentares importam Reproduzimos uma entrevista com filósofo e professor

de bioética Peter Singer. Peter Singer é autor – em

parceria com Jim Mason - do livro The Way We Eat -

Why Our Food Choices Matter (Como Nos Alimentamos -

Por Que Nossas Escolhas Alimentares Importam – sem

tradução para o português). O livro aborda o tema da

ética alimentar e defende que sejam aplicados cinco

princípios éticos para uma escolha consciente na hora

das refeições: transparência, equilíbrio, humanidade,

responsabilidade social e necessidade. Ele concedeu uma

entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, 03-12-06. Confira

nas Notícias Diárias em 04-12-2006. Sobre Peter Singer

conferir a edição da IHU On-Line 191.

Destaques On-Line DESTAQUES DAS NOTÍCIAS DIÁRIAS DO SÍTIO DO IHU

ESSA EDITORIA VEICULA NOTÍCIAS E ENTREVISTAS QUE FORAM DESTAQUES NAS NOTÍCIAS DIÁRIAS DO SÍTIO DO IHU. APRESENTAMOS UM RESUMO DOS DESTAQUES QUE PODEM SER CONFERIDOS, NA ÍNTEGRA, NA DATA CORRESPONDENTE.

Entrevistas exclusivas feitas pela IHU On-line disponíveis nas Notícias Diárias do sítio do IHU

(www.unisinos.br/ihu):

Entrevista com Antônio Carlos dos Santos

Título: "Não nos tornamos republicanos"

Entender a corrupção sob o legado do filósofo

Montesquieu, discutir a possibilidade de uma filosofia

autenticamente brasileira e também avaliar os rumos da

democracia. Esses são alguns dos temas sobre os quais o

filósofo Antônio Carlos dos Santos falou na entrevista

concedida por e-mail à IHU On-Line. Confira a entrevista

na íntegra nas Notícias Diárias da página do IHU no dia

28-11-2006.

Entrevista com André Marenco

Título: A delicada situação financeira e política do

governo Yeda Crusius

André Marenco é doutor em Ciências Políticas e

coordenador do Programa de Pós Graduação da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Entrevistado

pela IHU On-Line, por telefone, o professor André

Marenco falou de suas perspectivas em relação ao novo

Governo do Estado do Rio Grande do Sul, avaliou a

disputa eleitoral e fez uma análise da nova bancada dos

deputados na Assembléia Gaúcha. Confira a entrevista na

íntegra nas Notícias Diárias da página do IHU no dia 29-

11-2006.

Entrevista com Alejandro Buenrostro

Título: “O povo está cansado”

Alejandro Buenrostro y Arellano, mexicano, que viveu

e atuou por 10 anos nas comunidades de Chiapas na

38SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

década de 1970, e atualmente dirige o Xojobil - Centro

de Documentação e Informação, dedicado à informação

sobre a luta social dos povos mexicanos -

http://xojobil.sites.uol.com.br/ em entrevista à IHU On-

Line, em parceria com o Cepat, comentou as lutas do

movimento social mexicano. Confira a entrevista na

íntegra nas Notícias Diárias da página do IHU no dia 30-

11-2006.

Entrevista com Michelle-Irène Brudny

Título: Um pensamento e uma presença provocativos

Segundo a filósofa francesa Michelle-Irène Brudny,

tanto o pensamento quanto a presença de Hannah

Arendt são provocativos: “Hannah Arendt é por vezes

deliberadamente provocante, visando obrigar os outros à

reflexão, a partir de perspectivas inesperadas”. Confira a

entrevista concedida a IHU On-Line nas Notícias Diárias

da página do IHU no dia 1-12-2006.

Entrevista com Alexandre Schossler

Título: O sujeito é um predicado do indivíduo e do

grupo

“As diferenças individuais é o que garante o movimento

do grupo e a sua permanente transformação”, teorizou o

mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, Alexandre Schossler em entrevista,

por e-mail, à IHU On-Line. Confira nas Notícias Diárias

da página do IHU no dia 1-12-2006.

Entrevista com Pierre Sanchis

Título: “O campo religioso será ainda hoje o campo

das religiões?”

“O indivíduo sente-se mais autônomo no comando do

seu universo religioso pessoal na medida em que as

ofertas institucionais que o assediam são mais variadas.”

O Brasil como um país de pluralismo religioso é o tema

tratado por Pierre Sanchis, pesquisador do Instituto

Superior dos Estudos da Religião – ISER - em entrevista a

IHU On-Line. Confira nas Notícias Diárias da página do

IHU no dia 1-12-2006.

Entrevistas e artigos que publicados nas Notícias Diárias do sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu):

Artigo de Anthony Giddens

Título: O declínio do poder EUA

“Como resultado, em parte, das políticas de Bush, mas

também por causa de outras forças que agem na

sociedade mundial, a ordem internacional está em crise".

A opinião é de Anthony Giddens, sociólogo inglês, em

artigo publicado no jornal italiano La Repubblica, 26-11-

2006. Confira a reprodução do artigo nas Notícias Diárias

da página do IHU no dia 28-11-2006.

Entrevista com o Grande Mufti da Turquia

Título: “Explicarei ao Papa que é um erro continuar

criticando o Corão

Suave nos tons mas duro na substância. O Grande Mufti

da Turquia, Ali Bardakoglu concedeu uma entrevista

para o jornal italiano La Repubblica, 28-11-2006. Confira

a reprodução da entrevista nas Notícias Diárias da página

do IHU no dia 28-11-2006.

Entrevista com Pedro Carrano

Título: Jornalista brasileiro em Oaxaca

Chegou à Cidade do México, o jornalista Pedro Carrano

para acompanhar os acontecimentos em Oaxaca, sul do

México. Único correspondente de um jornal brasileiro em

Oaxaca, Pedro Carrano - que trabalha para o Brasil de

39SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Fato - concedeu uma entrevista exclusiva à IHU On-

Line antes de sua viagem. O CEPAT colaborou na

realização da entrevista. Confira a reprodução da

entrevista nas Notícias Diárias da página do IHU no dia

28-11-2006.

Artigo de Faustino Teixeira

Título: Uma chance para a Paz

Publicamos um artigo do teólogo e professor do PPCIR-

UFJF, Faustino Teixeira sobre a visita de Bento XVI na

Turquia. Confira nas Notícias Diárias da página do IHU no

dia 29-11-2006.

Artigo de Odon Vallet

Título: A Turquia, pátria do Credo

“Em 8.000 anos de história e de lendas, da Anábase de

Xenofonte ao monte Ararat de Noé, há muitas Turquias”,

segundo Odon Vallet em artigo publicado no dia 28- 1-

2006 no jornal Le Figaro. Confira a reprodução do artigo

nas Notícias Diárias da página do IHU no dia 29-11-2006.

Artigo de Enrique Krauze

Título: O que está em jogo no México

"O México é um país ao mesmo tempo pré-moderno,

moderno, antimoderno e pós-moderno. Esta situação

pode ter certas vantagens, como bem sabem os que

apreciam o mosaico cultural do México, mas às vezes

pode ser não apenas difícil, mas explosiva", escreve

Enrique Krauze, sociólogo mexicano em artigo publicado

no Washington Post, El País, 28-11-2006 e 29-11-2006,

no jornal Estado de S. Paulo. Confira a reprodução nas

Notícias Diárias da página do IHU no dia 29-11-2006.

Artigo de Marcio Pochmann

Título: Adeus à classe média

"Não há espaço para a reprodução da classe média, que

atualmente representa somente dois a cada dez

brasileiros", escreve Marcio Pochmann, professor do

Instituto de Economia e pesquisador do Centro de

Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da

Universidade de Campinas, em artigo publicado em 30-

11-2006, no jornal Valor. Segundo ele, "de todos os

empregos gerados desde 2000, 90% são até dois salários

mínimo mensais, ao mesmo tempo em que o Brasil lidera

uma inédita redução do custo do trabalho em dólar no

mundo". Confira a reprodução do artigo nas Notícias

Diárias da página do IHU no dia 30-11-2006.

Entrevista com Nicholas Negroponte

Título: “A maneira mais econômica de melhorar a

educação”.

Reproduzimos uma entrevista com Nicholas

Negroponte, fundador do Laboratório de Mídia do

Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) concedida

ao Página/12. Confira a reprodução da entrevista nas

Notícias Diárias da página do IHU no dia 30-11-2006.

Artigo de Paulo Kliass

Título: A outra face da redução recente da dívida

externa

Reproduzimos um artigo do doutor em Economia e

membro da carreira federal “Especialista em Políticas

Públicas e Gestão Governamental”, Paulo Kliass sobre a

dívida externa. Confira nas Notícias Diárias da página do

IHU no dia 1-12-2006.

40SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Frases da semana

Necessidade de Deus?

“Toda busca que encontra Deus no fim do caminho

nasce de um orgulho mal-informado: o homem não aceita

o absurdo de sua condição, a falta de sentido para a vida

-a própria e a geral. Então, a presença de Deus se

encaixa no problema, peça de armar que completa a

paisagem, feita à imagem e semelhança do próprio

problema. O homem criou Deus para se justificar, para

continuar sendo diferente das beterrabas e dos siris. Daí

a necessidade de Deus e de sua criatura, o homem” -

Carlos Heitor Cony, escritor – Folha de S. Paulo, 28-11-

2006.

Voto de pobreza

“Ministros do Supremo já fizeram voto de pobreza” -

Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal

Federal (STF) – Estado de S. Paulo, 29-11-2006.

'Eu poderia estar aposentado aos 49 anos, ganhando a

mesma coisa que ganho. Se tivesse saído, os cofres

públicos teriam de pagar dois salários, o meu e o do meu

sucessor” - Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo

Tribunal Federal (STF) – Estado de S. Paulo, 29-11-2006.

Esquerda briga

“Tem que ter a coragem de fazer uma auto-crítica

profunda: por que brigamos tanto uns com os outros? A

queda do muro (de Berlim) nos deixou tontos. No caso da

Argentina estamos deixando bandeiras que têm de ser

nossas, democráticas, para a direita”- Norma Morandini,

jornalista e deputada argentina – Agência Repórter

Social, 27-11-2006.

Crescimento econômico

“O crescimento deve continuar na faixa de 3%. Mas se

crescermos 3%, ou 3,5%, e não 5%, não quer dizer que a

situação não tenha melhorado. Há muito tempo que o

Brasil não cresce a 3% por vários anos, com a inflação

controlada. Para mudar de patamar, porém, é preciso de

uma série de reformas que não estamos vendo” - Gino

Olivares, economista-chefe do Opportunity – O Estado

de S. Paulo, 30-11-2006.

A dívida pública com juro real de 10%, maior do que o

crescimento do produto (3%), não é sustentável. A cada

ano que se passa nessa situação, transferimos 7% do

produto de quem trabalha para quem recebe juros sem

trabalhar, os capitalistas aposentados. Em 10 anos,

precisaríamos usar todo o PIB para pagar juros. Já

passaram quatro anos" - João Sayad, economista – Folha

de S. Paulo, 4-12-2006.

Sociedade socialista, cristã e bolivariana

“Agora começa a construção de uma sociedade nova,

socialista, cristã e bolivariana” –Hugo Chávez, ao ser

reeleito presidente da Venezuela – La Repubblica, 4-12-

2006.

41SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

A conjuntura da semana nas Notícias Diárias do IHU UMA RELEITURA DA SEMANA FEITA PELO CENTRO DE PESQUISA E APOIO AOS TRABALHADORES – CEPAT

Reforma da Previdência

A Reforma da Previdência é um dos temas permanentes

na agenda política do país. Porém, sempre que se inicia

um novo mandato presidencial, retorna com força. Os

que a defendem, opinam que o governo deve fazê-la logo

no início do mandato quando ainda tem “gorduras” para

queimar, ou seja, apoio popular, uma vez que qualquer

reforma na Previdência aponta para perdas e jamais para

ganhos.

Portanto, não causa surpresa que o tema da Reforma

da Previdência ocupe importante espaço na mídia no

início do segundo mandato do governo Lula. Atento a

esse debate, as Notícias Diárias vêm repercutindo o que

está sendo proposto e discutido. “Lula não quer mudar

regras da Previdência” é a notícia que se destaca na

semana. A declaração pública do presidente contrário a

qualquer mexida na Previdência nesse momento é

significativa, uma vez que não são poucos os lobbies que

defendem a Reforma. Um deles é o revelado na notícia

“Superlobby propõe nova Previdência”. Por detrás do

lobby estão as grandes Confederações patronais – da

Indústria (CNI), do Comércio (CNC) e da Agricultura

(CNA). Reúne ainda a Bovespa, a Febraban (bancos), a

Andima, a Fiesp e a Fenaseg (seguros). O outro lobby se

esconde por detrás dos interesses do mercado financeiro,

escudados dentro do governo no Ministério do

Planejamento e sobretudo no Banco Central, como se

pode ler na notícia “Reforma da Previdência. Grupo

defende choque de gestão”.

Um dos maiores defensores da Reforma é o secretário-

executivo do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, ex

todo poderoso de Palocci, que tem o apoio integral de

Meirelles e Paulo Bernardo, ministro do Planejamento.

Uma das pontas de lança dos que defendem a Reforma

da Previdência é a proposta intitulada “choque de

gestão”, sugerida pelo professor Vicente Falconi Campos.

Para maior esclarecimento basta ler a notícia publicada

no IHU – “Quem é Vicente Falconi, guru dos

empresários”. O “padrinho” de Falconi é ninguém menos

que Jorge Gerdau, sondado para o ministério da Indústria

e Comércio. Conferir a notícia “Mantega diz que

estudará proposta de Gerdau”.

A verdade é que “Enquanto se discute a crise da

Previdência Pública, a privada vai muito bem,

obrigado”. Os números são impressionantes: Em uma

década, poucos setores cresceram tanto no Brasil quanto

a previdência complementar. O segmento saiu de R$ 3

bilhões em reservas, em 1996, para quase R$ 100 bilhões

no fim deste ano, revela a Associação Nacional da

Previdência Privada (Anapp).

É evidente que por detrás da Reforma da Previdência

estão os interesses do capital. Teresa Ter-Minassian,

diretora do Departamento Fiscal do FMI, afirmou que

“para que o país se livre das atuais ‘taxas de crescimento

anêmicas’, precisa colocar em pauta reformas

estruturais”. Para o FMI, as reformas estruturais são a

trabalhista e previdenciária, como declarou a diretora do

42SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Fundo. Oportuno e esclarecedor para o debate – leia-se

quem defende o quê –, é a leitura da notícia

“Seguridade social não tem déficit e é auto-

sustentável, afirma pesquisadora”.

Os que desejam a Reforma da Previdência se escondem

atrás do debate em torno do “equilíbrio autuarial”, como

se não fosse um debate político. Mais do que uma conta

contábil, a que muitos querem reduzir o debate em torno

da Reforma da Previdência, trata-se de um debate

ideológico. A Previdência se insere no sistema de

cobertura aos trabalhadores brasileiros. É uma peça

fundamental do Estado de bem-estar. O que o mercado

evita dizer em público é que quanto menos Estado

houver mais espaço tem ele para agir em sua cobiça

desmedida.

Dívida Externa

Outro tema co-relacionado ao da Previdência, mas que,

ao contrário do primeiro, anda sumido do debate

nacional, é o que diz respeito à dívida externa. Quase

sempre pautado pelos movimentos sociais e motivo até

de um plebiscito popular (2000), o tema se afastou da

agenda de luta das organizações populares. Uma

explicação para o sumiço se deve ao fato da idéia

propagada pelo governo Lula de que o mesmo enxotou o

FMI e pagou a dívida. Uma baita confusão, misturada ao

oportunismo político. A dívida externa, segundo o

excelente e imperdível texto de Paulo Kliass – “A outra

face da redução recente da dívida externa. Um artigo

de Paulo Kliass” – apenas assumiu uma nova

“roupagem”.

A visita do Papa à Turquia

A visita de Bento XVI à Turquia ocupou amplo espaço

nas Notícias Diárias da semana. Para quem acompanha o

diálogo entre a “modernidade” e a “religiosidade” trata-

se de um acontecimento importante. Os preparativos

para a visita de Bento XVI à Turquia foram cercados de

grande expectativa e certo clima de tensão. Havia

rumores de que a visita pudesse ser cancelada, após

forte reação do mundo islâmico a um discurso seu

pronunciado em Regensburg, quando de sua visita à

Alemanha, e interpretado como antiislã. Nada removeu

Bento XVI do seu propósito. Na terça-feira, o Papa iniciou

em Ancara, capital da Turquia, sua visita de quatro dias

a este país. A Turquia se encontra num processo interno

de mudanças com vistas a se adaptar às exigências feitas

para efetivar sua entrada na União Européia. Neste

contexto, o alinhamento de forças entre secularistas e

islâmicos abre espaço para uma nova divisão, agora em

torno de islâmicos e liberais, por um lado, e nacionalistas

radicais, por outro, como mostra a matéria “Islâmicos e

liberais se unem contra nacionalistas radicais”, de 26-

11. Trata-se do país mais muçulmano que mais passos

deu no sentido da secularização.

A este clima interno de efervescência, a visita do Papa

vem acrescentar ao menos dois outros ingredientes, que

aumentam a temperatura dos ânimos dos mais radicais,

43SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

principalmente: primeiro, as declarações de Bento XVI na

Universidade de Regensburg, fartamente noticiadas nas

Notícias Diárias. Remetemos os leitores/as a apenas dois

textos que analisam este acontecimento: “Islã: um passo

em falso de Bento XVI? Um artigo de Henri Tincq”, de

18-09, e “O discurso de Regensburg. Uma análise do

teólogo Juan José Tamayo”, de 25-09, dentre diversos

outros; segundo, declarações de quando ainda era

cardeal Ratzinger, época em que se declarou ser

contrário à entrada da Turquia na União Européia. O

Papa procurou se justificar quanto à primeira questão,

alegando ter sido mal compreendido. Durante os

primeiros discursos da sua visita procurou desfazer sua

“pecha” de “anti-Turquia”, como alguns o chamavam.

Várias das Notícias Diárias da semana em análise aqui

destacam as dificuldades encontradas pelo Papa naquele

país, mas também os esforços realizados para que o

diálogo e a paz entre os povos e as religiões se

estabeleçam realmente. Bento XVI, por sua vez, parece

ter abandonado um discurso mais “belicoso” e assumido

um discurso com vistas a lançar pontes e abrir caminhos

para o diálogo; deixar as diferenças em segundo plano e

destacar os projetos comuns, ainda que os matizes –

vários, aliás! – do Papa estejam presentes em seus

discursos.

Para o especialista em islamologia, o jesuíta egípcio

Samir Khalil Samir, a mensagem do Papa na Turquia é

tripla: “o projeto de uma sociedade laica, respeitosa das

liberdades e da crença; o engajamento pela paz, baseada

na justiça e na legalidade internacional; a solidariedade

dos crentes para testemunhar o transcendente num

mundo secularizado”. Esta afirmação está no seu artigo

“Bento XVI na Turquia e o elogio da ‘laicidade

respeitosa’”, traduzido e reproduzido em 01-12.

O mundo digital

Outro tema aglutinador desta semana diz respeito ao

mundo digital. O artigo “A era digital e sua nova

estética”, de 30-11, traz questões sumamente

provocativas. Trata-se de uma resenha do novo livro do

russo Lev Manovich em que analisa a nova linguagem dos

meios de comunicação. Para ele, os novos meios de

comunicação são “um ponto de intersecção entre dois

desenvolvimentos tecnológicos: o informático e o

midiático.” A Internet, os blogs, as imagens digitais, os

sons, os textos, seu armazenamento e processamento se

tornaram possíveis graças a esta junção. E uma nova

revolução em termos de comunicação se fez. Ou com

outras palavras, “quando toda a produção midiática

passou a ser traduzida em dados numéricos abriram-se as

portas de uma nova era”, a era digital. O autor da

resenha ainda chama a atenção para a correspondência

que Manovich estabelece entre a lógica do digital e a

lógica da sociedade contemporânea: “os novos meios de

comunicação estão em sintonia com o culto do

individualismo, a cultura “à la carte” (a liberdade

entendida como seleção a partir de um número dado de

opções) e o império do tátil no mundo pós-industrial”,

conclui. Mas, Manovich aponta para a necessidade de

uma Infoestética, isto é, “uma análise teórica da estética

do acesso à informação, afastada dos critérios narrativos

tradicionais, que permita pensar, por exemplo, poéticas

da base de dados ou da navegação”.

44SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Pelo lado da produção de computadores a preços

baixos, podem ser lidas as entrevistas com Nicholas

Negroponte, publicadas no dia 30-11, que vem

convencendo governos e outras organizações para o seu

projeto. Otimista de carteirinha, ele aposta nas

potencialidades de computadores nas mãos de crianças

em termos de melhoria na educação. Ou seja, dessa

maneira, as crianças estudariam mais, pois poderiam

estudar em casa. Ao mesmo tempo, poderiam ajudar os

pais e romper barreiras geracionais.

Pelo lado do uso dessa ferramenta de comunicação,

pode-se ler a discussão feita por especialistas quanto à

validade ou não de se admitir haver “dependentes da

Internet”. A Internet pode se transformar num vício,

numa doença? O texto “A geração dos dependentes da

internet”, de 30-11, remete na verdade à problemática

não nova: a relação que seres humanos estabelecem com

estas ou outras máquinas. Então, surgem outras

perguntas: por que certas pessoas se “viciam” na

Internet? Por que isso acontece? O problema está na

Internet? Ou, ao contrário, quando isso acontece, é por

que as relações de proximidade física, emocional, de

carinho, de acolhimento familiar ou grupal já foram

fortemente abaladas? Com outras palavras: onde está o

problema: nas máquinas, produtos humanos, ou nas

relações que estes mantêm entre si, isto é, o estilo que

vida que levam?

De carona, essa discussão pode levar às reflexões

realizadas pelo Alexandre Schlosser sobre o sujeito, a

subjetividade, o indivíduo e o grupo. Em “O sujeito é um

predicado do indivíduo e do grupo. Entrevista com

Alexandre Schossler”, entrevista publicada em 1-12, o

psicólogo afirma que as diferenças individuais garantem

o movimento do grupo e a sua permanente

transformação. O alcance dessa reflexão está em

compreender melhor o individualismo em nossa

sociedade e em ressaltar a força dos indivíduos nas

transformações. Ao contrário, talvez, do que se

imaginava que em tempos de globalização, quando se

depositava todas as forças de transformação nas

estruturas, sobretudo, econômicas, há aqui sinais de que

os indivíduos não são tão impotentes diante da realidade,

para bem ou para mal. A tese de fundo consistir em

admitir que há influências mútuas e não apenas

unilaterais. O jogo de forças não é unilateral. Os sujeitos

têm poder e não são tão impotentes como pretendem

algumas linhas de pensamento. Que perspectivas reais de

transformação isso abre? Esta leitura permite

compreender, ao nosso ver, os acontecimentos do México

e em outros países da América Latina, especialmente.

América Latina

A eleição de Rafael Correa no Equador, os conflitos no

México, a eleição na Venezuela e a tensão crescente

entre o Uruguai e a Argentina em torno da construção

das fábricas de celulose, foram acontecimentos

noticiados pelas Notícias Diárias na semana. O sítio do

IHU vem se destacando pelo acompanhamento da

conjuntura latino-americana. Em outro momento já

comentamos que a cobertura da realidade latino-

americana pelo IHU é uma das melhores do país, melhor,

porque diversificada e ágil na faculdade de perceber

aquilo que é mais relevante.

Nesta perspectiva destaque-se a cobertura sobre os

acontecimentos de Oaxaca e o conflito entre Calderón

(PAN) e Obrador (PRD). Uma série de entrevistas são

45SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

extremamente felizes e oportunas para se compreender

o “barril de pólvora” que se tornou o México.

Destacamos a entrevista com o Subcomandante Marcos:

“Para o EZLN não serve nem o presidente oficial, nem

o legítimo” Entrevista com o subcomandante Marcos e

as entrevistas com Emilio Gennari:

“As diferenças e semelhanças entre o movimento

zapatista e Oaxaca. Entrevista especial com Emilio

Gennari” e Alejandro Buenrostro: “O povo está

cansado”. Entrevista especial com Alejandro

Buenrostro sobre as lutas populares no México

Particularmente naquilo que é específico ao

movimento social, dois artigos são extremamente

relevantes. O primeiro deles é de Adolfo Gilly –

“Reflexões para uma esquerda não subordinada. Artigo

de Adolfo Gilly, professor na UNAM” – que propõe uma

leitura da conjuntura mexicana a partir dos pobres. É um

alerta para a esquerda e para a burguesia do país que

está subestimando a capacidade organizativa do povo. O

outro vale pela sua dramaticidade e pelo o que texto

explicita, tornando desnecessários comentários: “O

cerco à comuna de Oaxaca se fecha. Um relato

comovente”.

A cobertura do sítio sobre as eleições no Equador

também é merecedora de destaque. Como já vinha

fazendo na semana passada, o sítio não deixou

despercebida a importância da disputa no país. Ali se

jogou geopoliticamente uma contenda entre os EUA,

apoiando Noboa e a Venezuela apoiando Correa. No dia

seguinte à sua vitória já era possível se conhecer o perfil

do novo presidente equatoriano nas Notícias Diárias:

“Um perfil de Rafael Correa, novo presidente

equatoriano”. A vitória do jovem Correa trará ainda

maiores problemas para os EUA na região, uma vez que o

mesmo já se posicionou claramente contra o Tratado de

Livre Comércio – TLC e exige uma revisão da

permanência da base militar americana em solo

equatoriano.

Outro fato significativo na conjuntura latino-americana

é o que trata do contencioso entre a Argentina e o

Uruguai por causa da construção de uma fábrica de

celulose pela empresa finlandesa Botnia na cidade

uruguaia de Fray Bentos, na divisa entre os dois países. A

disputa chegou a uma tal tensão que ameaça implodir o

frágil Mercosul. Nenhum dos lados cede, o que levou o

jornalista Washington Uranga a escrever um belíssimo

artigo: “Uruguai e Argentina. Atrever-se, a função da

política. Artigo de Washington Uranga”.

Acerca dos acontecimentos latino-americanos há uma

ausência nas Notícias Diárias da semana aos fatos

relacionados à Bolívia. Durante a semana que passou uma

duríssima disputa tomou conta do país, que extrapolou

do parlamento para as ruas. A disputa envolvendo o MAS,

de Evo Morales, contra as oligarquias rurais associadas

aos empresários bolivianos. Um dos temas chaves versou

sobre a proposta de lei de Reforma Agrária sugerida pelo

governo. A polêmica continua.

46SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

O surpreendente Mundo do Trabalho

Para concluir, destacamos duas notícias sobre o mundo

do trabalho. A primeira delas, apesar de aparentemente

pouco importante, chamou a atenção nas Notícias

Diárias publicada durante a semana. A notícia de que a

“TAM volta atrás na terceirização. "Desterceirização"

ganha corpo, segundo consultor”. Trata-se realmente

de um acontecimento surpreendente. A “terceirização”

tornou-se um dogma nos manuais de reestruturação

produtiva. Uma medida adotada por dez entre dez

empresas que disputam espaço no mercado. Como uma

das maiores empresas da aviação nacional anuncia algo

aparentemente na contramão de tudo o que sempre se

ensinou? Sobre isso vale a pena ler o comentário de

Inácio Neutzling publicado no blog do sítio no dia 28-11-

06: “Terceirização ou Desterceirização?”. A nota suscitou

um interessante debate nos comentários do blog.

A segunda notícia é a que comenta os bastidores da

briga entre um dos maiores grupos siderúrgicos mundiais,

o grupo nacional Gerdau com o sindicalismo americano. A

briga sobrou também para a Vale do Rio Doce. A notícia

“Grupo Gerdau. Osso duro de roer” revela que as

siderúrgicas brasileiras toparam de frente com os

‘Metalúrgicos Unidos’ (USW, na sigla em inglês), um

sindicato aguerrido que defende os interesses de 850 mil

trabalhadores nos EUA e no Canadá e cuja influência

atinge diversos setores da economia. Os detalhes da

disputa são relatados na notícia “USW e o grupo

Gerdau”. Sobrou até para o presidente Lula, como se

pode observar na reportagem “Admirador de Lula,

dirigente pediu ao presidente intermediação com

Gerdau”, publicada nas Notícias Diárias. Em tempos de

globalização e erosão do mundo do trabalho, trata-se de

uma notícia no mínimo curiosa: descobrir que os

trabalhadores ainda conseguem peitar grandes grupos

empresariais.

47SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Eventos

A alma como centro do filosofar de Platão SALA DE LEITURA

O livro recém-lançado A Alma como centro do filosofar de Platão. São Paulo:

Loyola, 2006, do filósofo Delmar Cardoso, SJ, será apresentado pelo próprio autor

nesta quinta-feira, 07-12-2006, às 17h30min, na sala 1G119 do IHU. Graduado em

Filosofia pelo Instituto Santo Inácio, do Centro de Estudos Superiores da

Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, e em Teologia pela Pontifícia Università

Gregoriana (PUG), na Itália, Cardoso cursou aperfeiçoamento em Estudos

Humanísticos pelo Instituto Padre Gabriel Malagrida e especialização em Grego

Clássico pela PUG. É mestre e doutor em Filosofia. O mestrado foi realizado na

PUG e o doutorado na Pontifícia Università San Tommaso D’Aquino (PUST),

também na Itália. De sua tese A alma como centro do filosofar de Platão: uma

leitura concêntrica do Fedro à luz da interpretação de Franco Trabattoni, surgiu o

gérmen do livro que Cardoso apresenta no Sala de Leitura. Na entrevista que

segue, concedida pelo pesquisador à IHU On-Line, ele revela que, ao referir-se ao

termo alma, em Platão, o significado deve ser compreendido como “ser humano”.

Entre os legados platônicos à Filosofia, Cardoso enfatiza que o maior deles é a sua

própria filosofia. Outra contribuição deixada pelo filósofo ateniense a esse ramo

do saber é a “incindível relação entre ser humano e cidade (polis) e vice-e-versa, a

qual nunca conheceu boa harmonia em tempos recentes”.

IHU On-Line - Por que o senhor afirma que a alma é o

centro do filosofar de Platão?

Delmar Cardoso - Em primeiro lugar, gostaria de

esclarecer que minha afirmação é feita num contexto

acadêmico, num contexto de uma tese de doutorado em

filosofia. Nessa tese, minha investigação com base no

texto do Fedro platônico me levou a enunciar assim o

título do meu estudo. Sou consciente de que se trata de

um enunciado, no mínimo, corajoso, pois não é comum

que se fale muito de alma, mesmo em filosofia

contemporânea. Porém, o termo "alma", em Platão,

significa "ser humano". Portanto, o título de meu estudo

sobre o Fedro bem que poderia ter sido enunciado: "O

ser humano como centro do filosofar de Platão".

Contudo, quis ser fiel ao termo que Platão, qual maior e

melhor discípulo de Sócrates, utiliza para dizer o ser

humano. Platão, num dos seus diálogos, põe na boca de

Sócrates a afirmação que me fez insistir em utilizar o

termo alma (psukhé): "o ser humano é a sua alma"

(Alcebíades primeiro, 130c). A alma, tal qual

entendemos hoje em dia como a interioridade do

homem, é um conceito que devemos a Sócrates. Nossa

compreensão de alma supõe aquela parte do homem que

não conhece destruição, supõe o interior que identifica

cada ser humano, a partir do qual o ser humano pode

afirmar "Eu sou".

48SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

IHU On-Line - Como aparece essa preponderância da

alma no Fedro, em específico?

Delmar Cardoso - Há no Fedro um emaranhado dos

principais temas tratados por Platão na sua vasta obra

escrita. Nisso consiste justamente a riqueza e a

dificuldade para quem quiser se debruçar sobre esse

texto de Platão. Classicamente se divide o Fedro em

duas partes. E a própria configuração do texto autoriza

tal divisão. A primeira parte é composta por três

discursos. Do ponto de vista literário, cada um desses

discursos é obra à parte. Neles se vê a capacidade

criativa de Platão que foi capaz de compor três discursos

que podem ser atribuídos a três autores diferentes. O

primeiro discurso é o do famoso orador Lísias. É um

discurso escrito que trata do amor e é lido por Fedro.

Sócrates reage a esse discurso, fazendo um outro

discurso ao amor. Mas ambos os discursos (um oral e

outro escrito) não são suficientes para enaltecer o amor.

Daí que, na narrativa de Platão, Sócrates se vê obrigado

a fazer um segundo discurso que extrapola a temática

amor para falar justamente da alma ou, se quisermos, do

ser humano. Aqui temos o gancho para falarmos da

segunda parte do Fedro, que aprofunda a relação entre

amor (éros) e discurso (lógos), postulando a exigência de

que a filosofia esteja ligada à retórica. E isso é uma

novidade, pois, apressadamente, temos a tendência a

considerar Platão um simples adversário dos retores. No

Fedro, Platão quer uma filosofia ligada à retórica,

porque, segundo sua concepção antropológica, o ser

humano não é feito só de razão, mas possui uma parte

que, como Lima Vaz, podemos chamar de transracional.

O segundo discurso de Sócrates no Fedro mostra isso com

muita clareza.

IHU On-Line - O senhor vê relação entre a

importância dada por Platão à alma com filosofias

como a hegeliana, por exemplo? Como a filosofia atual

dialoga com o legado platônico?

Delmar Cardoso - A pergunta é muito pertinente, mas

falta-me mais conhecimento sobre Hegel1 para respondê-

la de um modo mais completo. No entanto, como não ver

uma relação entre aquilo que Platão chama de "alma" e

aquilo que Hegel chama de consciência? A filosofia atual

tem aprendido a voltar aos antigos, e essa é uma herança

que o Iluminismo nos deixou, apesar de que essa volta

tinha começado no Renascimento. Queiramos ou não,

nosso atual modo de pensar e agir deve muito a Platão e

a Aristóteles2, só para citar dois nomes na Antigüidade.

Admitamos ou não, Kant3 e Hegel – também só para citar

dois nomes da filosofia moderna – nos fornecem os modos

como fazemos filosofia atualmente. O prefixo "pós", tão

em moda em nossos dias, se aplica muito bem à filosofia

contemporânea: pós-kantiana e pós-hegeliana. Com isso

tudo quero dizer que o prefixo "pós" neste caso não

significa necessariamente superação. É que a volta a

1 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão. Como Aristóteles e

Santo Tomás de Aquino, tentou desenvolver um sistema filosófico no

qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais

predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito,

tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa continental no séc. XX.

(Nota da IHU On-Line) 2 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo grego, um

dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexões filosóficas

— por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega —

acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por

séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano,

destacando-se: ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia,

poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas de

conhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais

influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line) 3 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o

último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do

Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes

da Filosofia. Kant teve um grande impacto no Romantismo alemão e nas

filosofias idealistas do século XIX, tendo esta faceta idealista sido um

ponto de partida para Hegel.Também sobre Kant foi publicado este ano

o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant -

Razão, liberdade, lógica e ética. Os Cadernos IHU em formação estão

disponíveis para download na página www.unisinos.br/ihu do Instituto

Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)

49SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Platão e a outros filósofos antigos pode proporcionar a

construção de novos paradigmas. Entretanto, não há

dúvida de que fica a dívida para com a filosofia moderna

que permitiu o ser humano dizer, com todas as letras,

"Eu sou".

IHU On-Line - E qual o maior legado de Platão à

filosofia?

Delmar Cardoso - Há vários legados, mas vou falar

somente de três. Um primeiro conjuga o aspecto

material com o cultural: os textos escritos de Platão.

Com os textos de Platão acontece algo inusitado na

história do pensamento antigo. Conservamos hoje as

obras que a própria Antigüidade identificava como sendo

de Platão. Pode parecer que esse dado não dependa

diretamente de Platão, mas estou convencido de que ele

revela o modo como Platão fez filosofia. Contudo, o

maior legado de Platão à filosofia é a sua filosofia. Uma

filosofia que nos habituamos a ver como forte e

inabalável. Mas isso não está muito claro se nos

detivermos com atenção nos textos de Platão. A

afirmação do sujeito feita pela Modernidade quer ser a

afirmação de um sujeito forte e inabalável, o que

significa também querer afirmar uma razão forte e

inabalável. Sem dúvida que existem raízes disso na

filosofia de Platão. No entanto, Platão, sem renunciar à

exigência de que o filósofo dê razões de seu pensar e

agir, também constata um elemento frágil no ser

humano. Esse elemento frágil no ser humano exige a

adaptabilidade da razão, em vista de uma constante

busca da verdade por parte do ser humano. Um outro

legado de Platão à filosofia é a incindível relação entre

ser humano e cidade (polis) e vice-versa, a qual nunca

conheceu boa harmonia em tempos recentes.

IHU On-Line - Qual é seu ponto de vista sobre a

interpretação do conceito de alma do platonismo pelo

cristianismo, tomando em consideração que, a partir

do século XII, houve um ressurgimento das obras de

Aristóteles? Como se dá essa relação hoje, no século

XXI?

Delmar Cardoso - Fiquemos simplesmente na

concepção platônica de alma que, como disse acima,

tem sua origem em Sócrates: a alma é o que confere o

ser ao homem. De acordo com essa concepção a origem

do homem não tem sua explicação cabal no existir

intraterreno. Parece-me que isso é bastante diferente

em Aristóteles. Em Aristóteles, a alma tem um aspecto

que ficará consagrado com o termo "tavola rasa". Daí que

o conceito bíblico-cristão que define o ser humano como

imago Dei pode também estar relacionado com

concepção platônica de alma. Lembro que as pesquisas

de Bruno Snell nos informam de que os gregos antigos

tinham os deuses – e não os animais – como ponto de

comparação dos seres humanos. Coube a Aristóteles

formular a definição de homem em que o ponto de

comparação para definir o homem são os animais e não

mais os deuses, quando afirma ser o homem "um animal

possuidor de palavra". A relação entre os dois maiores

pensadores da Antigüidade grega foi muito bem

trabalhada pelo Cristianismo, e forneceu a ele parte do

cimento que solidificou sua construção. Penso que é

preciso continuar a pesquisar sobre esses dois filósofos

para que se entenda o que nós hoje ainda podemos

chamar de Ocidente e – como Ocidente – nos dispormos a

aprender mais do que ensinar.

50SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Historia, antropologia e música grega II CICLO DE ESTUDOS DESAFIOS DA FÍSICA PARA O SÉCULO XXI: UM DIÁLOGO DESDE A FILOSOFIA

Nesta quarta-feira, dia 06-12-2006, o físico Prof. Dr. Fernando Haas e a

historiadora Prof.ª Dr.ª Karen Monteiro, ambos docentes na Unisinos, encerram o II

Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI: um diálogo desde a

Filosofia. O tema traz à discussão aspectos da cultura grega, civilização que até

nossos dias é um dos pilares da cultura ocidental. Monteiro falará sobre A história

e a antropologia da cultura grega, e Haas abordará a música grega. A atividade

vai das 17h30min às 19h3min, na sala 1G119 do IHU.

Haas é graduado, mestre e doutor em Física pela UFRGS. Sua tese leva o título

Sistemas de Ermakov Generalizados, Simetrias e Invariantes Exatos. É pós-doutor

pela Universidade Henri Poincaré, na França. É autor de Computação algébrica e

simetrias de Lie. Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada, 2001. Suas

contribuições mais recentes à IHU On-Line foram dadas na edição 203, de 06-11-

2006, com a entrevista O paradoxo de Zenão quântico, sobre a palestra que

apresentou dentro da programação do II Ciclo de Estudos Desafios da Física, e na

edição 198, de 02-10-2006, com a entrevista Explicar a vida: desafio da Física, a

respeito da palestra A contingência e o acaso nas Ciências da Vida e na Física,

também a respeito do II Ciclo de Estudos Desafios da Física. Ainda na edição 198,

o IHU Repórter traçou seu perfil. Todas entrevistas estão disponíveis para

download na página do IHU, endereço www.unisinos.br/ihu. Em 29-11-2006 Haas

falou sobre Caos e complexidade no Quarta com Cultura Unisinos, realizado na

Livraria Cultura, em Porto Alegre.

Monteiro é historiadora, cientista social e advogada graduada pela Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, cursa mestrado

em Ciências Sociais das Organizações pela mesma instituição. Na Unisinos leciona

nos cursos de Gastronomia e Administração de Empresas.

51SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

O Rei da Vela V CICLO DE ESTUDOS SOBRE O BRASIL: INTÉRPRETES DO BRASIL – ESTADO E SOCIEDADE

No próximo dia 5 de dezembro, o Brasil será pela última vez interpretado. A

última palestra do V Ciclo de Estudos sobre o Brasil: Intérpretes do Brasil – Estado

e Sociedade terá como tema o livro O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. A obra

de Oswald de Andrade (1890-1954) representou fortemente o libelo contra a

cultura do passado. O livro reflete as condições do Brasil na década de 1930,

focalizando em especial São Paulo e Rio de Janeiro. É apresentado um amplo

panorama da sociedade, figurando várias classes sociais, suas relações e crises.

O evento será conduzido pela professora da Unisinos, Maria Helena Campos de

Bairros e acontecerá na sala 1G119, às 19h30min.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da obra de Oswald

de Andrade? Maria Helena - Oswald de Andrade, poeta, romancista e

dramaturgo, produziu uma obra que representa um

marco na literatura brasileira, sobretudo, em relação ao

uso da linguagem e às formas de representação ficcional.

Influenciado pelos movimentos de vanguarda européia e

pelo desejo de mudança no cenário cultural brasileiro,

foi uma espécie de porta-voz dos anseios de parte da

intelectualidade brasileira, no século XX, na década de

20, principalmente em São Paulo. Nessa década, atuou

de forma decisiva na organização da semana de Arte

Moderna e na apresentação de manifestos que teriam

repercussão em fases subseqüentes da produção cultural

brasileira. Autor de espírito irreverente e combativo

escreveu uma poesia que pode ser considerada

precursora de um outro movimento que vai marcar a

cultura brasileira na década de 60: o Concretismo. Suas

idéias, ainda nessa década, reaparecem também no

Tropicalismo.

A narrativa romanesca, Memórias sentimentais de João

Miramar, também chama a atenção pela linguagem e

pelo processo de construção. O romance apresenta uma

técnica de composição revolucionária, se comparado aos

romances tradicionais: são 163 episódios numerados e

intitulados, que constituem capítulos-relâmpagos,

revelando as influências da linguagem do cinema. São

fragmentos, recortes e colagens utilizadas para narrar.

O Rei da Vela, peça escrita em 1933 e publicada em

1937, focaliza a sociedade brasileira dos anos 30. Devido

ao seu caráter pouco convencional, foi encenada pela

primeira vez apenas em 1967, integrando o movimento

tropicalista.

IHU On-Line - Como o Brasil é retratado na obra?

Quais as semelhanças com o Brasil de hoje? Maria Helena - O Rei da Vela focaliza a história de

Abelardo (desdobrado na figura do duplo I e II) e Heloísa,

ela uma representante da aristocracia paulista do café,

já falida; ele um novo rico que precisava de um

sobrenome tradicional. Ambos buscam, através do

casamento, a resolução para seus problemas relacionados

à projeção social. No eixo do enredo está a história de

amor, que desvela as mazelas das relações marcadas por

interesses. O paradoxo acentua-se ainda mais pelos

nomes dos protagonistas que se referem a uma história

de amor do século XII.Esses nomes reforçam o contraste

52SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

entre as relações marcadas pelo amor e as estritamente

regidas por interesses. Nesse sentido, a peça ataca

pilares da sociedade brasileira, muito caros, em especial

durante o período da ditadura militar, 1967, ano em que

a peça foi encenada pela primeira vez. Ao atacar Deus,

Pátria e Família, a peça procura questionar e

desmascarar cada uma dessas referências, a fim de

desvelar as mazelas de uma nova classe social que estava

emergindo: a dos industriais. Além da desconstrução das

representações das relações matrimoniais e comerciais, o

texto de Oswald retrata a crise dos cafeicultores que

afetou especialmente o Brasil, logo após crack de 29,

agravando-se com a derrota da Revolução

Constitucionalista de 1932. Ainda que datadas, as

questões morais e econômicas, tematizadas pela peça,

mostram-se atuais. A “aristocracia” rural brasileira ainda

é bastante dependente da agricultura de mono cultivo,

subsidiada por políticas governamentais. Outro aspecto

relevante, tematizado pela peça, diz respeito ao

enriquecimento através da usura, prática vigente na

contemporaneidade e legitimada pelas instituições

bancárias.

IHU On-Line - Que figuras importantes ganham espaço

nas páginas do livro?

Maria Helena - Pode-se afirmar que ainda são figuras

recorrentes personagens como Abelardo, que enriqueceu

de forma não muito lícita, que está em busca de

reconhecimento social e Heloísa, que já viveu na

opulência, mas que não titubeia em se deixar usar para

manter a vida abastada. Soma-se a esses personagens o

norte-americano, Mister Jones, o capitalista e banqueiro

que se aproxima de Heloísa com o consentimento de

Abelardo que vê na relação extraconjugal mais uma

possibilidade de obter lucros. Essa personagem assinala

ainda mais o grau de submissão de Abelardo e do país

colonizado que sucumbe diante do capital externo. Nesse

sentido, as personagens ainda simbolizam figuras

emblemáticas que procuram a qualquer custo projeção

social e econômica.

IHU On-Line - Como a senhora classifica Oswald de

Andrade como intérprete do Brasil?

Maria Helena - Oswald de Andrade, como intérprete do

Brasil, soube captar a essência de um processo de

transformação de um País calcado no modelo agrário de

monocultura que, de uma hora para outra, se transforma

em um modelo industrial, representado pela alegoria da

fábrica de velas. É a transição de um modelo marcado

pela conspurcação e pela usura que ainda reflete na

atualidade. Assim, a pátria é vista, no texto, como

pobre e subordinada aos países ricos. A metáfora que

traduz essa situação é representada por Abelardo e

Heloísa que, respectivamente, sintetizam a

transformação e a deterioração do poder econômico e da

tradição familiar.

53SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

Sala de Leitura

Camilo Mortágua, de Josué Guimarães (Porto Alegre:

L&PM, 2006). Este romance de Josué Guimarães narra a

história de Camilo Mortágua, perpassando vivências e

lembranças. O cenário é a Porto Alegre de 1964, período

rico da nossa história recente. Camilo mora numa pensão

no bairro Azenha, destacando-se dos demais moradores

pela sua educação e postura. O Cinema Castelo, ali na

Azenha, é o ponto de início de suas recordações da

infância num casarão da Avenida Independência, antiga

zona nobre de Porto Alegre. Josué Guimarães expõe a

vida e a saga de uma família de fazendeiros da fronteira

que vivem o luxo e conta Josué como o luxo acabou por

arruinar uma vida; os dramas vividos por diversas famílias

tradicionais gaúchas, marcando a decadência de uma

aristocracia rural.Um romance histórico-psicológico que

retrata uma época da história do povo e da ex-elite

dominante do nosso Estado.

Professor MS. Ricardo Giuliani Neto, da Unidade Acadêmica de Ciências Jurídicas da Unisinos

IHU Repórter

Edison Trevisan Steffanello

“A oportunidade de trabalhar com os alunos é a melhor parte de trabalhar na

Unisinos”, é o que declara Edson Trevisan Stefanello, supervisor técnico da TV

Unisinos. Nasceu em Cruz Alta, mas começou a vida em Porto Alegre, aos 20 anos,

trabalhando em produtoras de vídeo e na RBS. Na Unisinos, encontrou seu trabalho

e também sua vocação: Relações Públicas. Tanta é a dedicação com os alunos que

Edson é neste ano funcionário homenageado dos formandos em Jornalismo.

Conheça um pouco mais deste funcionário e aluno da Unisinos na entrevista a

seguir.

Origens - Nasci em Cruz Alta. Tenho 37 anos.

Família - Meus pais moram ainda em Cruz Alta, e tenho

cinco irmãos mais velhos. Sou casado há 10 anos, tenho

uma filha, Laurinha, que é a melhor coisa que poderia

ter acontecido na minha vida. Moro em Porto Alegre. Sou

muito apegado a família. Com 22 anos, fui tentar a vida

em Porto Alegre. Já tinha quatro irmãos que moravam lá.

Infância - Tive uma infância simples, com algumas

54SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

dificuldades, mas nunca me faltou nada.

Hoje consigo entender a importância dos meus pais na

minha vida. Sempre me dei bem com os meus irmãos.

Quando saí de cruz Alta parecia ter deixado um pedaço

de mim. É muito difícil sair de uma cidade do interior e

vir para capital, buscar um espaço profissional, mas hoje

só vou para a minha cidade natal para passear. Deixei

grandes amigos lá. Hoje já me sinto um porto-alegrense,

mas nunca esquecendo as raízes.

Estudos - Cursei os ensinos Fundamental e Médio em

escolas públicas de Cruz Alta. Agora estudo Relações

Públicas na Unisinos. Gosto muito do curso que escolhi.

Estou satisfeito.

Trabalho - Além do quartel, e ter tentado ser jogador

de futebol no Guarani de Cruz Alta, minha primeira

experiência de trabalho foi como funcionário das Lojas

Quero-Quero. Tive também um trailer de lanches

durante dois anos. Quando fui para Porto Alegre,

trabalhei na Vídeo Tok e como freelancer na RBS Vídeo e

na Estação Elétrica Filme e Vídeo, depois voltei para a

RBS .

Carreira - Comecei a trabalhar com edição de vídeo

por meio de meu ex-cunhado que trabalhava na RBS de

Cruz Alta, e veio transferido para Porto Alegre, e montou

uma produtora chamada Vídeo Tok. Ele me apresentou

para várias pessoas do ramo e vieram as oportunidades.

Trabalhei como editor, produtor e coordenador de

operações. Conheci a Unisinos pó meio de um amigo que

também trabalhou na Estação Elétrica e foi um dos

primeiros funcionários da TV Unisinos, o Daniel

Bernardes, fiz alguns trabalhos com o Alexandre Kieling

que, na época, era o diretor da TV Unisinos, que conheci

quando trabalhava na Estação Elétrica. Gostei muito do

projeto da TV Unisinos. Nessa época, trabalhei ainda

durante três anos na RBS e na Unisinos ao mesmo tempo,

até ser promovido na Unisinos e acabei ficando na

Universidade onde estou até hoje. Sinceramente,

olhando para trás eu me sinto um vencedor e tenho

certeza que muitas coisas ainda melhores acontecerão.

Mudanças - Fui para Porto Alegre em busca de

emprego e de um futuro. Cruz Alta é uma cidade

agrícola, tem muitos quartéis, mas não tem muitas

oportunidades, mas mesmo assim gosto muito de lá.

Tenho uma história que ficou por lá.

Alunos - A oportunidade de trabalhar com os alunos é a

melhor parte de trabalhar na Unisinos. Eu sou muito feliz

no que eu faço. Trabalhei um período como editor, com

todos os cursos e depois assumi a supervisão. Trabalhar

com os alunos é muito importante para mim. Este ano

sou funcionário homenageado pelos formandos do curso

de Jornalismo, e no ano passado, fui pelo curso de

Realização Audiovisual. Algumas pessoas dizem que sou

muito “bonzinho” com os alunos, mas eu acho isso

importante para o meu trabalho dentro da Universidade.

O melhor cliente é o aluno.

Relações Públicas - Durante muito tempo trabalhei

com jornalistas e publicitários e vi que esses cursos não

eram o que eu queria. Acho que o melhor se encaixa

comigo é trabalhar diretamente com as pessoas. Com

esse curso, além de eu obter uma formação, faço uma

coisa de que eu gosto. Mesmo depois de formado,

pretendo continuar trabalhando na área de TV.

Lembrança - Tenho muito contato com os alunos do

curso de Jornalismo. Trabalhando com um aluno de

Estágio em TV, recebi um e-mail dele pedindo alguns

equipamentos. Pediu o microfone “com a bolinha na

ponta”, o outro “que tem um monte de cabelos” e “o

que se pendura no pescoço”. Fiquei meio assustado.

Como que um aluno que já está tão avançado no curso

55SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

não sabe ainda o nome dos equipamentos mais básicos?

Então respondi dizendo os nomes corretos dos

equipamentos. Ele respondeu dizendo que só estava me

testando.

TV Unisinos - Formamos uma família muito forte no

começo da TV Unisinos. Passamos por vários momentos

difíceis, como toda a Universidade, com muitas

mudanças, além da perda de colegas por redução de

custos e ajustes importantes. Mas tento sempre animar

as pessoas que ficaram e continuar indo em frente. O

projeto existe é ainda com alguns ajustes poderemos

vencer e provar cada vez mais nossa capacidade. Temos

uma equipe excelente, que tem condições de trabalhar

em qualquer lugar. Criamos um vínculo muito forte. São

pessoas maravilhosas, cada um com suas peculiaridades.

Sei o que cada um tem a oferecer e como pode .

Casamento - Não sou casado no papel. Conheci minha

esposa em Cruz Alta, quando ela era uma menina de 11

anos e eu 16, mas nunca namoramos, tínhamos amigos

em comum. Em 1994, fui visitar meus pais na cidade e a

vi passar de bicicleta, então fui atrás dela e começamos

a conversar. Trocamos endereços e começamos a

corresponder-nos. Ela foi a Porto Alegre fazer vestibular

e passou, e logo foi morar lá, foi quando nosso

relacionamento começou e dura até hoje. Dele resultou

minha filha, a Laura. Crescemos muito juntos.

Dificuldade - Nossa filha nasceu com 6 meses, pesando

970 gramas. Trabalhava há três dias na Unisinos e ganhei

licença para cuidar da minha filha. Minha esposa teve

problemas na gestação, e minha filha teve que nascer

antes do tempo. A Laura ficou 63 dias na UTI neonatal do

Hospital Moinhos de Vento, e eu fiquei todas as noites lá

com ela. Temos um vínculo muito forte. Hoje, com seis

anos, ela está muito bem. Passei por altos e baixos em

meu relacionamento com minha esposa, mas acabamos

nos unindo muito apesar de tudo.

Horas Livres - Gostava muito de jogar futebol com os

meus amigos. Tenho um grupo de amigos que se reúnem

às quintas-feiras para fazer churrasco e jogar futebol.

Parei de jogar há mais de um ano por um problema físico

e também em razão dos estudos, mas não de participar

dos churrascos, pretendo voltar na próxima temporada.

Música - Sou eclético. O ambiente onde estou é que

define que estilo de música eu vou escutar no momento.

Uma banda que gosto muito é Legião Urbana.

Viagens - Gosto de acampar e pescar. Tenho receio de

estar na estrada. É uma das poucas coisas que me

assusta. Entretanto, quase todo mês vou visitar meus

pais em Cruz Alta.

Livro - Tenho um grande defeito: não leio muito. Mas

gostei muito do Poeta e o Carteiro, do Pablo Neruda, e

A Gula, do Luís Fernando Veríssimo. Esse último eu

gostaria de transformar em vídeo.

Futuro - Tenho muitas idéias de trabalho, mas primeiro

quero me formar. Também penso muito com a minha

esposa em adotar uma criança, se tiver condições

financeiras é claro. Quero continuar no meu trabalho,

sempre trabalhando com os alunos, ajudando-os a serem

profissionais e pessoas melhores, pois o mercado de

comunicação que os esperam não é nada fácil.

Política - O atual presidente mereceu ser reeleito pelo

que fez. Aqui dentro da Universidade vejo reflexo disso,

com mais pessoas humildes estudando, que não teriam

condições antes. Isso faz parte do trabalho dele. Projetos

como o bolsa família são válidos, porque só ajudam as

pessoas. Quanto aos escândalos, acho que ele deveria ter

56SÃO LEOPOLDO, 04 DE DEZEMBRO DE 2006 | EDIÇÃO 207

sido mais duro, deveria ter resolvido. O resultado das

eleições para governador do Estado eu ainda não consigo

entender.

Unisinos - Jamais imaginei que trabalharia em uma

universidade. A Unisinos contribuiu muito para minha

vida, ensinou-me muitas coisas. Eu sinto que posso

aprender e contribuir para a Universidade ainda mais. Só

tenho a agradecer à Universidade pela oportunidade que

tive, hoje não me imagino trabalhando fora daqui.

Instituto Humanitas - Acompanho um pouco de longe o

trabalho do Instituto, mas ouço falar muito dele. Toda a

instituição de ensino deve ter esse espaço de discussão,

proporcionando a reflexão. Se dermos uma oportunidade

para as pessoas discutirem suas idéias, estamos formando

pessoas melhores, ajudando-as a crescer.