frente negra brasileira

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Cincias Sociais Programa de Ps Graduao em Histria Mestrado em Histria Poltica

A Frente Negra Brasileira: Poltica e Questo Racial nos anos 1930

Professora Orientadora: Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva

Laiana Lannes de Oliveira

Rio de Janeiro 2002

RESUMO

Esta dissertao trata da Frente Negra Brasileira, organizao poltica criada em 1931, em So Paulo, e extinta em 1937, luz do contexto histrico da poca. As fontes nas quais est baseada so jornais e memrias de lideranas negras envolvidas com o movimento negro brasileiro.

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ABSTRACT

The text discusses a political organization created in So Paulo in 1931, and dissolved in 1937, called Frente Negra Brasileira. The sources on wich we base our analysis, in the light of the historical context of the period, are newspapers and the memoirs of black leaders envolved in the brazilian black movement.

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AGRADECIMENTOS

Durante estes 30 meses de curso, muitos me auxiliaram e devem ser lembrados neste momento. Primeiramente gostaria de agradecer aos meus professores: Lcia Bastos, Fernando Faria, Carlos Maia, Lcia Guimares e Silvio Carvalho. As aulas ministradas por eles foram valiosssimas e muito contriburam para a estruturao terica e metodolgica da dissertao. Agradeo, sinceramente, ao professor Andr Campos que inicialmente orientou a pesquisa, apresentando- me a Frente Negra Brasileira. professora Marilena Nogueira, orientadora da pesquisa, pelas suas sugestes, sua pacincia e sua elegncia em tratar as pessoas. Outra professora fundamental para a concluso do curso foi Len Medeiros. Alm de participar da Banca do Exame de Qualificao, com sugestes valiosas, como diretora do curso, concedeu- me uma bolsa de estudos durante os ltimos 10 meses, financiada pela CAPES. O auxlio foi essencial para a concluso do curso. Agradeo tambm Leila Medeiros, Celi e Leonardo, colegas de turma que proporcionaram discusses relevantes e enriqueceram ainda mais o curso, alm claro, dos momentos de descontrao e amizade. Gostaria de lembrar tambm de Dbora, secretria do PPGH, sempre disposta a ajudar e operacionalizar as questes burocrticas, e de Bianca, aluna de Histria da FFP, por ter me auxiliado na transcrio das fontes da Biblioteca Nacional. Reiterando o ditado: os ltimos sero os primeiros, agradeo a Jos Roberto, por suas sugestes e correes como historiador, e por sua pacincia e carinho como marido.

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NDICE

APRESENTAO -----------------------------7

INTRODUO Histria Poltica ---------------------------- 8 O Tema As Fontes ---------------------------- 12 ---------------------------- 15

CAPTULO I:

---------------------------- 19

A Ausncia do Acaso: o contexto poltico, econmico e cultural que determinou o surgimento da Frente Negra Brasileira .

1.1. 1.2.

O Incentivo Poltico: A Revoluo de 1930 -------------- 20 O Incentivo Econmico: A Pauperizao do Negro na Cidade de So Paulo. -------------- 28

1.3.

O Incentivo Cultural: A Substituio das Teorias Racistas Cientficas --------------- 33

CAPTULO II:

---------------------------- 48

A Frente Negra Brasileira: origem e organizao.

2.1. O Embrio: A Imprensa Negra e o Centro Cvico Palmares. 2.2. Fundao e Organizao. ---------------- 48 ----------------- 57

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CAPTULO III: ----------------------------- 72 Um espelho do pas: a Frente Negra Brasileira refletindo a conjuntura nacional.

3.1. A crise do liberalismo e o nacionalismo dos anos 30 contaminando os negros. 3.2. Atuao Poltico-eleitoral 3.3. O oficialismo 3.4. As divergncias ---------------------72 -------------------- 78 --------------------81 -------------------- 84

CONCLUSO: ---------------------------- 91

ANEXOS

---------------------------- 95

Anexo 1: Estatuto da Frente Negra Brasileira Anexo 2: Hino da Frente Negra Brasileira Anexo 3: Hino da criana frentenegrina

------------- 95 --------------97 ------------- 98

FONTES PRIMRIAS BIBLIOGRAFIA

-------------------------------- 100 ------------------------------- 101

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APRESENTAO

O tema desta dissertao a Frente Negra Brasileira, organizao criada em So Paulo, em 1931, com o propsito (segundo consta do primeiro artigo de seu estatuto) de afirmar os direitos histricos da Gente Negra Nacional, em virtude da sua atividade material e moral no passado, e reivindicar seus direitos sociais e polticos, atuais, na Constituio Brasileira. A Frente Negra Brasileira foi extinta em 1937, interrompida pelo advento do Estado Novo. A instituio, alm de revelar os conflitos raciais no momento da substituio das teorias de branqueamento e racismo cientfico pelo mito da democracia racial e a valorizao da raa mestia, surgiu sob a gide da revoluo de 30, revelando as contradies e os conflitos no s dos afro-descendentes, como tambm as ebulies e a luta dos trabalhadores em um momento de reorganizao do Estado Nacional. Na Introduo, busco situar a pesquisa no campo da Histria Poltica e apresento o tema do qual ela se ocupa e as fontes que a tornam possvel. No primeiro captulo, trato dos contextos poltico, econmico e cultural aos quais estava estreitamente vinculada a organizao. No segundo captulo, reconstituo as origens da Frente em meio histria do movimento negro em So Paulo, alm de tratar de sua organizao institucional. No terceiro captulo, examino caractersticas da Frente (a exemplo do seu oficialismo), procurando pens-las no contexto da crise do liberalismo e da intensa disseminao das idias nacionalistas, caracterstico dos anos 1930. Abordo tambm as dissenses havidas entre as lideranas da Frente, luz deste mesmo contexto histrico. Aps a concluso, apresento, em anexo, o estatuto e dois hinos da Frente Negra Brasileira.

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INTRODUO

Comeando nas prprias origens do Brasil como nao e continuando at hoje, a relao entre raa e poltica nesse pas tem sido prxima e integral 1 .

Histria Poltica e Micro Histria

Durante muito tempo, a histria poltica foi a forma predominante de construo do conhecimento histrico. Tinha como principais caractersticas o relato de fatos e acontecimentos, com um interesse maior, seno nico, pelos grandes lderes do Estado, negligenciando a influncia da maioria da sociedade nas transformaes sociais. Histria estritamente narrativa, factual e linear, preocupava-se com fatos efmeros e com a curta durao. H aproximadamente sete dcadas, essa histria poltica - que atingiu o seu apogeu no sculo XIX - comeou a perder prestgio, principalmente aps a consolidao do movimento dos Annales. Esta nova tendncia historiogrfica muito se esforou para a desqualificao da histria poltica tradicional, assim como o marxismo, o estruturalismo e a histria serial contriburam para a sua respectiva condenao. A nova histria proposta pelos Annales afirmava a importncia dos comportamentos coletivos e de estruturas durveis, inseridas na longa durao, onde a vida quotidiana e as relaes sociais se apre sentam como essenciais para a compreenso da sociedade.

1

Andrews, George Reid. O protesto poltico negro em So Paulo - 1888-1988. In: Cadernos Cndido Mendes n 21. Centro de Estudos Afro-Asiticos, dezembro de 1991.

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O movimento dos Annales, a histria social e das mentalidades, proporcionaram uma contribuio imensurvel para a construo do conhecimento histrico. Foi a partir dessas crticas e do interesse e autocrtica dos prprios historiadores polticos, que foi possvel a construo de uma nova histria poltica. Esta nova histria no nega - e nem mesmo ignora - a proposta dos Annales. Soube ouvir as crticas e busca resolver antigas limitaes. No poss vel mais condenar a histria poltica, confundindo as insuficincias dos mtodos anteriormente utilizados, com os seus objetos. O caminho seguido pela nova histria poltica passa pela transferncia do estudo do Estado como instituio, para o estudo do poder e suas mltiplas representaes. Michel Foucault, muito contribuiu para a dilatao do conceito de poder e para a prpria histria poltica, que reconheceu a existncias no s de um poder, mas de poderes. 2 O desafio da Nova Histria Poltica demo nstrar que se pode inscrev-la na longa durao. Segundo Ren Remond, atravs do estudo das formaes polticas e das ideologias, e da noo de cultura poltica, que essa nova histria se libertar do rtulo de histria vnementielle.3 A noo de cult ura poltica, segundo o autor, implica continuidade na longussima durao, e ideologia deve ser pensada como um conjunto de idias e representaes que definem determinado tempo histrico. O conceito de cultura poltica dinmico, e no deve ser pensado de forma autnoma e individual. Segundo Serge Berstein, a cultura deve ser pensada como representaes de grupos polticos, como a herana de um passado, que influencia a construo do presente. 4 Por cultura poltica entendo as prticas, discursos, manifestaes, valores e representaes que refletem o comportamento poltico de uma sociedade. Por um lado ela define as maneiras pelas quais a ao poltica pode ou no ser expressa; e por outro, as maneiras pelas quais essa ao ser ouvida e compreendida. A Histria Poltica nouvelle manire no menos total e abrangente do que a histria social, econmica ou cultural. Atravs de um contato principalmente com a

2 3

Foucault, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Ed.Graal, 1982. Rmond, Ren. Por uma Histria Poltica. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. 4 Berstein, Serge. La culture politique. In: Jean-Pierre Rioux & Jean Franois Sirinelli. Pour une histoire culturelle. Paris: Seuil, 1997.

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Cincia Poltica e a Sociologia, superou as principais limitaes da histria poltica tradicio nal e substituiu o estudo da poltica pela anlise do poltico. A noo de poltico aqui utilizada universalizada, sem fronteiras e recortes determinados. Parte da perspectiva adotada por Pierre Rosanvallon, onde o poltico no representa uma instncia ou domnio entre outros da realidade, e sim um locus privilegiado onde se articula o social e suas representaes. 5 Ao contrrio de privilegiar aspectos econmicos, culturais e at mesmo poltico, a nova histria poltica localiza-se na articulao entre os diferentes aspectos, abandonando as teorias deterministas e pesquisando os vestgios de continuidade, que influenciam as formaes polticas. A Histria Poltica foi consideravelmente influenciada pelo movimento dos Annales, mas a sua renovao n o implicou em deixar de atribuir aos comportamentos individuais a importncia que tm nos processos sociais. Talvez por isso tambm possa se valer das contribuies da Micro Histria. Como salienta Jacques Revel, a Micro Histria no um corpo de proposies unificadas nem uma escola. 6 , antes, um leque de escolhas tericas e metodolgicas, no interior da disciplina histrica, que surgiu na dcada de 1970, em funo de sentidas insuficincias da histria social, como ento se praticava. Entre as contribuies

apontadas por Revel est a presuno de que a escolha de uma escala particular de observao produz efeitos de conhecimento.7 Para Carlo Ginzburg, uma multiplicidade de espaos e de tempos pode ser entrevista nos marcos de um destino individual. Pois, segundo Revel, cada ator histrico participa, de maneira prxima ou distante, de processos... de dimenses e de nveis variados, do mais local ao mais global. 8 Optar por uma escala menor de anlise no significa, necessariamente, abdicar de explicaes. A micro-histria pretende, e, na maioria das vezes realiza, uma pesquisa com concluses de alcance geral. Quanto menor for a escala, mais detalhes e complexidades podemos observar. No h hierarquia de importncia entre as escalas. Todas so relevantes na medida que cada uma revela algo novo e demonstra o carter5

Rosanvallon, Pierre. Por uma histria conceitual do poltico ( nota de trabalho). Revista Brasileira de Histria. So Paulo, 15 (30): 9-22, 1995. 6 Revel, Jacques (org). Jogos de Escalas: a experincia da microanlise. Rio de Janeiro: Ed FGV, 1998.P. 16. 7 Idem, p. 20 8 Idem, p. 28

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limitado e parcial de observao. Variar sempre as escalas de anlise nos permite compreender melhor as incoerncias e irracionalidades da sociedade. A pesquisa baseouse na idia de que uma escala no tem privilgio sobre outra e que o seu cotejo o que traz maior benefcio analtico, como escreveu Jacques Revel.9

9

Idem, p. 14

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O Tema

Como no poderia deixar de ser, em se tratando do Brasil, cultura poltica e relaes raciais so temas interligados. O tema da pesquisa a Frente Negra Brasileira , organizao criada em 1931 e extinta em 1937. Formada por intelectuais e militantes negros, possua uma estrutura burocrtica e interesses polticos especficos, sendo identificada como o primeiro m omento do movimento negro no Brasil. A anlise da Frente Negra Brasileira relevante na medida em que, sendo tema muito pouco estudado, possibilita uma contribuio ao conhecimento histrico existente sobre um perodo de mudanas aceleradas na nossa hist ria, alm, evidentemente, de contribuir para uma melhor compreenso da histria do movimento negro no Brasil e das questes raciais, consideravelmente intrnsecas ao cotidiano brasileiro. A contribuio do estudo da Frente Negra transcende o movimento negro e as questes raciais, possibilitando tambm um auxlio valioso na compreenso do governo de Getlio Vargas. Se a relao entre Vargas e os trabalhadores - maior fora do seu governo - baseou-se numa lgica material e numa lgica simblica, e se essa lgica simblica caracterizou-se pela tentativa de representar a identidade coletiva dos trabalhadores, torna -se essencial e extremamente relevante, na tentativa de compreender o governo Vargas, a anlise dessa cultura poltica dos trabalhadores, apropriada pelo Estado varguista. Pensar nessa relao entre Vargas e os trabalhadores do Brasil, ignorando os 350 anos de relaes escravistas e considerando apenas as manifestaes organizadas dos anarquistas, comunistas e socialistas do incio do sculo, fazer tbula rasa do

passado, ignorar as heranas culturais de longa durao, e com isso, a prpria Histria. No podemos entender a cultura poltica predominante entre os trabalhadores da dcada de 1930, ignorando as culturas polticas dos trabalhadores dos quatro sculos anteriores. Ignorar a herana e a influncia do trabalho escravo na formao da classe trabalhadora da dcada de 30 significa acreditar no determinismo do acontecimento, do

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vnementielle, onde bastam a Lei urea e a Revoluo de 30, para o surgimento de uma classe trabalhadora com uma cultura poltica prpria e independente. Na tentativa de compreender a fora e o poder do governo Vargas, o estudo da Frente Negra Brasileira justifica-se na medida que, mesmo influenciada e at mesmo motivada pelas mudanas sociais da dcada de 30, ela representa, em alguma medida, a continuidade das lutas dos antigos trabalhadores negros, marcados pelo recente passado escravista. Mesmo no sendo o nico movimento negro da poca, a FNB diferenciava-se pela arregimentao, e pela tentativa de estruturao orgnica dos quadros com uma liderana burocrtica bem definida e com uma disciplina mais ou menos delimitada,segundo bem observou Florestan Fernandes. 10 Os negros, mais que os outros trabalhadores, possuem uma proximidade maior com o passado escravista, atravs da permanncia do racismo, das desigualdades e da excluso social. Por outro lado, os integrantes da FNB viviam no sculo XX, influenciados por suas idias e envolvidos com as questes da poca. Logo, a FNB reflete tanto as mudanas e os anseios dos trabalhadores do anos 30, como as heranas e anseios dos trabalhadores escravos, por isso um instrumento rico e que muito auxilia na anlise da identidade da classe trabalhadora brasileira. No foi localizado nenhum trabalho de pesquisa especfico sobre a FNB, mas alguns livros e artigos remetem-se a ela. Em praticamente todos esses estudos, revoluo de 30 atribudo um papel fundamental na organizao da FNB, visto que as perspectivas de mudanas sociais contriburam para o processo de conscientizao e incentivaram os negros a se juntarem agitao contra a Primeira Repblica. Em So Paulo, no ano de 1931, um grupo de negros remanescente do Centro Cvico Palmares, associao com carter beneficente e recreativo, funda a Frente Negra Brasileira. O primeiro artigo de seu estatuto sintetiza as suas propostas e revela a sua validade e funcionalidade, como objeto de estudo, na interpretao e convergncia dos anseios e necessidades tanto dos antigos trabalhadores escravos, como dos trabalhadores das primeiras dcadas do sculo:

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Fernandes, Florestan. Significado do protesto negro. So Paulo: Ed. Cortez, 1989. P.73.

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Art.1 - Fica fundada nesta cidade de So Paulo, para se irradiar por todo o Brasil, a Frente Negra Brasileira, unio poltica e social da Gente Negra Nacional, para a afirmao dos direitos histricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para reivindicao de seus direitos sociais e polticos, atuais, na Comunho Brasileira. 11

Mesmo representando um curto perodo, 1931 / 1937, a FNB possui grande significncia. Alm de revelar os conflitos raciais no momento de substituio das teorias de branqueamento e racismo cientfico, pelo mito da democracia racial e a valorizao da raa mestia, surgiu sob a gide da revoluo de 30, revelando as contradies e os conflitos no s dos afro-descentendes, como tambm as ebulies e as lutas dos trabalhadores num momento de reorganizao do Estado Nacional.

11

Estatuto da Frente Negra Brasileira. In: Revista Proposta - Experincias em Educao Popular - A questo tnica e os movimentos sociais. N 51, an o XV, novembro de 1991. ( p/s: os grifos so meus.)

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As Fontes

Carlo Ginzburg discute o surgimento, em fins do sculo XIX, de um no vo paradigma de construo do conhecimento histrico, influenciado pelos mtodos de Morelli, Freud e Arthur Conan Doyle. O mtodo consiste na investigao e observao de pistas e indcios aparentemente considerados irrelevantes, mas que na verdade so formas essenciais de acesso a uma determinada realidade. 12 Segundo esse paradigma, o que aparentemente so considerados detalhes, podem ser sinais reveladores de uma rede de significados sociais e psicolgicos mais profundos, inatingveis por outros mtodos. Em se tratando de heranas culturais e cultura poltica, parece- me adequado que o tratamento dado s minhas fontes de pesquisa se baseie neste mtodo, denominado paradigma conjectural. A questo principal buscar nas fontes no somente o que intencionalmente est sendo revelado, mas sobretudo as revelaes inconscientes. O prprio Ren Remond afirma que toda apreenso do poltico implica uma certa antropologia, e a que atualmente utilizada, peca por um excesso de racionalidade, como se os atores polticos ordenassem suas escolhas segundo um clculo racional de rentabilidade e eficcia. O autor conclui que a incluso de elementos irracionais na tentativa de alcanar uma inteligibilidade mais ampla, que inclui e ultrapassa o racional, uma questo que exige reflexo e muito pode contribuir na compreenso do poltico. 13 O primeiro tipo de fonte analisado so jornais, conservados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. So eles: os exemplares dos jornais A Voz da Raa, peridico oficial da Frente, editados entre 1933 e 1937; os exemplares do jornal Clarim da Alvorada, ligado ao movimento socialista, editados entre 1924-1937, por Jos Correia Leite, o dissidente ligado ao socialismo que abandonou a Frente quando esta passou a apoiar as idias integralistas; os exemplares do jornal A Chibata, tambm publicado por dissidentes da Frente e os exemplares do jornal O Progresso, editado12 13

Ver Ginzburg, Carlos.Mitos, emblemas e sinais. Berstein, Serge e Milza, Pierre (direction). Axes et mthodes de lhistoire politique. Paris: Presses Universitaires de France.

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entre 1929 e 1937. Outra fonte importante a auto-biografia de Jos Correia Leite, intitulada E disse o velho militante, organizada por Luis Silva. O livro consta de depoimentos de Correia Leite sobre a sua trajetria desde a dcada de 20, passando pela sua participao na fundao da FNB e pela sua respectiva sada. 14 A pesquisa nos jornais pretendeu analisar os impasses frentes aos quais se deparavam as lideranas da organizao e as escolhas que fizeram. Evidentemente, nos discursos que produziram e nas atitudes que tomaram se pode identificar os traos de permanncia de elementos de uma cultura poltica antiga, bem como as ocasies em que foi possvel existir rupturas. No caso do jornal A voz da Raa, informativo oficial da FNB, busquei detectar as propostas e o conjunto de idias que norteavam a Frente, assim como sua estrutura interna e a sua estratgia de luta. A pesquisa no jornal Clarim dAlvorada foi dividida em dois momentos. No perodo entre 1924, ano de sua fundao, e 1931, a pesquisa revelou como as lideranas negras vinham se organizando antes da FNB. E na medida que o grupo do Clarim participou da fundao da Frente, sua anlise revelou tambm o que os integrantes do jornal mais importante da imprensa negra da poca, esperavam que fosse a FNB, que tipo de organizao queriam e quais eram as suas esperanas no momento da adeso. No perodo entre 1932 a 1937, os principais integrantes do jornal abandonaram a Frente e passaram a critic- la com veemncia, propondo novas estratgias de luta. Busquei, portanto, nesse perodo, identificar as principais insatisfaes desse grupo diante das propostas da FNB, alm da postura e a trajetria assumida pela Frente, que a impossibilitou de representar o discurso daquelas lideranas negras. No jornal A

Chibata foi adotado o mesmo procedimento do segundo perodo do jornal Clarim dAlvorada, j que esse jornal foi editado por dissidentes da FNB que tambm criticavam a sua atuao. O jornal O Progresso foi escolhido entre tantos outros da imprensa negra, por ter o seu perodo de publicao coincidindo com o perodo de fundao e atuao da FNB. Busquei, atravs dele, investigar como as lideranas negras, que no estavam participando diretamente, se posicionavam diante da FNB.

14

Leite, Jos Correia Leite. ... E disse o velho militante Jos Correia Leite. Organizao e textos de Luiz Silva ( Cuti ). So Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

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O livro E disse o velho militante revela, a partir da anlise do prprio Jos Correia Leite, a sua experincia como integrante da Frente e um dos pioneiros na luta contra a discriminao racial. O autor narra quais eram as suas expectativas ao ajudar a fundar a FNB e quais foram as principais desiluses que levaram sua sada. Para a anlise e compreenso dos discursos apresentados nos jornais da imprensa negra, especificamente no caso do A Voz da Raa e no Clarim dAlvorada, essencial levar em conta, alm da prpria mensagem, a relao entre o locutor, o ouvinte e o contexto em que o discurso foi produzido. O Ouvinte possui um papel decisivo na construo do discurso: ... o locutor tem necessidade de ter garantido um certo nmero de significaes que considera suficientemente aceitas e assimiladas pelos ouvintes, e cujo desconhecimento pode levar o ouvinte a simplesmente recusar o discurso que lhe dirigido, colocando em risco a tentativa de o locutor fazer valer sua inteno.15

H uma finalidade prtica e um carter individualizado no discurso, composto e refletido pela ao do locutor. Entretanto, o fato do discurso ter uma fisionomia individual, no o exime da necessidade de sujeitar-se um quadro de condies de produo. A anlise no se limita a sistematizaes gramaticais. Procurei trabalhar com os textos e as informaes publicadas nos jornais atentando menos para a quantidade e a repetio de determinadas palavras, do que para a forma na qual as palavras se articulam, formando um sistema de significaes. Isto no significa que busquei apenas um nico sentido fundamental, ignorando e negando as ambigidades presentes no texto. Essas ambigidades so levadas em conta, na medida que representam pistas importantes no s para nos revelar a inteno do locutor, como tambm para nos fazer entender a amplitude do alcance e a diversidade dos ouvintes de certos discursos. O contexto, a conjuntura poltica dos anos de 1930, ser ponto fundamental para a compreenso da Frente Negra. Mas buscar-se- constituir a pluralidade dos contextos

15

Debert, Guita Grin.Ideologia e Populismo. So Paulo: Ed. T. A . Queiroz, 1979. P.31

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que so necessrios compreenso dos comportamentos observados.16 De acordo com as variaes das escalas de pesquisa, nos deparamos com inmeras realidades. A cada combinao diferente de situaes particulares, mais concluses e respostas podemos obter.

16

Revel, Jacques. Op. Cit. P. 27.

18

CAPTULO I

A AUSNCIA DO ACASO O contexto poltico, econmico e cultural que determinou o surgimento da Frente Negra Brasileira.

As associaes de negros vinham sendo fundadas desde 1902, todavia, inicialmente, no se propunham arregimentao da raa negra, possuindo um carter mais cultural e beneficente. Essas associaes, mesmo no propondo uma luta poltica organizada, foram de vital importncia para a ressocializao do negro, cultivando o auto-respeito e a solidariedade. Em 1930, o movimento negro adquire um contedo novo. Por mais que j existissem grupos negros e associaes que reivindicavam e denunciavam a situao do negro, foi nesta dcada, mais especificamente com a Frente Negra Brasileira, que as lideranas negras buscam arregimentar uma massa de adeptos, criando estratgias mais eficientes na tentativa de alcanar definitivamente seus objetivos. O que proponho nesse captulo demonstrar que o surgimento da Frente Negra Brasileira, na cidade de So Paulo, e no ano de 1931, no ocorreu por mero acaso, ou seja, no representou um resultado na tural do desenvolvimento e do crescimento do movimento negro brasileiro. Primeiramente, identifico na Revoluo de 1930 o grande incentivo poltico para a organizao e estruturao da Frente Negra Brasileira, na medida que as lideranas negras, motivados pela mudana do regime poltico e pela recomposio das elites brasileiras, integram-se verdadeiramente na luta pela conquista efetiva de oportunidades e garantias sociais legalmente consagradas pelo novo regime, como salientou Florestan

19

Fernandes. 17 Posteriormente busco demonstrar que o surgimento da Frente na cidade de So Paulo ocorreu devido caractersticas muito prprias dessa cidade, que deu um verdadeiro salto em direo industrializao e recebeu uma quantidade incomparvel de imigrantes. Por ltimo, no menos importante, identifico nesse momento - incio da dcada de 1930- um perodo de transio cultural, no que diz respeito s relaes raciais. A chegada de Getlio Vargas ao poder, com uma poltica de valorizao da raa mestia, assim como a publicao de Casa-Grande e Senzala, do socilogo Gilberto Freyre, acabam por eliminar a hegemonia das teorias biolgico-deterministas e do racismo cientfico, que tanto prejudicaram os negros, eliminado sua auto-estima e dificultando a sua conscientizao e organizao.

1.1 - O INCENTIVO POLTICO: A REVOLUO DE 1930.

A Revoluo de 30 representa um dos fatores determinantes na consolidao e no amadurecimento do movimento negro no Brasil. Desde o incio do sculo h associaes de negros, contudo, as mudanas decorrentes da Revoluo de 30 propiciaram s lideranas negras mais ambio e esperana de verdadeira participao poltica. O termo revoluo utilizado aqui de forma pragmtica. No cabe, no contexto desta pesquisa, uma anlise mais prolongada acerca de sua adequao aos eventos de que trata. A questo principal que, como veremos mais adiante, para os integrantes da Frente Negra Brasileira, o movimento de 1930 significou de fato uma revoluo. Alm disso, como afirmou Lincoln de Abreu Penna:

Empregando-se com rigor o conceito de revoluo, evidente que o que aconteceu em 1930 no se enquadra nessa concepo. primeira vista, estaria mais prximo de um golpe de Estado, pelo menos seus cruciais acontecimentos conduzem a esta avaliao. Mas,

17

Fernandes, Florestan. A integrao do negro na sociedade de classes. So Paulo: tica, 1978. Volume I. P. 10 e 11.

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visto no decorrer do tempo, seus desdobramentos induzem a uma reavaliao se a inteno privilegiar o processo histrico. 18

Segundo o autor, a forte presena de grupos oligrquicos no interior da Aliana Liberal, impediu que os fundamentos estruturais da sociedade fossem afetados. Todavia, o movimento de 30 promoveu uma verdadeira revoluo, se formos considerar as futuras relaes entre o Estado e a Sociedade, na medida que elevou, por exemplo, o nvel das aspiraes polticas de parcelas expressivas da populao at ento excludas do processo poltico do Pas.19 Essa citao exemplar, introduz e reflete claramente a importncia de 1930 para a organizao da populao negra, que ser explicitada a seguir. Por sua importnc ia e sua influncia para o incio da estruturao do movimento negro, e mais especificamente da Frente Negra Brasileira, cabe aqui uma breve anlise sobre o que representou a Revoluo de 30 no Brasil. No me proponho a fazer, de forma alguma, um estudo denso, seguido de uma nova interpretao. Mesmo porque, acredito que esse tema j foi suficientemente estudado por vrios autores e partindo de diferentes matrizes tericas. A minha interpretao sobre a Revoluo no se fixa em uma nica pesquisa, assim como no est enclausurada em nenhuma matriz terica ou tendncia historiogrfica. O que entendo hoje sobre o tema, foi construdo a partir da colaborao de vrios trabalhos, que ao meu ver no se contradizem na sua essncia, ao contrrio, se complementam. A Revoluo de 30 foi uma revoluo pelo alto, de acordo com a denominao utilizada por Barrington Moore Jr. 20 Segundo o autor, foram trs as principais vias de transio de uma sociedade pr-capitalista para uma sociedade capitalista. A primeira delas possui como exemplos principalmente a Inglaterra, a Frana e os EUA. Neste caso, a transio para o capitalismo consistiu de assaltos poltico-militares por parte de grupos sociais com base econmica independente. Um segundo caso teria como principais exemplos a China e a URSS, e se caracterizaria pela ausncia de um processo18

Penna, Lincoln Abreu. Uma Histria da Repblica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. P. 162. 19 dem. P. 183. 20 Moore, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. So Paulo: Martins Fontes, 1983.

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de modernizao, que por sua vez acabava por abrir espaos para uma interveno das massas camponesas. O terceiro caso seria a denominada revoluo pelo alto ou via prussiana, na qual as lideranas agrrias tradicionais lideravam o processo de modernizao preservando suas formas autoritrias de controle social. Os principais exemplos identificados pelo autor foram a Alemanha e o Japo. Lus Werneck Vianna tambm utiliza-se da anlise de Barrington Moore e afirma que o capitalismo no Brasil, porque no hegemnico, no pode se sustentar na sua forma pluralista e ortodoxa liberal. 21 A acumulao capitalista brasileira baseou-se na recriao de relaes de trabalho no-capitalistas, uma vez que a agroexportao continuava a desempenhar papel-chave na gerao de divisas, necessrias importao e ao investimento necessrio para a industrializao. Segundo o autor, o Brasil seguiu a via prussiana porque a burguesia industrial no foi capaz de estabelecer sua hegemonia sobre a sociedade civil. Vale ressaltar que embora a elite industrial brasileira no fosse hegemnica no processo inaugurado em 1930, ela seria a principal beneficiria das mudanas polticas e econmicas que se processaram, sendo contudo, indispensvel o apoio do Estado. Se nos anos 1920 o empresariado insistia na manuteno dos postulados liberais, recusando as legislaes do mercado de trabalho, ao final, se convenceriam que apenas um Estado no- liberal e coorporativo seria capaz de assegurar o processo de acumulao capitalista. Na opinio de Werneck Vianna, no perodo de 1891-1919 h no Brasil um momento de ortodoxia liberal, que impede a interferncia do Estado na economia. J no perodo entre 1919-1930 o governo se obriga a legislar sobre as relaes de trabalho devido ao reivindicatria dos movimentos operrios. A burguesia industrial vai resistir ao mximo s tentativas de legislar sobre o mercado de trabalho. Foram as aes dos operrios as responsveis pela ruptura do liberalismo ortodoxo e pela burguesia ter cedido na construo do Estado coorporativo. Quem vai promover a transio para uma sociedade moderna a elite agrria, que at se prope a normatizar as relaes de trabalho, em resposta s reivindicaes operrias, mas principalmente buscando aumentar suas bases sociais, mesmo porque, os trabalhadores rurais no seriam beneficiados por essas legislaes.21

Vianna, Lus Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978.

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Assim como afirmou Snia Regina Mendona, a construo do capitalismo no Brasil esteve diretamente igada ao do Estado. 22 Estado, nesse caso, significa as l tradicionais elites agrrias, que propem uma modernizao extremamente controlada, objetivando resguardar suas formas autoritrias de controle social, preservando o carter conservador do sistema poltico. Durante a Primeira Repblica, de 1891 a 1930, o poder estava nas mos das oligarquias rurais ligadas ao setor agro-exportador. Este primeiro momento republicano ficou marcado pela no participao popular nos pleitos eleitorais, pelas fraudes e por uma poltica de compromissos entre o poder local e os governos estadual e federal. A legitimao do poder poltico, agora referendada pelo voto, exaltava a importncia dos lderes locais, na medida que estes influenciavam diretamente o eleitorado rural. A influncia que os coronis exerciam sobre o eleitorado rural compreensvel. Vivendo em condies miserveis, os trabalhadores rurais dependiam dos favores dos coronis para tudo: alimentao, sade, moradia, trabalho... Segundo Victor Nunes Leal, perfeitamente compreensvel que o eleitor da roa obedea insistente orientao do coronel em votar em determinado candidato, afinal, alm de lhe ser concedido algum benefcio, o ato de votar lhe era completamente indiferente.23

A essncia do coronelismo parte, portanto, do total apoio - por parte dos coronis aos candidatos oficiais nas eleies estaduais e federal. Em contrapartida, os governos estaduais e federal concedem carta-branca, ou seja, autonomia extra- legal, aos chefeslocais em todos os assuntos relativos ao municpio. A liderana e prestgio de um coronel baseava-se nos benefcios que ele trazia para sua comuna. Segundo Victor Nunes Leal, o coronelismo muito mais produto da decadncia do que do vigor dos senhores rurais, porque na dependncia da legitimao de seu poder ante esferas superiores que o poder do coronel se recria. Foi principalmente a fraqueza financeira dos municpios, que os tornavam to dependentes de compromissos com os governos estaduais e federal. A debilidade dos fazendeiros s aparentava fora em contraste com a massa de miserveis que vivia sob suas asas.

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Mendona, Snia Regina. Estado e Economia no Brasil: opes de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 23 Leal, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. So Paulo: Alfa-mega, 1975.

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Assim como Victor Nunes Leal define o coronelismo como uma poltica de compromissos, Francisco Weffort, a partir dos textos de Gramsci, utilizou a expresso Estado de compromisso para definir o Estado brasileiro do ps-30. 24 O Estado de compromisso seria a resultante de uma conjuntura onde nenhum setor de classe obtinha condies de construir sua hegemonia, em decorrncia da crise cafeeira, da fraqueza dos demais setores e da dependncia da classe mdia em relao aos interesses tradicionais. Francisco Weffort, assim como Werneck Vianna, conclui que no havia nenhum setor de classe capaz de impor sua hegemonia no contexto de 1930. H vrias foras em jogo, e todas dependem umas das outras para permanecerem no controle poltico. Um outro historiador, Boris Fausto, embora no concorde com a interpretao que identifica na Revoluo de 30 a ascenso ao poder da burguesia industrial, como afirma Werneck Vianna, ou a ascenso ao poder da classe mdia, como concluiu Virglio Santa Rosa, tambm utiliza-se da expresso Estado de compromisso ao definir o momento ps-30.25 Para Boris Fausto, a tentativa de vincular episdios revolucionrios ascenso de uma cla sse, deriva de uma leitura simplista da histria do ocidente europeu e de uma historiografia vinculada principalmente ao marxismo. Todavia, conclui que o Estado de compromisso vivido no ps-30 foi uma resposta para o vazio de poder que se instaurou aps a Revoluo, devido decadncia poltica da burguesia do caf e da incapacidade de outros setores de assumir o poder de modo exclusivo. Embora utilizando-se de matrizes tericas diferentes, os autores concordam que no havia hegemonia de nenhum setor de classe no ps-30. O Estado brasileiro passou a se organizar a partir de uma recomposio das elites polticas, tendo como caracterstica o precrio equilbrio entre as foras sobre as quais se fundara, movendo-se numa difcil margem de compromissos. A nova recomposio das elites polticas, desencadeada pelo fim da hegemonia do setor agro-exportador cafeeiro, assim como a nova redefinio do papel do Estado, funcionaram como estmulo e esperana para as lideranas negras. Todavia, no podemos ignorar como determinante nesse processo de transformaes, a maior conscientizao e participao poltica das classes trabalhadoras. Como afirmou Werneck Vianna, no incio do sculo XX, h uma forte ao reivindicatria dos operrios em busca de direitos24 25

Ver, Weffort, Francisco. Classes populares e poltica. Tese de Doutoramento , SP, 1968. Fausto, Boris. A Revoluo de 1930: historiografia e histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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sociais e melhoria da qualidade de vida. De acordo com ngela de Castro Gomes, no perodo de 1891-1934, a palavra est com as lideranas trabalhadoras e so elas que colocam suas demandas publicamente. 26 Anarquistas, comunistas e cooperativistas comeam a criar uma identidade para os trabalhadores, e, embora com propostas distintas, possuem algumas concepes semelhantes do que diz respeito valorizao do trabalhador. Segundo a autora, a Constituio de 1934 constitui um marco no tipo de competio que vinha sendo travada entre diferentes propostas de participao poltica, sendo o perodo de 1931-1933, um momento de franca disputa fsica e ideolgica pela liderana do movimento operrio organizado, caracterizado pela existncia paralela de um sindicalismo oficial e um sindicalismo independente. O maior debate e conscientizao dos trabalhadores acabaram por influenciar as lideranas negras a se unirem, na tentativa de reverter o estado de pauperizao vivido pelos negros. A palavra estava com as lideranas trabalhadoras, eis aqui um fio de meada que levou Edgar De Deca a tentar elaborar um contra-discurso acerca dos eventos da poca, procurando mostrar como a memria do que se convencionou chamar de a revoluo de 1930, elaborada a posteriori pelos vencedores, cumpre o papel de ocultar a luta de classes do perodo. Buscando dar voz aos vencidos, De Deca prope uma periodizao distinta da tradicional, enfatizando o ano de 1928, considerando alternativas polticas possveis, poca, mas que foram derrotadas no contexto das lutas de classes de ento. 27 De todo modo, o que cumpre ressaltar que o incio da participao poltica, institucional, do movimento negro, ocorreu num contexto histrico bem especfico, onde vrios fatores influenciaram na sua organizao. A abolio, o fim da primeira Guerra, a imigrao e os movimentos sociais da dcada de 20 foram determinantes nesse processo. Entretanto, foi o extremo estado de desemprego e misria, agravados com a crise de 29, assim como as mudanas polticas desencadeadas com a revoluo de 30, os fatores essenciais nesse processo. Os anos 30 foram marcados por uma considervel mudana na poltica brasileira e pela insero de Getlio Vargas no cenrio poltico nacional. As reflexes sobre o governo Vargas, ainda hoje, so consideravelmente influenciadas pelas pesquisas que o

26 27

Gomes, ngela de Castro. A Inveno do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994. De Deca, Edgar Salvadori. O Silncio dos Vencidos . So Paulo, Brasiliense, 1981.

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identificam, estritamente, como um governo do tipo populista. (De acordo com esta interpretao, no fosse pela permanncia das elites latifundirias, o governo Vargas representaria uma ruptura total com o passado). A utilizao do conceito populismo para compreender o perodo Vargas no utilizado apenas por historiadores brasileiros. Eric Hobsbawn o caracteriza como populista-nacionalista28 . Grosso modo, esta definio descreve um Estado centralizador e intervencionista, representado por um lder carismtico, que apresenta-se como salvador; um governo nacionalista, empenhado no desenvolvimento nacional e na industrializao, supostamente em luta contra as elites oligrquicas, em benefcio dos trabalhadores, recorrendo com freqncia propaganda doutrinria e represso poltica. Esse conceito, no entanto, no suficiente para explicar a influncia e a permanncia de Vargas no poder. Parece inquestionvel, contudo, a idia que identifica a poltica trabalhista como o maior sustentculo do governo Vargas. No entanto, o longo alcance desta poltica no deve ser entendido apenas por uma lgica material, representada pela implantao do salrio mnimo e da legislao do trabalho de uma forma geral. Para compreender o que de fato representou Vargas para a histria do Brasil, necessrio introduzir a lgica simblica intrnseca ao projeto, representada pela criao da imagem de Vargas como pai dos pobres e doador da legislao trabalhista 29 . O Estado varguista busca, nos prprios discursos dos trabalhadores da dcada de 20, elementos essenciais na construo de sua auto-imagem, intencionando representar a prpria identidade coletiva da classe trabalhadora. A denominada Segunda Abolio, ou seja, a luta pela verdadeira libertao e integrao do negro, enquadra-se no contexto de inquietaes e esperanas polticas que culminaram com a Revoluo de 30. A revoluo possui um papel fundamental na organizao da FNB, visto que as perspectivas de mudanas sociais contriburam para o processo de conscientizao e incentivaram as lideranas negras a se juntarem agitao contra a Primeira Repblica.

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Hobsbawn, Eric. Era do Extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. P.7. 29 Ver Gomes, ngela de Castro. A Inveno do Trabalhismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994.

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Segundo Andrews, os negros se encontravam profundamente excludos da sociedade. 30 A Repblica-Velha, alm de representar os interesses das oligarquias latifundirias, limitando a participao poltica e ignorando os interesses e as necessidades dos recm- libertos, havia incorporado as doutrinas do racismo cientfico e da teoria de branqueamento. A Revoluo de 30 representava, portanto, no apenas o fim da Repblica Velha, mas, sobretudo, a possibilidade de participao poltica; e a prpria expanso inicial da FNB pode ser explicada pelo ... sentimento generalizado entre os negros sobre as novas oportunid ades de participao poltica criadas pela mudana do regime. 31 Nas palavras de um participante dos encontros da poca:

(...) o negro queria participar, pois se sentia como o maior beneficiado daquela revoluo. Apeados do poder foram os escravocratas, os homens que sempre espezinhavam os negros. Ento era a hora de o negro participar. 32

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Andrews, George Reid. O protesto poltico negro em So Paulo 1888-1988. In: Cadernos Cndido Mendes n21. Centro de estudos Afro-Asiticos, dezembro de 1991 31 Idem. P. 32 32 Movimento de arregimentao da raa negra no Brasil. Dirio de So Paulo, 17 de setembro de 1931, p.5; Depoimentos. Cadernos Brasileiros, n 47 ( 1968), p. 21. In: Andrews, Geroge Reid, op.cit. p. 33

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1.2 - O INCENTIVO ECONMICO: A PAUPERIZAO DO NEGRO NA CIDADE DE SO PAULO.

Um outro fator foi decisivo na organizao e estruturao do movimento negro: o total estado de desamparo vivido pela populao negra no perodo ps-abolicionista. Ao contrrio do que as teorias racistas afirmavam, a dificuldade dos negros de ascenderem socialmente, no eram decorrncia de nenhuma herana gentica e hereditria, nenhum vcio da raa, mas sim efeito de um completo estado de abandono e descaso. Nas palavras de Jos Correia Leite:

Sempre bom reprisar o bvio sobre a questo do negro ter sado da noite escura de trs sculos de escravido e cado na marginalidade. Depois daqueles horrores todos, houve o desamparo, nenhum apoio. Ns estvamos prximos de 88 nos anos 20. Eram trinta e poucos anos. Dava a impresso que a gente estava ainda com a sombra da senzala na frente. O negro - como at hoje continua sendo era um elemento desamparado, no tinha retaguarda. Era vtima de tudo quanto era injustia.33

Na opinio de Florestan Fernandes, toda essa situao de desamparo, abandono e pauperizao do negro foi mais aguada na cidade de So Paulo, exatamente o local de organizao da Frente Negra. Corroboro com essa opinio e acredito que a Frente no surgiu em So Paulo por mero acaso. O peculiar desenvolvimento econmico paulista influenciou diretamente a organizao no s da Frente, mas de vrias outras associaes e clubes ligados aos negros. O cativeiro e a falta de assistncia e interesse, por parte da elite brasileira, sobre as condies sociais dos negros, eram os principais responsveis pela pssima situao dos ex-escravos e seus descendentes. Aps a abolio os negros no tinham onde morar. A33

Leite, Jos Correia Leite. ... E disse o velho militante Jos Correia Leite. Organizao e textos de Luiz Silva ( Cuti ). So Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. P. 81.

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dificuldade de conseguir trabalho estvel e bem remunerado, os levou para a rua ou para os cortios. Viviam em pssimas condies, faltava o mnimo de higiene. Pequenos espaos eram compartilhados por vrias pessoas que se alimentavam, na maioria das vezes, de restos trazidos da rua ou do trabalho. Segundo Florestan Fernandes, faltavam uma estrutura familiar e sentimentos de solidariedade e responsabilidade entre os negros. As crianas ficavam sozinhas enquanto as mes estavam trabalhando ou se prostituindo. Devido ao subemprego dos pais, as crianas ingressavam no mercado de trabalho precocemente, tambm de forma instvel, mal remunerada e muito pouco valorizada, criando um novo ciclo vicioso: Ir escola exigia uma vida organizada e disponibilidade de recursos. Raramente as duas condies se apresentavam em conexo.34 A pssima qualidade de vida e a ausncia de formas de lazer, direcionava-os para o alcoolismo e o sexo desregrado. A carncia de espao nos cortios, fazia com que as relaes sexuais fossem realizadas na frente de outras pessoas, inclusive crianas. Era atravs do sexo que os homens e mulheres negras se igualavam aos outros ( ou acreditavam que ...). Essa postura diante do sexo, assim como a ausncia da estrutura familiar e de laos de solidariedade, podem ser remetidas, na opinio de Florestan Fernandes, ao passado escravista. O agravamento da vida social desorganizada, a dificuldade de manter o emprego, a desiluso e desesperana, fizeram com que os negros deixassem de acreditar em sua capacidade e possibilidade de inverter essa situao. Interiorizaram uma aceitao fatalista do presente, no s no buscando solues, como principalmente agravando-as, desqualificando totalmente as suas vidas, caminhando para os vcios como o alcoolismo e a prostituio, assim como para a criminalidade. O que muitos denominavam de vcios da raa no eram inatos, e sim um reflexo, uma reao contra o abandono social.

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Fernandes, Florestan.

A Integrao do Negro na sociedade de classes. So Paulo: tica,

1978. Volume I. P. 219. (Jos Correia leite foi um caso exemplar, impossibilitado de freqentar o grupo escolar devido ausncia dos pais.)

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Se a bebida, o jogo e as maquinaes criminosas ganharam certo relevo, aqui e ali, isso no deve ser atribudo a uma predisposio incoercvel, criada pela natureza do negro em situao grupal. Porm, a circunstncias econmicas, sociais e culturais bem conhecidas, que barravam o caminho para outras modalidades de ocupao construtiva do cio ou de utilizao das aptides do trabalho. 35 Por isso, no de se estranhar que muitos preferissem trilhar outro caminho, para no ser otrio, no bancar o trouxa ou no vender o sangue como escravo. O vagabundo, o ladro e a prostituta enfrentavam riscos bem menores e construam um destino comparativamente melhor. Em certo sentido, s eles conseguiam xito e podiam ostentar as marcas dos seus triunfos no gnero de vida que levavam, na roupa que vestiam e no fascnio que acabavam exercendo na imaginao dos outros. 36 A pauperizao do negro e do mulato na cidade de So Paulo possui traos especficos. Ela decorre da degradao que ambos sofreram com a perda do monoplio de certos servios e sua excluso concomitante, s corrigida incidentalmente, do sistema emergente de relaes de produo. Trata-se, em suma, de uma pobreza associada quer privao, em larga escala, de fontes regulares de ganho e de sustentao, quer adaptao inevitvel a ocupaes flutuantes, descontnuas e infimamente retribudas. 37

Estas transcries bem revelam a opinio de Florestan Fernandes. So Paulo foi a nica cidade brasileira que deu um verdadeiro salto na consolidao da ordem social competitiva. C om a crise do escravismo, no final do sculo XIX, e com o rpido crescimento econmico proporcionado pela grande indstria cafeeira, passa a predominar, na cidade, relaes capitalistas de produo. O surto urbano coincide com a imigrao, e ambos so prod utos da expanso econmica interna

desencadeada pelo caf. So Paulo importa mo-de-obra em propores incomparveis com qualquer outra regio do pas, desalojando os negros recm- libertos, das oportunidades de trabalho urbano:35 36

Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 166. Idem. Op. Cit. P. 145. 37 Ibdem. P. 223.

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... a presena do imigrante operou como um fator indireto de desalojamento do negro ou do mulato do sistema de produo , portanto, de perpetuao indefinida do estado de anomia, responsvel pelos ndices negativos de crescimento vegetativo da populao negra.38

A nova ordem social, somada grande entrada de imigrantes, dificultou muito a integrao do negro na sociedade. Durante a escravido, apesar de toda a crueldade do regime, os negros tinham moradia e alimentao. Com a abolio, realizada no Brasil sem nenhum tipo de assistncia, os ex-escravos tornaram-se desamparados e muitas vezes, despreparados para esse novo mundo do trabalho. O elevado ndice de imigrantes proporcionou uma alta concentrao demogrfica, acirrando ainda mais essa nova ordem social competitiva. Como escreveu Fernandes:

Esta situao, agravou, ao invs de corrigir, a excluso social vivida e transplantada do cativeiro. (...) As condies de anomia social no s preservaram o nvel de pobreza inicial da populao negra paulistana. Agravaram-na, continuamente, de vrias maneiras, convertendo o pauperismo numa constante do estilo de vida do negro na cidade e a pauperizao no processo de seu ajustamento normal ao mundo urbano. 39

A dificuldade de integrao na nova ordem deveu-se, principalmente, s barreiras impostas aos negros e mulatos nas suas tentativas de tornarem-se operrios. Essa dificuldade possui causas e consequncias determinantes para a vida do negro. Segundo Florestan, a falta de preparo tcnico, a valorizao do trabalhador estrangeiro e o prprio retraimento dos negros, foram as principais causas. As consequncias diretas e imediatas dessa situao, dificultou e retardou a integrao do negro no mercado de trabalho formal e estvel. 40 No comrcio, dificilmente empregavam-se negros. Nas fbricas, os negros s38 39

Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 132. Idem. P. 99 e 100. 40 Cabe aqui uma ressalva. Havia excees. H estudos sobre a escravido no Brasil que apontam para a existncia de grande quantidade de ex -escravos, negros livres, antes da

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faziam servios rejeitados pelos imigrantes, os mais mal pagos e que exigiam pouca ou nenhuma especializao. As mulheres negras eram, via de regra, domsticas e os homens, seguranas e capangas. Enfim, havia um crculo vicioso que prendia o negro aos servios instveis e pouco valorizados, impedindo ou dificultando muito, a sua transio para um novo status social, um novo lugar na sociedade urbana paulista. Continua Florestan Fernandes:

( essa perspectiva) ... que o mantinha eternamente preso aos servios de negro, que consumiam o fsico e a moral do agente de trabalho, dando-lhe em troca parca compensao material e uma existncia to penosa quanto incerta. 41 ... a impossibilidade de ganhar a vida de maneira segura, compensadora e constante, atravs de ocupaes conspicuamente urbanas, est na prpria raiz de todos os males que se abateram sobre a populao de cor da cidade de So Paulo. 42

Enfim, a situao scio -econmica dos negros acabava por reforar o racismo, servindo de justificativas para as teorias racistas. As teorias racistas, por sua vez, reforavam e escondiam as desigualdades, eximindo a elite dominante de qualquer culpa ou responsabilidade. A enorme dificuldade econmica sofrida pela populao negr a durante o perodo ps-abolicionista, especificamente em So Paulo, foi consideravelmente agravada pela crise de 1929, que gerou mais desemprego, fome e misria. A dificuldade de sobrevivncia motivou-a a lutar na tentativa de reverter, ou pelos menos de minimizar o estado de pobreza e misria vivido por eles.

abolio. A maior mobilidade social e facilidade em conseguir carta de alforria, em comparao com os EUA, fez com que muitos negros j estivessem habituados e inseridos no mundo urbano do trabalho. Sobre a mobilidade social dos negros ver Luna, Francisco Vidal e Costa, Iraci Del Nero. Minas Colonial: economia e sociedade. So Paulo: FIPE e Pioneira, 1982; e Bairickman, Bert. As cores do escravismo: escravistas pretos, pardos e cabras no Recncavo Baiano, 1835. In: Populao e Famlia. N2, 1999. Acerca do trabalho urbano da populao negra, ver Nogueira, Marilene Rosa. Negro na Rua: a nova face da escravido. So Paulo: Hucitec, 1988. 41 Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 145. 42 Idem. P. 141.

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1.3 - O INCENTIVO CULTURAL: A SUBSTITUIO DA TEORIAS RACISTAS CIENTFICAS .

O estudo da Frente Negra Brasileira transcende a anlise do movimento negro nos anos 30. A sua pesquisa e anlise exige um retorno ao final do sculo XIX, s teorias racistas travestidas de cientficas e s pssimas condies de sobrevivncia sofridas pelos ex-escravos e seus descendentes diretos. 43 A segunda metade do sculo XIX, mais especificamente a dcada de 1870, representou um momento crucial, no que diz respeito ao problema das relaes raciais no Brasil. Durante esse perodo, alm da desestruturao do regime escravocrata brasileiro, instaurado no Brasil desde o incio do sculo XVI, iniciam-se as discusses s obre a adoo de um novo regime poltico. Paralelo isso, temos o amadurecimento e fortalecimento de centros de estudos nacionais, que buscam diante de todas essas transformaes, pensar e analisar projetos para uma nova nao que estava por comear. A guerra do Paraguai, o fim da escravido e o republicanismo fizeram da segunda metade do sculo XIX um momento de inovao. A elite intelectual tentava criar um esboo de uma nova nao que, ao mesmo tempo em que buscava se libertar de certas amarras do43

Alguns autores utilizam o te rmo racialista para definir o campo ideolgico e/ou terico em que o conceito de raa reconhecido e tem vigncia. No h, todavia, um consenso em torno de uma nica definio conceitual do racialismo. Antnio S. A . Guimares, por exemplo, baseia-se em Kwame Anthony Appiah, que define racialismo como uma doutrina segundo a qual h caractersticas hereditrias, partilhadas por membros de nossa espcie, que nos permitem dividila num pequeno nmero de raas, de tal modo que todos os membros de uma raa partilhem entre si certos traos e tendncias que no so partilhados com membros de nenhuma outra raa. Esses traos e tendncias caractersticos de uma raa constituem, na perspectiva racialista, uma espcie de essncia racial; (essa essncia) ultrapassa as caractersticas morfolgicas visveis cor da pelo, tipo de cabelo, feies faciais com base nas quais fazemos nossas classificaes formais. Guimares, no entanto, chama ateno para dois aspectos e prope algumas consideraes sobre a definio elaborada por Appiah. Primeiramente, segundo o autor, preciso ficar claro que essa essncia racial no possui caractersticas absolutas, ao contrrio, representa valores morais, intelectuais e culturais. Paralelo a isso, preciso reconhecer tambm que a forma de transmisso dessa essncia muito variada, muito mais dependente do contexto histrico e social do que do sangue propriamente dito. Teorias racialistas no so sinnimos, necessariamente, de teorias racistas. No entanto, toda teoria racista possui como condio bsica, ser racialista. Cf. Guimares, A . S. A . Racismo e Anti Racismo no Brasil. So Paulo: Ed 34, 1999. P. 27-8.

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Imprio, no possua ainda um novo projeto poltico claro. A mudana era inevitvel e algumas vezes at mesmo desejada. Todavia, a conservao da secular hierarquia e excluso social parece ter sido a motivao principal, assim como nos revela Lilia Schwarcz: Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravido, e pela realizao de um novo projeto poltico para o pas, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo terico vivel na justificao do complicado jogo de interesses que se montava. Para alm dos problemas mais prementes relativos substituio da mo-de-obra ou mesmo conservao de uma hierarquia social bastante rgida, parecia ser preciso estabelecer critrios diferenciados de cidadania. nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicaes negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenas sociais. 44

Os discursos evolucionistas e deterministas penetram no Brasil como argumento para explicar e justificar as diferenas internas. Buscando a conservao dessa hierarquia social, os intelectuais brasileiro, os Homens da Sciencia, passam a importar as teorias cientificistas da Europa Ocidental, se auto-representando como essenciais e fundamentais para as solues e o destino do pas. A supervalorizao das cincias naturais, tendo na biologia o grande modelo de anlise, no foi feita de forma aleatria. Ao contrrio, buscavam-se em teorias claramente excludentes, leituras e usos paralelos e at mesmo complementares, recriando novas teorias adaptadas para o caso brasileiro. O Brasil era um pas novo, desejava se apresentar internacionalmente como uma sociedade cientfica e moderna. Todavia, para muitos cientistas europeus, o Brasil era o exemplo de uma nao degenerada de raas mistas condenadas ao fracasso. Por isso mesmo, a escolha e interpretao das teorias feita pelos intelectuais brasileiros foi sui generis. Utilizava -se o darwinismo social e sua suposta diferena e hierarquia natural entre as raas, sem, contudo, problematizar a questo da miscigenao. Paralelo isso, buscava-se no

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Schwarcz, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. P.18

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evolucionismo social a noo de permanente evoluo e aperfeioamento das raas humanas. Muitos foram os intelectuais brasileiros que pensaram a questo racial no Brasil inspirados no cientificismo europeu. Silvio Romero, assim como os principais autores da poca, baseou-se em pesquisadores de linha evolucionista, que buscavam explicar a histria humana atravs de critrios fsicos e biolgicos, como o meio e a raa. Segundo Romero, a histria do Brasil no deve ser entendida como a histria dos portugueses, ou dos ndios, ou dos negros. A histria do Brasil passa pela histria de um novo tipo, o mestio, que no somente resulta da interseo entre os portugueses, ndios e negros, como tambm tem influncia, nesse novo tipo, o meio fsico e a imitao estrangeira. A ideologia do cientificismo, suas investigaes e concluses, desencadearam uma ideologia pessimista no que diz respeito ao futuro do Brasil. Slvio Romero foi um dos representantes desse rompimento com a anterior interpretao otimista nacionalista. Para Romero, os fatores determinantes do atraso brasileiro seriam primrios ou naturais, secundrios ou tnicos e tercirios ou morais. No que diz respeito aos primrios ou naturais, os principais problemas se concentrariam no calor excessivo e nas secas, em determinadas regies, e nas chuvas excessivas e ausncia de vias fluviais, em outras. Os secundrios referem-se, principalmente, incapacidade das trs raas que formaram o Brasil. J os tercirios dizem respeito aos fatores histricos como poltica, legislao e costumes, que inicialmente eram efeitos, mas que j se transformaram em causas. Por acreditar na incapacidade das trs raas que formaram o Brasil, Silvio Romero insiste no branqueamento da populao atravs da imigrao constante, at porque acredita que a miscigenao transcende o sangue, e atinge tambm as idias. Outro importante autor foi Nina Rodrigues, que, assim como a maioria dos intelectuais da poca, possua, indiscutivelmente, uma concepo racista em relao ao negro e ao ndio. Sua originalidade e importncia residem no seu interesse real em pesquisar as populaes negras trazidas para o Brasil, assim como os vestgios e a recriao de certas heranas culturais, como a lngua e a religio. Dante Moreira Leite chega a afirmar que embora Nina Rodrigues ... sustentasse uma teoria cientificamente inaceitvel, parece ter andado perto de uma concepo cultural do negro.4545

Leite, Dante Moreira. O Carter Nacional Brasileiro. So Paulo: Pioneira, 1983. P. 236

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Uma outra peculiaridade de Nina Rodrigues reside num certo paternalismo em relao s raas inferiores. Defendeu a tese de que, tendo as raas inferiores uma mentalidade infantil, no deveriam ser to responsveis quanto as raas superiores, ou seja, no poderiam ter o mesmo tratamento no Cdigo Penal. Contudo, apesar desse racismo paternalista, sempre afirmou que a presena da raa negra no Brasil, sempre iria constituir um dos fatores de nossa inferioridade como povo. Qualquer qualidade atribuda a um negro, ou mestio, derivava de alguma descendncia branca. O autor aceitava integralmente o evolucionismo do sculo XIX, e, na comparao com os EUA, afirmava que o desenvolvimento daquele pas somente foi possvel devido enorme presena de brancos e rgida separao entre brancos e negros; j no Brasil, o atraso e as ms qualidades do povo deviam-se menor presena de brancos puros, miscigenao e ao clima tropical, que favoreciam os negros e os mestios. Ao contrrio de Nina Rodrigues, as obras de Oliveira Viana eram muito criticadas no que diz respeito s qualidades ou virtudes cientficas, mesmo para os padres da poca. Muitos o criticaram, entre eles, Nelson Werneck Sodr, afirmando que sua obra revelava a falsidade irremedivel dos seus mtodos, a falta de um mnimo de informao, bem como suas tolices e sua fidelidade ideolgica aristocracia brasileira 46. E Dante Moreira Leite acrescentou: O que nele parece teoria imaginao gratuita, grosseira deformao de fatos e teorias alheias. 47 Na opinio de Leite, no que diz respeito ao seu compromisso com a aristocracia e a sua teoria sobre o arianismo, Oliveira Viana buscava identificar-se com o grupo dominante, na medida que era mulato escuro. Viana afirmava que o Brasil entrou numa fase de desorganizao profunda e geral aps a abolio, visto que todas as diretrizes de nossa evoluo coletiva, foram completamente quebradas e desviadas. Para ele, quando os negros se mantinham na disciplina rgida da senzala, conservavam costumes de moralidade e sociabilidade da raa sup erior, e quando foram entregues sua prpria direo, degeneram-se. Por outro lado, faz uma distino entre mulatos superiores e mulatos inferiores. Os superiores estariam mais prximos dos arianos, pelo carter e pela inteligncia, suscetveis mesmo de arianizao e capazes de auxiliar os brancos no

46 47

Apud. Leite, Dante Moreira. Op. Cit. P. 242. Idem. P.242

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processo de organizao e civilizao do pas, deslocando-se para a aristocracia. Os mestios inferiores, por outro lado, conservavam as qualidades da raa inferior. Na opinio de Dante Moreira Leite, poucos brasileiros escreveram palavras to cruis e injustas a respeito dos negros, demonstrando a crueldade do domnio de um grupo por outro e a hierarquizao da sociedade de acordo com as raas. Segundo Viana, o mvel de ao do comportamento sempre psicolgico e as caractersticas psicolgicas resultam das raas. Acredita numa arianizao progressiva, na medida que a imigrao ariana faz com que as raas inferiores sejam absorvidas, alm da maior mortalidade de negros e mestios. Chega mesmo a afirmar que a abolio retardou a eliminao do africano, visto que, mantido em cativeiro, teria desaparecido mais rapidamente, devido espantosa mortalidade e baixa natalidade. Arthur Ramos reconhece as qualidades da obra de Nina Rodrigues, mas no a repete simplesmente, renova os seus mtodos e as suas teorias, sendo o grande divulgador do novo conceito de cultura. No absorve a doutrina de superioridade racial e denuncia os sofrimentos vividos pelos negros brasileiros. O fato de no ser um adepto da doutrina de sup erioridade racial no significa que ele no era preconceituoso, pois apesar do negro no ser visto como uma raa inferior, era possuidor de uma cultura inferior, da qual deveria se libertar. A concepo

evolucionista permanecia. Sua teoria baseava-se em dois modelos de pensamento: o lgico, do civilizado; e o pr- logico, do primitivo. Se Nina Rodrigues fala de raa, Arthur Ramos fala de cultura, mas ambos concluem que o negro, por ser negro, ainda no pode acompanhar a civilizao e dificulta o branco brasileiro a sair do primitivismo. A questo que a influncia negra, seja ela racial ou cultural, foi um dos fatores do atraso da cultura branca brasileira. Dante Moreira Leite corrobora com a opinio de Nelson Werneck Sodr, na qual as teorias raciais aqui empregadas seriam reflexo das doutrinas empregadas pelos idelogos do movimento imperialista europeu. 48 Alm disso, na opinio de Thomas Skidmore, a interpretao dessas teorias no foram feitas de forma coerente e satisfatria. Segundo o autor:

48

Ver Sodr, Nelson Werneck. Histria da literatura brasileira. 1938

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Os brasileiros liam tais autores, de regra sem nenhum esprito crtico. E ficavam profundamente apreensivos. Caudatrios, na sua cultura, imitativos, no pensamento e cnscios disso - os brasileiros de meado do sculo XIX, como outros tantos latinoamericanos, estavam mal preparados para discutir as ltimas doutrinas sociais da Europa. 49

Dante Moreira Leite, Sodr e Skidmore compartilham a idia de que a utilizao de tais teorias racistas e deterministas se deveu muito mais s influncias externas que propriamente s demandas nacionais. Particularmente, concordo mais com a tese de Lilia Schwarcz, segundo a qual os intelectuais brasileiros no absorveram de forma grosseira e aleatria as teses europias. Ao contrrio, utilizaram-se delas de forma original, sabendo extrair o que melhor lhes convinha, na tentativa de recriar a hierarquia social e de responder s questes que se colocavam no contexto da abolio da escravatura. Nas palavras da autora:

O desafio de entender a vigncia e absoro das teorias raciais no Brasil no est, portanto, em procurar o uso ingnuo do modelo de fora e enquanto tal desconsider-lo. Mais interessante refletir sobre a originalidade do pensamento racial brasileiro que, em seu esforo de adaptao, atualizou o que combinava e descartou o que de certa forma era problemtico para a construo de um argumento racial para o pas 50

A autora afirma que as teorias racistas foram apropriadas tardiamente no Brasil, mas o consumo dessas teses foi feito de forma proposital, estratgica mesmo, buscando responder questes nacionais. Se essas teorias fossem mero reflexo do imperialismo europeu, carentes de uma interpretao prpria e de uma insero no contexto nacional, no teriam obtido tanta influncia e no teriam sido to absorvidas e aceitas como foram. As suas influncias e o poder exercido por elas foi enorme. O racismo cientfico no foi49

Skidmore, Thomas E. Preto no Branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. P.13 50 Schwarcz, Lilia M. Op. Cit. P. 19

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aceito apenas pela elite branca, e no implausvel supor que mesmo muitos negros, interiorizassem os valores expostos por essas teorias, disseminadas pela elite dominante. Como afirma Dante Moreira Leite:

o grupo dominado acaba por se ver com os olhos do grupo dominante, a desprezar e a odiar, em si mesmo, os sinais do que os outros consideram sua inferioridade. 51

O prprio Jos Correia Leite, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira e um dos mais importantes lderes do movimento negro do sculo XX, confessava:

No comeo eu fui influenciado pelo fato de muita gente ter admirao pelo ndio. Tambm entrei nessa de ser descendente de ndio. No conheo muito bem a minha origem, mas como o ndio uma das trs raas da formao da nacionalidade brasileira, ento eu fiquei nessa de dizer que a minha descendncia era de ndio. Eu queria fugir do mulatismo para entrar nessa linhagem do branco com o ndio, tirando o africano do meio.52

Enfim, essa breve discusso sobre as teorias racistas do final do sculo XIX tem por objetivo demonstrar que grande parte dos negros, ao comearem a se organizar, estavam impregnados desse racismo defendido como cientfico. Segundo Florestan Fernandes, dificilmente o protesto negro da dcada de 1930 poderia ter ido mais longe, na medida que naquele momento, o protesto dos trabalhadores estava muito diludo dentro da demagogia da classe dominante.53 A presena ainda forte dos ideais racistas dos sculos anteriores dificultou e retardou a prpria conscientizao do negro, que interiorizava e realizava como verdadeira muitas teses e concluses dessas teorias. Na opinio de Maria Anglica Motta Maus,

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Leite, Dante Moreira. Op. Cit. P. 253 Leite, Jos Correia Leite. ... E disse o velho militante Jos Correia Leite. Organizao e textos de Luiz Silva ( Cuti ). So Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. P. 53. 53 Fernandes, Florestan. Significado do protesto Negro. So Paulo: Cortez, 1989. P. 73

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...as lideranas da dcada de trinta, apesar de uma percepo bastante aguada da situao do negro e das formas de combat-la, revelam em seu discurso ntida assimilao da ideologia do branqueamento, o que, alis, seria difcil no ocorrer. 54

Apesar de reconhecerem o preconceito racial e a situao miservel da populao negra, grande parte da responsabilidade dessa situao acabava sendo atribuda ao prprio negro, que precisava realizar em si a imagem e os valores dos brancos, abandonando os vcios da raa. O grupo da Frente Negra Brasileira e do A Voz da Raa ( jornal informativo oficial da Frente) estava sempre, atravs de um discurso moralista e acusatrio, tentando libertar os negros dos denominados vcios. O trecho seguinte, do prprio jornal, ilustra a questo: Segundo uma antiga mxima que simboliza uma verdade profunda, a ociosidade a me de todos os vcios... Trabalhar para a grandeza do Brasil dever ser o nosso lema, para que sejamos respeitados e para isso necessrio guerra de morte ao lcool e a desmoralizao de nossos bailes, que est arriscando a nossa raa e os nossos costumes, prevenindo nossa mocidade, principalmente nossas mocinhas, que devido isso esto sendo preteridas nos empregos em benefcio das estrangeiras...55

Quando Getlio Vargas assume o poder, em 1930, apenas 42 anos aps a abolio, propondo a construo de uma nova cultura poltica nacionalista para o pas 56 , concentra a sua ao numa poltica paternalista em relao aos trabalhadores, utilizando-se, como j foi dito, dos anseios da prpria classe trabalhadora. A busca de uma nova identidade brasileira, pelo Estado varguista, leva valorizao de uma raa mestia e pacfica, que se compe a partir das contribuies de vrias raas.

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Maus, Maria Anglica Motta. Da branca senhora ao negro heri: a trajetria de um discurso racial. In: Cadernos Cndido Mendes. N 21. Centro de Estudos Afro-Asiticos, dezembro de 1991. P. 121 55 A Voz da Raa. N46. 56 Gomes, ngela de Castro. Histria e Historiadores. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. P 207.

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Nos anos 30, portanto, a compreenso que se possua das relaes raciais no Brasil mudou significativamente, e essa mudana no se deveu apenas poltica de valorizao do mestio e das trs raas que formaram o Brasil, proposta por Vargas. Outro marco importante apontado para essa mudana foi a publicao da obra mais conhecida do socilogo pernambucano Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala.. At ento, como j foi discutido, predominava entre a intelectualidade brasileira um certo pessimismo sobre os destinos do Brasil, proveniente das teorias racistas, travestidas de cientficas, importadas da Europa desde o ltimo quartel do sculo XIX.. 57 Como dizia Nina Rodrigues:

Para a cincia no esta inferioridade mais do que um fenmeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogentico da humanidade nas suas diversas divises ou sees.58

Segundo Carlos Guilherme Mota, esta valorizao do mestio, levada adiante por Freyre, era uma nova estratgia de um novo funcionamento do capitalismo no Brasil (agora em bases industriais), interessado em incorporar a mo de obra de descendncia africana s fbricas que se iam multiplicando pelo pas. 59 Contudo, concordando ou no com essa interpretao, o essencial que a publicao do livro de Gilberto Freyre marcou uma mudana radical no que diz respeito ao assunto. Ele insistiu em que a miscigenao racial, caracterstica do Brasil, era um fato positivo, talvez a mais importante e melhor herana herdada da colonizao portuguesa. Gilberto Freyre remonta prpria formao do povo portugus fruto do cruzamento de variados grupos tnicos, mas sobretudo marcado pela presena do contato com os mouros para explicar a mestiagem do Brasil. Plstico, adaptvel, africanizado mesmo, o colonizador criaria aqui na Amrica uma civilizao nica no que diz respeito integrao de trs raas (ndios, portugueses e africanos) num povo moreno e mestio. Segundo Freyre, o portugus no tinha orgulho de raa, era ele mesmo j um miscigenado, e foi isso que propiciou a miscigenao.57 58

Lilia Schwarcz. O espetculo das raas. So Paulo: Companhia das letras, 1995. Nina Rodrigues. Africanos no Brasil, Braslia: Editora UNB, 1988. P. 5. 59 MOTA, C. G. Ideologia da Cultura Brasileira. So Paulo: Ed. tica, 1977. P. 60

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A presena negra no comprometeu a colonizao portuguesa e inclusive foi, tambm, civilizadora do Brasil. A miscigenao, portanto, no foi degenerativa, pelo contrrio, criou o tipo de homem ideal para os trpicos. A inferioridade fsica se deve desnutrio e sfilis, e no raa. So razes histricas e corrigveis, e no biolgicas e incorrigveis. Para Jos Carlos Reis, Gilberto Freyre - alm de genial - conservador, continusta e neovarnhageniano, portuguesa. No se pode dizer que o chamado mito da democracia racial brasileira tenha nascido com Casa Grande & Senzala, pois ao menos desde o sculo passado os letrados, sobretudo os reunidos no IHGB, sustentavam existir no Brasil uma escravido amena e receptiva influncia dos negros. 60 Mas o livro de Freyre se converteu, de fato, no mais bem acabado argumento da tal democracia racial. Gilberto Freyre, influenciado pelo historicismo de Dilthey e pelo seu orientador, Franz Boas, deu nfase ao conceito de cultura, combatendo o evolucionismo biolgicoracial. As palavras so de Jos Carlos Reis: na medida que prope um reelogio da colonizao

A raa no seria determinante sobre o meio cultural. Grupos de uma mesma raa respondem diferentemente aos desafios geogrficos, econmicos, sociais e polticos, criando culturas distintas. (...) Boas negava o determinismo, o evolucionismo, o cientificismo e se aproximava do historicismo alemo com sua nfase na cultura e na relatividade dos valores. 61

Freyre, apesar de privilegiar o conceito de cultura, no abandona o conceito de raa. Segundo Reis, Freyre mistura meio a meio, raa e cultura. Tambm Ricardo Benzaquen, nota que Freyre utiliza o conceito neolamarkiano de raa, que se baseia na aptido dos seres humanos para se adaptarem s mais diferentes condies ambientais e

60

Ver, por exemplo, o ensaio de von Martius, Como deve escrever a histria do Brasil, premiado pelo IHGB ainda na primeira metade do sculo XIX. 61 Reis, Jos Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2000. P.53.

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para incorporarem e transmitirem as caractersticas adquiridas na interao com o meio. Logo, o conceito de raa histrico, sendo mais efeito do que causa. 62 Durante muito tempo, as Cincias Sociais passaram a recusar o uso do conceito de raa em suas anlises. Isso ocorreu devido definio do conceito, que, por um longo perodo, esteve ligada a um argumento biolgico opressivo e determinista. Atualmente, j podemos perceber em alguns trabalhos o retorno do conceito e sua utilizao. Todavia, os que defendem o seu uso, buscam reconstruir de modo crtico essa noo. Antnio Srgio Alfredo Guimares est entre os que defendem a retomada do conceito de raa, embora, atravs de uma forma sociolgica e nominativa, e no biolgica ou natural. Para o autor, essa a nica forma de evitar o paradoxo de impregnar de cientificidade um conceito cuja principal razo de ser justificar uma postura ideolgica. 63 Durante o sculo XVI, raa significava um grupo de pessoas conectadas por uma origem comum. A partir do sculo XIX, com as teorias poligenistas, comea-se a identificar espcies de seres humanos distintos fsica e mentalmente. No ps guerra, com os horrores do nazismo, a prpria biologia passa a recusar o conceito de raa, que substitudo por populao. Conclui- se ento que diferenas fenotpicas, intelectuais e morais no podem ser atribudas a diferenas biolgicas. Percebe-se atualmente uma necessidade de se reteorizar as raas, no de uma forma biolgica, mas social. 64 Como sustenta Guimares:

Se as raas no existem em um sentido estrito e realista de cincia, ou seja, se no so um fato do mundo fsico, elas existem, contudo, de modo pleno, no mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que orientam as aes humanas. 65

Para Guimares, a necessidade de conceitualizar e analisar as raas possui um objetivo muito claro e pragmtico. O Brasil no vive em uma democracia racial. H, portanto, racismo no Brasil. No podemos combater o racismo se negamos o fato de62

Arajo, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 63 Ver Guimares, Antnio Srgio Alfredo. Racismo e Anti -Racismo no Brasil. So Paulo: Ed. 34, 1999. 64 O conceito de raa utilizado nesta pesquisa ser baseado na definio de raa social, elaborada por Antnio Srgio Alfredo Guimares. 65 Guimares, Antnio Srgio Alfredo. Op. Cit. P. 64.

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que a idia de raa continua a diferenciar e privilegiar largamente as oportunidades de vida das pessoas. 66 Alguns cientistas sociais afirmam que no Brasil no h preconceito racial, mas preconceito de cor. Este o caso de Degler, que afirma ser a aparncia e no o legado gentico ou racial, o determinante no caso brasileiro. Segundo o autor, o Brasil uma sociedade na qual as distines so feitas entre uma variedade de cores, e no entre raas, como nos Estados Unidos. 67 Parece inquestionvel que, de fato, isso ocorre no Brasil. Contudo, vale ressaltar o parntese feito por Guimares, que afirma ser a cor uma imagem figurada da raa:

... algum s pode ter cor e ser classificado num grupo de cor se existir uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto , as pessoas tm cor apenas no interior das ideologias raciais. 68

Os estudos sobre racismo no Brasil no podem ser compreendidos de forma homognea. A diversidade histrica e social das reas estudadas representa um fator diacrtico nas pesquisas. Para Guimares, os estudos realizados na Bahia e no norte do pas revelou a preservao das interpretaes de Gilberto Freyre e Donald Pierson, nas quais o preconceito racial era fraco, seno inexistente. Segundo Pierson, o Brasil seria uma sociedade multirracial de classes. Por outro lado, nas pesquisas realizadas no sul e sudeste do pas, identificou-se a existncia de um preconceito racial forte, porm negado. Um anti-racismo, o preconceito de ter preconceito. As interpretaes sobre racismo, preconceito e grupos raciais so diversas, dependem dos mtodos utilizados e da linha terica seguida. Para os marxistas, os grupos raciais so fenmenos da estrutura social. Mas so as classes, e no as raas, as categorias mais importantes de dominao poltica.

66 67

Idem. P. 64. Degler, Carl N. Neither Black or White. Madison: Univers ity of Wisconsin Press, 1991. In: Guimares, A. S. Alfredo. Op. Cit. P. 43. 68 Guimares, A. S. Alfredo. Op. Cit. P. 44.

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Segundo Florestan Fernandes, o preconceito de cor surge, no Brasil, da tentativa das oligarquias dominantes de preservarem os seus privilgios, mesmo aps a abolio. O preconceito no existe devido escravido, e sim devido competio e busca de defesa dos privilgios. Portanto, seria maior no sul e sudeste do Brasil, onde brancos e negros ficam em posio de concorrncia. Na opinio do autor, a democracia racial no vir da miscigenao, da harmonia entre as raas ou da ausncia de regras de pertena grupal. Mas sim de uma nova ordem social competitiva e do pleno florescimento capitalista, que prescinde de uma coero extra-econmica. A no hegemonia da classe burguesa no Brasil e a persistncia de uma ordem estamental, ou seja, a imperfeio da nova ordem, foi a responsvel pela persistncia do passado racial. As discriminaes raciais representam a permanncia do poder das oligarquias e seriam, portanto, obstculos ao avano da ordem social competitiva. Essa concluso de Florestan Fernandes fica desafiada, contudo, pela comparao com o caso Norte-americano, visto que l, mesmo com a hegemonia da classe burguesa e da ordem social competitiva, o preconceito racial foi, e , severo e vio lento. O movimento negro, via de regra, no compartilha das idias marxistas, que identifica nas classes sociais o grande problema das desigualdades sociais, minimizando ao mximo a influncia das questes raciais. Todavia, vale ressaltar que os socilogos do projeto UNESCO - realizado em 1955 principalmente Costa Pinto, Florestan Fernandes, Thales de Azevedo e Oracy Magalhes, identificam uma confluncia nas barreiras de classe e de cor integrao dos negros, reconhecendo a existncia de preconceito racial no Brasil. Na verdade, no existe democracia racial nem, tampouco, um preconceito racial que seja determinante nos conflitos sociais e no destino do pas. Tem razo Thales de Azevedo, que afirma ser a cor, no Brasil, muito mais que pigmentao. Aqui, a textura do cabelo, o formato do nariz e dos lbios, assim como as vestimentas, a

educao e o modo de falar, tambm so identificadores de cor. O preconceito no Brasil no estritamente racial e possui mltiplas variveis. Nas palavras de Azevedo, haveria uma tendncia dos negros e mulatos em ascenso social para se transformarem em brancos, j que a cor significa mais que simples pigmentao.6969

Guimares, A . S. Alfredo. Op. Cit. P 106.

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Opinio parecida tem Guerreiro Ramos, grande destaque na liderana do movimento negro brasileiro: ... o negro brasileiro pode branquear-se , na medida em que se eleva economicamente e adquire os estilos comportamentais dos grupos dominantes. O peneiramento social brasileiro realizado mais em termos de cultura e status econmico do que em termos de raa.70

O passado escravista, os vestgios de uma sociedade estamental, a raa, a cor, a situao scio -econmica, a cultura, a educao... Vrios so os fatores que podem ser identificados como as causas do preconceito no Brasil. A questo, no momento, que h preconceito no Brasil e que at hoje os negros ainda permanecem como os mais prejudicados na sociedade. Os mais pobres, com menor grau de instruo, com os empregos menos remunerados e valorizados. Enfim, com o menor acesso educao, sade, emprego e moradia; a condies bsicas de uma vida com um mnimo de dignidade. Apesar de ter sido criada no momento de substituio das teorias de branqueamento e racismo cientfico pelo mito da democracia racial e a valorizao da raa mestia, a Frente Negra Brasileira sempre buscou combater a tendncia de se acreditar na ausncia de preconceito racial no Brasil. O objetivo era reconhecer, encarar e combater o racismo. Contudo, vale ressaltar que a busca era de integrao e no de segregao. Condenavam sempre o dio e a soluo segregacionista norte-americana. A inteno no era criar uma escola para negros, e sim fazer com que os negros frequentassem tranquilamente as escolas dos brancos. Afastavam-se do academicismo e buscavam se aproximar da massa negra, montando uma estratgia brusca, direta e tosca, que o grosso da massa podia entender e acompanhar.71

Essa falta de entrosamento, ou, mais que isso, essa crtica ao movimento negro norte-americano, vinha demonstrar que o Movimento Negro brasileiro tem fortes razes

70 71

Apud. Guimares, A S. Alfredo. Op. Cit. P. 106/107. Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 54.

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em nosso prprio solo, no constituindo, como pretendem alguns, mero reflexo da luta desenvolvida em outros pases, em especial nos Estados Unidos.72 A Revoluo de 1930, a situao scio-econmica dos negros na cidade de So Paulo e o maior debate sobre a suposta democracia racial brasileira foram determinantes para o surgimento da Frente Negra Brasileira. O mito da democracia racial, em particular, teve um efeito duplo. De um lado, minimizou os efeitos do determinismo biolgico e da inferioridade racial irreversvel, proporcionando dessa forma incentivo, esperana e estmulo para que os negros revertessem sua situao de anomia e pauperizao, na medida que estas no eram determinadas racialmente. Por outro lado, incentivou os negros a se unirem na tentativa de demonstrar que esse mito era de fato um mito, e que democracia racial no existia e no existe no Brasil.

72

Idem. P. 56.

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CAPTULO II

A FRENTE NEGRA BRASILEIRA Origem e Organizao.

2.1- O EMBRIO: A IMPRENSA NEGRA E O CENTRO CVICO PALMARES.

No captulo anterior, analisamos o contexto poltico, cultural e econmico que determinou o surgimento da Frente Negra Brasileira. De uma forma ampla, englobando no s aspectos locais, mas tambm nacionais e at mesmo internacionais, chegamos concluso de que vrios foram os fatores que incentivaram a reunio de lideranas negras, na cidade de So Paulo, na dcada de 1930. Neste captulo, vamos nos deter mais especificamente na trajetria da Frente Negra Brasileira. Embora vrios fatores tenham influenciado na unio destas lideranas, essa unio no ocorreu, evidentemente, de uma hora para outra. Um caminho j estava sendo percorrido, j estava sendo traado e a partir desse caminho inicial que comearemos a entender a histria da Frente Negra Brasileira. A proibio das religies africanas, que perdurou at 1937, a necessidade de recreao, que no era oferecida e/ou permitida aos negros e o exemplo bem sucedido das associaes de imigrantes, incentivaram os negros a se unirem em busca de melhor qualidade de vida. Desde o incio do sculo, mais especificamente no ano de 1902, j estavam sendo fundadas associaes de negros, que, no obstante, alheias luta poltica organizada, possuam um carter cultural e beneficente. As associaes de negros no incio do sculo no estavam, portanto, em aberto litgio com a ordem econmica, social e poltica estabelecida. Ao contrrio, muitas vezes pode-se at mesmo identificar um alto grau de oficialismo em suas propostas, assim como posturas bastante conservadoras.

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Regina Pahim Pinto, somente at 1937, ano em que se encerram as atividades da Frente Negra Brasileira em decorrncia do Estado Novo, computa cerca de 123 associaes negras apenas na cidade de So Paulo, no incluindo nessa amostra as associaes exclusivamente carnavalescas e/ou esportivas. 73 Dessas 123 instituies paulistanas, todas possuam atividades voltadas para a assistncia social, a educao e a cultura. Grande parte dessas associaes publicava periodicamente um jornal, dinamizando consideravelmente a imprensa negra. Aproximadamente 30 jornais eram publicados por lideranas negras no perodo entre 1907 e 1937. A Frente Negra Brasileira no foi, portanto, a primeira instituio ligada ao movimento negro, a publicar um jornal com conotao poltica. Antes do jornal A Voz da Raa , porta-voz oficial da Frente, j existiam peridicos que denunciavam e apontavam solues para os problemas vividos pela populao negra. Esses peridicos representavam claramente o embrio da organizao e da luta dos negros no incio do sculo XX. A imprensa negra era consideravelmente influenciada pela imprensa operria. Ambas possuam o mesmo objetivo: denunciar os problemas vividos pelo seu grupo. Embora, vale ressaltar, as denncias e reivindicaes das lideranas negras eram bem mais modestas, na medida que estavam em estgio embrionrio e no recebiam instrues de nenhum rgo ou movimento internacional. Muitos negros apoiavam vrios jornais simultaneamente e as dificuldades eram incomensurveis. O amadorismo era evidente. Havia dificuldades tcnicas de produo, dificuldade financeira, falta de colaborao e dificuldades para a distribuio do jornal, com retorno financeiro praticamente nulo. A luta travada pelas lideranas negras no incio do sculo era integracionalista. A principal preocupao era com o comportamento social e moral. Elas bu