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SÃO PAULO: TRÊS CIDADES... NESTE INÍCIO DE SÉCULO SÂOPAULO: TRÊS CIDADES EM UM SÉCULO, de Benedito Lima de Toledo. São Paulo: Cosac & Naify/Duas Cidades, 2004. FRAYA FREHSE Vinte e quatro anos depois de ter vindo a público, o mais conhecido livro do arquiteto Benedito Lima de Toledo reaparece em sua terceira edição. O autor aproveitou a oportunidade para, subsidiado por um bem cuidado projeto gráfico, apresentar ao leitor uma variedade comparativamente maior de reproduções em preto e branco de desenhos, aquarelas, fotografias e de cartões postais referidos ao centro da cidade de São Paulo entre as décadas de 1860 e de 1970. As editoras acolheram o intento com grande sensibilidade, anexando ao verso da segunda capa do livro um mapa atual do centro paulistano no qual aparecem identificados os pontos de vista a partir dos quais foram feitas 24 das 120 imagens — desenhos e aquarelas por artistas-viajantes do século XIX, fotografias e cartões postais fotográficos por autores diversos, oitocentistas e novecentistas. Isso para não falar de um útil "índice de logradouros e edifícios" mencionados ao longo da obra, e que aparece nas páginas finais da publicação (pp. 188-92). No que se refere ao texto, Toledo o ampliou em alguns momentos e reagrupou seus itens e subitens — o autor não fala em capítulos, e, com efeito, não há como fazê-lo, uma vez que o que está em jogo são breves contextualizações históricas das transformações por que passaram, no período contemplado, as áreas e bairros centrais, as ruas, os logradouros públicos (largos, praças, jardins e parques), o mobiliário urbano (pontes, viadutos), os edifícios públicos e particulares retratados nas imagens. Acompanhada dos respectivos textos, a farta iconografia é o sub- sídio documental mais importante para a formulação da tese principal do livro, sintetizada pelo arquiteto numa metáfora que se tornou célebre: São Paulo seria um "palimpsesto" que de tempos em tempos receberia uma escrita nova, de qualidade literária inferior (p. 77);uma cidade que entre as décadas de 1870 e o momento em que veio a público o livro teria sido reconstruída sobre si mesma três vezes. Percorrer as reproduções de desenhos, aquarelas, fotografias, e também os mapas originais apresentados ou retrabalhados por Toledo, de fato subsidia,

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SÃO PAULO: TRÊS CIDADES...NESTE INÍCIO DE SÉCULO

SÂOPAULO: TRÊS CIDADES EM UM SÉCULO,de Benedito Lima de Toledo. São Paulo: Cosac & Naify/Duas Cidades, 2004.

FRAYA FREHSE

Vinte e quatro anos depois de ter vindo a público, o mais conhecidolivro do arquiteto Benedito Lima de Toledo reaparece em sua terceiraedição. O autor aproveitou a oportunidade para, subsidiado por umbem cuidado projeto gráfico, apresentar ao leitor uma variedadecomparativamente maior de reproduções em preto e branco dedesenhos, aquarelas, fotografias e de cartões postais referidos ao centroda cidade de São Paulo entre as décadas de 1860 e de 1970. As editorasacolheram o intento com grande sensibilidade, anexando ao verso dasegunda capa do livro um mapa atual do centro paulistano no qualaparecem identificados os pontos de vista a partir dos quais foramfeitas 24 das 120 imagens — desenhos e aquarelas por artistas-viajantesdo século XIX, fotografias e cartões postais fotográficos por autoresdiversos, oitocentistas e novecentistas. Isso para não falar de um útil"índice de logradouros e edifícios" mencionados ao longo da obra, eque aparece nas páginas finais da publicação (pp. 188-92).

No que se refere ao texto, Toledo o ampliou em alguns momentos ereagrupou seus itens e subitens — o autor não fala em capítulos, e, comefeito, não há como fazê-lo, uma vez que o que está em jogo são brevescontextualizações históricas das transformações por que passaram, noperíodo contemplado, as áreas e bairros centrais, as ruas, oslogradouros públicos (largos, praças, jardins e parques), o mobiliáriourbano (pontes, viadutos), os edifícios públicos e particularesretratados nas imagens.

Acompanhada dos respectivos textos, a farta iconografia é o sub-sídio documental mais importante para a formulação da tese principaldo livro, sintetizada pelo arquiteto numa metáfora que se tornoucélebre: São Paulo seria um "palimpsesto" que de tempos em temposreceberia uma escrita nova, de qualidade literária inferior (p. 77);umacidade que entre as décadas de 1870 e o momento em que veio a públicoo livro teria sido reconstruída sobre si mesma três vezes. Percorrer asreproduções de desenhos, aquarelas, fotografias, e também os mapasoriginais apresentados ou retrabalhados por Toledo, de fato subsidia,

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à primeira vista, a impressão de três momentos históricos distintos naaparência arquitetônica e urbanística da cidade: a era das igrejas, dascasas térreas e dos sobrados coloniais; a dos palacetes e edifíciospúblicos neoclássicos e ecléticos; a dos arranha-céus modernistas. Sãomomentos, aliás, que o projeto gráfico empregado nesta edição ajuda adiscernir melhor como tais através da tonalidade acinzentada quedistingue entre si três blocos de texto que insinuam ser as três partesprincipais da obra — "A cidade de taipa", "Palimpsesto", "Projetospara uma metrópole" —, antes que a conclusão sinalize, no título, a tesedo autor: "Em um século, três cidades".

Antes de vir a público no formato de livro em 1981 e de ser reeditadoem 19831, o texto tinha aparecido no Suplemento do Centenário deO Estado de S. Paulo, no próprio jornal O Estado de S. Paulo e no Jornal daTarde, conforme explicita uma nota no verso da folha de rosto dasprimeiras duas edições da obra. Infelizmente, essas informações,cruciais para uma compreensão contextualizada da obra, não integrama atual edição. Aliás, menções ao fato de esta ser a terceira, revista eampliada, só aparecem respectivamente na ficha catalográficaapresentada na página final do livro e no texto da quarta capa, dofotógrafo Cristiano Mascaro.

Ao ser lançado, São Paulo: Três cidades em um século foi saudado porum arquiteto como "alerta tardio" em relação à "viabilidade dos nossosassentamentos urbanos de hoje"2 . Outro profissional da área apontoucomo "sugestivo" o título da obra, que mostraria a "evolução dessa'incontrolável' cidade"3. Essas duas manifestações expressam umarecepção positiva da proposta de Toledo, ao menos por parte de algunsarquitetos. E foi elogiada principalmente a riqueza da iconografiautilizada4 , até então "pouco explorada"5.

De fato, até aquele momento o emprego desse tipo dedocumentação na historiografia paulistana produzida dentro ou forados muros da Universidade tivera um caráter eminentementeilustrativo, constituindo as imagens anexos pouco comprometidoscom o texto escrito, meras exemplificações de como São Paulo teriasido num passado mais ou menos distante6. Foi em 1981 que veio apúblico, contando, aliás, com a colaboração de Toledo, uma primeiraobra com e sobre reproduções até então inéditas de vistas de São Pauloproduzidas pelo fotógrafo carioca Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) respectivamente em 1862 e 18877 , na seqüência à defesa de umadissertação de mestrado em que era apresentada de forma pioneira acoleção de vistas urbanas e de retratos do mesmo Militão8. Quando setem em conta esse contexto mais amplo de publicações sobre a SãoPaulo do século XIX e do início do XX, consegue-se compreender ainovação que São Paulo: Três cidades em um século representou para odebate sobre as mudanças arquitetônicas e urbanísticas que a cidadeatravessara nesse período. Era a primeira vez que um autor utilizavaimagens até então pouco conhecidas do grande público como

[1] Cf. respectivamente Toledo, Bene-dito Lima de. São Paulo: Três cidadesem um século, São Paulo: LivrariaDuas Cidades, 1981, e Toledo, Be-nedito Lima de. São Paulo: Três cida-des em um século. 2a ed. ampl. SãoPaulo: Livraria Duas Cidades, 1983.

[2] Cf. Segawa, Hugo. "São Paulo:três cidades em um século". Projeto.Arquitetura, planejamento, desenhoindustrial, construção (São Paulo),31, julho 1981, p. 16.

[3] Cf. Bruna, Paulo. "Refazendo apaisagem". Folha de S. Paulo, 25 dejaneiro de 1982.

[4] Ibidem.

[5] Cf. Segawa. Hugo, op. cit.

[6] Cf., por exemplo, Freitas, AffonsoA. de. Tradições e reminiscênciaspaulistanas. 2a ed. rev. e ampl. SãoPaulo, Livraria Martins Editora, 1955[1a ed. 1921]: Bruno. Ernani da Silva.História e tradições da cidade de SãoPaulo. 3 vols. São Paulo: Hucitec, 1983[1ª ed. 1953-1954].

[7] Cf. Toledo, Benedito Lima et alii.Álbum comparativo da cidade de SãoPaulo 1862-1887. Militão Augusto deAzevedo. São Paulo: Prefeitura doMunicípio de São Paulo, 1981.

[8] Cf. Kossoy, Boris. Militão Au-gusto de Azevedo e a documentaçãofotográfica de São Paulo (1862-1887):

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Recuperação da cena paulistana atra-vés da fotografia. Dissertação deMestrado em Ciência. São Paulo,Fundação Escola de Sociologia ePolítica, 1978.

[9] Cf., entre outros, Lemos, CarlosA. Alvenaria burguesa. Breve histó-ria da arquitetura residencial de tijo-los em São Paulo a partir do cicloeconômico liderado pelo café. SãoPaulo: Nobel, 1985; Toledo, BeneditoLima de. Prestes Maia e o urbanismomoderno em São Paulo. São Paulo:Empresa das Artes, 1996; Barbuy,Heloisa Maria Silveira. A cidade-ex-posição: Comércio e cosmopolitis-mo em São Paulo, 1860-1914 (Estudode história urbana e cultura materi-al). Tese de Doutorado em Arquite-tura e Urbanismo. São Paulo, Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo —USP, 2001.

[10] Cf. Lima, Solange Ferraz de eCarvalho, Vânia Carneiro de. Foto-grafia e cidade: Da razão urbana àlógica de consumo. Álbuns de SãoPaulo, 1887-1954. Campinas: Merca-do de Letras/Fapesp, 1997; Cavena-ghi, Airton José. Imagens que falam:Olhares fotográficos sobre São Pau-lo (Militão Augusto de Azevedo e'São Paulo Light and Power Co.', finsdo século XIX e início do século XX).Dissertação de Mestrado em Histó-ria. São Paulo, Faculdade de Filoso-fia, Letras e Ciências Humanas - USP,2000; Melo, Leandro Lopes Pereirade. História & energia 9: A Light re-vela São Paulo: Espaços livres de usopúblico do centro nas fotografias daLight (1899-1920). São Paulo: Fun-dação Patrimônio Histórico daEnergia de São Paulo, 2001.

[11] Cf. Marins, Paulo César Garcez.Através da rótula. Sociedade e arqui-tetura urbana no Brasil. Séculos XVII-XX. Tese de Doutorado em História.2 vols. São Paulo, Faculdade de Filo-sofia, Letras e Ciências Humanas,1999; Lima, Solange Ferraz de. Orna-mento e cidade: Ferro, estuque e pin-tura mural em São Paulo (1870-1930).Tese de Doutorado em História So-cial. São Paulo, Faculdade de Filoso-fia, Letras e Ciências Humanas —USP, 2001.

[12] Cf. Frehse, Fraya. Vir a ser transe-unte. Civilidade e modernidade nasruas da cidade de São Paulo (entre oinício do século XIX e o início doséculo XX). Tese de Doutorado em

documentação primária para escrever sobre as transformaçõesurbanísticas paulistanas.

Quase um quarto de século depois da primeira edição da obra, jánão é novidade o uso de pinturas e fotografias de vistas urbanaspaulistanas do passado novecentista como fonte para pesquisas, sejamelas sobre as mudanças físicas que alcançaram São Paulo no período9 ,sobre a relação entre essas transformações ou sobre o modo derepresentar visualmente, por exemplo, a cidade10 ; a sociabilidade11; acivilidade nas ruas12 . Em face de um universo investigativo com taiscontornos, a reedição do livro de Toledo representa, em especial noaniversário de 450 anos da cidade, uma celebração da importânciadocumental da iconografia, em particular da fotografia, na abordagemdo passado paulistano por parte das mais diversas disciplinas, dourbanismo à história e às ciências sociais.

É verdade que o argumento da destruição e reconstrução seqüencialda cidade ao longo de um século se sustenta mais por meio do texto doque da iconografia. Neste, Toledo enfatiza justamente a dinâmica dedemolições e construções que marcou determinadas edificaçõespúblicas e particulares, ruas e largos de São Paulo a partir de finais doséculo XIX. Já quando se contempla a seleção de imagens, outra lógicavem à tona. A maioria se refere à "cidade de taipa" e àquela erguida atéos anos de 1930 no centro paulistano. E o leitor fica com dificuldade dereconhecer visualmente a terceira cidade, anunciada textualmente comorealidade histórica na seqüência à metrópole dos anos de 1930 (p. 125),em particular depois da "Segunda Grande Guerra", quando "os grandesempreendimentos vieram destruir, um a um, os documentosarquitetônicos da cidade" (p.181).

Há como ressaltar um aspecto adicional, tendo-se em mentepossibilidades analíticas que as imagens, em especial as fotografias,oferecem ao observador. Muitas reproduções fotográficas daquilo queseria a segunda cidade — e mesmo a única vista que parece, pela alturae aparência dos arranha-céus retratados, se referir à terceira urbe (p. 179)— revelam que se São Paulo é como um "palimpsesto", queperiodicamente recebe uma nova escrita, isso não impede quepermaneçam no pergaminho indícios da escrita anterior, traços dopassado. E aqui não penso tanto na presença, nas cenas retratadas, dedetalhes que insinuam indivíduos em movimentos corporaisreveladores de regras de conduta do passado escravista, como pudeconstatar recentemente, ao estudar fotografias de rua de São Paulo entrefinais do século XIX e o início do XX13. Restringindo-me estritamenteao enfoque arquitetônico e urbanístico privilegiado por Toledo naabordagem da iconografia, penso na paisagem construída que váriasdas imagens representam. Embora as composições ressaltem a entãomoderna arquitetura neoclássica e eclética, a presença viva do passadose deixa intuir, por exemplo, na extensão dos lotes ou na aparência dosvelhos telhados coloniais escondidos atrás de fachadas ornadas muitas

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vezes por artesãos formados no Liceu de Artes e Ofícios14. A presençapersistente desses e outros detalhes nas fotografias, perceptíveis aindahoje quando se passeia pelo centro da urbe, contribuíram e contribuemtanto quanto as respectivas "novas escritas" para a aparência arqui-tetônica que São Paulo foi assumindo ao longo do século XX. Sob esseprisma, as três cidades não se sucederam num século, mas coexistem eperfazem não apenas a metrópole do momento em que Toledo lançou oseu livro, mas também aquela deste início de século XXI.

Deixemos, entretanto, tais ponderações entre parênteses, para osfins deste texto. Afinal, São Paulo: Três cidades em um século já é obra adultaao reaparecer, revista, em 2004. O que merece ser abordado é o impactoque a forma e o conteúdo dessa reaparição pode ter sobre o leitor quetiver o livro em mãos pela primeira vez.

A reestruturação dos itens e, conseqüentemente, das imagens queacompanham o texto, contribuiu de maneira significativa parasistematizar mais, em comparação com as edições anteriores, os dadosreferidos às diversas áreas da cidade. Em especial o agrupamento dositens em torno daquilo que venho chamando de três partes da obrafavoreceu uma transmissão mais didática da proposta do autor.

Se essas modificações enaltecem a reedição de uma obra que marcouépoca na reflexão urbanística sobre a história de São Paulo, não sepodem, entretanto, obliterar algumas dificuldades implícitas àsmudanças operadas para a atual edição. O local das imagens foi, emalguns casos, alterado, mas não aquele em que, no texto, aparecemreferências a essas mesmas imagens. Isso não seria problema se a novalocalização tivesse sido sinalizada no texto, mas, como isso nem sempreocorreu, às vezes o leitor se depara com descrições de aquarelas efotografias que verá apenas nas páginas subseqüentes, sem ter sidopara esse fato previamente orientado (pp. 23, 68, 69, 103).

Também a reestruturação do texto acarretou, às vezes, ônus para acompreensão do livro. A alteração da seqüência de alguns itens fez comque a necessária contextualização de determinados assuntos aparecesseem um momento posterior àquele em que o assunto é referenciado pelaprimeira vez. Foi o que aconteceu, por exemplo, com dadosprofissionais a respeito do arquiteto sueco Carlos Ekman. Eles sãoelencados vinte páginas depois de o nome ter sido mencionado depassagem pela primeira vez (cf. respectivamente pp. 116-17 e 91). Hácomo entender o porquê de tal seqüência confrontando esta edição comas duas anteriores de São Paulo: Três cidades em um século. Na segundaedição, por exemplo, versão ampliada da primeira, o item quecontextualiza a atuação de Ekman aparece antes daquele em que onome do arquiteto é apenas brevemente citado15.

Há como perceber o empenho em adequar as referências temporaisutilizadas por Toledo ao momento atual, o que faz todo o sentido senão se forneceram informações sobre a data da primeira edição dolivro. No entanto, o intento do ajuste nem sempre foi bem-sucedido.

Antropologia Social. São Paulo, Fa-culdade de Filosofia, Letras e Ciênci-as Humanas - USP, 2004.

[13] Ibidem, pp. 527-30.

[14] Sobre os ornamentos na arquite-tura paulistana até os anos de 1930,cf. Lima, Solange Ferraz de, op. cit.,esp. pp. 56-62.

[15] Cf. Toledo, Benedito Lima de.

op. cit., 1983, respectivamente pp. 90

e 96.

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Não foram alteradas todas as indicações temporais utilizadas porreferência ao início dos anos de 1980, quando saíram as primeirasduas edições do livro. A afirmação, por exemplo, de que os desenhos dobritânico Charles Landseer sobre São Paulo em 1827 teriam sidodivulgados "recentemente" (p. 23) se explicita tendo-se por referência1981, mas não 2004. Se não se queria alterar o conteúdo do textooriginal, teria sido apropriada a inclusão de uma nota explicativacontextualizando a que momento o termo "recentemente" se refere (cf.nesse sentido também p. 49). Caso contrário, o leitor pouco fami-liarizado com a documentação de época sobre a São Paulo oitocentistapode se confundir.

Face a outros trechos do texto, é necessário conhecer a história deSão Paulo e as edições anteriores da obra de Toledo para compreenderplenamente o significado do que está sendo dito. Assim, por exemplo,a afirmação de que "qualquer mapa de São Paulo de fins do séculopassado ou início do presente nos dá a impressão de inacabado" (p.78). A alusão é ao final do século XIX e ao início do XX, e não, como sepoderia pensar com base na data da edição atual do livro, ao final doXX e ao início do XXI. Uma dúvida semelhante poderia vir à tonadiante da pergunta de Toledo "como seria São Paulo no início desteséculo?" (p. 82).

Em meio ao muito que mudou entre as primeiras duas e a atualedição, alguns aspectos permaneceram inalterados. O arquiteto con-tinua, como no passado, não se restringindo à iconografia comofonte primária. Além de apresentar imagens e comparar entre si al-gumas de tipos documentais distintos — aquarelas e fotografias —,em determinado momento (pp. 23 ss) o autor lança mão, paradescrever "a cidade de taipa" do período colonial, de correspondênciajesuítica, documentação em relação à qual aponta para a necessidadede "discernimento" (p. 17). Assim, esboça uma crítica de fontes queinexiste em relação ao material iconográfico utilizado. Outra fonteque perpassa a obra são relatos de viagem (em especial referidos aoséculo XIX), além de, em alguns momentos, documentação oficial,como a transcrição de um relatório decisivo para a aparência do Valedo Anhangabaú a partir do século XX: o documento produzido peloarquiteto francês Joseph Antoine Bouvard para a prefeitura pau-listana em 1911 acerca das potencialidades urbanísticas que enxer-gava para a cidade (pp. 126-27).

Infelizmente, nem sempre o que permaneceu inalterado na atualversão pode ser considerado positivo. Sobretudo quando se leva emconta que a atual é uma "reedição revista" de um livro que veio a públicohá mais de duas décadas. O arquiteto atribui a Militão Augusto deAzevedo a autoria de algumas fotografias que identifica como tendosido feitas no início dos anos de 1860, apesar de essas imagens nãoserem referenciadas num livro recente que traz o até agora mais com-pleto inventário já publicado da obra produzida pelo fotógrafo na

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décadaem questão16 , e que apresenta até mesmo reproduções da coleçãode Toledo17.

Não somente a identificação da autoria de algumas imagens contémproblemas. A datação também. Numa fotografia do Largo de SãoFrancisco que Toledo define, na legenda, como sendo de Militão em1862, aparece um bonde a burros (p. 52). Ora, os primeiros veículos dotipo começaram a circular em São Paulo a partir de outubro de 1872,como evidenciam os jornais da época18 . Em outro momento, Toledoidentifica, também na legenda, uma imagem do Rio Tamanduateí comotendo sido feita por Militão em 1860 (p. 63). Todavia, perto do cantoesquerdo da metade superior da imagem aparece a fachada do primeiromercado da cidade, "construído", segundo o historiador Ernani da SilvaBruno, em 186719 , ou seja, depois de 1860, ano indicado pelo arquitetopara a produção da imagem (p. 62). Se Bruno não fornece evidênciashistóricas para a data que propõe, tampouco Toledo o faz, em relação àfotografia em questão. Outro signo que, presente na mesma imagem,dificulta apontar "1860" como ano de produção desta é a presença dechaminés de fábrica no fundo da cena retratada: as primeiras indústriasteriam começado a operar na cidade na década de 187020 .

Outras imprecisões na datação se fazem notar no corpo principaldo texto. A demolição da Igreja do Palácio do Governo, por exemplo,data de 189621, e não de 1899 (p. 86). E se nos anos de 1950 foramconstruídas uma "réplica da igreja e do colégio primitivos", a questão,que o autor não explicita no livro, é qual a aparência "primitiva"utilizada como parâmetro para a construção, tendo-se em conta que aedificação demolida em finais do XIX não se assemelhava em nada àchoupana de pau-a-pique que existia no local nos primeiros anos dapovoação, nem às edificações em taipa ali erguidas e reerguidas nosséculos XVII e XVIII.

Há ambigüidade em alguns dados apresentados mais de uma vezna obra: eles não coincidem. É o caso da abertura do novo Viaduto doChá, referida uma vez como tendo ocorrido em 18 de abril de 1938 (p.135) e outras duas vezes, em 1936 (pp. 153-54). Já o local de origem daestrutura arquitetônica da Estação da Luz, por sua vez, é, conformeuma primeira menção nesse sentido, a Inglaterra (p. 97) e, em outromomento, a Escócia — Glasgow é a cidade referida (p. 176).

Tampouco alguns dados históricos conferem. Toledo atribui, porexemplo, a autoria de uma citação sobre a construção da estrada deferro entre São Paulo e Santo Amaro ao empresário carioca "Henrique"Raffard em 1883 (p. 125). No entanto, naquela que é a fonte dacitação22 , referenciada na atual edição, o trecho aparece como parte deuma transcrição que o mencionado autor, que assina o texto comoHenri Raffard, teria feito de "alguns tópicos do prospecto publicadoem 1883 pela Companhia de Carris de Ferro S. Paulo a Santo Amaro"23.Outra incorreção: uma das denominações da Praça da República "até oadvento da República, em 1889" parece ter sido Largo 7 de Abril24 , e

[16] Cf. Lago, Pedro Corrêa do. Mili-tão Augusto de Azevedo. São Paulonos anos 1860. Rio de Janeiro: Con-tra Capa Livraria/Editora Capivara,2001, esp. pp. 231-50.

[17] Ibidem, pp. 50-52, 53, 56-7,108-9.

[18] Cf. Frehse, Fraya. O tempo dasruas na São Paulo de fins do Império.São Paulo: Edusp, 2005, pp. 122.

[19] Cf. Bruno, Ernani da Silva, op.cit., vol. 3., p. 1133.

[20] Ibidem, pp. 1168-173.

[21] Cf., por exemplo, N/a [Não assi-nado], "Igreja do Collegio", O Estadode 5. Paulo, 15 de março de 1896.

[22] Cf. Raffard, Henri. Alguns diasna Paulicéia. São Paulo: AcademiaPaulista de Letras, 1977 [ia ed. 1892].

[23] Ibidem, p. 59.

[24] Cf. "Mappa da capital da Pcia. deS. Paulo. Seos Edifícios públicos,

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Hotéis, Linhas férreas, Igrejas BondsPasseios etc. publicado por Frdo.Albuquerque e Jules Martin em Julho1877", reproduzido in Comissão doIV Centenário da Cidade de São Pau-lo. São Paulo antigo. Plantas da cida-de. São Paulo: Melhoramentos, 1954,planta 8.

[25] Cf. respectivamente "Mappa dacapital da Pcia...", loc. cit.; Freitas,Affonso A. de, op. cit., p. 134 A/B.

[26] Cf. Santos, Carlos José Ferreirados. Nem tudo era italiano. São Pau-lo e pobreza (1890-1915). São Paulo:Annablume/Fapesp, 1997, pp. 83-119.

não "Largo 7 de Setembro" (p. 170). Este último era, na época aludidano texto, o nome dado ao antigo largo do Pelourinho, localizado ondehoje se encontra o Fórum João Mendes25.

Justamente porque o objetivo foi produzir uma "reedição revista"de São Paulo: Três cidades em um século, a atual versão poderia terincorporado revisões desse tipo, assim como de interpretações que,contidas nas edições anteriores, estudos históricos produzidos no ínte-rim acabam, mesmo involuntariamente, colocando em xeque. Assim,por exemplo, a idéia de que a "várzea do Carmo manteve-se poucoocupada até 1918". Pesquisa recente mostra a intensa presença decomunidades africanas ali no século XIX e no início do XX26 .

Chamo a atenção para essas questões tendo em vista eventuaisdificuldades de leitores não familiarizados com a história ou ahistoriografia paulistanas. Nesse sentido também, não fica claro emque contexto histórico se deram algumas das transformações urbanasque, evocadas por Toledo, subsidiam a imagem do palimpsesto. Umareferência, mesmo que passageira, às crescentes exportações açucareirasdo interior paulista teria auxiliado na compreensão do tipo de obra decunho urbanístico incentivada pelo capitão-geral Bernardo José Mariade Lorena na cidade de finais do século XVIII (pp. 14-7). Em outromomento do texto, é apenas mencionado o bombardeamento do Con-vento da Luz por "disparos da revolução", em 1924 (p. 58). E o leitormais desavisado fica sem conhecer o alcance histórico da afirmação,tributária do fato de que edificações do centro e do subúrbio paulis-tano foram bombardeadas pelas forças do governo federal durante astrês semanas em que a cidade permaneceu dominada pelos militaresrebelados sob o comando de Isidoro Dias Lopez27 .

Aludir a esses aspectos variados não impede que se aplauda ainiciativa de reeditar, com um projeto gráfico tão sensível, um livrorelevante para a história da reflexão urbanística de cunho acadêmicoproduzida por arquitetos brasileiros acerca de cidades brasileiras,acerca de São Paulo. A obra de Toledo evidencia não somente a buscade alguns desses profissionais por um maior aprofundamento teóricoem relação à lógica urbanística que envolve a cidade como cenário eobjeto de sua prática projetual. São Paulo: Três cidades em um século é aindatestemunho pioneiro do reconhecimento, por parte desses arquitetos,de que uma compreensão arquitetônica e urbanística maisaprofundada da cidade não prescinde de uma interlocução intensa coma história. E desse diálogo que brota a possibilidade da formulação demetáforas tão criativas quanto a do palimpsesto, que, provocativa,fornece um parâmetro a partir do qual refletir sobre as apropriaçõesurbanísticas de que São Paulo é objeto ainda hoje em dia.

[27] Cf., entre outros, Corrêa, AnnaMaria Martinez. A Rebelião de 1924em São Paulo. São Paulo: Hucitec,1976, esp.pp. 95-181; Martins, José deSouza. Subúrbio. Vida cotidiana ehistória no subúrbio da cidade deSão Paulo: São Caetano do Sul, dofim do Império ao fim da RepúblicaVelha. São Paulo/São Caetano do Sul:Hucitec/Prefeitura de São Caetanodo Sul, 1992, pp. 259-98.

FRAYA FREHSE, doutoranda em antropologia social pela USP, é professora de

antropologia na Escola de Sociologia e Política e de história da cidade na Escola da

Cidade, além de pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP.