françois recanati - pela filosofia analítica

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    Crtica

    26 de Agosto de 2004 Filosofia

    Pela filosofia analtica

    Franois Recanati

    Centre National de la Recherche Scientifique, Paris

    So cada vez mais numerosos, ainda que muito minoritrios na populao filosfica

    francesa, aqueles que se interessam pela, e mesmo que se reclamam da, filosofia

    analtica. No passado, tratava-se sobretudo de pessoas que, decepcionadas por certos

    aspectos da tradio filosfica dominante em Frana, lhe viravam resolutamente as

    costas a partir do momento em que descobriam, com a tradio analtica, os atractivos

    do pensamento argumentativo. Actualmente, parece que um interesse pela filosofia

    analtica perceptvel num pblico mais vasto. Diferentes factores contribuem paraalargar a audincia francesa da filosofia analtica para alm do pequeno cenculo dos

    filsofos que se passaram para os anglo-saxnicos, segundo a sugestiva expresso

    de Jean-Franois Lyotard:

    No decurso da sua evoluo, os centros de interesse da filosofia analtica diversificaram-

    se (1): j no existe, hoje em dia, qualquer questo filosfica que os filsofos analticos

    no abordem. testemunho disso o livro que o filosofia analtico Thomas Nagelconsagrou recentemente s grandes questes supostamente caractersticas da filosofia

    continental

    Revela-se uma convergncia entre as teorias de certos filsofos que pertencem tradio

    analtica (Kuhn, Feyerabend) e as de filsofos continentais como Michel Foucault. Estas

    convergncias so, por vezes, explicitamente reivindicadas

    A Alemanha, que desde h muito o modelo dos franceses em matria de filosofia,

    desperta para a filosofia analtica. Vemos antigos alunos de Heidegger, como Tugendhat

    (2), reencontrar a herana de Frege fala-se de pragmtica transcendental Wittgenstein

    apresentado como trao de unio entre os analticos e os hermeneutas. Sente-se j o

    impacto desta evoluo nas mentalidades filosficas francesas, to receptivas ao que se

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    passa alm-Reno

    Tem neste momento lugar um debate, que envolve filsofos analticos, sobre o

    irracionalismo e o historicismo caractersticos da filosofia continental (e mais

    especificamente francesa), na sua relao com os supostos racionalismo e anti-

    historicismo da filosofia analtica (3). Este debate no deveria deixar indiferente o pblico

    francs: em Razo, Verdade e Histria, Putnam, mesmo adoptando uma posio

    matizada, ataca os filsofos franceses Rorty, que parece ter-se empenhado, atravs dos

    seus escritos sobre o pragmatismo, em impor Heidegger e Derrida aos seus colegas

    anglo-saxnicos, invoca o testemunho do pblico francs publicando mesmo em Frana

    (4) uma notcia crtica do livro de Putnam Bouveresse responde-lhe com um requisitrio

    contra o irracionalismo e a filosofia francesa, e com uma defesa da filosofia analtica.

    O pblico francs tem, portanto, todas as razes para se interessar pela filosofia

    analtica. Tem, por outro lado, os meios para se interessar por ela: numerosos textosde filosofia analtica esto hoje disponveis em francs, e os trabalhos de exegese

    acumulam-se. H uma coisa, no entanto, que cruelmente faz falta: uma ideia

    minimamente precisa do que a filosofia analtica.

    questo O que a filosofia analtica? pode responder-se com segurana que a

    tradio a que pertencem Frege, Russell, Moore, Wittgenstein (o primeiro e o segundo),

    os neopositivistas, os lgicos polacos da escola de Lvov-Varsvia, Popper, Quine,Goodman, os filsofos da linguagem comum, Putnam, Rawls, Kripke, etc., ou ainda que

    a corrente filosfica actualmente dominante nos pases anglo-saxnicos e, mais

    geralmente, no mundo. Uma resposta deste tipo, todavia, no muito satisfatria,

    porque no nos diz o que caracteriza a filosofia analtica como tradio (ou, se se

    prefere, como movimento). no entanto muito difcil ir alm de uma tal resposta, e

    caracterizar, ainda que de forma vaga e aproximada, a filosofia analtica, pois existem

    diferenas muito marcadas entre filsofos analticos de diferentes pocas, entre asdiferentes escolas de uma mesma poca, e at entre os diferentes filsofos analticos

    de uma mesma escola. Estas diferenas parecem ser insuperveis, e desencorajam

    qualquer tentativa de caracterizao global tanto mais que as tentativas de

    caracterizao que foram feitas no passado revelam-se hoje inaceitveis, na medida

    em que abraavam manifestamente o ponto de vista da poca em que eram feitas,

    quando no reflectiam pura e simplesmente a concepo dominante, nessa poca,

    num subgrupo particular de filsofos analticos. E no faltam filsofos analticos que

    sustentem, buscando argumentos na diversificao de interesses assinalada mais

    atrs, que a prpria noo de filosofia analtica, meio sculo depois do apogeu do

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    positivismo lgico, deixou de corresponder ao que quer que seja de bem definido (5).

    , contudo, uma tal caracterizao da filosofia analtica que gostaria de tentar nas

    pginas que se seguem. De acordo com o conselho de Jean Piel, intitulei esta tentativa

    Pela Filosofia Analtica porque as caractersticas que serei levado a atribuir-lhe

    parecem-me constituir boascaractersticas, caractersticas filosoficamente desejveis:de facto, porque entendo a filosofia analtica do modo que vou expor que eu mesmo

    me reclamo deste movimento. Mas no tentarei justificar esta avaliao neste artigo, e

    contentar-me-ei em deix-la surgir de tempos a tempos.

    I

    Parece-me que preciso, para comear, abandonar todas as esperanas de

    caracterizar a filosofia analtica atravs de algum trao doutrinal, quer dizer, atravs de

    uma tese filosfica particular, porque a filosofia analtica quer-se universal e no exclui

    a priori nenhuma doutrina particular: enquanto movimento pluralista, a filosofia analtica

    no dogmtica, contrariamente s escolas que podem aparecer no seu seio. Deixa-

    se de pertencer a uma escola determinada o positivismo lgico, por exemplo se

    se deixa de aderir doutrina constitutiva desta escola, mas no existe uma doutrina tal

    que se deixe de ser um filsofo analtico se se deixa de aderir a ela. De facto, adiversidade de filosofias que fizeram a sua apario na histria do movimento analtico

    no de modo nenhum inferior diversidade de doutrinas aparecidas na histria da

    filosofia em geral. verdade que algumas doutrinas tm maior atractivo que outras

    para a maioria dos filsofos analticos mas, justamente, muitos deles, pondo, por

    assim dizer, nfase no desafio, parecem encontrar prazer na descoberta de novos

    argumentos a favor das doutrinas aparentemente mais opostas quelas a que a

    maioria dos filsofos analticos adere, e no se sentem desqualificados por causadisso.

    O que caracteriza a filosofia analtica no , portanto, de ordem doutrinal. No

    tambm um domnio de investigao: se os filsofos analticos privilegiaram certos

    domnios de investigao, como a filosofia da linguagem ou a filosofia das cincias,

    certo que um filsofo analtico no ficaria diminudo (no perderia ipso factoa sua

    qualidade de filsofo analtico) se se ocupasse exclusivamente num domnio que osseus colegas tivessem abandonado, qualquer que fosse esse domnio no h nesta

    matria mais dogmatismo do que em matria doutrinal

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    A filosofia analtica caracteriza-se ento por um mtodo? Poder-se-ia acreditar que o

    uso da nova lgica de Frege, Russell et alii na formulao e soluo (ou dissoluo)

    dos problemas filosficos uma caracterstica essencial da filosofia analtica, mas o

    facto de a filosofia da linguagem comum ter combatido e recusado este uso impede de

    ir mais longe nesta direco. Em vez de um mtodo nico, seria preciso invocar um

    conjuntode mtodos esta soluo, contudo, s credvel se se estiver em condiesde precisar o que os mtodos em questo tm em comum, e nisso precisamente que

    reside a dificuldade.

    Na minha opinio, a filosofia analtica s pode ser caracterizada se que pode s-lo

    de todo por um certo esprito. De que esprito se trata? Talvez, muito simplesmente,

    do esprito cientfico! O esprito cientfico, num sentido que falta definir, animava a

    filosofia at Kant, e os filsofos analticos afirmam frequentemente fazer parte dele,passando por cima da reaco romntica dos grandes filsofos ps-kantianos que

    desvirtuaram o sentido do empreendimento filosfico ao precipitar o divrcio entre a

    cincia e a filosofia.

    preciso, bem entendido, que eu diga o que entendo por esprito cientfico. Em vez

    de citar Popper, o que nos conduziria onde desejo mas se arriscaria a constituir uma

    dessas interpretaes abusivas dos seus pontos de vista contra as quais protestaconstantemente, apoiar-me-ei na declarao liminar do filsofo polaco Ajdukiewicz (6)

    no Congrs International de Philosophie Scientifique que se realizou na Sorbonne em

    1935, incentivado pelos positivistas lgicos. O carcter cientfico, diz Ajdukiewicz, s

    pode ser atribudo a esse gnero de esforo intelectual que ultrapassa a conscincia

    individual e se torna um bem comum (7). A citao seguinte de Reichenbach faz eco a

    esta declarao de Ajdukiewicz, qual voltarei um pouco mais adiante:

    O carcter social do trabalho cientfico est na origem da sua fora os recursos da

    colectividade acrescentam-se ao poder limitado do indivduo, os erros do indivduo so

    corrigidos pelos outros membros da colectividade, e das contribuies respectivas de

    vrios indivduos inteligentes resulta uma espcie de inteligncia colectiva

    suprapessoal, capaz de encontrar respostas que um indivduo isolado no poderia

    nunca descobrir. (8)

    A investigao cientfica, nesta concepo, caracteriza-se pela intersubjectividade.

    Progride atravs da crtica mtua dos membros da comunidade cientfica, que se

    corrigem uns aos outros. O esprito cientfico da filosofia analtica reside no facto de a

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    investigao ser igualmente intersubjectiva e de progredir, como na cincia, pela crtica

    mtua dos membros da colectividade.

    A socializao da investigao implica certas obrigaes, que Ajdukiewicz glosa do

    seguinte modo:

    No basta respeitar os princpios da sinceridade intelectual, ou seja, no basta no se

    deixar guiar, nas opinies que se defendem, por nada que no seja a convico

    sincera apoiada numa reflexo profunda. -se alm disso obrigado a expor apenas o

    que se sabe exprimir por palavras intersubjectivamente compreensveis e o que est

    em condies de estabelecer e justificar, assumindo o compromisso de garantir esta

    justificao.

    Para que a formulao verbal seja intersubjectivamente compreensvel, no basta que

    exista a possibilidade de as nossa palavras serem convenientemente compreendidas

    por outros, preciso ainda [que exista a possibilidade de] serem compreendidas no

    seu sentido prprio. [Por outro lado,] assumimos a responsabilidade de garantir uma

    justificao quando ela acessvel ao controlo dos outros, que a podem verificar ou

    repetir. Um trabalho intelectual que no pudesse satisfazer as duas exigncias que

    acabamos de formular no poderia nunca tornar-se um terreno de colaborao e no

    teria o direito de tirar partido da designao de cincia.

    A observncia destes dois postulados determina o mtodo e a linguagem, restringindo

    ao mesmo tempo o mbito do nosso esforo filosfico. Quando queremos satisfazer as

    duas exigncias de que acabamos de falar, no podemos fazer nenhum uso da

    intuio bergsoniana, nem da Wesensschau de Husserl (respeitando no entanto o

    seu valor nos domnios que lhe so prprios) nem de mtodos anlogos, visto que os

    resultados a que estes mtodos conduzem no se deixam de todo formular de uma

    forma intersubjectivamente compreensvel e no se prestam a ser justificados de um

    modo que nos permita o compromisso de apresentar garantias. As teses adquiridas porestes meios podem ser verbalmente comunicadas aos outros, mas ento o uso das

    palavras apenas sugestivo, no desempenhando estas outro papel que no o de

    evocar nos auditores as reaces mentais desejadas. Enunciam-se ento as tese

    metaforicamente, faz-se uso de comparaes e exemplos, mas no se est em

    condies de as formular em expresses directas, quer dizer, tais que para serem

    entendidas baste compreend-las literalmente (9).

    Nesta passagem, Ajdukiewicz deduz da intersubjectividade caracterstica do trabalhocientfico duas obrigaes formais que se aplicam a priori a toda a filosofia de

    inspirao cientfica. Em primeiro lugar, preciso ser claro, quer dizer, literalmente

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    compreensvel por outro lado, preciso oferecer justificaes publicamente

    controlveis para as suas teses por exemplo, argumentos explcitos, cuja validade

    cada um possa comprovar por si mesmo. Mais do que algum elemento de doutrina ou

    algum mtodo particular, estas duas obrigaes formais parecem-me caractersticas da

    filosofia analtica.

    O que impressiona desde logo nos filsofos analticos , com efeito, a preocupao de

    clareza e de preciso, e o recurso sistemtico a argumentos. Os filsofos analticos no

    se contentam, como acontece frequentemente com os outros filsofos (a quem, falta

    de melhor termo, chamarei doravante os no-A), com afirmaes veementes ou

    metforas sucessivas ponderam, e s concedem crdito s suas prprias teses (ou s

    dos outros) na proporo dos argumentos invocados em seu favor. Por outro lado, no

    prprio enunciado das teses ou dos argumentos, os filsofos analticos desconfiam daobscuridade grandiloquente e vaga querendo antes de mais ser compreendidos, de

    modo a tornar possvel a crtica dos outros membros da colectividade filosfica,

    procuram a transparncia de expresso e empenham-se em precisar tanto quanto

    possvel os seus argumentos e anlises, sem se contentarem com uma imagem ou

    uma aluso. Da uma ateno minuciosa dedicada ao detalhe, ateno minuciosa que

    constitui, como a clareza e o recurso sistemtico aos argumentos, um dos traos

    caractersticos da filosofia analtica.

    Disse-se muitas vezes que os filsofos analticos so filsofos do detalhe: ocupam-se

    do microscpico em filosofia, ao passo que os no-A so mais atrados pelo

    macroscpico. Os atributos respectivos destas duas tradies so os seguintes: de um

    lado, a clareza, a preciso e a sobriedade do outro, a profundidade, o sentido de

    sntese e do grandioso. (A diferena entre as duas surge primeira vista: os filsofos

    analticos escrevem tradicionalmente pequenos artigos, consagrados resoluo de

    problemas de detalhe os no-A escrevem livros espessos e fazem sistemas. Para uns

    a miniatura, para os outros o fresco.) Mas na perspectiva analtica no serve de nada

    construir sistemas grandiosos se as fundaes so frgeis e os materiais friveis: os

    castelos de areia que se obtm deste modo s so bons para impressionar os

    ignorantes.

    Antes de avanar na caracterizao da filosofia analtica porque o que acabo de

    dizer no de modo algum suficiente gostaria de regressar impossibilidade,

    alegada mais atrs, de a definir por um qualquer trao doutrinal. As caractersticas que

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    acabo de enunciar, e as que muito provavelmente serei levado a formular na

    continuao, no correspondero a elementos de doutrina que, por sua vez, podem

    servir para caracterizar a filosofia analtica? No verdade que todo o filsofo analtico

    defende, precisamente pelo facto de o ser, a tese segundo a qual o filsofo se deve

    exprimir claramente, deve preferir os argumentos s afirmaes peremptrias, etc.? E

    se se admite isto, no se estar a admitir tambm, contrariamente ao que disse hpouco, que existem teses, elementos de doutrina, cuja adopo caracteriza mais ou

    menos a filosofia analtica?

    No creio. Existe uma diferena entre a teoria e a prtica dos filsofos e o que

    caracteriza a filosofia analtica uma certa prtica, no uma certa teoria. Pode muito

    bem acontecer que um filsofo analtico, criticando a sua prpria tradio, se declare

    partidrio do modo continental em filosofia foi assim que Hilary Putnam (um dosprincipais filsofos analticos contemporneos) pde sustentar recentemente que a

    viso de um filsofo conta mais que o rigor dos seus argumentos, e que a filosofia est

    mais prxima das artes que das cincias (10). Com este tipo de tomada de posio,

    Putnam, sem dvida nenhuma, aparenta-se teoricamente aos no-A mas na sua

    prtica permanece inteiramente um filsofo analtico. No repudiou, na prtica, os

    ideais da filosofia analtica que enunciei mais atrs (clareza, preciso, recurso aos

    argumentos, etc.) e s isso que conta. Indo mais longe, pode-se, parece-me,

    imaginar sem contradio um filsofo analtico que se declarasse abertamente hostil

    aos ideais da filosofia analtica um filsofo que dissesse preferir os slogans aos

    argumentos, o vago preciso, a opacidade transparncia, as metforas aos

    conceitos, etc. No creio que um tal filsofo deixasse ipso facto de ser um filsofo

    analtico: s deixaria de o ser se pusesse as suas teorias em prtica. (Do mesmo

    modo, bem entendido, um no-A que se declarasse favorvel aos ideais analticos nose tornaria por isso um filsofo analtico.)

    A distino que acabo de fazer entre a teoria e a prtica impede-me de conferir toda a

    sua importncia, entre as caractersticas da filosofia analtica, a um aspecto que no

    entanto me parece implicado pela intersubjectividade trata-se da ideia de que

    possvel umprogresso em filosofia. A clareza, a sobriedade, o recurso aos argumentos,

    etc., servem essencialmente para tornar possvel a crtica mtua dos membros dacolectividade filosfica e a crtica mtua por sua vez no tem outro fim que no a

    correco e o melhoramento das tentativas de cada um. Estas noes de correco e

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    de melhoramento implicam a de progresso e no se trata de um progresso puramente

    individual (desenvolvimento da personalidade filosfica ou aperfeioamento de um

    sistema concebido como obra de arte), pois a crtica mtua implica padres e

    objectivos comuns e no especficos do indivduo: a colectividade inteira que progride

    na sua investigao, graas crtica mtua dos seus membros. A imagem que a

    prtica dos filsofos analticos impe ento a de uma colectividade intelectual tendocertos objectivos e procurando atingi-los por tentativas e aproximaes sucessivas a

    de uma colectividade, numa palavra, progredindo na investigao da verdade.

    Infelizmente, a tese segundo a qual possvel um progresso em filosofia uma tese e

    como qualquer outra tese no pode servir para caracterizar a filosofia analtica. Tudo o

    que posso dizer a este respeito, portanto, que esta tese , a priori, mais atraente para

    um filsofo analtico do que para um no-A, e sobretudo que ela virtualmente

    implicada pela prpria prtica dos filsofos analticos.

    ideia de que possvel um progresso em filosofia ligo um outro aspecto caracterstico

    da filosofia analtica por oposio filosofia dos no-A: a recusa em confundir a

    filosofia com a histria da filosofia, e uma certa desenvoltura face aos grandes filsofos

    do passado (11).

    Os filsofos analticos interessam-se em primeiro lugar pelosproblemas filosficos, osquais tentam resolver (ou dissolver) e quando se interessam pelo que disseram os

    grandes filsofos do passado, secundariamente que o fazem, por interesse pelos

    problemas com os quais estes se confrontaram. Por consequncia, a atitude dos

    filsofos analticos face aos grandes filsofos do passado no essencialmente

    diferente, como j foi muitas vezes observado, da sua atitude face aos seus prprios

    colegas: uma atitude de colaborao em que o respeito no exclui a crtica. A um

    filsofo analtico no est interdito dizer: Plato engana-se, Descartes no tem razo

    neste ponto ou Nesta passagem Kant faz uma confuso. Os no-A ficam por vezes

    chocados com esta impudncia, mas preciso reparar que ela tambm uma forma

    de respeito: os problemas a que se dedicavam os grandes filsofos do passado (o

    problema da alma e do corpo, o problema da existncia do mundo exterior e dos outros

    espritos, o problema do nominalismo e do realismo, o problema da identidade pessoal,

    o problema da induo, etc.) so sempre actuais para os filsofos analticos: no socuriosidades arqueolgicas. por isso que, face a estes problemas, os filsofos

    analticos se sentem solidrios com os filsofos do passado comprometidos com

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    eles num mesmo empreendimento o que os autoriza a trat-los como tratam os seus

    colegas, corrigindo-os quando se oferece a ocasio.

    Os no-A, esses, sacralizam os grandes filsofos do passado. No se sentem de modo

    nenhum prximos deles, semelhantes a eles, confrontados com as mesmas

    dificuldades. Ao passo que os filsofos do passado, como os filsofos analticosactualmente, procuravam resolver problemas, os no-A no se interessam nada por

    estes o que lhes interessa em alto grau o que disseram os filsofos do passado. Os

    problemas que eles procuravam resolver no so julgados actuais, e algum que os

    tomasse a srio (um filsofo analtico, por exemplo) provocaria sorrisos. Os no-A

    antes de mais um historiador srio ou fantasista que toma o discurso filosfico

    como objecto. Os problemas, no melhor dos casos, s so tomados em considerao

    indirectamente, enquanto objecto de reflexo de um grande filsofo ao passo que,inversamente, para um filsofo analtico a reflexo dos grandes filsofos s

    indirectamente tomada em considerao, enquanto reflexo sobre um problema

    sempre actual.

    tempo de recapitular as caractersticas da filosofia analtica que estabeleci at agora.

    So elas:

    1. a clareza e a sobriedade

    2. o recurso aos argumentos

    3. a preciso, a mincia e o carcter explcito das teses e dos argumentos

    4. a recusa de reduzir a filosofia histria da filosofia.

    Por mais importante que seja a ideia de que possvel um progresso em filosofia, no

    podemos, pelas razes que disse atrs, inclu-la na presente lista. Todas estas

    caractersticas se prendem, de perto ou de longe, com o que chamei espritocientfico, definido pela intersubjectividade e a intersubjectividade (a prioridade

    concedida discusso, crtica mtua) constitui se se quiser uma quinta caracterstica,

    particularmente importante na medida em que a maior parte das outras decorrem dela.

    Resta-me introduzir uma sexta caracterstica, tambm particularmente importante: aos

    olhos de muita gente ela que define a filosofia analtica.

    II

    Como repararam todos os que tentaram definir a filosofia analtica, a linguagem ocupa

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    um lugar considervel no seu mbito: os filsofos analticos esto quase sempre

    dispostos a falar da linguagem do que tal enunciado, ou tal palavra, quer dizer, etc.

    Os filsofos analticos no perguntam: O que a justia? Em vez disso perguntam:

    Que queremos dizer com os predicados "justo" e "injusto"? E apressam-se a

    decompor esta questo metalingustica em vrias outras: Que tipos de coisas

    atribumos estes predicados? Uma tal atribuio susceptvel de verdade e falsidade?Se sim, sob que condies essa atribuio julgada verdadeira? Que processos

    utilizamos quando nos empenhamos numa tal avaliao?, etc. Do mesmo modo, as

    investigaes dos filsofos analticos sobre o conhecimento tomam a forma de uma

    reflexo sobre os enunciados da forma X sabe que P, as suas investigaes sobre a

    causalidade consistem em analisar os enunciados causais, e assim por diante. Em

    filosofia da religio, por exemplo, tm-se ttulos como O Estatuto Lgico de Deus (ou

    seja, da palavra Deus) em filosofia moral temos os ttulos seguintes:A Linguagem da

    Moral A Linguagem da tica tica e Linguagem A Lgica do Discurso Moral etc.

    Uma das crticas que mais frequentemente se fazem aos filsofos analticos assenta

    numa interpretao errada desta caracterstica: acusam-nos de ter abandonado o

    projecto tradicional da filosofia e de j no se interessarem pelas coisas, pelo mundo

    que nos rodeia, mas apenas pelas palavras, decaindo por isso da categoria de filsofos

    para a de linguistas. Esta crtica inteiramente infundada. Com efeito, se verdade

    que os filsofos analticos esto quase sempre dispostos a falar da linguagem, isso no

    implica que no falem da mesma coisa que os outros filsofos.

    Existem duas formas de defender a tese segundo a qual os filsofos analticos, ainda

    que se ocupem essencialmente da linguagem, falam da mesma coisa que os outros

    filsofos. A primeira consiste em sustentar que tambm os outros filsofos falam

    constantemente da linguagem (mesmo quando no se do conta disso), e a segunda

    que falar da linguagem pode ser uma forma de falar do resto do que no

    linguagem. Vamos considerar estas duas concepes, associadas respectivamente

    aos nomes de Carnap e de Quine, cada uma por sua vez.

    No fundamento da estratgia metalingustica em filosofia existe a ideia de que se pode

    dizer a mesma coisa de duas formas diferentes, e mais particularmente em dois nveis

    de linguagem diferentes. A noo de ordens de linguagens bem conhecida: quando

    falamos da realidade no lingustica, situamo-nos numa linguagem de primeira ordem

    numa segunda ordem (a ordem metalingustica), falamos da linguagem que, na

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    primeira ordem, nos permite falar da realidade a uma terceira ordem

    (metametalingustico), falamos da metalinguagem que, na segunda ordem, nos

    permite falar da linguagem da primeira ordem e assim por diante, indefinidamente.

    Carnap e Reichenbach sublinharam a possibilidade (enganadora, segundo eles) de

    transferncias de ordens de linguagem: o que acontece quando um pensamento

    logicamente dependente de uma certa ordem expresso por meio de um enunciadoque pertence gramaticalmente a um outra ordem. Assim, a verdade metalingusticax

    deixa-se reformular, em y, na ordem inferior de linguagem:

    x Submarino significa embarcao que anda debaixo de gua.

    y Um submarino uma embarcao que anda debaixo de gua.

    Aparentemente o enunciado ydiz qualquer coisa sobre submarinos mas, segundo

    Reichenbach (12), esta aparncia enganadora: a informao no diz respeito aos

    prprios submarinos, mas palavra submarino, de que y, comox, enuncia o

    significado.

    Na terminologia de Carnap, y um enunciado pseudo-objectivo, ou seja, um

    enunciado formulado como se incidisse sobre objectos no lingusticos, embora incida

    sobre formas lingusticas (13) o contedo de um tal enunciado metalingustico, diz

    ainda Carnap, mas est disfaradode enunciado objectivo. Para determinar se um

    enunciado aparentemente objectivo , de facto, pseudo-objectivo, Carnap (14) elabora

    um teste bastante complicado, cuja ideia de base que um enunciado aparentemente

    objectivo, como y, deve ser reputado de pseudo-objectivo precisamente pelo facto de

    ser equivalente ao enunciado metalingusticox. Esta noo de pseudo-objectivo

    pertinente para a anlise do discurso filosfico, pois segundo Carnap os enunciados

    filosficos que no so totalmente desprovidos de sentido (o que acontece com umcerto nmero de enunciados metafsicos), e que no so j explicitamente

    metalingusticos, so enunciados pseudo-objectivos, susceptveis, como y, de ser

    parafraseados por enunciados metalingusticos equivalentes. (Remeto o leitor

    interessado para a quinta parte de The Logical Syntax of Language, seco A, onde

    Carnap justifica esta tese com diversos argumentos e d exemplos de enunciados

    filosficos pseudo-objectivos e das suas tradues.)

    A ideia de Carnap que a filosofia globalmenteuma disciplina de segunda ordem

    uma disciplina metalingustica, por assim dizer, que incide no sobre factos objectivos

    mas sobre discursos. Esta ideia remonta a Wittgenstein, para quem a filosofia no um

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    discurso terico que vem juntar-se aos outros, mas uma actividade de clarificao (15).

    Segundo esta concepo, muito difundida entre os filsofos analticos, os homens tm,

    numa primeira ordem, um certo nmero de discursos (a palavra no faz parte do

    vocabulrio dos filsofos analticos, e evoca sobretudo a terminologia dos no-A): o

    discurso cientfico, bem entendido, mas tambm o discurso tico, o discurso poltico, o

    discurso esttico, etc. e a filosofia consiste em reflectir, numa segunda ordem, sobreestes discursos. Uma tal reflexo clarificadora no pode ser confundida com os

    discursos que toma por objecto, ainda que, como assinala Schlick, alguns discursos

    tenham por vezes necessidade dessa reflexo clarificadora para progredir. Regra geral,

    a exigncia de clareza, a exigncia reflexiva, no est forosamente ligada exigncia

    de progresso que anima o discurso cientfico por isso que Bouveresse chega a opor,

    no seu ltimo livro, a tica da clareza e a tica do progresso:

    Para os que julgam a filosofia unicamente em termos da contribuio hipottica para o

    saber futuro, o cmulo da futilidade representado pelos filsofos que pensam, como

    Wittgenstein, que o objectivo da actividade filosfica no a produo de estruturas

    cada vez mais complicadas e poderosas, mas a clareza e a transparncia das

    estruturas, quaisquer que sejam (Philosophische Untersuchungenprefcio). Uma vez

    que os progressos do saber apenas se podem efectuar numa certa confuso

    deliberadamente aceite e alimentada, a investigao da clareza por si mesma deve ser

    considerada como empreendimento obscurantista e reaccionrio por excelncia.

    Wittgenstein diria que justamente a exigncia de clareza, e no a da novidade e do

    progresso, que constitui a especificidade da filosofia e a torna estranha ao esprito da

    cincia Quando Frege censurava os matemticos da sua poca por no saberem e

    no procurarem saber de que falavam quando utilizavam palavras como nmero,

    varivel, identidade, etc., no pensava que a confuso conceptual impede

    necessariamente uma disciplina cientfica que tolera a sua progresso normal. O que o

    escandalizava era a depreciao qualitativa, e no a diminuio quantitativa doconhecimento matemtico que resulta desta atitude (16).

    Bouveresse cita ainda Wittgenstein, que compara as matemticas aos germes da

    batata, cujo crescimento no entravado pela obscuridade.

    Portanto, de acordo com esta concepo, a filosofia no nos diz nada sobre o mundo,

    mas esclarece-nos sobre os discursos que fazemos sobre o mundo, e por erro que os

    filsofos se exprimem no modo material, como se falassem do mundo, da realidade.

    Este gnero de impropriedade no tem em princpio consequncias, mas o

    desconhecimento dos filsofos sobre a natureza da sua disciplina teve por vezes

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    efeitos nefastos: acreditou-se que a filosofia se ocupava como as cincias de um

    aspecto da realidade ocupando as cincias o terreno da realidade natural, a filosofia

    dever-se-ia ocupar de uma realidade especial, sobrenatural, metafsica: da a ideia de

    que a filosofia tem uma dignidade particular que faz dela uma supercincia, a cincia

    do ser, da realidade ltima, por oposio s cincias locais, que tm por objecto os

    fenmenos.

    Ayer, numa interveno no colquio de Royaumont de 1958 sobre a filosofia analtica,

    d a entender que esta concepo metalingustica da filosofia unnime entre os

    filsofos analticos:

    Uma das razes pelas quais insistimos [] em dizer que a filosofia uma actividade

    que incide sobre a linguagem, que estamos convencidos que a filosofia no est em

    condies de rivalizar directamente com as cincias de que ela , por assim dizer,

    uma actividade secundria, ou seja, que no incide directamente sobre os factos mas

    sobre o modo como exprimimos os factos. E por isso que ns, que de outros pontos

    de vista estamos muito divididos [], estamos completamente de acordo neste ponto.

    No se pode considerar que o que os franceses chamam reflexo filosfica possa ser

    uma reflexo que incida directamente sobre os factos, e no sobre o modo de

    descrever os factos. Dito de outro modo, para ns no cabe na filosofia uma espcie

    de supercincia. (17)

    Ayer, neste passo, retoma palavra por palavra a posio que defendia j em 1936, no

    seu compndio de positivismo lgico para uso do pblico ingls, Linguagem, Verdade e

    Lgica. absolutamente notvel que no s Ayer no tenha mudado nesta questo (ao

    passo que, como os outros neo-positivistas, abandonou grande nmero das suas

    posies anteriores), mas tambm que esta questo obtenha, se o que ele diz

    verdade, a unanimidade entre os filsofos analticos presentes no colquio Royaumont,ainda que estes filsofos se oponham uns aos outros em numerosos aspectos. Tudo se

    passa como se a ideia de que a filosofia uma disciplina de segunda ordem estivesse

    definitivamente adquirida depois de Wittgenstein e dos neopositivistas, ao contrrio de

    um certo nmero de ideias que, tendo sido defendidas por eles, acabariam por ser

    rejeitadas pelos seus sucessores.

    Na verdade, Ayer engana-se: nem todos os filsofos analticos e, desde logo, nemtodos os que estavam presentes em Royaumont esto de acordo com esta

    caracterizao da filosofia herdada de Wittgenstein e do positivismo lgico. Mas

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    sintomtico que Ayer se tenha enganado neste ponto, porque este erro um dos mais

    difundidos sobre a filosofia analtica: actualmente muito comum fazer da tese

    segundo a qual a filosofia uma disciplina de segunda ordem (uma disciplina crtica

    em vez de terica) um dogma da filosofia analtica, ou pelo menos um princpio

    fundamental que um filsofo analtico no pode deixar de aceitar.

    J disse, por vrias vezes, que nenhuma tese tal que um filsofo analtico no possa

    deixar de a aceitar sem deixar de ser filsofo analtico. A tese segundo a qual a filosofia

    uma disciplina de segunda ordem no excepo a esta regra: no s um filsofo

    analtico poderia, sem se desvirtuar, recusar esta tese, como alm disso muitos o

    fizeram, entre os quais filsofos analticos de primeiro plano como Russell, Popper,

    Quine e Austin. Por muito difundida que esteja este tese oriunda de Wittgenstein, no

    se pode portanto consider-la como essencial filosofia analtica.

    Segundo Russell e Austin, a filosofia no se distingue das cincias pelo seu objecto

    no pode por isso dizer-se que ela incide sobre os discursos ao passo que a cincia

    incide sobre a realidade. A cincia e a filosofia so um s e o mesmo projecto que visa

    o conhecimento, e o que distingue a filosofia das cincias , se se quiser, puramente

    negativo: o facto de que, contrariamente cincia, a filosofia no se pode orgulhar de

    nenhum resultado positivo. Este facto, todavia, no revela necessariamente umadeficincia intrnseca da filosofia, que seria incapaz de obter resultados slidos. Com

    efeito, como assinala Russell:

    Logo que, sobre qualquer assunto, se torna possvel um saber definido, esse assunto

    deixa de ser chamado filosofia, e torna-se uma cincia separada. O estudo dos cus

    na sua totalidade pertence hoje astronomia houve um tempo em que esta estava

    includa na filosofia. A grande obra de Newton tinha por ttulo Os Princpios

    Matemticos da Filosofia Natural. Do mesmo modo, o estudo do esprito humano, que,

    h pouco tempo ainda, fazia parte da filosofia, desligou-se dela e tornou-se a cincia

    da psicologia. Mostra-se assim que, em larga medida, a incerteza da filosofia mais

    aparente que real: as questes s quais somos desde j capazes de dar respostas

    definidas so colocadas nas cincias, e s as outras questes, para as quais no

    podemos fornecer tais respostas, permanecem para constituir esse resduo a que se

    chama filosofia. (18)

    Austin desenvolveu, por vrias vezes, concepes anlogas:

    A filosofia est sempre a ir alm das suas fronteiras e a entrar nos domnios dos seus

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    vizinhos. Creio que o nico modo claro de definir o objecto da filosofia dizer que ela

    se ocupa de todos os resultados, de todos os problemas que permanecem ainda

    insolveis depois de tentados todos os mtodos experimentados noutras reas. Ela o

    depsito dos restos das outras cincias, onde se encontra tudo o que no se sabe

    como agarrar. A partir do momento em que se encontra um mtodo respeitvel e

    seguro para tratar uma parte destes problemas residuais, logo uma cincia nova se

    forma, que tende a desligar-se da filosofia medida que define o seu objecto e afirma

    a sua autoridade. ento baptizada: matemtica o divrcio data de h muito ou

    fsica a separao mais recente ou psicologia, ou lgica matemtica o corte

    ainda est fresco ou at, quem sabe, amanh talvez gramtica ou lingustica? Creio

    que deste modo a filosofia transbordar cada vez mais do seu leito inicial. (19)

    Dada a sua concepo de filosofia, nem Russell nem Austin podem admitir a tese

    segundo a qual a filosofia uma disciplina de segunda ordem que tem por objecto alinguagem e os discursos de primeira ordem. (Passa-se o mesmo, como indiquei, como

    filsofos como Popper e Quine, ainda que as suas concepes no sejam idnticas s

    de Russell e Austin.) No entanto, estes filsofos no so menos fiis que os outros

    estratgia metalingustica: no se distinguem, neste aspecto, dos outros filsofos

    analticos. A concluso que se impe a seguinte: preciso dissociar o recurso

    estratgia metalingustica, que um dos traos fundamentais da filosofia analtica, da

    justificao carnapiana desta estratgia, justificao baseada numa concepodiscutvel da filosofia como disciplina de segunda ordem.

    Para dissociar a estratgia metalingustica em filosofia da sua justificao carnapiana

    preciso comear por distinguir duas ideias estreitamente associadas em Carnap e

    Reichenbach: a ideia de que um certo nmero de enunciados aparentemente

    objectivos se deixam parafrasear por enunciados metalingusticos (mais ou menos)

    equivalentes, a ideia de que a formulao metalingustica (no modo formal) maiscorrecta que a outra (no modo material), a qual apenas pseudo-objectiva e

    esconde a verdadeira natureza da informao veiculada. perfeitamente possvel

    rejeitar a segunda ideia sem rejeitar a primeira: o que faz Quine, que aceita a

    distino entre o modo formal e material como duas maneiras de exprimir a mesma

    coisa, mas recusa conceder a primazia primeira, o que o leva a recusar a noo de

    enunciado pseudo-objectivo (20). Do mesmo modo, Austin admitiria certamente que um

    enunciado definidor como yequivale mais ou menos ax, mas recusaria dizer quex a

    forma correcta e y a incorrecta. Reichenbach justifica esta ideia dizendo que em y,

    apesar das aparncias, o que est em causa a palavra submarino e no a coisa:

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    pode construir-se um submarino, diz ele, mas no defini-lo (visto que a palavra

    que definida). Mas Austin pensa precisamente que numa definio o que est em

    causa tanto a palavra como a coisa, o que explica que a mesma definio possa ser

    indiferentemente expressa por meio dex e de y:

    Ainda que possamos perguntar de forma sensata Cavalgamos a palavra "elefante" ou

    o animal?, e de forma no menos sensata Escrevemos a palavra ou o animal?, no

    teria qualquer sentido perguntar Definimos a palavra ou o animal?. Porque definir um

    elefante (se que alguma vez fazemos tal coisa) uma forma global de descrever

    uma operao que implica ao mesmo tempo a palavra e o animal (21)

    Correspondendo s duas ideias que acabamos de distinguir, existem duas formas de

    responder objeco segundo a qual a filosofia analtica esquece o projecto tradicional

    da filosofia e se fecha numa considerao estril da linguagem. Pode-se dizer, emprimeiro lugar, seguindo Carnap, que todo o enunciado filosfico com sentido um

    enunciado metalingustico, qualquer que seja o modo como formulado (no modo

    formal ou no modo material) deste ponto de vista, os filsofos analticos mais no

    fazem do que explicitar, optando por exprimir-se tanto quanto possvel no modo formal,

    uma caracterstica geral do empreendimento filosfico, e os seus enunciados no so

    metalingusticos por oposio aos enunciados dos filsofos tradicionais, que seriam

    objectivos: os enunciados dos filsofos tradicionais (desde que tenham sentido)

    tambm so metalingusticos, ainda que por vezes tenham uma aparncia de

    objectividade.

    A outra resposta menos radical, mas tem o mrito de no depender, como a primeira,

    de uma doutrina particular sobre a natureza dos enunciados filosficos. Consiste

    simplesmente em constatar a equivalncia entre as formulaes metalingusticas dos

    filsofos analticos e os enunciados objectivos (ou aparentemente objectivos) que

    lhes correspondem. Dizer que a justia tal ou tal coisa, definir a justia mas

    tambm, e de forma idntica, enunciar as condies de aplicao do predicado justo.

    Uma definio, como sublinha Austin, tanto uma definio da coisa como da palavra,

    e as questes O que a justia? e Quais so as condies de aplicao do

    predicado "justo"? no so duas questes diferentes, mas a mesma questo

    formulada de duas maneiras diferentes. Do mesmo modo, interrogar-se sobre o que o

    conhecimento interrogar-se sobre as condies de verdade que devem ser satisfeitas

    para que se possa dizer de alguma pessoa que ela conhece algo, e portanto

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    interrogar-se sobre as condies de verdade dos enunciados do tipo Xsabe que P.

    As formulaes metalingusticas da filosofia analtica, olhadas deste ponto de vista, so

    inofensivas e no representam uma desnaturao do projecto tradicional da filosofia.

    (Alis, os prprios filsofos do passado recorreram amplamente a tais formulaes.)

    A segunda resposta tem o mrito de ser filosoficamente mais neutra que a primeira,mas tambm tem um inconveniente que a primeira no tem: no diz nada sobre as

    razes que podem existir para se adoptar a estratgia metalingustica em filosofia. Diz

    apenas que no se correm riscos ao adopt-la. Mas, se a formulao objectiva e a

    formulao metalingustica so equivalentes, por que seria uma prefervel outra? Por

    que seria ento preciso privilegiar sistematicamente as formulaes metalingusticas?

    Parece difcil responder a estas questes sem aderir posio de Carnap, para quem

    os enunciados filosficos, como quer que sejam formulados (e desde que no sejamdesprovidos de sentido), so intrinsecamente metalingusticos. Iremos ver, contudo,

    que se pode responder a estas questes mesmo se se pensar, como Quine, que os

    enunciados filosficos no so menos objectivos que os enunciados das cincias.

    A noo de transferncia de ordem de linguagem no se limita aos casos em que um

    contedo metalingustico expresso na ordem inferior de linguagem: ela pode

    igualmente cobrir os casos em que um contedo objectivo expresso na ordemsuperior de linguagem, ou seja, de forma metalingustica. Quine baptizou de ascenso

    semntica esta transferncia particular de ordem de linguagem, diferente daquela de

    que temos vindo a falar at agora.

    A ascenso semntica o processo que consiste em exprimir na ordem da

    metalinguagem uma informao dependente da ordem inferior de linguagem: para

    exprimir uma certa informao de ordem n, ascende-se, na escala semntica dasordens de linguagem, para a ordem n+1. Consideremos, para ilustrar este mecanismo,

    os enunciados ae b:

    a A neve branca.

    b O enunciado A neve branca verdadeiro.

    O enunciado bincide metalinguisticamente sobre o enunciado a, ao qual atribui a

    propriedade de ser verdadeiro mas ao mesmo tempo incide sobre a realidade de que

    fala o enunciado a. Como diz Quine (22), atribuir ao enunciado A neve branca a

    propriedade de ser verdadeiro , ipso facto, atribuir neve a propriedade de ser

  • 7/25/2019 Franois Recanati - Pela Filosofia Analtica

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    branca. Enunciar b, portanto, uma maneira(indirecta) de dizer o que diz o enunciado

    a, a saber, que a neve branca: a informao veiculada pelo enunciado a, ainda que

    dependente da primeira ordem ( da realidade que se trata em a, e no da linguagem),

    expressa, em b, na ordem superior de linguagem.

    H ascenso semntica ou, para empregar uma expresso que prefiro, desviometalingustico, quando se diz alguma coisa no directamente, como em a, mas

    indirectamente, dizendo algo sobre o enunciado que diz essa coisa. Por meio do

    enunciado bdiz-se que a neve branca dizendo que o enunciado que diz que a neve

    branca verdadeiro. Um tal desvio justifica-se s vezes por razes tcnicas. Na sua

    Philosophy of Logic(23) Quine d o exemplo seguinte. Dadas duas proposies no

    metalingusticas, como Scrates mortal, Aristteles mortal, Tom mortal (ou

    igualmente: Scrates Scrates, Aristteles Aristteles, Tom Tom) podeefectuar-se a operao lgica de generalizao sem mudar de ordem de linguagem:

    Todos os homens so mortais e Qualquer homem ele mesmo pertencem mesma

    ordem de linguagem que Scrates mortal e Scrates Scrates. Mas se se

    tomam proposies mais complexas, como A neve branca ou no branca,

    Scrates mortal ou no mortal, O gato um animal ou no um animal, etc., e

    se tenta efectuar a operao de generalizao, -se forado a mudar de ordem de

    linguagem e a dizer que todos os enunciados de tipo Pou no P so verdadeiros.

    Como sublinha Quine, o que obriga a esta ascenso semntica no o facto de "Tom

    mortal ou Tom no mortal" incidir de algum modo sobre os enunciados ao passo

    que "Tom mortal" e "Tom Tom" incidem sobre Tom. Os trs incidem sobre Tom. A

    mudana de ordem de linguagem no provocada pela natureza das informaes em

    jogo (tanto os enunciados do tipo Scrates mortal ou no o como os do tipo

    Scrates Scrates falam do mundo e so no metalingusticos), mas pelo modooblquo como as exemplificaes sobre as quais efectuamos a generalizao esto

    ligadas umas s outras no caso das proposies complexas. portanto por uma razo

    puramente tcnica que fazemos um desvio pela metalinguagem, e este desvio no tem

    consequncias com efeito, ainda que passemos ordem superior de linguagem, no

    deixamos de falar da realidade no lingustica, pois dizer que um enunciado

    verdadeiro dizer o que diz esse enunciado. Se os enunciados que declaramos

    verdadeiros falam da realidade no lingustica, ento os enunciados metalingusticospor meio dos quais os declaramos verdadeiros falam igualmente, apesar das

    aparncias, da realidade no lingustica.

  • 7/25/2019 Franois Recanati - Pela Filosofia Analtica

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    Do mesmo modo, pode justificar-se por razes tcnicas ou formais o facto de os

    filsofos analticos conduzirem sistematicamente as suas discusses ao nvel da

    metalinguagem. Os filsofos analticos, como vimos, procuram ser claros, precisos e

    explcitos, de modo a poderem ser compreendidos e, portanto, criticados pelos seus

    colegas. Ora, h sempre um risco de equvoco, mesmo quando nos exprimimos de

    forma clara mas diminui-se este risco se, no ficando satisfeito com enunciar(claramente) a sua tese ou a sua teoria, o filsofo tornar preciso o que quer dizer com

    ela, de modo a prevenir eventuais mal-entendidos: ento, o enunciado Pdo filsofo

    desdobra-se num enunciado metalingustico (ou num conjunto de tais enunciados) Q,

    cuja funo analisar P, especificar a sua interpretao e explicitar as suas

    implicaes. Uma tal reflexo analtica do filsofo sobre os seus prprios enunciados

    (cuja forma mais simples o comentrio Quer dizer com isto que) torna o que ele

    diz ao mesmo tempo mais claro, mais preciso e mais explcito.

    Criticando a tese ou a teoria P, um outro filsofo, ao responder ao primeiro, seguir o

    mesmo caminho: situando-se desde logo ao nvel da metalinguagem, procurar

    mostrar que, entre as implicaes de P, existe uma que indesejvel ou ento

    procurar mostrar que Pno implica, contrariamente ao que pensara o primeiro

    filsofo, uma certa proposio Rcuja verdade era precisamente o que se tratava de

    explicar, de modo que P, enquanto tal, j no pode ser considerada uma explicao

    satisfatria ou ento tentar prosseguir a anlise e, distinguindo duas interpretaes

    possveis de P, examin-las- separadamente de forma crtica, para concluir que se

    deve rejeitar quer uma, quer a outra, quer as duas (demonstrar, por exemplo, que a

    tese ou a teoria P falsa numa interpretao e trivial na outra) poder igualmente levar

    a cabo uma comparao de Pcom uma teoria alternativa P', e concluir pela

    superioridade desta em termos de economia conceptual ou de simplicidade terica eassim por diante.

    evidente que o filsofo que partida prope a tese Ppode tambm ele colocar-se

    desde logo no plano metalingustico. Em vez de afirmar P, pode, simplesmente,

    anunciar esta tese e fazer dela o objecto da sua investigao: s no termo das suas

    anlises o seu discurso metalingustico sobre Paparecer como equivalente a uma

    afirmao de P: com efeito, dizer que uma tese filosoficamente satisfatria, que

    resolve o problema que se propunha, ou que melhor que as teses alternativas que

    foram propostas, o mesmo que defender essa tese, que fazer-se seu advogado o

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    mesmo que afirmar a referida tese com argumentos favorveis. Do mesmo modo,

    mostrar, como o adversrio de P, que esta tese no satisfatria ou que inferior a

    uma outra, o mesmo que atacar a referida tese. Pode-se portanto afirmar e combater

    uma tese situando-se ao nvel da metalinguagem e tomando-a como objecto.

    O interesse deste artifcio no se reduz ao facto de que, graas a ele, os filsofos seexprimem de forma mais clara e mais explcita. A clareza e a preciso, como vimos,

    servem essencialmente para tornar possvel a discusso, a crtica mtua. Ora, no

    existe discusso possvel se no h uma base mnima de acordo que permita

    circunscrever o desacordo a crtica mtua pressupe um quadro terico comum no

    interior do qual os antagonistas se possam opor. O desvio metalingustico tem por

    funo, nomeadamente, fornecer uma tal base mnima de acordo, um tal quadro terico

    mnimo. Quine formula esta ideia do modo seguinte:

    Uma das principais razes pelas quais preferimos concentrar-nos na linguagem que

    se nos dirigimos directamente aos problemas dos fundamentos da realidade corremos

    o risco de introduzir um conjunto de pressuposies que tocam nos esquemas

    conceptuais mais profundos, nos hbitos de pensar e de sentir mais enraizados, a tal

    ponto que nenhum dos antagonistas pode opor o seu ponto de vista aos de outros sem

    dar a ideia de incorrer numa petio de princpio. Pode discutir-se infindavelmente

    deste modo sobre as faculdades e as entidades, que ningum concebe da mesma

    maneira. Cada um manter o seu ponto de vista, que procede de um esquema

    conceptual oposto. Ora, a retirada filosfica para a linguagem um processo que nos

    ajuda a escapar a tais crculos viciosos. Vejamos como.

    A funo central e primordial da linguagem tratar dos objectos comuns, de dimenso

    corrente, de uso familiar, do gnero daqueles que encontramos no mercado. aqui

    que quaisquer interlocutores se podem entender perfeitamente apesar de qualquer

    desacordo no que respeita aos seus pontos de vista ontolgicos. Ora, as prprias

    palavrasconstituem uma das espcies de tais objectos comuns de dimenso corrente,

    e por conseguinte as pessoas entendem-se bem ao discutir as palavras, apesar de

    qualquer desacordo ontolgico. Bem, ento eis o truque: transformar a discusso

    ontolgica em discusso da linguagem, de modo a insistir no j sobre tais ou tais

    pretensos factosontolgicos irredutveis, mas antes sobre os benefcios e os objectivos

    metodolgicos que favorecem tal ou tal teoriadiscursiva ontolgica. O truque retirar-

    se da discusso directa dos traos fundamentais da realidade e em vez disso virar-separa a discusso das virtudes pragmticas das teorias da realidade. (24)

    Portanto, a ideia de base que se diz a mesma coisa no modo material e no modo

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    metalingustico, mas que este ltimo tem a vantagem de fornecer um ponto de partida

    concreto sobre o qual os antagonistas podem entender-se perfeitamente. Se se

    pergunta O que a justia? (25), haver uma confrontao de pontos de vista

    opostos sem que aparea uma possibilidade de arbitragem mas se se pergunta Quais

    so as condies de aplicao do predicado "justo"? ou Que processos utilizamos

    quando nos empenhamos numa avaliao em termos de justia e de injustia?, serpossvel opor contra-exemplos a uma primeira tentativa de resposta, ou seja, casos

    que ilustrem o facto de que as condies ou os processos propostos no so os bons.

    O ponto importante que o proponente e o oponente se ponham de acordo pelo

    menos sobre o objectivo que se propem: fornecer condies necessrias e suficientes

    para a aplicao de um predicado, ou fornecer processos, ou no importa o qu,

    conforme a natureza do predicado em questo. Sendo assim, em face de contra-

    exemplos que tendam a denunciar uma certa proposio em anlise como no

    satisfatria, suposto que o proponente modifique a sua proposio ou mostre que os

    contra-exemplos so apenas aparentes e que de facto, correctamente analisados, so

    compatveis com ela. A discusso progride deste modo essencialmente porque se

    atinge um consenso mnimo sobre os objectivos do processo e o modo de proceder.

    III

    Procurei mostrar nas partes anteriores que as caracterizaes substanciais da

    filosofia analtica so inaceitveis. A filosofia analtica, como disse, no se caracteriza

    nem por uma doutrina particular, nem por um domnio de investigao, nem mesmo por

    um mtodo, mas apenas por um esprito ou por um estilo. Qualquer tentativa de

    caracterizao substancial fracassa perante o facto de que o movimento analtico

    sobreviveu ao abandono das doutrinas mais centrais do neopositivismo e ao

    alargamento dos interesses e dos mtodos para alm dos domnios que em primeiro

    lugar integravam o movimento (filosofia da lgica e epistemologia).

    Esta questo da caracterizao da filosofia analtica (por oposio filosofia dita

    continental (26)) est no centro do debate em que desejo intervir agora: o debate

    entre filsofos analticos tradicionais e filsofos ps-analticos. Os primeiros, nos

    quais me incluo, suspeitam da filosofia Continental e afirmam de boa vontade a sua

    diferena. Os segundos, vindos da tradio analtica, declaram-se a favor de uma

    superao desta e espreitam com agrado para o lado do outro da filosofia analtica, a

    saber, a filosofia Continental.

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    Parece-me que as razes para desejar uma superao da filosofia analtica (ou para

    considerar essa superao realizada) so indissociveis de uma concepo

    substancial da filosofia analtica. De facto, o elenco de argumentos da filosofia ps-

    analtica faz essencialmente apelo renovao doutrinal efectuada por filsofos como

    o segundo Wittgenstein, Quine ou Davidson. Esta renovao doutrinal conduziu ao

    abandono de um certo nmero de dogmas da filosofia analtica como o atomismosemntico ou a distino analtico/sinttico. igualmente posta em causa a ideia de

    que a filosofia, enquanto empreendimento cognitivo, se situaria ao lado da cincia e

    no da literatura. A recolocao de todas estas questes explica o interesse dos

    filsofos ps-analticos pela filosofia Continental, que nunca esteve submetida aos

    dogmas rejeitados.

    Mas se tive razo em afirmar que a verdadeira diferena entre filosofia analtica efilosofia Continental formal (estilstica) em vez de substancial (doutrinal), ento as

    pretensas justificaes doutrinais avanadas pelos filsofos ps-analticos a favor de

    uma mudana de atitude para com a filosofia Continental perdem a fora. As razes

    que um filsofo analtico tradicional tem para estar contraa filosofia Continental so em

    primeiro lugar razes formais. um estilode filosofia que se pretende promover

    quando se defende o ideal da filosofia analtica, e no uma doutrina ou um conjunto de

    doutrinas. Recorde-se o que foi dito anteriormente sobre Putnam.

    Sendo Hilary Putnam um dos arautos da filosofia ps-analtica, o exemplo

    particularmente bem escolhido dadas as necessidades da presente demonstrao.

    Sustento que um filsofo analtico pode abandonar os dogmas mais caros filosofia

    analtica e contudo permanecer inteiramente um filsofo analtico desde que continue a

    argumentar do modo que caracteriza a filosofia analtica. precisamente o que faz

    Putnam. Quem alguma vez negou seriamente que ele tenha sido e continue a ser um

    filsofo analtico? S isso basta para mostrar que a verdadeira diferena entre analtico

    e Continental formal, como afirmo. Portanto, no plano formal que se deve situar o

    debate entre partidrios e adversrios da filosofia analtica.

    Ora, no plano formal, a filosofia analtica tradicional no tem nenhuma dificuldade em

    fazer prevalecer o seu ponto de vista. Quem pretenderia recusar o ideal estilstico da

    filosofia analtica? Este ideal consiste no emprego de argumentos to explcitos quanto

    possvel, de modo a clarificar o debate filosfico e a favorecer, pela elucidao das

    teses em presena, a crtica mtua das teorias adversas. Alguns, no terreno ps-

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    analtico, parecem ter a inteno de recusar este ideal, mas abstm-se de passar

    aco. Assim, Putnam declara que David Lewis no mais claro que Derrida

    dando a entender que o que ou no claro questo de convenes mas ele

    prprio escreve mais como David Lewis do que como Derrida. Deveremos ver nisso

    uma muito contingente questo de hbito? No creio: enquanto filsofo, Putnam no

    seria Putnam se escrevesse de forma diferente. essencial a Putnam o filsofoser umfilsofo analtico que escreve como escreve. Seja como for, Putnam um caso extremo

    no muito menos extremo do que Rorty. Os outros partidrios da superao tomam

    o cuidado de precisar que querem continentalizar um pouco a filosofia analtica no

    plano doutrinal (quer dizer, importar ideias novas) conservando as qualidades

    estilsticas da filosofia analtica.

    Em concluso, parece-me que estamos em presena de uma disjuno poucofavorvel ao ponto de vista ps-analtico. Das duas uma:

    Ou nos situamos no plano doutrinal, e ento o debate que o filsofo ps-analtico quer

    introduzir um falso debate, que visa um adversrio falso (o suposto filsofo analtico,

    definido substancialmente). Toda a gente est de acordo em superar a filosofia

    analtica, se ela for entendida como um conjunto de doutrinas historicamente datadas

    que j ningum defende hoje toda a gente est de acordo em superar Carnap, por

    exemplo. (H muito que isso est feito.) Pessoalmente, estaria mesmo de acordo em ir

    mais longe e em ultrapassar os filsofos aos quais se atribui a referida superao

    Quine, Davidson e os outros. Superemos vontade, a questo no essa!

    Ou nos situamos no plano formal, e ento o filsofo ps-analtico deve tomar conscincia

    da sua prpria prtica e assumi-la com toda a lucidez, em vez de a depreciar verbalmente

    numa pose narcsica de auto-humilhao.

    Ser realmente impossvel ou indefensvel uma caracterizao substancial da filosofia

    analtica? Sustentei esta posio argumentando com o facto de no haver doutrina ou

    mtodo que um filsofo analtico no possa eventualmente recusar, continuando a ser

    um filsofo analtico. Mas este argumento nada pode contra uma caracterizao

    substancial mais flexvel, fundada na noo de tipicidade. Um filsofo analtico tpico

    (na verdade, um prottipo do filsofo analtico) seria um filsofo como Carnap, que

    adere a determinadas doutrinas, no interior de um determinado domnio, utilizando

    determinados mtodos. Quanto maior fosse a distncia relativamente a este prottipo,menos se estaria na filosofia analtica. Nesta ptica, reconhece-se a possibilidade de

    fazer filosofia analtica tratando de tica aplicada ou de metafsica, ou rejeitando este

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    ou aquele dogma do empirismo lgico, mas conserva-se ainda assim a ideia de uma

    caracterizao substancial fundada num pequeno nmero de traos distintivos.

    No creio que esta aproximao d conta de forma satisfatria do que se chama

    filosofia analtica, pois tende a minimizar a sua evoluo. A filosofia analtica evoluiu

    de tal modo no decurso da sua histria que o que era tpico numa poca deixou de oser.Assim, era tpico numa poca rejeitar a metafsica, e um metafsico confesso

    (Whitehead, por exemplo) no podia deixar de se situar fora da filosofia analtica. Mas

    actualmente a metafsica um dos principais domnios da filosofia analtica, a ponto de

    um filsofo analtico tpico como David Lewis ser antes de mais um metafsico. No

    pode portanto reduzir-se a evoluo e a pluralizao da filosofia analtica ao

    aparecimento de filsofos analticos relativamente atpicos no que respeita aos critrios

    que prevaleciam nos anos 20 (e que nos permitiriam, hoje ainda, avaliar a tipicidade ouatipicidade de um filsofo analtico) foram os prprios critrios de tipicidade que

    evoluram. Houve, se se quiser, uma multiplicao dos prottipos.

    verdade que se poderia sustentar que a noo de filosofia analtica se esbateu um

    pouco desde o afastamento do ideal positivista. A pluralidade da filosofia analtica faz a

    noo estar um pouco menos circunscrita, um pouco mais subtil que no passado. Mas

    o que importante, aos olhos dos zeladores da filosofia analtica, o que permanece,o que no mudou: o estilo, o apego a certos valores como a clareza e a

    intersubjectividade. Encontramos de novo o mal-entendidoprinceps: aqueles que

    querem superar a filosofia analtica entendem-na num sentido estreito que

    precisamente os seus zeladores recusam.

    De resto, existe mesmo uma diferena de atitude relativamente filosofia Continental.

    O partidrio da superao da filosofia analtica benvolo, o partidrio da filosofiaanaltica desconfiado. Tambm neste caso est envolvida a escolha de uma

    caracterizao substancial ou formal. Porque se existem grandes diferenas estilsticas

    entre a filosofia analtica e filosofia Continental, pode existir pontualmente uma certa

    aproximao de doutrinas. Decorre daqui um argumento prtico a favor de uma

    concepo substancial (em vez de formal ou estilstica) das solidariedades filosficas:

    uma tal concepo conduz ao pluralismo, ao passo que o partidrio da filosofia

    analtica se fecha na sua capela e no seu sectarismo, e no quer deixar entrar ningum

    que no seja gemetra. Chamo a este argumento prtico o argumento do pluralismo.

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    Respondo que o pluralismo que assim se privilegia um pluralismo muito particular:

    com um esprito ecumnico, toleram-se estilos, modos diferentes de filosofar, e aquilo

    que conta a convergncia das doutrinas, ou melhor, o parentesco dos universos

    filosficos instaurados nestes diversos modos. A filosofia analtica, essa, favorece um

    outro tipo de pluralismo, que consiste em encorajar a multiplicao das doutrinas e das

    divergncias tericas, e o que conta a qualidade da argumentao. O primeiropluralismo testemunho de uma orientao mais ideolgica, no sentido que dei a

    este termo na introduo ao primeiro nmero de L'ge de la science(27): o fim conta

    mais que os meios, as concluses so mais determinantes que os argumentos que a

    elas conduzem. Seja como for, trata-se de duas formas diferentes de pluralismo, e no

    de uma oposio entre pluralismo e no pluralismo. Existe um sentido em que a

    filosofia analtica se define pelo seu pluralismo, pelo seu carcter essencialmente

    aberto (em virtude precisamente do seu carcter argumentativo, lgico). Este

    pluralismo vale o outro.

    Para terminar desejaria evocar um contra-ataque possvel do filsofo ps-analtico: este

    poderia sustentar que precisamente uma caracterizao puramente formal da filosofia

    analtica, como a que preconizo, impossvel. Existem pelo menos duas teses que um

    filsofo analtico no poderia recusar, e que parecem definir um fundo comum de

    doutrina partilhado por todos os filsofos analticos. Por um lado, a tese segundo a qual

    possvel, pela crtica mtua e pela refutao, progredir de forma colectiva em filosofia

    esta tese, como anteriormente sublinhei, a justificao ltima da prtica

    argumentativa dos filsofos analticos. E por outro lado a tese segundo a qual a

    filosofia, enquanto disciplina argumentativa, se ocupa deproblemase visa uma

    realidade diferente de si mesma. Estas duas teses so constitutivas de uma posio

    metafilosfica que denomino por cognitivismo, e que est subjacente prtica dosfilsofos analticos. Ao cognitivismo ope-se uma concepo de filosofia como

    disciplina auto-interpretativa fechada sobre si mesma e votada ao repisar da sua

    prpria histria. Estas duas concepes defrontam-se sobre a questo das relaes

    que a filosofia mantm com a sua histria, por um lado, e com a cincia e o senso

    comum, por outro. concepo cognitivista ligam-se as duas ideias seguintes,

    vigorosamente rejeitadas pela filosofia Continental: que se pode dissociar a filosofia da

    histria da filosofia (como se pode dissociar a qumica da histria da qumica), e queno existe soluo de continuidade entre a filosofia, a cincia e o senso comum.

  • 7/25/2019 Franois Recanati - Pela Filosofia Analtica

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    Admito de boa vontade que uma metafilosofia de tipo cognitivista est implicada na

    prpria prtica da filosofia analtica, mas defendo que est implicada de forma

    essencialmente prtica. Por outras palavras, as teses cognitivistas enunciadas acima

    devem ser concebidas como princpios reguladores de valor normativo e no como

    princpios tericos ou descritivos. Aceit-las leva a fazer boa filosofia do ponto de vista

    analtico, ou seja, uma filosofia clara e argumentada, e neste sentido tm valor denormas para a filosofia analtica mas a sua aceitao a este ttulo no implica

    necessariamente a sua adopo a ttulo de elementos de doutrina.

    Assinalemos em primeiro lugar que Martial Guroult, um dos filsofos que mais insistiu

    sobre o carcter auto-referencial da filosofia e mais especificamente da obra

    filosfica singular por oposio ao discurso da cincia, tambm insistiu muito, apesar

    disso, no facto de que a filosofia s se pode realizar atravs de um projecto de tipocognitivo ou cientfico (projecto ilusrio, segundo ele, mas todavia necessrio) (28).

    Guroult reconhecia portanto o valor normativo ou regulador do cognitivismo. De resto,

    Guroult rejeitava como falsa a concepo cognitivista da filosofia, ainda que visse nela

    a expresso de um projecto essencial filosofia. Poder o filsofo analtico fazer o

    mesmo e rejeitar, no plano terico, as duas teses mencionadas mais acima, afirmando

    ao mesmo tempo a sua importncia enquanto princpios reguladores? No poderia

    faz-lo sem sucumbir a uma forma de contradio pragmtica anloga quela que

    afecta o filsofo ps-analtico quando continua a praticar uma forma tradicional de

    filosofia analtica. Portanto, existe efectivamente um problema para o ponto de vista

    que defendo: parece que uma caracterizao puramente formal da filosofia analtica

    esbarra com a impossibilidade em que se veria um filsofo analtico de rejeitar as duas

    teses mencionadas mais acima sem cair numa contradio de tipo pragmtico. Se,

    alm disso, e semelhana do filsofo ps-analtico, se considera que estas teses socontestveis, parece que se est no direito de rejeitar a filosofia analtica na medida em

    que esta no pode deixar de incorporar (de modo mais ou menos explcito) as teses em

    questo.

    Uma primeira forma de defender a filosofia analtica face a este contra-ataque

    consistiria em admitir que uma caracterizao puramente formal da filosofia analtica

    impossvel e em assumir como consequncia o cognitivismo enquanto doutrina terica

    incidente sobre a natureza da filosofia. Desta forma, o filsofo analtico evita a

    contradio pragmtica: adopta uma teoria da filosofia que justifica a maneira como

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    pratica a filosofia neste caso, aceita o cognitivismo em metafilosofia para justificar

    uma prtica argumentativa da filosofia. Ao fazer isto, todavia, o filsofo analtico expe-

    se s crticas daqueles que, como os filsofos ps-analticos, rejeitam a metafilosofia

    cognitivista. Mas existe uma outra forma de salvar a filosofia analtica da contradio

    pragmtica, que no implica a adopo do cognitivismo enquanto doutrina terica e

    que permite manter a ideia de uma caracterizao puramente formal da filosofiaanaltica. este segundo tipo de defesa que gostaria de apresentar como concluso

    destas observaes.

    Contrariamente a Martial Guroult, no creio que se possa interpretar o cognitivismo

    metafilosfico como doutrina terica portanto, no creio que faa sentido rejeitaro

    cognitivismo no plano terico, como Guroult faz. Parece-me que o cognitivismo e,

    mais geralmente, toda a metafilosofia tem somenteum valor normativo ou prtico.Se tenho razo, nenhuma contradio pragmtica pode surgir entre cognitivismo

    prtico e anticognitivismo terico, visto que no existe algo que seja cognitivismo ou

    anticognitivismo terico. O cognitivismo no tem contedo terico e no pode

    efectivamente ser aceite como verdadeiro nem rejeitado como falso.

    o debate metafilosfico que no tem, de forma global, contedo terico. Isto deve-se

    ao facto de que o objecto do debate metafilosfico, a saber, a prpria filosofia, no temuma natureza que esteja fixada de antemo, de forma a tornar possvel referir-se a

    ela para circunscrever o debate metafilosfico. O que a filosofia? A filosofia em

    primeiro lugar um corpus que compreende noes, ideias, temas, teses, problemas,

    doutrinas, nomes, textos e obras. tambm uma prtica que consiste em produzir

    trabalhos filosficos, ou seja, trabalhos que se ligam ao corpusfilosfico e que tm

    vocao para se integrar nele. Para tornar possvel uma tal prtica, essencial que o

    corpusem questo seja aberto. Mas a sua prpria abertura acarreta a indeterminao

    da sua natureza: a natureza da filosofia no est fixada, porque afectada pela prtica

    da filosofia, que pode evoluir livremente vontade dos que a fazem. A filosofia em

    larga medida o que se faz dela, e neste sentido que no tem uma natureza pr-

    determinada.

    Na medida em que as metafilosofias correspondem a vrios usos que se podem fazer

    da filosofia, no esto verdadeiramente em conflito umas com as outras, porque no

    falam de uma realidade objectiva independente que se tratasse de determinar cada

    uma tem a sua parte de verdade, pelo facto de serem expresso de uma prtica. Basta

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    praticar uma filosofia estilisticamente unificada com o resto do discurso terico, como

    fazem os filsofos analticos, para fundamentar o cognitivismo e conferir-lhe a sua parte

    de verdade. Da mesma forma, a filosofia Continental realiza o seu anticognitivismo

    metafilosfico praticando uma filosofia auto-insularizada relativamente ao resto do

    discurso cognitivo.

    A metafilosofia cognitivista do filsofo analtico no tem nesta perspectiva mais

    contedo terico que qualquer outra metafilosofia (29). Ela tem um valor

    essencialmente prtico e expressivo (e no substancial ou doutrinal) da oposio

    analtico/Continental no se trata de um debate terico em que uns podem ter razo

    e os outros estar enganados. Noexiste debate terico entre a filosofia analtica e a

    filosofia Continental, contrariamente ao que pensam os filsofos ps-analticos. O

    verdadeiro debate situa-se num plano diferente do terico infelizmente, os filsofosps-analticos procedem como se esse debate, o nico que verdadeiramente importa,

    no existisse.

    Franois Recanati

    Notas

    1. J. Piel, na introduo do nmero especial de Critiqueconsagrado filosofia analtica

    anglo-saxnica (n.os399-400, Agosto-Setembro de 1980), fala da ramificao de

    interesses testemunhada pela evoluo da filosofia analtica. Como exemplo deste

    fenmeno, Putnam (Realism and Reason, p. 180) menciona o interesse tardio pela

    filosofia dos valores que se seguiu publicao por John Rawls de Uma Teoria da

    Justia.

    2. Sobre Tugendhat veja-se o artigo de V. Descombes em Critique, n.o 407, Abril de 1981, e

    o de J. Bouveresse ao n.o 425, Outubro de 1982. Um nmero especial de Critiquefoi,alis, consagrado filosofia alem contempornea: n.o 413, Outubro de 1981.

    3. Vejam-se as obras de Putnam, Rorty e Bouveresse mencionadas no princpio deste

    artigo.

    4. R. Rorty, Solidarit ou objectivit?, Critique, n.o 439, Dezembro de 1983.

    5. nomeadamente o que diz Putnam na passagem de Realism and Reasoncitada mais

    atrs, na nota 1.

    6. Sobre Ajdukiewicz, veja-se o artigo de P. Engel em Critique, n.os440-441, nmero

    especial sobre a Polnia, Janeiro-Fevereiro de 1984.

    7. L. Rougier (org.),Actes de Congrs International de Philosophie Scientifique, Hermann,

    1936, vol. I, p. 19.

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    8. H. Reichenbach, The Rise of Scientific Philosophy, University of California Press, 1951, p.

    118.

    9. L. Rougier (org.), op. cit.,pp. 19-20.

    10. Veja-se Realism and Reason, e a recenso de Putnam ao livro pstumo de Gareth Evans

    sobre a referncia, A Tecnhical Philosopher, London Review of Books, vol. V, n.o 9,

    Maio de 1983.

    11. Sobre a atitude dos filsofos analticos face histria da filosofia, veja-se o nmero

    especial de Critiquemencionado na nota 1.

    12. Elements of Simbolic Logic, Macmillan, 1947, cap. 1, 5.

    13. R. Carnap, The Logical Sintax of Language, Routledge and Keagan Paul, 1937, p. 285.

    14. Ibid., 63, 64 e 74.

    15. Cf. L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 4122. Veja-se tambm M. Schlick,

    The Future of Philosophy in G. Ryle (org.) Proceedings of the Seventh International

    Congress of Philosophy, Oxford University Press, 1931, pp. 112-116.16. Le philosophie chez les autophages, p. 67.

    17. La philosophie analytique, Cahiers de Royaumont, n.o 4, ed. De Minuit, 1962, reimp.

    1979, pp. 339-340.

    18. Os Problemas da Filosofia, p. 240 da edio inglesa.

    19. La philosophie analytique, pp. 292-293 encontra-se uma citao anloga nos

    Philosophical Papersde Austin, 2.a ed., Oxford University Press, 1970, p. 232.

    20. Cf. Word and Object, MIT Press, 1960, p. 272, nota 2.

    21. Philosophical Papers, p. 124.

    22. Philosophy of Logic, Prentice Hall, 1970, p. 12.

    23. Ibid., pp. 11-12.

    24. la philosophie analytique, p. 343. Veja-se tambm Word and Object, p. 272.

    25. Esta uma questo platnica, mas a estratgia que estou a descrever geral e no

    implica uma concepo da filosofia que d um papel central a este tipo de questo.

    26. A expresso filosofia continental inadequada porque a filosofia analtica pratica-se

    tambm no continente europeu: a filosofia analtica no essencialmente anglo-saxnica, como muitas vezes se diz. (De facto, a Sociedade Europeia de Filosofia

    Analtica [ESAP], que surgiu em 1990, agrupa, alm dos britnicos, filsofos de mais de

    20 pases europeus.) Kevin Mulligan sugeriu uma soluo tipogrfica para eliminar a

    ambiguidade da expresso filosofia continental: emprega filosofia Continental (com

    maiscula) para designar o tipo de filosofia que comummente se ope filosofia analtica.

    Adopto esta conveno neste artigo. (Sobre a filosofia Continental, veja-se o nmero da

    revista Topoidirigido por Mulligan: Continental Philosophy Analysed, Topoi10:2,

    Setembro de 1991.)

    27. L'ge de la science(nova srie), vol. 1: Ethique et philosophie politique, Editions Odile

    Jacob, 1988, p. 8. Neste texto cito Jean-Franois Revel: a ideologia, afirmo, consiste em

  • 7/25/2019 Franois Recanati - Pela Filosofia Analtica

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    21/01/2016 Pela filosofia analtica

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    ISSN 1749-8457

    tomar em considerao, em presena de um pensamento ou da expresso de um

    sentimento, no a fora das provas ou o peso dos factos nos quais se baseiam, mas sim

    o carcter desejvel ou indesejvel das concluses que comportam, relativamente

    prosperidade de uma teoria ou de um modo de sentir que se defende (J.-F. Revel,

    Porquoi des philosophes?seguido de La cabale des dvouts, Robert Laffont, 1976, p.

    185).

    28. Veja-se, por exemplo, M. Guroult, La lgitimit de l'histoire de la philosophie, em E.

    Castelli et al., La philosophie de l'histoire de la philosophie(Vrin, 1956), pp. 51-52 e 66-68.

    29. interessante constatar que o expressivismo meta-metafilosfico permite pr o

    cognitivismo metafilosfico ao abrigo da crtica.

    Traduo de Fernando Martinho

    Texto originalmente publicado em Crtica: Revista de Pensamento Contemporneo, 10 (Maio de 1993).

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