fotografias da imaginaÇÃo

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    FOTOGRAFIAS DA IMAGINAO: REFLEXES SOBRE O PROCESSOEDUCATIVO EM ARTE A PARTIR DA EXPERINCIA DO PROJETO VILA

    EDUCAO E ARTE

    Carlos Weiner Mariano de Souza - USP

    RESUMO

    O artigo reflete sobre elementos de uma experincia educacional vivenciada ao longo dosanos 2008 e 2009 no projeto Vila Educao e Arte, realizado com um grupo de crianas eadolescentes, moradores da periferia da cidade de Paranagu, no Paran. A relao arte-vida, bem como a busca da relao equilibrada entre o sensvel e o inteligvel, configuraramo eixo central do projeto que escolheu a fotografia como meio de expresso. Em especial

    esto recortados aqui o aspecto fenomenolgico da casa como fonte de descoberta da arte,no processo de educao esttica, tanto na atividade didtica, como no exerccio final deproduo do ensaio fotogrfico sobre a Vila Santa Maria. A abordagem escolhida para aanlise est baseada nas teorias de Gaston Bachelard e Michel Maffesoli.

    PALAVRAS-CHAVE:Educao. Imaginao. Fotografia. Arte.

    ABSTRATCT

    The paper reflects about the elements of an educational experience over the years 2008 and2009 in Education and Art Village Project, conducted with a group of children andadolescents, residents of the periphery of the city of Paranagu, in Paran. The relationshipbetween art and life, and the search for balance between the sensible and intelligible,shaped the central axis of the project that chose photography as a means of expression. Inparticular here the focus is the phenomenological aesthetic education, both in teachingactivity, as in the final year of production of the photographic essay about the Santa MariaVillage. The approach chosen for the analysis is based on the theories of Gaston Bachelardand Michel Maffesoli.

    KEY-WORDS: Education. Imagination. Photography. Art

    INTRODUO

    Entre os anos de 2008 e 2009 vivenciamos a experincia de criao e

    desenvolvimento de um projeto educacional, Vila Educao e Arte, cujo eixo

    norteador o ensino da arte. Buscamos neste artigo refletir sobre elementos

    processuais de sua implementao, tendo em vista os aspectos fenomenolgicos da

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    experincia, com base nas contribuies tericas de Gaston Bachelard e Michel

    Maffesoli. O pblico com o qual trabalhamos foi um grupo de crianas e

    adolescentes moradores da periferia da cidade de Paranagu, no Paran, filhos de

    coletores de resduos.

    Na execuo da proposta, vinculada s aes de extenso realizadas pela

    Universidade Federal do Paran (UFPR), estabelecemos desde o princpio a

    preocupao com os aspectos culturais e espaciais nos quais estavam inseridos os

    participantes do projeto. Fundamentamos os procedimentos didticos no respeito s

    diferenas socioculturais e em processos que levam em conta as mltiplas formas

    de expresso, do erudito ao popular. O que significa dizer que as referncias

    artsticas utilizadas durante o processo no eram apresentadas a partir de uma

    lgica hierarquizada, mas foram sendo incorporadas medida que podiam

    estabelecer dilogos com as referncias trazidas pelos jovens, em funo de sua

    ligao com os contedos trabalhados em sala ou nos espaos da cidade.

    Buscamos, assim, reforar a identidade dos participantes, promovendo a

    compreenso no distintiva da diversidade que compe nossa realidade cultural.

    A linguagem fotogrfica foi escolhida como meio para conduzir o trabalhoeducativo e a experincia com a arte, e se materializou na forma de um curso de

    fotografia. Podemos dizer que no curso dois aspectos centrais estiveram articulados.

    O primeiro remete ao processo que envolve o conhecimento e a experimentao dos

    meios, equipamentos fotogrficos e formas de manipulao de imagens a partir do

    universo imagtico que compe o cotidiano dos participantes; o segundo vincula-se

    preocupao com a produo de significado relacionado ao contedo proposto, o

    que implica na busca de caminhos de aprendizado capazes de instigar no estudanteo desejo de compreender, dentro de suas possibilidades e de seus esforos, o

    universo simblico expresso atravs das imagens, tanto da arte, quanto daquelas

    que fazem parte do prprio cotidiano. Importante destacar que na conduo do

    projeto a cidade exerceu papel central na conexo arte-vida e na dotao de

    significado afetivo e cognitivo aos contedos.

    Na implementao do projeto na Vila desenvolvemos o trabalho com um

    grupo de 25 estudantes, 8 meninos e 17 meninas, com idade entre 10 e 14 anos de

    idade. Foram realizados 8 encontros mensais, duas vezes por semana, com a carga

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    horria diria de 3 horas e meia. Ao todo foram 76 encontros, entre maio de 2008 e

    junho de 2009, includos aqueles que se referem participao dos estudantes nas

    exposies e no processo de multiplicao do projeto nas escolas municipais da

    cidade.

    FUNDAMENTOS EPISTEMOLGICOS O PAPEL DE ARTE NO PROCESSO

    EDUCATIVO

    Ao se propor reflexo acerca das relaes entre arte e conhecimento, a

    abordagem fenomenolgica traz tona uma das principais questes para a

    educao contempornea, na medida em que destaca a multidimensionalidade do

    que se entende por humanidade. Da mesma forma, nos conduz busca de uma

    perspectiva educativa que se oponha ao embrutecimento dos sentidos, promovido

    pelas orientaes funcionalistas e utilitaristas derivadas da racionalidade

    instrumental que persistem sendo predominantes em nossa sociedade.

    Partimos aqui do pressuposto de que os processos que envolvem o

    aprendizado do mundo dependem, para sua efetividade, da articulao equilibrada

    entre as formas de perceber e construir juzos sobre o que se percebe. Tal

    convico emerge a partir de uma viso e prtica de mundo que entendam as aes

    educativas em arte como imprescindveis no processo de construo do

    conhecimento, no estabelecimento de relaes sociais equilibradas, portanto na

    formao da vida humana. Destarte, o entendimento de que a arte deve ser um

    componente constitutivo dos processos de aprendizagem est ancorado na

    perspectiva de que atravs dos processos pedaggicos para a formao do gosto

    esttico e artstico podemos educar tanto a percepo, quanto o juzo esttico no

    sentido de busca de uma harmonizao dos sujeitos consigo mesmos, com os

    outros e com o meio.

    Nesse sentido, interessante resgatar em Read (1986) o sentido da arte e da

    educao. Na obra desse autor os dois conceitos so fundidos de tal forma que, aofalar de arte se refere a um processo educacional, portanto, de crescimento e ao

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    falar de educao se refere a um processo artstico, no sentido de compreend-lo

    como um processo de autocriao. Ambos, crescimento e autocriao, apontam

    para a completude e a complexidade do humano.

    Recorremos tambm e fundamentalmente perspectiva de Bachelard, que a

    si prprio denominou um filsofo de dupla-natureza ao trabalhar com a

    epistemologia de cincia e a metafsica da imaginao potica. A anlise do homem

    das 24 horas, expressa nas faces diurna e noturna de sua filosofia, nos transmite o

    carter complexo e multifacetado da natureza humana (FREITAS, 2006). Trazer

    para as prticas educativas em arte uma dimenso pedaggica que dialogue com

    esse homem das 24 horas implica em contribuir para a diversidade, em contraponto

    homogeneizao dos gostos.

    Alm disso, importante apontar para o dilogo com os contextos culturais e

    espaciais nos quais os estudantes interagem, o que requer o entendimento de que

    cada experincia esttica nica. Isto porque entendemos que os gostos estticos

    so subjetivos, pois cada sujeito possui uma maneira particular de perceber e

    simbolizar essa percepo. Porm, como afirma Morin (2000), necessita que se

    compreenda que a subjetividade ao mesmo tempo produto das relaes que aconfiguram e produtora dessas num processo contnuo. A intersubjetividade, essa

    capacidade do homem de se relacionar com o seu semelhante, produtora de

    imaginrios compartilhados imersos em expectativas, desejos e determinaes.

    Maffesoli (1998) nos alerta sobre a sinergia que envolve as relaes

    intersubjetivas e o dilogo entre a geografia dos mundos interiores e exteriores no

    mundo contemporneo. Os espaos e as formas especficas de estar com, e para

    os outros, vm criando um mundo diferente e estranho ao nosso sistema

    educacional promotor do individualismo e da competitividade. Nessa lgica

    educativa, o que vivido no senso comum, essa dimenso orgnica presente e

    valorizada nas sociedades tradicionais, estigmatizada e considerada irrelevante

    para construo do conhecimento. Esse mundo em permanente formao visto

    pelo autor como um conjunto de referncias partilhadas entre os homens, no qual

    so interrelacionadas atraes e repulsas, em um jogo constante de foras,

    responsveis por gerar relaes sociais de confiana e aliana.

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    O compartilhamento de referncias no exige a proximidade fsica entre os

    sujeitos. As possibilidades colocadas pelos meios comunicacionais acabaram por

    dinamizar outras formas de interao e troca de experincias, aproximando os

    sujeitos e a formao de grupos com interesses comuns. Nesse processo vai se

    consolidando o compartilhamento dos imaginrios e vo se definindo novas

    estruturas sociais. Nesse sentido, Maffesoli (1998) traz como dimenso esttica um

    vibrar comum, sentir unssono, experimentar coletivamente. Coisas que permitem

    a cada um, movido pelo ideal comunitrio, sentirem-se deste mundo e em casa

    neste mundo (MAFFESOLI, 1998, p.207).

    A imaginao, por sua vez expurgada pela cincia como fonte do erro, em

    contrapartida, aparece na obra de Bachelard como elemento fundamental que

    transpe o devaneio e obra materializada (BACHELARD, 2001). Para Durand

    (1997), grande estudioso da obra de Bachelard, ela relao dialgica e recursiva

    do homem com o meio, o que aponta para uma relao trplice matria-sensao-

    imaginao.

    Podemos dizer que a aceitao das dualidades impe, por sua vez, novos

    desafios para a educao humana. Nestes, as aes educativas atravs da arteapresentam um conjunto de potencialidades construtivas que abrangem ao menos

    trs dimenses. A primeira est relacionada a contribuir, tanto para a educao da

    percepo, para o refinamento dos sentidos, quanto para a promoo de uma

    capacidade intelectiva que tenha qualidade esttica. Ou, como afirma Maffesoli

    (1998, p. 102) , portanto, possvel integrar progresso de conhecimento uma

    dimenso sensvel. Integrar os sentidos e a teoria.... No sentido de Bachelard

    poderamos dizer que ainda mais amplo, dado que ao campo da arte coube aliberdade potica, que permite extravasar a imaginao criadora.

    A segunda dimenso envolve as possibilidades que este tipo de educao

    focada no homem dual, complexo, pode oferecer aos sujeitos no exerccio das

    escolhas, sobretudo por meio da expanso de repertrios e da capacidade de

    autoconstruo. Ainda numa terceira perspectiva, em sociedades heterogneas

    como a brasileira, pode permitir o mergulho nas relaes sadias entre as formas

    expressivas que envolvem o erudito, as manifestaes artsticas populares e

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    tradicionais, ampliando o olhar sobre o fenmeno artstico, para alm daquilo que

    tradicionalmente denominamos como arte.

    Minha casa: dando vida s imagens

    O que caracteriza o lao emocional da criana com sua casa? Que imagens

    podem ser extradas desse lugar, e fornecer elementos que possam mobilizar o

    processo educativo ? Um mvel velho, uma mancha na parede, um brinquedo, uma

    garrafa jogada no fundo do quintal. Cada objeto conta uma histria. A imaginao da

    criana est fortemente ligada atividade, seus sentidos esto voltados para o

    presente, para a explorao das coisas, e no para o passado na busca de alguma

    significao, como acontece com os adultos. Ela pode cavalgar uma vassoura como

    se fosse um cavalo, construir castelos com um simples pedao de pano. Nossa

    experincia mostrou a grande dificuldade que envolve chamar a ateno das

    crianas a partir de uma imagem pronta. Quando solicitadas a observar uma

    paisagem, uma pintura de paisagem, ou uma fotografia, rapidamente se

    desconcentram.

    Ento, porque no partir das imagens que compem o microcosmos de cada

    casa, trazer para a prtica pedaggica as imagens presentes no cotidiano dos

    estudantes? Levar ao contato com o fazer artstico a partir daquilo que suas mos

    podem alcanar? Dar alma ao que est esquecido no armrio, no canto do quarto,

    no fundo do quintal? Iniciar um processo de aprendizagem despertando, pelo fazer,

    antes do dizer ou do mostrar, a vontade de criar mundos que possam estabelecer

    dilogos entre a intencionalidadei e os elementos que compem a linguagem

    plstica e visual?

    A partir desta srie de questionamentos que propusemos s crianas que

    fotografassem a imaginao, dessem vida aos objetos trazidos de casa e

    estabelecessem dilogos entre eles, atravs de suas formas, cores e tamanhos.

    Cobrimos as mesas com um fundo branco e solicitamos que fotografassem histriassem palavras (Figura 1). O fundo branco convida ao desenho, ao que anima o

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    espao, ao dilogo entre formas e cores e chamar o corpo para o movimento.

    Andamos ao redor da mesa, agachamos, levantamos, subimos em uma cadeira para

    ver a pino, buscamos o nosso lugar no ato de fotografar.

    Alguns objetos trouxeram histrias particulares, afetos que ornavam o quarto

    dos estudantes. Outros, no menos importantes, foram escolhidos porque as cores

    ou formas atraram a ateno. No jogo simblico elaborado pelas crianas com

    objetos variados os significados so transformados, transmutados pela imaginao,

    e com isso so criadas outras possibilidades de escolha, de reelaborao e criao

    de novos significados.

    Bachelard (2008) nos revela a importncia de cativar a imensido interior que

    advm dos significados ntimos que somos capazes de construir, nesse sentido, a

    casa constitui elemento central. Nas diversas facetas de brincar com os elementosda arte, provocar o sujeito por meio de suas imagens ntimas a construir outras

    imagens representa para ns um modo intuitivo de tangenciar a relao entre

    imaginao e espao vivido. A imaginao vive a proteo, em todas as nuanas de

    segurana, desde a vida nas conchas mais materiais at as mais sutis

    dissimulaes no simples mimetismo das superfcies (p.141).

    Nesse processo, Ana Carolina (Figura 1, canto superior esquerdo), foi quem

    mais nos chamou a ateno durante esses exerccios. Muito tmida e reservada,oferecia resistncia aos exerccios em grupo, e por muitas vezes chegou a se retirar

    Figura 1: Fotografia: Exerccios de Composio, 2008.

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    das aulas porque no gostava de se expressar em pblico ii. Em um dos exerccios

    em sala, ela elegeu uma pequena imagem de um anjo para protagonizar entre os

    objetos. Ficamos atentos ao seu empenho, forma como se concentrou na

    atividade. Em busca de solues, recorria ao material preparado para consulta,

    explorava os recursos da mquina, e pela primeira vez a vimos recorrer aos colegas.

    Todavia, um dos elementos interessantes que pudemos obervar apareceu no

    procedimento de Ana Carolina, uma das participantes do grupo, que fazia anotaes

    sobre suas fotografias. Quando montava uma cena com os objetos, Ana fotografava

    e anotava questes sobre suas composies relacionando as qualidades da imagem

    ao material produzido pela equipe (Figura 2). Sem qualquer induo ela nos

    revelava seu procedimento de apreender e aprender.

    Ana Carolina questiona seu percurso: _A cor do corao igual cor que

    est na garrafa. As asas do anjo fazem o mesmo movimento que o corao. E se

    colocar a garrafa direita, ou no fundo. Olhe! Os desenhos da garrafa so parecidos

    com as asas, posso colocar um ao lado do outro para que a garrafa tambm tenha

    asas. Percebe-se que na imaginao da criana os objetos comeam a estabelecer

    conexes de sentidos pelas suas propriedades plsticas, no pela sua funo.Observaes e descobertas que revelam processos de investigao, o encontro

    entre sensibilidade e imaginao na ao formativa.

    Outro aspecto que

    destacamos foi termos

    solicitado durante as aulas que os estudantes que tirassem fotografias sem a

    utilizao da mquina. Percebemos que isto garantiu que eles, pelo prprio fascnio

    que as mquinas exercem, comeassem a perceb-las de outra forma, relacionandoo seu uso ao que desejavam expressar. Fechar os olhos e imaginar cenas de sua

    Figura 3. Fotografia: Exerccio de Composio, Ana Carolina,

    2008.

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    vida, dando a ateno a cada detalhe, s pessoas, aos objetos, de onde vem a luz,

    as cores do ambiente. Depois disso, colocar objetos nas cenas imaginadas, mudar

    as pessoas de lugar, fazer surgir msicas e cheiros, encontrar uma pequena coisa,

    ou um simples gesto que lhes parecesse mais importante.

    Vale dizer que o ato de fotografar, em sua essncia, tambm suplanta o fazer

    uma foto com uma cmera. Nele trazemos as pessoas que gostamos, as msicas

    que ouvimos, a casa que vivemos, os filmes que assistimos. A fotografia um meio

    de expresso, contribui para o desenvolvimento da criatividade, da capacidade de

    observao e para a conquista de uma linguagem pessoal. Destarte, alcanar esses

    propsitos no processo educativo demanda um esforo de focar na relao entre

    sujeito e objeto, no entendimento do que afeta as crianas, e nas possibilidades de

    fazer com que elas dotem de afeto o que as afeta, para da fazer emergir imagens

    significativas.

    Buscamos materializar esse aspecto na medida em que, durante os primeiros

    meses, observamos a forma como as crianas utilizavam as mquinas que ficavam

    em seu poder, as imagens que nos traziam de seus familiares, de suas casas, dos

    lugares onde brincavam, dos amigos de escola. Agregamos aos exercciosfotogrficos e de manipulao da imagem, propostas temticas relacionadas ao seu

    cotidiano (Figuras 3 e 4).

    O ato de fotografar: a alma inaugurando uma forma e tornando-a sua morada.

    Figura 3.Fotografia: Registros do Cotidiano.

    Autores: Cristofer, Leonardo, Alessandra e

    Juliana, 2008.

    Figura 4. Fotografia: Exerccio de

    manipulao das imagens, 2008.

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    Podemos afirmar que o processo desencadeado pela ao educativa

    possibilitou a percepo do bairro e da cidade a partir de outra perspectiva que no

    utilitarista e funcionalista, e diminuiu a distncia entre os participantes do Projeto Vila

    e os conjuntos que a compe. Tambm fortaleceu os laos afetivos, a auto-estima, e

    criou novos significados sobre o prprio espao da Vila. Entretanto, o mais

    importante foi perceber que a ao educativa em arte, tendo a fotografia como um

    instrumento ldico/pedaggico, mobilizou a imaginao potica, a imaginao que

    vislumbra coisas novas, que intui e esboa novas perspectivas.

    As imagens produzidas no contexto da Vila Santa Maria evidenciam os

    elementos biogrficos da comunidade. O que oferecido nossa percepo

    oferecido por algum, atravs de um documento, o fotogrfico, inserido em um

    contexto histrico e provocador dos nossos mecanismos de interpretao do mundo,

    de uma compreenso corporal edificada sobre relaes subjetivamente sentidas que

    transcendem os limites impostos pela realidade social do lugar. com essa

    perspectiva que interpretamos a busca de Cristofer Luiz na produo de imagens

    que retratassem sua morada. A estagiria Silvia Bonfada acompanhou Cristofer

    durante o ensaio que os estudantes fizeram na Vila Santa Maria. Para nossa

    felicidade ela registrou o momento em que o estudante produziu algumas de suas

    imagens mais significativas (Figura 5).

    Diante da casa o estudante encontra seu lugar, a casa no uma casa, a

    histria da prpria vila, construda de restos de madeira, mas tambm de

    Figura 5. Fotografia. Silvia Bonfada, 2008.

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    pensamentos e sonhos. A casa de Cristofer imaginada como espao de proteo,

    como casa-concha (BACHELARD, 2008), o smbolo do aconchego, da

    segurana, da tranquilidade, da posse sobre o espao da intimidade. A casa

    contextualiza a apropriao que fazemos de nossa histria. Na primeira fotografia

    (Figura 6), o estudante abre o ngulo, e nos oferece uma viso parcial de sua casa.

    A fachada formada pelo conjunto de tbuas dispostas verticalmente define o ritmo

    interrompido pelo requadro sobreposto janela. Na fresta inferior esquerda da janela

    um de seus irmos o observa. Cristofer ento reduz o ngulo e nos aproxima ainda

    mais de sua intimidade (Figura 7).

    Sua imagem potica vem das mos que conhecem a matria e o trabalho de

    quem ajudou a famlia a construir o abrigo, nos apresenta a imaginao que brota da

    dinmica de um corpo imerso no mundo. Do olhar de seu irmo brota um sorriso que

    desconcerta a rida geometria que o cerca, brota a leveza que se contrape aos

    elementos de tenso da imagem. No ato de fotografar, Cristofer est dentro da casa,

    o sorriso do irmo o seu sorriso, ele sonha com um mundo em que cercado de

    afetividade, e se esse mundo existe em sua imaginao ele real.

    O enquadramento, segundo Machado (1984, p. 103), determina uma

    hierarquia de valores dentro do quadro. Destacamos determinadas coisas em

    detrimento de outras, so escolhas. uma representao de um aspecto

    Figura 7. Fotografia: A casa. Cristofer Luiz,

    2008.Figura 6. Fotografia: A casa. Cristofer Luiz,

    2008.

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    selecionado do real, como em qualquer documento fotogrfico. Contudo, embora

    registre em seu contedo uma situao do mundo real, o referente, ou seja, o

    aspecto do real que habita a representao sempre se constitui numa elaborao,

    no resultado final de um processo criativo, de um modo de ver e compreender

    especial, que, como afirma Kossoy (2002, p. 59), uma viso de mundo particular

    do fotgrafo; ele que, na sua mediao, cria/constri a representao.

    Na fotografia de Leonardo da Silva, 11 anos de idade (Figura 8), os animais iii,

    a precria residncia construda com restos de madeira e sacos plsticos e o lixo

    espalhado pelo quintal compem a cena. Percebemos que as imagens dos animais

    e da residncia formam uma linha diagonal e contnua que define a profundidade. O

    enquadramento vertical possibilita a Leo, nas imagens que selecionamos,

    apresentar a cena em sua totalidade, dotando-a de ao e grande alcance

    dimensional.

    O que o estudante mostra uma narrativa, a dele, a partir dos vestgios de

    um mundo vivido. So vestgios que nos colocam diante de um dramtico contexto

    social. No entanto, nos mostram uma investigao, sobretudo, esttica. A

    serenidade das cenas (Figuras 8 e 9), pelo prprio contraste com a realidade, nonos apresenta uma geografia objetiva, mas a dos mundos interiores, do imaginrio,

    uma geografia que se move com a subjetividade. A casa envolta pela paisagem est

    em um plano intermedirio, mantm o homem atravs das tempestades do cu e

    das tempestades da vida (BACHALARD, 2008, p.26). O todo se compe em um

    ambiente que a primeira vista nos parece catico.

    Leonardo encontra o seu lugar, se deita no cho para fazer seu registro em

    ngulo de viso contrapicado (Figura 9). Enquadra as roupas no varal atravs do

    requadro formado pela cerca, abre uma janela dentro de outra janela para definir os

    limites entre o eu e o outro, entre a intimidade que permite acesso, mas que no

    deve ser invadida.

    Coloca-nos como espectadores

    de um mundo que no fazemos parte,

    mas que faz parte de todos ns. No ato

    de fotografar, o estudante ultrapassa o

    Figura 8. Fotografia: Quintal. Leonardo da Figura 9. Fotografia: A cerca. Leonardo da Silva,

    2008.

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    primeiro instante da percepo que o motivou captura da imagem, para nos ofertar

    uma ordem, uma relao dialgica entre o todo e suas partes, que aponta para algo

    que universalmente significativo no particular.

    APONTAMENTOS FINAIS

    Ao nos questionarmos sobre a experincia dos estudantes com as imagens, e

    os modos como so tratadas em nossas escolas, nos deparamos com a

    verticalidade de um saber que se impe pelos domnios quase que exclusivos do

    inteligvel, fundamentado na lgica discursiva. Em geral, o prprio fazer leva

    atribuio de valores que se vinculam a um modelo pronto de referencial histrico,

    ou reduo do processo de aprender produo de marcas no mundo pelo gesto

    espontneo.

    Evidentemente, buscamos a qualidade do pensamento no processoeducativo, bem como entendemos a importncia de colocar as crianas em contato

    com as imagens da histria da arte. Todavia, a questo que sempre nos instigou

    como fazer para garantir o equilbrio na relao que envolve colocar referncias

    disposio dos estudantes, falar sobre a arte, valorizar o fazer a partir das diferenas

    e mobilizar o gesto na busca da autoria.

    Encontramos a resposta para essa questo nas prprias crianas.

    Aprendemos com elas que aprender e apreender as coisas do mundo, s assume

    significado pela criao de um mundo, que antes de ser real pessoal. Dessa

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    forma, buscamos destituir o processo educativo das hierarquias entre as linguagens.

    Palavras ditas, ouvidas ou escritas, imagens vistas ou compostas so misturadas

    em um caldeiro de aromas e sabores, cores e poemas.

    Nesse processo, damos forma estratgia educativa fundamentada na

    intertextualidade, entendendo-a em um sentido mais amplo, como aquilo que alm

    de habitar vrios textos ou imagens, tambm se traduz num sentido de

    compartilhamento do mundo. possvel dizer que a as referncias do educador se

    encontram com o sentimento de pertencimento que os estudantes pronunciam ao

    expor suas imagens, falar ou escrever sobre elas.

    Na interrelao sujeito e objeto promovida pela educao atravs da arte,

    enriquecemos o processo de formao e organizao de um sistema de imagens

    mentais /visuais, que progressivamente conduz nossa percepo a elaboraes

    mais sutis e pensamentos mais complexos. Para Arnheim toda percepo

    tambm pensamento, todo o raciocnio tambm intuio, toda a observao

    tambm inveno (1992, p.5).

    A abordagem pedaggica com foco na indissociabilidade entre a expresso

    potica e na apreciao esttica como dimenses educativas da arte possibilitou, ao

    longo do desenvolvimento dessa primeira etapa do Projeto Vila, encontrar um

    caminho que uniu a ludicidade construo do conhecimento, sem as amarras e as

    dicotomias que separam a educao em arte da vida cotidiana dos estudantes.

    REFERNCIAS

    ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepo visual: uma psicologia da viso criadora. 7Ed. So Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1992.

    BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginao domovimento. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

    _______________. A potica do espao. Traduo Antonio de Pdua Denasi, 2Ed. So Paulo: Martins Fontes, 2008.

    DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo:Martins Fontes, 1997.

  • 7/29/2019 FOTOGRAFIAS DA IMAGINAO

    15/15

    341

    FREITAS, Alexander. Apolo-Prometeu e Dionsio: dois perfis mitolgicos do homemdas 24 horas de Gaston Bachelard. IN: Revista Educao e Pesquisa, So Paulo,v.32, n.1, p. 103-116, jan/abr 2006.

    KOSSOY, Boris. Realidades e fices na trama fotogrfica. 3. ed. So Paulo:Ateli Editorial, 2002.

    MACHADO, Arlindo. A iluso especular: introduo fotografia. 2.ed. So Paulo:Brasiliense, 1984.

    MAFFESOLI, Michel. Elogio da razo sensvel. Traduo: Albert Christophe M.Stuckenbruck. Petrpolis Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998.

    MORIN, Edgar. Sete saberes necessrios para a educao do futuro. Disponvel

    em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EdgarMorin.pdf, 2000.Municipio=83200&btOk=ok. Acessado em: Maio de 2011.

    READ, Herbert. A redeno do rob meu encontro com a educao atravs daarte. So Paulo: Summus, 1986.

    i Tratamos aqui intencionalidade no nos termos da filosofia clssica, que define a conscincia como

    intencional, dirigida para um objeto real ou imaginrio, mas nos termos de Gaston Bachelard (1994),que considera a ao do sujeito em relao dialtica com a materialidade do objeto em situaoexperimental.ii Importante destacar que trabalhamos no Projeto Vila com a perspectiva de no tornar obrigatria apresena dos participantes, de forma tal que sua adeso ao processo fosse fruto da motivao decada um e no uma imposio. Tambm no estipulamos o requisito de estarem matriculados noensino formal, nem mesmo freqentando as aulas, j que almejvamos contribuir para uma novamotivao aos estudos.iiiOs cavalos, que auxiliam na jornada de trabalho, tambm esto presentes nas horas de lazer dacomunidade, que durante os finais de semana disputam corridas de carroa na vila.

    CARLOS WEINER MARIANO DE SOUZA artista plstico graduado pela Universidade Federal deUberlndia, Especialista em Msica no Sculo XXI e mestrando pelo programa de Ps-graduao em

    Artes Visuais da Escola de Comunicao e Artes, da Universidade de So Paulo.