fora da ordem: foucault e a exclusão na idade clássica maria... · foucault e a exclusão na...

163
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA Cláudia Maria Martins Fora da Ordem: Foucault e a Exclusão na Idade Clássica Doutorado em Filosofia Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Filosofia, sob a orientação da profª Drª Salma Tannus Muchail São Paulo 2012

Upload: duongxuyen

Post on 11-Jun-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA

Cláudia Maria Martins

Fora da Ordem:

Foucault e a Exclusão na Idade Clássica

Doutorado em Filosofia

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,como exigência parcial para obtenção do título

de Doutora em Filosofia, sob a orientação da profª Drª Salma Tannus Muchail

São Paulo

2012

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________

__________________________________________________________

__________________________________________________________

__________________________________________________________

__________________________________________________________

À Mônica e ao Armando,

aos meus pais Maria Helena e Swami

e à minha vó Linda, in memoriam

AGRADECIMENTOS

A profª Salma Tannus Muchail, por seu exemplo como pessoa, como docente, e pelo

trabalho de orientação paciente e preciso.

Aos meus professores de filosofia que, ao longo deste percurso colaboraram de variadas

formas, Márcio A. Fonseca, Carlos Arthur Nascimento, Edélcio Ottaviani, Paulo

Martinês e Vladimir Safatle.

A Claude Imbert, por ter me acolhido na ENS de Paris com tanta delicadeza, atenção e

estímulo.

Aos colegas do grupo de estudos Michel Foucault pela convivência e pelos momentos de

alegria.

Aos meus amigos que, mesmo de longe, acompanharam o processo e se fizeram

presentes nas horas de aperto, Valéria de Floripa, Valéria e Pierluigi, as meninas da Geo,

Paulinho e Alcione de Maringá e a Marcinha da França.

Às secretárias Gisele, e antes, Siméia.

Aos meus pais e irmãos, pelo amor e pela força.

Ao Armando, pelo carinho, companhia, apoio logístico, editorial, assessoria total na reta

final e, pela esperança.

A Mônica, por este amor tão bom que ela derrama sobre mim, pela companhia e também

pela esperança.

A minha vó Lindamir, in memoriam, pelo olhar atento, presença lúcida e frases

essenciais.

A CAPES, pela bolsa de estudos no Brasil e no exterior.

E a todos aqueles que contribuíram de um jeito ou de outro ao longo do caminho.

RESUMO

Título: Fora da Ordem: Foucault e a Exclusão na Idade Clássica

Autora: Cláudia Maria Martins

O objetivo da tese foi reconstituir aspectos fundamentais da filosofia de Michel

Foucault a partir de uma célula problemática inscrita em Histoire de la Folie à l'âge

classique. Trata-se da tese que afirma que a impossibilidade de ser louco é a primeira

qualificação adquirida pelo sujeito cartesiano, antes mesmo da enunciação do cogito. A

polêmica posição de Foucault dá origem ao episódio que veio a ser conhecido como

querela Foucault-Derrida. No texto “Mon corps, ce papier, ce feu”, de 1972, Foucault

explicita esta leitura identificando no texto das Meditações uma dupla trama: um

discurso demonstrativo guiado pela ordem das razões e um discurso ascético orientado

pelo exercício performativo de criação do sujeito de conhecimento. A pesquisa mostrou

que, neste raro momento em que Foucault se colocou no papel de comentador de um

texto filosófico, os aspectos realçados no texto cartesiano são igualmente emblemáticos

de seu próprio método filosófico. Particularizando-se pelo apontamento de visíveis e

enunciáveis, as histórias foucaultianas também perfazem uma dupla trama e incitam uma

espécie de ascese.

Palavras-chave: filosofia contemporânea, filosofia francesa, Michel Foucault,

Descartes, Meditações, sujeito cartesiano, subjetividade.

ABSTRACT

Title: Outside Order: Foucault and the Exclusion in the Classical Age

Author: Cláudia Maria Martins

The purpose of our thesis was to reconstruct fundamental aspects of Michel

Foucault's philosophy from a problematic cell inscribed within Histoire de la Folie à

l'âge classique. It concerns the thesis which claims that the impossibility of being mad is

the first qualification acquired by the Cartesian subject, even before Cogito statement.

Foucault's polemical stance gives raise to the episode known by the Foucault-Derrida

dispute. In the text “Mon corps, ce papier, ce feu”, written in 1972, Foucault explicits

such reading by identifying in Descartes's Meditations a double weft: a demonstrative

discourse guided by the order of reasons and an ascetic discourse guided by the

performatic exercise of creating the subject of knowledge. The present research has

showed that, in such a rare moment when Foucault puts himself in the role of a

commentator of a philosophical text, the highlighted aspects in the Cartesian text are

equally emblematic of his own philosophical method. Characterized by pointing out the

visible and the enunciable, Foucault's histories also make up a double weft and

encourage a kind of ascesis.

Keywords: contemporary philosophy, French philosophy, Michel Foucault, Descartes,

Meditations, Cartesian subject, subjectivity

SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................10

1 O Debate entre Michel Foucault e Jacques Derrida.....................................14

1.1 O silenciamento......................................................................................19

1.2 Derrida e a hipótese da extravagância.....................................................21

1.2.1 A objeção fingida......................................................................22

1.2.2 A loucura como gênio maligno.................................................24

1.3 Foucault e a exclusão (des) qualificante.................................................26

1.3.1 Ascese e Demonstração............................................................26

1.3.2 Insanus e Demens.....................................................................28

1.3.3 Gênio delirante..........................................................................33

1.3.4 Resíduo de Verdade...................................................................35

2 Segundo momento do Debate: a repercussão entre os cartésiens.................41

2.1 A Regra da Coerência.............................................................................42

2.2 Loucos de crer, loucos de duvidar...........................................................50

2.3 Há um argumento da loucura? A análise do texto latino.........................55

3 O lugar da imagem: “Meu Corpo, este Papel, este Fogo”............................65

3.1 Um espírito “nutrido nas letras” e nas artes cênicas...............................65

3.2 “Resíduo de Verdade”: “meu corpo, este papel...”..................................68

3.3 O lugar da certeza: “...este fogo”............................................................72

4 Meditação e Ascese...........................................................................................77

4.1 Áskesis .................................................................................................. 77

5 Dúvida cética e dúvida metódica.....................................................................85

5.1 A primeira meditação: um caso exemplar...............................................86

5.2 O fim de um mundo................................................................................88

5.3 Dúvida cética e dúvida metódica............................................................91

5.4 Torção imaginativa: astúcia da razão?....................................................94

5.5 Descartes cético?...................................................................................101

6 Coup de force ................................................................................................106

6.1 Derrida e a impossibilidade da arqueologia do silêncio........................107

6.2 Derrida e a Metafísica da Presença.......................................................110

6.3 Foucault e a experiência trágica da linguagem.....................................121

6.4 Rádio-Teatro dionisíaco........................................................................125

7 Os espaços da exclusão na Idade Clássica....................................................135

7.1 Novos personagens: os “internés”........................................................136

7.2 Ver e fazer ver.......................................................................................143

7.3 Os Descartes de Foucault......................................................................148

Referências Bibliográficas.............................................................................156

INTRODUÇÃO

Para ler um filósofo contemporâneo, é preciso encontrar nele algo que nos

atravesse, que nos perturbe. Quando iniciamos esta pesquisa, o problema que deu

origem à discussão entre os filósofos franceses Michel Foucault e Jacques Derrida nos

parecia, em alguns momentos, pontual e sem maiores consequências, noutros

momentos, as posições dos filósofos pareciam assumir uma afetação e sofisticação que

pareciam não fazer jus à relevância da questão. Esta impressão inicial revelou-se ilusão

de ótica, pois o problema acabou por articular temas fortes como a questão do sujeito

moderno em sua relação com a verdade e a ética, além de trazer à tona, de forma

secundária, a questão dos modos de leituras de textos filosóficos, tema sempre

relevante ao pesquisador e professor de filosofia.

O objetivo da tese foi reconstituir aspectos fundamentais da filosofia de Michel

Foucault a partir de uma célula problemática inscrita em Histoire de la Folie à l'âge

classique. Trata-se de algumas páginas em que Foucault discorre sobre a

impossibilidade de ser louco sendo como a primeira qualificação adquirida pelo sujeito

cartesiano, antes mesmo da enunciação do cogito. A polêmica posição dá origem ao

episódio que veio a ser conhecido como querela Foucault-Derrida. No texto “Mon

corps, ce papier, ce feu”, de 1972, Foucault explicita esta leitura identificando no texto

das Meditações uma dupla trama: um discurso demonstrativo guiado pela ordem das

razões cartesianas e um discurso ascético, uma sequência de exercícios que visam a

criação do um sujeito.

Nosso trabalho foi, além de explicitar os aspectos desta leitura foucaultiana de

10

Descartes, mostrar que este modo de apreensão do discurso meditativo é emblemático

de seu próprio método filosófico. Trata-se de mostrar que as histórias foucaultianas

particularizam-se pela presença de uma dupla trama e que também acabam por incitar

uma espécie de ascese.

Neste exercício, aprendemos que o modo de leitura filosófica de um filósofo não

tem a isenção da leitura de um historiador ou professor da história da filosofia, no

sentido que sua leitura jamais se limitará apenas a manisfestar a estrutura do texto

através da reconstrução da gênese de seus conceitos. A sua leitura dar-se-á em relação à

natureza dos problemas filosóficos com que ele se debate e ao sentido em que ele pensa

direcionar suas respostas a estes problemas. Neste enfoque, tanto a leitura de Foucault

como a de Derrida trazem em seu bojo a memória e os traços da construção,

respectivamente, da arqueologia-genealogia e da desconstrução.

No caso de Foucault, seu projeto se desenvolve via a construção de histórias

filosóficas. A elucidação destas histórias, nas quais a idade clássica tem lugar

privilegiado, só se amplia quando se esclarece o sentido das diversas apropriações que

o filósofo fez da filosofia cartesiana.

Assim, uma das primeiras reflexões a que chegamos refere-se ao modo

diferenciado de aproximação às filosofias clássicas e aos filósofos contemporâneos. A

pesquisa de um filósofo contemporâneo acaba forçosamente trilhando caminhos

distintos daqueles usuais da pesquisa dos filósofos clássicos. Em primeiro lugar porque

a leitura de um filósofo contemporâneo não se presta a uma leitura estrutural onde se

busca, dentro de um sistema fechado de pensamento, uma ordem das razões, ainda que

a pesquisa de um filósofo clássico também não se limite a este procedimento. Uma das

desvantagens de se estudar um filósofo não clássico é justamente a dificuldade de se

delimitar o todo de sua filosofia, uma linha que articule um pensamento que se dá

numa espécie de sistema aberto.

Esta contraposição ficou muito clara na nossa pesquisa, na medida em que

aprofundamos o conhecimento das filosofias de Descartes e Michel Foucault. De um

lado, o estudo de Descartes, um dos filósofos mais clássicos da história da filosofia,

11

traz consigo a leitura obrigatória de um conjunto de comentadores consagrados – pode-

se dizer, quase “clássicos” também – que apresentam um elenco de questões bastante

consolidadas, exaustivamente debatidas sob diversos enfoques. Note-se que, deste

ponto de vista, embora a pesquisa de uma filosofia clássica constitua sempre um

trabalho exaustivo em contraposição ao estudo de um filósofo contemporâneo, o estudo

dos clássicos tem a vantagem de oferecer alguns pontos de apoio, uma escala através

da qual podemos “medir” ou “situar” o ponto da discussão que podemos alcançar. O

trabalho filosófico será sempre infinito, tanto num caso como no outro, mas o trabalho

que tem como referência um “sistema aberto” não acompanha esta escala, a linha que

articula um pensamento “aberto” é sempre tênue.

Justamente pelo fato do pensamento contemporâneo se oferecer como uma

espécie de novelo ou labirinto é que se torna necessário estabelecer um critério claro

para nos guiar na procura desta porta de entrada ou fio.

Portanto, longe de tentar reconstruir a trama em que este problema se encaixa no

projeto da desconstrução derridiana ou da arque-genealogia foucaultiana, nosso

objetivo, mais modesto, foi o de tatear, através deste problema, uma porta de entrada ao

pensamento de Michel Foucault. Uma dentre tantas portas de entrada possíveis.

No primeiro capítulo tratamos o debate propriamente dito, em seus três tempos

constitutivos, a saber, a inserção de Descartes em História da Loucura na Idade

Clássica, de 1961; seguido da exposição do provocante artigo de Derrida “Cogito e

História da Loucura” de 1963 e, por fim, a réplica tardia de Foucault, de 1972,

constante do artigo “Mon corps, ce papier, ce feu”. Em seguida, no segundo capítulo,

apresentamos a repercussão do debate entre os historiadores da filosofia cartesiana,

destacando-se a posição de Ferdinand Alquié, Jean-Marie Beyssade, Martial Guéroult e

Michelle Beyssade.

Uma vez realizado este levantamento geral das questões que envolvem o debate,

nos lançamos em busca de pistas que possam fundamentar ou problematizar os

argumentos de Michel Foucault, em dois momentos. No capitulo 3 trazemos algumas

12

reflexões sobre o uso de imagens nos exercícios meditativos e no capítulo 4 partimos

em busca de elementos que nos ajudem a esclarecer a questão da ascese a partir do

próprio Foucault e de Hadot.

O quinto capítulo, momento genealógico da tese, busca compor o quadro a

partir do qual se possa compreender a inserção da filosofia cartesiana no interior de um

período histórico particularmente turbulento e de um debate filosófico marcado pelo

enfrentamento das questões lançadas pela tradição cética.

Na última parte da tese, seguimos na direção de mostrar como esta leitura da

metafísica cartesiana pode se inserir na perspectiva filosófica de Foucault. Imbuídos

deste propósito, no capítulo 6, retomamos as palavras de Derrida para contemplar, desta

vez, as críticas direcionadas à inserção de Descartes na História da Loucura. As

posições de Derrida nos incitaram a esclarecer alguns conceitos e operadores de seu

pensamento, tendo em vista circunscrever no âmbito maior de sua filosofia algumas

passagens de "Cogito e História da Loucura". Ainda neste capítulo, apontamos alguns

lugares a partir dos quais é possível encontrar respostas às questões levantadas por

Derrida. É o momento em que expomos uma interpretação de cinco emissões

radiofônicas que compõem um programa de rádio que Foucault gravou alguns meses

após o lançamento de sua tese. Trata-se de um programa de divulgação, a linguagem

utilizada não é acadêmica. Porém, o dado interessante é como estas audições nos

auxiliam a esclarecer algumas premissas assumidas por Foucault em sua tese.

Uma vez tendo compreendida a leitura foucaultiana das Meditações e sua

inserção na obra História da Loucura, buscamos o método utilizado na elaboração da

tese, realçando como a dupla ordem também se apresenta nos textos do autor.

Orientamo-nos pelo pensamento de Deleuze de que a filosofia foucaultiana se distingue

pelo apontamento de visíveis e enunciáveis.

Num último momento, mostramos os modos com que Foucault se apropriou da

filosofia cartesiana nos diferentes momentos de sua trajetória.

13

CAPÍTULO 1

O DEBATE ENTRE MICHEL FOUCAULT E JACQUES

DERRIDA

Décidément, ce passage de Descartes est fort

amusant, et je ne pensais pas au départ qu'il

prêterait à tant de discussions1.

Michel Foucault

O intuito deste primeiro capítulo é o de apresentar o debate travado entre Michel

Foucault e Jacques Derrida ocorrido entre 1963 e 1972. Delinearemos o fio condutor de

cada argumentação de modo a ressaltar as principais questões implicadas no debate.

Num primeiro momento, privilegiaremos, nesta apresentação do debate, apenas as

questões surgidas no interior da discussão acerca da divergência entre as leituras

filosóficas da primeira meditação cartesiana. Existe uma outra parte da crítica de

Derrida, referente ao estatuto da inserção de Descartes em História da Loucura na Idade

Clássica que será contemplada num outro momento.

Inicialmente, é oportuno apresentarmos uma breve cronologia do debate. Inicia-

se em 1961, ano de publicação da tese de doutorado de Michel Foucault Histoire de la

Folie à l'âge classique. A tese trará uma breve análise de uma passagem da primeira

1 Michel FOUCAULT em carta a Jean-Marie BEYSSADE, de 07 de novembro de 1972. In: BEYSSADE, JM, Descartes au fil de l'Ordre, p. 41.

14

meditação cartesiana. Suas conclusões aparentemente contraditórias suscitarão uma série

de críticas. A polêmica inicia-se já no ato da defesa da tese. O tom de estranhamento,

mas também de admiração, suscitado pela tese pode ser conferido na ata final da defesa

elaborada pelo relator Henri Gouhier. A tese é aclamada com mérito, “monsieur Foucault

é mais filósofo que exegeta ou historiador”2, dirá Gouhier, mas também com inúmeros

questionamentos que permanecerão em aberto por algum tempo.

Os anos que se seguem a 1961 são particularmente incômodos para Foucault. Ele

se ressentia de um certo silêncio que existiu em torno de sua tese. É verdade que alguns

intelectuais publicaram artigos sobre Folie et déraison, por exemplo, Blanchot, Barthes,

Michel Serres, Robert Mandrou e Fernand Braudel. Mas à parte os comentários destes,

que eram seus amigos, Foucault esperava uma reação das revistas institucionais do meio

filosófico, o que não ocorreu3.

Em 4 de março de 1963, cerca de dois anos após a publicação da tese de

Foucault, Jacques Derrida, que fora aluno de Foucault na École Normale Supérieur de

Paris, pronuncia no Collège Philosophique de Jean Wahl a conferência “Cogito e

História da Loucura”4. a qual dá origem a um artigo publicado ainda naquele ano na

Revue de Métaphysique et de Morale. Derrida tece uma dura crítica ao que ele

denominou “leitura ingênua” das Meditações cartesianas.

Na ocasião, apesar de estar presente, Foucault não se pronuncia e nem mesmo

demonstra qualquer reação negativa5. Pelo contrário, em 11 de março de 1963 envia a

Derrida uma carta de felicitação pela conferência e agradecimento amistoso por suas

observações. Ouçamos Foucault:

2 Gouhier, Henri, Relatório do presidente do juri, de 25 de maio de 1961, apud ERIBON, Didier, Michel Foucault 1926-1984, p. 122.

3 Conforme entrevista de Foucault à Nouvelles Littéraires em 17 de março de 1975, apud ERIBON, Didier, Michel Foucault 1926-1984, p. 124.

4 A conferência será publicada naquele ano na Revue de Métaphysique et de Morale, oct./déc., n.4, p. 460-494. Também constará mais tarde da coletânea de textos de Derrida L'écriture et la différence, de 1967. A tradução brasileira deste texto encontra-se no livro organizado por Maria Cristina Franco FERRAZ “Três tempos sobre a história da loucura”, p. 11-67, além de constar da versão brasileira de A escritura e a diferença, São Paulo: Perspectiva, 1971 e 1979.

5 Conforme ERIBON, Didier, Michel Foucault 1926-1984, p. .128.

15

Outro dia, se te recordas, eu não pude te agradecer como eu gostaria de ter feito: não somente pelo que disseste de muito indulgente sobre mim, mas pela enorme e maravilhosa atenção que me prestaste. Eu fiquei impressionado – a ponto de, naquele momento, ficar desconcertado e bem pouco à vontade quanto ao que eu poderia dizer – pela retidão de tua proposta que foi, sem dificuldade, ao fundo do que eu tinha desejado fazer, e mais além. Esta relação do cogito e da loucura, eu tinha sem dúvida nenhuma tratado muito apressadamente na minha tese: através de Bataille e de Nietzsche eu voltei a ela morosamente e por mil desvios. Tu me mostraste, realmente, o caminho correto: e tu me compreendes bem e por isso te devo um profundo reconhecimento.6

Como se sabe, oito anos após esta carta Foucault publicará o artigo “Resposta a

Derrida”, em 1971. Por que? Cogitamos que a elaboração desta réplica tardia, que

aparentemente, segundo as circunstâncias ocorridas em 1963, talvez nunca tivesse vindo

à tona, teria sido motivada por dois acontecimentos.

O primeiro deles, sugerido por Eribon na biografia que faz de Foucault, surge na

esteira da republicação do artigo de Derrida na coletânea L'écriture et la différence que o

autor lança em 1967. A nova exposição do artigo de Derrida recoloca o assunto na ordem

do dia dos assuntos da filosofia francesa, e desta vez, com maior abrangência, visto que

em 1963 a conferência atingira um publico limitado, e em 1967, ela ressurge num

momento em que a desconstrução derridiana começava a gozar de certo prestígio.

Naquele ano, a revista Critique recebe um artigo de Gérard Granel, “Jacques Derrida et

la rature de l'origine”7, no qual o autor tomava o partido de Derrida de uma forma um

tanto provocativa, “cheio de elogios para este último [Derrida], cheio de fel em relação a

Foucault”8. Derrida e Foucault faziam parte do conselho editorial da revista e tomam

conhecimento desse artigo antes de sua publicação. Foucault pede a Derrida que

(também) vete o artigo mas ele se abstém e o artigo é publicado.

6 In MALLET, M.L; MICHAUD, G. (orgs.), Derrida. Paris: L'Herne, (Les cahiers de l'Herne, 83), 2004, pp. 111.

7 GRANEL, G. “Jacques Derrida et la rature d'origine”, Critique, n.246, nov. 1967, pp. 887-905.8 ERIBON, Didier, Michel Foucault 1926-1984, p. 128.

16

Talvez este episódio tenha inclinado Foucault na direção de um réplica. Contudo,

a oportunidade de concretizá-la surge de maneira casual quatro anos mais tarde, em

1971, quando a revista de filosofia japonesa Paidéia intenta lançar uma edição especial

dedicada a Foucault e à relação filosofia-literatura. A revista escolhe uma série de artigos

para este número e submete a proposta aos autores9. Dentre os artigos, figura “Cogito e

História da Loucura”, de Jacques Derrida e “O discurso de Foucault e a escrita de

Derrida”, do estudioso japonês Y. Miyakawa. Ao perceber que a comparação entre as

duas démarches seria um dos focos da edição, Foucault propõe a troca de um de seus

textos por uma resposta que ele pretende elaborar ao artigo de Derrida. Esta resposta

sairia sob o título “Michel Foucault Derrida e no Kaino”10.

Um ano depois, em 1972, Foucault publica uma versão um pouco modificada

desta resposta no posfácio da segunda edição francesa de sua tese História da Loucura,

sob o título “Mon corps, ce papier, ce feu”. De acabamento mais acadêmico, este é um

dos poucos textos, e o mais longo do gênero, em que Foucault se coloca no papel de

comentador ou intérprete de filósofos. Este exercício a que se propõe oferece ao leitor a

grata surpresa de ler uma análise rigorosa e detida, feita no mesmo estilo vigoroso e

sedutor com que Foucault apresenta a sua filosofia11.

Como se sabe, após a publicação da réplica de Foucault, a relação entre os

filósofos ficará estremecida, conforme nos mostra Derrida:

9 Os artigos que a revista propõe para compor esta edição especial são, de FOUCAULT, “Retornar à História”, “Nietzsche, Freud, Marx”, “Theatrum philosophicum” e o “Prefácio à Gramática de Port-Royal”. Constariam também desta edição o artigo de DERRIDA “Cogito e História da Loucura”, e “O ateísmo e a escrita, o humanismo e o grito” de M. Blanchot, além dos estudos críticos realizados pelos autores japoneses Y. MIYAKAWA, “O discurso de Foucault e a escrita de Derrida”, K. TOYOSAHI “A literatura na obra do filósofo Foucault” e Y. NAKAMURA, “Sobre L'ordre du discours”.

10 FOUCAULT, M., “Michel Foucault Derrida e no Kaino”, Paideia, n. 11, pp. 131-147. Nos Dits et écrits, figura sob o título “Réponse à Derrida”, Dits et écrits I. 1954-1975, pp. 1149-1163. E na edição brasileira, “Resposta a Derrida”, MICHEL FOUCAULT. Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, coleção Ditos e Escritos, vol. 1, pp. 268-284.

11 Sobre FOUCAULT como intérprete dos filósofos, consulte-se dois artigos de MUCHAIL, S.T. “A leitura dos filósofos” In Foucault simplesmente, pp. 85-96 e “Foucault e a história da Filosofia”, Tempo Social, 7 (1-2), 1995, pp.15-20.

17

Quando Élisabeth Roudinesco e René Major me fizeram a honra e a prova de amizade de convidar-me para uma comemoração que era também uma reflexão para uma dessas verdadeiras homenagens, dessas que o pensamento faz à fidelidade, ou que estimulam a fidelidade pelo pensamento, não hesitei um segundo. Primeiro, porque gosto da memória, o que não é original, e como se pode gostar de outro modo? Ora, esse grande livro de Foucault foi, há trinta anos, um acontecimento que nem mesmo tento identificar, e muito menos medir, no fundo de mim, a repercussão, tanto ela foi intensa e múltipla em suas figuras. Depois, porque amo a amizade e porque, há trinta anos, durante longos anos, a afeição confiante que Foucault me testemunhou foi ainda mais preciosa, pois, compartilhada, respondia à minha admiração declarada. Finalmente, porque o que veio obscurecer essa amizade, depois de 1972, sem alterar a minha admiração, não é alheio precisamente a esse livro e a um certo debate que se seguiu – pelo menos a seus efeitos distantes, retardados e desviados. Houve então uma espécie de encadeamento dramático, de precipitação compulsiva e repetida, que não quero descrever aqui, porque não quero estar sozinho, falando sozinho depois da morte de Michel Foucault - senão para dizer que esta sombra que nos tornou invisíveis um para o outro durante quase dez anos, insociáveis um com o outro até 1º de janeiro de 1982, quando eu voltava de uma prisão tcheca …12

Então, após este silêncio que percorreu a amizade por cerca de uma década,

Foucault assume publicamente, em 1981, a defesa de Derrida num episódio político que

tem lugar em Praga onde Derrida se encontrava detido sob a falsa acusação de tráfico de

drogas13. Há uma reação no meio intelectual francês e Foucault é um daqueles que

tomam publicamente partido na questão via declarações emitidas na rádio. A amizade

será retomada a partir deste ponto mas o debate, de certa forma, continuará através de

um novo texto de Derrida, “Fazer justiça a Freud: a História da loucura na era da

psicanálise”14, conferência pronunciada em 23/11/1991 durante o IX Colloque de la

Société Internationale d'Histoire de la Psychiatrie que na ocasião comemorava os 30

anos de Histoire de la Folie à l' âge classique. Entremos no debate propriamente.

12 DERRIDA, J. “Fazer justiça a Freud: a História da loucura na era da psicanálise” In Três tempos da História da Loucura, p.93-94.

13 Cf ERIBON, Didier, Michel Foucault 1926-1984, p. 129. 14 Principalmente voltado à epistemologia e história da psicanálise, o artigo tratará da presença de

Freud na tese de Foucault.

18

1.1 O silenciamento

Em História da Loucura, Foucault escolhe iniciar o capítulo central “Le Grand

Renfermement”, passo central de sua tese, com estas palavras:

A loucura, cujas vozes a Renascença acaba de libertar, cuja violência porém ela já dominou vai ser reduzida ao silêncio pela era Clássica através de um estranho golpe de força15.

O estranho “coup de force” a que alude Foucault refere-se à passagem da

primeira meditação cartesiana onde, ao início do exercício da dúvida, Descartes cogita a

hipótese de estar louco. Como se sabe, no movimento anterior, Descartes, movido pelo

propósito de duvidar daquilo que lhe toca, daquilo que seus sentidos testemunham, e

tendo assumido que estes já lhe enganaram algumas vezes sobre coisas muito pequenas

ou distanciadas, questionava a si próprio sobre a possibilidade de negar o que lhe parece

tão manifesto.

E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.16

No contexto da história foucaultiana, a recusa de Descartes em comparar-se aos

loucos antes de submeter-se à prova dos sonhos simbolizou, por meio deste “coup de

force”, o gesto que silenciaria a loucura na passagem entre o final da Renascença e início

do Período Clássico. Este passo de Foucault será um dos pontos mais questionados pela

crítica de Derrida. Situaremos melhor o sentido e a inserção de tal gesto no interior da

tese, bem como a crítica de Derrida, num momento posterior. Por ora, importa voltar ao

problema cartesiano. Foucault prossegue:

15 FOUCAULT Michel. História da Loucura na Idade Clássica, tradução de José Teixeira Coelho, p. 45.16 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, tradução de Bento Prado Junior e J. Guinsburg, p.

94.

19

No caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. Será que essa possibilidade de ser louco não arrisca lhe privar da posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se no erro, ou a consciência adormecer no sonho?17

Entende-se que Foucault quis ressaltar aqui, através do termo ‘déposseder', que

traduzimos por 'privar da posse', o sentido deste trecho de Descartes: “E como poderia eu

negar que estas mãos e este corpo sejam meus?” Portanto, a leitura de Foucault parece

coerente com as palavras de Descartes quando este faz alusão ao fato de que os loucos

costumam deslocar-se de seus corpos para outros corpos (os corpos dos reis ou os corpos

de vidro), no sentido de se privarem da sua posse. Por isso, posteriormente, Foucault

afirmará que Descartes dá um tratamento diferencial para a loucura, ele a evita, “bane a

loucura em nome daquele que duvida”18. Ou seja, se o meditador resolvesse negar tudo o

que lhe permite pensar que está ali na frente da lareira a meditar, isso o faria se equiparar

aos loucos, uma vez que são eles que costumam iludir-se com fantasias que acabam por

deslocá-los de seus próprios corpos, ou seja, as fantasias dos loucos parecem ir muito

além das ilusões dos sentidos.

Posteriormente, Foucault afirma algo que aparentemente não condiz com o que se

costuma, em geral, concluir desta primeira meditação:

Mas Descartes não evita o perigo da loucura do mesmo modo como contorna a eventualidade do sonho ou do erro. Por mais enganadores que os sentidos sejam, eles na verdade não podem alterar nada além das “coisas muito pouco sensíveis e muito distantes”; a força de suas ilusões deixa sempre um resíduo de verdade, “que estou

17 Em princípio utilizaremos as traduções disponíveis, desde que adequadas. Eis aqui um bom exemplo da necessidade de propor outra tradução. Foucault diz “Dans le cheminement du doute, Descartes rencontre la folie à côté du rêve et de toutes les formes d'erreur. Cette possibilité d’être fou, ne risque-t-elle pas de le déposséder de son propre corps...”. Preferimos a tradução mais literal “essa possibilidade de ser louco não arrisca lhe privar da posse de seu próprio corpo”, ao invés da proposta por João Teixeira Coelho “...essa possibilidade de ser louco não faz com que ele corra o risco de ver-se despojado da posse de seu corpo” (História da Loucura, p. 45). A tradução de Coelho, embora pareça razoável, altera totalmente o sentido da frase ao colocar o verbo na voz passiva e acrescentar como auxiliar o verbo ver. Esta alteração sugere uma atitude reflexiva que não condiz com a leitura de Foucault, como veremos adiante no decorrer deste capítulo. FOUCAULT, Histoire de la Folie à l’Age Classique, p. 67.

18 FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 47.

20

aqui, perto da lareira, vestido com um robe de chambre19.

Com efeito, a leitura de Foucault de que deva salvar-se um “resíduo de verdade”,

após o argumento do sonho, o qual parece ter entrado em cena para substituir a hipótese

da loucura por adequar-se melhor aos propósitos do meditador, parece não condizer com

o que Descartes afirma ao final do parágrafo do sonho, ou seja, que ele não consegue

achar indícios suficientemente seguros para concluir que não está sonhando, o que o leva

a cogitar a hipótese de que estar ali na frente da lareira talvez seja uma ilusão, pois se ele

estivesse de fato sonhando, ele estaria em seu leito.

Na economia entre a dúvida, a razão e o corpo, o fundamental a se reter é que

“não é a permanência de uma verdade que garante o pensamento contra a loucura”20, ou

seja, não é a certeza da minha asserção que me garante que não sou louco pois os loucos

não duvidam que têm um corpo de vidro. Por isso, Foucault pergunta: “Quando creio ter

um corpo, eu posso ter a certeza de possuir uma verdade mais sólida que aquele que

supõe ter um corpo de vidro?”21 Contudo, dado que o interesse de Foucault era apenas

marcar presença, na História da Loucura, do que ele denominou “estranho golpe de

força”, após alguns parágrafos, ele encerra sua análise sem justificá-lo em pormenores.

Foucault elucidará estes parágrafos na ocasião de sua resposta a Derrida. O importante a

reter é a defesa de que a impossibilidade de ser louco é “essencial” àquele que pensa,

como se Descartes quisesse dizer, no entender de Foucault: “eu penso, não posso ser

louco”.

1.2 Derrida e a hipótese da extravagância

No que toca à questão cartesiana, a crítica de Derrida pode ser sintetizada da

seguinte maneira: em primeiro lugar, (1) ela dirige-se ao fato de Foucault afirmar que

Descartes teria inaugurado um novo entendimento da loucura a partir do Período

19 FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 45-46.20 FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 46. 21 FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 46.

21

Clássico, (2) critica o procedimento de Foucault de ter dissociado a loucura do contexto

dos argumentos dos erros dos sentidos e dos sonhos, dando-lhe autonomia através da

alegação da impossibilidade de submetê-la à prova da dúvida; por fim, (3) discorda que

exista algum ‘resíduo de verdade’ que tivesse se salvado ao final da primeira meditação,

uma vez que nem mesmo as representações intelectuais puderam escapar da dúvida

metódica. Apresentamos a seguir as duas últimas críticas.

1.2.1 A objeção fingida

Derrida demonstrou que o terceiro ponto acima mencionado, o do “resíduo de

verdade”, só se tornou possível devido à afirmação do segundo ponto, ou seja, quando

Foucault dá um caráter de contra-prova ao argumento da loucura, alegando a

impossibilidade do meditador fazer-se de louco. E por sua vez, o estatuto de contra-

prova que Foucault dá à loucura só se tornou possível porque Foucault dissociou a

loucura dos demais argumentos, do sonho e do erro dos sentidos. Dissociação esta que,

no entender de Derrida, os “intérpretes clássicos” de Descartes não teriam deixado de

apontar somente por desatenção. Sendo assim, Derrida procede a uma análise do texto

cartesiano, à luz da interpretação de Guéroult, para provar que Descartes não somente

não dissociou a loucura dos argumentos da ilusão dos sentidos e do sonho, como ao

contrário, a re-introduziu através da hipótese do gênio maligno, entendida por ele como a

possibilidade da loucura total.

Em primeiro lugar, Derrida afirma que o argumento do sonho representou a

radicalização da dúvida natural, a dúvida hiperbólica. O objetivo deste argumento era

provar que temos motivos para duvidar mesmo das nossas representações sensíveis que

nos pareçam mais indubitáveis. Assim, a certeza que resistisse ao sonho, também

resistiria à sua respectiva ilusão em vigília. O que Descartes teria excluído pela hipótese

22

da extravagância22 foi a ilusão dos sentidos, a qual, como vimos, também poderia ser

admitida nos sonhos. Segue-se então a síntese desta leitura de Derrida.

Descartes escreve no início do parágrafo quarto: “E como poderia eu negar que

estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses

insensatos...”23. Derrida coloca que desta frase ao final do parágrafo, Descartes exprime

não exatamente o seu pensamento, “mas a objeção e o espanto do não-filósofo, do

noviço em filosofia a quem esta dúvida apavora e que protesta”24. Isto torna-se manifesto

na frase seguinte: “Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me

guiasse por seus exemplos”25. Descartes, então, estaria negando a loucura porque

assumir esta possibilidade seria “extravagante” demais. Este fingimento de Descartes,

acompanhado da retirada da loucura, justificar-se-ia pelo pressuposto de que o discurso

filosófico deve estar em conformidade “com sua essência e sua vocação de discurso” 26,

caso queira ser inteligível.

Derrida está propondo que este fingimento de Descartes, ao assumir uma outra

voz, atende à necessidade de garantir ao leitor a tranqüilidade de seu espírito para assim

prosseguir testando as hipóteses que o meditador coloca. Assim sendo, este

apaziguamento do espírito é o que permite a Descartes re-introduzir novamente a

hipótese de estar sendo enganado pelos sentidos, sem assustar o leitor, uma vez que ele

pode questionar o conteúdo das representações sensíveis através da prova do sonho. Esta

interpretação de Derrida parece bastante plausível uma vez que, como se sabe, a maior

dificuldade de Descartes seria propor ao leitor não-filósofo e até aos filósofos, que

devemos colocar em dúvida, no processo do conhecimento, o conteúdo das nossas

representações sensíveis.

22 “Hipótese da extravagância” é o modo a que Foucault se refere à hipótese de leitura de Derrida. Derrida se atém a este termo porque ele é utilizado na tradução de Luynes tanto no parágrafo quarto quanto posteriormente no sexto parágrafo quando Descartes refere-se à imaginação dos pintores das imagens dos nossos sonhos, “assaz extravagante”. Conforme DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.

23 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94. 24 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, In: Três tempos sobre a História da Loucura. p. 42. 25 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.26 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 47.

23

Em seguida, Derrida precisa demonstrar que a hipótese do sonho não se dá pela

impossibilidade de se colocar a hipótese da loucura, ideia sugerida no início do parágrafo

quinto da primeira meditação:

Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília.(...)27

Esse trecho parece apontar para o fato de que a hipótese do sonho pode colocar

extravagâncias epistemológicas mais graves do que as que poderia colocar a loucura.

Neste sentido, Derrida afirma

Ora, quais são a certeza e a verdade que escapam à percepção, logo ao erro sensível e à composição imaginativa e onírica? São certezas e verdades de origem não-sensível e não-imaginativa. São coisas simples e inteligíveis (...)28

O que é preciso reter aqui é que, deste ponto de vista, aquele que dorme ou aquele que sonha é mais louco que o louco. Ou, ao menos, o sonhador, considerado o problema do conhecimento que interessa aqui Descartes, está mais longe da percepção verdadeira que o louco. É no caso do sono, e não da extravagância, que a totalidade absoluta das ideias de origem sensível se torna suspeita, fica privada de “valor objetivo”, segundo a expressão de M. Guéroult29.

1.2.2 A loucura como gênio maligno

Norteando-se pela leitura Guéroultiana, Derrida prossegue afirmando que uma

vez que a dúvida conseguiu resistir ao argumento do sonho, não há motivos para afirmar

que alguma “significação sensível” foi salva, pois todas foram excluídas, assim como foi

excluída a loucura, e que, portanto, não há sentido em se afirmar que, conforme diz

27 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.28 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 39.29 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 43.

24

Foucault, um “resíduo de verdade” foi salvo. Deste modo, Derrida reafirma que a

loucura não recebeu nenhum tratamento privilegiado, pois Descartes bem poderia ter ido

diretamente ao argumento do sonho, e assim sendo, a inserção da loucura neste momento

não tem outro caráter senão o pedagógico e retórico. Sendo assim, no seu entender, a

exclusão da loucura, neste primeiro momento, foi só uma exclusão fingida, porque a

hipótese é recolocada posteriormente através do argumento do gênio maligno, que vai

convocar a possibilidade de uma loucura total30.

Até este momento, a interpretação de Derrida parece coerente. Mas no nosso

entender, a sua argumentação torna-se pouco convincente quando ele procura justificar

por que a “hipótese da extravagância” não servia como um bom instrumento da dúvida.

Diz Derrida que o exemplo da loucura não era um bom exemplo a ser utilizado por

Descartes porque “ele (o louco) não se engana sempre e em tudo; ele não se engana o

suficiente, ele não é nunca louco o suficiente”31, e portanto, o teste da “hipótese da

extravagância”, caso fosse realizado, resultaria num “exemplo ineficaz e infeliz na

ordem pedagógica”32 do texto cartesiano. Quanto ao cogito, Derrida fala que não se pode

dizer que ele escapa da loucura na medida em que “o ato do cogito vale mesmo se sou

louco, mesmo se meu pensamento é louco do começo ao fim”33, pois, diante da

experiência do cogito, a “extravagância” se coloca ao lado do ceticismo:

A certeza assim conquistada não está protegida de uma loucura aprisionada, ela é conquistada e assegurada na própria loucura. Ela vale mesmo se sou louco. Suprema segurança que parece não exigir nem exclusão, nem contorno. Descartes jamais aprisiona a loucura, nem na etapa da dúvida natural, nem na etapa da dúvida metafísica. Ele apenas finge excluí-la na primeira fase da primeira etapa, no momento não hiperbólico da dúvida natural.34

Questionamos essa interpretação de que a loucura retorne na forma de gênio

maligno. Será que podemos dizer que a loucura que Descartes excluiu (ou fingiu que

30 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, pp. 45-47.31 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 43.32 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 44.33 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 50.34 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 50-51. Itálicos de Derrida.

25

excluiu) é a mesma que ele inclui novamente? Segundo nosso entendimento, tratam-se

de coisas diferentes. Porque a primeira loucura é a loucura que pode ser identificada em

determinadas pessoas, ao passo que a ficção do gênio maligno coloca, como Derrida

mesmo diz, uma loucura geral. Ademais, deve-se ter em mente também que não se tem

claro o que Descartes quis dizer exatamente com a expressão com que ele qualificou os

loucos, “cérebro perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile”.

Por outro lado, se admitimos, como Derrida, que a hipótese da extravagância foi

artificialmente excluída e que esta exclusão atendia ao objetivo de não assustar o leitor, e

que por este motivo ela não foi utilizada para testar nossas representações sensíveis,

então, será que não podemos afirmar que, quando Descartes a substitui pela hipótese do

sonho, sob o pretexto de que ela é ainda mais eficaz que a loucura, tendo em vista o que

se quer mostrar, nesse momento, Descartes também não continua fingindo? Em resumo,

será que os motivos alegados para justificar uma melhor adequação dos sonhos também

não são fingidos? Talvez por isso os comentários de Derrida sobre a inadequação da

hipótese da extravagância (“ele (o louco) não se engana sempre e em tudo; ele não se

engana o suficiente, ele não é nunca louco o suficiente”35) seguidos de seus comentários

sobre o cogito, soem um tanto desarrazoados neste momento. Mais adiante, quando da

apresentação da crítica de Derrida ao projeto da tese de Foucault, inserida no contexto do

projeto da desconstrução, estas palavras adquirem outra significação.

1.3 Foucault e a exclusão (des) qualificante

1.3.1 Ascese e Demonstração

Foucault afirma que não é plausível a hipótese de Derrida da presença de uma

outra voz no texto, a do não-filósofo. E que Derrida só pôde introduzi-la, revestida de

um caráter de ficção pedagógica, porque não considerou devidamente o significado do

título Meditações. Este termo

35 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 51.

26

supõe que o sujeito falante não para de deslocar-se, de modificar-se, de mudar suas convicções, de mudar suas certezas, de assumir riscos, de fazer tentativas. À diferença do discurso dedutivo, de que o sujeito falante permanece fixo e invariante, o texto meditativo supõe um sujeito móbil e expondo-se ele próprio às hipóteses que considera. Derrida imagina uma ficção “retórica” ou “pedagógica”, lá onde se deve ler um episódio meditativo. Basta, como recomenda Derrida, reportar-se ao texto latino das Meditações para ver que ele é pontuado, em toda sua extensão, com estes at tamen, sed contra, que marcam “peripécias”, torneios, acontecimentos na meditação, e não a emergência de uma outra voz36.

Usando de sua habitual ironia, Foucault afirma que Derrida não percebeu as

diferenças discursivas de que procedem as diferenças textuais, pois se o tivesse feito,

perceberia que o texto cartesiano apresenta dois discursos paralelos: o discurso

demonstrativo analítico, aquele em que Derrida identificou a apresentação da ordem das

razões cartesiana, e outro da experiência meditativa, que propõe uma ascese, duas

‘vozes’, uma que desenvolve um sistema lógico de proposições e outra que convida o

sujeito a um trabalho de modificação. No discurso demonstrativo o sujeito é fixo, ao

contrário do exercício meditativo, em que o sujeito se desloca ao submeter a si próprio às

hipóteses que considera. Foucault considera que Derrida, ao tomar apenas o discurso

demonstrativo, foi obrigado a atribuir um caráter retórico a estes fragmentos textuais

dispensáveis à ordem demonstrativa, cujo autor não poderia ser outra coisa do que algo

exterior a este discurso, a tal voz do ingênuo leitor não-filósofo. Este caráter de

exterioridade é criticado por Foucault. Com efeito, ele diz que o exercício meditativo

deve ser:

(...) um exercício cuja experiência modifica pouco a pouco o sujeito meditador, e de sujeito de opiniões ele se vê qualificado como sujeito de certeza. É preciso ler as Meditações como uma sequência temporal de transformações qualificando o sujeito; é uma série de acontecimentos propostos ao leitor como acontecimentos iteráveis para e por ele. (...) Parece que perdemos o essencial do texto cartesiano se não colocamos, em primeiro plano da análise, as relações do momento e do sujeito na ordem das provas.37

36 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, In: Três tempos sobre a História da Loucura. p. 76.37 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 86.

27

Percebe-se então que a principal divergência entre os dois filósofos neste ponto

não é se a voz pode ser atribuída a Descartes ou ao leitor não-filósofo. A questão é que,

enquanto Derrida constata a existência de uma voz externa (atribuída ao não-filósofo)

que aparece de forma fragmentada ao longo das Meditações, Foucault identifica dois

discursos paralelos, “internos” portanto, ao exercício meditativo. O discurso da ascese,

este que ele quer ressaltar, não se resume a fragmentos, mas dirige-se ao exercício de

modificação do sujeito que se dá em paralelo ao discurso demonstrativo, e obedece a

uma ordem igualmente rigorosa. E é por isso que, segundo sua leitura, não há nada

“sobrando” nas Meditações, não há apelo a recursos retóricos.

Conforme veremos, a argumentação de Foucault não tem por objetivo apenas

assinalar a presença de um discurso da ascese no interior das Meditações. É necessário

sobretudo provar a necessidade da existência desta dupla ordem justamente para

resguardar o propósito da dúvida cartesiana, conforme se segue.

1.3.2 Insanus e Demens

Retomemos brevemente as conclusões de Derrida. Descartes não tinha dado

nenhum tratamento especial à loucura, ele apenas fingiu excluir a “hipótese da

extravagância” para não chocar o leitor não-filósofo. A sua menção à loucura foi apenas

retórica, tanto é que foi demonstrado que o argumento do sonho se adequava mais aos

propósitos de se colocar em cheque as representações sensíveis porque apresentava

desafios epistemológicos maiores que a “hipótese da extravagância”. Mas esta foi

recolocada na ordem do texto através do gênio maligno, representando a “loucura total”.

Segundo Foucault, Derrida errou em não ter prestado devida atenção à versão

latina das Meditações, o que o levou a reduzir todas as menções à loucura ao vocábulo

francês ‘extravagant’. Foucault prefere usar como parâmetro o texto latino que traz

diferenças de sentido interessantes. Comparemos as duas versões:

28

Sed forte, quamvis interdum sensus circa minuta quaedam & remotiora nos fallant, pleraque tamen alia sunt de quibus dubitari plane non potest, quamvis ab iisdem hauriantur: ut jam me hîc esse, fovo assidere, hyemali togâ esse indutum, chartam istam manibus contrectare, & similia. Manus verò has ipsas, totumque hoc corpus meum esse, quâ ratione posset negari? nisi me forte comparem nescio quibus insanis, quorum cerebella tam contumax vapor ex atrâ bile labefactat, ut constanter asseverent vel se esse reges, cùm sunt pauperrimi, vel purpurâ indutos, cùm sunt nudi, vel caput habere fictile, vel se totos esse cucurbitas, vel ex vitro conflatos; sed amentes sunt isti, nec minùs ipse demens viderer, si quod ab iis exemplum ad me transferrem. 38

Mais, encore que les sens nous trompent quelquefois, touchant les choses peu sensibles et fort éloignées, il s'en rencontre peut-être beaucoup d'autres, desquelles on ne peut pas raisonnablement douter, quoique nous les connaissions par leur moyen: par exemple, que je sois ici, assis auprès du feu, vêtu d'une robe de chambre, ayant ce papier entre les mains, et autres choses de cette nature. Et comment est-ce que je pourrais nier que ces mains et ce corps-ci soient à moi? si ce n'es-t peut-être que je me compare à ces insensés, de qui le cerveau est tellement troublé et offusqué par les noires vapeurs de la bile, qu'ils assurent constamment qu'ils sont des rois, lorsqu'ils sont très pauvres; qu'ils sont vêtus d'or et de pourpre, lorsqu'ils sont tout nus; ou s'imaginent être des cruches, ou avoir un corps de verre. Mais quoi? ce sont des fous, et je ne serais pas moins extravagant, si je me réglais sur leurs exemples39.

38 DESCARTES, R. Meditações sobre Filosofia Primeira, I, pp.22 e 24, edição bilingue. Tradução do latim de Fausto Castilho, nesta edição, pp. 23 e 25: «Mas, talvez, apesar de os sentidos nos enganarem às vezes acerca de certas coisas miúdas e muito afastadas, muitas outras coisas haja, contudo, sobre as quais não se pode de modo algum duvidar, não obstante hauridas dos sentidos. Por exemplo, que agora estou aqui, sentado junto ao fogo, vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas semelhantes. Em verdade, qual a razão para que possa negar essas próprias mãos e todo esse meu corpo? A não ser talvez que me compare a não sei quais insanos, cujo cérebro foi a tal ponto afetado pelo negro vapor da bílis que constantemente asseveram ou que são reis, sendo paupérrimos, ou que se vestem de púrpura, estando nus, ou que têm a cabeça feita de barro ou que são inteiramente cabaças ou confeccionados em vidro. Mas, eles são dementes e não pareceria menos demente do que eles, se buscasse neles algo como exemplo para mim».

39 DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, I, p. 20. “Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas

29

Na tradução do Duc de Luynes esta relação não se apresenta tão visível. Já na

versão latina, conforme argumenta Foucault, nota-se que insani é uma palavra que

pertence tanto ao uso corrente quanto à terminologia médica. Contudo, ele aponta que a

frase seguinte indica tratar-se de uso médico porque faz referência ao cérebro afetado

pelos negros vapores da bile, ou seja, aqui Descartes não se refere aos extravagantes no

sentido de como pode ser lido no sexto parágrafo do texto cartesiano. Foucault ressalta

que a diferença mais interessante que a versão francesa não faz ver, é o uso dos termos

demens e amentes, que são termos técnicos de uso constante no vocabulário jurídico e

médico, respectivamente40. O importante é que ambos os termos designam uma categoria

de pessoas que são “estatutariamente incapazes de um certo número de atos religiosos,

civis e judiciais”41; ou seja, ambos são desqualificados quando é preciso agir, convocar

uma ação policial, enfim, falar ou se fazer ouvir.

Para Foucault a inserção destas palavras não é fortuita, assim como a troca da

palavra no parágrafo seguinte quando ele compara as ilusões dos loucos com as dos

sonhos. Estes fatos espelham que o meditador, enquanto filósofo, não poderia se fazer de

louco porque estaria se colocando no lugar de alguém que não tem o direito de falar. O

meditador sabe que não é insanus mas se resolvesse fingir que é, estaria bancando o

demens, ou seja, estaria “fora de toda legitimidade de ato ou de palavra” 42. Portanto, para

Foucault, Descartes não finge que exclui a loucura, ele realmente a exclui. Ele tem que

excluí-la porque esta é a sua condição de possibilidade de estar no lugar de quem fala, do

que é ouvido.

outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos”. In: DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.

40 Sentido dos termos: amens,entis: que está fora de si, perturbado. Alguém que perdeu a razão, o insensato, o louco; demens,entis: que não está em seu juízo, demente, insensato, louco. Interessante é o termo extravagant (francês): sentido etimológico: extra + vagari = sair do caminho, errante. O termo qualifica o que é excessivo, significa algo bizarro, excêntrico recobre alguns sentidos de louco (não todos) [Dictionnaire historique de la langue francaise].

41 FOUCAULT. « Mon corps, ce papier, ce feu » p. 590.42 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 81.

30

Se não recorre a uma exclusão fingida da loucura, como faz Derrida, como

Foucault explica a inclusão da loucura seguida da sua exclusão abrupta? Por que então

Descartes não escolheu passar diretamente ao argumento do sonho? Esta manobra

discursiva é interpretada por Foucault como um estratagema cartesiano para inserir na

ordem das Meditações uma situação qualificante do sujeito que medita, neste caso, algo

que ele não é. O meditador não poderia negar, como os loucos, que não estava ali, o que

significa que naquele momento alguma coisa estava sendo salva. O meditador, resolvido

a desconfiar dos sentidos, precisava salvar ao menos aquilo que lhe tocava, o aqui e

agora, o exercício da meditação. Então, a hipótese do sonho permite continuar a exercer

a dúvida porque eu posso sonhar e em sonhos ter a ilusão de estar aqui enquanto estou

apenas no leito.

Lembremos que Derrida insistia que Descartes havia introduzido a hipótese do

sonho porque ela oferecia desafios epistemológicos maiores que a loucura uma vez que

as ilusões dos sonhos são com frequência mais inverossímeis ainda que as da loucura,

então as ilusões da loucura seriam uma forma mais atenuada e pouco extravagante

daquelas do sonho. Foucault crê que a intenção de Descartes, ao dar este passo ao sonho,

tem outro motivo: apontar que o sonho, diferente da loucura, é algo que pode nos

acontecer, e acontece com frequência. Isso é enfatizado por várias expressões: “costumo

dormir”43, “quantas vezes ocorreu-me sonhar”44, “lembro de me ter sido muitas vezes

enganado quando dormia”45. Ou seja, a ênfase de Descartes quanto ao fato de que o

sonho é, com frequência, mais inverossímil ainda que a loucura recai sobre a

necessidade de mostrar que “a experiência que ele aceita e acolhe (o sonho) não é menos

demonstrativa que aquela que ele exclui (a loucura)” 46, como se Descartes dissesse:

Poderia eu, de modo válido, fazer o demens no encaminhamento de minha meditação, tal como há pouco eu podia fazer o dormiens? Será que ao bancar o louco não me arrisco a não mais meditar de jeito nenhum, ou a não mais fazer senão uma

43 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.44 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.45 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.46 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 78. Itálico nosso.

31

meditação extravagante, em vez de meditar de modo válido sobre as extravagâncias?47

Como se sabe, em seguida Descartes realmente submete-se à hipótese do

sonhador e conclui que não há indícios certos para que ele possa distinguir o sono da

vigília. Esta constatação toma de espanto o meditador, ela o surpreende a tal ponto que

ele seria capaz de achar que está sonhando. Vejamos como Foucault vai interpretar tal

espanto.

Lembremos que Foucault quer mostrar que existe uma dupla trama, a sequência

das demonstrações lógicas dá-se paralelamente ao deslocamento do sujeito que deve

acontecer, propósito da meditação. O primeiro discurso é marcado por frases exatas

como “vejo tão manifestadamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem

marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono” 48. Por

outro lado, o deslocamento do sujeito pela simulação é percebido pelas expressões de

espanto, surpresa, impasse, medo, alegria, que percorrem o texto todo, e que são mais

percebíveis através da língua latina. Foucault chega a cogitar a existência de uma

simetria entre estes discursos:

“Estou completamente surpreendido e minha surpresa é tal que ela é quase capaz de me persuadir que durmo”. Esta frase não é uma cláusula de estilo: ela não é nem “retórica” nem “pedagógica”. Por um lado, ela permite todo o movimento seguinte da meditação, que se desdobra na eventualidade do sono. Devem-se ler as frases seguintes como instruções tornadas possíveis pela “surpresa” que acaba de se produzir: “Suponhamos então agora que estamos dormindo...” pensemos que talvez nem nossos amigos nem nosso corpo inteiro não são como nós os vemos. Por outro lado, a frase responde, e quase termo a termo, à frase do parágrafo precedente: “Mas claro, são loucos”, dizia o primeiro parágrafo; “eu vejo tão manifestadamente (...) que estou inteiramente surpreso”, diz o segundo. “Eu não seria menos extravagante do que eles se eu me regulasse pelo exemplo

47 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 81.48 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94.

32

deles”, diz o parágrafo dos loucos; “e minha surpresa é tal que ela é quase capaz de me persuadir de que eu durmo”, diz, em resposta, o parágrafo do sonho.

É extraordinariamente difícil não ouvir aqui a simetria das duas frases e não reconhecer que a loucura desempenha o papel da possibilidade impossível, antes que o sonho apareça por sua vez, como uma possibilidade tão possível, tão imediatamente possível, que ela já está aqui agora, no momento em que falo49.

1.3.3 Gênio delirante

Derrida defendeu que a presença do gênio maligno nas Meditações simboliza a

“loucura total”. A posição de Foucault é de que o gênio maligno pode ser a loucura, mas

não a mesma loucura que foi excluída, porque, como vimos, a loucura excluída é aquela

do cérebro vaporizado pela negra bílis, o demente incapaz de se fazer ouvir. O gênio

maligno é o lado ilusório da loucura, o seu lado ficção, desrazão. Foucault aponta que o

texto mostra que o exercício com o gênio maligno é um exercício voluntário, mas

controlado e regido pelo sujeito meditador que jamais se deixa surpreender. O gênio

maligno pode fazer nascer todos os discursos ilusórios da loucura, mas também pode

fazer o contrário disso porque, ao contrário do louco, que crê que se veste de púrpura, ele

não crê em nada, e pode se colocar, portanto, além da ilusão da loucura. Foucault chama

atenção ao fato de que, “se o gênio maligno invoca os poderes da loucura, isso só se dá

porque o exercício da meditação já excluiu o risco de eu ser louco” 50. E todo o trabalho

do meditador é manter-se na posição de mestre, posicionando-se racionalmente diante de

sua ficção51.

Esta figura do gênio maligno parece bastante familiar a Foucault. Ele parece

defini-lo como um ser que se coloca totalmente fora da possibilidade de controle, mas a

49 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 79-80.50 FOUCAULT. « Mon corps, ce papier, ce feu ». p. 601.51 FOUCAULT. « Mon corps, ce papier, ce feu ». p. 601.

33

sua “atuação” na meditação sofre a regência do meditador que o mantém como que sob

vigília. Esta imagem nos remete instantaneamente a um quadro elaborado por Foucault

em História da Loucura. Durante o Renascimento, a loucura era tida como uma

‘experiência a se interpretar’, os temas literários e pictóricos atestam que a nave dos

loucos é um tema em moda. Os “loucos” tinham uma existência “facilmente errante” e

as cidades “os expulsavam de bom grado de seu meio”52. Em oposição a esta imagem

renascentista da nave dos loucos, Foucault apresenta a experiência clássica do grande

confinamento. Foucault afirma que no período clássico, a loucura torna-se uma forma

relativa à razão. Se até o Renascimento a loucura podia ser livremente interpretada, o

homem clássico do livre-arbítrio tornará a loucura uma questão moral, porque pensa ser

possível fazer a opção da loucura ou da razão, e a loucura então passa a ser a ausência da

razão, a desrazão. O homem clássico pensará a razão como uma exclusão da desrazão,

uma exclusão teórica e jurídica. É oportuno observar que não são somente os loucos a

apresentar a “desrazão”, mas também aqueles que escolheram a desumanidade, a outra

possibilidade do homem53.

É interessante notar como estas imagens da Idade Clássica traduzem com tanta

proximidade a filosofia cartesiana. É quase impossível não visualizar aqui a imagem

evocada na figura do gênio maligno, ao tomarmos o jogo que se estabelece entre ele e o

meditador, cuja característica fundamental parece ser a de que razão e delírio entram

numa “relação eternamente reversível”54. E a reciprocidade entre a loucura controlada

pela razão e a razão controlada pela loucura retrata bem a presença do gênio maligno e a

constante vigília do meditador.

52 FOUCAULT, História da Loucura, p. 9.53 Conforme nos lembra MUCHAIL, este conjunto era bem extenso; “são pobres, vagabundos e sem

trabalho; são correcionários, detentos e condenados; são devassos, libertinos, impudicos, doentes venéreos, prostitutas e homossexuais; são bêbados e mentirosos; são filhos ingratos, jovens que perturbam o sossego da família e pais dissipadores; são blasfemadores, suicidas, alquimistas, feiticeiros e mágicos; são insensatos, cabeças alienadas e espíritos transtornados”. MUCHAIL, S., “Marginalização Filosófica do cuidado de si” In ALBUQUERQUE Jr et al (orgs), Cartografias de Foucault, p. 371.

54 FOUCAULT. M. História da Loucura, p. 30.

34

1.3.4 Resíduo de Verdade

Seja em “Mon corps, ce papier, ce feu” ou em “Resposta a Derrida”, Foucault

quer provar a vinculação da questão da loucura ao argumento do sonho, não ao gênio

maligno. Lembremos que Derrida insiste na hipótese de que o argumento do sonho foi

introduzido porque trazia desafios epistemológicos maiores que as fantasias dos

delirantes, daí ele dizer que representava a exasperação hiperbólica da hipótese da

loucura. Foucault trabalha a relação entre sonho e loucura a partir de alguns pontos. Em

primeiro lugar, nos chama atenção ao vocabulário empregado em cada um dos

parágrafos. Naquele da loucura, o termo principal seria compare, sendo, o louco, o

elemento exterior ao qual se compara o meditador, e em contraposição, o parágrafo do

sonho traria o “vocabulário da memória”55, atestando que não se trata agora de elemento

exterior, mas do apego à experiência possível. A diferença também é marcante em

relação aos cenários evocados por Descartes: no caso da loucura, como se sabe,

transportam-se os loucos para uma outra cena, ao passo que aos sonhadores, a imagem

memorizada é a mesma da situação em que o meditador se encontra.

É importante frisar neste momento, embora iremos retornar ao ponto mais

adiante, que esta leitura foucaultiana particulariza-se por opor-se, não só a Derrida, mas

mesmo a alguns “cartesianos”, pois no trecho em questão, dos argumentos do sonho e da

menção à loucura (até então não tomada como argumento), onde se costumou ler uma

espécie de objeção ao exercício da dúvida dos sentidos, Foucault nos convida a ver um

processo de criação de uma contraposição que se dará no momento em que a ordem

demonstrativa encontra ou cruza a ordem da ascese. Vejamos como isso acontece.

Antes disso, não esqueçamos de que o grande pressuposto da leitura foucaultiana

é a existência da ordem da ascese que provoque os “acontecimentos discursivos”,

momentos de qualificação do sujeito, que por efeito do exercício, deve sair da leitura das

Meditações, deslocado, “da obscuridade à luz, da impureza à pureza, do constrangimento

das paixões ao desprendimento, da incerteza e dos movimentos desordenados à

55 FOUCAULT, Michel. "Mon corps, ce papier, ce feu", p. 588.

35

serenidade da sabedoria etc”56. A partir deste pressuposto podemos compreender como

Foucault guiar-se-á em sua leitura.

Entendemos que os elementos principais desta leitura sejam uma contraposição,

um efeito e uma contradição. A contraposição que, segundo Foucault, foi pensada por

Descartes, dá-se entre o sujeito que medita e o sujeito que duvida, cada qual associada a

uma ordem discursiva. Na contraposição embaralham-se as formas, elas cruzam-se numa

espécie de “quiasma”57, entendido aqui como uma metáfora visual para simbolizar o

cruzamento entre planos distintos, cria-se uma espécie de contradição, que no entanto, é

necessária, para que se crie o efeito desejado. Entendamos a contraposição, o efeito e a

contradição no interior do jogo abaixo.

Foucault diz que o silogismo prático realizado por Descartes teve como

conclusão desconfiar do testemunho dos sentidos. Os argumento dos sonhos e da loucura

são chamados para operar esta generalização e para levar mais longe o exercício da

dúvida. Como se eles introduzissem duas respostas diferentes para a mesma questão:

“para me decidir a duvidar de tudo, devo me desqualificar como razoável?”58. Afinal, é

bem verdade que, “há coisas [sensíveis] das quais não se pode razoavelmente duvidar” 59,

diria o sujeito que medita. Dá-se a passagem, o cruzamento entre as duas formas

discursivas. Neste ponto, Foucault pergunta “Mas qual é portanto o obstáculo, o ponto de

resistência do exercício da dúvida?”60Não é outra coisa que aquilo que toca o meditador,

sua situação imediata, aquilo que lhe está manifesto, que ele pode pensar com clareza e

distinção, o vivo e o próximo em contraponto aos objetos distanciados que não podem

ser vistos com distinção. Os loucos, assim como o sujeito que quer duvidar, negam o seu

entorno imediato, seu corpo, mas eu não preciso ser louco para duvidar, eu posso seguir

56 FOUCAULT, Michel. "Mon corps, ce papier, ce feu", p. 593.57 Neste caso, quiasma está sendo usado como uma espécie de metáfora visual. Apenas a titulo de

esclarecimento, quiasma é um termo que se usa em vários domínios para definir um cruzamento que se dá entre planos distintos. A expressão tem lugar tanto na genética para designar a "configuração que assumem os cromossomos homólogos durante um processo de permuta", quanto em ótica, para mostrar quando os nervos óticos se juntam e se cruzam, quanto em linguística, para designar uma figura de linguagem em que os elementos das frases são dispostos de forma cruzada. Conforme Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.

58 FOUCAULT, Michel. "Mon corps, ce papier, ce feu", p. 595.59 DESCARTES, R. Meditações, p. 94.60 FOUCAULT, Michel. "Mon corps, ce papier, ce feu", p. 595.

36

adiante no exercício da dúvida, e pensá-la como uma dúvida razoável quando me lembro

de ter tido ilusões sonhando, por isso excluo a loucura, pois as qualificações do sujeito

duvidando e do sujeito meditando não são possíveis no momento. A impossibilidade de

ser louco é mostrada também pela sua caracterização, aquele que está com outras roupas

(vestido de púrpura), outro corpo (cabeça de vidro). “Descartes marcou as cartas do

jogo”, o meditador estava ali junto ao fogo, “o louco está alhures” 61 .

A prova do sonho, por sua vez, é tão possível que o meditador passa a considerá-

la de imediato. Note-se que ele não elenca sonhos delirantes mas a própria situação

vivida na meditação. Existe uma contraposição inclusive semântica, do louco que está

ausente e do sonho como algo que faz parte da minha existência rotineira humana.

Foucault compara as reiteradas apreensões do meditador sobre o sonho quando diz que

costuma dormir, costuma sonhar, lembra-se de ter sonhado, já sonhou que estava ali na

mesa, sonhou que estava ali e tinha nítida impressão de não estar sonhando dada a

vivacidade que lhe pareciam ter as impressões. Estas disposições são análogas aos

momentos em que se evocam o os elementos que compõem o aqui e agora do meditador

em contraponto à situação dos loucos ausentes. Vejamos:

Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, [1] que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.

61 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 83.

37

Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que [2] estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que [3] contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre no sono não parece ser nem tão claro nem tão distinto quanto tudo isso. Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.

Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades, a saber, que [4] abrimos os olhos, que mexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo nosso corpo, não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, [5] essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes62.

Os elementos corpo, papel, fogo, mãos ou afins são repetidos nada menos que

cinco vezes. Na primeira, o meditador tem a certeza imediata de estar ali; na segunda, a

cena é reproduzida como um sonho que tantas vezes teve; na terceira, comparando a

62 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94. Negritos nossos.

38

clareza das representações no sonho e na realidade; na quarta, a cena é evocada pelo

meditador fazendo de conta que sonha; e por fim, na quinta menção, ele admite que

mesmo se sonhando, é preciso admitir que estas ilusões do sonho, neste caso, são

formadas a partir de coisas existentes. E propositalmente destacados desta imagem

aparecem os loucos em seus corpos de vidros, e por isso Foucault pode afirmar que “as

duas provas se opõem; uma que constituiu o sujeito como razoável (em face do louco

desqualificado), e a outra que constituiu o sujeito duvidando (na indistinção entre sonho e

vigília)”63. Então, após o exercício do sonho, tem-se dois efeitos, o salvamento do aqui e

agora e a exclusão da loucura.

A reiteração dessa imagem não é arbitrária. Vemos então que ali onde usualmente

se costuma ler uma resistência à dúvida, Foucault verá uma tentativa de salvar um

“resíduo de verdade”. É interessante notar que este esquema condiz bem com o que

Foucault afirmara, ainda em 1961, no único parágrafo, em História da Loucura, em que

ele cita o termo “resíduo de verdade”. Porém, naquela ocasião, essa sequência não estava

explícita e não era possível saber exatamente como ele tinha chegado a estas

conclusões64.

Sobre a exclusão da loucura, ela se dá como um tipo de contradição ou contra-

senso na ordem do texto. Como se sabe, depois que o sujeito cartesiano encontra sua

primeira certeza, e conforme ele vai qualificando-se enquanto sujeito de certezas, as

contraprovas dos argumentos da dúvida das percepções sensíveis, dos sonhos, do gênio

maligno, vão sendo apresentadas, de forma que, uma vez desdobrado o sistema,

aparecem todas as respostas para as questões colocadas pela dúvida. Em contrapartida,

no caso da loucura, Descartes menciona de imediato seus mecanismos: “cérebro

perturbado e ofuscado pelos vapores da bílis”. Parece realmente estranho que “um

fragmento antecipado do saber venha ocupar o vazio da prova rejeitada”65 ou que

63 FOUCAULT, Michel. "Mon corps, ce papier, ce feu", p. 597. 64 A frase em referência é “Mas Descartes não evita o perigo da loucura do mesmo modo como

contorna a eventualidade do sonho ou do erro. Por mais enganadores que os sentidos sejam, eles na verdade não podem alterar nada além das “coisas muito pouco sensíveis e muito distantes”; a força de suas ilusões deixa sempre um resíduo de verdade, “que estou aqui, perto da lareira, vestido com um robe de chambre”. FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 45-46.

65 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 89.

39

justamente um discurso que acabara de se colocar como meta buscar um novo

fundamento para a ciência, apresente, como justificativa da exclusão de uma hipótese,

uma informação “que o saber já localizou, definiu e dominou”66

A loucura teria ganhado este tratamento diferencial porque Descartes não poderia

ter explicitado sua exclusão, justamente por ser uma exceção à simetria do sistema, “o

momento da exclusão da loucura no sujeito em busca de verdade é forçosamente

ocultado do ponto de vista da ordenação arquitetônica do sistema”67. Esta é a condição

de se exercer a dúvida.

Mas poderíamos também questionar: Descartes conhecia os mecanismos da

loucura? Associava a loucura a uma falha dos sentidos ou a um desencontro entre estes e

a imaginação? Foucault não entra neste assunto diretamente mas sabe-se que muitas

informações sobre a atuação de Descartes junto aos médicos e o debate das descobertas

da época podem ser obtidas nas cartas trocadas entre Descartes e Mersenne, Plempius,

Regius, Van Bewevick e Van Rogeland, inclusive pela sua participação frequente em

dissecações de cabeças de diversos animais com o objetivo de entender os mecanismos

da imaginação e da memória68.

66 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 89.67 FOUCAULT. “Resposta a Derrida”, p. 88. 68 Cf DONATELLI, M. “Descartes e os médicos”, Scientlae Studia, vol.I, no.3, 2003, pp. 323-336;ou

Cf DESCARTES, R. “Carta a Mersenne”, nov de 1633, apud MATOS, Olgária, “Descartes e o outro de si”, p. 205.

40

CAPÍTULO 2

SEGUNDO MOMENTO DO DEBATE:

A REPERCUSSÃO ENTRE OS CARTÉSIENS

A discuter avec opiniâtreté un point de détail, dans une œuvre dont l'ampleur et l’originalité forcent l'admiration, quelque gêne nous prend. Mais nous croyons que les études cartésiennes, qui ont habitué à tant de

minutie dans l’interprétation des Méditations métaphysiques, ont beaucoup à gagner à ce débat entre M. Foucault et J. Derrida, car il

soulève quelques questions, qui ne nous paraissent pas tout à fait indifférentes.

Jean-Marie Beyssade69

Entende-se como segundo momento do debate o conjunto de artigos e cartas

trocadas entre alguns historiadores franceses da filosofia cartesiana que acontece na

esteira do debate entre Michel Foucault e Jacques Derrida. Trata-se de situar a

particularidade da leitura de Foucault frente às questões tradicionalmente levantadas

pelos estudiosos de Descartes.

Num primeiro momento, evidenciaremos a divisão de opiniões entre Jean-Marie

Beyssade e Martial Guéroult no que toca à questão do método cartesiano. Na sequência,

apresentamos o esforço de Ferdinand Alquié de reformular o debate em outros termos,

seguido pelo ensaio de Michelle Beyssade, que em resposta à reformulação proposta de

Alquié, busca retomar e demonstrar alguns argumentos de Michel Foucault, baseada na

69 BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”, p. 290.

41

análise da versão latina do texto.

2.1 A Regra da Coerência

A introdução da leitura cartesiana de Foucault no meio acadêmico francês não se

deu sem percalços. Suas opiniões expressas em 1961 em História da Loucura na Idade

Clássica foram vistas com reserva e encontrou o silêncio da maior parte dos

pesquisadores de Descartes. Silêncio que a contenda estabelecida com Jacques Derrida

alguns anos depois só fez alongar, visto que poucos desejavam arbitrar a polêmica.

O primeiro a tomar partido publicamente é Jean-Marie Beyssade. Um pouco mais

jovem que Foucault, Jean-Marie foi colega de Jacques Derrida na École Normale

Supérieure de Paris, entre 1953 e 1954, onde ambos seguiram os cursos oferecidos por

Foucault. Em 1965, ao se tornar assistente de Foucault, toma conhecimento do artigo que

Derrida publicara em 1963. Na época, jovem pesquisador da filosofia cartesiana, Jean-

Marie interessa-se pela discussão e redige algumas notas em que criticava a leitura dos

dois protagonistas do debate, porém resolve mantê-las para si. Somente em 1972,

quando é lançada a segunda edição da tese de Foucault, acrescida de "Mon corps, ce

papier, ce feu", movido “de paixão”70 pela explicitação da abordagem, JM Beyssade

atualiza suas anotações. Antes de enviá-las à Revue de Métaphysique et de Morale, as

submete aos amigos Foucault, Derrida, e aos seus mestres cartesianos Ferdinand Alquié

e Marcial Guéroult. Em 1973 o artigo “Mais quoi ce sont des fous" é lançado.

O fato é que nas mãos de JM Beyssade, a leitura de Foucault adquiria uma

desejada feição subversiva daquilo que Jean-Marie denominava o "dogmatismo da

ordem"71. Há muito tempo se instalara no ambiente acadêmico francês uma primeira

querela cartesiana. Ocorrido na década de 50, este primeiro divisor de águas dos estudos

contemporâneos de Descartes contrapunha a leitura existencialista do cogito assumida

por Ferdinand Alquié à abordagem que se tornaria um clássico dentre os estudos

70 BEYSSADE, Jean-Marie. “Dossier" In Descartes au fil de l'ordre, p. 40. 71 BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”, p.274.

42

cartesianos, Descartes segundo a ordem das razões, de Martial Guéroult. O debate terá

nova edição a partir de 1968, quando um Congresso sobre Descartes ocorrido em

Bruxelas trará um debate entre as nuances desta contraposição desta vez discutidas por

seus antigos alunos, dentre eles Jean-Luc Marion e Jean-Marie Beyssade72

Jean-Marie Beyssade toma como ponto de apoio as palavras de Foucault de 1961,

considerando o texto de 1972 como uma forma de explicitação do que já fora

apresentado em História da Loucura. Foucault, em carta, discorda da justiça do

procedimento, alegando que JM Beyssade "aferrolhou73" o texto novo pelo antigo no

intuito de criticá-lo por certas posições assumidas naquele primeiro momento, não

obstante o segundo texto fosse elaborado "num estilo, com um método e um grau de

aproximação totalmente diferentes"74 do primeiro.

Em primeiro lugar, JM Beyssade chama atenção ao fato de Foucault ter colocado

a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro75. Argumenta que a

particularidade da dúvida cartesiana está justamente na ordenação de seus argumentos, o

que a diferencia das dúvidas colocadas na época pelos céticos e acadêmicos76. E neste

sentido, ressalta que o importante neste caso é precisar que a loucura é convocada depois

dos erros dos sentidos e antes do argumento dos sonhos, e não ao lado de. A segunda

crítica de Jean-Marie Beyssade elucida a questão. Na pergunta lançada por Foucault

(“Será que essa possibilidade de ser louco não faz com que ele corra o risco de ver-se

despojado da posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se

no erro, ou a consciência adormecer no sonho?”), Jean-Marie Beyssade identifica uma

72 Para saber mais sobre disputas de questões cartesianas, vide JM BEYSSADE em Descartes au fil de l'ordre, Paris: Press Universitaires de France, 2001, e a ainda, MACHEREY, Pierre, "Querelles cartésiennes I, II, III" In: stl.recherche.univ-lille3.fr/seminaires/philosophie/macherey/ Macherey20022003/Macherey2003.html, textos de novembro de 2002.

73 FOUCAULT em carta de 07/11/72, escrita a Jean-Marie Beyssade. In BEYSSADE, JM. Descartes au fil de l'ordre, p. 42.

74 FOUCAULT em carta de 07/11/72, escrita a Jean-Marie Beyssade. In BEYSSADE, JM. Descartes au fil de l'ordre, p. 42.

75 “No caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. Será que essa possibilidade de ser louco não arrisca lhe privar da posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se no erro, ou a consciência adormecer no sonho?”. FOUCAULT, Histoire de la Folie à l’Age Classique, p. 67.

76 BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”, p.277-278.

43

tripartição indevida77: o meu corpo, o mundo exterior e a consciência. Argumenta que a

tripartição subentendida nesta pergunta tem por base uma divisão qualitativa que não

está presente ainda na primeira meditação, mas, antes disso, a primeira meditação coloca

uma divisão quantitativa de graus de intensidade, a saber: a dúvida que se detém sobre o

pouco sensível ou muito distanciado e a dúvida que se volta às evidências cotidianas, as

coisas manifestas ao espírito, sobre as quais, ao contrário do que me é muito distante ou

pouco sensível, não seria sensato duvidar. Neste sentido, não teria sentido chamar

atenção a uma “consciência” que adormece no sonho.

No contexto do debate, analisando a primeira meditação segundo a cronologia da

dúvida inserida na ordem das razões do texto cartesiano, Jean-Marie Beyssade78 critica

tanto a posição de Foucault, que coloca a loucura ao lado do sonho e de todas as formas

de erro, como também a posição de Derrida para o qual Descartes teria preterido o

exemplo da loucura pelo do sonho porque o primeiro “não é revelador da fragilidade da

idéia sensível”79 enquanto no segundo “a totalidade absoluta das idéias de origem

sensível se torna suspeita”80. O erro de Foucault seria o de abolir a cronologia da dúvida

e o de Derrida seria o de sustentar uma suposta preterição de Descartes motivada por

uma hierarquia entre gêneros de conhecimento que ainda não fora anunciada.

Se ao citar Guéroult, Derrida deixa claro que está a analisar a leitura de Foucault

baseado na ordem das razões do texto cartesiano, Jean-Marie Beyssade afirma que,

mesmo assumindo esta perspectiva, a análise de Derrida não estaria correta, pois, neste

caso, o justo seria elucidar a economia da dúvida cartesiana a partir dos elementos que

são apresentados na própria ordem do texto, e assim sendo, não teria sentido justificar ou

recusar o argumento dos sonhos ou o argumento da loucura, baseado, como fez Derrida,

em vocábulos e conceitos que não estão presentes ainda na primeira meditação. Em

outras palavras, ele afirma que esta análise peca por estar “certa demais”. No entender do

historiador da filosofia cartesiana, seria necessário determinar a significação cronológica

da dúvida cartesiana sem aderir a uma hierarquia dos gêneros de conhecimento que

77 Ibidem, p. 278-279.78 Cf BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”, p.280.79 DERRIDA. “Cogito e História da Loucura”, p. 42.80 Ibidem, p. 43.

44

ainda não foi colocada81. Deste modo, Jean-Marie Beyssade julga inadequada a inserção

no texto de Derrida de justificativas baseadas em conceitos como “origem não-sensível e

não-imaginativa” ou “coisas simples e inteligíveis” ou “totalidade absoluta das idéias de

origem sensível”, presentes nas citações anteriores. Estas expressões remetem ao

entendimento da origem do conhecimento e, conforme argumenta Jean-Marie Beyssade,

esta só virá à tona ao final da quinta meditação. Ao final do quarto parágrafo da

meditação primeira, tudo o que se sabe é o que meditador acabara de afirmar no terceiro

parágrafo: que tudo o que ele aprendeu até então como o mais verdadeiro e seguro, lhe

veio através dos sentidos.

JM Beyssade adere à interpretação de Foucault sobre a dupla ordem. Identifica no

discurso da ascese o apoio recíproco que acontece entre o sujeito que se modifica e os

acontecimentos discursivos, apoio este a que o próprio Descartes teria feito alusão em

uma carta a Gassendi através do termo cohaerentiam. Segundo sua leitura desta carta, “a

coerência é mais forte que a ordem das razões, que somente constitui uma fórmula

parcial e a ela subordinada”82. No entanto, discordará de Foucault quanto aos motivos da

exclusão da loucura. Foucault diz que, “eu [moi] que penso, [je] não posso estar louco”,

ou seja, o meditador tem que excluir a possibilidade de estar louco antes de enunciar a

primeira certeza (do cogito), e então, esta impossibilidade seria uma primeira

qualificação do sujeito. JM Beyssade discorda da interpretação de Foucault de que a

loucura foi excluída das Meditações porque o meditador não poderia colocar-se no lugar

do louco. Ele crê que ela foi rejeitada em prol do argumento do sonho pela complacência

de Descartes ao homem honrado que se ofenderia com a comparação. Trata-se, no seu

entender, de uma simples “complacência em benefício do inventário”83. Com efeito, ele

afirma que “O valor do projeto metafísico vem justamente do que ele inclui, ao invés do

que ele exclui, estas experiências marginais”84. Esta complacência de Descartes não

dissimula nenhum requisito e por isto não há nenhuma certeza que pode ser afirmada

antes do cogito. JM Beyssade arremata dizendo que Foucault não admite esta idéia e

81 Cf BEYSSADE, JM. Mais quoi ce sont des fous, p. 278.82 Ibidem, pp. 293-294.83 Ibidem, p. 282.84 Ibidem, p. 289.

45

acaba por rejeitá-la “passionalmente”85.

Contudo, apesar de reconhecer que existam, tal como Foucault apregoa, duas

ordens no texto, que JM Beyssade nomeia “regra da coerência” e “regra da ordem”, ele

não invalida totalmente a hipótese de Derrida sobre a presença de uma segunda voz

presente ao longo das Meditações. Para tanto, utiliza como suporte desta possibilidade

um diálogo de Descartes inacabado e não datado: La Recherche de la Vérité, no qual

Poliandre, um noviço em filosofia de espírito muito curioso, faz a Eudoxe, que

representa o filósofo no diálogo, a objeção de que o erro dos sentidos não é suficiente

para fazer desacreditar do que é manifesto. No diálogo, o filósofo provoca esta objeção

de bom grado, ele consente nesta resistência “em benefício do inventário”86. Com efeito,

Beyssade diz que “o metafísico não é aqui intolerante ao olhar do louco, que ele baniria,

mas tolerante, complacente, ao olhar do honnête homme que já o baniu”87.

Ou seja, o argumento de Beyssade é que Descartes não pode fingir que se re-

posiciona diante da resistência do não-filósofo porque, pelo menos até o final da

primeira meditação, nenhuma verdade foi encontrada. Ao contrário, para além do

fingimento, Descartes pretenderia mesmo incitar esta resistência porque só a passagem

por este desvio solicitado pelo noviço, suposto Poliandre, é que permitirá ao meditador

introduzir motivos mais fortes para se duvidar dos sentidos. Com efeito, JM Beyssade

chega a afirmar que “neste momento do itinerário, a filosofia se reduz a este modo de

implicação no discurso, a este consentimento providencial ao discurso dogmático”88.

JM Beyssade admite que muitas das passagens das Meditações tornam-se

incompreensíveis se não admitirmos a presença desta voz. Neste ponto, quanto à

presença desta “voz” nas Meditações, JM Beyssade posiciona-se com Derrida. Porém,

defende que, de modo algum se possa dizer que a reação de Descartes à resistência do

não-filósofo seja fingida, pois:

85 Cf BEYSSADE, JM. "Mais quoi ce sont des fous", p. 289.86 Ibidem, p. 28287 Ibidem, p. 285.88 Ibidem, p. 282, itálico nosso.

46

No momento do itinerário que nós consideramos, é impossível aprisionar a pluralidade de vozes no assujeitamento de uma hierarquia: nenhuma verdade “definitiva e detida” permite ao filósofo julgar as resistências que ele encontra, para lhe atribuir a um objetor ingênuo e, por exemplo, “fingir” que se re-posiciona diante dele. 89.

O honnête homme, o homem cujo bom senso ainda não foi corrompido pelo

ensino doutrinário e portanto ainda não traz pre-juizos ou preconceitos, este é o leitor

visado pelas Meditações segundo Jean-Marie Beyssade, pois para Descartes a busca da

verdade deveria dar-se de preferência pela intuição natural, a razão proba, ainda íntegra,

não corrompida. Tanto que em La Recherche de la Vérité, não é um caso que os

personagens principais chamem-se pelos nomes de Eudoxo, aquele que representa a

“doxa” verdadeira, verdadeira opinião, Epistemon, aquele que adere à falsa doutrina e, o

principal deles, Poliandre, conforme já dito, aquele que pensa por si. De fato, neste

sentido, podemos lembrar da farta correspondência que Descartes manteve, por exemplo,

com uma mulher sem vínculos acadêmicos, Elizabeth da Boêmia.

Com efeito, esta questão é central em Descartes, no pensamento de Jean-Marie

Beyssade. O verbete “Descartes” da enciclopédia de história da filosofia organizada por

François Châtelet que Beyssade assina inicia-se com as seguintes palavras: “Enfim veio

Descartes. Se não foi o primeiro a filosofar na França, foi um dos primeiros a filosofar

em francês para as pessoas de condição, para as mulheres, assim como em latim para a

internacional dos eruditos”90.

A posição de JM Beyssade é bastante curiosa porque apesar de declarar-se

abertamente ao lado de Foucault, entra em clara rota de colisão com o pilar central da

tese foucaultiana sobre a exclusão da loucura. Um ponto está salvaguardado. Ambos

concordam que é possível fazer uma análise das Meditações que faça emergir a série dos

exercícios meditativos. Esta concordância, dirá Foucault, “c'est pour moi l'essencial”91.

Foucault não compreende como JM Beyssade pode concordar com a ordem da ascese,

89 BEYSSADE, JM. "Mais quoi ce sont des fous", p. 282. 90 BEYSSADE, JM. "Descartes". In: CHATELET, F (org.) História da Filosofia, vol. 3, Rio de

Janeiro: Zahar, 1981, p.81 91 FOUCAULT em carta a JM BEYSSADE de 07/11/72. BEYSSADE, Jean-Marie. “Dossier" In

Descartes au fil de l'ordre, p. 41.

47

denominada por este “regra da coerência”, mas não pode assentir que alguma (des)

qualificação seja adquirida antes do cogito. É uma consequência necessária. Diz ele:

“Parece-me que se pode resumir a situação da seguinte maneira: você estaria de acordo

em dizer que a prova da loucura concerne à qualificação do sujeito meditando; mas você

recusa que a qualificação de não-louco seja adquirida definitivamente neste nível”92.

Foucault convida o amigo a observar que a loucura foi excluída por um “gesto

furtivo”93, abrupto. E o motivo (cérebro perturbado) não se coadunava na ordem do

texto. Apelar a uma voz exterior, alegando a correlação com o diálogo inacabado de

Descartes, não era uma solução, pois na meditação “não existe pluralidade de voz”94.

Qual o estatuto então dar a este “gesto furtivo” se não aquele de um “acontecimento

discursivo”? “O jogo das qualificações e das desqualificações não atrapalham a ordem

das razões”95.

De um modo geral, JM Beyssade posiciona-se ao lado de Foucault, mas com

relação a esta questão, ele encontra-se a meio caminho entre os dois filósofos. Por um

lado, julga correta e oportuna a identificação de dois discursos paralelos, o da ascese e da

demonstração. Por outro lado, admite a possibilidade da presença fragmentada de uma

voz “exterior”. Contudo, discorda de Derrida quanto ao caráter fingido desta voz. Para

ele, o que particulariza o projeto cartesiano é a inclusão do honnête homme e este é o

motivo da exclusão da loucura, ou seja, não se trata de valorizar a loucura nem de

afirmar que o louco não pensa. A possibilidade de ser louco não foi excluida porque o

louco não pensa mas porque sua exclusão era requerida pela adesão que Descartes deseja

obter do homem honrado. É o que permite JM Beyssade afirmar que "Loucos e

sonhadores têm seu lugar na nau cartesiana que vai em direção ao novo mundo da

segunda meditação. Mas o exemplo do louco, diferentemente daquele do sonhador, não

consegue fazer com que o honnête homme suba nesta nau"96.

92 Foucault em carta a JM Beyssade de 07/11/72. In .BEYSSADE, Jean-Marie. “Dossier" In Descartes au fil de l'ordre, p. 43.

93 Ibidem, p. 42.94 Ibidem, p. 43.95 Ibidem, p. 42.96 BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”, p.289.

48

Por outro lado, a conversa de JM Beyssade com Martial Guéroult será animada

por outro tom, mais duro. Em primeiro lugar, Guéroult diz que o método da ordem das

razões é, segundo Descartes, prescrito como o único que permite compreender o que

quer que seja em seus escritos. Por isso mesmo, não teria o menor sentido pensar que

uma crítica ao que costumou-se denominar o "dogmatismo da ordem" constitua algum

ataque frontal a ele, Martial Guéroult, pois, quando muito, isto significaria uma afronta

ao próprio Descartes. Mesmo porque não existiria nenhuma regra da coerência que

subordine a ordem das razões.

Martial Guéroult acusa JM Beyssade de forçar o texto cartesiano no intuito de

produzir uma conclusão incorreta de que Descartes somente seguira a ordem das razões

tanto quanto pode97.

Constitui um "disparate"98 para Guéroult afirmar que a ordem das razões seja uma

"fórmula parcial e subordinada"99 da ordem da coerência, pois isto significaria, no limite,

inverter o cartesianismo. Note-se que ele se refere somente à tese de JM Beyssade sobre

a ordem da coerência, sem entrar no mérito da posição de Foucault. Aliás, convém

ressaltar que Foucault jamais afirmou que uma ordem subordinasse a outra, mas que

existiam elementos que não se encaixavam na ordem das razões, o que o levou a

formular a hipótese do "acontecimento discursivo". A questão de JM Beyssade é um

pouco diferente, ele não entra no mérito dos acontecimentos discursivos, mesmo porque

ele se opõe à tese foucaultiana de que o estatuto de não louco tenha sido adquirido antes

do cogito. Se ele apóia a tese de Foucault, não é porque ele apóie seu argumento central,

mas porque ele vê ali uma forma bem sucedida de se contrapor à sistematicidade da

ordem das razões, "norma rigorosa"100 que teria sido "imposta"101 por M. Guéroult e que,

segundo suas análises, tem funcionado como um tipo de camisa de força dos estudos

cartesianos. O que o levaria a proferir palavras como estas: "Para dar um estatuto

97 M. GUÉROULT em carta de 11/01/74 a JM BEYSSADE. In BEYSSADE, Jean-Marie. “Dossier" In Descartes au fil de l'ordre, p. 44.

98 Idem.99 BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”, p.293.100 BEYSSADE JM em carta de 18/01/74 a M GUÉROULT In BEYSSADE, Jean-Marie. “Dossier" In

Descartes au fil de l'ordre, p. 48. 101 Idem.

49

aceitável à recusa da loucura, é necessário portanto buscar em qual medida o que segue

pode reagir ao que precede, isto é, voltar ao o que Descartes chamou a ordem das razões,

ao dogma que conduziu M. Guéroult às admiráveis análises, mas que também traria

algumas consequências temerárias à maior parte dos comentadores que pagassem o

preço de admitir as conclusões de Foucault"102.

2.2 Loucos de crer, loucos de duvidar

Ferdinand Alquié foi professor de JM Beyssade e o teve como seu assistente por

alguns anos na Sorbonne. Ao escrever suas reflexões, JM Beyssade, conforme dissemos,

as submete ao seu mestre que lhe envia, por sua vez, em 1974, um texto de sua autoria

fornecendo outro enfoque da questão. Na época, Alquié não publica o artigo por não

querer se indispor com Foucault, mas também por não ter gostado do tom que ele

próprio assumira na exposição de suas reflexões, "por demais professoral"103. Uma vez

renunciado a publicar o texto, Alquié decide, no entanto, deixar circular suas notas entre

seus alunos e "amigos cartesianos"104. Com o passar do tempo, o artigo acaba se

perdendo. Somente em 1992 ele é localizado, 18 anos depois de sua escritura e 7 anos

após a morte de seu autor, ocorrida então em 1985. O texto, nomeado pelo autor "O

filósofo e o louco", vem a público pelas mãos do ex-aluno Jean-Marie Beyssade que

acha por bem apresentá-lo no Colloquio Internazionale Descartes Metafisico:

Interpretazioni del Novecento, ocorrido em Roma, em 1993.

A análise de Ferdinand Alquié tem o mérito de tentar reformular a questão. No

seu entender, o verdadeiro divisor de águas não está na discussão sobre a exclusão da

loucura mas na concepção cartesiana de loucura. Focar o problema neste ponto abre

nova perspectiva. Alquié afirma que Foucault e Derrida não discorrem sobre exatamente

a mesma questão. O que está em desacordo entre os autores não seriam as condições de

102 BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”, p.292. 103 ALQUIÉ, Ferdinand apud BEYSSADE, JM."La querelle sur la folie: une suggestion de Ferdinand

Alquié.", p. 101.104 Idem.

50

rejeição da loucura, mas uma divergência no entendimento do que Descartes teria

tomado por loucos, daí suas argumentações seguirem caminhos diversos.

A frase central do problema desloca-se. O que importa não é mais a proposição

que enuncia a exclusão “Mais quoi? ce sont des fous”, mas a anterior “Si ce n'est peut-

être que je me compare à ces insensés, de qui le cerveau est tellement troublé...”. Importa

agora determinar o sentido de “insensés”. Trata-se de uma loucura associada à

alucinação ou ao delírio? Alquié diz que esta bifurcação dá origem a duas leituras,

denominadas por ele, A e B. No debate, Foucault teria optado pela leitura A e Derrida

oscilado entre as duas.

A leitura A toma o louco por um alucinado e Descartes rejeita comparar-se com

ele porque ele não sabe duvidar, ele é muito seguro. Ou seja, neste caso o louco não

pode ser utilizado como modelo porque Descartes não pode comparar-se a quem não

duvida. Entendendo aqui comparar como 'colocar-se no lugar de'. O louco neste caso se

engana porque permanece prisioneiro dos sentidos. O louco é vítima dos sentidos como

o sonhador. É “louco de acreditar”105. A leitura B, por sua vez, toma o louco por um

delirante, aquele que não se fia de suas sensações, ele as recusa pelo delírio imaginativo.

Ele então pode servir de modelo porque coloca a dúvida até a negação dos sentidos, tal

qual o meditador faz. No primeiro caso, sensação e imaginação confundem-se, no

segundo, estão separadas.

Continuemos o texto cartesiano “Si ce n'est peut-être que je me compare à ces

insensés, de qui le cerveau est tellement troublé (…) ils assurent constamment qu'ils sont

des rois (...) s'imaginent être des cruches...”. O argumento de Alquié é de que, se se

tratasse de um problema de alucinação, Descartes não usaria estes verbos, mas verbos

que expressassem ilusões dos sentidos como “eles se vêem como reis...”. Então, se

Descartes utiliza os verbos imaginar, assegurar, julgar, estes denotam que sentido e

imaginação não se confundem, daí sua aderência pela leitura B, embora Alquié diga que

não é possível discernir com certeza qual o sentido de loucura pensado por Descartes.

105 BEYSSADE, JM."La querelle sur la folie: une suggestion de Ferdinand Alquié.", p. 104.

51

De qualquer modo, seja pela leitura A ou pela B, Alquié admite que a frase “Eu

não seria menos extravagante se buscasse neles um exemplo para mim” significa bem

uma exclusão, e neste caso, no seu entender, temos que arcar com a incômoda

consequência de que Descartes estabelece que ele não é louco antes do cogito. Alquié

prefere pensar a exclusão de outra forma, crendo que Descartes fez um raciocínio

elíptico neste trecho, excluindo e não excluindo o louco ao mesmo tempo, no sentido de

dar assentimento a uma atitude do louco e não à outra. Expliquemos. Tal raciocínio só

pode aplicar-se à leitura B, posto que, nesta, sentido e imaginação não se confundem,

estão separadas. Assim, na leitura de Alquié, os loucos têm as impressões dos sentidos

corretas mas negam-na por um recurso imaginativo. Então, à incerteza do louco de não

ser tal como ele se vê, a esta incerteza, a esta dúvida, Descartes daria assentimento. Por

outro lado, à afirmação do louco de que ele tem um corpo de vidro, esta afirmação,

Descartes rejeita. É por isso que, segundo Alquié, Descartes faz uma exclusão elíptica,

parcial, ele exclui a afirmação do imaginário corpo de vidro, mas aceita a primeira

atitude, que seria a de colocar em questão o sensível, duvidar da existência do corpo,

com este comportamento eu posso me comparar. O que permite a Alquié concluir que “É

afirmando-se como uma cabaça (cântaro) que o louco se engana, não duvidando que seu

corpo pertence a ele. Mas ele tem somente consciência de sua afirmação errônea, não da

dúvida que a funda. Pode-se, portanto, convidá-lo a sair depois de termos retido a lição

que ele nos deu malgré lui”106. De quebra, esta análise implícita de que supostamente

Descartes teria lançado mão traria o benefício de ter mostrado uma distinção que

somente pode ser feita pelo filósofo, acrescenta Alquié. No sentido de que o louco não

tem consciência desta separação, entre sensação e imaginação, mas só o filósofo pode

operá-la, isolando as partes psicologicamente indiscerníveis ao louco mas logicamente

discerníveis por abstração.

Temos que reconhecer que a solução da exclusão elíptica apontada por Alquié é

bastante engenhosa, embora como ele mesmo admita, não seja probante, visto que não é

possível saber ao certo qual o sentido exato que Descartes quis dar neste contexto à

loucura. Alquié mesmo cita vários exemplos em que este sentido assume diferenças. No

106 ALQUIÉ, F. "Le philosophe et le fou",p.113.

52

Discurso do Método e em “Resposta a Arnaud” deduz-se tratar de loucura como delírio,

enquanto que no diálogo La recherche de la verité o sentido de alucinação é claro107.

Alquié admite preferir a leitura B porque ela condiz mais explicitamente com sua noção

de dúvida cartesiana como um extra-vagar. Ademais, mediante o exame das cartas

trocadas entre Descartes e seus interlocutores, Alquié retira a crença de que Descartes

tenha sido acometido por espécies de delírios durante sua vida. Não só Descartes, mas

também outros filósofos, incluindo ele próprio. São suas as palavras: “Eu não penso

seguramente que a filosofia seja louca. Mas eu creio que ninguém se tornaria filósofo se

não fosse em primeiro lugar um pouco louco, eu penso se ele [Descartes] não foi

conduzido por algum sentimento de irrealidade experimentado diante das coisas, a se

colocar questões que as pessoas razoáveis não se colocam. Pois as pessoas razoáveis não

são racionalistas, mas sim aquelas que, para conseguir viver, e para reencontrar as

certezas cotidianas, não têm necessidade, como Descartes, de fazer apelo à razão”108.

Parece-nos que a pedra de toque do raciocínio é esta: “...as pessoas razoáveis não

são racionalistas...”. Neste sentido, é bem possível que Descartes tenha mesmo

experimentado algum desequilíbrio depois de ter experimentado por um tempo

demorado o exercício voluntário de desprender-se dos sentidos, das opiniões, das

paixões. Como lembrou Alquié, tal exercício pode assumir consequências um tanto

desequilibrantes quando praticado na crença absoluta de que a razão pode alcançar a

verdade mediante a prática do método certo. O movimento de subida da crença na

verdade, na razão, alternando-se ao da descida constante da desilusão do erro e do limite

da razão, pode ser desanimador para os razoáveis mas para os racionalistas pode ser mais

que isso. Como se o jogo da loucura de crer e de duvidar se revezasse em Descartes.

Neste sentido, ainda que este quadro psicológico não prove nada no que se refere ao

sentido do texto meditativo, talvez possa explicar que Descartes tivesse propositalmente

assumido significados diferentes para o termo loucura conforme o contexto em que se

insere a menção: numa obra de divulgação, um sentido mais corrente, ou em cartas para

os amigos, um sentido mais real do que ele pensava experimentar. Por exemplo, Alquié

nos lembra que Descartes confessa à Balzac colocar a si próprio todos os dias

107 ALQUIÉ, F. "Le philosophe et le fou", pp.109-110. 108 ALQUIÉ, F. "Le philosophe et le fou", p.115.

53

metodicamente a mesma questão de estar acordado ou dormindo109.

Para Alquié, apontar que a loucura se localiza no corpo diz pouco, pois a

concepção cartesiana de loucura advém sempre de um problema físico, seja dos sentidos

ou da imaginação, ambos associados ao corpo. O problema da loucura nunca é da ordem

do entendimento.

Por outro lado, esta leitura de Alquié pode bem ser tomada como indício a partir

do qual se pode inferir o arcabouço conceitual formativo de uma geração. Os artistas e o

meio literário intelectual francês, notadamente a corrente surrealista, teria sofrido forte

influência da penetração das ideias de Freud por volta dos anos 20 do século passado. A

incorporação da ideia de inconsciente desenhava uma reformulação da ideia de razão, e

em contraponto, de loucura. O caso de Salvador Dali é emblemático desta reviravolta.

Representante maior do surrealismo nas artes, Dali escreve, em 1930, algumas linhas

sobre a ideia de desenvolver o método "paranóia-crítica". Tal método visava dar suporte

teórico para explicar suas produções artísticas. Mas o mais interessante é que para Dali a

paranoia era tida como uma forma criativa de interpretação da realidade 110. JM Beyssade

dirá que a interpretação da dúvida cartesiana por parte de Alquié, o que motiva sua

parcial adesão à Derrida, tem como base a sua concepção de razão, que, à moda dos

surrealistas franceses da década de 50, a aproxima aos delírios da imaginação, o que

explicaria inclusive o título do artigo “O filósofo e o louco”. Beyssade identifica nesse

artigo o esforço de Alquié de tentar "enraizar numa mesma liberdade de existência o

delírio imaginativo e a extravagância meditativa"111. A frase de Alquié entrega o jogo:

"Loucura e pensamento racional se enraízam assim nessa cogitatio que, segundo

Descartes, é a essência da alma humana que se funda na liberdade"112.

Não se pode esquecer que em 1955 Alquié escrevera um clássico que influenciou

toda uma geração de autores, “A filosofia do surrealismo”. Mantinha amizade forte com

109 Conforme carta a BALZAC de 15 de abril de 1631 apud ALQUIÉ, F. "Le philosophe et le fou", p.114.

110 Conforme DALI, Salvador; La conquete de l'irrationnel in Oui: pour une révolution paranoiaque critique, Denöel: Paris, p. 19.

111 BEYSSADE, JM."La querelle sur la folie: une suggestion de Ferdinand Alquié.", p. 105. 112 ALQUIÉ, F. "Le philosophe et le fou", p.116.

54

André Breton, com o qual diz ter aprendido o sentido da palavra liberdade113. Talvez seja

isto que tenha levado Pierre Macherey a afirmar espirituosamente que Ferdinand Alquié

foi alguém que fez encontrar na sua pessoa Breton e Descartes114.

2.3 Há um argumento da loucura? A análise do texto latino

Por fim, destacamos a contribuição de Michelle Beyssade ao debate , que se dá

em 1994, no mesmo colóquio de Roma onde vem a público o artigo perdido de Alquié.

Em estilo conciso e nada retórico, o texto “Michel Foucault et Jacques Derrida: y a-t-il

un argument de la folie?” estende-se por exímias quatro páginas. M Beyssade não

abordará a questão da dupla ordem nem a da exclusão da loucura. Intenciona, a partir do

texto latino de Descartes, saber se é possível defender a tese da existência de um

argumento da loucura.

Retomemos sinteticamente as posições dos protagonistas. Um dos traços originais

da leitura de Foucault foi ter apontado a existência do argumento da loucura. A exclusão

da loucura visava qualificar o sujeito da meditação e estaria inserida na ordem da ascese,

ordem que se somaria à ordem das razões, o jogo da linguagem demonstrativa. Derrida

defende que a menção à loucura era retórica, e sua exclusão, provisória, posto que a

entrada do gênio maligno representaria na sequência uma loucura ainda maior, mais

radical. Dentre os argumentos levantados por Foucault para justificar a dupla ordem,

destacamos o apontamento do jogo de imagens dos loucos em contraposição às imagens

do sujeito meditando, os significados distintos de “fous” apontados na versão latina do

texto, e a simetria constante da versão latina, denunciando uma sequência argumentativa

que a língua francesa não mostrava. É sobre este último ponto que M Beyssade vai se

debruçar.

Não é por acaso que Michelle Beyssade se incumbe da tarefa. Cerca de quatro

113 “Entretiens sur le Surrealisme”, Paris, 1968, p. 11.114 MACHEREY, Pierre, "Querelles cartésiennes II" In: stl.recherche.univ-lille3.fr/seminaires/

philosophie/macherey/Macherey20022003/Macherey13112002.html, texto de 13/11/2002.

55

anos antes, em 1990, ela lançara uma (nova) tradução francesa do texto latino de

Descartes orientada pela convicção de que a tradução do Duc de Luynes comportava

diferenças significativas com o original latino. É bom lembrar que às margens do século

XXI, lançar uma nova tradução francesa das Méditations de Prima Philosophia não é

tarefa das mais corriqueiras. A filosofia cartesiana é um ícone da cultura francesa e a

tradução do Duc de Luynes, justamente por ter sido revista por Descartes, é considerada

um texto tão cartesiano quanto o latino. Como justificar uma nova tradução de

Descartes, quase 350 anos depois? M Beyssade aponta algumas razões para se duvidar

da tradução do Duc de Luynes.

Dados biográficos informam que Descartes quis limitar seu texto somente à

versão latina. Ao público mais amplo ele teria designado o Discurso do Método. O texto

latino de 1641-1642 foi fruto de uma lenta maturação e sua origem remonta a 1629,

como está confirmado pelas correspondências com Mersenne115. Foram muitas as

objeções e testes realizados entre os doutos - filósofos, sábios e teólogos, mas, depois

disso, Descartes não muda em quase nada seu texto, sobretudo porque não queria mudar

nada na sua ordenação. Diz Michelle Beyssade que a tradução de 1647 do Duc de

Luynes é considerada intangível porque revista por Descartes, mas ela comporta uma

ambiguidade fundamental: a de que a revisão e os acréscimos de Descartes não tornaram

o texto mais fiel, pois suas colocações não se dirigiram à tradução de Luynes, mas ao seu

próprio pensamento116.

É oportuno que se diga que não foi outra a impressão que tivemos quando

realizamos um breve cotejo das versões considerando as modificações sugeridas por

Descartes. Michelle Beyssade tem razão. Ao que parece, tudo se passa como se

115 Cf BEYSSADE, M. "Présentation". In DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, Paris: Le livre de Poche, 2009, p. 1990, p. 7-8.

116 Nas suas palavras: “C'est ici qu'apparaît l’ambiguïté de ce texte français. Les Méditations métaphysiques sont d'abord une traduction par le Duc de Luynes du texte latin de 1641; elles sont aussi, par l'intervention de l'auteur, un autre texte de Descartes, de quelques années postérieur, un nouveau texte original, un original français qui n'est pas la traduction de l'original latin. Le texte français remplit ainsi deux fonctions, qui se mêlent, et dont la seconde en tout cas peut nuire à la première; car s'il prend avec la révision la valeur d'un ouvrage authentiquement cartésien, il risque de perdre, comme traduction, en exactitude ”. Ibidem, p. 13.

56

Descartes tivesse optado em não intervir no estilo pessoal, mais polido117, que Duc de

Luynes imprimira ao seu texto, limitando-se apenas a fazer alguns acréscimos de

natureza bem clara, ora para precisar os termos, ora para explicitar algum sentido etc118.

Fato é que o texto latino sempre é mais considerado nos estudos cartesianos.

Michelle Beyssade não crê que isto ocorra somente por ele ser escrito por Descartes mas

também porque só ele permite certas leituras. As diferenças entre os dois textos são

frequentemente sublinhadas e retraduzidas. Os inúmeros estudos cartesianos seguem

sempre baseando-se no texto latino “mas tudo se passa como se ninguém ousasse

escrever uma nova tradução por respeito a um texto revisto por Descartes”119. Diante

destes argumentos, a tradutora permite-se ousar e conclui que é possível assumir a

contradição de que o texto francês das Méditations Métaphysiques publicadas em 1647

sob o nome de Descartes é certamente intangível mas que a tradução de Luynes não é.

117 Poderíamos citar vários exemplos para demonstrá-lo, mesmo se no decorrer do trabalho a diferença entre os textos tornar-se-á cada vez mais transparente dispensando maiores explicações. Porém, só para ilustrar, neste momento, podemos citar a diferença de estilo da primera frase do parágrafo quinto: “Praeclare sane, tanquam non sim homo qui soleam noctu dormire, et eadem omnia in somnis pati, vel etiam interdum minus verisimilia, quam quae isti vigilantes”, traduzido pelo Duc de Luynes “Toutefois j'ai ici à considérer que je suis homme, et par conséquent que j'ai coutume de dormir et de me représenter en mes songes les mêmes choses, ou quelquefois de moins vraisemblables, que ces insensés, lorsqu'ils veillent”, e por M Beyssade por “A la bonne heure! Comme si je n'étais pas un homme qui a coutume de dormir la nuit et d'éprouver dans le sommeil toutes ces mêmes choses, ou même quelquefois de moins vraisemblables, que ces insensés quand ils sont éveillés!”. Cf DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, edição bilingue, trad. Michelle Beyssade, Paris: Le Livre de Poche, p. 32-33.

118 Um breve cotejo entre as duas versões das Meditações revelou que a língua latina traz estas expressões de forma mais nítida, ao passo que a versão francesa é mais contida. Descartes não escreveu dois textos diferentes, ele reviu as traduções feitas por Luynes e depois, por Cherselier (cf Fausto Castilho, p. 9). Descartes acrescentou algumas frases a quase todos os parágrafos da edição francesa, as quais Fausto Castilho teve o cuidado de também colocar na tradução da versão latina, destacando-as em negrito. Cotejando as duas versões das Meditações frente ao nosso problema, percebemos que não há dúvida que as frases acrescentadas não se destinam a alterar o estilo impresso pelo tradutor Duc de Luynes mas acrescentam comentários que complementam seu próprio raciocínio, como por exemplo: ‘e pensando nisso cuidadosamente’, ‘de um exato conhecimento das coisas’, ‘negar meu assentimento aos erros’, ‘tomarei cuidado para não receber em minha crença nenhuma falsidade’, ‘no conhecimento da verdade’, ‘essas aparências são falsas’. Muitas vezes as frases assumem um caráter explicativo dos passos lógicos e são iniciadas por ‘isto é’; noutras vezes elas conferem mais precisão ao texto ‘porque pode ser...’, ‘porque não se deve fazer...’ e ‘não pode afirmar nem negar...’. Em certo momento Descartes torna preciso o que ele quer dizer com a palavra ordem: ‘passar das noções que encontrar primeiro em minha mente às que possa encontrar depois’. Na parte que se refere a Deus, acrescenta vários adjetivos: ‘perfeitíssimo’, ‘maravilhoso’, ‘incomparável’, ‘impenetrável’. Conclui-se que o argumento de Michelle Beyssade é bastante razoável.

119 BEYSSADE, M. "Présentation". In DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, Paris: Le livre de Poche, 2009, p. 1990, p. 13.

57

Por isto, não teria cabimento deixar de oferecer aos leitores franceses um texto mais

acessível, enquanto as traduções estrangeiras das Meditações partem mais

frequentemente do latim, o que lhe permite afirmar que é “paradoxal que sejam os

franceses a permanecerem mais afastados do texto escrito por Descartes”120.

Para saber se existe um argumento da loucura, Michelle Beyssade tomará como

base de análise o trecho que contém os parágrafos quarto e quinto. A divisão em

parágrafos consta da edição francesa, mas a versão latina, pelo menos na primeira

meditação, corria em continuidade num único parágrafo. A continuidade do texto está

para a continuidade do pensamento, não se trata de uma simples questão de forma. Sem

interferir na articulação lógica do texto, delimita-se assim uma atenção, ou até pode-se

dizer, uma tensão que permanece. Raciocínio análogo pode ser feito para explicar a

presença das frases longas que visam unificar vários pensamentos num só olhar sobre a

mesma questão.

Eis o trecho que é necessário considerar no problema da loucura. M Beyssade

quer evidenciar a analogia de estrutura somente perceptível no texto latino. Ela chama

atenção a três proposições condicionais121 (em negrito a seguir) que introduzem os

potenciais “comparem”, “sim” e “recorder”122:

Sed forte, quamvis interdum sensus circa minuta quaedam & remotiora nos fallant, pleraque tamen alia sunt de quibus dubitari plane non potest, quamvis ab iisdem hauriantur: ut jam me hîc esse, fovo assidere, hyemali togâ esse indutum, chartam istam manibus contrectare, & similia. Manus verò has ipsas, totumque hoc corpus meum esse, quâ ratione posset negari? nisi me forte comparem nescio quibus insanis, quorum cerebella tam contumax vapor ex atrâ bile labefactat, ut constanter asseverent vel se esse reges, cùm sunt

120 BEYSSADE, M. "Présentation". In DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, Paris: Le livre de Poche, 2009, p. 1990, p. 17.

121 Na língua latina as orações condicionais são classificadas de acordo com o tipo de condição que expressam. A explicação é supérflua. A condicional real emprega-se a condição uma coisa certa, no presente, passado ou futuro, derivando necessariamente a consequência. A condicional potencial é enunciada como uma pura hipótese. A condicional irreal enuncia uma condição impossível, no presente e no passado.

122 Cf BEYSSADE, M. “Michel Foucault et Jacques Derrida: y a-t-il un argument de la folie?”, p. 119-120.

58

pauperrimi, vel purpurâ indutos, cùm sunt nudi, vel caput habere fictile, vel se totos esse cucurbitas, vel ex vitro conflatos; sed amentes sunt isti, nec minùs ipse demens viderer, si quod ab iis exemplum ad me transferrem. Praeclare sane, tanquam non sim homo qui soleam noctu dormire, & eadem omnia in somnis pati, vel etiam interdum minùs verisimilia, quàm quae isti vigilantes. Quàm frequenter verò usitata ista, me hîc esse, togâ vestiri, foco assidere, quies nocturna persuadet, cùm tamen positis vestibus jaceo inter strata! Atqui nunc certe vigilantibus oculis intueor hanc chartam, non sopitum est hoc caput quod commoveo, manum istam prudens & sciens extendo & sentio; non tam distincta contingerent dormienti. Quasi scilicet non recorder a similibus etiam cogitationibus me aliàs in somnis fuisse delusum; quae dum cogito attentius, tam plane video nunquam certis indiciis vigiliam a somno posse distingui, ut obstupescam, & fere hic ipse stupor mihi opinionem somni confirmet123.

Vejamos a tradução do Duc de Luynes com as condicionais em negrito:

Mais, encore que les sens nous trompent quelquefois, touchant les choses peu sensibles et fort éloignées, il s'en rencontre peut-être beaucoup d'autres, desquelles on ne peut pas raisonnablement douter, quoique nous les connaissions par leur moyen: par exemple, que je sois ici, assis auprès du feu, vêtu d'une robe de chambre, ayant ce papier entre les mains, et autres choses de cette nature. Et comment est-ce que je pourrais nier que ces mains et ce corps-ci soient à moi? si ce n'est peut-être que je me compare à ces insensés, de qui le cerveau est tellement troublé et offusqué par les noires vapeurs de la bile, qu'ils assurent constamment qu'ils sont des rois, lorsqu'ils sont très pauvres; qu'ils sont vêtus d'or et de pourpre, lorsqu'ils sont tout nus; ou s'imaginent être des cruches, ou avoir un corps de verre. Mais quoi? ce sont des fous, et je ne serais pas moins extravagant, si je me réglais sur leurs exemples. Toutefois j'ai ici à considérer que je suis homme, et par conséquent que j'ai coutume de dormir et de me représenter en mes songes les mêmes choses, ou quelquefois de moins vraisemblables, que ces insensés, lorsqu'ils veillent. Combien de fois m'est-il arrivé de songer, la nuit, que j'étais en ce lieu, que j'étais habillé, que j'étais auprès du feu, quoique je fusse tout nu dedans mon lit? Il me semble bien à présent que ce n'est point avec des yeux endormis que je regarde ce papier; que cette tête que le remue n'est point assoupie; que c'est avec dessein et de propos délibéré que

123 DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, Paris: Le livre de Poche, 2009, p. 1990, p. 32 e 34.

59

j'étends cette main, et que je la sens: ce qui arrive dans le sommeil ne semble point si clair ni si distinct que tout ceci. Mais, en y pensant soigneusement, je me ressouviens d'avoir été souvent trompé, lorsque je dormais, par de semblables illusions. Et m'arrêtant sur cette pensée, je vois si manifestement qu'il n'y a point d'indices concluants, ni de marques assez certaines par où l'on puisse distinguer nettement la veille d'avec le sommeil, que j'en suis tout étonné; et mon étonnement est tel, qu'il est presque capable de me persuader que je dors124.

Observamos que com exceção da primeira condicional “nisi me forte comparem”,

traduzida por “si ce n'est peut-être que je me compare”, as outras duas, “tanquam non

sim homo” e “Quasi scilicet non recorder”, quando traduzidas, perdem seu sentido

condicional, “j'ai ici à considérer que je suis homme” e “je me ressouviens d'avoir été

souvent trompé”. Este sentido é recuperado na tradução proposta por Michelle (“Comme

si je n'étais pas un homme” e “Comme si je ne me souvenais pas avoir”), como se segue:

Mais peut-être, bien que les sens nous trompent quelquefois sur certaines choses ténues et trop éloignées, y en a-t-il pourtant beaucoup d'autres dont il tout à fait impossible de douter, bien qu'elles soient tirées des sens: par exemple que maintenant je suis ici, assis près du feu, vêtu d'une robe de chambre, tenant dans les mains cette feuille, et choses semblables. Et ces mains elles-mêmes, et tout ce corps, mon corps, quelle raison pourrait-il y avoir de les nier? Sauf si peut-être je me comparais à je ne sais quels fous dont le cerveau est atteint par des vapeurs atrabilaires si tenaces qu'ils soutiennent fermement qu'ils sont des rois alors qu'ils sont très pauvres; ou qu'ils sont vêtus de pourpre alors qu'ils sont tout nus; ou qu'ils ont une tête en argile, ou que tout entiers ils sont des cruches, ou faits de verre. Mais ce sont là des insensés, et moi-même je ne paraîtrais pas moins privé de sens, si je retenais d'eux quelque exemple pour me l'appliquer. A la bonne heure! Comme si je n'étais pas un homme qui a coutume de dormir la nuit et d'éprouver dans le sommeil toutes ces mêmes choses, ou même quelquefois de moins vraisemblables, que ces insensés quand ils sont éveillés! Et que de fois l'assoupissement de la nuit me persuade que je suis ici, habillé, assis près du feu, toutes choses habituelles, alors que pourtant je suis couché, déshabillé, entre mes draps! Mais à présent en tout cas c'est avec des yeux éveillés que je

124 DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, Paris: Le livre de Poche, 2009, p. 1990, 34, grifo nosso.

60

regarde cette feuille, elle ne pas endormie, cette tête que le remue, et cette main là, c'est en pleine connaissance de cause que je la tends et que je la sens; il ne saurait arriver quand on dort des choses si distinctes. Vraiment? Comme si je ne me souvenais pas avoir été leurré d'autres fois, dans le sommeil, par ce genre de pensées aussi! Et quand j'y pense avec plus d'attention, je vois si manifestement qu'on ne peut jamais distinguer par des marques certaines la veille d'avec le sommeil que j'en suis stupéfait, et que cette stupeur même me confirme presque dans l'opinion que je dors125.

Naturalmente, podemos notar o mesmo ocultamento da simetria das condicionais

na tradução de Bento Prado Júnior da versão francesa:

Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos. Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre no sono não parece ser nem tão claro nem tão distinto quanto tudo isso. Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há

125 DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, Paris: Le livre de Poche, 2009, p. 1990, 35, grifo nosso.

61

quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo126.

E a visibilidade da simetria trazida à tona na tradução de Fausto Castilho da

versão latina:

Mas, talvez, apesar de os sentidos nos enganarem às vezes acerca de certas coisas miúdas e muito afastadas, muitas outras coisas haja, contudo, sobre as quais não se pode de modo algum duvidar, não obstante hauridas dos sentidos. Por exemplo, que agora estou aqui, sentado junto ao fogo, vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas semelhantes. Em verdade, qual a razão para que possa negar essas próprias mãos e todo esse meu corpo? A não ser talvez que me compare a não sei quais insanos, cujo cérebro foi a tal ponto afetado pelo negro vapor da bílis que constantemente asseveram ou que são reis, sendo paupérrimos, ou que se vestem de púrpura, estando nus, ou que têm a cabeça feita de barro ou que são inteiramente cabaças ou confeccionados em vidro. Mas, eles são dementes e não pareceria menos demente do que eles, se buscasse neles algo como exemplo para mim. Ainda bem! Como se eu não fosse um homem, acostumado a dormir à noite e sentir nos sonos todas essas mesmas coisas e, até menos verossímeis, que eles em sua vigília! Em verdade, com que frequência o sono noturno não me persuadiu dessas coisas usuais, isto é, que estava aqui, vestindo esta roupa, sentado junto ao fogo, quando estava, porém, nu, deitado entre as cobertas! Agora, no entanto, estou certamente de olhos despertos e vejo este papel e, esta cabeça que movimento não está dormindo e é, de propósito, ciente disso, que estendo e sinto esta mão, coisas que não ocorreriam de modo tão distinto a quem dormisse. Mas, pensando nisso cuidadosamente, como não recordar que fui iludido nos sonos por pensamentos semelhantes, em outras ocasiões! E, quando penso mais atentamente, vejo do modo mais manifesto que a vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quase me confirma na opinião de que estou dormindo127.

126 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 94; Méditations Métaphysiques, I, p. 19-20, grifo nosso.

127 DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira, tradução de Fausto Castilho, Campinas: Ed. Unicamp, 2004, p.23 e 25, grifo nosso.

62

A tradutora propõe que observemos que as três condicionais estão a responder à

questão formulada logo acima da primeira delas, a saber, “Et ces mains elles-mêmes, et

tout ce corps, mon corps, quelle raison pourrait-il y avoir de les nier?” Cada qual

apresentaria uma razão para duvidar. No primeiro caso, a razão para duvidar das minhas

impressões imediatas vem em contraposição ao exemplos dos loucos, desenhados como

aqueles que não duvidam. No segundo e terceiro caso trata-se do argumento do sonho

desdobrado em dois momentos, o primeiro momento leva em conta as ilusões

experimentadas nos sonhos e no segundo Descartes chama atenção ao caráter ilusório do

sentimento de realidade de que somos acometidos sonhando.

O segundo argumento de Michelle Beyssade é mais decisivo. Desta vez ela nos

convida a observar a estrutura tendo em vista o desfecho de que o argumento dos loucos

será rejeitado em prol do argumento dos sonhadores. Tomemos então a condicional que

introduz o argumento da loucura [1] e aquela que confirma o argumento do sonho [2].

Verifiquemos:

Sed forte, quamvis interdum sensus circa minuta quaedam & remotiora nos fallant, pleraque tamen alia sunt de quibus dubitari plane non potest, quamvis ab iisdem hauriantur: ut jam me hîc esse, fovo assidere, hyemali togâ esse indutum, chartam istam manibus contrectare, & similia. Manus verò has ipsas, totumque hoc corpus meum esse, quâ ratione posset negari? nisi me forte comparem nescio quibus insanis [1], quorum cerebella tam contumax vapor ex atrâ bile labefactat, ut constanter asseverent vel se esse reges, cùm sunt pauperrimi, vel purpurâ indutos, cùm sunt nudi, vel caput habere fictile, vel se totos esse cucurbitas, vel ex vitro conflatos; sed amentes sunt isti, nec minùs ipse demens viderer, si quod ab iis exemplum ad me transferrem [D1]. Praeclare sane, tanquam non sim homo qui soleam noctu dormire, & eadem omnia in somnis pati, vel etiam interdum minùs verisimilia, quàm quae isti vigilantes. Quàm frequenter verò usitata ista, me hîc esse, togâ vestiri, foco assidere, quies nocturna persuadet, cùm tamen positis vestibus jaceo inter

63

strata! Atqui nunc certe vigilantibus oculis intueor hanc chartam, non sopitum est hoc caput quod commoveo, manum istam prudens & sciens extendo & sentio; non tam distincta contingerent dormienti. Quasi scilicet non recorder a similibus etiam cogitationibus me aliàs in somnis [2] fuisse delusum; quae dum cogito attentius, tam plane video nunquam certis indiciis vigiliam a somno posse distingui, ut obstupescam, & fere hic ipse stupor mihi opinionem somni confirmet. Age ergo somniemus..[D2].128.

De acordo com o acolhimento do argumento, cada condicional potencial ganhará

uma resposta [D1] e [D2]. Como no primeiro caso, a comparação com o louco não foi

feita, o argumento finaliza na forma do condicional irreal “transferrem” [D1], e de

quebra, acrescenta M Beyssade, confirma a incerteza de “forte”, excluindo totalmente a

possibilidade de comparação com os loucos. Em contraposição, quando Descartes cogita

a hipótese do sonho, a forma “recorder” é possível e real, e a suposição é assumida

vividamente pelo imperativo “somniemus”129[D2].

128 DESCARTES, R. Méditations Métaphysiques, Paris: Le livre de Poche, 2009, p. 1990, p. 32 e 34, grifos nossos.

129 BEYSSADE, M. “Michel Foucault et Jacques Derrida: y a-t-il un argument de la folie?”, p. 119-120.

64

CAPÍTULO 3

O LUGAR DA IMAGEM:

“MEU CORPO, ESTE PAPEL, ESTE FOGO”.

“O louco está alhures, em outro momento, com um outro corpo e em outras roupas. Ele está em uma outra cena”130

Michel Foucault

O objetivo principal deste capítulo é o de nos aproximarmos de um dos principais

momentos da leitura foucaultiana, a saber, quando Foucault interpreta o jogo de imagens

apresentado por Descartes ao longo da primeira meditação metafísica. Trata-se de refletir

sobre como, em coerência com o ordenamento da dúvida metódica, a sequência

imagética pode vir a ter um lugar na trama argumentativa do texto.

3.1 Um espírito “nutrido nas letras” e nas artes cênicas.

Como se sabe, Descartes serviu-se de vários estilos discursivos para expor seu

pensamento; meditação (Méditations métaphysiques), discurso (Le Discours de la

méthode pour bien conduire sa raison et chercher la venté dans les sciences) , tratados

(Traité de la divinité, Traité d'escrime, Règles pour la direction de l'esprit, Traité du

130 FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 83.

65

monde et de la lumière, Les Principes de la philosophie, Les Passions de l'âme etc),

ensaios (La Dioptrique, Les Météores, La Géométrie etc) e diálogo (La Recherche de la

vérité par les lumières naturelles). E ainda podemos encontrar muito de sua filosofia nas

dezenas, senão centenas, de cartas que trocou com inúmeros interlocutores ao longo de

sua vida, interlocutores estes, também de vários "estilos", amigos leigos, cientistas,

filósofos dogmáticos, céticos, teólogos, e até mulheres. Tal flexibilidade é, sem dúvida,

sintoma de um espírito inquieto, mas não só. Há ainda dois fatores que se

complementam, a saber, uma profunda confiança na lumière naturelle e uma formação

clássica e ampla no Collège La Flèche, mesmo que desde cedo, ainda em sua casa,

tivesse sido, segundo declara no Discurso do Método, "nutrido nas letras"131.

A educação no La Flèche incluía não somente a leitura e comentário dos

conteúdos dos textos mas a apreciação do estilo. Os estudos de retórica e literatura

faziam parte da formação clássica, mas Descartes valorizava em primeiro lugar o

raciocínio, ainda que não deixasse de considerar que “a poesia tem delicadezas e doçuras

muito encantadoras”132 e que “a eloquência tem forças e belezas incomparáveis”133.

Mesmo considerando o grande poder da eloquência que a arte da palavra poderia

fornecer, nada era mais sedutor a Descartes que o raciocínio rigoroso. Esta vantagem

somava-se ao fato de que o conhecimento matemático e lógico tinha um caráter menos

elitizante, posto que poderia ser ensinado através do método, ao contrário da nutrição no

espírito das letras que requereria condição social privilegiada ou talento inato. Ele afirma

no Discurso do Método:

Eu apreciava muito a eloquência e estava enamorado da poesia; mas pensava que uma e outra eram dons do espírito, mais do que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais rigoroso e que melhor digerem seus pensamentos, a fim de torná-los claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor os outros daquilo que propõem, ainda que falem apenas baixo bretão e jamais tenham aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem exprimir

131 DESCARTES, R. Discurso do Método, I, p. 38.132 DESCARTES, R. Discurso do Método, I, p. 39.133 DESCARTES, R. Discurso do Método, I, p. 39.

66

com o máximo de ornamento e doçura, não deixariam de ser os melhores poetas, ainda que a arte lhes fosse desconhecida134.

As Meditações, por exemplo, mobilizam muitos recursos de estilo para seduzir a

razão do leitor. Podemos citar a simetria de sintaxe e gramatical observada anteriormente

por Michelle Beyssade, a simetria das frases que expressam as descobertas, o espanto e

as “peripécias” do exercício de ascese como acentuou Foucault, as constantes retomadas

do objetivo inicial, as recapitulações finais para reafirmar o objetivo parcial que acabou

se ser percorrido, além do belo estilo quase literário. O uso de imagens também é um

recurso. A repetição da imagem faz apelo retórico e cumpre uma finalidade. Descartes

não foi somente um espírito nutrido nas letras mas também nas imagens.

No La Flèche, a educação jesuítica faz amplo uso de recursos cênicos. Ali, o

cenário recria o momento, o acontecimento. Vejamos a curiosa informação que nos traz

Gaukroger:

Havia um componente curiosamente teatral na educação jesuítica, o qual em momento algum foi mais evidente do que no funeral e nas subsequentes comemorações anuais de morte do benfeitor do La Flèche, Henrique IV, assassinado em 14 de maio de 1610. Seu coração ficou em exposição em Paris até primeiro de junho, data em que foi conduzido ao La Flèche numa viagem de três dias, acompanhado pela família real, membros da corte, dignatários do clero e outras figuras notáveis, todos paramentados em seus trajes formais de luto. O La Flèche, é claro, foi inteiramente revestido de negro para a ocasião, chegando-se a seu interior através de um arco do triunfo com oito metros de altura, coberto por uma mortalha e iluminado por velas. O pátio central foi decorado com brasões, máscaras mortuárias do rei e diversos quadros que exibiam o monarca sendo conduzido aos céus pelos anjos. Um arauto recebeu o coração de um dos membros da comitiva real, situado em frente ao altar, depositando-o numa urna de ouro. Depois o coração foi sepultado em meio a outra cerimônia rebuscada, da qual o próprio Descartes participou, tendo sido um dos 24 alunos escolhidos para esta tarefa. Depois, todos os anos o evento passou a ser celebrado em comemorações de três dias, ainda mais

134 DESCARTES, Discurso do Método, p. 39.

67

requintados do que a original135.

As encenações teatrais compõem ao lado de outras práticas um procedimento

pedagógico muito utilizado pelos jesuítas136.“Ignace de Loyola: Le lieu de l'image”, de

Pierre-Antoine Fabre traz uma reflexão interessante sobre o problema da composição do

lugar nas práticas espirituais e artísticas jesuíticas que vigoram a partir da segunda

metade do século XVI. Neste contexto, a meditação espiritual, não filosófica, é prática

recorrente. Embora as práticas espirituais e filosóficas não tenham o mesmo objetivo, é

possível fazer um paralelo entre elas pois tratam-se de conversões de olhar.

Consideremos alguns aspectos do uso de imagens, conduzidos por Fabre, em conjunto

com a análise que Foucault realiza das imagens evocadas por Descartes.

3.2 “Resíduo de Verdade”: “meu corpo, este papel...”

Sabemos que existe um caminho da dúvida à certeza no sentido do sensível ao

intelectual. No primeiro momento do percurso, a presença de imagens coaduna-se com o

espírito do leitor que ainda não se acostumou a desligar-se do testemunho dos sentidos,

daí a presença das referências à materialidade. Depois desta fase, elas praticamente

desaparecem quando estivermos no âmbito do pensamento. Contudo, dizer isso é dizer

pouco, porque facilmente se pode objetar alegando que é impossível referir-se ao

testemunho dos sentidos sem fazer alusão ao que eles apreendem. Porém, não se trata de

constatar a presença das imagens, mas de tentar observar como elas compõem com a

cadeia demonstrativa. Quem são os loucos? Os nus que se dizem reis, aqueles que têm a

cabeça de vidro. Obviamente as imagens não provam nada, não compõem uma

inferência. As imagens e as diferenças semânticas do termo fous são elementos de um

jogo argumentativo surdo, que não pode mesmo ser explicitado. São um conjunto de

pistas. Mas justamente por considerarmos as Meditações um obra confeccionada de

forma tão refletida e atenta é que não se pode descartar sua importância.

135 GAUKROGER, Descartes, uma biografia intelectual, pp. 70-71, itálicos nossos.136 Sobre a vida escolar de Descartes no La Flèche , vide Stephen GAUKROGER, Descartes, uma

biografia intelectual, "Uma formação no decoro", 1606-1618, pp. 65-98.

68

Tentemos buscar esta que seria a pedra de toque da leitura foucaultiana, a defesa

de uma ordem da ascese no texto meditativo. Para ele, as imagens evocadas por

Descartes evidenciam a existência desta ordem.

As imagens criam lugares. A função da criação do lugar é muito clara: “instaurar

o lugar desta operação”137. Com efeito, o sentido geral da tese de Inácio de Loyola,

descrita por Fabre, pode ser assim expressa: se a meditação produz uma ascese, ela o faz

na medida em que o homem conseguiu construir um lugar dentro dele mesmo, um lugar

de reconhecimento de si. A ideia de reconhecimento aqui é fundamental. É ela que

permite a fixação dos valores que fazem a ligação com o processo de identificação,

condição necessária para a aderência do praticante do exercício.

Peguemos, por exemplo, o caso dos estudos de linguagem, seja no discurso

literário ou filosófico. Um autor como Eric Bordas138, ao abordar o papel da metáfora

espacial na linguagem, nos diz que o recurso à imagem, enquanto abertura de uma

representação sensível no discurso, acaba por tocar a parte mais ativa da linguagem

humana. Seria por conseguir realizar a ponte com a inscrição no espaço do vivido que

torna-se possível a soma de valores, configurando assim, o lugar de reconhecimento. O

mito, por exemplo, como uma das expressões mais vivas e eloquentes da ficção, recorre

sempre às metáforas e aos lugares. Aliás, como nos lembra bem Maffesoli, os mitos

particularizam-se por sempre compor lugares em suas narrativas, sendo o recurso a estas

imagens um dos instrumentos principais utilizados como método de análise a eles

aplicado139.

Atualmente, para a ciência do século XXI, afirmar que o componente imagético

tem importância fundamental no processo cognitivo soa como um truísmo, uma verdade

trivial. Mas no século XVI, como bem nos lembra Fabre, apostar na imagem como

elemento central dos exercícios espirituais e artísticos da educação jesuítica adquiriu a

dimensão de um acontecimento revolucionário de ordem pedagógica. O mérito de

Loyola foi ter compreendido que o uso das imagens pode ir muito além da contemplação

137 FABRE, P.A, Ignace de Loyola: Le lieu de l'image, Paris: Vrin, 1992, p. 11.138 Cf BORDAS, Eric. Les chemins de la metaphore, Paris: PUF, 2003. 139 Cf MAFFESOLI, Michel et alii; Espaces et imaginaire: Ville-Montagne-Carrefours, Grenoble: Press

69

dos mistérios.

Fabre ressalta a questão do encadeamento, do ordenamento e da repetição das

imagens na meditação. Como sabemos, Foucault bem aponta estas características na sua

análise do texto meditativo. Ele argumenta que Descartes, apesar de ter dito que os

sonhos podem lhe oferecer ilusões mais extravagantes que as ilusões dos loucos, prefere

imaginar que está sonhando que estava ali, vendo suas mãos, seu corpo, segurando o

papel, enfim, meditando. A alusão não é aleatória. Ela cumpre a função de marcar a

contraposição com a situação dos loucos que estão em outro lugar. Donde se conclui que

o sonho não é mais adequado como razão de duvidar por oferecer desafios

epistemológicos mais extravagantes, mas porque pode acontecer com qualquer um, aqui

e agora. Acompanhemos Foucault:

Porém, apesar da importância, de fato jurídica, da palavra demens, parece-me que os termos-chave do texto são expressões como “aqui”, “agora”, “este papel”, “estou junto ao fogo”, “estendo a mão”, em suma; todas as expressões que remetem ao sistema de atualidade do sujeito meditando. Elas designam essas impressões das quais seríamos bastante tentados, em primeira instância, a não duvidar. São essas mesmas impressões que se podem reencontrar de modo idêntico no sonho. Curiosamente – e Derrida omitiu de notar – Descartes, que fala das inverossimilhanças do sonho, de suas fantasias não menores do que as da loucura, não dá, neste parágrafo, outro exemplo senão o de sonhar que está “neste lugar, vestido, junto ao fogo”. Mas a razão deste exemplo de extravagância onírica bastante paradoxal descobre-se facilmente no parágrafo seguinte, quando se trata, para o meditador, de bancar o adormecido: ele fará como se esses olhos que ele abre sobre seu papel, esta mão que se estende, esta cabeça que ele balança não fossem senão imagens de sonho140.

(…)

Descartes, mesmo afirmando a grande potência do sonho, não pode dar outros exemplos senão o que vem redobrar exatamente a situação atual do sujeito meditando e falando; e isso de modo que a experiência

Univers., 1979. 140 FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 82. Itálicos nossos.

70

do sonho simulado pudesse vir alojar-se precisamente nas balizas do aqui e do agora. Em contrapartida, os insensatos são caracterizados como aqueles que se tomam por reis, como os que se creem vestidos de ouro ou que se imaginam ter um corpo de vidro ou ser um jarro. Mais ou menos extravagantes do que o sonho, pouco importa, as imagens da loucura escolhidas por Descartes como exemplos são, à diferença daquelas do sonho, incompatíveis com o sistema de atualidades que o indivíduo assinala falando. O louco está alhures, em outro momento, com um outro corpo e em outras roupas. Ele está em uma outra cena141.

O ordenamento das imagens, tratando-se de uma meditação cartesiana, assume

importância fundamental. Em relação a este aspecto, uma das singularidades que dá o

tom de genialidade a esta leitura das Meditações, é que Foucault defende que as imagens

compõem um encadeamento que dá suporte à ordem da ascese. É a ordem da ascese que

exclui a loucura e salva o “resíduo de verdade”. Este gesto duplo não pode ser lido mas

está visível. Não há referência explícita ao “resíduo de verdade”, mas há a repetição de

imagens do cenário da meditação. A ordem das razões é composta por um encadeamento

lógico, demonstrativo, expõe argumentos facilmente identificáveis. Os “acontecimentos

discursivos” na ordem da ascese têm que ser rastreados por diferenças semânticas

(diversos sentidos de fous) ou encadeamentos de imagens. Foucault diz que se não

admitimos esta hipótese não compreendemos a repetição da cena142.

A mesma cena é reproduzida três vezes no decorrer desses três parágrafos: estou sentado, tenho os olhos abertos sobre um papel, o fogo está ao lado, estendo a mão. Na primeira vez, ela é dada como certeza imediata do meditador; na segunda, ela é dada como um sonho que, com muita frequência, acaba de produzir-se; na terceira vez, ela é dada como certeza imediata do meditador fazendo de conta, com toda a aplicação de seu pensamento, que é um homem sonhando, de modo que do interior de sua resolução ele se persuade de que é indiferente, para a marcha de sua meditação, saber se está acordado ou dormindo143.

Vimos que a afirmação de uma ordem da ascese é tese controversa. Admite entrar

141 FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 83. Itálicos nossos. 142 Cf FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 82.143 FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 82.

71

neste mérito da discussão somente Jean-Marie Beyssade, porém, rejeitando a

consequente qualificação de não-louco anterior à primeira certeza do cogito. Porém,

talvez a questão da dupla ordem das meditações, antes de ser importante nela mesma,

nos sirva para compreender algo do estilo foucaultiano de pensar. Talvez fosse possível

afirmar que a identificação de planos discursivos paralelos seja emblemático do método

arqueológico. Seria interessante investigar como as imagens dão a Foucault “unidade aos

seus argumentos, documentos e interpretações, permitindo que o leitor memorize o

discurso durante a leitura. As imagens têm função constitutiva (constituir a unidade

mental ao juntar a diversidade) ou uma função ilustrativa (manter a atenção ligando os

elementos unificados por conceitos)”144. Neste sentido, o texto de Foucault apresenta

igualmente uma dupla trama. Voltaremos a este ponto posteriormente mas antes, vamos

nos desviar um pouco da leitura foucautiana e, ainda apoiados por Fabre, traçar algumas

ideias de como o método cartesiano vincula-se à criação de um lugar no pensamento.

3.3 O lugar da certeza: “...este fogo”

Assim como o momento, um lugar tem a particularidade de ser único. Porém, em

relação aos espaços da natureza, o lugar criado não é mera localidade, localização, mas o

espaço de um símbolo. Por exemplo, um santuário, uma sepultura, são espaços que não

são apenas localidades mas são lugares no sentido de “espaço único”, criação

tipicamente humana. Por isso pode-se dizer que são “lugares de reconhecimento”.

Esta é a característica maior dos espaços criados no interior da meditação através

das imagens. Ou seja, paradoxalmente, dizemos que uma imagem insere-se na meditação

para introduzir ali, através de um apelo a um lugar, um instante, “concreção de um

sentido no caos”145. Nas meditações espirituais a questão adquire uma força fundamental

porque instala-se na “articulação entre o ver e o crer”146. Fabre destaca que o recurso à

repetição da imagem é procedimento muito recorrente, é “o motor da meditação

144 BILLOUET, Pierre. Foucault. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo, Estação Liberdade, 2003, p. 22-23.145 FABRE, P.A, Ignace de Loyola: Le lieu de l'image, Paris: Vrin, 1992, p. 9146 Ibidem, p. 11.

72

ignaciana”147. A repetição tem a função de reatualizar a composição do lugar. No caso da

repetição da meditação espiritual isso significa renovar os votos de uma decisão148.

No contexto metafísico cartesiano a questão é diferente, pois trata-se, ao mesmo

tempo, de um projeto de subjetivação e da criação de um método. A poêle é uma fenda

no tempo e no espaço. Um momento de estancamento das emoções, do congelamento do

tempo no presente. O presente é o tempo da verdade e da certeza. É importante não

confundir com o enraizamento do homem na dimensão da sua temporalidade, tal como

ocorre na meditação espiritual dos estóicos, pois ali isto significa restituir o homem a

seu tempo da vida, de sua ação no mundo, de sua morte, etc. A ascese estoica coloca o

homem no presente no sentido do tempo da imanência. A meditação filosófica

cartesiana, diferentemente, retira o homem da imanência, desloca-o ao tempo do

pensamento, congelado, abstraído. Trata-se da construção de um homem de certezas.

Pensemos, por exemplo, no quadro de Rembrandt “Filósofo meditando”. Este

cenário, o lugar reservado da poêle, simboliza o locus de uma operação do pensamento.

Voltemos ao início da primeira meditação e ouçamos as palavras de Descartes: “Agora

pois que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso

assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir

em geral todas as minhas antigas opiniões149.” Tem-se aqui a descrição de um estado:

solidão, espírito apaziguado, propósito deliberado, recolhimento.

147 FABRE, P.A, Ignace de Loyola: Le lieu de l'image, p. 286.148 A reprodução da cena, acrescenta ainda o estudioso de Loyola, acaba por configurar, ademais, uma

espécie de quiasma, no seguinte sentido: como, em geral, a meditação se desenvolve como exercício, ou seja, repete-se várias vezes, a consequência deste processo é que à cadeia de imagens lidas, em ato, soma-se a cadeia da imagem lembrada da última realização do exercício, criando ordens paralelas de sequências que se encontram periodicamente. Esta é a pedra de toque da meditação e o que sedimenta e radicaliza a experiência meditativa num modo de deslocamento do indivíduo. Então esta representação produz um lugar e o lugar (re)produz a ascese indefinidamente. Deste modo eu posso me orientar na meditação porque eu a localizo e sou localizado por ela também. O autor reporta-se aqui a Le visible et l'invisible de Merleau-Ponty. In FABRE, P.A, Ignace de Loyola: Le lieu de l'image, p. 12.

149 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, I, p. 93.

73

Então, a menção reiterada da situação do filósofo meditando remete à criação de

um espaço, não físico, mas o espaço de reconhecimento de um sujeito. O sujeito coloca-

se num determinado lugar pelo pensamento, este é o processo de abstração que se

almeja, e a “operação de abstração retraça precisamente o esquema do lugar de

imaginação como grandeza negativa do espaço de representação”150. Ou seja, o motivo

da repetição da imagem por parte de Descartes, além do motivo trazido por Foucault,

mas não em oposição a este, mas vindo justamente ao seu encontro, pode ser o da

criação de um lugar do exercício da mathésis e da subjetivação.

No que toca ao espaço aquecido desta estufa onde se encontra o meditador, vale a

pena citar o italiano Sergio Benvenuto que traça uma analogia interessante entre o

método cartesiano e o fogo (interior) da certeza. Diz o autor que é ali junto ao fogo da

lareira que o homem cartesiano quer (re) encontrar o homem universal. Sabe-se que a

mathésis visa reconstruir a ciência para fundar a verdade única. As certezas parciais que

Descartes encontrou ao longo de sua vida, na sua formação e em suas viagens, estas

certezas parciais, estas “verdades étnicas”, devem ser substituídas, são falsas. O sujeito

deve encontrar-se ali no seu fechamento, no seu hermetismo, é nele mesmo que deve ser

buscado o fogo da certeza:

O percurso regressivo cartesiano vai da falsa certeza à certeza verdadeira: é uma passagem do fogo etnocêntrico no qual ele se debate nas suas viagens por livros e países, ao fogo universal e único que faz apelo ao senso comum e à razão, ou seja, algo que qualquer um tem. O domínio e a mestria sobre a natureza não se dão via expansão territorial e temporal mas, ao contrário, através da redução paradoxal na pobreza ascética e indigente do cogito151.

O que Descartes busca em frente à lareira é o homem universal, processo que em

nada se assemelha ao retorno às suas origens. Descartes nem mesmo considera a França,

por seu ambiente frívolo e sofisticado, um bom ambiente a se meditar, preferia estar

sempre no exterior. No Discurso do Método ele diz que a Holanda é um lugar mais

150 FABRE, P.A, Ignace de Loyola: Le lieu de l'image, p. 14.151 BENVENUTO, Sergio. “Héstia-Hermes. La Filosofia tra focolare ed angelo”. Dialegesthai. Rivista

telematica di filosofia, p. 14.

75

apropriado para este retiro porque ali os homens são sérios e livres.

O contraponto com a filosofia antiga não podia ser maior, ressalta Benvenuto.

Profundamente distinta, a filosofia antiga é totalmente enraizada na vida política da

polis. Inclusive a própria simbologia da lareira grega, héstia, assume um significado

completamente diverso. Vernant nos diz que Héstia152, além do nome próprio da deusa,

também é a palavra que designa “lareira”153. Com efeito, Héstia é, dentre todos os

deuses, aquela que menos se presta a uma representação antropomórfica. Como todos os

deuses, sua simbologia abrange vários aspectos, e o primeiro deles é justamente o seu

nome. Enquanto lareira arredondada localizada no centro do habitat humano, Héstia

simboliza a fixidez e a permanência, é como o “umbigo que enraíza a casa na terra”154.

O fogo da lareira grega reforça a identidade comum dos elementos no oikos, enquanto

parte constitutiva da polis. Os alimentos cozidos na lareira realizam a solidariedade

religiosa entre os que convivem no lar, criando entre aqueles que se servem destes, a

identidade grega. Assim, a família reunida na refeição forma um círculo e afirma a sua

unidade ao consumir “um alimento proibido ao estrangeiro”155. Benvenuto acentua as

diferenças simbólicas entre o fogo dos gregos, héstia, que traça a solidariedade entre a

filosofia e a vida ética e política na polis, contrastando esta imagem com a solitária

poêle, símbolo do estabelecimento do cogito como fundamento do projeto racional da

modernidade.

152 VERNANT, Jean-Pierre. “Héstia-Hermes: Sobre a expressão religiosa do espaço e do movimento entre os gregos”. In: Mito e pensamento entre os gregos, pg 151.

153 Ibidem, pg 152.154 Ibidem, pg 153.155 Ibidem, pg 167.

76

CAPÍTULO 4

MEDITAÇÃO E ASCESE

...trata-se de um exercício cuja experiência modifica pouco a pouco o sujeito meditador, e de sujeito de opiniões ele se

vê qualificado como sujeito de certeza156.

Michel Foucault

O objetivo deste capítulo é refletir sobre o caráter de ascese das Meditações.

Recorreremos ao próprio Michel Foucault e a Pierre Hadot para pensar a meditação

como uma forma de exercício.

4.1 Áskesis

Talvez uma boa forma de iniciar esta discussão seja através destas notas de curso

manuscritas por Foucault:

Pode-se ter acesso à verdade sem colocar em jogo o próprio ser do sujeito que a ela acede? Pode-se ter acesso à verdade sem pagar com um sacrifício, uma ascese, uma transformação, uma purificação que

156 FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 86.

77

concernem ao próprio ser do sujeito? Pode o sujeito, tal como ele é, ter acesso à verdade? É a esta questão que Descartes responderá sim...157

A reflexão insere-se no contexto de um curso que Foucault ministra em 1982,

portanto, 10 anos após “Mon corps, ce papier, ce feu”. Contudo, há um parentesco entre

a abordagem da filosofia cartesiana nos dois textos, dado que, desde 1961, como

Foucault mesmo assume, seus escritos empenham-se por perseguir uma certa história das

“condições em que são formadas ou modificadas certas relações entre sujeito e objeto, na

medida em que estas são constitutivas de um saber possível”158. É importante esclarecer

que nossa menção ao curso A Hermenêutica de Sujeito, neste momento, atende à

necessidade de esclarecer o sentido de ascese, um dos temas desenvolvidos de forma

demorada neste curso. Fazendo isto, por outro lado, estaremos igualmente caminhando

na direção de iniciar o contorno da filosofia de Descartes sob a ótica foucaultiana, um

dos objetivos da tese.

Isto posto, o que nos interessa saber é por que Descartes, segundo Foucault,

responderia “sim” à pergunta que acabamos de citar? Foucault não teria justamente

defendido a posição de que as Meditações cartesianas pressupõem uma dupla ordem

discursiva, a demonstrativa e a da ascese? Por que então afirmar que o sujeito cartesiano,

para alcançar a verdade, não teria que “pagar” com uma ascese? Voltemos nossa atenção

às noções de ascese, “ser do sujeito” e “o sujeito, tal como ele é”.

Vale lembrar que ascese, como nos informa Hadot, vem do termo grego áskesis e

significa exercício, algo que se pratica159. Portanto, em primeiro lugar, asceses são

“práticas” que têm por finalidade causar alguma modificação em quem as pratica. A

resposta à pergunta de Foucault requer que se compreenda o sentido da modificação

pretendida por estas práticas.

157 Michel Foucault apud Frédéric Gros “Situação de Curso” in FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito, tradução Muchail, S.T e Fonseca M.A , p. 633.

158 Cf verbete “Foucault” no Dictionnaire des philosophes de Huisman, elaborado por Foucault sob o pseudônimo Maurice Florence. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, vol. II (1976-1988), p. 1450.

159 HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo, São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 273.

78

É interessante o parentesco semântico entre áskesis e a própria palavra meditação.

Foucault nos lembra que o termo latino meditatio160 traduz o substantivo grego meléte,

do verbo meletân, que significa treinar, exercitar-se em algo, num tipo de exercício

indefinidamente reiterável. Hadot diz que estes exercícios enraizavam-se na ideia

mesma de atletismo, no sentido de treino. Os exercícios físicos e espirituais esculpem o

corpo e o espírito do “homem verdadeiro”, “livre, forte e independente”161. É claro que a

ideia do homem verdadeiro mudará de acordo com a doutrina do grupo praticante. Para

os epicuristas, por exemplo, os exercícios são uma tomada de consciência do “ser

senciente”, “o puro prazer de existir”162, já para os estoicos163 era de fundamental

importância separar-se de seu lado passional, tomar o sentido da temporalidade atual,

fixando o pensamento no presente, o exercício de atenção a si (prosokhé), a meditação

da morte, o exame de consciência noturno, os exercícios de concentração e expansão do

eu, etc.

Vemos que meléte se distancia muito do significado mais contemporâneo de

meditação, algo próximo de exegese. Se hoje dizemos que meditamos sobre algo, os

antigos, medievais e modernos diziam exercitar-se numa meditação, meditar algo. Isto é

o que permite a Foucault dizer, a respeito da meditação, que “não se trata de um jogo do

sujeito com seu pensamento”164, tampouco “um exercício sobre o pensamento e seu

conteúdo”165 mas “um exercício pelo qual o sujeito se põe, pelo pensamento, em uma

determinada situação”166.

Poderíamos perguntar qual seria então o núcleo central de uma meditação? Para

Hadot, este seria a “concentração sobre si”167. Se isto é certo, faz-se necessário saber de

que “si” se trata. Propomos chegar a esta questão por outra vertente, acompanhando o

160 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 428-429. 161 HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? p. 272.162 HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? p. 279.163 Vide HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga?, pp 273, 274, 277 e 292. 164 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 430.165 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 430.166 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 430.167 HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? , p. 274. Citamos a frase inteira: “Os exercícios

espirituais correspondem quase sempre ao movimento pelo qual o eu se concentra em si mesmo, descobrindo que não é o que acredita ser, que não se confunde com os objetos aos quais se prendia”.

79

caminho que Foucault traça em A Hermenêutica do Sujeito.

Em primeiro lugar, Foucault estabelece várias cisões. A primeira delas se dá entre

meditações espirituais168 e filosóficas. Dada a vaguidade da noção “espiritual”, é

necessário precisar o sentido que o autor quis dar ao termo:

Chamemos de “filosofia”, se quisermos, esta forma de pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do falso. Chamemos de “filosofia” a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade. Pois bem, se a isto chamarmos “filosofia”, creio que poderíamos chamar de “espiritualidade” o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade169.

Respondendo à pergunta inicial, vemos que para se ter acesso à verdade, é preciso

pagar com uma ascese, pelo menos, por enquanto, no âmbito da “espiritualidade”.

Notemos como Foucault estabelece a noção de “espiritual” em solidariedade com

“filosófico”, orientando ambos sob o eixo da verdade.

Antes de nos alongarmos um pouco mais sobre o tema das práticas “espirituais”

que Foucault desenvolve no seu curso de 1982, cabem duas considerações. A primeira é

que a abordagem utilizada pelo autor nesta época não pode ser compreendida fora do

âmbito da construção de seu projeto filosófico, marcado tanto por uma mudança de

postura metodológica quanto por uma mudança nos temas de pesquisa. Avançaremos

168 É necessário admitir também que a noção de espiritualidade, como bem assinalou Muchail, é “vaga e perigosa”, além de que “pode induzir a equívocos místicos, esotéricos e religiosos”. MUCHAIL, Salma Tannus. “Transversal: entre Heidegger e Foucault” In MUCHAIL, S.T. Foucault mestre do cuidado, São Paulo: Loyola, 2011, p. 19.

169 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 19.

80

nesta direção nos capítulos seguintes mas, neste momento, e esta é a segunda

consideração, precisamos tentar reter o significado de meléte ou áskesis através dos

diversos sentidos dos termos assumidos por grupos praticantes distintos, para além da

questão metafísica cartesiana.

Meléte ou áskesis, enquanto práticas, diz Foucault, visam sempre a uma

“conversão”170. Na primeira hora da aula de 10 de fevereiro do referido curso, o

professor diferencia três tipos de conversões, a epistrophé platônica171, a metanóia cristã

e a convertere ad se estoica.

Na epistrophé platônica, a conversão assume a forma de desvio. É necessário

desviar-se do mundo das aparências, e retornar, através das reminiscências, ao mundo

das essências, da verdade e do ser, o verdadeiro caminho de retorno a si. A oposição

fundante da epistrophé é a oposição entre dois mundos. Ascender ao conhecimento é

uma forma de libertar-se deste mundo172.

O segundo tipo, a metanóia cristã, estende-se do século III ao IV. No contexto

cristão, lembra Foucault, metanóia significa, ao mesmo tempo, penitência e mudança.

Para isso a conversão deve operar uma ruptura no interior do sujeito, uma renúncia a si

para renascer em outro eu. Neste caso, a conversão assume a forma de passagem “da

morte à vida, da imortalidade à mortalidade”173.

A convertere ad se vem de Sêneca. O tipo de conversão preferido de Foucault

assume a forma de uma conversão do olhar. A finalidade não é um desvelamento de si,

“não se trata de decifrar-se”174, mas de desviar o olhar dos outros, desviar o olhar das

coisas do mundo, da tagarelice, “desviá-lo da agitação cotidiana”175, “da curiosidade que

170 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 255.171 Foucault baseia-se no texto de Hadot “Epistrophé et metanóia”, apresentado pela primeira vez no XI

Congresso Internacional de Filosofia, ocorrido em Bruxelas, de 20 a 26 de agosto de 1953. Foi publicado também no livro Exercices spirituels et Philophie antique, pp. 175-82. Conforme FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, aula de 10/02/82, primeira hora, nota 40, p. 279.

172 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 257.173 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 260.174 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 271.175 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 268.

81

nos leva ao interesse pelo outro”176. A conversão a si supõe a realização de exercícios que

visam treinar o não desvio da atenção, a concentração, por exemplo, fazer caminhadas

sem olhar para os lados e sem distrair-se, aguçar a curiosidade e em seguida negar

satisfazê-la, caminhar “sem distrair-se lendo as inscrições sobre os túmulos que

informam acerca da vida das pessoas”177 etc. A ideia é treinar liberar o espírito de tudo

que o preocupa mas que ele não pode dominar178.

Das três conversões, dois casos, a epistrophé platônica e a metanóia cristã, são da

ordem da decifração, da busca de um significado oculto sob uma aparência, e neste

sentido, Foucault diz, são buscas hermenêuticas. Estas conversões expressam-se como

um retorno a um si mais verdadeiro, mais essencial, localizado, no caso da epistrophé

platônica, no plano das idealidades, e no caso da metanóia cristã, no plano da eternidade

cristã. Foucault aponta astutamente que em ambos os casos, trata-se de retornar ou

converter-se a algo que está além, ou aquém, do plano da imanência179. No caso da

conversão do olhar estoico, por outro lado, trata-se de uma liberação dada no plano da

imanência. Sucintamente falando, talvez ela pudesse ser resumida à cisão entre o que

depende e o que não depende de nós.

Agora pensemos na meditação cartesiana. Parece-nos que ela atende aos

requisitos para ser considerada uma autêntica meléte: constitui-se como um exercício,

propõe etapas a serem percorridas, requer a atenção e concentração plena de quem a

realiza, tem por objetivo causar uma modificação em quem a pratica. É “exercício do

sujeito que se põe pelo pensamento em uma situação fictícia na qual se experimenta a si

mesmo...”180. É “deslocamento do sujeito com relação ao que ele é por efeito do

pensamento”181. Por isso Foucault diz que na primeira meditação “Descartes não pensa

em tudo o que poderia ser duvidoso no mundo. Tampouco pensa no que poderia ser

indubitável”182.

176 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 268.177 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 271.178 Cf FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 268-270.179 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 258-259.180 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito, p. 430.181 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito, p. 430.182 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito, p. 430.

82

Porém, mesmo enquanto exercício, estamos bem longe da meditação “espiritual”,

pois o que Descartes visa ensinar é o método intelectual, conduzido por articulações

lógicas, raciocínio rigoroso. Trata-se de um método que visa ensinar não só a reconhecer

ordens, mas ordem nas ideias. Foucault diz que trata-se de uma “sucessão de

representações”183 ligadas por um “liame suficientemente forte, obrigatório e

necessário”184. O espírito então é treinado em reconhecer a legitimidade destas ligações e

dar seu assentimento àquelas que manisfestarem-se de forma clara, distintamente.

Mas a questão inicial ainda não foi respondida. Relembremos as palavras de

Foucault:

Pode-se ter acesso à verdade sem pagar com um sacrifício, uma ascese, uma transformação, uma purificação que concernem ao próprio ser do sujeito? Pode o sujeito, tal como ele é, ter acesso à verdade? É a esta questão que Descartes responderá sim...185

Conforme acabamos de mostrar, a ascese das Meditações cartesianas tem a

particularidade de produzir um sujeito de conhecimento. Será que ela, a exemplo das

demais asceses apresentadas, também comporta ou supõe uma cisão? Que ela

pressuponha uma cisão, isso nós já sabemos, a duplicação cartesiana res cogitans e res

extensa. Que ela ocasione uma cisão, é uma aposta de Foucault em A Hermenêutica do

Sujeito. Adiantemos alguns aspectos da tese que nos interessa no momento.

A originalidade do curso A Hermenêutica do Sujeito foi trazer à tona a noção

grega de epiméleia heautoû (cuidado de si) que vigorou na antiga Grécia (século V a.C.)

até os primeiros séculos da espiritualidade cristã (século V d.C.). Apesar dos

deslocamentos e transformações sofridos pela noção ao longo dos séculos é possível,

segundo Foucault, dizer que o “cuidado de si” representou uma atitude para consigo e

para com os outros, uma maneira de estar no mundo; uma forma de “conversão do olhar”

do exterior para si mesmo. Um dos problemas trabalhados foi “por que, a despeito de

183 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 356.184 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 356.185 Michel Foucault apud Frédéric Gros “Situação de Curso” in FOUCAULT, M. A Hermenêutica do

Sujeito, tradução Muchail, S.T e Fonseca M.A , p. 633.

83

tudo, a noção de cuidado de si foi desconsiderada no modo como o pensamento, a

filosofia ocidental, refez sua própria história?” Foucault elabora hipóteses sobre este

“esquecimento”. Uma destas ele denominará “com muitas aspas” de “momento

cartesiano”186. O “momento” seria um divisor de águas da passagem do exercício

espiritual ao método intelectual, entre o predomínio de um “sujeito da ética” e o

predomínio do “sujeito do conhecimento”187.

Sendo assim, a meditação filosófica inaugura a cisão entre dois domínios, o da

ética e o do conhecimento. No domínio da ética, o acesso à verdade exigia uma ascese

“no próprio ser do sujeito”188, o que, conforme vimos, era uma mudança no próprio

modo de estar no mundo. A partir do “momento cartesiano”, o acesso ao conhecimento

verdadeiro requer apenas o método intelectual, treinamento da razão. Daí Foucault

afirmar que a partir de Descartes o homem pode ter acesso ao conhecimento, “tal como

ele é”189.

186 Foucault esclarece que há muito tempo já se iniciara este corte, tanto que a noção “reforma do entendimento” que começa a se veicular no século XV já evidencia este caminho. Além disso, adverte que mesmo na escolástica já se observava um esforço para se revogar a condição de espiritualidade. Posteriormente, por outro lado, também toda a filosofia do século XIX (Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heidegger) tentará vincular o conhecimento a uma transformação no ser do sujeito. Cf. A Hermenêutica do sujeito, p. 39-40.

187 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 356.188 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 633.189 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 633.

84

CAPÍTULO 5

DÚVIDA CÉTICA E DÚVIDA METÓDICA

Se o homem pode sempre ser louco, o pensamento, como exercício de soberania de um sujeito que se coloca no dever de perceber o verdadeiro, não pode ser insensato. É

traçada uma linha de partilha que logo tornará impossível a experiência, tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável, de uma razoável Desrazão. Entre Montaigne e Descartes deu-se um acontecimento: algo que diz respeito ao advento de uma ratio.190

No limite, a vida – daí seu caráter radical – é o que é capaz de erro.191

Michel Foucault

A impressão da certeza é um testemunho certo da loucura e incerteza extrema192.

Michel de Montaigne

Este capítulo diz da especificidade da dúvida cartesiana frente às questões

trazidas pela tradição cética. Com esta abordagem queremos tangenciar as seguintes

questões: levantar os motivos que teriam levado Descartes a formular a primeira

meditação como um exercício (5.1), considerar a necessidade de se tomar a dúvida

cartesiana sob o pano de fundo histórico (5.2), marcar a diferença entre a dúvida cética e

a cartesiana, enfatizando a contraposição Montaigne-Descartes (5.3). E por fim, traremos

dois casos de como pensar a relação entre filosofia cartesiana e tradição cética mediante

190 FOUCAULT, Michel. História da Loucura, p. 48.191 FOUCAULT, Michel. “La vie: l'expérience et la sciense”. Dits et Écrits II 1976-1988, p. 1593. 192 MONTAIGNE, “Apologia a Raimond Sebond”, p. 522.

85

duas perspectivas distintas, da análise do argumento dos sonhos (5.4) e de como

Descartes tem para si a física cartesiana (5.5).

5.1 A primeira meditação: um caso exemplar

Como mencionamos anteriormente, as Meditações mobilizam muitos recursos de

estilo, por exemplo: simetria gramatical e de sintaxe, simetria das expressões de

descobertas no exercício, o uso de imagens que visam criar ambiências. Pode-se ainda

acrescentar outro recurso, como veremos adiante, não exatamente de estilo mas

estratégico, o “tournement de raisons”.

Qual a necessidade que Descartes teria de querer fazer desta primeira meditação

um exercício? Ele apresenta este momento primeiro como aquele que deve “nos preparar

um caminho muito fácil para acostumar nosso espírito a desligar-se dos sentidos”193. O

instrumento utilizado para aplainar este caminho será a dúvida. Como se sabe, quanto

mais internalizada a dúvida, mais fácil se tornará aderir às certezas que virão. Por isso, a

dúvida tem direção e finalidade preestabelecidas, é metódica.

A recepção ativa que Descartes esperava dos leitores de suas Meditações

Metafísicas era proporcional à radicalidade do propósito cartesiano: demonstrar que o

fundamento inabalável no qual uma nova ciência deveria se apoiar deve ser buscado no

próprio sujeito.

Descartes encontra-se diante do grande desafio de não apenas provar que o

testemunho dos sentidos não pode garantir o conhecimento, mas também tentar

desenraizar de seus leitores hábitos cultivados há muito tempo. Escolhe então publicar,

em primeiro lugar, seus ensaios científicos, porque somente os bons resultados da física

poderiam convencer o público de que era necessário duvidar do testemunho dos

sentidos, preparando assim o terreno para a publicação das noções metafísicas que

193 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, p. 87.

86

fundamentavam a ciência. Porém, como nos conta Gilson, a condenação de Galileu fez

Descartes mudar de ideia quanto à ordem das publicações194. E assim, a publicação da

metafísica cartesiana, ao lado de todas as dificuldades que acompanhavam a exposição

de uma teoria debutante, não pôde se beneficiar da vantagem de ter sido precedida pela

publicação da física. Para Gilson, este quadro coloca Descartes diante de grandes

dificuldades de se fazer aceitar por um público precavido, motivo pelo qual ele optou por

apresentar suas ideias não sob forma de um tratado, mas como meditação. Somente este

“caráter de ascese e de disciplina do pensamento”195 poderá fazer frente à meta de livrar

o espírito do leitor do antigo costume de se fiar dos sentidos.

Descartes já havia tentado apresentar sua metafísica segundo a ordem sintética,

na qual a dúvida metódica via-se reduzida a apenas um postulado. E por este motivo,

segundo o próprio Descartes, os leitores não se convenceram das provas da existência de

Deus e da distinção entre corpo e alma. O fracasso da exposição sintética convence

Descartes do caráter imprescindível da dúvida metódica196. Pois, estando no âmbito da

metafísica, o problema é “conceber clara e distintamente as noções primeiras” 197. Daí

Descartes afirmar que

“(...) esta foi a causa pela qual preferi escrever meditações e não disputas ou questões, como fazem os filósofos, ou teoremas ou problemas, como os geômetras, a fim de testemunhar com isso que as escrevi tão somente para os que quiserem dar-se ao trabalho de meditar seriamente comigo e considerar todas as coisas com atenção. Pois, pelo fato mesmo de que alguém se prepare a fim de impugnar a verdade, ele se torna menos capaz de compreendê-la, porquanto desvia o espírito da consideração das razões que o persuadem dela para aplicá-lo à busca das que a destroem.”198

Vemos bem a atenção de Descartes e seu cuidado com a verdade. Isso nos remete

diretamente ao debate implícito que ele trava com os céticos.

194 GILSON, Étienne. Études sur le role de la pensée medievale dans la formation du systéme cartesien , p.185.

195 Idem, p. 187.196 Idem, pp. 188-189.197 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, “Objeções e Respostas”, p. 177.198 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, “Objeções e Respostas” , p. 177-178.

87

Com efeito, é corrente identificar na Primeira Meditação cartesiana certa tensão.

Esta tensão expressa-se por uma dupla discursividade que já foi objeto de várias

interpretações; como por exemplo, um diálogo de Descartes com um cético, diálogo de

“Descartes dogmático” e o “Descartes cético”, diálogo entre Descartes e o honnête

homme, o Descartes indeciso entre a resolução de emancipar-se e a sua tendência à

“aspiração doutrinária”199. O trecho de que nos ocupamos é um caso exemplar desta

tensão. Lembremos que o mesmo trecho sobre a loucura recebeu nada menos que quatro

leituras diferentes.

5.2 O fim de um mundo

Lívio Teixeira nos diz que é impossível analisar a primeira meditação cartesiana

sem considerar seu quadro de fundo, seu possível diálogo com a tradição cética. O final

do século XVI e as primeiras décadas do XVII foram anos particularmente tensos.

Vários fatos concorrem para isso. O ceticismo, reanimado desde o século XVI, reunia

grande número de adeptos que influenciaram muitos filósofos. Charron e, principalmente

Montaigne, eram muito lidos em sua época. A própria marca cartesiana, nada banal, de

uma filosofia escrita em primeira pessoa, era, na verdade, herança de Montaigne200. O

ceticismo pirrônico será reavivado devido a três causas articuladas: uma espécie de

cultura da erudição, caracterizada pelo uso abusivo do recurso de autoridade aos

oradores e filósofos da cultura clássica revividos pelo Renascimento; o cisma do

cristianismo, que acabou ocasionando uma descrença com relação aos valores morais; as

consequências dos descobrimentos da ciência moderna com Copérnico e Kepler. Este

199 Tivemos a oportunidade de ver como o tema, 350 anos depois, ainda mobiliza polêmicas. As posições cogitadas acima estiveram representadas pelos palestrantes do II Colóquio Descartes de 26 a 29 de outubro de 2009, org. pela Universidade Federal de Uberlândia, UFMG e École Pratique des Hautes Études (Sorbonne). Sobre o ceticismo, neste colóquio, defendeu a posição Marcos César Seneda da UFU e Thomas M. Lennon da University of Western Ontario. “The academic skepticism of Descartes's methodology”. Sobre a “aspiração doutrinária” em contraste com a “resolução emancipatória” consulte-se o interessante livro de Alexandre Soares, O Filósofo e o Autor, uma espécie de leitura fenomenológica da primeira meditação cartesiana.

200 Henri GOUHIER diz: “Descartes diz “eu”, atitude de um filósofo leitor de Montaigne”. In GOUHIER, H. Descartes: Essais sur le “Discours de la méthode”, La Métaphysique et la morale. Paris: Vrin, 1973, p. 13.

88

quadro mergulha a Europa em uma crise cultural intensa que acabou gerando uma

descrença com relação aos valores morais201 de um modo geral.

Neste sentido, é interessante observar também que o que hoje nós conhecemos

como modernidade tem suas origens no mesmo movimento que reanimou o ceticismo.

Autores que estudam o ceticismo como Richard Popkin, Ernest Gellner e Luiz A. Eva

defendem esta tese. Isto porque, mediante as crises culturais do Renascimento, a

oposição aos recursos de autoridade podiam tanto dar origem a uma suspensão de juízo

resultante da impossibilidade de decidir, quanto igualmente poderia motivar a busca de

um método seguro por onde orientar o pensamento na busca da verdade. Neste quadro, a

expressão “reforma do entendimento”, não poderia ser mais elucidativa.

No âmbito dos valores e da cultura dois acontecimentos são decisivos, a crise da

igreja cristã e a descoberta dos hábitos dos povos do chamado “novo mundo”, a

América. Os questionamentos espirituais e teológicos somam-se ao estranhamento

experimentado diante da cultura “primitiva” dos nativos americanos. De fato, o estatuto

cultural dos novos povos tornar-se-ia tema filosófico de autores como Montaigne, por

exemplo.

Conforme já dissemos, foi igualmente decisivo na configuração deste cenário de

“fim de um mundo”, a sequência Copérnico, Kepler, Galileu. No entanto, é preciso

guardar-nos da tentação de crer que a partir do aparecimento das luzes da modernidade o

mundo passe a estar, de um hora para outra, “livre” de fatos como as perseguições

religiosas. Muito pelo contrário, os últimos decênios do século XVI e os primeiros anos

do XVII representam, por exemplo, a última grande onda da caça às feiticeiras, nos diz o

historiador Robert Mandrou. Vale citar o caso pois ele denota bem o clima cultural da

época. O nascimento da ciência moderna não dissolveu o conflito pois o grande conflito

do século XVII se dá mais precisamente entre “pensamento teológico e exigência de

espiritualidade”202.

Note-se o fato revelador de que o maior número de processos inquisitórios era

201 TEIXEIRA, Lívio. Ensaio sobre a moral de Descartes. São Paulo: Brasiliense, p. 32-33.202 FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 37.

89

verificado em dois casos: nas regiões de fronteiras, em vilarejos mais afastados dos

centros regionais, e também nas localidades de maior conflito entre católicos e

protestantes. Segundo Mandrou203, tratava-se muito mais de uma forma de exibição de

um poder local que precisava se afirmar do que um aumento na incidência de pactos

demoníacos. O que leva o historiador a afirmar os perigos que a certeza moral pode

assumir: “Não há epidemias sem um ou vários juízes bem decididos a livrar sua

jurisdição da ingerência diabólica”204. O fato é que as execuções se legitimavam,

segundo o historiador, porque: tratava-se de uma crença (no caso, cristã), acontecia na

forma de um espetáculo visível oferecido ao público e tinha a natureza de um processo

de julgamento ao mesmo tempo humano (judiciário) e divino, além do mais, contava

com o apoio de denunciadores e testemunhos populares.

Tanto Montaigne quanto Malebranche escreveram na época do terror

demonológico, argumentando sobre os malefícios da imaginação, tanto que Malebranche

chega a firmar a expressão “feiticeiros por imaginação”205. Vemos, então, tal como atesta

a tese de Foucault, que neste período emerge uma categoria de pessoas que não existiam

antes sob este estatuto. As pessoas com “problemas de imaginação”.

Coincidentemente, a partir de 1640, em Paris, não mais se pode acusar alguém

por pacto diabólico206. Dois anos depois, saia a primeira edição das Meditationes de

Prima Philosophia. Concluimos que, na época em questão, seja numa matriz simbólica

ou como componente de um complexo quadro social, o tema da imaginação humana

talvez não pudesse ser considerado irrelevante.

203 MANDROU, Robert. Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII : uma análise de psicologia histórica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979. O autor se diz na trilha de Lucien Febvre da história dos Annales francesa. Trata-se de uma história da vida judiciária do século XVII.

204 Ibidem p. 102.205 Ibidem p. 452.206 Ibidem p. 439.

90

5.3 Dúvida cética e dúvida metódica

O importante a reter deste quadro que acabamos de descrever é que, dependendo

da perspectiva assumida pela crítica ou das circunstâncias argumentativas, Descartes

bem podia ser considerado um cético. Mas, será que, apenas por ter exercido a dúvida e

utilizado “argumentos céticos”, Descartes pode ser considerado um deles?

Popkin, pensador empenhado em buscar marcas do ceticismo em todo o

pensamento ocidental, afirma que, “malgré lui”, Descartes foi confundido por muitos

dogmáticos como cético. Diz ele que a postura cartesiana era considerada como de um

ateu porque Descartes aboliu o princípio a partir do qual se podia adotar um fundamento

seguro, rejeitando, ao mesmo tempo, a autoridade, o senso comum e a experiência

sensível. Alguns dos principais argumentos levantados foram: não é possível questionar

a “honestidade de Deus”207 pelo argumento do gênio maligno ou Deus enganador e

depois querer imputar o argumento baseado na clareza e distinção de nossas ideias pois,

justamente, a nossa ideia de Deus nunca é clara e distinta.

As críticas do padre Bourdin foram expostas nas sétimas objeções. Mostravam

um Descartes cômico que teria levado a dúvida longe demais. Dizia ele que o método

cartesiano "tem medo da premissa maior seja ela qual for"208 pois desconfia das velhas

fórmulas, apesar de trazer um inimigo novo (o gênio maligno). Neste sentido, Padre

Bourdin diz que tudo que o leitor de Descartes tem que fazer é esperar, como se ele

dissesse: "espere até que eu saiba que Deus existe e até que eu veja que o Espírito

maligno está acorrentado"209.

Segundo Popkin a posição assumida por Descartes assume ares de uma

resistência inglória. Diz que é como se a Reforma tivesse aberto “a caixa de pandora”

por procurar os fundamentos do saber e da religião. Descartes teria se colocado numa

situação delicada ao tentar conciliar as duas frentes num “esforço heroico”210 que foi mal

207 POPKIN, Richard. “Descartes: sceptique malgré lui” In História do cetiscismo de Erasmo a Spinoza, São Paulo, Ed. Francisco Alves, 2000. p. 314.

208 BOURDIN apud POPKIN, idem, p. 304. 209 BOURDIN apud POPKIN, idem, p. 304. 210 POPKIN, Richard. “Descartes: sceptique malgré lui”, p. 325.

91

compreendido, pois apesar de nunca ter sido considerado como cético pelos próprios

céticos, foi acusado de ceticismo pelos dogmáticos.

Mas não é razoável afirmar que Descartes é cético tão somente porque ele

exercitou a dúvida. Ainda em 1628, bem antes da preparação das Meditações, nas

Regras para a direção do espírito, Descartes já havia fixado a dúvida como parte do seu

método filosófico com o objetivo de livrar o espírito dos prejuízos. Além do mais, a

dúvida teria papel fundamental no processo de subjetivação enquanto “resíduo

indubitável”211 do pensamento. O evidente é indubitável. Portanto, mais do que uma

postura cética, a dúvida cartesiana revela-se um antídoto às falsas opiniões.

É verdade que Descartes sofreu grande influência de Montaigne, filósofo que

duvidava da instabilidade das opiniões humanas, mas ao contrário deste, Descartes

depositava grande fé na razão. Ao contrário da dúvida cética, a dúvida cartesiana,

enquanto parte do método, demandava requisitos para ser praticada, “a mente desligada

de preocupações”212, ter atingido idade madura, estar no “sossego seguro num retiro

solitário”213, dispor de “todo vagar para (se) entreter com os pensamentos”214, estar “livre

de paixões que perturbasse”215, nem ter “nada que distraísse”216, e acrescentaríamos

ainda, não ter o “cérebro ofuscado” pelos vapores da negra bile.

Mas se Montaigne também praticou a dúvida, como o fez? Henri Gouhier disse

que “A dúvida é para Montaigne um macio travesseiro: para Descartes é uma

imperfeição que, como tal, é insuportável”217. Koyré traz uma caricatura exagerada sobre

o tema mas vale a pena mostrar. Ele polariza Montaigne e Descartes colocando-se junto

a este último:

A nossa dúvida não será um estado de incerteza negligente – será uma ação, um ato livre, voluntário, e que levaremos às últimas

211 LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Descartes e a Metafísica da Modernidade, p. 22. 212 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, p. 93. 213 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, p. 93. 214 DESCARTES, R. Discurso do Método, II, p. 42.215 DESCARTES, R. Discurso do Método, II, p. 42.216 DESCARTES, R. Discurso do Método, II, p. 42.217 GOUHIER, H. La pensée métaphysique de Descartes, Paris: Vrin, 1999, p. 35.

92

consequências […] Porque a dúvida, o cético e Montaigne sofrem-na. Descartes exerce-a. Ao exercê-la livremente, dominou-a. E assim se libertou dela218.

Popkin ao contrário, diz que os céticos não sofrem a dúvida, mas que Descartes

sofreu-a. Em carta a Elizabeth, ele diz que não precisávamos ficar presos às dúvidas o

tempo todo embora fosse necessário passar por isso uma vez na vida219. Henri Gouhier

vai no mesmo sentido ao afirmar que “a dúvida metódica foi uma lição de nove anos de

aprendizado que, na vida de Descartes, segue o inverno de 1619-1620”220, e que ela

significou um “adeus brutal à infância”221.

Por outro lado, Popkin, citando Samuel Sorbière, diz que "A Époche deve ser

tomada em pequenas doses... como um remédio doce e benigno que nos salva de

opiniões mal dirigidas, e não como um veneno que erradica tudo até os primeiros

princípios de nosso raciocínio"222.

Na mesma direção, Porchat Pereira diz que a postura cética não causa sofrimento.

E não teria nenhum sentido se assim fosse, pois somente quem deposita grande fé na

razão pode ser levado a sofrer com um raciocínio. Porchat diz que mesmo os argumentos

céticos mais terríveis, mais auto-destrutivos, não abalariam a époche pois não se objetiva

em estabelecer a verdade definitiva mas saber como as coisas nos aparecem no momento

em que elas nos aparecem. Vejamos o que ele diz:

Mais importantes ainda pareceram-me os comentários que Sexto acrescenta à sua exposição do caráter autodestrutivo das proposições céticas: elas não têm qualquer significado absoluto, mas tão-somente um significado “relativo e relativo aos céticos” (H.P. I, 207); ao proferi-las, o cético diz o que lhe aparece (tò phainómenon) e anuncia, sem dogmatizar, sua própria experiência, sem nada asserir

218 KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Lisboa: Ed. Presença, 1992, p. 36.219 DESCARTES, “Carta a Elizabeth”, de 28 de junho de 1643. In DESCARTES. Correspondance avec

Élisabeth et autres lettres. Introdução, bibliografia e cronologia de JM BEYSSADE e Michelle BEYSSADE. Paris: GF Flammarion, 1989, pp. 73-76.

220 GOUHIER, H. Descartes: Essais sur le “Discours de la méthode”, La Métaphysique et la morale. Paris: Vrin, 1973, p. 114.

221 GOUHIER, H, idem.222 POPKIN, Richard. “Descartes: sceptique malgré lui” , p. 326.

93

positivamente acerca da real natureza das coisas (H.P. I, 15; 208). Suas proposições exprimem sempre sua experiência, não buscam – nem têm a pretensão de – dizer o real, o que quer que esta palavra possa significar em seu uso filosófico. Ele não as profere como se fossem absolutamente verdadeiras. Seu significado e seu alcance são inteiramente relativos a essa mesma experiência a que remetem. Uma experiência que não pode senão reconhecer aquele que a experiencia. Seu conteúdo é o aparecer que as proposições céticas dizem.223

Para o cético, a certeza é mais testemunho de insanidade que a dúvida. É o que

diz Montaigne: “A impressão da certeza é um testemunho certo da loucura e incerteza

extrema”224. Então se estamos confiantes na razão e objetivamos a certeza, qualquer

falha assumirá o caráter de erro, e até culpa. Precisamos da certeza só enquanto

estivermos muito apegados a nossa falibilidade enquanto desvio, opacidade. Como o

cético tem essa consciência profunda da falibilidade, ele sabe que há uma hora em que se

perde a clareza. Por isso mesmo, o cético não sofre a dúvida. Ao contrário, ele nos atrai

com esta perspectiva festiva da finitude. Esta ideia nos convence de que nós não

perdemos nada por perdermos a fé nas nossas certezas. Mesmo porque, como Foucault

nos mostra, se “no limite, a vida – daí seu caráter radical – é o que é capaz de erro” 225,

talvez não precisemos nos agarrar tanto às certezas.

5.4 Torção imaginativa: astúcia da razão?

Nestes dois últimos tópicos (5.4 e 5.5) traremos dois exemplos de como pensar a

relação entre o método cartesiano e a postura cética. Primeiro analisaremos, guiados

principalmente por Luiz Alves Eva, o argumento cartesiano do sonho. Para introduzir a

primeira questão, as críticas que Gassendi dirigiu a Descartes nos servem de ponte. Diz

Gassendi que Descartes, ao assumir estas posições “céticas”, tinha como que, sem

223 PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. “O argumento da loucura”, p. 30. 224 MONTAIGNE, “Apologia a Raimond Sebond”, p. 522. 225 FOUCAULT, Michel. “La vie: l'expérience et la science”. Dits et Écrits II 1976-1988, p. 1593.

94

querer, assumido os argumentos dos protestantes da Reforma, só que na filosofia. O que

os calvinistas e luteranos defendiam era justamente a certeza subjetiva, apesar deles

colocarem a mesma ideia sob outros termos como “luz interior” ou “qualidade

compulsiva da verdade”226.

Além disso, Gassendi acusa Descartes de ter feito uma distorção do ceticismo, de

ter fingido assumir a dúvida cética, agindo de má-fé e anulando o sentido da dúvida

cética. A resposta de Descartes à acusação é curiosa pois ele inverte o esquema ao dizer

que é a dúvida cética que é fingida por não lograr chegar em nenhum lugar:

Pois, quando disse que era preciso tomar como incertos ou mesmo como falsos todos os testemunhos que recebemos dos sentidos, disse-o seriamente; e isto é tão necessário para entender minhas Meditações, que aquele que não pode, ou não quer admitir isto, não é capaz de objetar coisa alguma que possa receber resposta. Mas, entretanto, é preciso advertir a diferença que existe entre as ações da vida e a pesquisa da verdade, a qual inculquei tantas vezes; pois, quando se trata da conduta da vida, seria algo inteiramente ridículo não se referir aos sentidos; razão pela qual sempre foram ridicularizados aqueles céticos que negligenciavam a tal ponto todas as coisas do mundo que, para impedir que eles próprios se lançassem em precipícios, deviam ser guardados pelos seus amigos; e é por isso que disse em algum lugar: que uma pessoa de bom senso não podia duvidar seriamente dessas coisas...”227.

Sobre estas linhas de Descartes, gostaríamos de chamar atenção a dois aspectos:

primeiro, que ele diz claramente haver uma distinção entre conduta da vida e condução

epistemológica. Então, estas palavras de Descartes vêm bem ao encontro de que possa

haver na meditação dois caminhos, um da “pesquisa da verdade” e o caminho conduzido

pelo homem da vida, Descartes. Este que busca a adesão atenta de um leitor que é uma

“pessoa de bom senso (que) não podia duvidar seriamente dessas coisas”. O segundo

aspecto é que Descartes parece mesmo admitir ter “usado” os argumentos céticos contra

eles mesmos, ou seja, ele não os utiliza do modo como o cético os utiliza mas num

226 POPKIN, Richard. “Descartes: sceptique malgré lui” In História do cetiscismo de Erasmo a Spinoza, pp. 312-313.

227 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, “Objeções e Respostas”, p. 189

95

sentido instrumental. Mas como ele realiza a operação?

Esta questão foi a que levou Luiz Alves Eva a revisitar o argumento do sonho228.

Com o intuito de trazer uma discussão exemplar da relação entre a filosofia cartesiana e

a tradição cética, Eva nos mostra como Descartes realiza uma torção do argumento

cético e de quebra provoca um colapso imaginativo no leitor. Sigamos os passos de sua

argumentação.

A leitura do argumento dos sonhos parece ser a seguinte: agora estou acordado

mas me lembro de ter tido sonhos em que o meu conhecimento das coisas parecia igual

ao que agora experimento, então posso estar sonhando229. Eva argumenta que esta

interpretação, que é a mais usual, mas no entanto não é a mais correta, pressupõe que o

simples exame das minhas percepções naturais bastaria para me conduzir à conclusão de

que a minha crença no mundo exterior é baseada num sonho. Para o autor, esta

argumentação não faz jus ao conhecimento que se possa atribuir a um filósofo como

Descartes, nem muito menos está de acordo com a coerência do texto meditativo tomado

como um todo.

Eva diz que esta argumentação não combina com a postura cética e que utilizar o

argumento do sonho neste sentido seria fazer má leitura do ceticismo. Apoia-se em

Cícero:

“(...) como se alguém pretendesse negar que um homem que acordou saiba perfeitamente que não está mais sonhando, ou que aquele cujo furor se abranda não saiba que as coisas vistas durante o delírio não são verdadeiras! Esse não é o ponto em questão: o que perguntamos é

228 EVA, Luiz Alves. “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, Caderno de História da Filosofia e da Ciência, Campinas, série 3, v.12, no. 1-2, p. 285-313, dez-jan 2002.

229 Esquema inferencial: “(1) Parece-me que na vigília, estado em que me encontro agora, percebo diretamente o mundo real, por oposição ao que ocorre quando me engano com as ilusões dos sonhos.(2) Tive sonhos, dos quais agora me lembro, em que a impressão de conhecer as coisas era exatamente igual à que tenho agora.

(3) Não posso encontrar nenhum indício conclusivo de que o aparente conhecimento do mundo que tenho agora não possa ser um sonho. (Não consigo encontrar marcas suficientemente nítidas para distinguir a vigília do sonho)

(C) Devo aceitar que posso estar sonhando agora.”. Eva, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 287.

96

como as coisas pareciam no momento em que foram vistas”.230

Perguntar sobre como as coisas parecem no momento em que são vistas seria

procurar por um critério do "ato de assentimento"231 da representação, ou seja, a questão

cética está sempre circunstanciada no ponto de vista de como as coisas nos aparecem. E

isto, ressalta Eva, é muito diferente de supor que podemos estar sonhando simplesmente.

E é por isso que, no seu ponto de vista, Descartes não supõe que sonhamos mas sim

propõe que sonhemos.

Discordar desta leitura, e aderir à ideia de que Descartes supõe que estamos

sonhando, é admitir que ele desconheça que estaria a operar, tanto do ponto de vista dos

céticos quanto do ponto de vista dos dogmáticos, uma bobagem. No sentido de que, para

os céticos, isto seria uma distorção do ceticismo e para os dogmáticos, seria um

argumento absurdo.

A leitura de Eva é a de que Descartes tenha operado um "tournement de raisons"

no argumento cético ao projetar ali uma certa ironia que se expressa no imediato convite

ao sonho. Ou até, como disse Gassendi, agindo de maneira por demais artificiosa, de

“má-fé”. Como se ele brincasse com este argumento só para nos incitar a imaginar, posto

que isto poderia ser útil ao seus propósitos.

Eva considera que a condução teria sido a seguinte. Lembremos primeiro do que

Descartes diz a Gassendi: “Pois, quando disse que era preciso tomar como incertos ou

mesmo como falsos todos os testemunhos que recebemos dos sentidos, disse-o

seriamente”232. Pois bem, o que Eva faz é incluir esta premissa no esquema da inferência.

Vejamos:

(P1) Parece-me que na vigília, estado em que me encontro agora, percebo diretamente o mundo real, por oposição ao que ocorre quando me engano com as ilusões dos sonhos.

230 CICERO, De Natura Deorum Academica [Acad], Ed. H. Rackham, Loeb Classical Edition, Cambridge: Harvard University Press, 1933, p. 88-89 apud EVA, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 293.

231 EVA, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 293. 232 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, “Objeções e Respostas”, p. 189.

97

(P1) Tive sonhos, dos quais agora me lembro, em que a impressão de conhecer as coisas era exatamente igual à que tenho agora.(P1) Não posso encontrar nenhum indício conclusivo de que o aparente conhecimento do mundo que tenho agora não possa ser um sonho. (Não consigo encontrar marcas suficientemente nítidas para distinguir a vigília do sonho).(C1) É duvidoso qual seja exatamente agora a natureza desta percepção (Posso agora imaginar que estou sonhando com uma verossimilhança tal que quase me convence).(P2) Devo considerar provisoriamente o duvidoso como falso.(C2) Estou sonhando.233

Notemos que a inclusão de P2 nos dirige à conclusão inevitável C2.

Segundo Eva, o propósito desta mudança seria provocar um colapso imaginativo

para preparar o leitor para o objetivo maior de Descartes que era a dúvida hiperbólica. O

colapso é o artifício a partir do qual as certezas posteriores ganham estatuto melhor. Na

sexta meditação a hipótese do sonho vai ser descartada como ridícula em prol da

harmonia das impressões em vigília que não ocorrem nos sonhos234.

Parece-nos que a tese de Eva vem bem a calhar aos nossos propósitos. Para o

historiador da tradição cética, a tese tem o mérito de demonstrar que não é plausível

afirmar, sem mais nem menos, que Descartes utiliza argumentos tipicamente céticos. Do

233 EVA, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 301. negrito nosso. 234 Eis o trecho: “E devo rejeitar todas as dúvidas desses dias passados como hiperbólicas e ridículas

[dignas de riso, na tradução do latim], particularmente esta incerteza tão geral no que diz respeito ao sono que eu não podia distinguir da vigília: pois agora encontro uma diferença muito notável no fato de que nossa memória não pode jamais ligar nem juntar nossos sonhos uns aos outros e com toda sequência de nossa vida, assim como costuma juntar as coisas que nos acontecem quando despertos. E, com efeito, se alguém, quando eu estou acordado, me aparecesse de súbito e desaparecesse da mesma maneira, como fazem as imagens que vejo ao dormir, de modo que eu não pudesse notar nem de onde viesse, nem para onde fosse, não seria sem razão que eu consideraria mais um espectro ou um fantasma formado no meu cérebro e semelhante àqueles que aí se formam quando durmo do que um verdadeiro homem. Mas quando conheço coisas das quais conheço distintamente, o lugar de onde vem e aquele onde estão, o tempo no qual elas me aparecem e quando, sem nenhuma interrupção, posso ligar o sentimento que delas tenho com a sequência do resto de minha vida, estou inteiramente certo de que as percebo em vigília e de modo algum em sonho. E não devo de maneira alguma duvidar da verdade dessas coisas, se depois de haver convocado todos os meus sentidos, minha memória e meu entendimento para examiná-las, nada me for apresentado por algum deles que esteja em oposição com o que me fora apresentado pelos outros. Pois, do fato de que Deus não é enganador segue-se necessariamente que nisso não sou enganado”. DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, I, pp. 149-150.

98

nosso ponto de vista, no entanto, a tese tem o mérito235 de nos fornecer mais um

argumento sobre a dupla trama desta primeira meditação. É claro que Eva não coloca a

questão nestes termos. O que não nos impede de acatarmos a sua sugestão de que a

atitude cartesiana do “sonhemos” tenha um duplo propósito, um ligado ao exercício da

clareza e distinção, propósito remontado a posteriori na sexta meditação, e um outro,

que tenta produzir uma adesão maior do leitor às certezas que virão ao colocar em ato

um colapso imaginativo.

Ademais, o que há de realmente sedutor neste argumento de Eva é que ele se

coaduna muito bem com outros dois argumentos que evocamos ao longo do trabalho. O

primeiro, a tese de Inácio de Loyola sobre o lugar da imagem nos exercícios de ascese. É

um pouco redundante explicitar, mas a associação que queremos demonstrar passa pela

ideia de que a sequência de imagens apresentadas no parágrafo em questão tenha como

culminação um convite imaginativo: sonhemos! Por outro lado, a tese de Michelle

Beyssade de que é o texto latino que nos permite visualizar a dupla ordem é aqui

confirmada pois, neste caso, é condição sine qua non que “Age ergo somniemus” fosse

traduzido pelo imperativo “sonhemos”. Além disso, podemos ponderar que se existe uma

dupla trama, obviamente, ela não manisfestar-se-ia apenas na questão da loucura mas em

outros momentos236 desta primeira meditação.

Além deste recurso estratégico identificado por este autor, podemos apontar

também outro. Existe uma tensão que é alimentada pela incerteza de que chegaremos em

algum lugar ao final do exercício. No final da primeira meditação, o corte entre um dia e

outro (de exercício) é encerrado com uma referência ao sonho, ao dormir. Numa matriz

simbólica, o aceno traz o vínculo com a ideia da passagem, da morte, lembrando que a

deusa da noite e da escuridão, Nix, teve dois filhos sem pai: Tânatos, deus da morte e

Hypnos, deus do sono, pai de Morfeu, que preside os sonhos. Daí Foucault dizer que

“existe a eterna tentação do sono e do abandono às quimeras que ameaçam a razão e

235 A propósito de mérito, convém lembrar que o referido artigo do estudioso do ceticismo ganhou o prêmio do Concurso Ezequiel de Olaso, em Buenos Aires, 2001.

236 Sobre o argumento da loucura, Eva não entra no seu mérito, apenas cita o assunto muito de passagem em nota de rodapé, referindo-se a ele como o dialético contra-argumento da loucura.

99

que são conjuradas pela decisão sempre renovada de abrir os olhos para o verdadeiro.”237

Esta leitura é bem visível pela forma como Descartes termina a primeira meditação:

Mas este desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E, assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e evito despertar desta sonolência, de medo de que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranquilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas”238.

É claro, pois, o propósito com que Descartes quer expor a grande dificuldade de

submeter-se a uma dúvida tão radical. No fim do dia, o pensamento do meditador se

volta ao medo, às dificuldades do projeto, mas ao mesmo tempo o espírito quer se

libertar de suas antigas crenças, de suas falsas certezas. Ele se vê em cheque. Exercitar a

dúvida é “árduo e trabalhoso” mas por outro lado, a liberdade de que se pensava gozar

antes do exercício do método é “liberdade imaginária”239. A verdadeira liberdade é a da

deliberação de buscar a verdade. Busca esta que neste final de primeira meditação

significa ainda apenas agitar-se nas inextricáveis “trevas das dificuldades”240. O medo da

morte joga com este medo de que a razão caia no sono profundo. Foucault liga este sono

profundo à ideia da desrazão. Simbolicamente falando, o medo da morte liga-se ao medo

da razão cair no sono profundo da desrazão. E se tomarmos a loucura no sentido

negativo da desrazão, ela bem poderia ser análoga à morte. Por isso ele diz que esta

primeira meditação é “envolvida por esta vontade de despertar que, a todo momento, é

um desgrudar voluntário das ilusões da loucura”241.

237 FOUCAULT, Michel. História da Loucura, p. 142.238 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, I, p. 97. 239 DESCARTES, R. Idem, p. 97.240 DESCARTES, R. Idem, p. 97.241 FOUCAULT, Michel. História da Loucura, p. 142.

100

5.5 Descartes cético?

É necessário que se diga que a contraposição entre Descartes cético e Descartes

dogmático é uma simplificação que acaba por confundir o problema, desviando-o na

direção de um falso antagonismo. No caso da metafísica, vimos um exemplo a partir do

qual é quase impossível conceber a dúvida cartesiana como um dúvida simplesmente

cética. Mas é importante não esquecer que a metafísica, embora perfaça uma bela obra,

não era, para Descartes, o melhor de sua contribuição, mas sim a ciência.

No âmbito da física, existem vários indícios que apontam para o fato de que

Descartes tinha consciência do alcance limitado de suas verdades. Acompanhemos este

belo trecho de uma carta que o filósofo escreve a Mersenne:

Se conheceis algum autor que tenha particularmente recolhido as diversas observações que foram feitas dos Cometas, agradeceria também que me informásseis disso; pois há dois ou três meses que me empenho bastante no estudo do Céu; e após ter-me satisfeito com relação à sua natureza e à dos Astros que vemos, e a muitas outras coisas que eu não tinha sequer ousado esperar há alguns anos, tornei-me tão arrojado que agora ouso procurar a causa da situação em cada Estrela fixa. Porque, embora elas pareçam muito regularmente dispersas aqui e ali no Céu, não duvido que todavia haja uma ordem natural entre elas, a qual é regular e determinada. E o conhecimento desta ordem é a chave e o fundamento do mais alto e perfeito Saber que os homens podem ter a respeito das coisas materiais; tanto que, por seu intermédio, poderíamos conhece a priori todas as diversas formas e essências dos corpos terrestres, enquanto que, sem ele, temos de contentar-nos com adivinhá-las a posteriori, e pelos seus efeitos.”242

O relato desta espécie de sonho cartesiano de ordenar as estrelas do céu nos

revela dois elementos interessantes. O primeiro, de que seria muito difícil conceber

como cético alguém que buscou a ordem de maneira tão obstinada243. Por outro lado, a

242 DESCARTES, R. “Carta a Mersenne” de 10 de maio de 1632 apud BEYSSADE, Michelle. Descartes, Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 67. Itálico nosso.

243 Aliás, vale citar três felizes frases que Michelle Beyssade utiliza quando, ao selecionar alguns fragmentos de textos cartesianos, lhes dá os seguintes títulos: “Um sonho: a ordem nas coisas”; “Uma questão: a ordem nas palavras”; “Um empreendimento: a ordem nos conhecimentos”.

101

segunda frase em itálico nos revela que Descartes admitia o uso de hipóteses

demonstradas a posteriori, ou seja, Descartes teria lançado mão de hipóteses explicativas

que não tinham por base princípios dedutivos e verdadeiros mas suposições.

Para quem costuma visitar os textos mais conhecidos de Descartes como

Discurso do Método, Meditações Metafísicas e Regras para a direção do espírito, sem

tomar contato com seus tratados científicos, ou mesmo com os Princípios, pode se

surpreender ao saber que Descartes tinha plena consciência de que a razão não poderia

alcançar todas as verdades, mesmo seguindo o método certo, e no entanto, não faltam

exemplos de declarações cartesianas que o demonstrem.

Para mostrar que ele sabia que não poderia garantir que chegou à verdade última

das coisas, Descartes usa uma imagem muito curiosa exposta na terceira parte, artigo 45,

dos Princípios244. Ali Descartes diz que a diferença entre as máquinas produzidas pelos

homens e aquelas produzidas por Deus, o universo, o planeta e os corpos animados, é

uma questão de escala. Assim, nos corpos humanos os mecanismos seriam tão pequenos

que se tornariam invisíveis, e no caso do universo, dar-se-ia o inverso. Ou seja, o caráter

específico da máquina divina, segundo Descartes, era o fato de ser parcialmente visível,

embora possuísse as mesmas propriedades dos mecanismos das máquinas feitas pelo

homem: figura, grandeza e movimento, máquinas regidas, portanto, pelos mesmos

princípios de geometria e mecânica. A ideia da física cartesiana era então a de deduzir as

causas a partir dos efeitos, baseando-se no princípio de que, as relações que se

estabelecem entre causas e efeitos nas máquinas visíveis são as mesmas das máquinas

parcialmente visíveis.

Estamos, pois, bem distantes do método anunciado no Discurso. O método

anunciado era essencialmente matemático, dedutivo, tratava-se de longas cadeias de

razões enumeradas segundo uma ordem rigorosa. Neste artigo, Descartes fala em

descobrir a causa pelos efeitos, ou seja, lançar mão de hipóteses empíricas comprovadas

a posteriori. É verdade que no âmbito da física seria impossível prescindir da

BEYSSADE, Michelle. Descartes, Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 67, 69, 70. 244 DESCARTES, R. Principios, III, art. 45.

102

observação, ainda mais no século XVII. Descartes mesmo o diz: “exigir de mim

demonstrações geométricas numa matéria que depende da física é querer que eu faça

coisas impossíveis”245, ou seja, ele sabia que a física era algo mais que a aplicação da

geometria.

Mas, se Descartes sabia disso – que o método dedutivo era insuficiente para

alcançar todas as verdades - porque não dizê-lo nas obras em que ele difunde

amplamente seu método? Este, por exemplo, é o tipo de questão que mobilizou M.

Gueroult, Z. Loparic, N. K. Smith, J. Hintikka, entre outros. Peguemos o exemplo de

polêmica trazida por Z. Loparic em Descartes Heurístico. Ali o autor trava uma

discussão bibliográfica com M. Gueroult. A divergência de base é que, segundo M.

Gueroult, Descartes pretendia produzir uma física certa e não simplesmente provável, ao

contrário de Loparic que acreditava que Descartes desejava que tudo que ele escreveu

fosse tomado como hipóteses, talvez muito distantes da verdade, e que todas as coisas

deduzidas destas hipóteses fossem conformes à experiência. Portanto, ele não ignorava a

limitação da sua ciência, apenas estava muito mais empenhado na divulgação do método

hipotético dedutivo, que afinal de contas, havia lhe logrado algum êxito. Loparic insiste

que isolar o núcleo de verdades do restante da obra cartesiana é negligenciar toda a

metodologia que Descartes desenvolveu, “e desconhecendo a ordem das suas

dificuldades reais, envolver-se na propaganda das virtudes do mecanismo; propaganda

aliás praticamente indispensável para a sobrevivência de uma teoria debutante, assediada

por dificuldades insolúveis” 246.

Tentando ainda explicar o caráter de sua física, Descartes mobiliza uma analogia

particularmente instigante. Lembremos que anteriormente quando lançamos a imagem

da máquina cartesiana, falou-se que a física tentaria reproduzir os mesmos efeitos

sensíveis produzidos pelo artefato divino, ou seja, ela quer ser um saber por imitação.

Nas Regras para a direção do Espírito247 Descartes nos dá algumas pistas deste saber por

imitação fazendo alusão a uma imagem mitológica. A máquina imita um episódio do

245 DESCARTES, R. em carta a Mersenne de 27 de maio de 1638. 246 LOPARIC, Z. Descartes Heurístico, pg. 74.247 DESCARTES, R. “Regra XIII”, AT, X, pp 435-6 apud LOPARIC, Z. Descartes Heurístico, pg. 58.

103

inferno, na qual Tântalo é punido pelos Deuses, fazendo com que ele, apesar de ter sede,

nunca consiga beber da água (através de um mecanismo hidráulico que faz com que o

vaso, que está à altura da boca de Tântalo, ao se encher de água, derrame imediatamente,

fazendo com que Tântalo nunca beba a água). Este mecanismo pretende representar os

suplícios do inferno, mas, obviamente, não é a imagem do inferno. O princípio da

imitação da física cartesiana seria justamente este, a imitação do suplício de Tântalo.

Ao usar esta metáfora, Descartes quer mostrar que a sua física não pretende

construir uma imagem fiel do inferno, mas deseja construir um mecanismo hidráulico

que reproduza o suplício de Tântalo. Esta máquina imaginária quer imitar a máquina do

mundo, reproduzindo os mesmos efeitos ali observados. É uma espécie de código que

ela quer inventar. Então, como nos mostra Loparic, tal máquina não pode pretender a

certeza de estar utilizando o único código verdadeiro, porque enquanto teoria

matemática, a física pode pretender a verdade, num mundo possível. E é nesse sentido

que ele sustenta que a física cartesiana não pretendia ser uma física absolutamente

certa248.

Em suma, o objetivo deste tópico era mostrar que, mesmo admitindo-se que

Descartes tinha consciência de que não passava de uma ilusão a crença de que a razão

pudesse libertar o espírito de sua errância, tanto na ciência como na ética, este fato não o

torna um cético. Mas um homem consciente do limite. Em carta a Elizabeth, Descartes

declara: “nunca posso ter certeza de que optei pelo melhor; o que põe em causa a

possibilidade de uma moral como ciência que o discurso anunciava”249. Consideramos

sintomático que ele tenha escolhido finalizar o grande texto das Meditações com a frase:

Mas, como a necessidade dos afazeres nos obriga amiúde a nos determinar antes que tenhamos tido o lazer de examiná-las tão cuidadosamente, é preciso confessar que a vida do homem está sujeita a falhar muito frequentemente nas coisas particulares; e, enfim, é preciso reconhecer a imperfeição e a fraqueza de nossa natureza250.

248 Cf LOPARIC, Z, idem, p. 58-61.249 DESCARTES, R. “Carta a Elizabeth”, de 04/08/45. In: DESCARTES, R. Obras Escolhidas, p. 319.250 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, I, p. 150.

104

...

Trouxemos esta questão do erro neste momento porque, para Foucault, a relação

do sujeito com a verdade e o erro assume importância vital para o nosso problema de

estudo. A errância é umas das últimas imagens que Foucault associou ao homem,

conforme a frase que trouxemos na epígrafe “No limite, a vida – daí seu caráter radical –

é o que é capaz de erro”251. A figura de Descartes nas histórias foucaultianas está

claramente associada ao momento em que o critério da verdade e da certeza passa a

habitar o sujeito. Nestes cenários, Descartes, enquanto cavaleiro da certeza, traz a ilusão

de que, através do exercício da razão, podemos nos livrar do erro, até do erro moral. Mas

não só, em um de seus últimos cursos, não sem razão, Foucault mostra Descartes

também como aquele que diz o verdadeiro, conforme veremos.

251 FOUCAULT, Michel. “La vie: l'expérience et la sciense”. Dits et Écrits II 1976-1988, p. 1593.

105

CAPÍTULO 6

COUP DE FORCE

(Isto é ) o que há de mais audacioso, de mais sedutor nessa tentativa: E o que lhe

confere também sua admirável tensão. Mas é também, digo isto sem brincar, o que

há de mais louco no seu projeto252.

Jacques Derrida

O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão253.

Friedrich Nietzsche

Este capítulo introduz a parte da pesquisa na qual abordaremos o problema

cartesiano inserido no interior da temática de História da Loucura na Idade Clássica. No

primeiro tópico (6.1), traremos a crítica de Derrida ao projeto da tese de doutorado de

Foucault, tomado como uma impossível arqueologia do silêncio. Após, traremos alguns

indícios sobre o lugar filosófico a partir do qual Derrida pôde realizar sua crítica (6.2).

Na tentativa de compreender a natureza desta obra que se considera a primeira criação

filosófica de Foucault, discutiremos alguns aspectos fundamentais deste projeto (6.3).

No último tópico (6.4), seguindo o mesmo intuito, arriscaremos uma interpretação das

252 DERRIDA, J, “Cogito e História da Loucura”, p. 16.253 NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, Sâo Paulo, Cia das Letras, 2010, p. 53.

106

palavras pronunciadas por Foucault em 1963 na ocasião em que brindou o público

francês com uma série de cinco emissões radiofônicas sobre sua tese.

6.1 Derrida e a impossibilidade da arqueologia do silêncio

Em 1963, quando Jacques Derrida profere sua conferência, inicia-a

reconhecendo-se discípulo de Michel Foucault254. Confessa-se incomodado como a

“enfant”255 que, mal começa a falar, já se sente flagrado em erro. Contudo, ciente de que

este incômodo lhe vem, sobretudo, não diretamente pela figura de Foucault, mas por via

do “mestre que fala nele antes dele para censurá-lo”, Derrida decide que é hora de

“quebrar o espelho” e começar a falar. Num gesto típico de sua postura filosófica,

Derrida traz este desconforto à baila tomando-o como traço de uma presença (do mestre)

que (já) se tornara ausência: “Essa interminável desventura do discípulo se deve talvez a

que ele não sabe ou ainda esconde de si mesmo, que, assim como a vida verdadeira, o

mestre talvez esteja sempre ausente”256. Não é fortuito que Derrida inicie sua fala

mencionando a questão da ausência. A ideia de ausência e presença está no coração da

démarche derridiana e da sua leitura do cogito cartesiano.

Os objetivos de Derrida, de um modo geral são dois. Em primeiro lugar, refutar a

leitura foucaultiana do cogito e a suposta rejeição por parte do meditador da experiência

da loucura, e em segundo lugar, mostrar a inviabilidade da tese defendida em História

da Loucura. Neste tópico daremos ênfase ao segundo objetivo.

Todo esforço de Derrida será o de mostrar como Foucault, ao tentar denunciar o

enclausuramento e a segregação da loucura, acaba por enclausurá-la num sentido

determinado. Lembremos rapidamente o percurso da obra para situar a questão da

254 Sobre este tema, vale a leitura da entrevista que Jacques Derrida concede a Elizabeth Roudinesco, publicada sob o título “De que amanhã....”, que traz o tópico “Escolher sua herança”.

255 Conforme nos lembra a nota do tradutor da edição brasileira, o vocábulo francês “enfant”, vindo do latim “infans”, não falante, cobre bem o sentido específico que Derrida quer enfatizar aqui. Cf DERRIDA, J. “Cogito e História da Loucura”, p. 63.

256 DERRIDA, J, “Cogito e História da Loucura”, p. 12, itálico nosso.

107

centralidade do par razão/desrazão. Durante o Renascimento os loucos tinham uma vida

errante e a loucura era tida como uma experiência a ser interpretada, ou seja, a loucura

trazia um discurso consigo que podia ensinar algo sobre a experiência humana. Fazendo

coincidir o acontecimento da grande internação com a exclusão da loucura da ordem das

razões, a Idade Clássica inaugura, segundo Foucault, uma nova era, a da partilha

razão/desrazão. Esta partilha é concomitante ao silenciamento e segregação dos loucos e

outras formas de vida desarrazoadas no Hospital Geral, que não é, na verdade, uma

instituição terapêutica, mas uma casa de reclusão. A loucura agora é interpretada como

desvio moral, opção moral, desrazão. No final do século XVIII, com o desenvolvimento

da psiquiatria, os loucos ganharão estatuto de doentes e serão separados dos demais

internos passando a receber tratamento médico sob controle institucional. Entre a tomada

da loucura como doença e a sua experiência errante no Renascimento há a partilha

razão/desrazão.

Com efeito, à descontinuidade do pensamento, à alternância entre instantes mais

ou menos sensatos, a esta “audácia hiperbólica”, ao jogo de nuances entre razão e

desrazão, Derrida contrapõe a violência da imagem da razão e da desrazão determinadas

sob a forma de estrutura histórica. A impossibilidade desta contradição determinada

desencadearia a impossibilidade da tese de Foucault. Diz Derrida:

Ao querermos escrever a história da decisão, da partilha, da diferença, corremos o risco de transformar a divisão em acontecimento ou em estrutura sobrevindo à unidade de uma presença originária; e de confirmar assim a metafísica em sua operação fundamental.

Na verdade, para que uma ou outra dessas hipóteses seja verdadeira e para que se possa escolher entre uma e outra, é preciso supor, geralmente, que a razão pode ter um contrário, um outro da razão, que ela possa se constituir ou descobrir um contrário, e que a oposição da razão e de seu outro seja de simetria. Está aí o fundo das coisas257.

Com efeito, Derrida questiona o que é fazer a história da partilha razão/desrazão.

257 DERRIDA, J. “Cogito e História da Loucura”, p. 26.

108

Fazer história da origem da história? Aquilo que determinaria a partilha, o golpe de

força, o enclausuramento, aos olhos de Derrida funcionaria como um inconveniente

centro da estrutura, uma espécie de contradição em termos, ainda mais quando se toma

como divisor de águas da estrutura um acontecimento histórico. Derrida quer saber qual

o privilégio da filosofia em relação aos acontecimentos históricos: “Não sei até que

ponto Foucault concordaria em dizer que a condição prévia de uma resposta a essas

questões passa primeiro pela análise interna e autônoma do conteúdo filosófico do

discurso filosófico”258.

Para Derrida, Foucault buscou fazer uma história evitando tomar a loucura como

objeto do saber psiquiátrico para não cair na armadilha de tomá-la já objetivada, exilada

como o outro da linguagem. Derrida comenta que, se por um lado, o gesto “audacioso”

de fazer a loucura falando de si é muito “sedutor” e é o que confere uma “admirável

tensão” à obra, por outro, isto é “o que há de mais louco” neste projeto. Derrida dirá que

esta dificuldade assombra o projeto da História da Loucura porque não é possível fazer

uma história contra a razão, porque o conceito de história é racional, não se pode

denunciar a ordem dentro da ordem porque a ordem perpassa toda a linguagem européia,

é a linguagem da razão ocidental. Em resumo, não adiantaria Foucault fazer uma história

que tem por objetivo deixar o outro falar porque o reconhecimento do outro em sua

alteridade a reforça, uma vez que a alteridade é concebida dentro da própria linguagem.

É como se Derrida perguntasse: se os loucos foram silenciados e se a arqueologia é uma

ordem, fazer a arqueologia deste silêncio não seria a repetição de um “ato perpetrado

contra a loucura”259? As próprias palavras de Foucault utilizadas no Prefácio de 1961 são

citadas para mostrar que o autor era cônscio desta limitação de seu projeto: “A percepção

que busca apoderar-se deles [dos loucos] em seu estado selvagem pertence

necessariamente a um mundo que já os capturou. A liberdade da loucura só se ouve do

alto da fortaleza que a mantém prisioneira.”260

Por estas razões, compreende-se que Derrida mostre-se perplexo diante do “golpe

258 DERRIDA, J. “Cogito e História da Loucura”, p. 33. Itálicos nossos.259 DERRIDA, J. “Cogito e História da Loucura”, p. 17. 260 FOUCAULT, M. História da Loucura apud DERRIDA ,J. “Cogito e História da Loucura”, p. 20.

109

de força” proposto por Foucault. Para ele, o que Foucault não poderia deixar de ter visto

é “que toda história não possa ser, em última instância, outra coisa que a história do

sentido, ou seja, da Razão em geral […] a significação mais geral de uma dificuldade por

ele atribuída a uma experiência clássica vale bem além da idade clássica”261. Para

Derrida, a separação entre loucura e razão teria tido lugar, não com Descartes, mas desde

quando a filosofia instala a divisão entre Sócrates e os pré-socráticos e inicia-se a

história da filosofia. Desde então, o logos é configurado numa matriz, as regras que

condicionam todo um discurso filosófico, uma episteme no sentido derridiano do termo,

um projeto que unifica toda a história da filosofia que ele chamará de “metafísica da

presença”. Algo que se confundiria com o que chamamos de razão.

6.2 Derrida e a Metafísica da Presença

A desconstrução, projeto da filosofia derridiana, é a tentativa de explicitar a

gramática que dá suporte aos textos filosóficos. Mas a partir de que lugar seria possível

fazê-lo? Derrida mesmo se pergunta: “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar não

filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda tratar

de filosofia? Esse lugar não terá sido sempre, previamente, ocupado pela filosofia?”262.

Em entrevista a Henri Ronse, em 1967, quando este lhe pergunta sobre o lugar de

onde fala a sua crítica, Derrida afirma que procura ficar no limite do discurso filosófico,

nas suas margens. Ele tenta o gesto “necessariamente duplo”263 de estar ao mesmo tempo

no interior e no exterior do texto, tomando-o como um campo de forças sob um regime

de ordenamento.

Eu tento respeitar o mais rigorosamente possível o jogo interior e as regras desses filosofemas ou epistememas fazendo-os insinuar-se (fugir) sem os maltratar até o ponto do seu não-pertencimento, de seu cansaço, de sua clausura. “Desconstruir” a

261 DERRIDA, J. “Cogito e História da Loucura”, p. 63, nota 5. 262 DERRIDA, Margens da Filosofia, p. 14.263 DERRIDA, Positions, p. 14.

110

filosofia seria, assim, pensar a genealogia estruturada dos seus conceitos de maneira a mais fiel, a mais interior, mas ao mesmo tempo, a partir de um exterior para ela inqualificável, inominável, determinar o que esta história pode dissimular ou interditar, fazendo-se história por esta repressão, de algum modo, interessada264.

Notamos que o exercício de identificar no texto um campo de forças de oposições

conceituais, forçá-lo até o seu limite, fazendo-o tocar aquilo contra o qual ele próprio se

volta, foi praticado com a “narrativa” foucaultiana. Esta postura é devedora de uma

posição que Derrida assume em meio a seus contemporâneos profundamente marcada

pela leitura freudiana da psicanálise, fonte a partir da qual Derrida desenvolve a marca

maior de seu método, a interessante articulação entre psicanálise e filosofia.

De fato, a presença de Freud na escritura derridiana se faz presente do início ao

fim de seu percurso. Inicia-se em 1966 com “Freud e a cena da escritura” até em seus

últimos escritos como “Estados da Alma da Psicanálise” de 2000, passando por “O

cartão postal: de Sócrates a Freud e além” de 1981, Mal de arquivo de 1995 e

“Resistência à psicanálise” de 1996, além do já citado “Fazer justiça a Freud” de 1991.

Neste sentido, a desconstrução lança-se à busca de uma espécie de inconsciente do texto

filosófico, significado que também pode ser retido destas palavras de Kant:

Não raro acontece, tanto na conversa corrente como em escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não determinou suficientemente seu conceito e, assim, por vezes, falou ou até pensou contra sua própria intenção265.

Mas o que significa este descolamento da própria intenção do autor? E como

identificar os tais traços que o fazem visível? Certamente este método muito estranharia,

por exemplo, Victor Goldschmidt para quem “as asserções de um sistema não podem ter

causas, tanto próximas quanto imaginárias, senão conhecidas do filósofo e alegadas por

ele”266. Para Derrida, a leitura de um texto filosófico é mais do que a exposição de uma

264 DERRIDA, Positions, p. 15.265 KANT, I. Crítica da Razão Pura, A 314.266 GOLDSCHMIDT, V. A religião de Platão, “Tempo histórico e tempo lógico”, p. 141.

111

ordem, é a exposição de uma fissura. A ideia não é apontar as falhas do texto, apontar as

limitações e contradições inerentes à argumentação do autor, mas tomar o texto na sua

relação com ele mesmo e mostrar como ali estão presentes questões que o autor mobiliza

sem saber.

A influência fundamental de Freud se dará via transferência de um modelo de

uma psique radicalmente distinta do conceito de consciência, principalmente devido ao

seu conceito de memória. Com Freud, ele aprende que por trás do traço da memória não

existe o fato. A consciência tem acesso ao traço interior da memória, não acesso ao

acontecimento. As lembranças são reconstituições feitas perpetuamente a posteriori. O

tempo do sujeito freudiano é um tempo a posteriori e em camadas, tempo pontilhado,

lacunoso. Simplificando, diríamos que a memória, segundo Freud, não constitui uma

espécie de arquivo mas um sistema dinâmico de relações que se constituem sempre a

posteriori, o que significa dizer que a consciência é instância de criação, ou melhor, re-

criação contínua dos acontecimentos do passado a partir da identidade presente no

momento desta significação. Daí Derrida retira sua ideia de interpretação infinita de um

texto267. Contínua interpretação de um texto que nunca esteve presente.

É nestas concepções, dentre outras razões, que Derrida radica a compreensão de

que, de certa forma, tudo é texto. Se o acontecimento só existe como acontecimento

interpretado pelo homem, e se toda interpretação se dá no contexto da re-significação

contínua mediante os valores do presente, o liame entre texto e contexto se esfumaça. Do

mesmo modo, é também a partir deste ponto que se pode pensar a resistência de Derrida

em estabelecer um corte entre o dentro e o fora da história, o interior e o exterior, a

filosofia e a história, etc. Qualquer tentativa de endurecimento de quaisquer destas

dicotomias, para Derrida, é vista como atitude logocêntrica, que hipostasia a ideia de

sujeito e de razão, tal como se observou em sua crítica a Foucault.

Tendo em vista esclarecer a resistência de Derrida à suposta exclusão da loucura

por parte de Descartes, apresentaremos sua leitura do cogito. Para Derrida, o pensamento

267 Foucault também traz a ideia de interpretação infinita mas ele a ancora no perspectivismo de Nietzsche e na história.

112

cartesiano se dá em casos. E graças a isto, o gênio maligno, em sua louca “audácia

hiperbólica” instala a indeterminação entre a razão e a desrazão. A afirmação é clara:

“...em seu instante, em sua instância própria, o ato do Cogito vale mesmo se sou

louco...”268. Isto denota que o filósofo conjuga em sua análise da metafísica cartesiana

tanto aspectos da leitura heideggeriana quanto da que privilegia o papel da ideia de

instante na filosofia de Descartes.

Lembremos das palavras de Descartes: “cumpre enfim concluir e ter por

constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as

vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.”269 Derrida nos lembra de que

“desde o momento em que ele [Descartes] tem que temporalizar o cogito que ele próprio

vale apenas no momento da intuição, do pensamento atento a si próprio, nesse ponto ou

nessa ponta do instante”270. Nesta visão, o cogito como intuição se liga diretamente à sua

temporalização. O que é encontrado com o cogito é uma certeza instantânea, é uma

verdade que internalizará sua certeza somente no instante em que ocorre. Trata-se da

mesma leitura conduzida na década de 30 por Wahl que afirma que “O cogito é a

afirmação de uma certeza instantânea, um julgamento, um raciocínio reunido num

instante”271. Assim, a cada ato instantâneo do pensamento, corresponderá a certeza da

existência.

Se o cogito possui caráter evanescente e descontínuo, e se ele só é válido em sua

instância, “é por um ato instantâneo do meu pensamento que meu espírito poderá se

livrar de sua dúvida. Mas a dúvida somente terá sido um ato instantâneo” 272. É assim que

Derrida entende a loucura como um possível caso, uma manifestação episódica do

pensamento. A loucura é tomada no sentido das extravagâncias, a errância hiperbólica e

louca do gênio maligno. Por isso ele dirá que “nada é menos tranqüilizador que o cogito

em seu momento inaugural e próprio”273. Só Deus garantiria a certeza e a continuidade ao

pensamento. A clareza, neste sentido, é a presença manifesta da ideia ao meu espírito. O

268 DERRIDA, “Cogito e História da Loucura”, p. 50, itálico nosso.269 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas , II, p. 100. 270 DERRIDA, “Cogito e História da Loucura”, p. 54.271 WAHL, Jean; Du rôle de l'idée d'instant dans la philosophie de Descartes, p. 5.272 WAHL, Jean; Du rôle de l'idée d'instant dans la philosophie de Descartes, p. 1.273 DERRIDA, “Cogito e História da Loucura”, p. 52.

113

que se tem por uma continuidade do pensamento é na verdade uma sucessão, um

movimento ininterrupto que a cada instante é atualizado por Deus, único pensamento

imóvel e contínuo274. O que 'é', é dado a cada instante.

Assim, Derrida dirá que o cogito e a certeza escapam da loucura não pelo motivo

alegado por Foucault (“eu que penso, não posso estar louco”), mas porque “Em todos os

sentidos desta palavra, a loucura é apenas um caso do pensamento (no pensamento)” 275.

Depois, citando o Discurso do Método, diz que as extravagâncias trazidas pelos céticos

não podem afrontar a certeza assim conquistada. Neste ponto de sua argumentação, pelo

menos no que se refere ao cogito, fica claro que Derrida, tal como sugere Alquié, toma a

loucura no sentido ameno da extravagância do delírio, aquela em que o homem delira

mas não perde o liame de sua memória, sentido retomado na figura do gênio maligno na

etapa hiperbólica da dúvida.

A leitura derridiana do cogito ancora-se na ideia de presença. A ideia é que toda

linguagem traz em si uma metafísica porque o “ser” é tornado presente através da

significação. É importante ressaltar que a associação do cogito à idéia de presença fora

traduzida por Heidegger, filósofo no qual Derrida, dentre outros de sua geração,

inclusive Foucault, apoiou suas ideias276. A expressão “metafísica da presença” é usada

por Derrida para designar a própria história da filosofia ocidental mas que tem em

Descartes seu apogeu porque com o cogito, a era histórica do signo encontra seu ponto

de maturidade. É quando a presença aparece como presença a si mesma no interior da

subjetividade. Trata-se da conhecida representação heideggeriana do cogito como “tomar

posse de algo, apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-

si (Sich-zu-stellen) [lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-

diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”277. O que importa

ressaltar é que a noção de representação aqui não está sendo entendida como a presença

de uma ausência, mas como repetição da presença, uma presença que se renova. É neste

sentido que Derrida diz:

274 Cf WAHL, Jean; Du rôle de l'idée d'instant dans la philosophie de Descartes, p. 5-10.275 DERRIDA, “Cogito e História da Loucura”, p. 51.276 Inclusive no intuito de tecer a sua crítica ao pensamento representativo.277 HEIDEGGER, Martin. Nietzsche - Vol. II. São Paulo, Forense, 2007, p 110.

114

A idealidade da forma da presença implica, com efeito, que ela possa se re-petir ao infinito, que seu retorno, como retorno do mesmo, seja infinitamente necessário e inscrito na presença como tal; que o retorno seja retorno de um presente que se reterá em um movimento infinito de retenção278.

Se o cogito instaura a presença diante do eu, o sujeito, nesta acepção nada mais

seria que o modo de organização dessa presença.

Ademais, se para Derrida não existe pensamento anterior à palavra e a presença

no cogito se dá mediante a significação “Eu sou”, então a possibilidade da minha

desaparição se dá via impossibilidade de significar. É quando a palavra encontra o vazio

ou quando há esvaziamento dos conteúdos empíricos, impossibilitando qualquer

experiência, de vida e de significar. Então a possibilidade do signo se dá em relação à

possibilidade da não significação, minha morte. Pode-se dizer que a condição de

possibilidade da idealidade como presença dá-se pelo reconhecimento da possibilidade

da ausência, o que confere certa tensão inerente ao processo279.

278 DERRIDA, J. La voix et le phénomène, Paris: Quadrige/PUF, 2003, p. 75-76279 Giorgio AGAMBEN discute esta questão com muita propriedade em A linguagem e a morte: um

seminário sobre o lugar da negatividade. A questão lançada logo ao início é "A faculdade da linguagem e a faculdade da morte: o nexo entre estas ditas 'faculdades', sempre pressupostas no homem e, não obstante, jamais colocadas radicalmente em questão, pode genuinamente permanecer impensado? (...) Sob duas formulações diversas, estas não dizem talvez a mesma coisa?" (p. 10). Para o filósofo italiano, linguagem e vida são moradas próprias do homem, e ambas se fundam e são permeadas desde sempre pela negatividade à medida que são duas "faculdades" que lhe são próprias pois o animal, o "somente-vivente", não fala, e nem morre, ele "cessa de viver" (Cf p. 10 e 13). Agamben nota que a questão não é nova pois desde Sein und Zeit (Ser e tempo) Heidegger já havia inserido a morte na estrutura do Dasein um ser-para-o-fim. (Cf p. 13). O seminário conduzido por Aganbem se pautou pelo problema da "Voz e sua 'gramática' como problema metafísico fundamental e, conjuntamente, como estrutura originária da negatividade" (p. 11). Entre a quarta e a quinta jornada do seminário, Agamben dedica algumas páginas a analisar a "gramatologia" de Derrida. Aganben faz uma crítica à tentativa de Derrida de querer ultrapassar o horizonte da metafísica por meio do grámma (Cf. p. 61). A questão da gramatologia e da escritura é também ponto nevrálgico da filosofia derridiana. São questões que, embora sejam interessantes, não é o caso de inserir no âmbito desta pesquisa por se desviarem demais da nossa temática. AGAMBEN, Giorgio, A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

115

Este ponto assume certa importância na discussão da noção de desrazão tomada

como negatividade. Entendendo-se o cogito tal como expusemos acima, nos parece que

na sua enunciação já encontramos a possibilidade da sua desaparição, seu lado negativo.

A partir desta interpretação, dá para imaginar o quão a questão da exclusão torna-se cara

a Derrida, no sentido de que no interior do processo de constituição da razão já se insere

a sua negatividade interna como uma espécie de fundamentação. Por isso ele diz que “O

eu sou só é vivido com um eu estou presente, ele supõe em si mesmo a relação à

presença em geral, ao ser como presença. O aparecer do eu a si mesmo no eu sou é pois,

originalmente, em relação ao seu próprio desaparecimento possível. Logo, eu sou quer

dizer, originalmente, eu sou mortal.”280.

No que tange à discussão com Foucault, a compreensão destes aspectos é

importante. Sinteticamente, representa dizer que a loucura não foi excluída da ordem das

razões porque neste momento em que a razão procura buscar seu fundamento, sua

identidade, há também uma espécie de negação da identidade e do fundamento.

Voltando à ideia de re-presentação, Derrida concebe representação como

repetições sempre renováveis. Contudo, é preciso, digamos, “destruir algo” para que o

objeto se apresente sempre da mesma maneira. Por isso, Derrida afirmará que a repetição

infinita é ao mesmo tempo o fundamento e a dissolução do signo, no sentido de

dissolução da capacidade de comunicar algo presente, sua expressividade, como se a

relação com a empiricidade fosse sendo dissolvida, apagada. Daí seu estatuto paradoxal.

Ora, este esquema também será igualmente mobilizado na crítica de Derrida ao

estruturalismo. E para dizer da crítica de Derrida ao projeto de História da Loucura é

necessário mencionar sua crítica ao estruturalismo na medida em que ele concebeu o par

280 Outra passagem bem marcante é: “Pensar a presença como forma universal da vida transcendental é me abrir para o saber que, em minha ausência, para além da minha existência empírica, antes do meu nascimento e depois da minha morte, o presente é. Posso esvaziar todo conteúdo empírico, imaginar uma modificação absoluta do conteúdo de toda experiência possível, uma transformação radical do mundo: a forma universal da presença, tenho uma certeza estranha e única pois ela não concerne estado determinado algum, não será afetada. É pois a relação à minha morte (ao meu desaparecimento em geral) que se esconde nesta determinação do ser como presença, idealidade, possibilidade absoluta de repetição. A possibilidade do signo é esta relação à morte. A determinação e a dissolução do signo na metafísica é a dissimulação desta relação à morte que, no entanto, produziria a significação”. DERRIDA, J. La voix et le phénomène, p. 60.

116

razão/desrazão como um nervoso centro da estrutura. A crítica de Derrida ao

estruturalismo se faz via noção de signo. Os conceitos de representação e de signo

tomados sobre a mesma perspectiva da presença iterável e da repetição. Com efeito, diz

Derrida que se um signo só ocorresse uma vez não seria um signo. Para permanecer

como tal ele deve permanecer o mesmo e poder ser repetido como tal. Novamente, em

função da natureza repetitiva do signo, a diferença entre realidade e representação, entre

real e imaginário, acaba por se apagar281. O estruturalismo de Saussure assenta-se mesmo

sobre a relação entre os signos, ao jogo que se estabelece entre eles, quase

“independente” do que eles dizem a respeito do mundo.

O problema da noção de estrutura, para Derrida, é que ela pretende se estabelecer

à revelia da noção de fundamento ou causa, mas no seu entender, fracassa na intenção.

Derrida dirá que dificilmente encontraremos entre os trabalhos dos autores desta época

uma estrutura que não apresente uma espécie de centro. Este atuaria como uma espécie

de fundamento. Como a estrutura não comporta a ideia de fundamento, o estatuto deste

elemento central resta paradoxal pois ele está ao mesmo tempo fora e dentro da

estrutura. Então, para Derrida, o estruturalismo não desaparece com o problema da

origem pois o centro acabaria atuando como o elemento responsável pela produção de

sentido282. O estruturalismo teria sido uma espécie de sonho em decifrar o jogo para além

da origem, mas que acabou se fixando no signo. É neste contexto que devemos entender

a crítica de Derrida ao par razão/desrazão que funciona como uma espécie de eixo

central em História da Loucura. Derrida teria acusado Foucault de logocêntrico por ter

operado um estruturalismo via história.

Como se sabe, a crítica de Derrida foi apenas uma dentre as muitas críticas de que

a tese se viu cercada. Anos mais tarde, analisando sua trajetória, Foucault dirá

Três domínios da genealogia são possíveis. Primeiro, uma ontologia

281 DERRIDA, Le voix et le phénomène, p. 55-56.282 Vejamos, por exemplo, como em Levi-Strauss, Derrida critica a distinção inicial natureza/cultura. Se

tal distinção é típica da filosofia e da história da metafísica, se ela foi assumida pelo discurso das ciências humanas e se a etnologia pretende contrapor-se a este discurso justamente por seu caráter “ideológico”, então ela não pode assumir para si esta dicotomia, tampouco pretender naturalizá-la colocando-a no lugar, no papel de um fundamento, pois ela assim naturaliza a clássica distinção entre as esferas da contingência e da necessidade. (Cf Écriture et Diference, p. 409).

117

histórica de nós mesmos em relação à verdade através da qual nos constituímos como sujeitos de saber; segundo, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação a um campo de poder através do qual nos constituímos como sujeitos de ação sobre os outros; terceiro, uma ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos como agentes morais. Portanto, três eixos são possíveis para uma genealogia. Todos os três estavam presentes, embora de forma um tanto confusa, em História da Loucura. O eixo da verdade foi estudado em Nascimento da Clínica e As palavras e as coisas. O eixo do poder foi estudado em Vigiar e Punir, e o eixo ético em História da Sexualidade283.

Considera-se relevantes estas palavras de Foucault que remontam a posteriori o

sentido de sua trajetória284 pois elas nos informam muito, nos esclarecem e nos situam

em relação a um percurso muito diversificado, tanto em termos de nuances

metodológicas quanto na diversidade dos temas abordados. Contudo, não seguiremos

este tipo de exercício para responder às críticas de Derrida.

Importante é reter o significado da obra no contexto do que representou naquele

momento, com todas as suas incongruências, arestas e reticências, pois ao lado de suas

inúmeras qualidades, são estes elementos que a tornam tão particular. Neste sentido,

apesar de que as críticas de Derrida sejam bem fundamentadas, parece-nos que um dos

pontos fundamentais de discordância entre os dois filósofos seja o fato de que, ao

contrário de Foucault, Derrida dá ao discurso filosófico um privilégio em relação a

outros tipos de discurso, além de que para Foucault o discurso nunca é só discurso. Esta

discordância, no entender de Foucault, é o que motiva a recusa de Derrida em aceitar que

se possa “fazer esta história a partir destes acontecimentos irrisórios que são o

internamento de algumas dezenas de milhares de pessoas, ou a organização de uma

polícia de Estado extrajudicial”285.

283 Entrevista a RABINOW e DREYFUS. In: Foucault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 262.

284 Em outra entrevista, novamente dirá também que :“O que faltava a meu trabalho era o problema do regime discursivo [..] Eu o confundi demais com a sistematicidade, a forma teórica ou algo como o paradigma. No ponto de confluência de História da Loucura e As palavras e as coisas havia, sob dois aspectos muito diferentes, esse problema central do poder que eu ainda tinha isolado muito mal.” (Dits e Écrits III 1976-1979, p. 144).

285 FOUCAULT, “Resposta a Derrida”, p. 73.

118

Se, do ponto de vista desta tese, a diferença entre Foucault e Derrida ganha

destaque, o mesmo não se pode dizer quando consideramos a posição dos dois numa

perspectiva geral da história da filosofia. Os dois filósofos, juntamente com Gilles

Deleuze, particularizam-se por terem orientado seus pensamentos a partir das ideias de

Nietzsche, problematizando, cada um a sua maneira, a filosofia da representação, o

conceito de razão, e a constituição do sujeito ocidental. Encontramos em Nietzsche então,

palavras que inspiram tanto a desconstrução como a genealogia-arqueologia. Crepúsculo

dos Ídolos, no tópico “A ‘razão’ na filosofia”, traz uma passagem emblemática desta

problematização proposta por Derrida:

Até mesmo os adversários dos eleatas sucumbiram à sedução de seu conceito-de-ser: Demócrito, entre outros quando inventou seu átomo...A “razão” na linguagem: oh, que velha, enganadora personagem feminina! Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...286

Se para desconstruir a gramática dos textos filosóficos Derrida admite posicionar-

se nas margens do discurso, como se sabe, por sua vez, Foucault não toma os textos

filosóficos como tema nem como modo de acesso direto aos temas que desenvolve em

suas histórias287. O objetivo de Foucault é construir histórias que nos permitam visualizar

através de que projetos nos tornamos sujeitos de saber e de ações, para com os outros e

para conosco. Nestas histórias, a filosofia entraria em função de uma estratégia, que, em

geral, enraíza-se num projeto ético. Curiosamente, no citado texto de Nietzsche, no

parágrafo seguinte, encontramos um trecho que nos sugere esta postura foucaultiana:

Os signos característicos que se deram ao “verdadeiro ser” das coisas são os signos característicos do não-ser, do nada – edificou-se o “verdadeiro mundo” a partir da contradição com o mundo efetivo: um mundo aparente de fato, na medida em que é uma ilusão de ótica e de ética288.

Que a ilusão de certeza, onde repousa a verdade, tenha atingido seu ponto

286 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos, a “razão” na filosofia, p. 331, itálico nosso. 287 Sobre o assunto, vide MUCHAIL, S. “Foucault e a História da Filosofia”.288 NIETZSCHE, Ibidem. p. 332.

119

máximo em Descartes e outros representantes do grande racionalismo, e que esta certeza,

tenha resultado, por vezes, para usar os termos de Nietzsche, numa ilusão de ótica,

Foucault e Derrida parecem concordar. A tentativa de Foucault, ao fazer uma história a

partir do grande enclausuramento ocorrido no século XVII, talvez caminhe no sentido de

mostrar que a ilusão de ótica tenha desencadeado uma ilusão de ética.

Contudo, não seria justo finalizar estas considerações sobre Derrida

estabelecendo esta clivagem que, afinal de contas, talvez não lhe faça justiça. Derrida

apresentará em sua última fase uma guinada ética muito interessante, em que a

desconstrução voltar-se-á aos conceitos de justiça e direito, como se pode ver em Força

de Lei, de 1994. Ali ele afirmará que se o direito é essencialmente desconstruível

enquanto texto, o conceito de justiça não o é. Tal como Foucault, Derrida tenderá a

ressaltar a opacidade constitutiva do ato moral e da necessidade de, no âmbito da ação,

se reatualizar e ordenar contextos a todo momento, o que o leva a afirmar, por exemplo,

que a política deveria ser feita de dissensos reparáveis e não de consensos presumíveis,

dado que os contextos nunca serão perfeitamente legíveis.

Com efeito, Derrida perguntar-se-á: “Mas quem pretenderá ser justo poupando-se

da angústia?”289. A ética de Derrida acena para a modificação do sujeito que se dá

mediante a aceitação concreta da sua falibilidade, da opacidade constitutiva da decisão e

do ato moral. Não se trata de agir meramente mediante um princípio, mas agir para além

dele. Trata-se de ser capaz de pensar contra si mesmo. O que significa um esforço

infinito de rever as consequências dos atos baseado numa clareza instantânea. O que os

filósofos, inclusive Foucault, querem mostrar é que isto não é pouco.

Entre “Cogito e História da Loucura” e Força de Lei quase 30 anos se passaram.

Uma frase no entanto une os dois ensaios escritos por Derrida em momentos tão

distintos. São as palavras de Kierkegaard: “O instante da decisão é uma loucura”290.

289 DERRIDA, Força de Lei, p. 39.290 KIERKEGAARD apud DERRIDA, J. Força de Lei, p. 52 e “Cogito e História da Loucra”, p. xx.

120

6.3 Foucault e a experiência trágica da linguagem

Numa entrevista concedida a Nicole Brice em maio de 1961, Foucault diz que sua

pesquisa queria mostrar que somente aos nossos olhos ocidentais e modernos é que a

idéia de que a loucura deva ser cuidada é algo natural, pois esta é apenas uma das

reações possíveis que se pode assumir frente a este “fenômeno de civilização” tão

variável.

Então o objetivo da tese de Foucault é, dentre outros, desnaturalizar nosso olhar

quanto a esta questão. Para isso ele tem que buscar qual a origem desta percepção atual

da loucura, e o caminho desta busca vai permitir que possam ser reconhecidas outras

transformações sociais mais profundas que estão para além da questão da loucura. Por

exemplo, Foucault insiste em mostrar que na idade clássica as instituições como os

hospitais gerais não eram exatamente estabelecimentos médicos e, se os loucos foram

internados juntos com outros tipos a-sociais foi porque existia uma percepção social da

loucura que não existe mais, visto que ele defende que aos olhos do homem do século

XVII o grupo dos internados compunha uma população indiferenciada. É interessante

salientar que Foucault não nega que a ascensão do mercantilismo e da família burguesa

tenha contribuído para tornar este grupo homogêneo, uma vez que representavam os que,

neste novo contexto, não tinham mais função social. Contudo lhe interessa sobretudo

frisar que a mudança na sensibilidade social que se origina neste processo traz consigo

novos efeitos e desencadeiam por sua vez novos processos.

Em História da Loucura, Foucault mostra que no século XVIII, por exemplo, as

percepções da loucura se sobrepõem por um tempo, há uma síntese que une espaço de

cura e de exclusão, quando a loucura terá “uma dupla maneira de postar-se diante da

razão”291. Porém, destaca que já desde este momento a exclusão é esquecida em sua

291 FOUCAULT, Michel, História da Loucura, p. 184.

121

origem histórica e a internação passa a ser vista como um procedimento “natural” dentro

do processo de cura. Foucault mostra que isto que a arqueologia traz à tona, por

exemplo, de que o asilo foi o berço de uma das ciências humanas, não pode ser obtido

através de uma história das ciências, porque estas, ao lançarem um olhar retrospectivo,

acabam por naturalizar categorias e mascarando as reais condições de possibilidade dos

saberes.

No caso da psiquiatria, a arqueologia mostrou que a loucura só pode ser isolada

como objeto científico porque antes foi objeto de exclusão moral. Com efeito, em

“Entrevista ao Círculo de Epistemologia”, Foucault quer justificar que a relação de uma

ciência com sua história não é absolutamente indiferente ao seu objeto, quando se trata

de uma ciência humana. Ele dirá que a arquelogia, mais do que fazer aparecer

especificidades do saber, pretende ampliar o espaço em que as ciências podem se alojar.

A relação de uma ciência com sua história, contudo, varia conforme a natureza de seu

objeto. A matemática, por exemplo, enquanto construção de um sistema formal, pode

prescindir da sua “história”. Foucault coloca a matemática como a ciência das estruturas

por excelência, estrutura enquanto conjunto de elementos solidários e sincrônicos, e as

estruturas independem do tempo, e é por isso que quando se busca o desenvolvimento

dos seus sistemas formais, “as datas se apagam para fazer aparecer sincronias que

ignoram o calendário”292. A extrapolação epistemológica e o erro ocorrem, diz Foucault,

quando, ao utilizarmos a matemática como parâmetro de ciência (e nós tendemos a

utilizá-la porque ela corresponde a um padrão de ciência pura que independe de toda

empiricidade), insistimos em importar o seu modelo de historicização, que acaba por

considerar somente as estruturas formais para definir a sua história e desenvolvimento.

No extremo oposto da matemática está a psicologia, um tipo de ciência que “só pode

assegurar sua unidade através do tempo pela narrativa ou pela retomada crítica de sua

própria história”293. Então se Foucault apresenta a relação da psiquiatria e da psicologia

com a “loucura” é porque ele quer ressaltar que a relação destas ciências e seus conceitos

não é a mesma que a de qualquer ciência e sua história. Ele quer mostrar que quando os

campos do saber e das práticas envolvem a questão do homem, nós nos deparamos com

292 FOUCAULT, M. “Entrevista ao Círculo de Epistemologia”, p. 46.293 FOUCAULT, M. “Entrevista ao Círculo de Epistemologia”, p. 46.

122

um certo horizonte de validação e julgamento.

Para alcançar o momento de origem desta percepção já esquecida da loucura, a

arqueologia deverá percorrer longo caminho para buscar o que Foucault chamará no

prefácio de 1961 o “grau zero”, momento em que a loucura era “experiência

indiferenciada”. Aliás, cabe lembrar que grande parte da crítica de Derrida ao projeto do

livro de Foucault tem como ponto de apoio as palavras utilizadas por Foucault neste

prefácio de 1961, motivo que levará mais tarde à supressão deste prefácio da segunda

edição do livro, em 1972. Foucault vai contornar de maneira bastante astuta a

necessidade de supressão deste prefácio que, dado seu caráter “telhado de vidro”, gerou

tanta polêmica. Conforme lhe sugere fortemente Deleuze, ele fará um novo prefácio,

mas o fará como uma espécie de manifesto anti-prefácio no qual declara não querer mais

escrever um prefácio para este livro “já velho” cujo conteúdo ele não quer nem justificar

nem re-inscrever sob uma nova rubrica, pois não quer correr o risco de deixá-lo

novamente refém de “eventos dos quais se viu prisioneiro”294. Foucault se referia sem

dúvida à série de críticas que o livro recebeu, dentre as quais uma das mais contundentes

tenha sido feita por Derrida.

Quanto à natureza da partilha razão/desrazão, Derrida parece que a toma num

único, sentido mais radical. Mas, e isso faz muita diferença, o sentido da partilha

apresentado por Foucault é movente. A relação de simetria vai mudar justamente no

sentido da assimetria. Por exemplo, a oposição razão/loucura mediante a consciência

predominante no Renascimento, enquanto oposição dialética hegeliana, cuja construção

de sentido se dá numa relação recíproca, representa o sentido mais simétrico da partilha,

mas pelo fato mesmo de ser uma oposição no nível do signo, ela é descomprometida,

total, mas leve. Já na Idade Clássica, a consciência prática vigorará, a oposição

razão/desrazão, então, deve ser clara, mas é menos do que na consciência dialética. Por

outro lado, é uma consciência comprometida é necessário estar de um lado ou de outro.

Na modernidade, a assimetria já é total no sentido de que a razão já tomou a

loucura/desrazão como objeto do conhecimento, a loucura foi capturada.

294 FOUCAULT, História da Loucura, p. viii.

123

Há um deslocamento descontínuo desta partilha que se dá rumo à assimetria –

culminando na subordinação da loucura à razão. Se no século XVII a loucura é dada

numa alteridade imediata no sentido de uma diferença experimentada a partir de uma

certeza, a de que se eu penso não posso ser louco, e daí Foucault dizer que, em relação

aos loucos “o sujeito que percebia a diferença media-se a partir de si mesmo” 295, já a

partir do século XVIII a alteridade tem uma estrutura diferente que se formula não

através de uma certeza, diz Foucault, mas de uma regra geral: “ela implica um

relacionamento exterior que vai dos outros a esse outro singular que é o louco, num

confronto onde o sujeito não é comprometido e nem mesmo convocado sob a forma de

uma evidência”296.

Mas a questão da partilha também traz um sentido fundamental que é justamente

o de traçar limites, e no caso, os limites de uma cultura. A idéia é explicitamente

colocada no prefácio de 1961 como sendo originada na perspectiva nietzschiana, como

se Foucault quisesse ter dado à sua obra, uma estrutura homóloga àquela de “O

nascimento da tragédia no espírito da música”. Diz Foucault:

Nietzsche tinha mostrado que a estrutura trágica a partir da qual se fez a história do mundo ocidental não é outra que a recusa, o esquecimento e a retomada silenciosa de uma tragédia. Em torno desta que é central já que ela amarra o trágico à dialética da história na recusa mesma da tragédia pela história, muitas outras experiências gravitam. Cada uma, às fronteiras da nossa cultura, traça um limite que significa ao mesmo tempo, uma partilha originária297.

Neste sentido é importante entender o que pode ser para Foucault tomar a loucura

como “objeto” com a finalidade de estabelecer o limite de uma cultura. Isto não

significa, por exemplo, que “fazer a arqueologia deste silêncio” signifique dar voz aos

loucos, como Derrida interpreta, ainda que no prefácio de 1961 Foucault diga algo muito

próximo a isto, a saber, que é deixar que os loucos falem sua própria linguagem. Ao

tomar a loucura como experiência trágica, não como objeto existente, esta experiência

295 FOUCAULT, História da Loucura, p. 183. 296 FOUCAULT, História da Loucura, p. 183.297 FOUCAULT, Michel. “Préface 1961”. Em Dits et Écrits, p. 189.

124

estaria relacionada a uma experiência de linguagem que se encontra numa região de

experimentação, no limite do racional. Segundo Serres, Foucault mesmo teria situado seu

livro no limite do racional.

Com efeito, os conceitos de limite, ausência e presença perpassam a obra como

um todo. O Hospital Geral de Paris nos informa a prática social do renfermement em

contraposição à geografia da circulação das Naus no Renascimento. Foucault apresentará

os internés como os novos personagens do mundo europeu, e do ponto de vista destes,

como nos lembra Blanchot, o que está fechado é o “lado de fora”298. A expressão de

Blanchot traduz bem a idéia de limite que se quer evidenciar, tão bem expressa na

epígrafe “compelle intrare” que abre o capítulo “A Grande Internação”, e que encontra

seu lugar na materialidade do portão de entrada do Hospital Geral.

Neste sentido não se pode afirmar que História da Loucura seja um livro que

pretenda dar voz aos loucos, mas sem dúvida Foucault chega a falar da loucura recuperar

sua própria linguagem, pois existe um pressuposto que habita o livro: o de que a loucura

represente um certo fenômeno de linguagem. Um pouco como esta linguagem

experimental que Foucault admira em escritores como Blanchot e Bataille que também

trazem esta influência nietzschiana. Então, conforme nos lembra Serres, é importante

lembrar, enfrentando os argumentos de Derrida, de que não se trata de afirmar o não-

sentido contido no sentido ou de afirmar o negativo (ou a ausência) contida na presença.

Na seqüência, apresenta-se aspectos de um programa de rádio apresentado por

Michel Foucault de 1963 que podem nos auxiliar na compreensão do sentido de loucura

tomada como experiência trágica da linguagem.

6.4 Rádio-Teatro dionisíaco

Existe uma série de cinco emissões radiofônicas que constituem importante

298 BLANCHOT, L'entretien infini, p. 292.

125

fonte de pesquisa sobre História da Loucura299. Trata-se da terceira série de uma

emissão radiofônica entitulada “L'usage de la parole”, escrito e narrado por Foucault e

realizado por Jean Doat, além de trazer grande leque de intérpretes e profissionais que

são entrevistados. As cinco emissões foram ao ar nas seguintes datas: 07.01.1963, “La

folie et la fête”; 14.01.1963, “Le silence de la folie”; 21.01.1963, “La persécution”;

28.01.1963, “Le corps et ses doubles”, e por fim em 04.02.1963, “La langage en

folie”.

Os cinco programas de cerca de 45 minutos cada são muito dinâmicos, uma

equipe de atores e atrizes revezam-se nas encenações de trechos de Jean de Rotrou,

declamações de poemas de Artaud e Rabelais e leituras de Erasme, Michaux,

Quincey, Diderot, dentre outros. O conteúdo de modo geral corresponde àquele

apresentado na sua tese de Foucault, mas a linguagem é bem pouco acadêmica.

O que existe a ressaltar nesta série de emissões radiofônicas são dois aspectos

particularmente interessantes. O primeiro deles, mais evidente, é o modo como

Foucault decide apresentar suas ideias. Ele não se põe simplesmente a discorrer sobre

a tese, não opta por uma espécie de aula ou entrevista. Foucault convoca atores,

seleciona textos cujo potencial lírico ou dramático é indiscutível, recorta cenas de

filmes, escolhe músicas e efeitos sonoros diversos para servir de fundo às leituras etc.

Enfim, trata-se de mobilizar uma série de recursos cênicos para compor uma espécie

de espetáculo, uma narração viva. Em meio a estes monumentos cênicos, desenha-se

uma espécie de paisagem no interior da qual o filósofo aos poucos insere sua ordem

argumentativa. Os argumentos são interiorizados pelo ouvinte num movimento que se

dá paralelamente à sua inserção na trama narrativa.

Foucault diz que utiliza o « teatro dionisíaco » como arma e recurso de

deslocamento, sendo o teatro o lugar onde a violência ao se transformar num belo

299 Tivemos acesso a estes arquivos no inverno de 2010-2011 na ocasião do estágio de pesquisas no exterior. Os arquivos encontram-se em poder do IMEC. Não é possível realizar cópias em áudio dos arquivos. Da série de cinco programas, somente o primeiro programa apresentava material escrito, a saber, alguns fragmentos de textos interpretados pelos atores, sem menção a qualquer fala realizada por Foucault. As observações que fazemos neste tópico têm como referência anotações baseadas na audição dos programas.

126

espetáculo pode ultrapassar o homem, mobilizando sua força em poder subversivo.

Esta então teria sido a primeira de uma série de episódios em que Foucault lançaria

mão de recursos cênicos. Ele se serviria também de recursos teatrais em textos como

“As palavras e as coisas” e “A vida dos homens infames”300.

A segunda particularidade destes programas que gostaríamos de salientar diz

respeito à forma de mobilizar o conteúdo. Conforme já dissemos, Foucault havia

insistido na necessidade de se conceber a História da Loucura, tomando-a no interior

de um quadro antropológico, cultural, como fenômeno de civilização. A questão será

desenvolvida nos episódios terceiro e quarto da série.

O ciclo estreia com o programa « La folie et la fête ». O tema abordado

equivale ao do capítulo « Stultifera Navis » de História da Loucura. O fundo musical

evidencia o clima de festa. Ouvimos, ao início, um texto interpretado pelo ator francês

Claude Martin, que descreve as cenas de um cerimonial típico do qual os loucos eram

convidados fundamentais. Acompanhemos o cerimonial:

“Os padres de uma igreja elegiam um grupo de loucos que vinham

pomposamente se colocar no coro sob o assento episcopal. A grande missa

começava então. Todos os eclesiásticos assistiam um rosto manchado de preto

e coberto por uma máscara ridícula. Durante a celebração, alguns vestidos de

palhaços ou de mulher dançavam e cantavam canções obscenas ou bizarras.

Outros vieram para comer no altar salsichas ou morcela, jogar cartas ou dados

diante do celebrante. A queima do incenso era oferecida em incensários

velhos. Inalava-se a fumaça. Depois da missa, novos atos de insensatez e

impiedade. Os sacerdotes, que se confundiam entre os habitantes de ambos os

sexos, dançavam animados e se excitavam com todas as loucuras, todos os

atos licenciosos que lhes inspirava uma imaginação desenfreada. Mais

vergonha, mais pudor e ninguém deteve o estouro do transbordamento da

loucura e das paixões. O local santo que dava lugar a este teatro não se

300 Sobre esta questão, vide MUCHAIL, Salma, “O cuidado de si: o momento cartesiano” In: MUCHAIL, S. Foucault, mestre do cuidado, São Paulo, Loyola, 2011, pp. 57-70.

127

impunha mais. Em meio ao tumulto de palavrões e canções dissolutas, vimos

alguns completamente despojados de suas roupas e outros a se liberarem aos

atos mais vergonhosos de libertinagem. A cena então continuou fora da igreja.

Atores montados em carroças cheias de lixo, divertiam-se atiçando a

população ao seu redor. O cotejo parava de tanto em tanto para se dirigir

expressivamente a seus loucos. Ali eles renovavam seus jogos em face ao

público301”.

Notamos que nestas Fête des fous o louco era o convidado que recebia uma

espécie particular de homenagem ou reverência. Cada cidade, vilarejo, tinha os “seus

loucos”. Todos comungavam com eles naqueles dias suas maluquices em rituais que

beiravam o obsceno. O canto, a dança, o cenário, tudo contribuía para esta atmosfera

onde todos podiam viver um pouco a loucura, ou melhor, reproduzir seus trejeitos

animadamente, numa espécie de “transbordamento” de paixões. A igreja, lugar santo

da dramaturgia sacra, agora servia de palco às bizarrices. Mas a festa mesmo

acontecia na rua, em face e na mistura com os habitantes da cidade.

Consta desta emissão a reprodução de um diálogo do filme « Regards sur la

folie », que estreou em 1962. É uma cena real, uma mulher conversa com um paciente

do hospital psiquiátrico. A cena consta do filme que parece ser, neste sentido, uma

espécie de documentário, dirigido por Mario Ruspoli e escrito em parte por Antonin

Artaud. “Ouçamos” alguns fragmentos da emissão radiofônica selecionados:

Diz o paciente interno: «Moi, je suis. Je ne peut pas le dire quoi »

Um médico diz: « Il ya beaucoup de significacion pour definir une maladie ».

Alguém pergunta ao paciente: « Qu'est ce qui ne va pas? »

O paciente interno responde «Ça, je ne peut pas dèjá dire ».

301 O trecho reproduzido nos foi concedido excepcionalmente pelo gestor dos arquivos do IMEC. Consta da pasta FCL 1.1, p. 8, negrito nosso, tradução nossa.

128

Sobre este trecho, é interessante notar dois aspectos. O primeiro é que existe

uma silêncio muito grande de fundo das falas. As falas são lentas, pausadas, calmas.

Talvez excessivamente calmas. A voz do paciente é lenta, baixa, pausada. Dando uma

forte impressão de cansaço, de um sofrimento que já desistiu da sua cura. Enfim, o

tom é de desânimo profundo. É este tom que Foucault faz contrastar com o tom muito

festivo, musical, alegre, do começo desta primeira audição. Em relação ao conteúdo

desta última cena, salta aos olhos um aspecto que será trabalhado melhor no último

programa, mas que já se adianta aqui: a questão do silêncio de uma linguagem que

não pode mais dizer-se. Não por acaso, Foucault seleciona justamente a frase do

documentário em que o paciente diz que nada pode dizer sobre si, a não ser que “ele

é”, “moi, je sui”, simbolizando, talvez, ironicamente, a constatação da existência

como um último resíduo, o cogito como um empobrecimento da subjetividade.

Ademais, ressalta também o aspecto da loucura como ausência de palavra, de

linguagem, de razão, de obra. São declamados também trechos de Erasmo, o epitáfio

de Dom Quixote, Diderot em “O sobrinho de Rameau”, Sade, uma carta de Jacques

Rivière, poemas de Antonin Artaud, trechos de Thomas Mann, Dostoievski etc.

Na segunda emissão, sobre o episódio da “Grande Internação”, Foucault faz

desfilar uma relação dos condenados ao internamento. A lista é lida pelo exemplar

funcionário do judiciário com um tom de voz propositalmente monocórdico,

sugerindo tanto descaso quanto a falta de sensibilidade social em relação à

diferenciação dos internados, considerados igualmente condenáveis perante o

tribunal. Eis alguns delitos mencionados: um insano, um outro acusado de maltratar a

mulher, a outra de ter muitos homens, outro de roubar, outro de ter matado, outro de

mendigar, perturbar a ordem das ruas etc. O mais grave, ressalta Foucault, que muitos

eram indicados por suas próprias famílias para permanecer no Hospital, não por um

período, mas durante a vida toda, fato que, por si só, segundo Foucault, seria digno de

se fazer incluir o episódio da “Grande Internação” como fato obrigatório a considerar

quando pensamos na história da nossa cultura.

Na terceira e quarta emissões Foucault dedica-se a falar de dois tipos de

loucura: a paranoia (perseguição) e a esquizofrenia. É interessante notar como

129

Foucault reconstitui os dois quadros procurando evitar sempre ser capturado pelo

vocabulário médico da psiquiatria, psicologia ou da psicanálise, da mesma maneira

como evita utilizar conceitos metafísicos como alma, ser, essência, realidade etc.

Na emissão radiofônica dedicada ao tema da persécution Foucault realiza um

procedimento muito curioso. Começa afirmando que na nossa cultura a loucura

carrega um “formidável potencial de inquietude”. Começa a discorrer sobre a

perseguição da razão à loucura, menciona métodos como a cruel ducha, a prisão, os

espaços brancos do internamento, a captura conceitual da loucura por parte da razão

etc. De repente, sem mudar o tom de voz, sem fazer qualquer pausa ou introduzir

qualquer sonoridade, Foucault muda o sentido do termo, e passa a falar sobre a

perseguição no sentido de paranoia. A impressão que se tem é que esta continuidade

contínua não é fruto de distração ou erro, mas é introduzida de modo a produzir um

tipo de espanto, de estranhamento.

Foucault continua dizendo que este mundo da perseguição tem uma “curiosa

propriedade”, é o mundo em que o acaso foi abolido, pois tudo neste mundo é

coincidência e até mesmo o mais fabuloso é possível. Diz que neste mundo da

perseguição imaginária, onde o mais fabuloso é possível, a perseguição se torna o

lugar do choque constante. Cita Diderot que dizia que em geral os homens se sentem

vivendo como que inseridos numa trama, mas que cerca de um terço deles vão acabar

sentindo-se vítimas desta trama. A perseguição acaba sendo um “tipo maravilhoso” de

poder, uma rede inextrincável em que se perdem. Neste sentido, Foucault dirá que

aquele que sofre de perseguição imaginária – ele cita o exemplo de Rousseau e sua

infelicidade que deixou registrada em seus relatos – sente-se vítima absoluta porque

se sente eternamente perseguido por uma rede que jamais o abandona. Daí Foucault

afirmar que o perseguidor porta o milagre de tornar o singular universal porque, na

vivência daquele que sofre a perseguição, o perseguidor torna-se a figura do jogo que

conseguiu devorar todas as outras e que ao mesmo tempo está na origem de tudo,

como uma besta monstruosa.

Tudo se passa como se Foucault estivesse dizendo que a perseguição, enquanto

130

fenômeno observado na nossa cultura, pode gerar, como fenômeno produzido no seu

âmbito, um tipo de sofrimento psíquico que se liga às formas de viver de uma

sociedade, uma espécie de patologia social gerada por uma sociedade que cultiva a

perseguição enquanto valor na medida em que se particulariza por esquadrinhar,

ordenar, enquadrar, hierarquizar, buscar as causas, culpabilizar, delatar, aprisionar,

punir etc, gesto que fica evidenciado pela forma como ele resolveu introduzir o

assunto dizendo da perseguição da razão em relação à loucura.

A quarta emissão radiofônica, de 04 de fevereiro de 1963, traz um tema ainda

mais contundente, uma forma de sofrimento psíquico mais intenso, a esquizofrenia.

Foucault só citará o nome no final do programa. Antes, ele procurará situar o

problema, tal como fez no caso da paranoia, no interior de um quadro social mais

amplo. Com efeito, o programa abre com a dramatização de um espetáculo de

exorcismo. Ouve-se gritos de horror, vozes roucas, risadas tresloucadas, terror enfim.

“Esta curiosa possessão”, ele dirá. Foucault chamará o fenômeno de “O corpo e seus

duplos”. Em seguida diz que somos “cavernas sonoras” e que a questão do corpo e

seus duplos é observada em várias culturas. Mas por que Foucault traz esta imagem?

Diz ele que o curioso no caso do duplicamento é que a pessoa se torna o outro do

outro que está “ao seu redor”. Deixa-se de ser o que se é para nos tornarmos o outro

de um outro que não somos nós. Mas não é só isso. Este outro, também chamado “o

duplo”, vampiriza, se apodera, domina, toma conta do eu, que então, passa a não ser

mais o senhor de seu corpo. Então, conclui Foucault, no duplicamento, tudo se passa

como se não fôssemos (mais) corpo, ou como se nos tornássemos “brancos”,

“porosos”. Ao se sentir privado da posse de seu corpo, aquele que sofre o

duplicamento sente que não habita mais o mundo, por isso a presença do duplo é fatal

e o desejo de morte é insistente. Segue-se depois a narração de alguém que vê o seu

outro, vendo seu corpo, de fora dele, como nós fôssemos, diz Foucault, esta “pequena

bolha brilhante”.

É quando Foucault muda o tom e diz que na esquizofrenia se encontra a

dissociação total do mundo, que é a dissociação total do corpo. Como se o corpo

daquele que foi duplicado não encontrasse mais seu lugar no mundo. Ele perde o

131

corpo. Segue-se a narração de uma cena de uma pessoa que perdeu seu olho num

acidente e colocou um olho artificial. Então ela tira este olho postiço e o coloca sobre

a mesa. Ela descreve sua morbidade, seu estado morto e sem vida.

O sofrimento é de tal monta, que o suicídio se torna um modo de restituir o

corpo daquele que sofre à sua natureza, a única natureza possível. Entra em cena neste

momento uma interpretação de um trecho de Artaud em que o autor procura justificar

sua suposta morte autoinfligida. Diz ele que não se trata de desejo de viver ou de

morrer. Aquele que pretende o suicídio não dá menos valor à vida do que os outros.

Tampouco trata-se de um desejo de morrer. Trata-se de uma solução. Diz Artaud que

quando a vida torna-se uma orientação que não se consegue fixar, ela não é mais

objeto, forma, ela “não é”. Por isso, paradoxalmente, ele diz que, neste estado, não

pode nem morrer, e nem viver. Artaud completa dizendo que não existe desejo de

morrer nos suicidas, e nem desejo de viver em quem vive. Todos os homens não têm

desejo de viver ou de morrer. E a emissão se encerra.

Sem dúvida, a “ordem das razões” deste episódio é mais sutil que aquela do

programa anterior. Contudo, podemos arriscar uma hipótese interpretativa.

Reconstituindo o exercício, notamos que Foucault inicia trazendo à baila o fenômeno

genérico do duplo. Tão genérico que, segundo ele mesmo, está presente em várias

culturas, fato facilmente compreensível, dado que, como logo após ele mesmo dirá,

somos “cavernas sonoras”. Cavernas sonoras com vozes generosas, mais ou menos

dissonantes ou simplesmente aterradoras, mas sempre cavernas sonoras. O solilóquio

é um outro modo de conceber (ou instanciar) a razão. A questão é que estas “cavernas

sonoras”, dependendo da cultura em que se inserem, terão suas vozes interpretadas de

diferentes formas. No caso da nossa cultura, o exemplo trazido é o de um ato de

exorcismo. Um espírito mau se apossa de um corpo que permanece refém deste

espírito, sendo libertado somente quando uma terceira pessoa, representante do

opositor maior deste espírito, intercede na situação para libertar o pobre corpo da

possessão. A nossa história ocidental foi profundamente marcada por estes eventos,

inclusive na época dos processos da sagrada inquisição, que vitimou milhares de

pessoas, à pretensão de livrá-las do mal. Não é preciso citar exemplos do quão

132

puderam ser arbitrários estes julgamentos nos quais o réu (na maioria das vezes, a ré)

já estava sempre a priori condenado à morte, confessando ou não a possessão, pois

negá-la, praticamente, não lhe era facultado. A questão é que a morte era sempre a

forma mais eficaz de livrar o corpo do mal, o que não era visto como algo tão grave,

visto que, quando inocente, a pessoa iria para a vida eterna na qual ela não somente

estaria em paz como não precisaria mais do seu corpo.

Ao trazer o exemplo do exorcismo e depois tematizar enfaticamente a questão

do corpo, talvez Foucault queira evidenciar como dicotomias tão profundas com

relação ao corpo – alma eterna/corpo perecível; corpo puro/corpo pecador; corpo

aparência/alma essência, res extensa/res cogitans etc. – tão interiorizadas na nossa

cultura, podem responder por uma espécie de sofrimento social e psíquico. Talvez elas

possam contribuir para tornar patológico o sofrimento de algumas “cavernas sonoras”

cuja natureza seja talvez mais suscetível ou sugestionável. Viver o corpo de forma

livre da culpa e de dicotomias perversas parece ser uma das formas apontadas por

Foucault para lidar com uma cultura que tende a produzir esquizofrênicos e maníacos.

Diz ele que viver o corpo é preciso, pois “o corpo é a única coisa que pode dominar a

inquietude que poderia nascer de se viver num mundo que não se pode dominar”.

De quebra, a partir deste programa de rádio, podemos perceber que tudo se

passa como se em História da Loucura, quando Foucault vai buscar nesta experiência

trágica que ele chama de uma linguagem mais primitiva, mais original, ele quer

capturar uma forma de “linguagem da loucura” que ainda não foi colonizada por uma

determinação normativa e conteúdo metafísico.

O programa de encerramento da série radiofônica, ocorrido em 04 de fevereiro

de 1963, recebe o título “La langage en folie” e nos esclarece bem sobre a conclusão

de Foucault frente ao que fora apresentado nos quatro programas, a saber, de que a

loucura torna o homem estrangeiro à linguagem dos homens e prisioneiro de um

universo fechado de linguagem.

Na sequência, ele afirma que poder-se-ia dizer que a loucura ou a linguagem

133

não são um lugar, que esta seria uma boa e justa objeção. No entanto, contra esta

objeção ele pede que se olhe bem o contexto das emissões apresentadas.

De que ele não está falando de loucura como linguagem, mas falando de uma

linguagem literária que é o confim mesmo da loucura. Foucault reconhece que queria

falar desta estranha linguagem literária que quer pivotar a linguagem sobre ela

mesma. A palavra que galopa nos loucos e que parece ser a liberdade dos loucos. Ele

contrapõe a linguagem poética dos loucos à linguagem da representação, uma

“dilatação monstruosa”, “uma ampliação gigantesca da fábula”. Ele queria falar não

que a loucura fosse um tipo de linguagem mas que existe uma linguagem que

trancafia o mundo, um mundo que é fantástico. A poesia, a lúcida paixão da

linguagem, é um jogo de palavras.

Foucault diz que os delírios dos loucos não podem ser muito diferentes que

estas experiências literárias que foram apresentadas e que, neste sentido, é possível

falar de loucura como fenômeno de significação. A linguagem (dos loucos) resta

anterior à própria palavra. A verdade da natureza e da poesia. A poesia é um jogo de

palavras. Lúcida paixão da linguagem. Um “écrire vain”, um “Écrivain”.

134

CAPÍTULO 7

OS ESPAÇOS DA EXCLUSÃO NA IDADE CLÁSSICA

...obcecava Foucault em todas as suas obras: a forma do visível em contraste com a forma do enunciável302.

Gilles Deleuze

O Classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos; o vazio deixado por estes foi ocupado por novas

personagens no mundo europeu: são 'os internos'303.

Michel Foucault

Neste capítulo final trataremos de duas questões centrais. A primeira discussão

(7.1) mostrará de que forma podemos compreender o momento do nascimento da razão

como acontecimento solidário à exclusão de seu Outro, apresentando em pormenores o

episódio histórico do “Grande Internamento”, coração da tese de Foucault, trabalhado

pelo autor como um dispositivo simétrico ao acontecimento discursivo da exclusão da

loucura na história do cogito. Em seguida (7.2) esboçaremos algumas reflexões sobre o

método filosófico foucaultiano a partir das considerações de Deleuze. Por fim (7.3),

traremos os modos diversos com que Foucault se apropriou da filosofia cartesiana ao

longo de sua tragetória.

302 DELEUZE, G. Foucault, p. 42. 303 FOUCAULT, História da Loucura, p. 53.

135

7.1 Novos personagens: os internés

Como já dissemos, o século XVII criou a categoria dos internos. Ali, em meio à

massa indiferenciada, o louco é apenas mais um.

São pobres, vagabundos e sem-trabalho; são correcionários, detentos e condenados; são devassos, libertinos, impudicos, doentes venéreos, prostitutas e homossexuais; são bêbados e mentirosos; são filhos ingratos, jovens que perturbam o sossego das famílias e pais dissipadores; são blasfemadores, suicidas, alquimistas, feiticeiros e mágicos; são insensatos, cabeças alienadas e espíritos transtornados304.

O internamento dos loucos vai se inserir no contexto do internamento dos pobres

desempregados e dos associais. O acontecimento da “Grande Internação” trazido por

Foucault marca a história europeia, em especial a francesa. Os números são alarmantes.

Segundo as informações dos arquivos de Foucault, a proporção dos internos dentre o

total da população atinge nada menos que 1%, cerca de 6000 internos para cerca de meio

milhão de habitantes de Paris305. Nesta cidade, o local onde esta população é destinada

será o Hospital Geral. Criado por um decreto real em 1656, o hospital não é concebido

para ser uma instituição terapêutica mas para “recolher, alojar, alimentar aqueles que se

apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela

autoridade real ou judiciária”306.

O acontecimento, decisivo na tese apresentada de que antes de se tornar objeto da

medicina a loucura fora objeto moral, é por si só um fato importante. Foucault chama

atenção de que se trata de um “evento novo” na história, “a invenção de um lugar” onde

ocorrerá pela primeira vez uma “surpreendente síntese entre obrigação moral e lei

civil”307.

304 MUCHAIL, Salma Tannus. "O cuidado de si: momento cartesiano" In MUCHAIL, S.T. Foucault, mestre do cuidado. São Paulo: Ed. Loyola, p. 65.

305 FOUCAULT, História da Loucura, p. 55.306 FOUCAULT, História da Loucura, p. 49307 FOUCAULT, História da Loucura, p. 75.

136

Foucault insiste também que um fenômeno inteiramente novo como este não se

produz de uma hora para outra. Para que a internação pudesse ter acontecido de modo

massivo foi necessário que tivesse se formado uma nova "sensibilidade social" 308. Trata-

se de gestação lenta de uma "nova sensibilidade à miséria". É este o primeiro fator a dar

sentido ao ritual da segregação.

Até a Idade Média, o sofrimento dos pobres gozava de estatuto místico,

simbolizava a ponte para que o homem probo e de fé pudesse exercitar as boas obras da

caridade, provando por este gesto seu amor ou temor a Deus. A partir dos

acontecimentos da Reforma e Contra-Reforma, este estatuto aos poucos modifica-se e a

pobreza “passa de uma experiência religiosa que a santifica para uma concepção moral

que a condena”, e o lugar da existência do Hospital Geral “encontra-se no final desta

evolução”309. É esta nova sensibilidade que detonará o processo que culminará na

substituição da Igreja pelos Estados e cidades nos afazeres da assistência aos pobres e

desvalidos. Também nos países protestantes ocorreu este fenômeno que Foucault nomeia

oportunamente de “laicização das obras”310, pois, se doravante as ações de caridade de

nada valem mediante a afirmação da fé como critério decisivo de julgamento dos fiéis, o

Estado terá de assumir um papel que antes era da igreja.

Os andarilhos desempregados perambulam pelas cidades representando um

“obstáculo à ordem”. Entraves ao ordenamento social e da cidade, os loucos agora, junto

aos pobres e outros desarrazoados, são problema de polícia. Polícia entendida no sentido

de quem deve gerir as intervenções na cidade para manter sua ordem e funcionalidade,

daí Foucault afirmar que doravante o destino destas pessoas será decidido com base em

“medidas de saneamento”311. Gerir a cidade moderna é, dentre outras coisas, sanear o

espaço público, colocar “fora do caminho”312 estes que ficam “atropelando-se na cidade”,

“pedindo esmolas”313. É nesse sentido que devem ser compreendidas as palavras do édito

real de 24/04/1656 que dizem que a atribuição do Hospital Geral era de impedir “a

308 FOUCAULT, História da Loucura, p. 55309 FOUCAULT, História da Loucura, p. 59310 FOUCAULT, História da Loucura, p. 58311 FOUCAULT, História da Loucura, p. 63312 FOUCAULT, História da Loucura, p. 63313 FOUCAULT, História da Loucura, p. 67

137

mendicância e a ociosidade, bem como as fontes de todas as desordens”314.

Mas Foucault acrescenta que somente esta mudança na mentalidade não seria

suficiente para fazer ocorrer o internamento. Não é apenas por desorganizar a paisagem

que os desempregados são internados. Foi preciso fazer incidir um julgamento cruel

sobre eles, julgamento decisivo para confinar seu destino dentro dos muros do

isolamento ou inseri-los no mundo dos trabalhos forçados. Trata-se do aspecto moral da

questão que, como sempre, traz como corolário a dicotomia do bem versus o mal,

aplicável desta vez à pobreza.

“De um lado, haverá a região do bem, que é a da pobreza submissa e conforme à ordem que lhe é proposta. Do outro, a região do mal, isto é, da pobreza insubmissa, que procura escapar a essa ordem. A primeira aceita o internamento e aí encontra seu descanso. A segunda se recusa a tanto, e por isso o merece.

(...)

O internamento se justifica assim duas vezes, num indispensável equívoco, a título de benefício e a título de punição. É ao mesmo tempo recompensa e castigo, conforme o valor moral daqueles sobre quem é imposto” 315.

O internamento se consolida porque o desemprego, a vagabundagem, a

insanidade e a delinquência são condenados como desvio. Pobres por infortúnio ou por

“vocação”, a atitude requer correção. O julgamento e a dicotomia são determinantes para

que o internamento possa se consolidar como uma prática socialmente compartilhada,

pois muitas das vezes, no caso dos insanos ou daqueles cujo comportamento desviava-se

da média, eram as próprias famílias que os encaminhavam para a internação.

Para além deste retrato que busca enfatizar o aspecto moral do internamento,

Foucault também mostra claramente que o internamento foi uma das últimas medidas

tomadas contra uma grande crise econômica que há décadas se arrastava. No contexto da

314 FOUCAULT, História da Loucura, p. 64315 FOUCAULT, História da Loucura, p. 61

138

crise profunda, a medida do internamento foi considerada das mais indulgentes quando

comparada com outras práticas mais espúrias. As medidas pareciam basear-se no

princípio simples de que se elimina a miséria eliminando-se os miseráveis. Como

exemplo, podemos citar a medida de 1532 que instituía que os mendigos de Paris

deveriam trabalhar nos esgotos da cidade acorrentados uns aos outros. Com esta medida,

não é difícil imaginar quão rápido pode ter se resolvido o problema da mendicância na

época, na medida em que, considerando as péssimas condições sanitárias e o acesso

inexistente aos serviços de saúde, esta obrigação acabava por significar o convite velado

à morte. Ou então, podemos citar também, na cidade de Paris de 1606, a medida que

instituía que os mendigos da cidade deveriam ser expulsos de seus muros, depois de

terem sido humilhados em praça pública pelo chicoteamento, raspagem de cabeças e

tendo seus ombros marcados316. Mediante a descrição destas práticas, o internamento

assume ares de um verdadeiro avanço no enfrentamento da mendicância e da miséria.

Nas casas de internamento, todos deveriam trabalhar, inclusive os loucos, se

conseguissem. De fato, Foucault chama atenção para este novo critério de distinção dos

loucos na multidão. Até a Renascença, a sua particularidade, aquilo que os destacava

junto ao povo, era o caráter meio sagrado meio místico de sua palavras. Agora, o critério

a partir do qual ele se distinguirá, desta vez dentre a população dos internos, será sua

inabilidade ao trabalho. E seu silêncio. Eis aqui os primeiros contornos de um novo

estatuto da loucura que começa a ser esboçado. Em liberdade, a loucura tagarelava e “se

debatia em plena luz do dia”. Internada, completa Foucault, estava “ligada à Razão, às

regras da moral e a suas noites monótonas”317. Ali, o louco era apenas mais um, lançado

na vala da “inutilidade social”318.

A inabilidade do louco ao trabalho não só o destaca, como também cria um

impasse: onde os inserir? Junto aos pobres bons ou maus? Seu estatuto é paradoxal, pois

sua condição é vista por uns como uma espécie de “opção” pela desrazão e por outros

como pura negatividade, bestialidade, ausência de pensamento, imputável portanto. No

316 Cf FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 64.317 FOUCAULT, História da Loucura, p. 78318 FOUCAULT, História da Loucura, p. 73.

139

primeiro caso, sua recusa ao trabalho o condenaria ao castigo junto com os pobres maus.

E no segundo? Fato é que não existia uma regra e os loucos eram colocados com ambos

os grupos de acordo com a inspiração dos administradores do Hospital. O que permite

Foucault afirmar que

A oposição entre os bons e maus pobres é essencial à estrutura e à significação do internamento. O Hospital Geral designa-os como tais e a própria loucura é dividida segundo esta dicotomia que pode entrar assim, conforme a atitude moral que parecer manisfestar, ora na categoria da beneficência, ora na da repressão. Na Salpêtrière, ou em Bicêtre, colocam-se os loucos entre os “pobres bons” (na Salpêtrière, é o conjunto da Madeleine) ou entre os “pobres maus” (a Correção ou a Recuperação)319.

A questão é boa porta de entrada para pensarmos, além da realidade mesma do

internamento, o modo como costumamos submeter aqueles que colocamos na vala do

inumano. Independente do que nós podemos aprender sobre eles, são eles que nos

ensinam algo sobre nós.

Além da moral e do trabalho, resta ainda o terceiro elemento em torno do qual

Foucault faz girar sua análise: a cidade moral. A cidade moral vai aparecer como a

materialidade de uma moralidade que “se deixa administrar como o comércio e a

economia”320. Neste momento, mais do que em outros, Foucault fará toda sua análise

recair sob o par ordem/desordem. Neste gesto, ele mobiliza aspectos da mathésis

cartesiana enquanto princípio de ordenamento.

O ordenamento vai representar o eixo em torno do qual girará, representando seu

lado negativo, o internamento, e representando seu lado positivo, a organização da

cidade. Suas práticas e suas regras constituíram um domínio de experiência que teve sua

unidade, sua coerência, sua função321. Juntos, o internamento e a cidade moral, sob o

signo da ordenação, simbolizam o “mito da felicidade social”:

319 FOUCAULT, História da Loucura, p. 61 e na mesma página, nota 66. 320 FOUCAULT, História da Loucura, p. 75321 Cf FOUCAULT, História da Loucura, p. 83

140

Os muros da internação encerram de certo modo o lado negativo desta cidade moral, com a qual a consciência burguesa começa a sonhar no século XVII: cidade moral destinada aos que gostariam, de saída, de esquivar-se dela, cidade onde o direito impera apenas através de uma força contra a qual não cabe recurso – uma espécie de soberania do bem em que triunfa apenas a ameaça, e onde a virtude só tem como recompensa o fato de escapar ao castigo322.

É sob este quadro de fundo que se deve compreender os dispositivos simétricos

do internamento e da exclusão da loucura das Meditações. Não se trata de relação causal.

Foucault os coloca como acontecimentos simétricos, análogos. Descartes não

“aprisionou” os loucos, mas o pensamento racional aprisionou. A loucura é aprisionada

nestas “cidadelas da moralidade pura”323. Estas cidadelas, as casas de internação, são

lugares inventados para proteger quem está fora delas. Ao contrário do sonho de

Descartes, de que a razão encontrasse “a ética no ponto terminal de sua verdade”, na

idade clássica, ao contrário, “a razão nasce no espaço da ética”324.

Existe um paradoxo que Foucault nos faz ver sobre a cidade moral. A cidade se

pretende erigida sob os ditames do ordenamento, mas acaba desaguando no seu oposto,

contaminada pelas “leis do coração”. A cidade moral ordena o espaço coletivo para

livrá-lo de seus medos. O ordenamento anda junto com o medo. Foucault ironiza: “as

leis do Estado e as leis do coração finalmente identificadas umas com as outras”325.

Quanto ao medo, Foucault chama atenção à formação de uma geografia dos

horrores ou dos lugares assombrados simbolizados por espaços de segregação. Diz que

os leprosários deram lugar às casas de internamento e estes aos hospitais 326, fazendo girar

em torno destes, ainda no século XVII, um imaginário macabro, lugares que causam

profunda resistência à visitação, associados que estão à circulação dos malditos 327.

322 FOUCAULT, História da Loucura, p. 75-76323 FOUCAULT, História da Loucura, p. 75324 FOUCAULT, História da Loucura, p. 142325 FOUCAULT, História da Loucura, p. 76326 FOUCAULT, História da Loucura, p. 72327 Eis um exemplo: “Lepra grande demais para a capital! O nome de Bicêtre é uma palavra que

ninguém pode pronunciar sem não sei que sentimento de repugnância, horror e desprezo...Tornou-se o receptáculo de tudo o que a sociedade tem de mais imundo e mais vil”.(Citação de Foucault p. 353, de Mercier, Tableau de Paris, VIII, p. 1. )

141

Dizem os arquivos de Foucault, em 1780, que por causa de uma banal epidemia de

origem desconhecida, mas provavelmente relacionada à mudança abrupta de clima,

formou-se um levante da população que intentava colocar fogo no Hospital de Bicêtre

pensando estar ali o foco do problema. É chamada então uma equipe de médicos e

profissionais para investigar a causa do problema. Verifica-se que não há nenhum motivo

para afirmar que ali havia um foco, pelo contrário, o foco estava fora. E os internos de

Bicêtre são inocentados328. Daí se estima o poder do imaginário do terror, do medo.

Mesmo a despeito de tudo o que era enunciado pela “razão” através dos relatórios

médicos, o terror sobrepujava de longe a percepção da epidemia.

Existia um medo “ricochete do internamento”, a população era assombrada pelo

que se passava dentro dos muros destes lugares. Noutro caso, “atribui-se ao escorbuto

contágios imaginários, prevê-se que o ar viciado pelo mal corromperá os bairros

habitados. E novamente se impõe a grande imagem do horror medieval, fazendo surgir,

nas metáforas do assombro, um segundo pânico. A casa de internamento não é mais

apenas o leprosário afastado das cidades: é a própria lepra diante das cidades”329. Enfim,

havia muita confusão neste imaginário que resultava numa “inextricável mistura entre

contágios morais e físicos”330 331. Muitos boatos, lendas e histórias sem fundamento real

habitavam o imaginário popular, desencadeando, esporadicamente, em “toda uma

exploração patética” de “temores mal definidos”332.

Os pobres há tempos haviam saído do internamento, desde quando a crise

econômica arrefeceu e eles puderam encontrar novamente seu lugar no mundo do

trabalho. Os loucos continuaram nos Hospitais. Estigmatizados como personagens

eternas destes cenários da geografia do horror, permaneciam em meio aos doentes e aos

presos, porém sem cuidados médicos. Foucault diz que, neste contexto de medo, a

introdução do “homo medicus” não se deu como “árbitro, para fazer a divisão entre o

328 FOUCAULT, História da Loucura, p. 354329 FOUCAULT, História da Loucura, p. 353330 FOUCAULT, História da Loucura, p. 356331 Esta mistura entre contágios morais e físicos, como se pode imaginar, também foi observado na

história brasileira. Cf MACHADO, R. et al A Danação da norma: Medicina Social, Rio de Janeiro, Graal, 1978.

332 FOUCAULT, História da Loucura, p. 354

142

que era crime e o que era loucura, entre o mal e a doença, mas antes como um guardião,

a fim de proteger os outros do perigo confuso que transpirava através dos muros do

internamento”333.

A loucura identificada como vazio transparece nas práticas médicas da época, que

consistiam em tentar colocar a linguagem na cabeça do louco, preencher o vazio, ensinar

o falar correto, treiná-lo na identificação do seu “sistema de atualidade”. As técnicas

terapêuticas inspiravam-se em exercícios teatrais, “retorno ao imediato”, “o despertar”.

Nomes sugestivos. Mas existiam os tratamentos cruéis que parecem uma forma de

castigo moral, purificações, imersões, prova de que, alerta Foucault, a teoria médica não

caminhava junto com as terapias.

No capítulo “O louco no Jardim das espécies”, lê-se que a loucura inspirava

descrições e tentativas de explicações caracterizadas por imprecisão, contradição, e

dispersão. Foucault dirá que é porque se pretendia, no fundo, conceituar algo vazio. De

estatuto paradoxal, a loucura ainda aparecia como vazio, negatividade, mas por outro

lado, uma consciência analítica em seus primórdios treinava a observação dos sintomas.

É muito curiosa a tentativa de enquadrá-los em chaves classificatórias. Ali a loucura não

se deixava capturar, ela não se encaixava na ordem das razões. O duplo estatuto de que

gozava a loucura foi bem sintetizado em duas belas frases de Foucault bastante citadas

pelos seus leitores. São elas: “O século XVIII percebe o louco mas deduz a loucura”334 e

“A loucura tem uma dupla maneira de postar-se diante da razão: ela está ao mesmo

tempo do outro lado e sob seu olhar”335.

7.2 Ver e fazer ver

Para abordar a questão do método, escolhemos não utilizar a usual classificação,

aliás, proposta pelo próprio Foucault, que faz referência às fases arqueológica,

genealógica e ao período em que o autor se voltou aos estudos da ética. Não há nenhuma

333 FOUCAULT, M. História da Loucura, p. 356334 Ibidem, p, 187335 Ibidem, p. 184, itálicos de Foucault.

143

razão especial nesta recusa. Escolheu-se lançar mão do esquema de Deleuze que aponta

que a filosofia de Foucault particulariza-se pelo apontamento de visíveis e enunciáveis

como forma de chamar as relações ao plano da imanência. Escolhemos esta abordagem

porque ela se adequa bem à obra História da Loucura, além de permitir que se trace um

paralelo com os recursos mobilizados na leitura das Meditações.

O objetivo da exposição apresentada no tópico anterior foi o de trazer à tona o

procedimento adotado. Lembremos que logo ao início da tese, no antigo prefácio de

1961, Foucault dissera que queria expor as “estruturas de uma partilha”. Conforme

mostrado por Frederic Gros336, Foucault não só usa um vocabulário espacial,

geométrico, geográfico mas também lança mão de uma série de analogias espaciais,

formas de pensar que intencionam apontar esquemas visíveis. São os primeiros passos de

um pensamento estratégico que se tornará cada vez mais sofisticado. De qualquer forma,

o apontamento do visível assume toda uma racionalidade, do espaço da fluidez da

circulação no Renascimento ao espaço da fixidez e imobilidade na internação. O

interessante é que esta situação geográfica desenhada é que nos remete à prática social,

não o contrário. Ou seja, o sentido não é determinado por uma reflexão conceitual que

abstrai a realidade. Michel Serres já havia feito nos anos 60 uma leitura similar a esta,

apesar de que suas conclusões possam ser consideradas um tanto quanto engenhosas. Diz

ele que Foucault resolveu escrever esta história na linguagem da geometria para poder

compor um quadro linguístico e lógico da segregação. A segregação interditaria o

diálogo, por isso a forma da língua escolhida teria que se aproximar do silencio dos

loucos337.

Em entrevista à revista Herodote, em 1976, Foucault dirá que utilizava

vocabulário espacial porque estes termos denotam uma visão estratégica. Ele diz que as

metáforas espaciais o obcecaram porque seu foco naquele momento era descobrir uma

forma de chegar na relação saber-poder. Mas não só por isso. Ele queria também se

contrapor às análises que tomavam os discursos como continuidade temporal porque

336 GROS, F. Foucault et la folie, Paris: PUF, 2004.337 SERRES, M. “Géometrie de la Folie”, Mercure de France, 1962, n. 1188 (parte I) e 1189 (parte II),

respectivamente, pp. 682-696 e 62-81.

144

levavam à instância de uma consciência geradora. Já as metáforas espaciais, lhe

permitiam visualizar relações de poder.

Já em 1984, em outra entrevista, Foucault, tendo elaborado o método em várias

obras, falava com mais clareza. Dizia que nós não vivemos no vazio e que as relações se

definem em lugares não redutíveis pois espaços não se sobrepõem. Estas ideias estavam

na base do seu pensamento geopolítico. Mas não só. Ele queria que repensássemos

contraposições que assumimos com tanta naturalidade mas que precisam ser revistas tais

como, espaço privado e público, espaço da família e espaço social, espaço cultural e

espaço útil, espaço de lazer e de trabalho etc, “todos são animados por uma surda

sacralização”338.

No entanto, a questão da visibilidade não entrou de forma explícita em

Arqueologia do Saber. Ali, Foucault concede primado ao enunciado pois as regiões de

visibilidade são designadas de maneira negativa, como “formações não-discursivas”.

Segundo Deleuze, isto acontecia porque Foucault não queria destacar um vocabulário

que pudesse ser confundido com as formas do ver e do perceber da fenomenologia339.

Existem várias formas de aproximação de Foucault com estes visíveis. Este

visível pode ser tanto o uso de um vocabulário espacial, uso de um pensamento mais

estratégico de poder, a análise de uma paisagem, análise de uma obra de arte, a “pintura”

textual de uma obra de arte, a descrição de uma prisão, o apontamento de uma geografia,

o apontamento de um fluxo espacial, apontamento de uma dinâmico espacial das

relações de poder, de afeto, relações sociais em geral, os conflitos geopolíticos em várias

escalas, relações espaciais que constroem subjetividades etc. São muitas coisas. São

objetos e procedimentos muito distintos agrupados sob a categoria dos “visíveis”. Trata-

se de delinear, sugerir, descrever minuciosamente, rascunhar, retratar, incitar a imaginar.

Em História da Loucura, muitas paisagens são desenhadas, o muro do Hospital, os

grandes muros das cidades, os portões da cidade, os espetáculos de castigo e humilhação

338 FOUCAULT, M. “Des espaces autres”. In. FOUCAULT. Dits et Écrits II, 1984, [pp. 1571-1581], p. p. 1573.

339 DELEUZE, G. Foucault, p. 59.

145

dos pobres em praças públicas.

Mas ali os enunciáveis ocupavam um local privilegiado também. Foucault diz

que “ao lado de tudo o que uma sociedade pode produzir (“ao lado”: isto é numa relação

assinalável a tudo isto), há formação e transformação de “coisas ditas”. É a história

destas “coisas ditas” que eu empreendi.”340. Foram os arquivos escritos que fascinaram

Foucault e o levaram a querer realizar a pesquisa de sua tese. Diz ele, em 1972, numa

entrevista, que estava diante de um material cuja organização era muito fraca do ponto

de vista da sistematicidade interna e acuidade conceitual. Mas, por outro lado, e isso o

atraia bastante, os discursos institucionais deste conjunto eram muito fortes, prenhes de

significações pois era visível o quanto estes discursos eram “tributários (s) de estruturas

sociais, de condições econômicas, tais como o desemprego, as necessidades de mão-de-

obra, etc”341. É esta alegria do arquivo que leva Deleuze a dizer que:

Foucault alegra-se em enunciar, e em descobrir os enunciados dos outros, somente porque ele também tem uma paixão em ver: o que o define é, acima de tudo, a voz, mas também os olhos. Os olhos, a voz. Foucault nunca deixou de ser um vidente, ao mesmo tempo que marcava a filosofia com um novo estilo de enunciado, as duas coisas num passo diferente, num ritmo duplo342.

Não há antagonismo nem dicotomia entre visíveis e enunciáveis. Há uma relação

de irredutibilidade entre eles. São instâncias onde se desenrolam jogos de saber e de

poder. Trata-se, pois, somente de querer restituir as coisas à sua imanência 343. Por

exemplo, Deleuze distingue três instâncias correlatas do visível. Na primeira, como no

caso do internamento, as forças estão do lado de fora. No segundo caso, agenciamentos

concretos, onde se atualizam as relações de força, relativamente aos procedimentos

disciplinares. O exemplo mais evidente é o panóptico onde se vê claramente que as

340 FOUCAULT, M. “Resposta a uma questão”, Revista Tempo brasileiro, 28, jan-mar 1972, (pp. 57-81), p. 71.

341 Idem, p. 20-21.342 DELEUZE, G. Foucault, p. 60.343 DELEUZE, G. Foucault, p. 52.

146

relações de poder estão em ato no próprio lugar do agenciamento. Existe outra instância

também em que se faz incidir mecanismos de segurança genéricos, numa escala

populacional.

Na História da Loucura , a loucura, tal como a via o hospital geral, e a desrazão,

tal como a anunciava a medicina, “obcecava Foucault”344. Ou seja, “a forma do visível

em contraste com a forma do enunciável”345. Além de, podemos acrescentar: Não é por

acaso que Foucault foi o primeiro a observar que nas Meditações, enquanto Descartes

enunciava que ao final da primeira jornada meditativa nada tinha sido salvo, Foucault

nos faz ver que a reiterada imagem do sujeito meditando mostrava que tinha se salvado

um resíduo de verdade.

As histórias de Foucault querem mostrar visibilidades que não são imediatamente

vistas. Em História da Loucura, os loucos, desempregados, delinquentes, associais

estavam juntos. Diz Foucault: “o que para nós não passa de uma sensibilidade

indiferenciada era com toda a certeza, para o homem clássico, uma percepção claramente

articulada”, o que nos faz pensar quais seriam as formas de “invisibilidade” da nossa

atual sociedade.

Além da história que nos atravessa, há também as espacialidades. É o limite da

minha cultura que fica exposto quando fazemos algo que Deleuze denominou “uma

superposição de mapas”346. Um exemplo possível de “sobreposição de mapas” creio

ter sido a própria existência de Foucault que viajava tanto que chegou a se sentir

estrangeiro em seu próprio país. Visualizar, mas não só visualizar, ao viver de fato

outras paisagens, outras espacializações de poder, de trabalho, afetivas etc, a

sobreposição destes mapas, destas paisagens, destes espaços onde se materializam as

relações, enfim, esta sobreposição desnaturaliza nosso olhar com relação à nosso

próprio lugar de origem. É por isso que a superposição permite visualizar as

descontinuidades geográficas que nos atravessam, porque elas identificam nas

344 DELEUZE, G. Foucault. p. 42.345 Idem.346 DELEUZE, G. Foucault. p. 53.

147

próprias formas de vida as relações de luta ou de resistência de uma população. É ali

onde se identifica que algo está fora da ordem e que causa o estranhamento. É ali que

pode ocorrer o espanto, a ascese, a transformação. Talvez Foucault quisesse que nós

“viajássemos” através de suas histórias. Ele traz estas paisagens em forma de texto

para dentro de seus livros347.

7.3 O(s) Descartes de Foucault

Como se viu anteriormente, Foucault faz girar toda sua análise do acontecimento

do internamento e da configuração espacial da cidade moral em torno do eixo

ordem/desordem. No início do capitulo “A Grande Internação”, a figura cartesiana, como

representante maior do pensamento racional, aparece associada ao silenciamento dos

loucos. Com este gesto ele realiza uma espécie de subversão do cogito, que faz com que

a razão libertadora seja transformada em razão aprisionadora de seu Outro. Foucault dirá

que o que ele tentou mostrar com este gesto é que “existem condições e regras de

formação do saber às quais o discurso encontra-se submetido a cada época, assim como

qualquer forma de discurso de pretensão racional”. O discurso cartesiano seria um dentre

tantos discursos e práticas sociais condicionados por estas regras que formam uma

espécie de “inconsciente do saber”348. Em As palavras e as coisas, ele utilizará o termo

epistemé: “O que torna possível o conjunto da episteme clássica é, acima de tudo, a

relação com um conhecimento da ordem. Quando se trata de ordenar as naturezas

simples, recorre-se a uma mathésis cujo método universal é a álgebra”.349

As Meditações estão na abertura do capítulo porque quer enfatizar a criação do

sujeito moderno. A ciência moderna propriamente dita já tinha sido iniciada por Galileu.

Com Descartes, surge a fundamentação, como no dizer de Sipos: “A cada enunciado do

saber científico se encontra co-presente o enunciado 'eu penso', que é o lugar

347 Mas podemos nos perguntar como ainda hoje podemos apontar visibilidades reveladoras ou a irredutibilidade do visível e do enunciável num mundo saturado de imagens?

348 FOUCAULT, M. “Resposta a Derrida”, p. 74.349 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 126.

148

representativo onde ele se enuncia"350. O exercício meditativo transforma o sujeito num

sujeito de verdade. O sujeito torna-se para si mesmo uma coisa pensante, um sujeito de

fato, daí Foucault nomear isto de “acontecimento discursivo”. É uma ideia de

performance que acontece no âmbito do discurso, no sentido do discurso

autorreferenciado produzir um acontecimento. Não se trata de mero discurso

constatativo351.

O “silenciamento da loucura” por parte de Descartes é inserido em contraponto a

Montaigne, filósofo para o qual loucura mesmo é buscar um critério de certeza no

sujeito. Montaigne é inserido por Foucault como representante maior da crítica à

presunção da razão, como se segue:

A razão me mostrou que condenar de modo tão resoluto uma coisa tão falsa e impossível é atribuir-se a vantagem de ter na cabeça os limites e os marcos da vontade de Deus e o poder de nossa mãe Natureza, e no entanto não há loucura mais notável no mundo que aquela que consiste em fazer com que se encaixem na medida de nossa capacidade e suficiência352.

A comparação entre Descartes e Montaigne é comentada também por Jean-Luc

Marion num artigo cujo título, muito inspirado, já informa a que veio: “Quem sou eu

para não dizer ego sum, ego existo?”353. Diz Marion que Montaigne narra a experiência

do eu, ele não a explica. Por ser a experiencia um eterno fazer-se, o eu de Montaigne

nunca “é”, mas sempre “está”. Assim, o que o eu é, de direito, é incompreensível, mas,

de fato, ele está aí. E como se alcança o eu? Não se alcança, diz Marion, ou mais

precisamente, o eu não alcança a si mesmo, mas pode aproximar o alcance de si via o

350 SIPOS, Joel. Lacan et Descartes: la tentation métaphysique, Paris, PUF, 1994, p. 40. 351 A diferença entre constatativo e performativo foi cunhada pelo inglês Austin e pelo americano

Searle. Foucault manteve relações profissionais com este último quando vivia nos Estados Unidos. Austin e Searle tomam a linguagem como uma forma de ação no mundo. Dentro do conjunto de estudiosos da filosofia da linguagem, Searle faz parte do filão que privilegia a perspectiva pragmática da linguagem. A associação entre o pensamento pragmatista e Foucault é recorrente.

352 MONTAIGNE. Ensaios, Livro I, cap. 27, p. 231-232 apud FOUCAULT. M. História da Loucura, p. 47.

353 MARION, Jean-Luc. “Qui suis je pour ne pas dire ego sum, ego existo?”In CARRAUD et MARION, J.(orgs.) Montaigne: scepticisme, métaphisique, theologie. Paris: PUF, 2004. p. 229-266.

149

olhar do outro354. Seja através do olhar do outro, seja na narração do seu eterno fazer-se,

Montaigne, em contraponto a Descartes, implementa sua busca de si no plano da

imanência.

A intuição do cogito também funda o conhecimento discursivo que estabelece a

ciência universal cujo projeto Descartes anunciara. Georges Bataille diz que a realização

do projeto funciona como uma espécie de adiamento da ação, suspensão do mundo da

imanência e a busca da verdade segura da matemática e da linguagem, lugar do

pensamento onde os signos se referem a eles mesmos num jogo reversível que acaba por

distanciar a realidade dos fatos. Por isso, diz Bataille que a experiência do projeto é

tranquila, porque ele adia a ação, “O pequeno deslocamento dos projetos é suficiente, a

chama apaga-se, à tempestade de paixões sucede uma calmaria”355.

O conhecimento discursivo ou representativo também foi alvo de análise em As

palavras e as coisas e em “Vida dos homens infames”. Neste último, texto de estilo

praticamente literário, Foucault mostra o quanto este quadro pode assumir uma

fisionomia irracional ao elevar o texto a uma estatura maior que a vida. Neste caso,

também vale apontar a discrepância mencionada no tópico anterior entre o visível e o

enunciável, pois “o que surpreende nesses registros é o contraste entre a pequenez das

vidas narradas e a grandiloquência das narrativas”356.

Representante da última fase do pensamento foucaultiano, o curso A

Hermenêutica do sujeito retoma o tema das meditações no contexto de uma discussão

que busca a relação entre o sujeito da ética e o sujeito do conhecimento. Neste novo

contexto, fará comparações entre as meditações espirituais e a meditação filosófica,

particularmente a cartesiana, além de retomar o tema da dupla ‘ascese e demonstração’,

sob uma nova perspectiva. Novamente as Meditações serão colocadas como um divisor

de águas, mas desta vez o momento cartesiano (re) encontrará seu lugar na história da

354 Em relação à loucura, dirá Foucault, que o homem olha a si mesmo através do louco que ele não é, especialmente na experiencia clássica.

355 BATAILLE, G. A experiência interior. Trad. Celso Coutinho e Antônio Ceschin, São Paulo: Ática, 1992, p. 52.

356 MUCHAIL, S. “Marginalização filosófica do cuidado de si: o momento cartesiano”. In ALBUQUERQUE Jr et al (orgs), Cartografias de Foucault, p. 372.

150

relação do sujeito com a verdade e a ética. Muchail nos lembra que, ali, Foucault fará

uma dissociação que implica a separação de duas vias do pensamento filosófico,

correlatas a duas concepções de sujeitos: “o sujeito de ações cuja verdade não tem

essência nem substância porque se constitui e se transforma continuamente” e o “sujeito

do conhecimento cuja verdade é substância essencialmente a mesma, já dada e

constituída”357.

Porém, em seu penúltimo curso ao Collège de France entre os anos de 1982-

1983, Le gouvernement de soi et des autres, Foucault acenará para um outro Descartes.

O nascimento do sujeito moderno será visto como um daqueles momentos da história do

pensamento em que o homem sonhou com a verdade. Um Descartes que sonhou em

ordenar as razões, as palavras e as estrelas porque queria viver a verdade. O Descartes da

ascese. Suas palavras não deixam dúvida:

As Meditações de Descartes, com efeito, se são um empreendimento para fundar um discurso científico na verdade, são também um empreendimento de parrêsia no sentido que é bem o filósofo com tal que fala dizendo “eu”, e nisso afirmando sua parrêsia nesta forma justamente cientificamente fundada que é a evidência, e isso, a fim primeiramente de jogar, em relação às estruturas do poder, que são aquelas da autoridade eclesiástica, científica, política, um certo papel em nome do qual ele poderá conduzir a conduta dos homens. O projeto moral, que está presente desde o início da empresa cartesiana, este projeto de moral não é simplesmente um aditivo a um projeto essencial que seria aquele de fundar uma ciência. Parece-me que no grande movimento que vai, desde a enunciação em primeira pessoa do que Descartes pensa de verdade na forma da evidência até o projeto final de conduzir os homens até sua vida e na vida de seus corpos, vocês têm aqui a grande retomada do que foi a função parresiástica da filosofia no mundo antigo358.

Foucault coloca o discurso cartesiano das Meditações como um lugar onde se

357 MUCHAIL, S. “Marginalização filosófica do cuidado de si: o momento cartesiano”. In ALBUQUERQUE Jr et al (orgs), Cartografias de Foucault, p. 366.

358 FOUCAULT, M. Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Gallimard/Seuil, 2008, aula de 9 de março, p. 321-322.

151

“manisfesta a verdade”359. Já havíamos acenado com ideia similar no capítulo quinto

quando mostramos que era possível olhar Descartes numa outra perspectiva, aquela que

o coloca ao lado do ceticismo, não como um cético, mas dentre aqueles que na turbulenta

passagem do século XVI ao XVII, ousavam contrapor-se ao conhecimento baseado em

recursos de autoridade. Esta atitude poderia dar origem tanto à suspensão de juízo

resultante da impossibilidade de decidir, quanto motivar a busca de um método seguro

com que orientar o pensamento na busca da verdade para conduzir a ação do homem, tal

era a ética sonhada por Descartes.

Por fim, gostaríamos de trazer uma figura muito curiosa que parece criar uma

estranha síntese em torno de algumas noções veiculadas nesta tese: meditação, loucura,

verdade, espiritualidade, ciência, o visível, o enunciado, imanência. Observemos, na

página seguinte, uma pintura anônima, encontrada na Antuérpia em 1590360, chamada “O

mundo numa cabeça de louco”. Este quadro pode nos dizer muito sobre esta época,

inclusive no que diz respeito ao aspecto simbólico da loucura.

Trata-se da imagem da cabeça de um louco com seu capacete típico com os

guizos nas pontas. No lugar da face, um mapa do mundo do tipo planisfério. As

inscrições contidas na armadura do louco podem nos fornecer algumas pistas da intenção

do seu autor. Sobre a fronte: “Oh, cabeça digna de hellébore!361”; sobre as orelhas:

“Orelhas de burro, quem não as tem?”; à direita, no globo: “Vaidade das vaidades, tudo é

vaidade”; à esquerda nos medalhões: “Oh! Preocupação humana”, “O quanto é grande o

vazio das coisas”, “Todo homem é uma obra louca” e “O homem é uma vaidade

universal”. Na parte inferior da testa um texto maior: “Eis aqui o mundo e o tema de

nossa glória. O lugar onde levamos nossas honras. Aqui nós exercemos nosso poder.

Aqui nós desejamos a riqueza. Aqui o gênero humano se agita. Aqui nós recomeçamos

as guerras, mesmo as guerras civis”. E finalmente, à esquerda, lê-se “Demócrito ri do

mundo, Heráclito chora sobre ele, Epitônios o representa”362.

359 FOUCAULT, M. Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Gallimard/Seuil, 2008, aula de 9 de março, p. 343.

360 BESSE, Jean-Marc. Les grandeurs de la terre. Aspects du savoir géographique à la Renaissance . Lyon: ENS Éditions, 2003, p. 337-339.

361 Hellébore é uma planta cuja virtude seria a de purgar a loucura. Cf BESSE, p. 336, nota 3. 362 BESSE, Jean-Marc. Les grandeurs de la terra. Aspects du savoir géographique à la Renaissance.

152

Jean-Marc Besse interpreta esta pintura como uma imagem utilizada para em

meditações. Os exercícios com imagens são privilegiados na época. Ao contrário das

meditações medievais que contemplavam as imagens da paixão de Cristo, as meditações

no Renascimento trabalham a figura humana. O autor nos diz que a meditação no

Renascimento retoma um tipo de exercício espiritual que se praticava entre os estóicos, a

meditação espiritual. Nestes exercícios, uma das imagens utilizadas era a da Terra. Por

que? Besse elenca, dentre outros motivos: dar tranquilidade ao espírito pela

contemplação da imensidão e da ordem do cosmos. Aos nossos olhos parece bizarro,

mas o novo mapa do mundo era utilizado como “a” imagem forte da totalidade, dado que

a descoberta de novas terras teve alto impacto para o homem europeu. Em contrapartida,

mediante a contemplação dessa grandeza do mundo, o julgamento humano de si mesmo

e consequentemente de seus problemas perderia o vigor e a importância. Ou seja, o novo

mapa do mundo redimensiona duplamente a extensão da terra e o valor do homem que a

habita. Aqui, proximidade e distanciamento não são apenas designações métricas, mas

constituem valores, pois ajudam a redefinir as relações entre o longe e o perto, assim

como a noção de outro lugar. Jean-Marc Besse salienta que este é um momento da

história em que há uma comunicação entre o plano da ciência e da espiritualidade363. Em

resumo, a presença do mapa faz apelo à ideia do homem como criador (não mais como

criação), descobridor do mundo, navegador, viajante, cartógrafo, cientista, enfim, o

homem senhor de sua casa.

Por outro lado, as frases escritas nos fazem rir. Lemos aqui a típica sátira

renascentista. Notemos também que a figura do louco, como símbolo, encarna

perfeitamente o Renascimento porque é uma figura dobradiça, tanto se contrapõe, pelo

humor, à sobriedade do medievalismo, como também, pela sátira, à presunção da razão.

Daí a interpretação que Besse faz da frase antes citada “Demócrito ri do mundo,

Heráclito chora sobre ele, Epitônios o representa”, a saber, de que não é necessário ser

nem como Demócrito nem como Heráclito, nem rir nem chorar demais, mas também

tampouco simplesmente representar, não julgar demais as coisas.

363 BESSE, Jean-Marc. Les grandeurs de la terra. Aspects du savoir géographique à la Renaissance. Lyon: ENS Éditions, 2003, p. 337-339.

154

Contudo, creio que podemos acrescentar a esta leitura de Besse o significado de

representação no sentido cartesiano de que falávamos, dado que o objeto desta

meditação é o mapa na cabeça do louco e o mapa é a representação por excelência. É a

uma representação do signo de representação no sentido que nos fala Foucault:

É característico que o exemplo primeiro de um signo que dá a Lógica de Port-Royal não seja nem a palavra, nem o grito, nem o símbolo, mas a representação espacial e gráfica – o desenho: mapa ou quadro. É que, com efeito, o quadro [e o mapa] só tem por conteúdo o que ele representa e, no entanto, esse conteúdo só aparece no representado por uma representação364.

O mundo como totalidade é intangível, só existe como representação, no mapa.

Neste sentido, é bem interessante como o desenho do mapa do mundo na cabeça do

louco pode se prestar a uma meditação espiritual.

Como Descartes nos desenha nas Meditações, e Foucault nos faz ver, o “louco

está alhures”. Ou como nos diz o poema de Artaud trazido na emissão radiofônica, o

louco está tragicamente fora do mundo porque perdeu seu corpo. Ele é prisioneiro de

suas representações. É por não poder ver o outro que o louco não pode ver a si mesmo.

A figura do louco pode se prestar como signo de uma ascese porque consegue reunir,

numa escala hiperbólica, nosso dilema de não poder escapar nem da linguagem da

representação nem do mundo.

364 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 89.

155

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A) JACQUES DERRIDA, RENÉ DESCARTES E MICHEL FOUCAULT.

DERRIDA, J. Écriture et la Différence, Le Seuil, 1967.

____________Cogito et Histoire de la Folie. In. L’Écriture et la Différence, Le Seuil, 1967, p. 51-97.

___________Positions, Paris, Les Èditions de Minuit, 1972.

___________Margens da Filosofia, Campinas, Papirus, 1991.

___________“Fazer justiça a Freud: a história da loucura na era da psicanálise”. Trad. Maria Ignes Duque Estrada. In: Ferraz, M. C. Franco (org). Três Tempos sobre a História da Loucura, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001, p. 93-151.

___________Cogito e História da Loucura. Trad. Pedro Leite Lopes. In: Ferraz, Maria Cristina Franco (org). Três Tempos sobre a História da Loucura, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001, p. 11-67.

___________La voix et le phénomène. Paris: Quadrige/PUF, 2003.

___________Força de Lei. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

DESCARTES, R. Oeuvres de Descartes. Editores Charles Adam e Paul Tannery. Paris, Leopold Cerf, 1897.

__________ Méditations Métaphysiques. Paris: Press Universitaires, 1966.

__________ Discurso do Método. Meditações. As paixões da alma. Cartas. Objeções e respostas. Trad. Bento Prado Júnior e J. Guinsburg. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1975.

__________ Méditations Métaphysiques. Tradução e comentários Jean-Marie Beyssade e Michelle Beyssade. Paris: Garnier-Flammarion, 1979.

__________ Correspondance avec Elisabeth et autres lettres. Introdução, bibliografia e cronologia de Jean-Marie Beyssade e Michelle Beyssade. Paris: GF Flammarion, 1989.

156

DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira. Trad. Fausto Castilho, edição bilíngüe latim-português. Campinas, CEMODECON/IFCH-UNICAMP, 1999.

FOUCAULT, M. L'Archéologie du Savoir. Paris: Gallimard, 1969.

___________ “Sobre a Arqueologia das Ciências Humanas – Resposta ao Círculo de Epistemologia”. In: Foucault, M. Estruturalismo e Teoria da Linguagem. Petrópolis, Vozes, 1971.

___________ Mon corps, ce papier, ce feu. In: Histoire de la folie à l'âge classique. Posfácio. Gallimard, Paris, 1972, p. 583-603.

___________ Histoire de la folie à l'âge classique. Gallimard, Paris, 1977.

___________ História da Loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.

___________ Microfísica do Poder. Org. e Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Editora Graal, 1982.

___________ A ordem do discurso. São Paulo: Ed.Loyola, 1996.

___________ Resposta a Derrida. Trad. Vera Lúcia Ribeiro. In: Ferraz, Maria Cristina Franco (org). Três Tempos sobre a História da Loucura, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001, p. 71-90.

___________ Dits et Ècrits I – 1954-1975, Ed.Gallimard, Paris, 2001.

___________ Dits et Ècrits II – 1976-1988, Ed.Gallimard, Paris, 2001.

___________ As palavras Dits et Ècrits II – 1976-1988, Ed.Gallimard, Paris, 2001.

___________ A Hermenêutica do sujeito (1981-1982). Trad. Muchail, S.T e Fonseca, M.A. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

___________ O poder psiquiátrico (1973-1974). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

___________ As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

___________ Le gouvernement de soi e des autres (1982-1983). Paris, Gallimard/Seuil, 2008.

B) BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

157

ADORNO, Francesco Paolo. “Style de l'écriture, style de l'existence” e “Littératura e Langage”. In: Le style du philosophe: Foucault et le dire-vrai. Paris: Éditions Kimé, 1996.

AGAMBEN, G. A linguagem e a morte. Belo Horizonte, EDUFMG, 2006.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D.M; VEIGA-NETO, A; SOUZA-FILHO, F. (orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

ALQUIÉ, Ferdinand. A filosofia de Descartes. Lisboa, Editorial Presença, 1980.

ALQUIÉ, Ferdinand. “Le philosophe et le fou”. Descartes Metafisico: Interpretazioni del novecento. Seminario di studi cartesiani, Roma, 1993, p. 107-116.

BARTHES, Roland. “Savoir et folie”, Critique, n. 174, nov 1961, pg. 915-922.

BATAILLE, G. A experiência interior. Trad. Celso Coutinho e Antônio Ceschin. São Paulo, Ática, 1992.

BENVENUTO, Sérgio. “Héstia-Hermes. La Filosofia tra focolare ed angelo». Dialegesthai. Rivista telematica di filosofia [on line], ano 3 (2001) [inserido 9/07/2001], disponível em World Wide Web: <http: // mondodomani.org/dialegesthai.

BESSE, Jean-Marc. Les Grandeurs de la Terre: Aspects du savoir géographiques à la Renaissance. Lyon: ENS Éditions, 2003.

BEYSSADE, Jean-Marie. “Mais quoi ce sont des fous”. Revue de Métaphysique et de Morale, juillet-septembre 1973, Paris, p. 273-294.

BEYSSADE, Jean-Marie. La philosophie première de Descartes. Paris: Flammarion, 1979.

BEYSSADE, Jean-Marie. Descartes au fil de l'ordre. Paris: PUF, 2001.ol.III. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 81-114.

BEYSSADE, Jean-Marie. Études sur Descartes. L'histoire d'un esprit. Paris, Éditions du Seuil, 2001.

BEYSSADE, Jean-Marie. “La querelle sur la folie: une suggestion de Ferdinand Alquié”. Descartes Metafisico: Interpretazioni del novecento. Seminario di studi cartesiani, Roma, 1993, p. 99-106.

BEYSSADE, Michelle. Descartes. Trad. Fernanda Figueira. Lisboa, Edições 70, 1991.

BEYSSADE, Michelle. “Michel Foucault et Jacques Derrida: y a-t-il um argument de la folie?” Descartes Metafisico: Interpretazioni del novecento. Seminario di studi cartesiani, Roma, 1993, p. 117-120.

158

BEYSSADE, Michelle. “Présentation”. In: Descartes, Réné. Méditations métaphisiques. Paris: Le livre de Poche, 1990.

BILLOUET, Pierre. Foucault. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo, Estação Liberdade, 2003.

BIRMAN, Joel. Entre cuidado e saber de si – sobre Foucault e a psicanálise . Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.

BLANCHOT, Maurice. L'Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969, pg. 289-299.

BORDAS, E. Les chemins de la metaphore. Paris: PUF, 2003.

BRANCO, Guilherme .C e PORTOCARRERO, V. Retratos de Foucault. Rio de Janeiro, NAU, 2000.

BRANCO, Guilherme C.. “Atitude-limite e relações de poder. Uma interpretação sobre o estatuto da liberdade em Michel Foucault” In: Albuquerque Jr, Veiga-Neto e Souza Filho (orgs.) Cartografias de Michel Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2008., pp. 137-147.

BRAUDEL, Fernand. “Comentário”. Annales, économies, societés, civilisations, n. 4, juil-août 1962, pg. 772-771.

BUCKINX, Sébastien. Descartes entre Foucault e Derrida. Paris, Ed. L´Harmattan, 2008.

CANGUILHEM, Georges. “Abertura”. In: Roudinesco, E.; Canguilheim, G.; Major, R. e Derrida, J. Foucault: Leituras da História da Loucura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

CASTEL, Robert. “Les aventures de la pratique”. Le débat, n. 41, sept-nov 1986, pg. 41-51.

CERTEAU, Michel de. “Le rire de Michel Foucault”. Le débat, n. 41, sept-nov 1986, pg. 140-152.

CHEVALLIER, Philippe e GREACEN, Tim. (org). Folie et justice: relire Foucaut. Toulouse, Ed. Érès, 2009.

COTTINGHAM, J. Dicionário Descartes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.

DELEUZE, G. Conversações, 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo, Brasiliense, 2005.

DONATELLI, Marisa C.O.F. “Descartes e os Médicos”. Scientiae Studia, vol.1, no.3, 2003, p. 323-336.

DREYFUS, H e RABINOW, R. Michel Foucault: un parcours philosophique: au-dela de

159

l'obectivite et de la subjectivité. Tradução Fabienne Durand-Bogaert. SL, Gallimard, 1984.

DREYFUS, H e RABINOW, R. “Michel Foucault entrevistado por Rabinow e Dreyfus” In: Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica, trad. Vera Portocarrero, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.

DREYFUS, H e RABINOW, R. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica, trad. Vera Portocarrero, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.

ERIBON, Didier. Michel Foucault 1926-1984. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

EVA, Luiz Antônio Alves. “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, jan-dez. 2002, p. 285-313.

EVA, Luiz. A figura do filósofo: ceticismo e subjectividade em Montaigne , São Paulo, Ed. Loyola, 2007.

FABRE, Pierre-Antoine. Ignace de Loyola: le lieu de l'image. Paris: Vrin-EHESS, 1992.

FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o Direito. São Paulo, Max Limonad, 2002.

FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e a Constituição do Sujeito. São Paulo, EDUC, 2003.

FONSECA, Márcio Alves. “Entre a vida governada e o governo de si”. In: Albuquerque Jr, D.M; Veiga-Neto, A.; Souza-Filho, F. (orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, pp. 241-251.

FORLIN, Enéias. O papel da dúvida metafísica no processo da constituição do cogito. Assoc. Editorial Humanitas, São Paulo, 2004.

FRANKFURT, H. Demons, Dreamers and Madmen. Indianapolis/New York: The Bobbs-Merrill Company, 1970.

GAUKROGER. S. Descartes uma biografia intelectual. Rio de Janeiro, Contraponto, 1995.

GILSON, E. Etudes sur lê role de la philosophie medievale dans la formation du systeme cartesien. Paris, Vrin, 1930.

GOLDSCHMIDT, V. A religião de Platão,”Tempo histórico e tempo lógico”. Ed. Difel, 1970.

GOUHIER, H. Decartes: Essais sur le “Discours de la méthode”. La Métaphysique et

160

la morale. Paris, Vrin, 1973.

GROS, Frederique. Foucault et la Folie. Paris, PUF, 1997.

GUEROULT, Martial. Descartes selon l'ordre des raisons. Paris, Aubier, 1953.

HADOT, P. O que é a Filosofia Antiga? Trad. Dion Macedo. São Paulo: Loyola, 2004.

HEIDEGGER, M. Nietzsche, vol II. São Paulo, Ed. Forense, 2007.

KANT. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 7ª ed., 2010.

KHALFA, Jean. “Introduction”. In: Foucault, Michel. History of Madness. London e New York: Routledge, 2009.

KOYRÉ, A. Consideração sobre Descartes. Lisboa, Ed. Presença, 1992.

LEBRUN, Gerard. “Transgredir a Finitude”. In: Ribeiro, Renato Janine (org.). Recordar Foucault. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985, p. 9-23.

LEFORD, Claude. Le travail de l'oeuvre Machiavel. Paris, Gallimard, 1972.

LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Descartes e a metafísica da modernidade. São Paulo, Ed. Moderna, São Paulo, 1993.

LEOPOLDO E SILVA, Franklin. “O lugar da interpretação”. Cadernos Nietzsche, (4), São Paulo, 1997.

MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro, Graal, 1982.

MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 2001.

MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro, Graal, 2002.

MAFFESOLI, M. et alii; Espaces et imaginaire: Ville-Montagne-Carrefours. Grenoble: Press Univers., 1979.

MAJOR, R. “Crises da Razão, crises de loucura ou a “loucura” de Foucault”. In: Roudinesco, E.; Canguilheim, G.; Major, R. e Derrida, J. Foucault: Leituras da História da Loucura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

MANDROU, Robert. “Trois clés pour comprendre l'Histoire de la folie à l'époque classique”. Annales: économies, societés, civilisations, n. 4, juil-août, 1962, pg. 761-771.

MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiras na França do século XVII: uma análise de psicologia histórica. Trad. Nicolau Sevcenko. São Paulo, Perspectiva, 1979.

161

MARION, J. L. Sur l´ontologie grise de Descartes, Paris, Urih, 1975.

MARION, J. L. “Qui sui-je pour ne pas dire ego sum, ego existo?” In: Carraud, V; Marion, Jean-Luc (org.) Montaigne: Scepticisme, Métaphysique, Théologie. Paris, PUF, 2004, pp. 229-266.

MARQUES, Antonio. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo, Discurso Editorial, 2003.

MONTAIGNE, M. “Apologie de Raimond Sebond”. In: Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1962.

MONTAIGNE, M. “Da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a razão”. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, Col. “Os pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 93-95.

MUCHAIL, Salma Tannus. “Foucault e a história da filosofia”. Revista Tempo Social. São Paulo, no.7, (1 e 2), out.95, p. 15-20.

MUCHAIL, Salma Tannus. “A leitura dos filósofos”. In: Castelo Branco e Portocarrero (orgs.) Retratos de Foucault. São Paulo, Nau editora, 2000, p. 233-245.

MUCHAIL, Salma Tannus. “Marginalização filosófica do cuidado de si: o momento cartesiano”. In: Albuquerque Jr, D.M; Veiga-Neto, A.; Souza-Filho, F. (orgs.). Cartografias de Foucault, Belo Horizonte, Autêntica, 2008, p. 365-376.

MURALT, André de. L'unité de la philosophie politique: De Scot, Occam et Suarez au libéralisme contemporain. Paris, Vrin, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Trad. Rubens R Torres Filho, coleção Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1983.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução, notas e prefácio J. Guinsburg, São Paulo: Cia das Letras, 2007.

NOBRE DE MELO, A.L. Psiquiatria. São Paulo: Atheneu Editora São Paulo S/A, 1970.

PASSOS, I.C.F; BEATO, M.S.F. “Concepções e práticas sociais em torno da loucura: alcance a atualidade da história da loucura de Michel Foucault para investigações etnográficas”. Psyché, n. 12, 2003.

POPKIN, Richard. “Descartes: Sceptique Malgré Lui”. In: História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza. São Paulo, Edit. Francisco Alves, 2000, p.301-330.

PORCHAT PEREIRA, O. “Ceticismo e Argumentação” In: Porchat Pereira, O. Vida comum e ceticismo. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, pp. 213-54,1994.

PORCHAT PEREIRA, O. “O argumento da loucura”. Manuscrito, Campinas, v.26, n.1, p. 11-43, jan-jun, 2003.

162

PORTOCARRERO, Vera. “O conceito de vida em questão”. Episteme: Filosofia e História das Ciências em revista, v.3, n.7, 1998.

PRADO JR., Bento. “Descartes e o último Wittgenstein: o argumento do sonho revisitado” In: Erro, Ilusão e Loucura. São Paulo, Editora 34, 2004, p. 77-107.

PRADO JR., Bento. “Erro, Ilusão e Loucura”. In: Erro, Ilusão e Loucura, São Paulo, Editora 34, 2004, pp. 23-56.

QUEIROZ, André. Foucault: O paradoxo das passagens. Rio de Janeiro, Ed. Pazulin 1999.

REVEL, J. Dictionnaire Foucault. Paris: Ellipses, 2008.

RIBEIRO, Renato Janine. “O discurso diferente”. In: Recordar Foucault. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985, p. 24-35.

ROUDINESCO, E. “Leituras da História da Loucura de 1961 a 1986. In: Roudinesco, E.; Canguilheim, G.; Major, R. e Derrida, J. Foucault: Leituras da História da Loucura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

ROUDINESCO, E. Filósofos na tormenta: Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida.

SAFATLE, Vladimir. “Grande Hotel Abgrund”. O que nos faz pensar. Cadernos de Filosofia. PUC Rio, n. 22, dez-2007, pp. 7-22.

SAFATLE, Vladimir. Notas do curso Teoria das Ciências Humanas III: “Jacques Derrida: em direção à desconstrução”. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1º semestre de 2009.

SERRES, Michel. “Géometrie de la Folie”, Mercure de France, n. 1188, août 1962, pg. 683-696 e n. 1189, sept 1962, pg. 63-81.

SIPOS, Joel. Lacan et Descartes: la tentation métaphysique, Paris, PUF, 1994.

SOARES, Alexandre. O filósofo e o autor: ensaio sobre a carta prefácio aos princípios da filosofia de Descartes. Campinas, UNICAMP, 2008.

TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a moral de Descartes, São Paulo, Brasiliense, 1990.

VERNANT, J.P. Mito e Pensamento entre os Gregos. Tradução de Haiganuch Sarian. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1990.

WAHL, Jean. Du rôle de l'idée de l'instant dans la philosophie de Descartes . Paris, Vrin, 1933.

163