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Fontes orais e disputas pela memória: uma análise a partir das primeiras produções historiográficas sobre o norte do Paraná Wander de Lara Proença * Introdução A produção de saberes sobre o passado precede ao surgimento do lugar social da universidade. Esta forma de conhecimento - que difere da história crítica, documentada e teoricamente fundamentada, no âmbito da academia - é nominada por termos diversos, 1 como por exemplo, produção memorialista ou história tradicional, sendo classificada, de modo geral, como “não profissional, produzida por intelectuais autodidatas com as mais diversas formações, mas também vinculados a instituições de ensino ou agremiações tradicionais, como sociedades e institutos históricos” (MALERBA, 2009, p. 17). Observa-se que a profissionalização do ofício historiográfico no Brasil é “muito mais tardia” e “ainda incompleta”, quando comparada, por exemplo, a outros países da América Latina, “já que, embora contando com historiadores profissionais, a profissão em si ainda não é sequer reconhecida pelo Estado até hoje”. Em razão disto, “a prevalência de uma história centrada no Estado, história oficial (quando não oficiosa), apologética das elites governantes (quando não paroquial e biográfica), foi também regra até avançada a década de 1960”, (IBIDEM, p. 18) que veicula, valida e, principalmente, legitima os usos do passado. Assim como ocorre no âmbito da academia, a produção memorialista também possui suas regras próprias de validação, reconhecimento e controle. “Qualquer imaginário su stenta- se historicamente na identificação de certos grupos sociais em relação ao sistema simbólico que representa, feedback sem o qual seria silenciado ou mesmo desapareceria” (ANDRÉ, 2014, p. 171). A exemplo, a monumentalização de murais de fotografias narrando o passado de uma região, expostos publicamente como semióforos: 2 * O presente texto é resultado de parte da pesquisa de pós-doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, sob supervisão do Dr. Jurandir Malerba (UEL/FTSA). 1 Malerba menciona várias terminologias empregadas para distinguir os chamados “historiadores práticos” dos “acadêmicos”, como por exemplo: escritores de história, historiadores populares, historiadores leigos (MALERBA, 2018, p. 129). 2 Termo usado para definir objetos, pessoas ou instituições, colocados em evidência pelos seus significados de comunicação e produção de sentidos, expostos ao olhar para articular o visível e o invisível, o passado e o presente. Em Londrina, isto ocorreu coma a fixação de murais em azulejos como monumentos em local público,

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Fontes orais e disputas pela memória: uma análise a partir das primeiras produções

historiográficas sobre o norte do Paraná

Wander de Lara Proença*

Introdução

A produção de saberes sobre o passado precede ao surgimento do lugar social da

universidade. Esta forma de conhecimento - que difere da história crítica, documentada e

teoricamente fundamentada, no âmbito da academia - é nominada por termos diversos,1 como

por exemplo, produção memorialista ou história tradicional, sendo classificada, de modo

geral, como “não profissional, produzida por intelectuais autodidatas com as mais diversas

formações, mas também vinculados a instituições de ensino ou agremiações tradicionais,

como sociedades e institutos históricos” (MALERBA, 2009, p. 17). Observa-se que a

profissionalização do ofício historiográfico no Brasil é “muito mais tardia” e “ainda

incompleta”, quando comparada, por exemplo, a outros países da América Latina, “já que,

embora contando com historiadores profissionais, a profissão em si ainda não é sequer

reconhecida pelo Estado até hoje”. Em razão disto, “a prevalência de uma história centrada no

Estado, história oficial (quando não oficiosa), apologética das elites governantes (quando não

paroquial e biográfica), foi também regra até avançada a década de 1960”, (IBIDEM, p. 18)

que veicula, valida e, principalmente, legitima os usos do passado.

Assim como ocorre no âmbito da academia, a produção memorialista também possui

suas regras próprias de validação, reconhecimento e controle. “Qualquer imaginário sustenta-

se historicamente na identificação de certos grupos sociais em relação ao sistema simbólico

que representa, feedback sem o qual seria silenciado ou mesmo desapareceria” (ANDRÉ,

2014, p. 171). A exemplo, a monumentalização de murais de fotografias narrando o passado

de uma região, expostos publicamente como semióforos:2

* O presente texto é resultado de parte da pesquisa de pós-doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação

em História da UFRGS, sob supervisão do Dr. Jurandir Malerba (UEL/FTSA). 1 Malerba menciona várias terminologias empregadas para distinguir os chamados “historiadores práticos” dos

“acadêmicos”, como por exemplo: escritores de história, historiadores populares, historiadores leigos

(MALERBA, 2018, p. 129). 2 Termo usado para definir objetos, pessoas ou instituições, colocados em evidência pelos seus significados de

comunicação e produção de sentidos, expostos ao olhar para articular o visível e o invisível, o passado e o

presente. Em Londrina, isto ocorreu coma a fixação de murais em azulejos como monumentos em local público,

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por ocasião das celebrações dos 25 anos e do cinquentenário do município, respectivamente em 1959 e 1984. Estes suportes têm como material de exposição fotografias de José Juliani – fotógrafo que atuou

profissionalmente a serviço da propaganda publicitária da Companhia colonizadora do norte paranaense, nas

décadas de 1930 e 1940 (ARRUDA, 2005, p. 1,2,8).

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[...] a interpretação, ou a aceitação da interpretação contidas naquelas imagens

[...] só foram realizadas daquela forma porque passaram por uma espécie de aval

do sentido coletivo sobre o que aconteceu e o que estava acontecendo. O aval

articula o passado do observador, seu presente e suas expectativas com relação ao

futuro [...](IBIDEM, p. 15).

1 – Narrativa memorialista

Nas décadas que antecedem à presença da academia na região norte paranaense já se

havia elaborado um saber sobre o passado deste contexto, de autoria de profissionais de

diferentes áreas, como jornalistas, geógrafos, cronistas, e publicadas em revistas, jornais ou

encartes comemorativos, “especialmente aquelas produzidas durante as décadas de 1950 e

1960”.3 O historiador Edson Leme comenta:

Desde os relatos desses primeiros colonizadores, foi se construindo, por meio de

crônicas, álbuns e demais publicações comemorativas e alusivas à colonização, uma história que se pretende oficial, a qual se tornou hegemônica por muitas

décadas consagrando como mitos fundadores de Londrina, a CTNP e os bravos

pioneiros (LEME, 2013, p. 230).

Estas narrativas sobre o passado também foram em grande medida matizadas pela

legitimação de interesses políticos, vinculados ao poder de mando de elites locais:

As publicações, tanto particulares quanto aquelas produzidas pelo poder público

municipal, crônicas, livros-documentários e notadamente os álbuns comemorativos,

elegeram, para serem os protagonistas dessa história, apenas os representantes dos

grupos hegemônicos da sociedade, tornados vultos e nomes tutelares da história

local/regional. Os segmentos populares, quando apareciam, ocupavam um espaço

discreto de coadjuvantes anônimos, figurantes mudos da grande epopeia pioneira

(IBIDEM, p. 84).

3 Dentre os álbuns e publicações comemorativas, que reforçam o ideário de uma história tradicional ou oficial,

destacam-se: Londrina: 25 anos de sua História, de autoria de Humberto Puigari Coutinho, diretor do jornal

Paraná Norte, periódico financiado e porta-voz da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), que buscou

reafirmar a grandiosidade de Londrina a partir da história de sua colonização; o livro Londrina no seu Jubileu de

Prata: documentário histórico, dos jornalistas Gustavo Branco e Fideli Mioni, que contou com o apoio para

divulgação do Jornal Folha de Londrina, principal jornal da cidade; Gustavo Branco era proprietário da revista

Realizações Brasileiras e tinha prestígio junto às elites cafeeiras da cidade. Ver LEME, Edson José Holtz. O

teatro da memória: o Museu Histórico de Londrina - 1959-2000. 2013. 276 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia Júlio de Mesquita Filho, Ciências e Letras de

Assis, 2013. Outras publicações: ALMEIDA, G. H.. Guia Geral de Londrina. 1945; BARROSO, V.. O famoso

norte do Paraná: terra onde se anda sobre dinheiro, 1956; BRANCO, G. & ANASTÁCIO, A. Construtores do

progresso, 1969; CARVALHO, B. Londrina Monumental: milagre do gênio britânico e do caboclo vencendo as

forças brutas da natureza, 1978; COMPANHIA Melhoramentos Norte do Paraná. Colonização e desenvolvimento do norte do Paraná: publicação comemorativa do cinquentenário da Companhia

Melhoramentos Norte do Paraná, 1975; MASCHIO, E. Documentário de Londrina, 1977; ZORTÉA, A. J.

Londrina através dos tempos e crônicas da vida: edição comemorativa ao 40º aniversário, 1975.

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4

Estes bens simbólicos, produzidos pelo memorialismo, são em princípio controlados

ou resguardados pelos agentes produtores:

Entre os signos de poder e de prestígio estão os elementos da história, as narrativas

que enaltecem os feitos dos grandes homens do passado, os trabalhos e a luta em

torno da memória. [...] Nesse sentido, tornar-se os “senhores da memória”, ou estar

mais perto da fundação e dos fundadores, é um recurso importante na constituição de

poder e legitimidade (ARRUDA, 2005, p. 09).

Em balanço historiográfico sobre estas produções, a historiadora Sonia Adum4 aponta

como características e perspectivas centradas em um “discurso de felicidade”. Produzidos

entre as décadas de 1930 e 1960, estes textos “apesar da diversidade de gênero, tema e estilo,

podem ser caracterizados como de ‘exaltação’” (ADUM, 2008, p. 04). E comenta: “Na

perspectiva dessas obras, o norte do Paraná é a Terra da Promissão, o Eldorado, a nova Canaã,

o paraíso prometido da fertilidade, da produção agrícola abundante, das oportunidades iguais

de enriquecimento para todos aqueles que quisessem trabalhar e prosperar”. Acrescenta que

“essas análises, não raro, trazem no bojo a ideia de uma ocupação e construção pacíficas do

território, onde o capital e seus agentes foram, naturalmente, preenchendo os espaços, como

se estes estivessem ansiando e esperando por aqueles” (IBIDEM, p. 05).

A formação mais tradicional, em termos historiográficos, dos poucos historiadores

docentes - aliada ao número de profissionais não graduados em História -, influenciou na

elaboração do conceito de museu e de arquivo de História, que estavam sendo criados.5 Essa

perspectiva tradicional se refletiu na coleta de objetos e documentos textuais considerados de

“valor histórico”, com ênfase no ufanismo colonizador da região:

Visando a formação do acervo, os alunos do curso de História eram incentivados a

buscar doações de peças e documentos em Londrina e nas suas cidades de origem e

recebiam notas por este trabalho. Vários docentes do Departamento passaram a direcionar suas disciplinas, com o intuito de transformar em atividades acadêmicas

esse processo de coleta de documentos e peças. Essa atividade tinha como objetivo

abastecer o futuro museu e arquivo de acervos. A perspectiva adotada direcionava

este processo de pesquisa e de coleta para questões relacionadas aos colonizadores

da região (IBIDEM, p. 128).

2 – Narrativas acadêmicas e uso de fontes orais

O cenário de transformação da historiografia brasileira está diretamente relacionado à

sua configuração numa disciplina acadêmica, institucionalizada dentro de um sistema

universitário (MALERBA, 2018, p. 57); mas, de modo decisivo, “toda a renovação da história

no Brasil desde o ano 1970 foi pautada na consolidação dos cursos de pós-graduação,

4 Professora aposentada do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). 5 Idealizados no final dos anos 1960, o Museu e O Arquivo de História (AH) foram oficialmente organizados no

início dos anos 1970, com a criação da Universidade Estadual de Londrina - UEL.

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efetivada de fato a partir dos anos 80” (IBIDEM, p. 111). Novas histórias, produzidas na

academia, a partir do final dos anos 1980 representam “uma virada” no campo historiográfico,

quando “campos novos passaram a ser explorados” (IBIDEM, p. 13). Estas produções, pela

exploração de territórios do conhecimento até então ignorados e silenciados, provocaram

significativas mudanças nas práticas teórico-metodológicas vigentes à ocasião, marcando um

revisionismo da historiografia estabelecida no campo.

Configura-se como uma nova tendência a produção “sistemática de pesquisa

monográfica com ampla base empírica dentro dos novos programas de pós-graduação”, com

ênfase no temário regional. Avaliações e balanços historiográficos sobre o período

demonstram as pesquisas em “história regional” em ordem primeira dentre “os enfoques

metodológicos mais recorrentes nos anos 1980” (MALERBA, 2018, p. 112). Essa produção

[...] corroia os alicerces do padrão até então predominante, de formulações

explicativas lógicas e históricas típicas da historiografia das décadas anteriores.

[...] As formulações historiográficas clássicas passaram a ser sistemática e

convincentemente desafiadas na nova produção monográfica com base em

relevantes estudos empíricos de recorte regional (IBIDEM, p. 58.

A abordagem com enfoque regional recebe influências de três elementos

convergentes. Primeiramente, das novas perspectivas conceituais em relação ao que se

entende por região. No final da década de 1980, e mais fortemente nos anos de 1990, pela

expansão da história da cultura, os estudos do simbólico e das representações fizeram com

que o fenômeno região também fosse analisado por esta dimensão, definido não mais por

critérios objetivos ou “naturais”. Principalmente pelas contribuições de Pierre Bourdieu,

passou-se a considerar que as ordens de discursos que classificam ou explicitam identidades e

especificidades de um determinado espaço nomeado de região, incidem no “poder simbólico”

ou no “campo da luta simbólica” (BOURDIEU, 1989, p. 113). Ou seja, era preciso tomar as

narrativas sobre o passado regional como um discurso que participava da “luta de

representações”, travada entre as próprias disciplinas acadêmicas, pela fixação do que seria o

objeto regional; pelas disputas entre os discursos memorialistas sobre o passado da região e a

fala revestida do “poder simbólico” da ciência na figura do historiador acadêmico; e pelas

tensões internas da própria disciplina de História quanto ao posicionamento em relação ao

discurso tradicional nas regiões em que se inserem as universidades, no sentido de validar,

romper ou revisar criticamente esse capital já estabelecido.6

6 São exemplos destas perspectivas: PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Paranismo - cultura e imaginário no

Paraná da I República. 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,

1996; SZESZ, Christiane Marques. A invenção do Paraná: o discurso regional e a definição das fronteiras

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Um dos elementos que contribuíram diretamente para isto se refere às possibilidades

de trabalho com as fontes orais e sua importância para abordagens de temporalidades

recentes. Arias Neto comenta que ao trabalhar com objeto regional, em temporalidade recente,

“percebe-se que muitas coisas não estão nas fontes escritas”:

Daí o papel das fontes orais na maneira de se abordar o objeto: a riqueza dos

depoimentos de personagens que vivenciaram esse passado, de quem é parte deste

passado. Usei os depoimentos orais nas linhas de trabalho, como diretrizes que serão preenchidas com outra documentação, as fontes escritas. Aquilo que os

“pioneiros” me disseram apontava o caminho a ser trilhado, a ser problematizado

(ARIAS NETO, 2019).

Sonia Adum também ressalta que

A nova complexidade do campo histórico estendeu-se, também, à revalorização da

oralidade, através do depoimento de testemunhos vivos, agora não apenas focados

nos “grandes acontecimentos” políticos e sociais, mas fundamentalmente, no cotidiano de atores de todas as camadas sociais (ADUM, 2008, p. 13).

As novas narrativas advindas com estas mudanças paradigmáticas, em termos

conceituais e metodológicos, destacam a visão sobre “o papel desempenhado pelos indivíduos

como sujeitos de sua história”, tendo contribuído para esse protagonismo a abordagem com

“uso da redução de escala” (MALERBA, 2018, p. 58,59). Malerba observa que “a entrada de

novos personagens e temática na agenda dos investigadores foi um dos efeitos de 1968 sobre

a historiografia ocidental”, e que “sob a égide da virada cultural, a historiografia ocidental e,

dentro dela, com certo delay, a brasileira, se transmutou” (IBIDEM, p. 63). Começaram então

a surgir estudos sobre os “excluídos” em geral; o olhar etnológico descobria o “outro”.

No caso do norte do Paraná, as novas narrativas, em contrapartida ao “discurso de

felicidade”, constatam a violência cotidiana visibilizada na luta do dia-a-dia dos grupos

marginalizados - como jogadores, prostitutas, cáftens, ladrões, vagabundos -, que apareciam

retratados nas páginas policiais dos jornais. “Tais abordagens propiciaram a presença, no

cenário dessa história, de outros personagens que, já bem cedo, fizeram sua estreia,

desnudando o outro lado da ‘civilização’”.7 A dissertação em História, de Antonio Paulo

Benatti,8 produzida em 1996, sobre a prostituição local,9 colocou em xeque o “ideário de uma

cidade higiênica, ordeira e disciplinada” (ADUM, 2008, p. 20) ao analisar as diferentes

cartográficas – 1889-1920. 1995. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná,

Curitiba, 1995. 7 Adum comenta que um pouco de cada um desses dois primeiros gêneros reaparecerá nas histórias produzidas

posteriormente. “Os da primeira categoria, de ‘exaltação’, voltarão naquelas que mostram a vitalidade do

povoamento e o progresso que se instaura; os da segunda, ‘marginal’, naquelas histórias que farão emergir os

segmentos populares, que deixarão de ocupar o espaço discreto de coadjuvantes para se transformarem nos personagens centrais dos relatos” (ADUM, 2008, p. 8, 9). 8 Atualmente, professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa/ PR (UEPG). 9 Londrina foi considerada, nos anos 1940 e 1950, uma das maiores aventuras prostitucionais do país.

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representações entre boemia e marginalidade, descortinando as relações tensas entre grupos

hegemônicos e marginais: “Na época, busquei resgatar a presença dessas camadas populares

em Londrina e região”, e acrescenta:

Já na graduação, tive participação em trabalhos de PIBIC, dedicando tempo ao

levantamento e leitura de fontes, pelo prisma de um marxismo mais heterodoxo. Fui

descobrindo que o progresso produz civilização, mas também barbárie, no mesmo

processo dialético. Nas páginas dos jornais, centro e margem estão paralelamente

publicados nas colunas sociais e policiais (BENATTI, 2016).

3 – Revisionismo no campo de saber sobre o passado

Os novos trabalhos trouxeram elementos de contestação às produções feitas dentro dos

“cânones” oficialmente estabelecidos. As narrativas memorialistas, ou mesmo acadêmicas,

foram submetidas a uma leitura crítica. Tal revisionismo resultou no enfoque de novos

personagens, desconstruindo determinadas “verdades” até então intocadas e sedimentadas,

questionando, inclusive, lugares de memória que serviam como suporte material das

representações regionais.

Em 1989, Nelson Tomazi produziu uma dissertação de mestrado em História em que

problematizou o discurso mítico sobre a Companhia colonizadora da região norte paranaense:

o discurso triunfalista da Companhia de Terras ocultou outras formas ilícitas de

limpeza da área que foi colonizada. O silêncio em relação ao destino dos indígenas

e posseiros na região pode ser comprovado por meio de depoimentos e até mesmo

nas entrelinhas dos discursos da CTNP (TOMAZI, 2012).

Sua investigação constatou que “o mito da Companhia é estruturado por quatro

elementos fundamentais”:

Primeiro, sua atuação trouxe o progresso e a civilização para o norte do Paraná;

segundo, embora seja privada, sua atividade é considerada de interesse público;

terceiro, sua atuação foi possível devido aos empreendedores: os pioneiros; e,

finalmente, sua ação é exemplo pioneiro de reforma agrária (IBIDEM).

E conclui: “Os quatro elementos tinham a função de ocultar o verdadeiro objetivo da

ação da Companhia: a obtenção de lucros de forma mais rápida possível” (IBIDEM).

Sonia Adum destaca a relação de sua dissertação com as narrativas estabelecidas: “Eu

já fazia uma leitura crítica dessa historiografia, perguntando de onde ela emerge? de onde vem

esta visão?”.10 Analisou e questionou o discurso de felicidade implícito nas publicações

10 A autora também comenta sobre a relação entre seu objeto de pesquisa e trajetória pessoal: “O objeto está

ligado à minha história de vida. Vivi minha infância no centro de Londrina, região onde se observava o progresso e a riqueza de famílias economicamente bem sucedidas. No entorno, porém, circulavam e vivam

pessoas envolvidas com a prostituição, a violência, alvos da ação policial. Situava-se, naquele local, por

exemplo, a Pensão Colúmbia, que se tornou referência da prostituição em Londrina. Minha infância foi no local

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celebrativas, relacionadas ao processo de ocupação da cidade e região, o qual omitia e

silenciava outros personagens.11 Demonstrou a violência cotidiana visibilizada na luta do dia-

a-dia dos grupos marginalizados - como jogadores, prostitutas, cáftens, ladrões, vagabundos -,

que apareciam retratados nas páginas policiais dos jornais:

a pesquisa possibilitou a presença, no cenário dessa história, de outros personagens

que, já bem cedo, fizeram sua estreia, desnudando o outro lado da ‘civilização’...

histórias que farão emergir os segmentos populares, que deixarão de ocupar o espaço discreto de coadjuvantes para se transformarem nos personagens centrais

dos relatos (ADUM, 2014).

A dissertação de mestrado de Arias Neto trabalha com a perspectiva de uma nova

história política, empregando, por exemplo, o conceito de representação,12 pelo qual se

articula o político, o simbólico e o imaginário. Em um olhar crítico, sua pesquisa

contextualizou algumas das representações sobre a cidade de Londrina em fases distintas de

seu desenvolvimento, como Eldorado e Terra da Promissão, a partir de mecanismos

construídos para reproduzir esse ideário:

A persistência na crônica histórica da identificação entre a CTNP e o Norte do

Paraná revela a força das imagens produzidas nos anos 1930. A CTNP não

procurou conquistar apenas o monopólio político e econômico. Todas as

construções ideológicas expressas pelos jogos de identificações, que se encontram

na formulação das imagens de Terra da Promissão, revelam que a sociedade

capitalista busca também o monopólio de “corações e mentes”, ou seja, a sua

legitimação social (ARIAS NETO, 2008, p. 45).

E, posteriormente, quando a crise econômica que se abatia sobre a produção do café,

documentos, crônicas, símbolos, publicações, monumentos, imagens, serviram para

construir lugares de memória. Essa produção de símbolos e representações

permitiu àqueles homens, das décadas de 1950 e 1960, forjarem a própria

identidade a partir de um elo simbólico com a história da cidade (IBIDEM, p. 155).

Benatti, em sua pesquisa com recorte temporal de 1930 a 1970, analisou os territórios

e personagens da prostituição da cidade de Londrina no auge da cafeicultura, articulando as

relações entre as margens e o centro. Na bibliografia que utiliza, estabelece um diálogo com a

sociologia, a antropologia, a literatura e a geografia. Sobre isto, comenta: “as discussões

teóricas vinham das aulas, especialmente o conceito de imaginário, e um pouco sobre

do encontro do progresso, do comércio e a prostituição. Foi esse entorno que me fez enquanto pesquisadora, que

me despertou para o tema da história sobre em perspectiva crítica e revisionista em relação à historiografia

apologética sobre Londrina e a região Norte.” (ADUM, 2014). 11 Dentre as diversas fontes, utilizadas pela autora, visando dar voz a estes excluídos da memória oficial, “estava

o acervo de autos-criminais do Fórum da cidade, onde ficaram registrados os conflitos e o sofrimento de

personagens que não tiveram espaço nas colunas sociais dos jornais” (LEME, 2013, p. 117). 12 Intitulada O Eldorado: Londrina e o Norte do Paraná (1930-1975); dissertação orientada por Maria de Lourdes

Monaco Janotti. Quando publicada em livro, em 1998, a dissertação recebeu como título O Eldorado:

representações da política em Londrina (1930-1975).

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representação” (BENATTI, 2016). Partindo da percepção de ser a história das margens

fragmentada, uma vez que os indícios sobre o assunto são deixados geralmente por aqueles

que detinham o monopólio do discurso, utilizou como fontes textos jornalísticos, literatura

local e fontes orais. Desse modo, buscou

uma combinação heterogênea com diferentes tipos de fontes, inovando em relação à

proposta anterior do uso de um único tipo de fonte: a literatura, não como um mero

documento; a história oral, que era uma novidade e que abriu um flanco de

aproximação com a antropologia, que é o trabalho de campo, coleta de dados; no

meu caso, um passado recente (IBIDEM).

Quanto ao memorialismo, homogêneo e linear, construído a partir da década de 1940

sobre a região, sua problematização implicou em embate simbólico pelos bens do campo

quanto ao controle do passado:

O revisionismo historiográfico gerou, na região, certa reação memorialista.

Embora a circulação desses trabalhos não seja tão difundida entre o público em

geral, sendo conhecida, sobretudo, por leitores acadêmicos ligados às ciências

humanas, sua elaboração produziu certo incômodo em relação à memória oficial. O

surgimento, por exemplo, de grupos compostos de pioneiros e/ou descendentes

reivindicando reescrever a ‘verdadeira história’ de Londrina e do norte do Paraná,

como tem ocorrido nos últimos anos, indica essa reação (ANDRÉ, 2014, p. 77).13

Tomazi destaca estes conflitos, ao falar das repercussões de sua pesquisa:

No mestrado, houve reação e crítica daqueles que cultuavam a memória da

Companhia de terras, como responsável pelo desenvolvimento e progresso da região.

Minha dissertação criou uma repercussão, que chegou até nos jornais: pessoas enviavam comentários à Folha de Londrina, em que insinuavam: “onde já se viu

questionar a Companhia, essa coisa maravilhosa que tanto bem fez pela região?”

(TOMAZI, 2012).

Considerações finais

Nas disputas pelos bens simbólicos, as críticas e perspectivas revisionistas enfrentaram

resistências e não foram recepcionadas em determinados lugares onde a memória oficial se

viu ameaçada; mas o campo também incorporou as mudanças. Estas resistências e

transformações se visibilizam de dois modos: no contexto mais amplo do memorialismo e no

ambiente acadêmico da universidade. Em relação ao primeiro aspecto, cita-se o exemplo do

Museu Histórico da cidade de Londrina. Simbolizando um território de conflitos de memórias

e ausência de diferentes vozes, enquanto órgão oficial da universidade, aquele espaço

13 O autor cita como outro exemplo o fato de que “nos últimos anos a quantidade de produções memorialistas

cresceu de modo visível. As livrarias de Londrina possuem seções específicas sobre a história de Londrina e/ou

Paraná, que comportam obras enfocando o passado da região de forma apologética e idealizada”. Ibidem.

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representa as disputas pelo passado como um bem valorativo, sob a pretensão de que controlar

o passado pode implicar também no controle do presente:

Esta visão da história local, consagrada nas exposições do museu, ganhou, em

meados da década de 1990, um importante reforço para sua manutenção, com a

criação de uma associação de amigos. A Associação Sociedade de Amigos do Museu

(ASAM), formada por pessoas, em sua maioria, pertencentes às chamadas elites

locais e identificadas com a ideologia do pioneirismo, além do apoio financeiro ao museu, tornou-se uma forte aliada dos diretores identificados a esta narrativa

tradicional (LEME, 2016, p. 24).

Conforme Tomazi, “o Museu representa a continuidade da visão tradicional; a crítica

não foi ali incorporada. Continua sendo um altar de culto à memória dos vencedores, dos que

promoveram a ‘civilização e o progresso’ no norte paranaense” (TOMAZI, 2012). Ainda é

notória ali, por exemplo, a ausência representacional da memória de indígenas,

afrodescendentes, trabalhadores rurais posseiros e inúmeros outros personagens que marcam a

história da região em estudo.

Mas também houve sinais de visibilidade das novas abordagens, como demonstrado,

por exemplo, em relação ao Memorial do Pioneiro.14 Não obstante as controvérsias do título,

o monumento trouxe um novo olhar, mais crítico, com relação à história da cidade. Um dos

totens presta homenagem aos primeiros habitantes da região, os povos indígenas. Apresenta

também fragmentos de narrativas do povo kaingang, único grupo remanescente nos dias

atuais:

A inserção desses personagens, por décadas ocultados pela narrativa tradicional,

colocou na berlinda o então consensual mito do vazio demográfico, reiteradamente

sedimentado por meio de publicações comemorativas. Mito este que sustentava a

narrativa tradicional, a qual tinha na chegada da primeira caravana da CTNP o marco zero da cronologia dita oficial da história londrinense (IBIDEM, p. 114, 115).

Para Sonia Adum, o Memorial repercute ou reflete as perspectivas conceituais das

novas abordagens historiográficas:

Apesar de o Memorial recolocar o “mito de origem”, tão comum nas representações

acerca da cidade de Londrina, pode-se perceber, através da sua construção,

significativas mudanças no conceito, ocasionadas por revisões da memória e da

história, tanto no âmbito local e regional, quanto no nacional e internacional. [...] As

revisões aconteceram no sentido de uma inversão que coloca no centro das análises

as “memórias subterrâneas” (ADUM, 2009, p. 14).

Quanto ao âmbito mais específico da academia, destacam-se ainda as influências desta

historiografia revisionista por meio das novas produções da universidade, UEL, em seus

programas de pós-graduação, nas quais as dissertações, ora citadas, passaram a ser referência

14 Inaugurado em 2007, com 17 totens enfileirados verticalmente em uma travessa na área central da cidade. No

primeiro e último há uma placa de apresentação do Memorial. Nos demais 15 totens, apresentam-se placas

contendo as homenagens aos diversos personagens. Ibidem, p. 109.

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de estudo e interpretação sobre a região.15 Exemplifica isto a existência como uma das áreas

denominada História e patrimônio, em nível de especialização,16 que apresenta em sua

proposta um olhar fundamentado nestes novos enfoques conceituais e metodológicos sobre o

temário regional.17

Referências:

ADUM, Sonia Maria S. Lopes. Imagens do progresso: civilização e barbárie em Londrina

(1930-1960). 1991. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista,

Assis, 1991.

______. A historiografia norte paranaense: alguns apontamentos. In: ALEGRO, Regina C.;

CUNHA, Maria de F.; MOLINA, Ana H.; SILVA, Lúcia H. O. (Orgs.). Temas e questões

para o ensino de história do Paraná. Londrina: Eduel, 2008.

______. Práticas Discursivas, Patrimônio e Memória: Monumento Memorial do Pioneiro. In:

SILVA, Cláudia e MORAES, Vanda (Org.) Encontro cidades novas: a construção de políticas

patrimoniais. Londrina: Edição Humanidades, 2009.

ANDRÉ, Richard G. O paraíso entre luzes e sombras: representações de natureza em fontes

fotográficas (Londrina, 1934-1944). Londrina: Eduel, 2014.

ARIAS NETO, J. Miguel. O Eldorado: Londrina e o Norte do Paraná (1930-1975). 1993.

Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.

______. O Eldorado: representações da política em Londrina (1930-1975). 2ª. ed. Londrina:

Eduel, 2008.

ARRUDA. Gilmar (Org.). Natureza, fronteiras e territórios. Londrina: Eduel, 2005.

BENATTI, Antonio Paulo. O centro e as margens: Boemia e prostituição na “capital mundial

do café” (Londrina: 1930-1970). 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade

Federal do Paraná, Curitiba, 1996.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

15 São exemplos destas pesquisas: BALLAROTTI, Carlos Roberto. 2010. Parque Municipal Arthur Thomas em

Londrina-PR: conflitos políticos e socioambientais em um território de diversidade (1975-2009). Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2010. FERNANDES, Priscila Martins.

Identidade e memória de imigrantes japoneses e descendentes em Londrina (1930-1970). 2010. Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2010. KIMURA, Rosangela. Políticas

restritivas aos japoneses no Estado do Paraná: 1930-1950 (de cores proibidas ao perigo amarelo). 2006.

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2006. NOVAK, Eder da

Silva. Tekoha e Emã: a luta das populações indígenas por seus territórios e a política indigenista no Paraná da

Primeira República - 1889 a 1930. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de

Maringá, Maringá, 2006. 16 Especialização em História, na UEL. 17 Também, na reformulação recente da matriz curricular do curso de História da UEL, inseriram-se disciplinas

com ementário que contemplam estas perspectivas conceituais e metodológicas sobre os estudos regionais.

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MALERBA, Jurandir. Notas à margem. Teoria e crítica historiográfica. Serra - ES: Editora

Milfontes, 2018.

______. A história na América Latina. Ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: FGV,

2009.

TOMAZI, Nelson Dácio. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de

Terras Norte do Paraná. 1989. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual

Paulista, Assis, 1989.

Fontes orais:

ADUM, Sonia Sperandio Lopes. Entrevista concedida a Wander de Lara de Proença e Gilmar

Arruda. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2014. Gravação em

áudio.

ARIAS NETO, José Miguel. Entrevista concedida a Gilmar Arruda Wander de Lara de

Proença. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2019. Gravação

em áudio.

BENATTI, Antonio Paulo. Entrevista concedida a Gilmar Arruda e Wander de Lara de

Proença. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2016. Gravação

em áudio.

TOMAZI, Nelson Dácio. Entrevista concedida a Gilmar Arruda e Wander de Lara de

Proença. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2012. Gravação

em áudio.