folha informativa nº05-2013

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Editor: Instituto Politécnico de Santarém Coordenação: Gabinete coordenador do projecto Ano 6; N.º 230; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.56] FOLHA INFORMATIVA Nº05-2013 AVIEIROS – DORES E MALEITAS A obra Avieiros-Dores e Maleitas (de que se apresenta um texto) expõe duas originalidades maiores: a primeira é a de conter a primeira pesquisa de grande fôlego jamais feita sobre os Avieiros, a partir de fontes não-etnográficas no sentido tradicional. A segunda prende-se com o facto de este estudo inaugurar a investigação endógena no âmbito do Instituto Politécnico de Santarém (IPS), produto directo do lançamento do projecto de candidatura da Cultura Avieira a Património Nacional; resulta também do empenho institucional da Escola Superior de Educação de Santarém, nas suas ligações ao meio ribeirinho envolvente, que legitima os processos de formação, de ensino e de investigação-acção do próprio IPS, em interacção com as dinâmicas socioculturais da Borda-d’Água do Tejo. À genialidade literária e antropológica de Alves Redol, verdadeiro padrinho de baptismo destas comunidades pesqueiras e iniciador e guia inspirado das abordagens à polissémica Cultura Avieira, seguiram-se até ao presente algumas recolhas de valor insubstituível, mas nunca uma fonte indirecta” tinha sido assim trabalhada. A documentação do Hospital de Jesus Cristo do Arquivo Histórico da Misericórdia de Santarém constitui-se deste modo na

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Page 1: FOLHA INFORMATIVA Nº05-2013

Editor: Instituto Politécnico de Santarém

Coordenação: Gabinete coordenador do projecto

Ano 6; N.º 230; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.56]

FOLHA INFORMATIVA Nº05-2013

AVIEIROS – DORES E MALEITAS A obra Avieiros-Dores e Maleitas (de que se apresenta um texto) expõe duas originalidades

maiores: a primeira é a de conter a primeira pesquisa de grande fôlego jamais feita sobre os

Avieiros, a partir de fontes não-etnográficas no sentido tradicional. A segunda prende-se com

o facto de este estudo inaugurar a investigação endógena no âmbito do Instituto Politécnico

de Santarém (IPS), produto directo do lançamento do projecto de candidatura da Cultura

Avieira a Património Nacional; resulta também do empenho institucional da Escola Superior de

Educação de Santarém, nas suas ligações ao

meio ribeirinho envolvente, que legitima os

processos de formação, de ensino e de

investigação-acção do próprio IPS, em

interacção com as dinâmicas socioculturais

da Borda-d’Água do Tejo.

À genialidade literária e antropológica de

Alves Redol, verdadeiro padrinho de

baptismo destas comunidades pesqueiras e

iniciador e guia inspirado das abordagens à

polissémica Cultura Avieira, seguiram-se

até ao presente algumas recolhas de valor

insubstituível, mas nunca uma fonte

“indirecta” tinha sido assim trabalhada. A

documentação do Hospital de Jesus Cristo

do Arquivo Histórico da Misericórdia de

Santarém constitui-se deste modo na

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primeira grande fonte não-convencional, escrita, a ser desbravada.

Acresce que os autores disponibilizam a outros investigadores a preciosa Base de Dados que

industriosamente elaboraram, abrindo caminho para o aprofundamento de outros estudos

como, por exemplo, no âmbito da onomástica e genealogia Avieiras, no da História

Demográfica e da Família, ou no da História Social. Com este estudo se revelam pegadas

involuntárias de pescadoras e pescadores Avieiros, impregnadas de algo profundo (e

normalmente não-dito, e ainda menos escrito) nas suas vivências humanas, que expõem não

apenas os aspectos sanitários de mal-estar e incómodos físicos indicados nas “Dores e

Maleitas” do título, mas que vai muito mais além na sua riqueza e processamento de dados,

identificando ritmos, os ciclos vitais e dinâmicos da implantação dos assentamentos Avieiros

situados nas vizinhanças da urbe scalabitana, desonobilando as escamas que têm encoberto a

sua história, e desvendando aspectos inusitados da vida do dia-a-dia das segregadas

comunidades de pescadores, tão íntimos como os das diferentes peças do seu vestuário.

As “Dores e Maleitas” do título, cujo inovador

tratamento tem validade própria, não nos dispensam

aqui de comentar o tema: quanto a estas questões

sanitárias, há que pensá-las no contexto secular das

comunidades ribeirinhas, mais abertas aos contactos

com o exterior. Tradicionalmente, e até ao fim do Antigo

Regime, em cada núcleo portuário, assim que chegavam

“notícias de pestilência” a bordo, o Guarda-Mor de Saúde

era a autoridade que podia colocar de quarentena os

navios sinalizados, e ir até ao encerramento do porto. No

século XIX, a autêntica “estrada” constituída pelo curso

do Tejo, era o principal eixo de movimentação de pessoas e de produtos na Borda-d’Água, e

isso facilitava a propagação de epidemias entre os pescadores (e os “marítimos” do tráfego

fluvial), como este estudo detecta para os “Vareiros” ou “Varinos”, nos anos de 1832 e 1833.

Ainda que dois-terços das causas dos internamentos hospitalares não seja explicitada na fonte,

o restante terço fornece dados específicos do maior interesse. A ocorrência de surtos

epidémicos parece ser responsável por cerca de 9% dos casos (adicionando “Doenças infecto-

contagiosas” com “Doenças do foro digestivo”). A estas, somam-se as patologias de carácter

endémico próprias das condições do trabalho no rio (a que hoje chamaríamos de “doenças

profissionais e ambientais”): cerca de 15 % dos casos corresponderiam a situações de malária,

as populares “sezões”- (identificadas como as “Doenças relacionadas com febres”), a que se

devem juntar a maioria das do “foro respiratório” e as “reumáticas”. Finalmente, as outras

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situações com maior grau de invariabilidade em função do ambiente ou do modo de vida

(nervos, parto, coração, circulação, fracturas…), comuns entre quaisquer populações, contam

com quase 10% dos casos. Como estas percentagens se reportam ao total de registos, e como

se ignoram os diagnósticos de mais de metade das situações, isso permite que, se

extrapolarmos tentativamente os dados conhecidos (9%+15%+10%), para as situações totais,

encontramos os seguintes dados, para os três níveis de patologias assinaladas: Epidemias-27%,

Endemias-44% e Outras-29%. Tanto num como no outro caso, como nas décadas iniciais

cobertas pelo estudo não era uso registar o motivo de internamento, o valor das “epidemias” é

o que está mais seguramente subavaliado, pois foi o que mais regrediu com a chegada à

contemporaneidade.

Com este arranque auspicioso, antevê-se um florescimento dos Estudos Avieiros, alguns dos

quais já em curso, que prenunciam a emergência de uma nova área científica a ser tida em

conta no futuro do IPS, a dos Estudos Fluviais, nas suas diversas vertentes transdisciplinares,

que tão poderosamente poderão contribuir para uma reconfiguração identitária e mesmo

sociocultural e económica da Lezíria do Tejo…

Luís Vidigal (do prefácio da obra)

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Avieiros - Dores e Maleitas (séc. XIX-XX) Em Portugal o direito à assistência pública médica e hospitalar foi ratificado na Carta

Constitucional de 1826 e tornou-se controverso para o estado liberal, dado o risco de facilitar

vícios de dependência entre aqueles que poderiam vir a beneficiar desse direito1.

O papel das instituições particulares de assistência pública foi desenvolvido nesta época. Entre

estas instituições estavam as Misericórdias2, que ocupavam um papel hegemónico, sendo

detentoras da quase totalidade dos Hospitais3, de âmbito local, do país.

Uma investigação desenvolvida no Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de

Santarém levou à descoberta, num documento avulso manuscrito pelo Cónego Duarte Dias, de

um texto que nos dá uma percepção do que se passava em Santarém, no ano de 1832, no

referente à saúde pública concelhia e ao papel atribuído aos pescadores de sável que

operavam na zona:

Estamos em 1832 (…) No decorrer deste mês d´Abril recolheram ao Hospital de Santarém alguns doentes vindos d´um sitio chamado Mouchão dos Burricos a uma légua de Santarém gente oriunda na maior parte d´Ovar e que normalmente vêem para estes sítios á pesca do sável.(…) Achou a Câmara dever chamar os Facultativos que tratavam 8 pessôas da classe dos Varinos no Hospital para delles saber se o mal de que tinham sido atacados e das quaes 4 haviam morrido, era Cólera morbus ou outra moléstia epidémica. (…) pelos sintomas que apresentavam os Varinos a moléstia era a intitulada a Gastro intritis agudissima, e fizeram também ver a necessidade de serem tratados em enfermaria separada, bem arejada.(…) Ainda por indicação dos Facultativos deliberou a Câmara prohibir a venda de cavalla salgada, sardinha e qualquer peixe sem previamente serem examinados pelos Facultativos, devendo emquanto ao bacalhau haver toda a cautella e que se officiasse ao Corregedor da Comarca para mandar sair do Districto os Varinos para as suas terras, por ter grassado nestas gentes a moléstia de que se tratava (…).

Estas linhas obrigaram a uma investigação mais detalhadas e direccionada para a pesquisa na

Biblioteca Municipal, nas Actas Camarárias do ano de 1833, que nos levou ao original da acta

do dia 27 de Abril com o seguinte teor:

(…) Nesta Vereação sendo presentes a Nobreza e o Juiz do Povo desta Villa (…) A Camara julgou dever chamar a este acto os Facultativos que tem tratado oito pessoas da classe dos vareiros que se recolherão ao Hospital (…) declararão

1 Praça, J. J. Lopes (1997 [1878-1880]), Direito Constitucional Portuguez. Estudos sobre a Carta Constitucional de

1826, Coimbra, Coimbra Editora, 3º volume. 2 Correia, Fernando da Silva, 1981, “Misericórdias”, em SERRÃO, Joel – Dicionário de História de Portugal, Volume

IV, Livraria Figueirinhas, Porto, pp. 312 – 315 3 NA - É o caso concreto do Hospital de Jesus Cristo de Santarém que foi administrado pela Misericórdia até 1974.

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que os sinptomas que apresentarão os oito varinos que entrarão no Hospital indicavão hua molestia intitulada – Gastro intritis agudicima – cuja molestia tem graçado atte agora só neste oito Pescadores dos sáveis.(…) Determinouse mais por indicação dos Facultativos que se prohibisse emediatamente a venda da cavalla salgada e sardinhas e de qualquer outro peixe que se venda sem ser examinado pelos mesmos Facultativos, Almotacer e Juiz da Saude, cujo exame será feito todos os dias pelas sete horas da manhãa. Devendo a respeito da venda do bacalhao haver toda a cautela no exame da sua qualidade. E que se officie ao Doutor Corregedor da Comarca para que mande sahir deste Districto os varinos para as suas terras, por ter graçado nesta qualidade de gente a moléstia de que tracta (…).

Com o avançar do século veio o fim das grandes pragas que ao longo de séculos destruíram as

populações europeias. Em Portugal a cólera irá fazer cerca de 40 mil mortos em 1833 e

aproximadamente 9 mil entre 1855-564 Registam-se igualmente importantes surtos de febre

tifóide, embora esta doença tenda a diminuir a partir de 1865. Menos mortíferas eram as

febres intermitentes ou sezões, geralmente associadas à malária ou paludismo que se

verificavam amiúde nas regiões das bacias hidrográficas do Mondego, do Tejo, do Sado, Vale

do Sorraia, entre outros.

A febre pneumónica5 irá provocar uma verdadeira mortandade contando-se mais de 100 mil

mortos entre 1918-196.

A partir de meados do século XIX há notáveis progressos no tratamento médico das doenças e

maleitas. A rede hospitalar desenvolve-se, os estabelecimentos começam a especializar-se,

surgem as primeiras maternidades e os cuidados básicos materno-infantis, abrem-se pavilhões

para isolamento de doentes infeto-contagiosos e surge a vacinação anti-variólica.

A primeira Lei Orgânica da Saúde em Portugal7 surge em 1837 e constitui, conjuntamente com

a reforma de 1868, a primeira tentativa de modernização do país face a novas práticas e

saberes.

Durante a ditadura salazarista (1933-1968), criou-se a protecção social (1944), não estatal,

com recurso às instituições de assistência pública para os casos em que as famílias não

pudessem de todo valer aos seus familiares, como se pode atestar pela leitura da legislação da

época. A Lei nº 2011, de 2 de Abril de 19468, abriu os Hospitais a todos os cidadãos e em

especial aos primeiros beneficiários do inicial sistema de segurança social, as caixas de

4 Cascão, R. 1993, Demografia e sociedade. In: História de Portugal (Dir. de José Mattoso), V Volume: O Liberalismo

(1807-1890) (Coord. Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque). S/l: Círculo de Leitores, pp. 425-439. 5 64 Almeida, S., Vieira, P.B. 1923-1925 - Dicionário de termos médicos. Revista de Língua Portuguesa, nºs. 21 a 39.

6 65 Graça, L. 1996, “Evolução do sistema hospitalar: Uma perspectiva sociológica”, Universidade Nova de Lisboa.

7Portal da Saúde, disponível em

http://www.saudepublica.web.pt/01-Administracao/Sistema_saude_pt.htm, visitado em 17-03-2010. 8 Idem

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previdência, reunidas em federação pelo Decreto-Lei nº 35 311, de 25 de Abril de 19469,

segundo o modelo corporativo.

Porém só duas décadas depois, com o estatuto hospitalar de 1968, é que o nosso sistema

hospitalar entra na sua fase moderna.

Normalmente, todo o homem deve encontrar no quadro familiar e nos recursos do seu trabalho os meios de prover à sua subsistência e ao aperfeiçoamento das suas faculdades (…) a actividade assistencial pertence, em regra, às iniciativas particulares, incumbindo ao Estado e às autarquias, sobretudo, promover e auxiliar os seus generosos impulsos10.

A partir desta altura e para apurar os direitos e

deveres da população, em matéria de

assistência social, nomeadamente para acesso

aos serviços de assistência hospitalar, passou-se

a fazer uma divisão da população em três

grupos consoante a capacidade de pagamento

das despesas médicas e hospitalares: os

pensionistas, que seriam os que possuíam

recursos para pagar todas as despesas; os

porcionistas, que eram os que só poderiam

pagar uma parte das despesas e os indigentes, os que nada podiam pagar, sendo o grau de

pobreza apurado através de um inquérito assistencial (atestado de indigência passado pelas

Juntas de Freguesia da morada).

A investigação sobre as doenças, os doentes e o respectivo tratamento têm ficado na esfera da

intimidade e é portanto pouco conhecida, o que aliás condiz com o modo como até meados do

século XX foram encarados. É sabido que os doentes ficavam em casa, onde eram tratados e

onde em geral morriam, rodeados da família e vizinhos. As crianças, então, nem mereciam

grandes manifestações de luto ou tristeza.

Antes do século XX eram as Câmaras Municipais que tinham a obrigação legal de prestar

assistência aos doentes pobres do seu concelho, mas muitas não possuíam os meios

económicos para o fazer e os Hospitais das Misericórdias supriam as faltas que a assistência

pública apresentava.

9 Ibidem.

10 Proposta de Lei, 25-2-1944, sobre o Estatuto da Assistência Social, Diário das Sessões da Assembleia Nacional e

Câmara Corporativa, p. 71

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Face a este panorama, o encontro com os Livros de Admissão de Doentes ao Hospital de Jesus

Cristo de Santarém constituiu uma autêntica revelação sobre os doentes Avieiros provenientes

de concelhos vizinhos de Santarém.

Quando acudiam ao Hospital, os Avieiros, tal como

todos os utentes carenciados, provavam a sua situação

de precariedade com um atestado que era passado pela

autoridade da sua freguesia de morada (“Atestados de

indigência”) ou por um órgão do Estado (“Informações

do “Subsecretariado de Estado da Assistência Social -

Instituto de Assistência à Família”) e que garantia a

hospitalização e o tratamento gratuitos.

Por esta altura a população da borda-d’água estava mais

vulnerável às moléstias que frequentemente

enfraqueciam a população. As condições de

habitabilidade, muitas vezes em barcos no meio do rio

ou em simples barracas de madeira, cuja humidade

tornava o ambiente insalubre, convertiam os pescadores num alvo fácil das doenças. Além

disso, o preço dos produtos alimentícios não era garantido com equidade para todos e,

consequentemente, o seu consumo era diminuto entre a população piscatória mais pobre.

Quando da entrevista realizada a uma Avieira, da zona de Benfica do Ribatejo, foi a mesma

perguntada como faziam os pescadores Avieiros e as suas famílias, quando adoeciam, como é

que tratavam as doenças e se era normal uma ida ao médico:

Tratávamo-nos como as nossas mães sabiam, faziam mezinhas de tudo, até aguardente com açúcar davam à gente. Para a constipação a minha mãe dava-nos aguardente aquecida com açúcar, ou então era tintura de iodo com café quente. Mas éramos todos saudáveis! agora é que é tudo doente. E a gente até dizia assim: somos saudáveis, estamos aqui à borda do Tejo…e era verdade, era muito verdade! A gente era muito raro estar doente. A gripe apanhava-se muito, mas de resto...”. Desta realidade também dá testemunho o apurado em investigação anterior no âmbito das vivências Avieiras: “Dantes, ninguém aqui ia aos médicos. Era tudo curado com mezinhas.11

Em entrevista dada para as Folhas Informativas nºs 36 e 37 de 2009 com o título “Pedaços de

memória de um pescador avieiro do Patacão”, realizada em 24 de Novembro de 2006 e da

autoria da Comissão Coordenadora do Projecto Nacional da Cultura Avieira, António Jerónimo

11

Lopes, Aurélio, Serrano, João, 2009, A Reconstrução do Sagrado, Âncora Editora, Lisboa, p.135.

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da Silva - pescador Avieiro -, refere o seguinte quando questionado sobre a situação de doença

na comunidade avieira do Patacão.

Sempre fui uma pessoa saudável. Mas sempre havia alguns problemas que afligiam a saúde das pessoas. Quando assim acontecia, vínhamos até Alpiarça algumas vezes, e outras vezes iam os médicos lá ao Patacão. Uma das vezes foi a minha mulher que esteve muito mal, quase a “desorpilar” e aí foi lá o médico e conseguiu tratá-la e curá-la. Antigamente, quando tínhamos uma dor de cabeça ou qualquer coisa pequena, isso não interessava, porque passava de seguida. Ninguém fazia caso disso. Havia no Patacão quem sabia rezar o quebranto, e algumas doenças eram tratadas com mezinhas. A doença do retorcido era tratada assim: quando torcíamos um braço ou uma perna, o que se fazia era meter a mão ou o pé dentro de água bem quente, a apanhar o calor quer da água quer do vapor. A minha sogra fazia uma oração e uma benzedura do retorcido para que as coisas fossem ao lugar, que as dores passassem e que o doente ficasse bem. Mas quando os problemas não se conseguiam tratar, eram tratados pelos médicos de Alpiarça. Não havia assistência médica. Quem precisava de tratamento tinha que o pagar.

As principais doenças que atingiam os homens, mulheres e crianças Avieiros identificados na

investigação, recolha e processamento de dados, nos registos do Hospital de Jesus Cristo de

Santarém, entre 1850-1966, são apresentados na tabela que se segue.

Diagnóstico Nº de registos/indivíduos

Doenças do foro nervoso 3 – 0,45% Parto 6 – 0, 89% Doenças do foro cardíaco 6 – 0,89% Doenças do foro circulatório 10 – 1,49 % Doenças reumáticas 13 – 1, 94% Outras 17 – 2,52 % Doenças infecto-contagiosas e tuberculose 23 – 3,41% Fractura 30 – 4,46% Doenças do foro digestivo 40 – 5,94% Doenças relacionadas com febres 41 – 6, 09 % Doenças do foro respiratório 49 – 7, 28% Desconhecido 435 – 64, 64%

Total 673 – 100%

Os registos investigados transmitem uma panorâmica das maleitas sofridas pelo público-alvo

da investigação, no período de 1850 a 1966, e o número daqueles que tiveram a sua condição

de saúde melhorada corresponde a um baixo índice de mortalidade registada com cerca de

10% do total de admissões. É, no entanto, perceptível a existência de um pico de mortalidade

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entre 1917-19, quando se verificou em Santarém, assim como no resto do país, a epidemia de

gripe espanhola.12

Para melhor entendimento do significado destas maleitas, à luz do século XIX, iremos

caracterizá-las a partir do “Dicionário de Medicina Popular e das Ciências Acessórias para uso

das famílias” do Dr. Chernoviz13 e do Almanaque Lello de 183214.

Caracterização das dores e maleitas

A tísica pulmonar também conhecida por tuberculose determinou grandes índices de

mortalidade até à descoberta da vacina para curar o bacilo de Kock. Doença infeciosa

transmissível e incurável, quase sempre contraída por intermédio das vias respiratórias, ou

digestivas desenvolvia-se principalmente nos pulmões mas, também, nos intestinos, fígado,

baço, cérebro, ossos, etc. Os sintomas variavam conforme os órgãos que eram afetados.

Quando se instalava nos pulmões, produzia tosse, dificuldade respiratória, expectoração com

sangue e outros fenómenos, enquanto a tuberculose óssea provocava dores e prostração. O

vírus da maleita seria muito menos agressivo se não atacasse quase exclusivamente

organismos debilitados pela permanência em habitações insalubres. A maior parte da sua

virulência deriva da falta de higiene.

A erisipela era uma infecção na pele e tecido subcutâneo

causada por uma bactéria. Surgia em qualquer idade, sendo

mais frequente nos diabéticos, obesos e pessoas com

problemas na circulação venosa sanguínea. Nos idosos o

processo de reabilitação era muito moroso. Os doentes

referiam sentir mal-estar geral provocado por dores na

cabeça e no local da infecção, febre, tremores, inchaço e

vómitos. No início da doença a pele ficava lisa, vermelha,

quente e brilhante. Com o avanço da infecção, podiam surgir

manchas vermelhas e bolhas de vários tamanhos. A maleita

aparecia geralmente nas pernas, mas podia surgir também

na cara, tronco e braços.

A diarreia ou febre intestinal era uma maleita cujo sintoma principal era a frequência e a

fluidez das dejecções. A diarreia era frequentemente originada por causas que actuavam

12

NA – O surto de gripe de 1917- 1919 foi designado de gripe espanhola, gripe pneumónica, peste pneumónica ou, simplesmente, pneumónica 13

Chernoviz, Pedro Luiz Napoleão, 1890, Dicionário de Medicina Popular e das Ciências Acessórias para uso das Famílias”. 14

Documento depositado no Arquivo Histórico.

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diretamente sobre o trato intestinal, tais como os excessos na comida, o uso de alimentos e de

bebidas nocivas pelas suas qualidades e higiene, substâncias gordas, frutas verde e bebidas

alcoólicas.

O reumatismo era caracterizado pelas dores nas articulações ou nos músculos. O reumatismo

era normalmente causado pelo frio, por fainas excessivas e também pelo abuso de bebidas

alcoólicas. Os sintomas principiavam por tremor, aceleração do pulso, calor da pele e dor na

cabeça e nas articulações, muitas vezes aparecia um edema no local afectado seguido de

febre.

A febre intermitente (sezões, paludismo) era uma

maleita caracterizada por febres que apareciam e

desapareciam ininterruptamente, por intervalos mais ou

menos longos. O termo médico, vulgarmente utilizado

desde o século XIII, era “sezão”, a designação “paludismo”

surgiu no século XIX, formada a partir da forma latinizada

de paúl15. Os doentes apresentavam os sintomas em três

estádios: primeiro com bocejos, tremor, pele fria, pulso

fraco, palidez geral, com lividez dos lábios e das unhas, no

segundo ciclo aparecia calor, pele quente, rosto corado,

olhos luzidios, pulso acelerado e imensa sede e por fim,

suor em excesso.

A bronquite consistia na inflamação da membrana mucosa que forra o canal respiratório. A

bronquite aguda atacava sobretudo as pessoas que eram sensíveis às diferentes impressões do

calor e do frio e que suavam com facilidade. Os sintomas consistiam numa pequena tosse e a

expectoração de alguns escarros cinzentos, contudo, e dependendo da extensão desta

maleita, os sintomas podiam variar.

A pneumonia era uma infecção que se manifestava nos pulmões podendo ser aguda ou

crónica. Os principais sintomas eram: febre alta, tosse, dores nas costas, mal-estar

generalizado, falta de ar, secrecção às vezes com sangue e prostração. Os principais factores

de risco prendiam-se com a idade avançada, o fumo, álcool, constipações mal curadas,

mudanças bruscas de temperatura e deficiente alimentação.

A influenza ou gripe designada de espanhola, pneumónica, peste pneumónica ou,

simplesmente, pneumónica, apareceu em 1918. A pandemia caracterizou-se pela grande

mortalidade, especialmente nos sectores jovens da população e pelas complicações a ela

15

NA - Paúl - terreno alagadiço, pântano, Dicionário Editora da Língua Portuguesa 2010, Acordo Ortográfico

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associadas. Os sintomas eram dor de cabeça, prostração, quebreira do corpo, coriza, laringite e

bronquite. Em Portugal, verificou-se uma elevadíssima taxa de mortalidade, que terá causado

cerca de 120 000 mortos.

A febre tifóide era uma doença infecciosa aguda, contagiosa e causada por uma bactéria da

classe das salmonelas. O aparecimento desta maleita tinha relação directa com as condições

socioeconómicas e sanitárias adversas, principalmente no que diz respeito à falta de

saneamento básico, distribuição e armazenamento de água. A transmissão fazia-se por via

oral, através da ingestão de água e alimentos contaminados ou mal lavados. No caso específico

dos Avieiros, os factores relevantes para o aparecimento da doença eram as estadas

prolongadas nos barcos, ingestão da água do rio (sem tratamento prévio) e a falta de higiene.

A úlcera era uma inflamação dos tecidos moles,

acompanhada de um corrimento de pus. As úlceras

manifestavam-se em qualquer parte do corpo, porém no

caso dos pescadores ocorria nas pernas e nas mãos com

maior frequência. Derivavam de feridas simples e,

conforme as causas, foram classificadas em úlceras

inflamatórias, calosas, varicosas e venéreas.

A disenteria era uma maleita microbiana aguda ou crónica

qualificada por uma inflamação do intestino grosso.

Caracterizava-se pela manifestação de cólicas e fezes

viscosas.

O bolbão poderá ser uma adulteração da palavra “boubas"

que era nessa altura o nome utilizado para designar uma grande variedade de lesões

sifilíticas16, tais como abcessos, úlceras, verrugas e pápulas.

A fractura é uma solução de continuidade de um osso ou cartilagem completa ou incompleta,

simples ou complicada, a fractura pode comunicar com uma ferida exterior.

A velhice, no século XIX princípio do XX, surgia identificada com pobreza, indigência ou doença

e eram frequentemente as instituições de assistência social que se encarregavam deles. No

caso dos Avieiros, isto não era exactamente assim, pois como sociedade fechada em si mesma,

o maior respeito e reverência ia para os mais velhos. A sua longevidade conferia-lhes uma

sabedoria que lhes era reconhecida e cultivada. Os conselhos dos mais velhos eram ouvidos

por jovens e adultos, que acreditavam que a voz da experiência de vida é imprescindível para o

seguimento correcto do seu caminho. Era aos mais velhos que cabia a responsabilidade de

16

Sousa, António Tavares de, 1981, Curso de História da Medicina. Fundação Calouste Gulbenkian

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passar aos mais novos os ensinamentos e tradições. Nas festas e cerimónias, os mais velhos

tinham direito aos lugares de destaque, revelando assim a importância que tinham na

comunidade.

(...) não sei se as novas gerações vão procurar o futuro baseando-se numa identidade que veio de trás, de muito longe. Quero acreditar que sim... À cautela, deixo-lhes o meu testemunho do que fomos, não para que acreditem, mas para que o discutam. (…) para que esta terra não seja só lugar de estar, mas de ser.17

Conclusão

O objectivo específico deste trabalho foi o de tornar visível uma faceta da vivência dos Avieiros

por terras de Santarém, nomeadamente o tratamento e hospitalização decorrentes das dores

e maleitas que os atingiram no período de 1850 a 1966.

Lurdes Véstia

17

Senos da Fonseca, “Ílhavo - trabalho monográfico do séc. X ao séc. XX”. 1983