fogo lento · parágrafo sexta-feira · 10 de junho de 2011 parágrafo ii iii m. colou a fotografia...

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parágrafo sexta-feira · 10 de junho de 2011 parágrafo III II M. colou a fotografia na parede, apagou a luz e acordou. Claro que, pelo meio, M. também dormiu, mas o texto é curto e não podemos perder tempo com minudências. M. acordou para mais um dia no São Januário. Vai levantar-se, lavar o corpo e a cara de 38 anos e algumas rugas de noites mal amanhadas, vestir-se, comer à pressa e descer os doze andares deste prédio da Praia Grande. Para sorte dele, os elevadores existem nesta história. O doutor é esperado para as consultas da manhã, medicina no geral, ortopedia na especialidade, braços retorcidos, joelhos danados e quadris desgovernandos na realidade. Ele aí vem, a estugar o passo, a casa do Governo já a ver-se, o polícia que é sempre diferente mas que parece sempre igual a vigiar a entrada do palácio cor-de-rosa. A vida repete-se nestes nadas de bota cardada e também nas batas brancas que M. vai encontrar ali mais adiante, quando passar a Escola Portuguesa, subir ao jardim junto ao Clube Militar e enfrentar a prancha íngreme da rua que conduz ao São Januário. O ritual é sempre o mesmo, os bofes pela boca da nossa personagem também. O hospital nunca sai do lugar. Um, dois, três, quatro, vinte bons dias senhor doutor como tem passado, bem obrigado e sempre sem parar. Esta gente é educada, não tem escola de taxista e, num linguajar ou noutro, consoante os idiomas capazes ao cérebro, gosta de cumprimentar o médico, com tanto de polido como de poucas falas, tanto de elegante como de misterioso. A solidão de M. atrapalha os que o rodeiam. As mulheres porque não percebem a indiferença, ainda mais as bonitas. Os homens porque anseiam camaradagem. O único companheiro de M., em casa como neste hospital que se ergue nas traseiras dos casinos Lisboa, irmãos pequeno e grande, antigo e novo, é o cigarro que fuma compassadamente. Farda branca por cima da roupa preta, o médico cumpre a função, mais um dia de rótulas sem remédio, de pernas desfeitas em acidentes, de gente que tem de aprender a andar de novo. As horas passam e com elas vem a felicidade, não essa que toda a gente diz encontrar nos corações. Antes a felicidade rua, a tal que bate com a rua dos filipinos, dos frangos assados e dos kebab que entretanto deixaram de vender, ali nas costas do antigo Leal Senado. De cada vez que M. entra na rua da felicidade, tem o mesmo pensamento. Fosse eu a nomear e esta rua teria mais uma palavra no nome. Suada. Rua da felicidade suada. A vontade do doutor pouco interessa agora. A placa, em português e num chinês que pode muito bem significar outra coisa, está lá e não é amiga de mudanças. Com a toponímia nem os médicos podem bulir. A loja de Fey é já ali à frente. M. caminha agora devagar. Roupa preta em pele branca, se já aqui foi dito perdoe-se a repetição. Barba feita com o esmero de todas as manhãs, um nariz aquilino que lhe desce da cara angulosa para se deixar a levitar acima dos dentes brancos que nem o cigarro consegue amarelar. Enquanto fuma e avança para a loja de Fey, M. gosta de adivinhá-la atrás do balcão da pequena casa fotográfica. Não sabe a idade que tem mas fá-la nos 30, não mais que isso. E, como se a imaginá-la rua abaixo em direcção à porta vermelha, M. está já a vê-la antes de a ter olhos nas vistas. Um aceno de cabeça, um sorriso que se confunde com um esgar. As fotografias estão prontas. Estão, sim. Quanto. 130 patacas. Maquinal por fora, vísceras a galope por dentro. Assim são os diálogos com esta chinesa que nunca faz por cruzar a linha, que nunca tece qualquer comentário – e M. agradece-lhe fundo por isso. Fey, um cabelo longo e liso e lavado a descer as costas, conhecia o segredo de M.. Aqueles olhos de carvão inscritos em cara de mármore sabiam pelo menos parte do segredo do doutor. Falaram-lhe daquela loja, de uma fotógrafa discreta que abrira negócio para ganhar uns trocos, e M. percebeu que, se era para arriscar, ali estava o melhor sítio. Nessa tarde chuvosa, já à distância de uns sete meses desta outra húmida e quente em que agora o vemos pagar mais maço de ima- gens reveladas, M. vestiu a gabardina e avançou para a rua com o rolo no bolso. À aproximação das portas vermelhas da rua da felicidade encheu-se de confiança. Afinal, que melhor sítio para reve- lar aquelas fotografias que uma loja na rua onde, anos antes, se comprava prazer para o corpo como quem compra arroz para a boca? Se aquela mulher não compreendesse e o denunciasse, ou se recusasse tê-lo como cliente, então nenhuma outra casa do género em Macau lhe faria o serviço. * O cigarro entre os lábios carnudos e dois olhos pequeninos cravados na câmara. O resto era um corpo de mulher ausente de roupa – a perna traçada, a barriga a desenhar refregas, as mamas ainda tesas e, atrás da carne que só podia ser do sudeste asiático, um janelão para Nam Van, os casinos, a Macau que não adivinhava o lado de lá do vidro. A imagem é cada vez mais nítida à luz contida do estúdio e Fey, que a revela, olha uma e outra vez para aquela mulher que desconhece. Está acostumada a fazer surgir rostos estranhos no papel com a cadência de todos os dias. Mas a alqui- mia que pratica não serve rostos nus como este, rostos nus dos pés ao cabelo, rostos que são também ombros e pernas e púbis. O processo repete-se e do preto-e-branco das fotografias emerge aquele mesmo ser em posições diferentes. De- itado, sentado, a fumar e a fumar novamente, a trincar uma maçã. Não há mais ninguém no enquadramento e a câmara é estática, repete a mesma posição ao longo de toda a série. Não há sexo, não há nada além daquele nu que mira a objectiva do fotógrafo. Não há nada mais sensual que isto, pensa Fey. Fey não considera por um instante a hipótese de denunciar o doutor. Afinal, denunciar o quê? Que há de errado nas fotos? Uma mulher descascada? E não será ele fotógrafo profissional? Não será esta uma sequência artística para um qualquer trabalho? Os 32 anos divorciados de Fey – M. falhara por pouco na idade – agradecem até o desafio, a esperança de uma carta nova no baralho viciado em que se transformaram os seus dias. M. chegará na tarde seguinte para recolher o pacote, as fotografias estarão prontas. A dona da loja não tecerá um co- mentário sequer. Entregará a encomenda, fará o esgar sorriso que melhor lhe assenta e ficará à espera do próximo rolo. A partir daqui os dias de Fey são uma expectativa feita de película desconhecida. As mãos tremem-lhe a cada nova encomenda que recebe das mãos de M.. À noite, na sala escura, onde passa quase todos os serões desde que o lençol do lado vagou, confirma o padrão. Este português magro e de poucas falas fotografa mulheres num apartamento de Nam Van. Sempre nuas, sempre a fumar, sempre com o mesmo enquadramento. Brancas, pretas, castanhas, russas, africanas, chinesas, filipinas, tailandesas. Mulheres. * Dispo-me. Se quiseres. Dispo-me ou não. Já te disse que só se quiseres. Mas foste tu que pagaste. Não paguei para que te dispas, só para que estejas aí como te apetecer, mais roupa, menos trapo. O doutor conhece esta conversa e sabe que daqui por alguns minutos K. estará como veio ao mundo naquele sofá Fogo lento por Hélder Beja Rui Rasquinho

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Page 1: Fogo lento · parágrafo sexta-feira · 10 de junho de 2011 parágrafo II III M. colou a fotografia na parede, apagou a luz e acordou. Claro que, pelo meio, M. também dormiu, mas

paraacutegrafo sexta-feira 10 de junho de 2011 paraacutegrafo

IIIII

M colou a fotografia na parede apagou a luz e acordou Claro que pelo meio M tambeacutem dormiu mas o texto eacute curto e natildeo podemos perder tempo com minudecircncias M acordou para mais um dia no Satildeo Januaacuterio Vai levantar-se lavar o corpo e a cara de 38 anos e algumas rugas de noites mal amanhadas vestir-se comer agrave pressa e descer os doze andares deste preacutedio da Praia Grande Para sorte dele os elevadores existem nesta histoacuteriaO doutor eacute esperado para as consultas da manhatilde medicina no geral ortopedia na especialidade braccedilos retorcidos joelhos danados e quadris desgovernandos na realidade Ele aiacute vem a estugar o passo a casa do Governo jaacute a ver-se o poliacutecia que eacute sempre diferente mas que parece sempre igual a vigiar a entrada do palaacutecio cor-de-rosa A vida repete-se nestes nadas de bota cardada e tambeacutem nas batas brancas que M vai encontrar ali mais adiante quando passar a Escola Portuguesa subir ao jardim junto ao Clube Militar e enfrentar a prancha iacutengreme da rua que conduz ao Satildeo Januaacuterio O ritual eacute sempre o mesmo os bofes pela boca da nossa personagem tambeacutem O hospital nunca sai do lugarUm dois trecircs quatro vinte bons dias senhor doutor como tem passado bem obrigado e sempre sem parar Esta gente eacute educada natildeo tem escola de taxista e num linguajar ou noutro consoante os idiomas capazes ao ceacuterebro gosta de cumprimentar o meacutedico com tanto de polido como de poucas falas tanto de elegante como de misteriosoA solidatildeo de M atrapalha os que o rodeiam As mulheres porque natildeo percebem a indiferenccedila ainda mais as bonitas Os homens porque anseiam camaradagem O uacutenico companheiro de M em casa como neste hospital que se ergue nas traseiras dos casinos Lisboa irmatildeos pequeno e grande antigo e novo eacute o cigarro que fuma compassadamenteFarda branca por cima da roupa preta o meacutedico cumpre a funccedilatildeo mais um dia de roacutetulas sem remeacutedio de pernas desfeitas em acidentes de gente que tem de aprender a andar de novo As horas passam e com elas vem a felicidade natildeo essa que toda a gente diz encontrar nos coraccedilotildees Antes a felicidade rua a tal que bate com a rua dos filipinos dos frangos assados e dos kebab que entretanto deixaram de vender ali nas costas do antigo Leal SenadoDe cada vez que M entra na rua da felicidade tem o mesmo pensamento Fosse eu a nomear e esta rua teria mais uma palavra no nome Suada Rua da felicidade suada A vontade do doutor pouco interessa agora A placa em portuguecircs e num chinecircs que pode muito bem significar outra coisa estaacute laacute e natildeo eacute amiga de mudanccedilas Com a toponiacutemia nem os meacutedicos podem bulirA loja de Fey eacute jaacute ali agrave frente M caminha agora devagar Roupa preta em pele branca se jaacute aqui foi dito perdoe-se a repeticcedilatildeo Barba feita com o esmero de todas as manhatildes um nariz aquilino que lhe desce da cara angulosa para se deixar a levitar acima dos dentes brancos que nem o cigarro consegue amarelar Enquanto fuma e avanccedila para a loja de Fey M gosta de adivinhaacute-la atraacutes do balcatildeo da pequena casa fotograacutefica Natildeo sabe a idade que tem mas faacute-la nos 30 natildeo mais que isso E como se a imaginaacute-la rua abaixo em direcccedilatildeo agrave porta vermelha M estaacute jaacute a vecirc-la antes de a ter olhos nas vistasUm aceno de cabeccedila um sorriso que se confunde com um esgar As fotografias estatildeo prontas Estatildeo sim Quanto 130 patacas Maquinal por fora viacutesceras a galope por dentro Assim satildeo os diaacutelogos com esta chinesa que nunca faz por cruzar a linha que nunca tece qualquer comentaacuterio ndash e M agradece-lhe fundo por issoFey um cabelo longo e liso e lavado a descer as costas conhecia o segredo de M Aqueles olhos de carvatildeo inscritos em cara de maacutermore sabiam pelo menos parte do segredo do doutor Falaram-lhe daquela loja de uma fotoacutegrafa discreta que abrira negoacutecio para ganhar uns trocos e M percebeu que se era para arriscar ali estava o melhor siacutetio Nessa tarde chuvosa jaacute agrave distacircncia de uns sete meses desta outra huacutemida e quente em que agora o vemos pagar mais maccedilo de ima-gens reveladas M vestiu a gabardina e avanccedilou para a rua com o rolo no bolsoAgrave aproximaccedilatildeo das portas vermelhas da rua da felicidade encheu-se de confianccedila Afinal que melhor siacutetio para reve-lar aquelas fotografias que uma loja na rua onde anos antes se comprava prazer para o corpo como quem compra arroz para a boca Se aquela mulher natildeo compreendesse e o denunciasse ou se recusasse tecirc-lo como cliente entatildeo nenhuma outra casa do geacutenero em Macau lhe faria o serviccedilo

O cigarro entre os laacutebios carnudos e dois olhos pequeninos cravados na cacircmara O resto era um corpo de mulher ausente de roupa ndash a perna traccedilada a barriga a desenhar refregas as mamas ainda tesas e atraacutes da carne que soacute podia ser do sudeste asiaacutetico um janelatildeo para Nam Van os casinos a Macau que natildeo adivinhava o lado de laacute do vidroA imagem eacute cada vez mais niacutetida agrave luz contida do estuacutedio e Fey que a revela olha uma e outra vez para aquela mulher que desconhece Estaacute acostumada a fazer surgir rostos estranhos no papel com a cadecircncia de todos os dias Mas a alqui-mia que pratica natildeo serve rostos nus como este rostos nus dos peacutes ao cabelo rostos que satildeo tambeacutem ombros e pernas e puacutebis O processo repete-se e do preto-e-branco das fotografias emerge aquele mesmo ser em posiccedilotildees diferentes De-itado sentado a fumar e a fumar novamente a trincar uma maccedilatilde Natildeo haacute mais ningueacutem no enquadramento e a cacircmara eacute estaacutetica repete a mesma posiccedilatildeo ao longo de toda a seacuterie Natildeo haacute sexo natildeo haacute nada aleacutem daquele nu que mira a objectiva do fotoacutegrafo Natildeo haacute nada mais sensual que isto pensa FeyFey natildeo considera por um instante a hipoacutetese de denunciar o doutor Afinal denunciar o quecirc Que haacute de errado nas fotos Uma mulher descascada E natildeo seraacute ele fotoacutegrafo profissional Natildeo seraacute esta uma sequecircncia artiacutestica para um qualquer trabalho Os 32 anos divorciados de Fey ndash M falhara por pouco na idade ndash agradecem ateacute o desafio a esperanccedila de uma carta nova no baralho viciado em que se transformaram os seus diasM chegaraacute na tarde seguinte para recolher o pacote as fotografias estaratildeo prontas A dona da loja natildeo teceraacute um co-mentaacuterio sequer Entregaraacute a encomenda faraacute o esgar sorriso que melhor lhe assenta e ficaraacute agrave espera do proacuteximo roloA partir daqui os dias de Fey satildeo uma expectativa feita de peliacutecula desconhecida As matildeos tremem-lhe a cada nova encomenda que recebe das matildeos de M Agrave noite na sala escura onde passa quase todos os serotildees desde que o lenccedilol do lado vagou confirma o padratildeo Este portuguecircs magro e de poucas falas fotografa mulheres num apartamento de Nam Van Sempre nuas sempre a fumar sempre com o mesmo enquadramento Brancas pretas castanhas russas africanas chinesas filipinas tailandesas Mulheres

Dispo-me Se quiseres Dispo-me ou natildeo Jaacute te disse que soacute se quiseres Mas foste tu que pagaste Natildeo paguei para que te dispas soacute para que estejas aiacute como te apetecer mais roupa menos trapoO doutor conhece esta conversa e sabe que daqui por alguns minutos K estaraacute como veio ao mundo naquele sofaacute

Fogo lentopor Heacutelder Beja

Rui Rasquinho

paraacutegrafo sexta-feira 10 de junho de 2011 paraacutegrafo

VIV

M natildeo oferece resistecircncia O caminho ateacute agrave casa jaacute a chegar ao Bela Vista eacute feito em silecircncio Fey esconde um medo contido que vem nos intervalos da curiosidade Fotografaraacute ele as mulheres antes ou depois de as comer Seraacute um voy-eurista que paga apenas para assistir E sendo haveraacute outro homem ou mulher neste jogoA chave roda a porta abre a doze pisos do chatildeo e Fey avista finalmente a janela o sofaacute tudo quanto revelara um sem fim de vezes no escuro do atelier da felicidade Podes sentar-te se quiseres M age mecanicamente e jaacute comeccedila a montar o tripeacute Quer mostrar a Fey que hoje eacute de facto a vez dela e que ela eacute como as outras Porque eacute que fazes isto Vou pagar-te e natildeo costumo conversar tambeacutem eacute por isso que te pago para natildeo ter de conversar Os olhos dela a encherem-se de ira a natildeo aceitarem o tratamento indiferenciado Como eacute que isto funciona quis saber Ficas aiacute como bem quiseres eu fico aqui e fotografo Eacute simples E tiro a roupa Se te apetecerO doutor jaacute tem a cacircmara pronta e fuma mais um cigarro Fey despe-se devagar e natildeo tira os olhos dele O corpo da chinesa eacute uma serpente longa que se estende diante do sofaacute O cigarro muda de boca e M comeccedila a disparar Porque eacute que fazes isto A pergunta a ressoar-lhe na cabeccedila enquanto fotografa mais esta mulher M natildeo conseguiria dar uma resposta capaz Faccedilo porque quero congelar num momento todas as mulheres do mundo Porque tu elas todas juntas satildeo a falsificaccedilatildeo daquilo que procuro A ternura que a lente capta perturba o doutor Fey era a uacutenica que natildeo podia estar aqui O meu nome eacute Fey Foda-se quem te perguntou o nome Natildeo quero o teu nome para mim seraacutes sempre a gaja da loja de fotografias A miuacuteda chora e a aacutegua desce-lhe pela cara ateacute ao peito escorre e mistura-se com o fumo do tabaco M vira poucas coisas tatildeo perfeitas na vidaO rolo acabou M vira costas agrave janela e agrave mulher as duas tatildeo transparentes e comeccedila a arrumar a cacircmara Fey ainda nua vem abraccedilaacute-lo assim pele contra roupa peito contra costas Eacute a primeira vez que uma mulher o abraccedila em quase nove anos O doutor vacila Eacute a primeira vez que uma mulher lhe trinca a orelha em nove anos O doutor responde Eacute a primeira vez que sente uma mulher em nove anos O doutor entrega-se

M dorme no sofaacute enquanto Fey perfil longitudinal na carpete vermelha o observa e fuma mais um cigarro O dia jaacute nasceu pelo janelatildeo e eacute a primeira vez que a fotoacutegrafa vecirc aquela paisagem a mais de duas cores Agrave volta a casa quieta do doutor agrada-lhe Livros em pilha discos e DVDs amontoados a mesa de trabalho e a outra com as gar-rafas que o meacutedico natildeo dispensaFey chega diante da porta daquilo que adivinha ser o quarto de M Abre-a e acende a luz As paredes e o tecto satildeo abecedaacuterios de mulheres nuas e diferentes em posiccedilotildees mimeacuteticas Pequenas fotografias reveladas por Fey aqui encadeadas aqui a montarem o puzzle da vida do doutor que parecia esfarelada Quando se deitava M deitava-se com elas quando acordava M erguia-se no meio de todos aqueles olhos Por cima da cabeceira uma fotografia repetida agrave exaustatildeo formava o nome Alice no meio de tantas outras carnes de babel Mostrava uma morena gostosa mostrava a uacutenica de todas aquelas imagens que Fey natildeo tinha reveladoA fotoacutegrafa jaacute se veste enquanto tenta perceber onde estaraacute guardado o rolo da sessatildeo da noite passada M ob-serva-a Estaacute acordado haacute uns bons minutos e sabia-a no quarto a avaliar o grau de loucura do homem que tinha acabado de receber Vecirc-a vasculhar as gavetas em busca do rolo e finalmente encontraacute-lo Vecirc-a chorar outra vez fechar a porta e desaparecer O dia natildeo voltaria a nascer

Estava tudo pronto haacute muito tempo como se o doutor esperasse por este dia desde sempre A noite jaacute vai longa M pega num balde de cola que parece gosma senta-se na cama e olha em volta Nunca quis estas fotografias como objecto de desejo nunca se excitou enquanto retratava estas mulheres Natildeo fazia aquilo para despejar vontades depois quando elas desapareciam de cena Fazia-o para agarraacute-las na fracccedilatildeo de segundo para tecirc-las do uacutenico jeito que ainda podia ter Alice num pedaccedilo de papelM estaacute nu o corpo magro e curvo A noite estaacute fria eacute inverno Comeccedila a passar a cola pelo corpo dos joelhos aos ombros das costas que consegue tocar agraves naacutedegas dos braccedilos agrave barriga Agora arranca furiosamente as imagens da parede e estampa-as em si A russa S na perna esquerda a malaia L no braccedilo direito muitas chinesas e filipinas e indoneacutesias no resto do corpo E Alice sempre Alice colada ao coraccedilatildeoM veste a gabardina jaacute natildeo lava o corpo e a cara de 38 anos e algumas rugas de noites mal amanhadas Desce os doze andares deste preacutedio da Praia Grande Para sorte dele os elevadores continuam a existir nesta histoacuteriaEle aiacute vem a estugar o passo a casa do Governo jaacute a ver-se o poliacutecia que eacute sempre diferente mas que parece sempre igual as matildeos nos bolsos que agarram a mateacuteria da vida O doutor dobra a porta do Bar e como nunca antes pede uma cerveja O empregado serve diligente que o senhor eacute cavalheiro distinto e de gratificaccedilatildeo faacutecil mesmo com uma bejeca M pega na garrafa sobe ao primeiro andar e agrave casa de banho Com a calma de quem pela primeira vez sabe que vai acabar qualquer coisa despeja a cerveja na sanita saca da garrafa de plaacutestico e volta a encher a cerveja Liacutequidos satildeo liacutequidos e num bar vale tudo M passa as matildeos pelo cabelo e gabardina bem apertada desce agrave pista de danccedila Todos os momentos merecem aprumo e este ainda mais A cerveja que natildeo eacute cerveja comeccedila e escorrer-lhe pelo cabelo pela nuca desce as costas molha o papel chega-lhe agraves pernas Ningueacutem parece reparar que haacute um homem a entornar-se na pista nem mesmo elas Elas que algumas satildeo as mesmas que o doutor traz coladas agrave pele O bar estaacute congelado Parado como nas fracccedilotildees de segundo que o meacutedico tanto desejava captar atraveacutes da lente M desaperta a gabardina tira-a e jaacute apenas vestido das imagens que Fey revelou e da fotografia de Alice sempre Alice roda o isqueiro e deixa-se cozinhar num fogo lento sem um grito sem um ai de suacuteplica Sem pensar que Fey naquela noite tinha voltado ao bar e olhava-o da mesa do canto a aguardar pelo melhor momento para lhe pegar natildeo matildeo e dizer hoje eacute a minha vez

com vista para os casinos do Nape Enquanto queima mais um cigarro prepara o tripeacute No chatildeo do apartamento haacute trecircs marcas subtis feitas a preceito onde pousam sempre e sempre da mesma maneira os apoios que hatildeo-de suportar a cacircmaraM estaacute descalccedilo as estantes de livros e poacute em volta Mede a altura do tripeacute pelo umbigo uma teacutecnica como outra qualquer que aos 38 anos jaacute nada se cresce e pouco se mingua O umbigo eacute por estas idades uma fita meacutetrica fiaacutevel A maacutequina analoacutegica do doutor estaacute quase pronta K que jaacute sua nesta sala sem ar condicionado sabe o que vai acontecer a seguir O doutor jaacute eacute conhecido entre as miuacutedas que frequentam o Bar O gajo eacute tarado Soacute quer fotografar-te natildeo te toca e paga bem Se fosse a ti natildeo ia o gajo tem um olhar assustador foi um aliacutevio sair daquele apartamento O mulherio divide-se quando fala de M Uma gaja eacute puta mas eacute muito dona da sua opiniatildeo tanto como do seu corpo que vende agrave laia de mercadoria sempre renovaacutevelO doutor chegara de Portugal a fugir de nada a natildeo ser de uma vida de merda rodeada de batas de espinha curva de coleguinhas fuacuteteis no Santa Maria de gente que lhe interessava um carolo Macau veio como desterro ideal para desaparecer daquilo e da mulher que um dia lhe ceifara as entranhas Alice desaparecera Como desapareciam os becircbados daquelas ruas de Alfama noite dentro sumiu-se e deixou apenas isto uma foto sentada a mirar a cacircmara fumando nua Nem uma palavra Algueacutem a fotografara assim Ela fotografara-se assim M nunca soube a resposta a poliacutecia nunca soube a respostaPassavam quase oito anos sobre esse dia de coraccedilatildeo apertado quando M jaacute sentado com vista para o Banco da China e a ver barcos-dragatildeo movimentarem-se no lago viu as peccedilas de uma vida que parecia esfarelada voltarem a juntar-se O puzzle foi resolvido por dois filmes que agrave partida tinham tanto que ver como Tim Burton e Joatildeo Ceacutesar MonteiroO primeiro DVD mostra um homem calado com janela privilegiada para a desgraccedila de uma prostituta que amava Que atraacutes de um vidro a vecirc despir-se e entregar-se aos homens que a visitavam Primeiro com choro medo e repulsa Depois com a resignaccedilatildeo de quem jaacute perdeu a candura e estaacute ali para receber a solidatildeo dos outros e ser paga por isso Finalmente com o desprendimento e o profissionalismo de quem faz do sexo um modo de sobrevivecircncia O par chegou depois da Coreia do Sul para o Brasil um homem que compra a tralha que os outros querem ou precisam vender nem sempre por esta ordem Vive nos subuacuterbios e nesse mundo de vagabundos agarrados e peacutes-rapados eacute um cara poderoso Na tela como na vida real o dinheiro compra muitas dessas coisas E este homem gosta porque tem dinheiro Natildeo quer nada regalado nada de graccedila ou por afectos Ele quer e vai comprar podendo pocircr e disporTambeacutem o doutor tinha dinheiro para mandar cantar vaacuterios cegos Mas em Macau natildeo havia cegos Nem cegos nem alei-jados ou outras marcas de gente que pede esmola e recebe a nota e a moeda dos mais caridosos Os cheques do Governo estatildeo bem obrigado e chegam para a encomenda da gente esfaimada Agraves vezes quando pensava no peso dos bolsos e nas vidas alheias M queria redimir-se dar um favor ao pedinte como fizera tantas vezes na baixa lisboeta Natildeo que o preocupasse a existecircncia daquele povo era apenas uma falsa redenccedilatildeo do pecador que era e que gostava de ser porque se o pecado estaacute aiacute eacute para a gente dar uso dele AacutemenFoi assim que nessa noite de homens perturbados a saltar da tela M saiu de casa em direcccedilatildeo ao Bar Sabia ao que ia natildeo tinha certeza de como o resto podia acontecer Sentou-se ao balcatildeo e como de costume pediu um uiacutesque sem gelo A casa conhecia-o cavalheiro que dispensava companhia fumador e bebedor moderado homem de gorje-tas generosas M jaacute decidira antes de cruzar a porta que depois de dois maltes levaria para casa a primeira mulher que se chegasseNa pista as damas exibem o que tecircm e natildeo tecircm Pernas longas e finas de chinesas desengonccediladas naacutedegas volu-mosas de filipinas que compraram o bilhete errado para o territoacuterio braccedilos fortes e caras fechadas de europeias de leste que satildeo como o gelo que o doutor dispensa no uiacutesqueEla laacute veio morena ondulante com a precisatildeo de um bisturi que corta por entre cem desconhecidos para aterrar na matildeo do meacutedico Sentou-se As primeiras palavras foram dele Soacute quero saber o princiacutepio do teu nome soacute me inter-essa o comeccedilo das coisas Odeio fins E aquilo aplicava-se a tudo M nunca soube o que acontecera a Madame Bovary porque deixou o livro antes das derradeiras paacuteginas nunca percebera a piada dos poucos amigos que lhe restavam quando falavam de Casablanca e de um certo comeccedilo de amizade O poeta dizia que nunca principia nem acaba M principia sempre Acabar natildeo eacute com ele

M pode ateacute ser um psicopata Fey natildeo quer saber A decisatildeo estaacute tomada Fey fecha a loja de fotografia sobe ao primeiro andar onde tem o estuacutedio e as outras divisotildees da casita da rua da felicidade e veste-se com jaacute natildeo se lem-brava de fazer Natildeo eacute uma mulher vistosa de peitos grandes e curvas acentuadas Mas eacute bela e comprida suficiente-mente bela para passar por mais uma das miuacutedas que frequentam o BarFey sabe que o doutor natildeo faltaraacute agrave chamada porque jaacute o seguiu em muitas noites de quinta-feira como esta O dou-tor a sair de casa sempre de cigarro O doutor a avanccedilar pela Praia Grande a contornar as motas que se atropelam nos passeios O doutor por fim a cruzar a porta do Bar e horas depois a sair com uma nova mulher M tornara-se na obsessatildeo privada de Fey Se ele eacute tarado eu natildeo devo ser menos E estes pensamentos consumiam-na enquanto esperava sentada do outro lado da rua para conhecer a nova cara que dias depois revelaria no seu estuacutedio M nunca dera por ela e Fey jaacute sabia tudo sobre o meacutedico Ao menos tudo aquilo que eacute possiacutevel aferir pela observaccedilatildeo da vida dos outros Sabia a que horas entrava e saiacutea de casa que caminhos tomava que evitava os restaurantes e cafeacutes portugueses para poder estar sozinho e nunca ou quase nunca se encontrava com algueacutemHoje o salto alto de Fey jaacute estaacute a caminho agora natildeo haacute volta a dar A luz no Bar faz-lhe lembrar a sala escura da fotografia onde como aqui aparecem de todos os cantos rostos que natildeo consegue identificar A casa natildeo estaacute cheia e laacute avista o doutor como sempre imaginara sentado sozinho ao balcatildeo M natildeo demora a perceber aquela mulher que o fita e se aproxima Fey chega perto encosta o corpo ao joelho do doutor pega no copo e bebe o uiacutesque de um gole Recompotildee-se volta a encaraacute-lo Hoje eacute a minha vez e pega-lhe na matildeo

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paraacutegrafo sexta-feira 10 de junho de 2011 paraacutegrafo

VIV

M natildeo oferece resistecircncia O caminho ateacute agrave casa jaacute a chegar ao Bela Vista eacute feito em silecircncio Fey esconde um medo contido que vem nos intervalos da curiosidade Fotografaraacute ele as mulheres antes ou depois de as comer Seraacute um voy-eurista que paga apenas para assistir E sendo haveraacute outro homem ou mulher neste jogoA chave roda a porta abre a doze pisos do chatildeo e Fey avista finalmente a janela o sofaacute tudo quanto revelara um sem fim de vezes no escuro do atelier da felicidade Podes sentar-te se quiseres M age mecanicamente e jaacute comeccedila a montar o tripeacute Quer mostrar a Fey que hoje eacute de facto a vez dela e que ela eacute como as outras Porque eacute que fazes isto Vou pagar-te e natildeo costumo conversar tambeacutem eacute por isso que te pago para natildeo ter de conversar Os olhos dela a encherem-se de ira a natildeo aceitarem o tratamento indiferenciado Como eacute que isto funciona quis saber Ficas aiacute como bem quiseres eu fico aqui e fotografo Eacute simples E tiro a roupa Se te apetecerO doutor jaacute tem a cacircmara pronta e fuma mais um cigarro Fey despe-se devagar e natildeo tira os olhos dele O corpo da chinesa eacute uma serpente longa que se estende diante do sofaacute O cigarro muda de boca e M comeccedila a disparar Porque eacute que fazes isto A pergunta a ressoar-lhe na cabeccedila enquanto fotografa mais esta mulher M natildeo conseguiria dar uma resposta capaz Faccedilo porque quero congelar num momento todas as mulheres do mundo Porque tu elas todas juntas satildeo a falsificaccedilatildeo daquilo que procuro A ternura que a lente capta perturba o doutor Fey era a uacutenica que natildeo podia estar aqui O meu nome eacute Fey Foda-se quem te perguntou o nome Natildeo quero o teu nome para mim seraacutes sempre a gaja da loja de fotografias A miuacuteda chora e a aacutegua desce-lhe pela cara ateacute ao peito escorre e mistura-se com o fumo do tabaco M vira poucas coisas tatildeo perfeitas na vidaO rolo acabou M vira costas agrave janela e agrave mulher as duas tatildeo transparentes e comeccedila a arrumar a cacircmara Fey ainda nua vem abraccedilaacute-lo assim pele contra roupa peito contra costas Eacute a primeira vez que uma mulher o abraccedila em quase nove anos O doutor vacila Eacute a primeira vez que uma mulher lhe trinca a orelha em nove anos O doutor responde Eacute a primeira vez que sente uma mulher em nove anos O doutor entrega-se

M dorme no sofaacute enquanto Fey perfil longitudinal na carpete vermelha o observa e fuma mais um cigarro O dia jaacute nasceu pelo janelatildeo e eacute a primeira vez que a fotoacutegrafa vecirc aquela paisagem a mais de duas cores Agrave volta a casa quieta do doutor agrada-lhe Livros em pilha discos e DVDs amontoados a mesa de trabalho e a outra com as gar-rafas que o meacutedico natildeo dispensaFey chega diante da porta daquilo que adivinha ser o quarto de M Abre-a e acende a luz As paredes e o tecto satildeo abecedaacuterios de mulheres nuas e diferentes em posiccedilotildees mimeacuteticas Pequenas fotografias reveladas por Fey aqui encadeadas aqui a montarem o puzzle da vida do doutor que parecia esfarelada Quando se deitava M deitava-se com elas quando acordava M erguia-se no meio de todos aqueles olhos Por cima da cabeceira uma fotografia repetida agrave exaustatildeo formava o nome Alice no meio de tantas outras carnes de babel Mostrava uma morena gostosa mostrava a uacutenica de todas aquelas imagens que Fey natildeo tinha reveladoA fotoacutegrafa jaacute se veste enquanto tenta perceber onde estaraacute guardado o rolo da sessatildeo da noite passada M ob-serva-a Estaacute acordado haacute uns bons minutos e sabia-a no quarto a avaliar o grau de loucura do homem que tinha acabado de receber Vecirc-a vasculhar as gavetas em busca do rolo e finalmente encontraacute-lo Vecirc-a chorar outra vez fechar a porta e desaparecer O dia natildeo voltaria a nascer

Estava tudo pronto haacute muito tempo como se o doutor esperasse por este dia desde sempre A noite jaacute vai longa M pega num balde de cola que parece gosma senta-se na cama e olha em volta Nunca quis estas fotografias como objecto de desejo nunca se excitou enquanto retratava estas mulheres Natildeo fazia aquilo para despejar vontades depois quando elas desapareciam de cena Fazia-o para agarraacute-las na fracccedilatildeo de segundo para tecirc-las do uacutenico jeito que ainda podia ter Alice num pedaccedilo de papelM estaacute nu o corpo magro e curvo A noite estaacute fria eacute inverno Comeccedila a passar a cola pelo corpo dos joelhos aos ombros das costas que consegue tocar agraves naacutedegas dos braccedilos agrave barriga Agora arranca furiosamente as imagens da parede e estampa-as em si A russa S na perna esquerda a malaia L no braccedilo direito muitas chinesas e filipinas e indoneacutesias no resto do corpo E Alice sempre Alice colada ao coraccedilatildeoM veste a gabardina jaacute natildeo lava o corpo e a cara de 38 anos e algumas rugas de noites mal amanhadas Desce os doze andares deste preacutedio da Praia Grande Para sorte dele os elevadores continuam a existir nesta histoacuteriaEle aiacute vem a estugar o passo a casa do Governo jaacute a ver-se o poliacutecia que eacute sempre diferente mas que parece sempre igual as matildeos nos bolsos que agarram a mateacuteria da vida O doutor dobra a porta do Bar e como nunca antes pede uma cerveja O empregado serve diligente que o senhor eacute cavalheiro distinto e de gratificaccedilatildeo faacutecil mesmo com uma bejeca M pega na garrafa sobe ao primeiro andar e agrave casa de banho Com a calma de quem pela primeira vez sabe que vai acabar qualquer coisa despeja a cerveja na sanita saca da garrafa de plaacutestico e volta a encher a cerveja Liacutequidos satildeo liacutequidos e num bar vale tudo M passa as matildeos pelo cabelo e gabardina bem apertada desce agrave pista de danccedila Todos os momentos merecem aprumo e este ainda mais A cerveja que natildeo eacute cerveja comeccedila e escorrer-lhe pelo cabelo pela nuca desce as costas molha o papel chega-lhe agraves pernas Ningueacutem parece reparar que haacute um homem a entornar-se na pista nem mesmo elas Elas que algumas satildeo as mesmas que o doutor traz coladas agrave pele O bar estaacute congelado Parado como nas fracccedilotildees de segundo que o meacutedico tanto desejava captar atraveacutes da lente M desaperta a gabardina tira-a e jaacute apenas vestido das imagens que Fey revelou e da fotografia de Alice sempre Alice roda o isqueiro e deixa-se cozinhar num fogo lento sem um grito sem um ai de suacuteplica Sem pensar que Fey naquela noite tinha voltado ao bar e olhava-o da mesa do canto a aguardar pelo melhor momento para lhe pegar natildeo matildeo e dizer hoje eacute a minha vez

com vista para os casinos do Nape Enquanto queima mais um cigarro prepara o tripeacute No chatildeo do apartamento haacute trecircs marcas subtis feitas a preceito onde pousam sempre e sempre da mesma maneira os apoios que hatildeo-de suportar a cacircmaraM estaacute descalccedilo as estantes de livros e poacute em volta Mede a altura do tripeacute pelo umbigo uma teacutecnica como outra qualquer que aos 38 anos jaacute nada se cresce e pouco se mingua O umbigo eacute por estas idades uma fita meacutetrica fiaacutevel A maacutequina analoacutegica do doutor estaacute quase pronta K que jaacute sua nesta sala sem ar condicionado sabe o que vai acontecer a seguir O doutor jaacute eacute conhecido entre as miuacutedas que frequentam o Bar O gajo eacute tarado Soacute quer fotografar-te natildeo te toca e paga bem Se fosse a ti natildeo ia o gajo tem um olhar assustador foi um aliacutevio sair daquele apartamento O mulherio divide-se quando fala de M Uma gaja eacute puta mas eacute muito dona da sua opiniatildeo tanto como do seu corpo que vende agrave laia de mercadoria sempre renovaacutevelO doutor chegara de Portugal a fugir de nada a natildeo ser de uma vida de merda rodeada de batas de espinha curva de coleguinhas fuacuteteis no Santa Maria de gente que lhe interessava um carolo Macau veio como desterro ideal para desaparecer daquilo e da mulher que um dia lhe ceifara as entranhas Alice desaparecera Como desapareciam os becircbados daquelas ruas de Alfama noite dentro sumiu-se e deixou apenas isto uma foto sentada a mirar a cacircmara fumando nua Nem uma palavra Algueacutem a fotografara assim Ela fotografara-se assim M nunca soube a resposta a poliacutecia nunca soube a respostaPassavam quase oito anos sobre esse dia de coraccedilatildeo apertado quando M jaacute sentado com vista para o Banco da China e a ver barcos-dragatildeo movimentarem-se no lago viu as peccedilas de uma vida que parecia esfarelada voltarem a juntar-se O puzzle foi resolvido por dois filmes que agrave partida tinham tanto que ver como Tim Burton e Joatildeo Ceacutesar MonteiroO primeiro DVD mostra um homem calado com janela privilegiada para a desgraccedila de uma prostituta que amava Que atraacutes de um vidro a vecirc despir-se e entregar-se aos homens que a visitavam Primeiro com choro medo e repulsa Depois com a resignaccedilatildeo de quem jaacute perdeu a candura e estaacute ali para receber a solidatildeo dos outros e ser paga por isso Finalmente com o desprendimento e o profissionalismo de quem faz do sexo um modo de sobrevivecircncia O par chegou depois da Coreia do Sul para o Brasil um homem que compra a tralha que os outros querem ou precisam vender nem sempre por esta ordem Vive nos subuacuterbios e nesse mundo de vagabundos agarrados e peacutes-rapados eacute um cara poderoso Na tela como na vida real o dinheiro compra muitas dessas coisas E este homem gosta porque tem dinheiro Natildeo quer nada regalado nada de graccedila ou por afectos Ele quer e vai comprar podendo pocircr e disporTambeacutem o doutor tinha dinheiro para mandar cantar vaacuterios cegos Mas em Macau natildeo havia cegos Nem cegos nem alei-jados ou outras marcas de gente que pede esmola e recebe a nota e a moeda dos mais caridosos Os cheques do Governo estatildeo bem obrigado e chegam para a encomenda da gente esfaimada Agraves vezes quando pensava no peso dos bolsos e nas vidas alheias M queria redimir-se dar um favor ao pedinte como fizera tantas vezes na baixa lisboeta Natildeo que o preocupasse a existecircncia daquele povo era apenas uma falsa redenccedilatildeo do pecador que era e que gostava de ser porque se o pecado estaacute aiacute eacute para a gente dar uso dele AacutemenFoi assim que nessa noite de homens perturbados a saltar da tela M saiu de casa em direcccedilatildeo ao Bar Sabia ao que ia natildeo tinha certeza de como o resto podia acontecer Sentou-se ao balcatildeo e como de costume pediu um uiacutesque sem gelo A casa conhecia-o cavalheiro que dispensava companhia fumador e bebedor moderado homem de gorje-tas generosas M jaacute decidira antes de cruzar a porta que depois de dois maltes levaria para casa a primeira mulher que se chegasseNa pista as damas exibem o que tecircm e natildeo tecircm Pernas longas e finas de chinesas desengonccediladas naacutedegas volu-mosas de filipinas que compraram o bilhete errado para o territoacuterio braccedilos fortes e caras fechadas de europeias de leste que satildeo como o gelo que o doutor dispensa no uiacutesqueEla laacute veio morena ondulante com a precisatildeo de um bisturi que corta por entre cem desconhecidos para aterrar na matildeo do meacutedico Sentou-se As primeiras palavras foram dele Soacute quero saber o princiacutepio do teu nome soacute me inter-essa o comeccedilo das coisas Odeio fins E aquilo aplicava-se a tudo M nunca soube o que acontecera a Madame Bovary porque deixou o livro antes das derradeiras paacuteginas nunca percebera a piada dos poucos amigos que lhe restavam quando falavam de Casablanca e de um certo comeccedilo de amizade O poeta dizia que nunca principia nem acaba M principia sempre Acabar natildeo eacute com ele

M pode ateacute ser um psicopata Fey natildeo quer saber A decisatildeo estaacute tomada Fey fecha a loja de fotografia sobe ao primeiro andar onde tem o estuacutedio e as outras divisotildees da casita da rua da felicidade e veste-se com jaacute natildeo se lem-brava de fazer Natildeo eacute uma mulher vistosa de peitos grandes e curvas acentuadas Mas eacute bela e comprida suficiente-mente bela para passar por mais uma das miuacutedas que frequentam o BarFey sabe que o doutor natildeo faltaraacute agrave chamada porque jaacute o seguiu em muitas noites de quinta-feira como esta O dou-tor a sair de casa sempre de cigarro O doutor a avanccedilar pela Praia Grande a contornar as motas que se atropelam nos passeios O doutor por fim a cruzar a porta do Bar e horas depois a sair com uma nova mulher M tornara-se na obsessatildeo privada de Fey Se ele eacute tarado eu natildeo devo ser menos E estes pensamentos consumiam-na enquanto esperava sentada do outro lado da rua para conhecer a nova cara que dias depois revelaria no seu estuacutedio M nunca dera por ela e Fey jaacute sabia tudo sobre o meacutedico Ao menos tudo aquilo que eacute possiacutevel aferir pela observaccedilatildeo da vida dos outros Sabia a que horas entrava e saiacutea de casa que caminhos tomava que evitava os restaurantes e cafeacutes portugueses para poder estar sozinho e nunca ou quase nunca se encontrava com algueacutemHoje o salto alto de Fey jaacute estaacute a caminho agora natildeo haacute volta a dar A luz no Bar faz-lhe lembrar a sala escura da fotografia onde como aqui aparecem de todos os cantos rostos que natildeo consegue identificar A casa natildeo estaacute cheia e laacute avista o doutor como sempre imaginara sentado sozinho ao balcatildeo M natildeo demora a perceber aquela mulher que o fita e se aproxima Fey chega perto encosta o corpo ao joelho do doutor pega no copo e bebe o uiacutesque de um gole Recompotildee-se volta a encaraacute-lo Hoje eacute a minha vez e pega-lhe na matildeo