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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE NACIONAL DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD) RELATÓRIO FINAL DO PROJETO DE PESQUISA JUSTIÇA AUTORITÁRIA? O JUDICIÁRIO DO RIO DE JANEIRO E A DITADURA MILITAR (1964-1988) Foto: Luiz Humberto

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS GRADUAO EM DIREITO (PPGD)

    RELATRIO FINAL DO PROJETO DE PESQUISA

    JUSTIA AUTORITRIA? O JUDICIRIO DO RIO DE JANEIRO E A

    DITADURA MILITAR (1964-1988)

    Foto: Luiz Humberto

  • 2

    Coordenao Geral: Profa. Dra. Vanessa Oliveira Batista Berner (UFRJ)

    Coordenao Acadmica: Profa. Dra. Luciana Boiteux (UFRJ)

    Pesquisadores docentes:

    Prof. Dr. Alexandre Bernardino Costa (UnB, Professor Visitante bolsista da FAPERJ na

    UFRJ)

    Prof. Dra. Caroline Proner (UFRJ)

    Profa. Dra. Juliana Neuenschwander Magalhes (UFRJ)

    Prof. Dr. Manuel Eugenio Gndara Carballido Ps Doutor Snior bolsista da FAPERJ

    na UFRJ

    Demais pesquisadores

    Ana Carolina Anto Mestranda (PPGHCS Fiocruz, pesquisadora voluntria)

    Ayra Guedes Garrido - Graduanda em Cincias Sociais (UFRJ, bolsista de Iniciao

    Cientfica da FAPERJ)

    Beatriz Rodrigues Neves da Costa - Graduanda em Direito (UFRJ, bolsista de Iniciao

    Cientfica da FAPERJ)

    Bianca Casais Machado Guimares Graduanda em Direito (UFRJ, bolsista da

    FAPERJ)

    Carolina Genovez Parreira - Mestre em Direito (PPGD/UFRJ, bolsista da FAPERJ)

    Lusmarina Campos Garcia - Mestranda em direito (PPGD/UFRJ, bolsista da FAPERJ)

    Rafaela Domingues Pereira - Graduanda em Histria (UFRJ, bolsista da FAPERJ)

    Ricardo Azevedo Mestrando em Direito (PPGD UFRJ, pesquisador voluntrio)

    Roberta Maia Gomes Bacharel em Direito (UFRJ, bolsista da FAPERJ)

    Thiago da Silva Pacheco - Doutorando em Histria (UFRJ, bolsista da FAPERJ)

    Vicente Arruda Cmara Rodrigues Mestrando em Direito (PPGD/UFRJ)

  • 3

    SUMRIO:

    INTRODUO ................................................................................................................ 4

    I - ATIVIDADES DESENVOLVIDAS ......................................................................... 29

    II - ENQUADRAMENTO TERICO DO TEMA DA PESQUISA ............................. 34

    1. Alguns Pressupostos Epistmicos da Pesquisa Acerca da Construo da Verdade e

    da Memria a Partir dos Direitos Humanos ................................................................... 34

    1.1. Nosso ponto de partida: a opo tico-poltica pelos vitimados ............................ 34

    1.2. Verdade e Memria Histrica ................................................................................. 37

    2. Contextualizao Terica e Antecedentes da Formao do Estado Brasileiro .......... 40

    2.1. O Papel do Poder Judicirio no Marco de um Estado Liberal Capitalista ............ 40

    3. O Estado Brasileiro na Ditadura Civil Militar ........................................................... 47

    4. Referencial Terico Para uma Anlise do Papel do Judicirio Durante a Ditadura

    Civil Militar .................................................................................................................... 55

    III - CONTEXTUALIZAO ....................................................................................... 58

    III.1. O Contexto da Crise Institucional e o Golpe contra a Panair do Brasil ................ 58

    III.2. Histria e Estrutura da Justia Militar Brasileira e sua Atuao em Crimes

    Polticos .......................................................................................................................... 62

    III.3. Contextualizao histrica do Caso das Bombas: ................................................. 85

    IV- RESULTADOS OBTIDOS ..................................................................................... 91

    V- CONCLUSES ....................................................................................................... 197

    VI- RECOMENDAES ........................................................................................... 207

    VII BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 213

    VIII - LISTA DE ANEXOS ......................................................................................... 221

  • 4

    INTRODUO

    A participao e a conivncia do Poder Judicirio em ditaduras na Amrica

    Latina vm sendo reveladas nos distintos processos de Justia de Transio em curso

    que, por sua vez, denunciam que a estrutura da represso no prescindiu da palavra final

    da magistratura para legitimar as arbitrariedades e os respectivos crimes cometidos. Fato

    que o prprio Poder Judicirio atuou na estrutura da represso, tendo sido um aparato

    a mais na construo de um projeto militar autoritrio, o que torna discrepante ou

    contraditrio que tenha o condo de condenar o regime do qual ele prprio foi parte

    fundamental. Ainda que existam diferentes graus de responsabilidade na movimentao

    da mquina judiciria da represso, que inclui a importante presena de juzes

    independentes e muitos deles perseguidos, os fatos revelam que as aes da justia

    foram, em geral, cmplices das aes da ditadura.

    Assim como em outros casos na Amrica Latina, tambm no Brasil a ditadura

    no criou um aparato judicirio prprio, mas montou-se sobre a estrutura preexistente

    para utiliz-la conforme seus interesses, incorporando, nesta lgica, as Justias Federal

    (Lei n. 5.010, de 30 de maio de 1966), Estadual e Militar. Tambm foram nomeados

    juzes adaptados ou coniventes pelo regime, que manejou pessoas, promoveu acordos e

    estabeleceu procedimentos corporativos capazes de acomodar e adaptar as novidades do

    aparato repressivo, como o reconhecimento do crime de subverso e a aplicao de

    penas draconianas.

    A busca pela verdade no pode prescindir de vasculhar a atuao do Judicirio

    e de seus funcionrios, os mtodos utilizados para privilegiar as leis da ditadura em

    detrimento dos direitos fundamentais, os laudos forjados, as denncias infundadas, as

    omisses e conluios que resultaram no aparelhamento do Poder Judicirio para os fins

    da represso. Sendo um dos poderes do Estado, levanta a discusso entre regimes de

    governo e crimes de Estado. A discusso sobre crimes de Estado inclui o aparato do

    Judicirio como um dos apoios fundamentais atuando no campo da legitimidade da qual

    goza esse prprio poder estrutural do Estado brasileiro.

    Outra perspectiva que pode ser aberta na investigao da relao ditadura-

    judicirio est no plano das permanncias autoritrias. Ainda que existam muitos

    crticos dentro do prprio Poder Judicirio, incluindo associaes progressistas e

    defensoras da democracia e dos direitos fundamentais, segue sendo evidente a atuao

  • 5

    corporativista de magistrados, acusadores e agentes de polcia na defesa de teses

    adaptadas e coniventes com setores reacionrios de outrora e de hoje.

    A conivncia do Judicirio com a ditadura no se restringiu aplicao da

    legislao dos atos institucionais e leis severas no campo militar, mas abrangeu diversos

    tipos de autoritarismo no exerccio da administrao da justia e da interpretao e

    aplicao das leis, inclusive na esfera civil.

    Assim, tanto quanto outros agentes polticos do Estado, tambm os membros

    do Poder Judicirio, notadamente desembargadores dos tribunais estaduais e federais e

    ministros superiores passaram inclumes e impunes da ditadura para a democracia,

    tendo suas responsabilidades por atos cometidos durante o regime ignoradas, situao

    esta legitimada pela cultura da cordialidade e do esquecimento que tende a prevalecer

    at os dias de hoje. O papel das Comisses da Verdade est tambm em revelar a

    atuao desses funcionrios pblicos que deveriam estar a servio dos direitos humanos

    e da justia, resistindo ditadura e defendendo o Estado Democrtico de Direito.

    Por outro lado, para a realizao da justia de transio no que se refere

    dimenso da responsabilizao, etapa mais dramtica e que encontra os maiores

    obstculos, tambm o Poder Judicirio que ocupa um papel protagonista por ser

    aquele capaz de reabrir os caminhos para a responsabilizao de agentes da ditadura,

    bem como de permitir a reparao das injustias histricas individuais e coletivas. o

    Poder Judicirio aquele que possui competncia para permitir (ou impedir) a

    possibilidade de reviso histrica do marco legal da represso, incluindo leis de anistia

    em contextos autoritrios que serviram para tornar impunes os crimes de lesa

    humanidade.

    No Brasil o aparato judicirio foi conivente e, mesmo tendo passado mais de

    duas dcadas, segue resistente em cumprir seu papel constitucional e convencional na

    busca dos responsveis pelos crimes mais graves em matria de direitos humanos. O

    judicirio brasileiro e, em especial, o Supremo Tribunal Federal, tem sido chamado a

    decidir sobre temas de justia de transio no tocante verdade, reparao e justia.

    Nesse sentido, ao Poder Judicirio cabe a dupla misso de, por um lado, permitir a

    abertura de processos de reviso histrica para a reparao de erros do passado,

    incluindo a possibilidade de anulao dos efeitos da Lei de Anistia quanto aos crimes de

    lesa humanidade (sentena Gomes Lund da Corte Interamericana de Direitos Humanos);

  • 6

    e, ao mesmo tempo, como j dito, no exerccio de rever seus prprios atos, admitir

    que participou da excepcionalidade ao Estado de Direito, atuando como um elo da

    estrutura de represso que, no mnimo, se omitiu diante do cometimento dos mesmos

    crimes de lesa humanidade e outros.

    nesta contradio de imaginar que o prprio Poder Judicirio poderia superar

    o vcio histrico do corporativismo que se insere o papel das Comisses da Verdade ao

    investigar a relao conivente entre ditadura e judicirio. Afinal, cabe a ele fazer a

    reviso de sua prpria atuao dentro da ilegalidade sistmica da qual fez parte, o que

    no encontra um panorama favorvel atualmente.

    Neste sentido, o objetivo perseguido pelo Grupo de Pesquisa sobre Justia

    Autoritria da UFRJ foi investigar a atuao do Poder Judicirio no Estado do Rio de

    Janeiro durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1988), ou seja, a atuao de

    magistrados, por vezes independente, por vezes colaborativa com o regime ditatorial.

    Como delimitao geogrfica, o projeto teve como foco o Poder Judicirio no Estado do

    Rio de Janeiro, centrando-se em trs casos especficos: a atuao da Justia Militar; a

    atuao da justia comum no caso da empresa Panair do Brasil; e nos casos de atentados

    com bombas, nomeadamente a Bomba da OAB e a Bomba do Riocentro, a atuao

    tambm da Justia Federal.

    A investigao seguiu uma metodologia especfica para atingir seus objetivos

    em cada um desses casos:

    Caso Panair do Brasil1

    O tema do subgrupo dedicado ao estudo do caso Panair do Brasil diz respeito a

    anlise da atuao do poder judicirio tanto nos aspectos da decretao da falncia da

    empresa Panair do Brasil e consequentes atos que resultaram na sua extino, como na

    perseguio aos empresrios, dirigentes e trabalhadores. O Caso Panair bastante

    conhecido da realidade brasileira, possui ampla documentao e evidencia como o

    regime militar contou com a colaborao de civis e da prpria magistratura para atingir

    objetivos e interesses econmicos que o modelo autoritrio potencialmente

    oportunizava. A participao de setores privados no caso Panair possibilita a

    1 Coordenado pela Professora Caroline Proner.

  • 7

    investigao sobre o que alguns entendem como a gnese da ditadura, entendendo que a

    mesma contou com a colaborao e conivncia de civis para atingir determinados fins,

    inclusive perseguir o de perseguir outros civis, empresrios e empresas.

    Objetivos Gerais:

    1. Compreender a extenso da perseguio poltica e dos danos aos afetados no

    caso Panair do Brasil, entendendo este como paradigmtico do modus operandi em

    relao ao gnero apropriao ilegal de empresas como parte do plano econmico e

    de reestruturao do Estado por setores civis e militares, com a colaborao do poder

    judicirio;

    2. Especificamente o comportamento do poder judicirio, dos trs magistrados

    que atuaram no caso e da trama de aes e reaes que envolveram o Estado, incluindo

    a posio do Supremo Tribunal Federal que, em 18 de maio de 1966, rejeita o Mandado

    de Segurana impetrado pela empresa e acata, por unanimidade, a deciso sumria da

    decretao de falncia. Por fim, a defesa ininterrupta feita por meio de advogados da

    empresa e dos empresrios em uma sequncia persecutria durante dcadas e que

    conduziram destruio da empresa e do projeto de vida dos empresrios que tiveram

    sua reputao aniquilada.

    Objetivos especficos e metodologia:

    1. Analisar os documentos do Arquivo Nacional diretamente correlacionados

    com os empresrios Mario Wallace Simonsen provas de envolvimento com Juscelino

    e Joo Goulart documentos secretos e acusatrios, que instruram o Ministrio da

    Justia em Processo aberto 1969 visando ao enquadramento do empresrio no crime de

    enriquecimento ilcito; (Objetivo alcanado parcialmente pela CNV Relatrio Final)

    2. Analisar como uma empresa slida, solvente e de grande reputao (voou

    de 1930 a 1965), tendo como scios majoritrios os empresrios Celso da Rocha

    Miranda e Mario Wallace Simonsen, sem aviso prvio, sem ttulos protestados, sem

    dvidas e com patrimnio de garantia, foi desmantelada pelo regime militar; (Objetivo

    alcanado parcialmente pela CNV Relatrio Final)

    3. Analisar as razes do regime militar que levaram ao fechamento e falncia

    de empresas s quais eram geridas por scios ou empresrios que aparentemente no se

  • 8

    alinhavam aos interesses dos militares ou de aliados do regime (linha de investigao do

    extenso dossi encontrado no Arquivo Nacional de monitoramento da vida dos

    empresrios); (Objetivo alcanado parcialmente pela CNV Relatrio Final)

    4. Analisar a eventual coincidncia de beneficiamento de outras empresas e

    companhias em detrimento do autoritarismo no mbito civil que atingiu a Panair

    especificamente o episdio notrio do voo de 10 de fevereiro de 1965, suspenso do

    voo da Panair para Frankfurt e imediata assuno, por parte da Companhia Varig, da

    rota de voo com o embarque dos passageiros (o avio que j estava pronto para decolar

    em rota indita para a Companhia), (Objetivo alcanado parcialmente pela CNV

    Relatrio Final)

    5. Identificar o processo de decretao da falncia da Empresa pelo ento

    Presidente Castelo Branco e a consecutiva cassao ou suspenso das linhas areas.

    Quando foi que o judicirio comeou a atuar e com que atos, com que justificativas,

    quais magistrados especificamente atuaram no caso;

    6. Analisar as consequncias em decorrncia do fechamento da empresa a 5

    mil funcionrios e suas famlias, houve tambm suicdios, entre os quais aqueles que

    pediram indenizao por razes diversas (fechamento no dia do pagamento 10 de

    fevereiro). Como agiu o judicirio diante dos pedidos de indenizao?;

    7. Analisar a extenso da perseguio e o atingimento de outras empresas do

    grupo Simonsen-Rocha Miranda, incluindo a TV Excelsior, companhias de seguro, a

    CELMA, entre outras, se existir tempo, e se for tambm flagrante a atuao do

    judicirio nesses casos; (Objetivo alcanado parcialmente pela CNV Relatrio Final);

    8. Analisar o processo de nomeao de Procurador da Repblica com a

    funo especfica de perseguio da Panair do Brasil. A acusao de que haveria essa

    nomeao, como afeta as decises do judicirio?;

    9. Analisar a sindicncia do Processo de falncia da Panair assumido pelo

    Banco do Brasil e a liquidao de patrimnios no exterior e sem leilo por quantias

    irrisrias? Bem como o confisco de avies que passaram a ser operados por outras

    companhias que adquiriram por metade do preo internacional (Varig e Cruzeiro do

    Sul). Como atua o judicirio?;

    10. Analisar os processos de indiciamento dos diretores e gestores da Panair

    por crimes falimentares e o resultado desses processos e analisar os laudos sobre crimes

    falimentares considerados falsos pela justia posteriormente. Como foi o

  • 9

    comportamento do judicirio nesses casos? Havia fora de opinio pblica que pode ter

    influenciado a deciso final?;

    11. Analisar o resultado dos processos sobre eventual abuso de autoridade e

    difamao imposto pessoa jurdica Panair, sobre as denunciaes caluniosas

    praticadas contra seus scios majoritrios e gestores e sobre o esbulho possessrio

    cometido em relao s suas propriedades. Como foi o comportamento do judicirio

    nesses casos?;

    12. Analisar o pedido de abertura do CGI para investigar enriquecimento

    ilcito e a exposio de motivos que inicialmente conclui que o empresrio seria o

    grande beneficirio dos enormes prejuzos causados Unio. Em seguida analisar a

    consequente devassa fiscal solicitada pela mesma exposio de motivos, devassa da

    Panair e de outras empresas atravs na nomeao de diversos fiscais de imposto de

    renda a fim que examinem os livros de contabilidade devassa entre 1965 e 1978.

    Comparao desses documentos com a anlise dos resultados da CGI que demonstra

    que no havia esses crimes - em sntese, de toda a documentao carreada no bojo dos

    autos, no emerge fato relevante caracterizao de enriquecimento ilcito e sonegao

    fiscal;

    13. Em suma dos itens anteriores: Analisar como o Estado utilizou de todos

    os meios possveis, inclusive o Judicirio, para obter os resultados da aplicao dessa

    Poltica contra a Panair do Brasil, em especial por meio da: Convolao em Falncia da

    sexta para segunda sem pedido ou existncias de credores; Participao pessoal do

    Ministro da Aeronutica na Vara; Juiz com assistncia de advogados da Varig,

    Generais, Coronis; Cpia de qualquer despacho compulsoriamente dirigida ao SNI;

    Sndicos indicados pela Aeronutica; No aprovao das contas do Sindico Banco do

    Brasil; Segundo Sindico espoliou o patrimnio; Processo de Exceo de suspeio

    contra o Juiz da Vara; Cobranas de valores irreais para manter a empresa falida;

    Perseguio Continuada, com a utilizao de Decretos Inconstitucionais.

    14. Vale frisar a hiptese a respeito da persecuo continuada e ininterrupta,

    primeiro empresa e, na sequncia, por vezes concomitantemente, aos empresrios,

    gerando uma conexo persecutria ao longo do tempo desde 1965 at os dias atuais,

    tendo em vista que o Decreto 496 de 1969 no foi revogado e permanece em vigor o

    impedimento de exercer sua atividade econmica (Decreto 496 de 11 de maro de 1969,

    cito: as empresas de transporte areo ficam impedidas de operar aeronaves ou explorar

  • 10

    servios areos de qualquer natureza durante ou depois do encerramento dos processos

    de sua liquidao, falncia ou concordata).

    Apresentao das Fontes

    A seguir listamos os principais documentos e a descrio do contedo de cada um.

    (1) Doc. Panair do Brasil EXPLICAES PRESTADAS PELO GOVERNO AO STF

    FALNCIA DA PANAIR. (44 pginas)

    a) Transcrio das acusaes originais atribudas PANAIR por parte do Governo e as

    consequentes explicaes prestadas ao STF, firmadas pelo Ministrio da Aeronutica

    (Marechal do Ar Eduardo Gomes) por ocasio do Mandado de Segurana impetrado

    pela empresa. O documento inclui os motivos para falncia de dissoluo, a indicao

    judicial da massa falida, a situao econmico financeira da empresa, subveno e

    auxlios financeiros concedidos, indicao de manobras financeiras para obter capital de

    giro e diversas outras alegaes contra a empresa e os acionistas majoritrios, contesta

    os motivos do Mandado de Segurana. Faz meno ao laudo pericial (posteriormente

    considerado falso pela justia);

    (2) Doc. Seabra DA ARGUIO E EXPLICAO (17 pginas)

    a) Resposta da Panair transcrio das acusaes originais atribudas PANAIR por

    parte do Governo e as consequentes explicaes prestadas ao STF, firmadas pelo

    Ministrio da Aeronutica (Marechal do Ar Eduardo Gomes) por ocasio do Mandato

    de Segurana impetrado pela empresa;

    b) Resposta ao discurso proferido pelo Senador Agripino Maia;

    c) Esclarecimento por parte da empresa elaborado pelo jurista Miguel Seabra Fagundes.

    (3) Doc. Panair do Brasil 3 PARECER DO PROCURADOR GERAL DE JUSTIA

    AO EGREGIO CONSELHO DA MAGISTRATURA FALNCIA DA PANAIR (41

    pginas)

    a) Parecer do Procurador Geral da Republica Dr. Leopoldo Braga. Meno no

    documento transformao do caso de falncia em escndalo nacional, meno aos

    principais jornais da poca com referncias exatas das publicaes (arquivo);

  • 11

    (4) Doc. Victor Nunes Leal. EXECUTIVO DA UNIO CONTRA A MASSA FALIDA

    DA PANAIR DO BRASIL.

    a) Documento que contm o pedido de anulao do processo para que se apure,

    contenciosamente, no s o valor dos bens da Panair, tomados em pagamento, como

    tambm cada uma das parcelas do crdito da Unio, a ser compensado com valor

    indicado.

    (5) Cpia DECRETO-LEI 474, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1969.

    a) Inclui o artigo 3 Para efeito de aplicao das normas do Decreto-lei n 960, de 17

    de dezembro de 1938, entendem-se, tambm, por dvida ativa os crditos da Unio

    Federal, Distrito Federal, Estados e Municpios, ou de suas agncias financeiras,

    decorrentes de contratos ou operaes de financiamentos, ou de sub-rogao de

    garantia, hipoteca fiana ou aval.

    (6) Doc. ACORDAO STF 19/12/1980 (43 pginas)

    a) Conhecido e provido o recurso da falncia. Prejudicado o da massa falida.

    (7) Doc. CRM. DOSSIE JORNAIS E REVISTAS SOBRE CELSO DA ROCHA

    MIRANDA (10 pginas)

    a) Matria sobre Celso da Rocha Miranda Revista Manchete edio 10 aniversrio

    (8) Doc. APENSO I (165 pginas)

    a) Enviado pelo Delegado da Receita Federal do Estado da Guanabara ao Presidente da

    Subcomisso Geral de Investigao da Guanabara. Contra Celso da Rocha Miranda

    documentos de 1969 juntada de imposto de renda, recibos de rendimento, declarao

    de bens, documentos de empresas estrangeiras, relao e clientes, inclui documentos

    sobre a Companhia de Seguros do grupo, informe de rendimentos, extratos de banco etc.

    (9) Doc. ARQUIVO NACIONAL ORIGINAL (82 pginas)

    a) Documentos secretos do CISAR - difuso SNI sobre Celso da Rocha Miranda: (...)

    Celso da Rocha Miranda forte influncia na estruturao dos negcios da Industria de

    Materiais Blicos do Ministrio do Exrcito (IMBEL)

  • 12

    b) (...) acusao de maquinaria perigosa que conduziu a Panair do Brasil falncia...

    c) Concluso da investigao sumria da aeronutica.

    d) Documentos sobre apoio econmico, donativos e contribuies a candidatos e

    campanhas eleitorais.

    e) Informe da Polcia Militar do Quartel do Comando Geral do Estado Maior So Paulo

    documentos com leitura prejudicada, m qualidade da reprografia.

    f) Doc. Ministrio das Relaes Exteriores Diviso de Segurana e Informaes

    informaes sobre a Fundao Casas do Brasil no Exterior, do qual Celso da Rocha

    Miranda presidente vitalcio (Londres, Madrid ...);

    g) Documento original que aponta CRM como scio fundador da Sociedade Bolivariana

    do Brasil;

    h) Documentos da Subcomisso Geral de Investigaes sobre bens e valores da empresa

    sigilo incluindo a relao de outras empresas do grupo a fim de apreciar

    irregularidades (1973);

    i) Resultado do inqurito atribuindo ao grupo a reponsabilidade.

    (10) Doc. ARQUIVO NACIONAL RESULTADO DO PROCEDIMENTO

    SUMRIO (4 pginas)

    a) Aps apurao por fraude fiscal de RUBENS BERNARDO, gerente/administrador

    responsvel, este tem seu mandato cassado pelo prazo de 10 anos.

    b) Tambm Celso da Rocha Miranda incriminado no inqurito e sugesto para que

    seja condenado por crime de sonegao fiscal.

    (11) Doc. VOLUME I - PDF (211 pginas)

    a) Cpia integral do I volume do processo perante a subcomisso Geral de Investigao

    da Guanabara.

    (12) Doc. VOLUME I - PDF (362 pginas)

    a) Cpia integral do II volume do processo perante a subcomisso Geral de Investigao

    da Guanabara.

    (13) Doc. VOLUME I - PDF (374 pginas)

  • 13

    b) Cpia integral do III volume do processo perante a subcomisso Geral de

    Investigao da Guanabara.

    (14) Cpia Exposio para a audincia pblica sobre o Caso Panair, CNV Daniel Leb

    Sasaki (13 pginas)

    a) Jornalista, autor do livro Pouso Forado e de documentrios onde resgata a memria

    de Wallace Simonsen. Grupo Editorial Record. Depoimento perante a Comisso

    Nacional da Verdade.

    (15) Cpia Apresentao Rosa Cardoso audincia pblica sobre o Caso Panair

    a)Transcrio da abertura da Audincia Pblica e Discurso Rosa Cardoso.

    (16) Cpia Carta de Rodolfo da Rocha Miranda Comisso Nacional da Verdade

    a)Indicao dos documentos entregues CNV e do dossi.

    (17) Cpia Carta da Comisso Nacional da Verdade Rosa Cardoso a Rodolfo da

    Rocha Miranda

    a) Comprometimento.

    (18) Cpia Dossi A DESTRUIO PATRIMONIAL E MORAL DE UM

    PERSEGUIDO POLTICO

    a) Representao para abertura de investigao tortura indireta ao empresrio

    juntada de documentos que comprovam a perseguio poltica por parte do empresrio

    Celso da Rocha Miranda (112 pginas)

    b) A candidatura de JK e a participao de CRM;

    c) As ligaes polticas do empresrio;

    d) As empresas participantes do grupo empresarial;

    e) Os atos de perseguio poltica (CISA, Comisso de Investigao Sumria, Devassa

    Fiscal), o Caso Ajax, o Caso Prospec S/A, o Caso Companhia Internacional de Seguros,

    Comisso Geral de Inqurito (enriquecimento Ilcito);

    f) Era Ps Geisel e Acordo Presidente Joo Figueiredo;

    g) Extrato de documentos enviados pelo Arquivo Nacional

  • 14

    Segue abaixo a descrio das tarefas executadas mensalmente:

    Abril 2014 Apresentao do caso

    Maio 2014 Reunies regulares com o grupo de pesquisa.

    Junho 2014 Reunio especfica para definir a metodologia de anlise dos documentos,

    referncias bibliogrficas e definio de tarefas;

    Julho 2014 Entrega do primeiro relatrio parcial com as impresses iniciais aps anlise

    documental;

    No dia 15 de julho de 2014, das 14h s 16h, as Professoras Carol Proner,

    Vanessa Batista e a pesquisadora Lusmarina Campos Garcia estiveram

    reunidas com a advogada Eny Moreira, ocasio em que obtiveram acesso a

    uma srie de documentos que haviam sido entregues pela Comisso Nacional

    da Verdade por ocasio da realizao da Audincia Pblica do Caso PANAIR

    (27/03/2013).

    Agosto 2014 Reunies regulares com os demais subgrupos para definio do marco terico

    da pesquisa;

    Setembro 2014 Contato com o jornalista e autor do livro Pouso Forado, Daniel Sasaki, para

    coleta de mais informaes sobre o caso Panair do Brasil;

    Outubro 2014 Incorporao do pesquisador Ricardo Azevedo ao subgrupo Panair do Brasil e

    definio de tarefas para elaborao do segundo relatrio parcial;

    Novembro 2014 Entrega do segundo relatrio parcial do subgrupo Panair do Brasil, j

    incorporando pedidos especiais CEV Rio para complementao de

    documentao, entre os quais o contato com a famlia do empresrio Celso da

    Rocha Miranda;

    Dezembro 2014 Apresentao das concluses do relatrio parcial em reunio na Comisso

    Estadual da Verdade. Expectativa com a divulgao do Relatrio Final da

    Comisso Nacional da Verdade no que se refere ao marco da ditadura civil-

    militar e os empresrios perseguidos;

    Janeiro 2015 Anlise do Relatrio Final da Comisso Nacional da Verdade no que se refere

    ao marco da ditadura civil-militar;

    Fevereiro 2015 Primeiro contato com a famlia Panair e o empresrio Rodolfo da Rocha

    Miranda

    Maro 2015 Reunies regulares com a presena do empresrio Rodolfo da Rocha Miranda

    que aportou documentos complementares para a pesquisa.

    Abril 2015 Entrega do terceiro relatrio parcial do subgrupo Panair do Brasil

    Maio 2015 Reunies regulares com a presena do empresrio Rodolfo da Rocha Miranda

    que aportou documentos complementares para a pesquisa.

    Junho 2015 Reunies regulares com os demais subgrupos para aplicar marco terico

    pesquisa e definir recomendaes;

    Julho 2015 Realizao de reunio com o grupo de pesquisa, o jornalista Daniel Sasaki e o

    empresrio Rodolfo da Rocha Miranda com o fim de elucidar questes

    adicionais aps anlise da documentao final apresentada.

    Entrega do Relatrio Final subgrupo Panair do Brasil

    Caso da Justia Militar2

    Esta parte especfica da pesquisa investiga a atuao concreta da Justia Militar

    do Rio de Janeiro (JMRJ), na qual foram julgados um grande nmero de presos

    polticos no perodo da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), e sua colaborao efetiva

    2 Coordenado pela Professora Luciana Boiteux

  • 15

    com o projeto poltico da ditadura, na represso e neutralizao da resistncia poltica ao

    regime. A fonte de anlise ser uma seleo de processos criminais julgados pelas

    auditorias do Rio de Janeiro iniciados no perodo entre 1964 e 1971 (e os seus recursos

    aos tribunais superiores), os quais foram lidos em profundidade e estudados por meio de

    uma metodologia qualitativa.

    O objetivo geral da investigao deste subgrupo compreender como se deu a

    atuao da JMRJ e de seus magistrados, no perodo indicado, suas ambiguidades, papel

    histrico e as alteraes legislativas que a instrumentalizaram para essa tarefa. Dentre

    seus objetivos especficos, podemos apontar:

    1. Analisar as modificaes constitucionais que serviram de embasamento para

    o regime militar;

    2. Compreender o desenho institucional da Justia Militar, sua estrutura

    normativa e as alteraes legislativas (constitucionais e infraconstitucionais) que

    incidiram diretamente nos processos contra crimes polticos, como reflexo das

    necessidades de controlar/reprimir a resistncia ao regime ditatorial;

    3. Estudar a atuao da Justia Militar de primeira instncia no Rio de Janeiro

    (1a. CIJ), seu funcionamento e de os personagens (juzes e acusados), por meio da

    anlise dos processos selecionados representativos dos casos de crimes polticos;

    4. Analisar denncias de tortura formalmente levadas ao conhecimento da

    Justia Militar e verificar como esses casos eram tratados pelos magistrados, verificando

    se havia conivncia ou resistncia tortura;

    5. Identificar permanncias autoritrias daquele perodo que ainda sejam

    percebidas nos dias de hoje, especialmente no que se refere ao desenho institucional da

    Justia Militar no Brasil atual, 50 anos aps o Golpe;

    6. Realizar mapeamento dos locais de memria desses julgamentos e propor

    medidas de resgate histrico (ex. Antigo prdio do STM na Praa da Repblica-RJ, ao

    lado da FND).

    A partir desses objetivos, a hiptese da qual partimos a de que a Justia

    Militar atuou de modo conivente e colaborativo com a Ditadura, e foi elemento

    essencial na construo do projeto militar autoritrio instaurado no pas (legitimando as

  • 16

    leis autoritrias e atuando como essencial apoio jurdico na represso aos opositores ao

    regime).

    Assim, nos propomos a responder as seguintes questes sobre a atuao da

    Justia Militar do Rio de Janeiro no perodo estudado:

    1. O Governo Militar tinha controle sobre a Justia Militar e a orientava, ou

    esta tinha ainda alguma autonomia e conseguia atuar de forma legalista dentro do

    limite determinado pelas leis autoritrias da poca? Como isso ocorreu nos perodos (ou

    fases) da Ditadura?

    2. Houve violao de direitos nos julgamentos analisados? Indicar exemplos

    concretos e artigos de lei violados.

    3. Os magistrados eram independentes, adaptados ou coniventes? Uma vez que

    as alteraes legislativas e os procedimentos foram efetuados de acordo com as

    necessidades dos governos militares conforme as demandas polticas por maior ou

    menor represso, como se verificava, na prtica, a atuao da Justia Militar quanto s

    provas para levar condenao, as penas aplicadas e as denncias de tortura?

    A Metodologia utilizada a qualitativa e o estudo do tema se far por meio da

    compreenso do arcabouo legal construdo pela ditadura, que foi a base tanto para o

    funcionamento do regime militar como especialmente para definir o papel da Justia

    Militar nesse desenho institucional autoritrio articulado com a leitura e anlise da

    ntegra das peas de uma amostra de processos que tramitaram na 1a. Circunscrio de

    Justia Militar situada no Rio de Janeiro. Assim, foram realizados:

    1. Levantamento das normativas sobre a Justia Militar e as alteraes

    legislativas (constitucionais e infraconstitucionais) entre 1964-1988, com descrio de

    seu funcionamento e da legislao penal-militar aplicvel;

    2. Coleta e anlise qualitativa de sentenas da Justia Militar do Rio de Janeiro

    no perodo entre 1964 e 1974 por crimes polticos, identificao e seleo de casos

    emblemticos por perodo, levando em conta: interesse histrico, importncia poltica

    do acusado(a), relevncia do caso (ex. denncia de tortura, precedente, etc.); setor ao

    qual estava vinculado o acusado (religioso, sindical, organizao poltica, etc.);

    3. Aplicao de questionrio para anlise das sentenas/acrdos, da 1a.

    Instncia/STM com base nas questes indicadas nos objetivos especficos (Anexo I -

    Questionrio) e redao de resumo analtico com os achados mais importantes (Anexo

  • 17

    II Resumos Analticos);

    4. Realizao de entrevistas com atores-chave que atuaram nesses processos:

    juzes, advogados, acusados (Anexo III Transcrio das Entrevistas);

    5. Reviso de obras e artigos de diferentes reas do saber: jurdicos, cincias

    sociais e histria sobre o perodo, incluindo livros com entrevistas e narrativas de

    advogados que atuaram na ditadura;

    6. Levantamento e anlise de documentos e fontes nos arquivos da Ditadura

    (Arquivo Nacional e APERJ) referentes aos casos estudados, por meio de palavras-

    chave tais como: nome do acusado, codinome, data da priso, organizao qual

    pertencia, local de atuao, nmero do processo na Justia Militar (Anexo IV Pesquisa

    nos Arquivos);

    Em relao a esse ltimo item da metodologia, vale a pena destacar a

    apresentao das fontes consultadas na pesquisa, a seguir indicadas:

    Apresentao das Fontes

    A documentao utilizada nesta pesquisa constitui-se de seleo de processos

    criminais contra presos polticos julgados pela Justia Militar Federal do Rio de Janeiro

    no perodo da Ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). A escolha de processos

    julgados no Rio de Janeiro a serem estudados se deveu a dois fatores: i) pelo fato de a

    Comisso da Verdade do Rio de Janeiro ter como objeto de anlise o Judicirio militar

    deste Estado; ii) o grande nmero de processos julgados no Rio de Janeiro, o que

    demonstra centralidade poltica da represso e da atuao da Justia Militar no referido

    estado, que totalizou 28% dos processos julgados no Brasil (de 708 processos totais

    digitalizados, 200 foram julgados no Rio de Janeiro dados referentes ao banco de

    dados do Projeto Brasil Nunca Mais - BNM3), como se verifica da tabela abaixo:

    Estado Nmero de

    Processos

    %

    AM 4 1%

    BA 32 5%

    CE 37 5%

    DF 24 3%

    ES 6 1%

    GO 12 2%

    3 Disponvel em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/.

  • 18

    MA 1 0%

    MS 1 0%

    MG 58 8%

    PA 8 1%

    PB 7 1%

    PR 35 5%

    PE 44 6%

    PI 4 1%

    RJ 1984 28%

    RN 14 2%

    RS 49 7%

    RO 2 0%

    SC 10 1%

    SP 161 23%

    SE 1 0%

    Total 708 100%

    Assim, a JMRJ pode ser considerada como parte representativa da atuao da

    Justia Militar no Brasil, no s pelo grande nmero de processos, como por ter sido

    palco de intensa luta de resistncia ao regime e de feroz represso. Para Modesto da

    Silveira, isso ocorria porque "aqui se concentrava a massa de interesse poltico e

    militar".5

    Do ponto de vista da organizao da Justia, no Rio de Janeiro se situavam,

    Auditorias Militares (1a. Instncia), compostas por um juiz togado e quatro oficiais das

    Foras Armadas e, at 19736, a segunda instncia da Justia Militar, o Superior Tribunal

    Militar (STM), composto por dez juzes togados e cinco militares.

    Registre-se que a presente investigao, at pelo seu limitado tempo de

    concluso, no teve por escopo buscar acesso a todos os processos polticos julgados

    pela justia castrense no Brasil naquele perodo, mas sim teve como objetivo realizar

    uma anlise qualitativa tendo como ponto de partida os processos disponveis no Banco

    de Dados BNM7 acessveis na internet, o que indica que possvel que haja outros

    4 Segundo o projeto Brasil Nunca Mais, h 200 processos do Rio de Janeiro, porm, dois dos processos

    relacionados eram de outros Estados, sendo o total correto 198, conforme constou da tabela. 5 Entrevista de Modesto da Silveira (SPIELER e QUEIROZ 2014).

    6 Este, alis, foi o ltimo tribunal superior a mudar-se para Braslia, o que ocorreu somente em 1973, visto

    que a mudana de capital se deu em 1960, sendo os demais tribunais transferidos logo em seguida. 7 O projeto Brasil: Nunca Mais BNM foi desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela

    Arquidiocese de So Paulo nos anos oitenta, sob a coordenao do Rev. Jaime Wright e de Dom Paulo

    Evaristo Arns. A iniciativa teve trs principais objetivos: evitar que os processos judiciais por crimes

    polticos fossem destrudos com o fim da ditadura militar, tal como ocorreu ao final do Estado Novo,

    obter informaes sobre torturas praticadas pela represso poltica e que sua divulgao cumprisse um

    papel educativo junto sociedade brasileira Mais de 900 mil pginas de processos foram copiadas e

    microfilmadas poca. Por temor que os processos fossem destrudos, o material foi enviado aos Estados

    Unidos pelo Conselho Mundial de Igrejas, posteriormente digitalizado e sua anlise e divulgao do livro

  • 19

    processos que no estejam compilados em tal banco de dados. A opo metodolgica de

    partir dessa fonte decorre de sua ampla acessibilidade, pela rede mundial de

    computadores, diante do limitado tempo limite da investigao e das dificuldades de

    acesso aos originais.

    Com essa ressalva acima, para definir a nossa amostra, o nosso ponto de

    partida foram os processos j sumariados8 pelo Ministrio Pblico Federal no momento

    do incio da pesquisa. Assim, nossa seleo inicial teve por base os primeiros 50

    processos sumariados disponibilizados em maro de 2014, dos quais 18 eram referentes

    aos casos julgados pelas auditorias da 1a. Circunscrio da Justia Militar da Unio,

    localizada no Rio de Janeiro (recorte geogrfico). Como posteriormente o nmero de

    processos sumariados alcanou o total de 708, conforme foi avanando o trabalho de

    organizao pelo MPF, ampliou-se a amostra inicial para o total de 27 processos

    julgados pela1a. CJM (RJ) que foram lidos e estudados em sua integralidade.

    Tal escolha levou em considerao a necessria ponderao na escolha que

    levasse em conta o nmero de processos por perodo, por setor ao qual estavam

    vinculados os acusados (setores religioso, sindical, poltico, jornalista e estudantil, que

    eram os mais frequentes). O critrio de seleo, de forma complementar, levou ainda em

    conta o interesse histrico, importncia poltica do acusado(a), relevncia do caso e sua

    especificidade (ex. denncias de tortura, acusado menor de idade, etc.), bem como a

    representatividade das diversas organizaes polticas envolvidas:

    Vejamos abaixo:

    Brasil Nunca Mais, lanado em 15 de julho de 1985, quatro meses aps a retomada do regime civil,

    estando este atualmente na sua 40a. Edio. Vide http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/o-que-e-o-bnm. Sem

    esse esforo, possivelmente o Brasil no teria nunca tido acesso essa realidade de violao a direitos

    humanos verificada nos processos contra presos polticos na ditadura. 8 O Ministrio Pblico Federal realizou o trabalho de organizar digitalmente as peas judiciais dos

    processos, por meio de sumrios cujo ndice est disponvel no site com indicaes das peas principais e

    descries dos casos, com o objetivo de estudar a possibilidade de abertura de processos criminais de

    responsabilizao por violaes a direitos humanos praticados durante a Ditadura civil-militar. Segundo

    consta do site, impulsionado pela vontade de tornar mais detalhada e produtiva a pesquisa no acervo do

    BNM Digital, o Ministrio Pblico Federal coordenou um trabalho de leitura, compilao e classificao

    de informaes relevantes de cada um dos 710 processos, organizando-as sob a forma de um Sumrio.

    Diversas informaes do Sumrio trazem links para a pgina do processo do qual foram extradas,

    facilitando o acesso fonte originria. Vide: http://bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/ .

  • 20

    Assim, foram lidos e estudados em profundidade 27 processos, todos julgados

    na 1a. CJM (Rio de Janeiro), de acordo com a seguinte especificao: um processo

    referente ao setor religioso BNM 04 (n. 7423/64); trs do setor militar: BNM 25 (proc.

    1574/64), BMN 45 (proc. 8255/64), BNM 48 (Proc. 8180/64); dois processos do setor

    sindical: BNM 31 (proc. 235/64), BNM 32 (proc. 1650/65); um do setor jornalista:

    BNM 154 (proc. 146/71); um do setor estudantil: BNM 509 (proc. 49/68);dezesseis

    processos do setor poltico: trs casos referentes ALN (BNM 22 (proc. 12/70), BNM

    27 (proc. 1520/71), BNM 44 (proc. 677/69)); um caso ALN+COLINA: BNM 29 (proc.

    41/68); dois casos referente VAR-Palmares: BNM 30 (proc. 29/70) e BNM 57

    (proc.01/72); um processo sobre o PCBR: BNM 33 (proc. 20/70); um sobre a POLOP:

    BNM 34 (8216/65); quatro processos sobre o MR-8: BNM 36 (proc. 1651/73), BNM

    112 (proc. 1.542/72), BNM 74 (proc. 56/71) e BNM 166 (proc. 1683/73); um caso da

    VPR (proc. 47 (18/71); um do PC do B: BNM 439 (proc. 10/71); um do PCB:BNM 347

    (proc. 69/70-C) e um referente a um deputado federal:BNM 78 (proc. 56/70-C); alm de

    trs de setores no identificados:BNM 06 (proc. 7470/64), BNM 17 (proc. 7477/69) e

    BNM 23 (proc. 7500/66).

    Destaque-se que essa classificao em setores no esgota as possibilidades,

    nem as combinaes, sendo certo que algumas categorias se sobrepem, como por

    exemplo, setores poltico e estudantil, ou setor militar e sindical que podem ser referidos

    no mesmo caso. Outra importante categoria no expressada nessa conceituao do BNM

    Setor No. de

    Processos RJ

    % Processos

    analisados

    %

    Org./Partidos 138 70% 16 57,14%

    Militar 21 9.5% 3 11,11%

    S/I 20 9.5% 3 7,14%

    Sindical 9 5% 2 7,14%

    Jornalistas 5 2.5% 1 3,57%

    Estudantil 4 2% 1 3,57%

    Religioso 1 0.5% 1 3,57%

    TOTAL 198 100% 27 100%

  • 21

    foram os casos de represso no campo, aqui representado nos casos BNM 17 e 57.

    Entendemos que essa amostragem de casos representativos e emblemticos nos permite

    ter uma viso ampla da atuao da JMRJ.

    O recorte temporal para a seleo das fontes de pesquisa inicialmente traado

    iria de 01.04.1964 (data do Golpe) at o final do ano de 1980, para se alcanar a

    aplicao da Lei de Anistia havendo notcias de que isso teria ocorrido nos processos at

    meados de 1980. Porm, diante da disponibilidade da base de dados e a verificao da

    reduo do nmero de processos instaurados a partir de 1974, bem como do longo

    tempo que estes demoravam a ser concludos, e considerando que a nossa proposta de

    investigao se baseava no acompanhamento desses casos at a sua concluso, optamos

    por limitar o alcance temporal inicialmente proposto, em relao aos casos iniciados.

    Assim, nessa primeira etapa, decidimos no analisar processos iniciados partir de 1974,

    quando a prpria atuao dos tribunais militares reduziu muito, mas isso poder ser feito

    a partir da 2a. Etapa da pesquisa.

    Por uma questo metodolgica, portanto, escolhemos analisar os processos

    divididos por perodos/fases, relacionados s circunstncias da competncia da Justia

    Militar e de fatos histrico-poltico, como indicado abaixo:9

    1a. Fase: 1964-1965 - do Golpe at a ampliao da competncia da JM pelo AI-

    2.10

    Processos iniciados nessa fase: n. 04, 06, 25, 31, 32, 34, 45, 48

    2a. Fase: 1965- 1968 - do AI- 2

    11 at o AI-5, que proibiu o HC para crime

    poltico. Processos iniciados nessa fase: n. 23, 29

    3a. Fase: 1968 1974 do AI-5

    12 at o fim do Governo Gal. Mdici (1969-

    1974), incluindo a parte final do Governo Costa e Silva (1967-1969).13

    Processos

    9 Por opo metodolgica, a anlise no incluir processos da 4

    a. Fase: 1974 1979 e da 5

    a. Fase: 1979-

    1980. 10

    Em 1964, teria havido absolvies de presos polticos na Justia Comum, o que teria levado demanda

    por transferncia da competncia da Justia Militar. H notcias de que os militares no confiavam na

    Justia Comum, porque vrios inquritos foram arquivados havia juzes que absolviam os acusados por

    crimes contra a LSN - ex. Basileu Ribeiro Filho. Cf. Entrevista de Tcio Lins e Silva, SPIELER e

    QUEIROZ 2014:753. 11

    Pelo Ato Institucional n. 2 (editado em 27/10/1965), a Justia Militar teve sua jurisdio modificada e

    passou a ser responsvel pelo julgamento no s de militares, mas tambm de civis enquadrados na Lei de

    Segurana Nacional. 12

    O Ato Institucional n. 05 foi editado em 13.12.68. 13

    Aponta-se o ano de 1971 como sendo o perodo que deu incio a um processo de intensificao do

    combate s organizaes armadas de esquerda pela Ditadura (torturas, prises ilegais, Centros de

    interrogatrios e execues). Questo que se coloca: teriam sido reduzidos ou intensificados os processos

    contra autores de crimes polticos nesse perodo?

  • 22

    iniciados nessa fase: n. 17, 22, 27, 30, 33, 36, 44, 47, 57, 74, 78, 112, 154, 166, 347,

    439, 509.

    A comparao entre os perodos mostra-se essencial pois, apesar de a Ditadura

    no ter criado um judicirio prprio, utilizou a estrutura preexistente para atender a seus

    interesses, tendo ampliado, em 1965, a competncia da Justia Militar para julgar casos

    envolvendo civis, justamente em decorrncia da resistncia poltica ao Golpe.

    Os pesquisadores, ento, procederam leitura e anlise em profundidade dos

    27 processos judiciais selecionados, desde o seu incio, a partir das primeiras pginas

    dos inquritos, passando pelas audincias, depoimentos, acareaes, alegaes at as

    sentenas proferidas pelas Auditorias da JMRJ e os respectivos julgamentos dos

    recursos e habeas corpus pelos tribunais superiores, STM e STF, e aplicaram um

    questionrio para anlise das sentenas/acrdos, da 1a. Instncia/STM/STF (Anexo I),

    depois resumido em um sumrio analtico aprofundado, com base nas questes

    indicadas nos objetivos especficos.

    Em um segundo momento da pesquisa, depois que foi iniciada a leitura dos

    processos, foram realizadas entrevistas com atores-chave que permitiram aprofundar as

    anlises a partir da experincia de pessoas que atuaram como advogadas naquele

    perodo: Rosa Maria Cardoso, Arthur Lavigne, Luiz Felipe Monteiro, Antonio Modesto

    da Silveira e Eduardo Seabra Fagundes14

    e realizada reviso bibliogrfica, notadamente

    obras de referncia da rea de Histria e livros com depoimentos de advogados que

    atuaram na Justia Militar poca.15

    Foram usadas como fontes secundrias entrevistas realizadas com outros atores

    como ministros do STM e advogados e o depoimento produzido pela CNV do Juiz

    Auditor da Justia Militar de SP, Nelson da Silva Machado Guimares16

    , alm de

    entrevistas realizadas e transcritas pelo CPDOC/FGV.17

    14

    Na 2. Parte da pesquisa iremos ampliar esse rol de entrevistados para incluir Eny Moreira, Cezar

    Benjamin, Lucia Murat, Tecio Lins e Silva e Jesse Jane, personagens importantes para compreender o

    perodo, os quais no foram ainda entrevistados por uma questo de agenda, j tendo alguns deles sido

    contatados pelos pesquisadores. 15

    BARANDIER 1994; FRAGOSO 1984; SPIELER e QUEIROZ 2014; SA, MUNTEAL e MARTINS

    2010. 16

    Disponvel no link https://www.youtube.com/watch?v=Ud4NKjw3_o4 17

    Dossi CPDOC/FGV, disponvel em: http://cpdoc.fgv.br/justicamilitar contm entrevistas sobre vrios

    temas, dentre eles a atuao da Justia Militar durante o Regime Militar (1964-1985). Trata-se de um

    conjunto de 12 entrevistas realizadas entre 2005 e 2006 durante a realizao de uma pesquisa sobre os

    200 anos de Justia Militar no Brasil, sob a coordenao de Maria Celina DAraujo e Celso Castro.

    Dentre os depoentes, encontram-se 10 ministros do STM, alm de dois advogados que se relacionaram,

    de modos distintos, com a Justia Militar.

  • 23

    Portanto, a presente investigao ter como fonte principal as sentenas de

    primeira instncia das Auditorias Militares do RJ e os seus acrdos respectivos,

    julgados em segunda instncia pelo STM. Sero verificados na anlise como eram

    proferidos os julgamentos, se julgadores se curvavam aos anseios da represso poltica

    ou se mantinham uma postura garantista. No STM, considerando que, de um lado, havia

    ministros, como o General Peri Bevilacqua (nico ministro do STM aposentado pelo

    AI-5) tidos como garantistas assim como outros apoiadores do Golpe desde a primeira

    hora18

    , ser analisado como essas posies eram manifestadas nos votos, em temas

    como penas aplicadas, admisso da tortura, preconceitos/rtulos ideolgicos aplicados

    aos acusados, dentre outros. (Anexo I - Questionrio).

    Alm disso, realizamos um levantamento de fontes dos arquivos da Ditadura

    (Arquivo Nacional e APERJ) referentes aos casos estudados, por meio das seguintes

    palavras-chave: nome do acusado, codinome, data da priso, organizao qual

    pertencia e local de atuao (Anexo IV Pesquisa nos Arquivos).

    Este tipo de documentao levantada pode ser classificado, conforme Barros

    200519

    , como documentaes oficiais, diferentes da documentao privada que

    produzida ao nvel das vidas individuais: os relatos de viagem, os dirios pessoais,

    correspondncias entre particulares. Barros enumera vrios tipos de fontes desta

    natureza: inventrios e registros fiscais, censitrios, testamentrios, cartoriais, e

    paroquiais, por exemplo.

    Este o caso das fontes selecionadas para esta anlise acerca do Judicirio na

    Ditadura ps-64, posto tratar-se de documentao oriunda dos sistemas repressivos e

    ligados justia e polcia. BARROS 2005, tratando das questes terico-

    metodolgicas em torno da Histria Social, observa o valor deste tipo de fontes, posto

    que lanam luz a elementos normalmente invisveis - como as vitimas e os

    perseguidos pelo poder vigente atravs de depoimentos, confisses e sentenas. Tais

    registros so importantes tambm por sua diversidade, pois a maneira como devem ser

    18

    SILVA 2014:753 afirma que o STM era composto por oficiais generais que tinham participado do

    Golpe e que era o prprio poder representado na Justia Militar e aponta que os oficiais generais que

    foram nomeados, no fim de carreira, ao STM: Olympio Mouro Filho, que iniciou o golpe, vindo com as

    tropas de Juiz de Fora para o Rio; Ernesto Geisel e Syzeno Sarmento, comandante da Primeira Regio

    Militar do RJ. Ele citou, por outro lado, o nome do Ministro Otavio Murgel de Rezende, auditor antes do

    Golpe e que depois se tornou um juiz militar do STM como sendo um juiz com uma postura garantista

    (que trancou a Ao Penal no IPM contra o CACO em 05.04.67 (vide o HC 28.780). Este IPM foi

    distribudo originalmente 21a. Vara Criminal (Lei n. 1.802/53), mas depois foi transferido, em 1965,

    para a 2a. Auditoria do Exrcito, que funcionava em frente FND.

    19 BARROS 2005.

  • 24

    organizados os processos, entrecruzando indivduos dos mais diversos tipos, acaba

    conferindo a este tipo de fonte uma posio muito rica no repertrio de documentos

    disposio de um historiador. Tal documentao no raro tambm expe as contradies

    internas que podem aparecer sob a forma de conflitos de autoridade, e um universo

    multifocal que passa por um vasto nmero de depoentes e de testemunhas, at chegar ao

    criminoso ou ao inquirido.

    No afirmamos com isso nem BARROS o faz - que o posicionamento

    expresso pelos acusados e pelos advogados pode ser aceito acriticamente, j que a

    tortura fsica e psicolgica foi e tem sido utilizada como instrumento de coero. Alm

    disso, BARROS fala especificamente sobre o trabalho da Histria Social, enquanto

    nesta pesquisa, mesmo que no ignoremos as origens das vitimas - suas trajetrias de

    vida, organizao, ideologia ou resistncias concentramo-nos em compreender o

    Judicirio do Rio de Janeiro enquanto instituio atrelada ao sistema poltico de sua

    poca. Ainda assim, as caractersticas deste tipo de documentao ora utilizada, que

    expressa a voz dos acusados - mesmo que no raro sob coero e tortura - e o

    posicionamento dos indivduos que estavam em posio de poder nos permitem

    perseguir o problema proposto, que compreender se a Justia do Rio de Janeiro foi de

    fato garantidora da legalidade ou exerceu um papel autoritrio concomitante com o

    regime.

    Portanto, em resumo, a pesquisa ser qualitativa. Alm da anlise de sentenas

    e processos judiciais da JMRJ, reviso bibliogrfica de livros, artigos e trabalhos

    acadmicos sobre o tema, levantamento de material nos Arquivos Pblicos sobre os

    acusados e entrevistas semidiretivas com atores destacados foram realizados seminrios

    temticos e exibio e debate de filmes/documentrios sobre o perodo que permitiram

    uma ampla anlise daquele momento da atuao da Justia Militar.

  • 25

    Caso das bombas da OAB/RJ e do Riocentro20

    Objetivo Geral:

    Analisar o comportamento da Justia no caso dos atentados bomba da OAB e

    do Riocentro.

    Objetivos Especficos:

    1. Analisar a narrativa contida nos autos dos processos como base para a

    construo de uma verdade judicial acerca dos episdios;

    2. Identificao dos principais atores envolvidos, desde os rus, as possveis

    vtimas e seus parentes, advogados, delegados, juzes e promotores que atuaram nos

    casos;

    3. Identificao das contradies narrativas e erros evidentes contidos nos

    respectivos processos judiciais, de modo a resultar na no apurao e, portanto, na

    impunidade dos crimes cometidos;

    4. Indicar caminhos para desdobramentos possveis a partir da anlise

    realizada.

    Hipteses:

    1. A representao de uma legalidade e de um normal funcionamento das

    instituies judiciais caracterstica do regime militar brasileiro do perodo 1964-1985;

    2. Os processos judiciais em anlise no buscaram apontar os verdadeiros

    responsveis pelos atentados, mas to somente representar um tratamento judicial dos

    episdios que lhes deram causa;

    3. Houve uma efetiva colaborao do Judicirio com a Ditadura Militar, tendo

    o empresariado atuado tambm de forma colaborativa para a formao de um consenso

    entorno aos episdios objeto dos processos em anlise.

    20

    Coordenado por Juliana Neuenschwander Magalhes e Alexandre Bernardino Costa

  • 26

    Metodologia:

    A pesquisa orientou-se primariamente pela anlise dos autos dos processos

    judiciais (Processos: 01/81-8 JM/1C/2AEX, 95.0029861-9 JF/1I/4VC,

    08100.001644/96-88 PGR/GAB, 114.384/94 OAB/CDHAJ). Subsidiariamente

    recorreu-se a outras fontes, tais como:

    1. Pesquisa arquivstica junto ao Arquivo Nacional e ao APERJ, com coleta de

    dados sobre os processos e os principais envolvidos nos casos;

    2. Consulta a jornais, revistas e publicaes que trataram dos atentados;

    3. Entrevistas com pessoas envolvidas direta ou indiretamente e atores

    relevantes ao perodo em estudo;

    A pesquisa em arquivos e hemerotecas foi realizada principalmente no Arquivo

    Nacional, no Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro e na Biblioteca Nacional.

    Subsidiariamente, foram realizadas pesquisas em arquivos pessoais.

    O material coletado encontra-se em diferentes suportes, podendo estar em meio

    fsico ou digital. O material em meio fsico est acondicionado em sala nas

    dependncias da ps-graduao da Faculdade Nacional de Direito. O material em meio

    digital est sendo guardado em computadores e discos rgidos externos.

    No Arquivo Nacional, a pesquisa foi conduzida por dois pesquisadores

    bolsistas, um pesquisador voluntrio e uma bolsista de graduao. Entre os acervos

    pesquisados, destaca-se o conjunto documental do SNI Servio Nacional de

    Informaes. O acesso ao acervo do SNI realizado via banco de dados e em espao

    dedicado para comisses da verdade e grupos de pesquisa associados.

    As pesquisas foram feitas a partir de nomes de agentes da represso, civis ou

    militares, de rus e vtimas relacionadas aos casos pesquisados. A pesquisa por tema

    (bomba, justia etc.) foi considerada demasiado genrica e inadequada em virtude

    do grande nmero de resultados gerados apenas o acervo do SNI possui mais de trs

    milhes de pginas de documentos textuais.

    No Arquivo Pblico do Rio de Janeiro, a pesquisa centrou-se no acervo de

    polcia poltica, especialmente no que se refere a processos administrativos e inquritos

    policiais.

    Na Biblioteca Nacional, foram objeto de interesse os jornais do perodo de

    1964-1986 e, em especial, os jornais da primeira metade da dcada de 1980.

  • 27

    Os documentos coletados em arquivos pblicos foram classificados conforme

    notao original atribuda pela entidade de guarda. Os arquivos obtidos a partir de

    outras fontes foram classificados a partir de notao especialmente criada para tanto,

    que leva em considerao o rgo produtor da documentao.

    Atividades Realizadas

    a) Reviso bibliogrfica pertinente ao perodo em anlise, em especial com

    respeito ao Poder Judicirio e os julgamentos dos crimes cometidos;

    b) Leitura e anlise do material jornalstico produzido sobre a temtica no

    perodo dos eventos objeto da pesquisa;

    c) Leitura dos processos de apurao dos casos das Bombas da OAB e do

    Riocentro, bem como de bombas deflagradas durante o perodo de abertura

    democrtica, aps a Lei de Anistia;

    d) Seleo de nomes importantes no processo da Bomba da OAB;

    e) Buscas no Arquivo Nacional dos nomes dos principais envolvidos no

    Processo da OAB e do Riocentro (Anexo V - Termos pesquisados nas bases de dados

    do Arquivo Nacional (D- SPACE/SNI e Sala Virtual de Leitura; Anexo VI - Bomba na

    OAB: pesquisa nos acervos do SNI a partir de nomes prprios extrados do IPM e

    Anexo VII - Documentos sobre Ronald James Watters (Caso da bomba da OAB)

    localizados no acervo do Servio Nacional de Informaes SNI, atualmente sob

    guarda do Arquivo Nacional);

    f) Realizao de entrevistas com pessoas relevantes para a pesquisa. Foram

    entrevistas seis pessoas at julho de 2015 (Anexo III Transcrio das Entrevistas)

    g) Desenvolvimento de uma base de dados na qual as principais peas

    processuais relacionadas ao caso da OAB foram registradas. So 174 peas selecionadas

    dentre os processos nas diferentes esferas do Poder Judicirio (Federal e Militar). A

    constituio desta base de dados facilita a identificao dos documentos a partir dos

    seguintes dados: data, justia, rgo, diviso, processo, tipo de documento, folhas, local,

    ru, autor, cargo do autor, destinatrio, cargo do destinatrio, anotaes acerca do

    contedo (Anexo VIII Base de Dados);

  • 28

    h) Desenvolvimento da cronologia das peas constitutivas dos processos

    (Anexo IX -Calendrio do Processo das Bombas OAB/SUNAB/Cmara/Tribuna

    Operria);

    Estruturao das Entrevistas

    As entrevistas foram uma realizao da Pesquisa Justia Autoritria? em

    parceria com o Arquivo Nacional.

    Gravadas pela equipe do Arquivo Nacional, as entrevistas foram realizadas por

    entrevistadores pertencentes ao grupo de pesquisa Justia Autoritria? e ao Arquivo

    Nacional.

    Cada entrevistado respondeu a cinco perguntas gerais e demais especficas

    relacionadas temtica de cada grupo.

    Entrevistas Possveis para a segunda etapa da pesquisa:

    a) Dr. Antnio Cavalcanti Siqueira Filho, Juiz-Auditor substituto, cujo voto

    para remeter o processo Justia Comum, foi vencido (fls. 1137 ou 14 da Sentena).

    Houve conflito entre o Juiz-Auditor Helmo Sussekind e o Juiz-Auditor substituto

    Antnio Cavalcanti Siqueira Filho, pois o primeiro reclama que o segundo no manteve

    nenhuma das decises tomadas pelo primeiro Juiz e Conselho Permanente de Justia

    que atuava juntamente com ele (fls. 1113-1114 JM/1a. CJM/2a AE, vol. V). O Juiz-

    Auditor Antnio Cavalcanti Siqueira Filho responde que no h hierarquia entre juzes e

    que, portanto, ele (Antnio) no deve obedincia a Helmo Sussekind (fls. 1124-

    1137JM/1a. CJM/2a AE, vol. V). De igual modo, o Dr. Antnio Cavalcanti Siqueira

    Filho enfrentou seriamente o Procurador Militar Jos Manes Leito declarando que o

    Promotor estava tumultuando o bom andamento dos trabalhos. Diante disto, Jos Manes

    Leito se declara impedido de continuar funcionando no presente feito. O Juiz

    Auditor respondeu que comunicar ao Procurador Geral da Justia Militar para que as

    devidas providncias sejam tomadas. Aps dilogo entre os dois, houve reconsiderao

    das posies, e os trabalhos prosseguiram (fls. 1002-1004 JM/1a. CJM/2

    a AE, vol. V).

    b) Dr. Pedro Berwanger (delegado responsvel pela parte operacional da

    investigao conforme Doc. Cmara dos Deputados/DETAQ 1494/99)

  • 29

    c) Dr. Jos Armando da Costa (delegado, presidente do inqurito, responsvel

    pela parte processual)

    d) Luiz Antnio da Silva Dutra (agente da Polcia Federal, parte da equipe

    responsvel pela investigao da bomba da OAB)

    e) Darcy de Carlo, ex-agente da Polcia Federal que deixou a PF por causa da

    abrupta mudana de rumo das investigaes.

    f) Coronel Jos Ribamar Zamith, seo de Inteligncia do 1 Exrcito do Rio

    de Janeiro.

    g) Gen. Octvio Costa, ex-diretor de Especializao e Extenso do Exrcito.

    h) Jos Argolo, Ktia Ribeiro e Luiz Alberto Fortunato (autores de A Direita

    Explosiva no Brasil)

    i) Chico Otvio, jornalista que conhece o processo melhor do que ningum,

    segundo Luiz Felippe Monteiro Dias (Anexo III Transcrio das Entrevistas)

    j) Oswaldo Ferreira de Mendona Junior, advogado do vereador Antonio

    Carlos Nunes de Carvalho

    O texto do presente relatrio est dividido da seguinte forma: apresentao das

    atividades realizadas pelo grupo, o enquadramento terico da pesquisa, a

    contextualizao histrica dos fatos especficos de cada caso estudado, os resultados

    obtidos por cada um dos subgrupos, as concluses nas quais foram analisados os

    resultados obtidos luz dos objetivos do projeto.

    I - ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

    I.1. Atividades realizadas pelo Grupo de Pesquisa Justia Autoritria?

    1. Realizao de reunies semanais s 5as. Feiras de maro de 2014 a julho de 2015 na

    Faculdade Nacional de Direito

    2. Participao em reunies com a Comisso da Verdade do Rio de Janeiro;

    30/04/2015 - Faculdade Nacional de Direito

    09/12/2014 - Faculdade Nacional de Direito

    09/09/2014 - Auditrio da CAARJ

  • 30

    21/08/2014 - Sede da CEV-RIO

    10/06/2014 - Auditrio da CAARJ

    22/05/2014 - Faculdade Nacional de Direito

    3. Participao em audincias pblicas da Comisso Estadual da Verdade (CEV-Rio):

    Encontro sobre recomendaes de polticas de memria para o Estado do Rio de

    Janeiro 10/07/2015, na CAARJ

    Testemunho da Verdade - Conflitos no Campo no Rio de Janeiro 19/05/2015,

    no Plenrio da OAB/RJ

    Audincia Pblica dos Mdicos Legistas Graccho Guimares Silveira e Roberto

    Blanco dos Santos 07/05/2015, na sede da CEV-Rio

    Frum de Participao da CEV/Rio - Desmilitarizao da Justia - 29/04/2015

    na FND

    Ato Nacional das Comisses Estaduais da Verdade 17/04/2015, no auditrio

    da CAARJ

    Roda de Conversa sobre o Relatrio Final da CNV e as suas Recomendaes -

    17/12/2014, ISER

    Audincia Pblica sobre o Hospital Central do Exrcito (HCE CEV RIO

    09/12/2014)

    Audincia Pblica sobre o Caso dos Nove Chineses - 26/09/2014, Auditrio da

    CAARJ

    Frum de Participao sobre as recomendaes da CEV-RIO ao Estado

    brasileiro, 05/09/2014, s 15h, Auditrio da CAARJ

    Frum de Participao sobre o Balano da CEV-Rio e discusso sobre o trabalho

    das outras Comisses da Verdade (municipais e setoriais)

    27/06/2014, Auditrio da CAARJ

    4. Participao nas audincias pblicas da Comisso Nacional da Verdade

    Relatrio da CNV sobre o Caso Riocentro- 29/04/2015, Arquivo Nacional.

    Audincia Pblica sobre a Casa da Morte - 25/03/2014, Arquivo Nacional

    Audincia Pblica sobre Stuart Angel - 09/06/2014, Arquivo Nacional

  • 31

    5. Realizao de quatro seminrios internos com a equipe de pesquisa;

    6. Exibio de Filmes e Debate: Cineclube Justia Autoritria?

    Abril 24/04/2014 Os Advogados contra a Ditadura: por uma questo de Justia

    (FND) Debatedores: Eny Moreira (advogada) e Modesto da Silveira

    (advogado)

    Set. 29/09/2014 - Que bom te ver viva (IFCS) Debatedores: Lcia Murat

    (cineasta) e Jessie Jane (UFRJ)

    Out. 28/10/2014 - Jango (FND) Debatedores: Adrianna Setemy (UFRJ) e

    Demian Melo (UFF)

    Nov. 28/11/2014 - Lamarca (IFCS) Debatedores: Cristiana Buarque de

    Hollanda (UFRJ) e Thiago Pacheco (UFRJ)

    7. Realizao de entrevistas com personagens importantes do cenrio politico-jurdico

    no perodo da ditadura militar

    Rosa Cardoso (06/07/2015)

    Arthur Lavigne (27/05/2015)

    Luiz Felippe Monteiro Dias (08/06/2015)

    Antonio Modesto da Silveira (14/04/2015)

    Eduardo Seabra Fagundes (27/05/2015)

    Mauro Osrio (31/03/2015)

    8. Apresentao de Trabalhos em Congressos pelos pesquisadores do grupo:

    JIC-JUR/UFRJ - Justia Autoritria? O Judicirio do Rio de Janeiro e a Ditadura

    Militar (1964-1988) (Autores: Ayra Guedes Garrido - Beatriz Rodrigues N. Da

    Costa - Bianca Casais M. Guimares - Rafaela Domingues Pereira, orientao

    Luciana Boiteux e Vanessa Batista) trabalho inscrito e aceito, aguarda

    apresentao

    IX Encontro Regional Sudeste de Histria Oral - Entre heris e bandidos: Ins

    Etienne, um personagem em construo (Autor: Ayra Guedes Garrido) UFF (9

    de julho de 2015)

  • 32

    IDEJUST Lei de anistia e responsabilizao criminal dos agentes da ditadura

    civil-militar brasileira (1964-1985): retrocessos e avanos judiciais na

    democracia (Autor: Roberta Maia Gomes) apresentado em So Paulo (27 de

    maro de 2015)

    JICTAC UFRJ Justia Autoritria: A atuao da Justia Militar na Ditadura e

    suas permanncias (Autores: Ayra Guedes Garrido - Beatriz Rodrigues N. Da

    Costa - Bianca Casais M. Guimares - Rafaela Domingues Pereira, orientao

    Luciana Boiteux e Vanessa Batista) trabalho inscrito e aceito, aguarda

    apresentao

    9. Elaborao de Dissertaes de Mestrado

    . Lusmarina Campos Garcia. O direito como lugar de memria social: Uma

    aproximao construo narrativa do caso das bombas da OAB e do Riocentro.

    Orientao: Juliana Neuenschwander, orientadora e Vanessa Batista Berner, co-

    orientadora.

    . Vicente Arruda Cmara Rodrigues. Acesso Informao e Arquivos da Ditadura

    Militar em tempos de Justia de Transio Brasileira. Orientao: Carlos Alberto

    Bolonha.

    . Thiago Pacheco Uma Comparao das Atividades de Inteligncia da Polcia

    Poltica no Estado Novo e na Repblica de 1946. PPGHC. Orientador: Cristina

    Buarque de Hollanda.

    . Ricardo Azevedo O Procedimento Administrativo como Legitimao do

    Autoritarismo: O Caso Itamaraty. Orientao Carol Proner.

    10. Organizao de eventos

    Justia Autoritria? O Judicirio do Rio de Janeiro e a Ditadura Civil-Militar

    (1964-1988) na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Apresentao da

    Pesquisa 22/05/2014

    11. Seminrios do Grupo com convidados

    - 9 de julho de 2015 caso PANAIR Rodolfo da Rocha Miranda (Presidente da Panair

    do Brasil) e Daniel Sasaki (jornalista e autor do livro Pouso Forado)

  • 33

    - 18 de junho de 2015 Jos Carlos Moreira da Silva Filho (Conselheiro da Comisso

    Nacional da Verdade e professor da PUC-RS) e Vanessa Schinke (Doutoranda em

    Cincias Criminais da PUC-RS)

    12. Visita ao Superior Tribunal Militar reunio da Prof. Luciana Boiteux com a

    Presidente do STM, Ministra Maria Elizabeth Rocha, Nadine Borges, da CEV-Rio e

    Daniella Barcellos do IBMEC - 08.09. 2014 Braslia DF e visita Comisso

    Nacional da Verdade.21

    21

    http://www.stm.jus.br/informacao/agencia-de-noticias/item/1906-comissao-da-verdade-do-rio-de-

    janeiro-pede-acesso-ao-acervo-historico-durante-visita

  • 34

    II - ENQUADRAMENTO TERICO DO TEMA DA PESQUISA

    Com a finalidade de estabelecer uma anlise suficientemente fundamentada

    sobre a participao do Poder Judicirio na ditadura civil-militar que deteve o poder no

    Brasil a partir de 1964, queremos pautar alguns tpicos que nos permitam fazer o

    necessrio enquadramento contextual e a base terica que vai nos nortear. Com isto

    queremos dar conta do marco scio-histrico no qual a ditadura se situa; queremos

    tambm elencar os principais conceitos que utilizaremos como referencial terico da

    construo e anlise investigativa. Mas, antes de tudo, parece-nos indispensvel

    explicitar os pressupostos epistemolgicos que nos orientam nesta pesquisa.

    1. Alguns Pressupostos Epistmicos da Pesquisa Acerca da Construo da

    Verdade e da Memria a Partir dos Direitos Humanos

    Em nosso esforo para compreender a realidade, a fim de nela intervir,

    devemos pretender ter o mximo rigor metodolgico e a permanente honestidade em

    relao ao real, mas isto no disfaramos sob a capa de uma suposta (e impossvel)

    neutralidade. No somos neutros, ningum , ainda que alguns se escudem na referida

    pretenso para se furtar ao debate e crtica de seus pressupostos e posicionamentos.

    Como no h neutralidade, a melhor maneira de se buscar alguma objetividade por

    meio da submisso ao exame intersubjetivo de nossas apostas. A partir desta

    perspectiva, nossa aposta epistmica naqueles que se submeteram violao de seus

    direitos, sendo vitimados pelo poder de fato.

    1.1. Nosso ponto de partida: a opo tico-poltica pelos vitimados

    Dizia Theodor Adorno, um dos principais representantes da teoria crtica da

    Escola de Frankfurt, que a necessidade de dar voz ao sofrimento condio de toda a

    verdade (ADORNO 2005:28).22

    Com isto, se posicionava e alertava contra toda

    22

    No original: la necesidad de prestar voz al sufrimiento es condicin de toda verdad.

  • 35

    pretensa neutralidade cmplice por parte do labor cientfico. Esta mesma opo tica

    deve seguir alentando o trabalho do pensamento crtico contemporneo.

    Diante da suposta neutralidade axiolgica da cincia, defendida pela teoria

    tradicional, necessrio reconhecer que toda cincia movida por um interesse, e que

    neg-lo pode no ser mais que uma forma de mascaramento ideolgico.23

    Tendo ou no conscincia disso, todo pensamento se posiciona de uma

    determinada maneira no mbito do conflito de interesses que atravessa nosso mundo;

    por isto, faz-se necessria uma perspectiva crtica que se encarregue da forma pela qual

    se endossa ou se confronta as diferentes opes a partir das quais se compreende e se

    intervm na realidade.24

    Como bem afirma Boaventura de Sousa Santos, a teoria crtica

    sempre teve como pressuposto a pergunta: de que lado estamos? E a respectiva

    resposta. (SANTOS 2003:286).25

    Assim, para uma teoria crtica no indiferente o

    lugar e a perspectiva a partir da qual se pensa e se tenta intervir na realidade.

    Todo trabalho de investigao, ainda que de forma implcita, supe uma srie

    de decises prvias que correspondem a uma determinada forma de pensamento e lhe

    servem de base, condicionando suas apostas epistemolgicas e metodolgicas.26

    Por

    isto, perigosa a postura ingnua que desconhece o significado que tem o

    conhecimento; os postulados tericos surgem em um determinado contexto histrico e

    respondem a ele, cumprindo a funo de dificultar ou impulsionar determinados

    projetos sociais.27

    Nas palavras de Hugo Zemelman:

    O movimento da realidade scio-histrica e sua estreita vinculao com a

    prtica social obriga a um constante esforo para decifrar os limites (que podem

    ser tericos, ideolgicos ou axiolgicos) que compreendem um espao que

    reveste de um significado particular o fenmeno que se quer estudar.

    Esses limites expressam a opo social a partir da qual se constri o

    conhecimento; implicam, portanto, em uma forma de entender a realidade, mas,

    especialmente, em como e para qu construi-la em uma determinada direo. O

    que dizemos se reveste de um significado relevante quando observamos que os

    parmetros que em geral se impem sem, muitas vezes, intermediar qualquer

    conscincia do investigador, so os que conformam o poder, em cujos

    23

    Cfr. CORTINA (2008). La Escuela de Frncfort. Crtica y Utopa. Madrid: Sntesis, pp. 48-49. 24

    Cfr. ROMERO CUEVAS, J. (2008). Ellacura: una teora crtica desde Amrica Latina. En: Revista

    Internacional de Filosofa Poltica N 32, Madrid: UAM-UNED, p.7. 25

    No original: la teora crtica siempre ha tenido como presupuesto suyo la pregunta: de qu lado

    estamos? y la respectiva respuesta. 26

    Cfr. MEDICCI, A. (2010). El arraigo de Anteo: las lecciones polticas de Joaqun Herrera Flores. En

    REDHES N 4. San Luis Potos: Universidad Autnoma San Luis Potos, julio-diciembre, p. 17. 27

    Cfr. ZEMELMAN, H. Debate sobre la situacin actual de las ciencias sociales, p. 5. En lnea:

    http://www.archivochile.com/Ideas_Autores/zemelmanh/zemelman0007.pdf. Consulta realizada el 19 de

    septiembre de 2012. Ver tambin SENENT DE FRUTOS, J. (2002) Notas sobre una Teora Crtica de los

    Derechos Humanos En Anuario Iberoamericano de derechos humanos 2001-2002. Ro de Janeiro, p.

    411.

  • 36

    parmetros se pretende conferir aos fenmenos o estatuto de reais; com o

    adicional de estabelecer sua identidade como nica e excludente de outras

    possveis vises dos mesmos. (ZEMELMAN, pg. 3)28

    Em nossa pesquisa, no quadro do pensamento crtico, assumimos, pois,

    conscientemente, uma srie de opes, de posicionamentos ticos e polticos diante da

    realidade; e queremos faz-los explcitos, com o fim de abri-los ao discernimento, ao

    juzo e crtica como forma de validao intersubjetiva.

    preciso que se entenda que nossa escolha no apenas uma opo tica e

    poltica, tambm um posicionamento hermenutico. Assume-se que a perspectiva das

    pessoas que foram vitimadas, daqueles a quem lhes foi negada as condies necessrias

    para viver com dignidade, o lugar hermenutico por excelncia para compreender os

    processos sociais em curso.29

    Entendendo que a neutralizao epistemolgica do passado sempre foi a

    contrapartida da neutralizao social e poltica das classes perigosas (SANTOS

    1991:235)30

    , decidimos optar por uma aproximao do processo scio-histrico que

    permita visibilizar e reconhecer a perspectiva daqueles que, na referida dinmica, foram

    marginalizados, excludos e invisibilizados a partir das narrativas oficiais e dos saberes

    hegemnicos. Como bem coloca Enrique Dussel:

    O mtodo crtico consiste em se colocar no espao poltico dos pobres, das

    vtimas, e desde aquele local fazer a crtica das patologias do Estado. A partir

    desse lugar epistemolgico o das vtimas, as do sul do planeta, dos

    oprimidos, dos excludos, dos novos movimentos populares, dos povos

    ancestrais colonizados pela Modernidade, pelo capitalismo que se globaliza,

    tudo o que se expressa nas redes mundiais altermundistas ser a partir de

    onde teremos que ir fazendo a crtica de todo o sistema das categorias da

    filosofia poltica burguesa. (DUSSEL, 2007:552)31

    28

    No original: El movimiento de la realidad socio-histrica y su estrecha vinculacin con la prctica social

    obliga a un constante esfuerzo por descifrar los lmites (que pueden ser tericos, ideolgicos o axiolgicos)

    en cuyo espacio reviste un significado particular el fenmeno que se quiere estudiar.

    Estos lmites expresan la opcin social desde la cual se construye el conocimiento; implican, por lo tanto,

    una forma de entender a la realidad, pero especialmente de cmo y para qu construirla en una direccin

    determinada. Lo que decimos reviste un significado relevante cuando observamos que los parmetros que en

    general se imponen, sin mediar muchas veces conciencia alguna del investigador, son los que conforman el

    poder, en cuyos parmetros se pretende conferir a los fenmenos el estatus de reales; con el agregado de

    establecer su identidad como nica y excluyente de otras posibles visiones de los mismos. 29

    Cfr. ETXEBERRIA, J. en el Prlogo a MARTNEZ DE BRINGAS, A. (2004) Exclusin y

    victimizacin. El grito de los derechos humanos en la globalizacin. Bilbao: Alberdania, S.L., 2004, p.

    13. 30

    No original: la neutralizacin epistemolgica del pasado siempre ha sido la contraparte de la

    neutralizacin social y poltica de las clases peligrosas. 31

    No original: El mtodo crtico consiste en colocarse en el espacio poltico de los pobres, las vctimas, y desde all llevar a cabo la crtica de las patologas del Estado. Desde ese lugar epistemolgicos -el de

    las vctimas, las del sur del planeta, los oprimidos, los excluidos, los nuevos movimientos populares, los

    pueblos ancestrales colonizados por la Modernidad, por el capitalismo que se globaliza, todo lo cual

  • 37

    Mas, insistimos, assumir este posicionamento no traz consigo apenas a

    pretenso de oferecer uma oportunidade de visibilizao das narrativas que foram

    marginalizadas do debate pblico, o que seria um ato de justia e uma ampliao das

    perspectivas de debate que asseguraria um maior rigor metodolgico; mais que isto, esta

    perspectiva das vtimas do sistema social e das violaes de direitos humanos por parte

    do Estado permite uma melhor compreenso do sistema e dos desafios que o mesmo

    Estado apresenta, do que a perspectiva daqueles que dele se beneficiam.

    No entanto, no se coloca uma postura revanchista, orientada para gerar novas

    excluses, de um novo tipo. Em nossa aposta subjaz a inteno ltima de iniciar

    processos de leitura e transformao da realidade que, ao se identificar a injustia,

    permitam que todos e todas possam desfrutar de condies de vida digna; e esta uma

    tarefa impossvel se se olha para a realidade a partir daqueles grupos ou setores sociais

    que foram favorecidos pela injustia estrutural vivida durante a ditadura. No final das

    contas, trata-se de optar pelas pessoas vitimadas, de pensar a partir delas, e contra as

    dinmicas de vitimizao32

    . A luta por uma sociedade sem vtimas, que tenha

    conseguido erradicar toda forma de vitimizao, figura como um horizonte utpico.33

    1.2. Verdade e Memria Histrica

    Se, conforme Foucault, toda relao de poder correlativa constituio de um

    campo de saber e todo saber supe relaes de poder34

    , necessitamos estar alertas diante

    das razes com as quais se arma o poder, denunciar as estratgias de que se vale [o

    poder] para se dotar de razes que lhe so funcionais, e a partir das quais configura um

    saber autorizado, que lhe permite invisibilizar e excluir outros saberes no oficiais

    que lutam pela conservao da ordem social injusta.35

    queda expresado en redes mundiales altermundistas- ser desde donde tendremos que ir efectuando la

    crtica de todo el sistema de las categoras de la filosofa poltica burguesa. 32

    Cfr. DUSSEL, E. (2006) tica de la Liberacin en la Edad de la Globalizacin y de la Exclusin.

    Madrid: Trotta, p. 417. 33

    Cfr. SNCHEZ RUBIO, D. (1999) Filosofa, derecho y liberacin en Amrica Latina. Bilbao:

    Descle de Brouwer, p. 204. 34

    Cfr. FOUCAULT, M. (2002) Vigilar y Castigar. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, S.A.,. 35

    Cfr. SOLRZANO, N. (2007) Crtica de la Imaginacin Jurdica. Una mirada desde la

    epistemologa y la historia al derecho moderno y su ciencia. San Luis de Potos: Universidad

    Autnoma de San Luis de Potos, Nota 162, p. 123.

  • 38

    Toda tecnologia de exerccio do poder cria certos saberes, ao mesmo tempo em

    que o saber traz consigo efeitos de poder. Sendo assim, o que concebemos como

    verdade, consequentemente se torna inseparvel do processo pelo qual se estabelece,

    assim como da configurao de poder em que gerado.36

    O que chamamos verdade, e, mais concretamente, a verdade dos

    acontecimentos histricos, das narraes sobre as construes sociais, um campo de

    luta entre projetos de sociedade opostos. A verdade, longe de estar margem do

    contraditrio lavor humano, um campo semeado de conflitos de poder. Esta

    constatao, alm de chamar a ateno sobre a muito frequente manipulao do passado

    com a pretenso de legitimar alguns abusos do presente, pretende assinalar que certas

    formas de conceber o que se entende por verdade atuam, efetivamente, como

    condio de possibilidade para a constituio de modos especficos de organizar a

    sociedade. Como afirma Helio Gallardo a propsito do tema da verdade, este

    um tema ideolgico, ou seja, socialmente funcional ou no para o poder e

    sua reproduo nas sociedades modernas, e no tem muito sentido epistmico

    moral ou metafsico discutir quem a tem ou em que ela reside. Seu sentido

    poltico.(GALLARDO 2008:233)37

    Como j dito, nossa posio reconhece uma opo tica e poltica a favor

    daqueles que foram perseguidos polticos, marginalizados, submetidos a relaes de

    opresso que lhes negaram a possibilidade de formular e construir seus projetos de vida.

    Por isto, consideramos que no h verdade quando se silencia as vtimas.

    A partir desta busca pelo fortalecimento das vozes silenciadas, perifricas e

    subalternas, reivindica-se a necessidade de levar em considerao os conhecimentos, a

    verdade daqueles grupos que, ao longo da histria (histria que hoje continua sendo

    construda), foram subalternizados e continuam sendo invisibilizados.

    Nesse sentido, assim como afirma Ins Virgnia Prado Soares, a verdade deve

    ser usada como valor de referncia que tem por finalidade recuperar esse passado graves

    violaes de direitos humanos para enriquecer e transformar o presente (QUINALHA;

    PRADO SOARES 2001:266). Queremos que no seja esquecido, para que nunca mais

    ocorram fatos como os que o povo brasileiro teve que viver durante o perodo ditatorial.

    36

    Cfr. GARCA, M. (1993). La eficacia simblica del derecho. Examen de situaciones colombianas.

    Bogot: Ediciones Uniandes, p. 76. 37

    No original: es un tema ideolgico, o sea socialmente funcional o no para el poder y su reproduccin

    en las sociedades modernas, y no tiene mucho sentido epistmico moral o metafsico discutir quin la

    tiene o en qu reside. Su sentido es poltico.

  • 39

    Procuramos verdade e memria para sustentar nossa demanda de aes concretas que

    assegurem a no repetio de violncias.

    No Brasil, a dimenso entre lembrar e esquecer traz em si uma

    considervel problematizao. Em 2007, houve grande polmica acerca da publicao

    do livro Direito Memria e Verdade, pela Comisso Especial sobre Mortos e

    Desaparecidos Polticos. No faltaram articulistas de revistas e jornais de circulao

    nacional para retomar o discurso do esquecimento como forma de superao dos

    traumas vividos no perodo ditatorial. Para o direito, crucial estabelecer a

    possibilidade de diferenciar o que necessrio lembrar e o que se pode esquecer. O

    direito memria e verdade a possibilidade de exigir que a histria institucional

    seja pensada tambm a partir de informaes ocultadas ou propositadamente

    esquecidas (BARBOSA 2010:31).

    Por isto, a pergunta central que orienta nossa leitura dos processos ditatoriais e

    suas consequncias na conformao de nossas sociedades tem a ver com o legado

    autoritrio que tais processos nos deixaram. Quanto a este aspecto, de particular

    interesse uma compreenso do papel da memria, voltada para reivindicar sua funo de

    luta contra os efeitos do passado de graves violaes de direitos humanos e sua herana

    autoritria na histria brasileira contempornea.

    Reconhecer os legados autoritrios originados no perodo da ditadura exi