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FILOSOFIA DA CRIAÇÃO. PAUL KLEE Tradução comentada. M. Duprat

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Texto de Paul Klee com tradução comentada por M.Duprat

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Page 1: Filosofia da Criação

FILOSOFIA DA CRIAÇÃO. PAUL KLEE

Tradução comentada. M. Duprat

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INTRODUÇÃO

Os textos desenvolvidos pelo pintor Paul Klee no período em que lecionou na Escola Bauhaus permanecem como refe-rências fundamentais para o pensamento sobre a pintura. Suas reflexões, notas e esquemas destinados ao ensino, reunidos no pequeno volume intitulado Theorie de l’art Moderne (Genéve: Gonthier, 1971), nos oferecem uma perspectiva crítica sobre di-versos pré-conceitos, distorções e convenções relacionados ao processo de criação que se perpetuaram durante o modernismo e permanecem até os nossos dias mal compreendidos.

O capítulo “Filosofia da criação”, em especial, assume uma posição contrária às concepções usuais que compreendem o “fazer” artístico como uma “técnica”. O texto adquire relevo, pois reflete de maneira concisa a posição diferenciada de Klee frente ao processo de criação. Sua perspectiva se choca com a crença na atividade artística como um domínio técnico que “ex-pressa” uma “idéia criativa”. Tal crença, que vigora ainda hoje como um pressuposto, é tida como uma verdade tão corriqueira que qualquer reflexão a seu respeito é considerada desnecessária. A naturalidade com que se pensa a criação como elaboração de uma idéia original formada na mente do pintor, idéia preexisten-te, pronta e acabada, desvinculada do corpo da linguagem que apenas a expressaria e desvinculada do fazer, relegado a mero

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“meio de expressão”, oculta, entretanto, uma ideologia estética comprometida com determinados conceitos, posições e pressu-posições que o pensamento de Klee nos convida a rever.

A metodologia adotada nesta “tradução comentada” foi, a princípio, expor o texto original na íntegra a fim de não inter-romper a seqüência de idéias do autor. Os comentários que se seguem à tradução tentam esclarecer os pontos mais obscuros do texto e limpar o terreno dos preconceitos e interpretações tra-dicionais, que abafam a palavra do pintor e a reduzem a uma mera opinião particular. Nos interessa particularmente verificar o sentido amplo das idéias propostas e, sobretudo, sua perspecti-va distinta. Portanto, mais do que estabelecer uma interpretação precisa, buscou-se dar vazão ao livre pensamento, sem limitar o que está sendo pensado a uma interpretação literal.

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PAUL KLEE - FILOSOFIA DA CRIAÇÃO1

I-A força criadora escapa a toda denominação; segue sendo,

em última instância, um mistério indizível. Mas não um misté-rio inacessível, incapaz de nos comover até as entranhas. Nós mesmos estamos impregnados desta força até o último átomo da medula. Não podemos dizer o que é, mas podemos nos aproxi-mar de sua fonte em uma medida variável.

Necessitamos de algum modo revelá-la, manifestá-la em suas funções tal como se patentiza em nós.

Provavelmente também ela é matéria, uma forma de ma-téria não perceptível pelos mesmos sentidos que percebem os outros tipos de matéria. Mas é necessário que se permita seu reconhecimento na matéria conhecida. Incorporada a ela, deve funcionar. Unida à matéria, deve tomar corpo, converter-se em forma, em realidade.

II-A gênese como movimento formal constitui o essencial da

obra. Ao princípio, o motivo, inserção de energia, esperma.Obras como produção da forma em sentido material: ori-

ginalmente feminino.Obras como determinação espermática da forma: original-

mente masculino (coloco meu desenho no campo masculino).Há, a este respeito, que circunscrever o domínio dos meios

plásticos em sentido ideal e dar prova da maior economia em seu emprego. Nesta a ordem do espírito se afirma melhor que na

1 Capitulo 4 de: KLEE, Paul. Theorie de l’art Moderne. Genéve: Gonthier, 1971. Tradução M. Duprat.

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abundância de meios. Evitar o emprego maciço de dados mate-riais (madeira, metal, vidro etc...) em benefício dos dados ideais (linha, tom e cor, que não são coisas tangíveis).

Desde logo, os meios ideais não estão desprovidos de ma-téria; senão, não poderíamos “escrever”. Quando escrevo com tinta a palavra vinho, esta não representa o papel principal, so-mente permite a fixação da idéia de vinho. A tinta contribui des-te modo para assegurar-nos permanentemente vinho. Escrever e desenhar são, no fundo, idênticos.

A produção (geração) da forma se vê energicamente ate-nuada em relação à determinação (concepção) da forma.

Última conseqüência destas duas espécies (causa eficiente e causa material) da formação é a forma. Dos caminhos à fina-lidade. Do que se faz ao perfeito. Da vida a instituição. A forma em sentido vivo (Gestalt) é uma forma com funções subjacentes; em alguma medida é uma função de funções.

Ao começo, a masculina propriedade da sacudida enérgi-ca. Em seguida, o crescimento carnal do óvulo. Ou melhor; o relâmpago fulgurante, e logo a vaporosa nuvem.

E onde está mais seguro o espírito? No começo.

III-Desde o ponto de vista cósmico, o movimento é, natural-

mente, um dado prévio e absoluto e não requer, em sua condição de força infinita, nenhuma particular sacudida enérgica. A inér-cia das coisas na esfera terrestre não é mais do que o bloqueio material do dado dinâmico fundamental. Tomar esta fixidez por norma é uma farsa.

A obra é em primeiro lugar, gênese, e sua história pode representar-se brevemente como uma fagulha que brota miste-riosamente não sabemos de onde, que inflama o espírito, aciona

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a mão e, ao transmitir-se como movimento a matéria, converte-se em obra.

Palavras como “excitado” e “provocado” dizem tudo a este respeito. A noção de provocação designa a pré-história do Ato Criador, as implicações “pré-históricas” do fiat cosmoge-rador, a vinculação do Começo com o temporal, com o “atrás”.

A possibilidade que tem o sentimento de superar um co-meço está contida, por sua vez, na noção de infinito, que prolon-ga àquele “adiante”. O conceito de infinito não só se relaciona com o Começo, mas ainda vincula este ao Fim e nos leva as noções de ciclo e circulação. A circularidade com o movimento como norma, que elimina o problema do começo.

E então alguém, também tomado pelo movimento normal, sente despertar em si uma disposição criadora. Se sente mobili-zado e mobiliza por sua vez.

As principais etapas do todo do trajeto criador são des-te modo: o movimento prévio em nos mesmos, o movimento atuante, operante, voltado para a obra, e por fim ao demais, aos espectadores, o movimento consignado na obra.

Pré-criação, criação e re-criação.

IV-Ao deixar desta maneira que se desenvolva pouco a pouco

uma obra muito simples, primitiva, nos foi dado poder verificar mais de perto duas coisas importantes: antes de tudo, o fenôme-no da formação; da formação em sua dupla relação com o de-sencadeamento inicial e com as condições de vida, da formação como desprendimento do misterioso impulso até à adequação à finalidade visada.

O fenômeno já era perceptível em seu mais rudimentar começo, quando a forma começava a se constituir minimamen-

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te (estrutura). A fundamental relação da formação com a forma conserva, uma vez considerado o plano estrutural (“celular”), toda sua significação nos posteriores estágios, precisamente por-que se há reconhecido nela um princípio.

Esta significação pode enunciar-se assim: A marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por

alguma necessidade interior ou exterior, prevalece sobre o fim terminal, sobre o final do trajeto. A orientação determina o cará-ter da obra consumada. A formação determina a forma e é, em conseqüência, predominante.

Nunca, em nenhuma parte, a forma é resultado adquirido, acabamento, remate, fim conclusão. Há que concebê-la como gênese, como movimento, seu ser é o devir, e a forma como apa-rência não é mais do que uma maligna aparição, um fantasma perigoso.

Boa é, portanto, a forma como movimento, como fazer; boa é a forma em ação. Má é a forma como inércia fechada, como detenção terminal. Má é a forma da qual alguém se sente satisfeito como de um dever cumprido. A forma é fim, morte. A formação é Vida.

Isto se revelou por ocasião do crescimento de uma obra muito primitiva. O posterior desenvolvimento do organismo nos permite fazer uma segunda comprovação: como o trajeto criador penetrava em um caminho mais amplo, nos demos conta do in-conveniente de um itinerário demasiadamente uniforme. Como se prevenir de um andar tedioso quando o caminho é o funda-mental da obra?

Faz-se necessário, logo, que o caminho ganhe em com-plexidade, se ramifique de maneira excitante, suba e desça, se extravie, se torne preciso ou embaraçado, se amplie ou reduza, se acelere ou se entorpeça. (...)

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Trata-se com isso de vigiar o porque as diversas seções do itinerário se acomodam entre si a fim de formarem uma coe-são; em outros termos, para que sempre se possa abarcar com o olhar toda a sua extensão como um organismo individual. Mas a coesão da obra, com a mediação da identidade do trabalho e do processo de sua elaboração (a obra em sua história), constitui-se durante o caminho, em virtude de proporções elementares que ligam as partes entre si e ao conjunto. Todo trabalho é a relação do particular com o geral.

V-Aqui, a obra que surge (bipartida). Lá, a obra que é. Pen-

sar, portanto, antes que na forma (“natureza morta”), na forma-ção. Manter-se com energia no caminho, relacionar-se sem des-continuidade com o primordial surgimento ideal.

O produtivo, o essencial, é o caminho. O devir se mantém sobre o ser.

A criação vive, em sua condição de gênese, sob o revesti-mento da obra. Isto é o que vêem todas as naturezas espirituais retrospectivamente. Prospectivamente, no futuro, só o vêem as naturezas criadoras.

Todas as coisas são, finalmente, perecíveis. E o que resta do passado, o que resta da vida, é o espírito. O Espiritual na arte: o que na arte é artístico. A exigência do absoluto é a mesma em todas as direções em que atuemos.

Capitulo 4 de KLEE, Paul. Theorie de l’art Moderne. Genéve: Gonthier, 1971. Tradução M. Duprat

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COMENTÁRIOS

Para abordarmos um texto tão abrangente como o de Paul Klee o método que oferece as menores possibilidades de equívoco e desvio é identificarmos, em um primeiro momento, as questões principais em torno das quais circulam as diversas idéias e conceitos.

O conceito principal, que se apresenta claramente como o eixo das idéias do texto, é sem dúvida o de processo de formação. A princípio ele parece compreensível em todos os seus aspectos; a forma da obra, seu dado objetivo e material, o quadro como objeto, é resultado de um processo de formação que o fundamenta e lhe imprime um “caráter”. Não fosse a proximidade e tensão em que são colocadas as palavras “forma” e “formação”, qualquer comentário se mostraria desnecessário. Pois, não são todos os objetos produzidos pelo homem resultado de um processo de formação? A valorização do processo de formação, entretanto, surpreende e se mostra problemática no mesmo instante em que parece mais clara. Ela indica uma

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despreocupação (até mesmo uma rejeição) do pintor com a forma “consumada”, um voltar-se para a ação do fazer e não para seu resultado. Mas como compreender a arte da pintura sem ter por objetivo uma forma? E não é curioso que um professor da Escola Bauhaus, onde se formulou grande parte das teorias formalistas, criticar veementemente a forma afirmando ser ela “fim” e “morte”?

A ênfase na formação, no construir, atesta que a pintura, para Klee, é não só a realização de uma imagem fixa mas, antes e sobretudo, a expressão do momento de sua formação, isto é, a ação criadora. Porém, se mesmo este momento só é apreensível através da forma, que a deixa entrever, porque então rejeitá-la como “morta”, justamente em se tratando de quadros, que se supõe serem objetos feitos para a apreciação formal? Não é o quadro um objeto cujo sentido só se manifesta através da forma consumada? O que distingue a forma “morta” da forma “em movimento”, como um “fazer”? Qual a diferença afinal do fazer que assume criativamente sua formação e do fazer que tem por objetivo a mera consumação de uma forma morta?

As várias questões levantadas circulam em torno de uma série de conceitos contrários e complementares; do fazer como um processo de formação ou como o cumprimento de um dever, da forma como “aparência” ou como “devir” e, ainda, da relação da forma com a Vida e a Morte. Buscando o nexo que liga estas noções tentaremos demonstrar como o pensamento de Klee indica: 1- uma ênfase no conteúdo da formação em detrimento do conteúdo da forma; 2- uma compreensão da criação como um acontecimento, ou seja, como uma “abertura” que transcende a concepção usual da linguagem como comunicação e 3- uma concepção da pintura como a instauração de uma phýsis (natureza).

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PARÁGRAFO I

Klee inicia o texto pensando o ser mesmo da criação. Para ele o acesso que temos a criação está em nós mesmos. Estamos carregados de uma “força” de criação e, por isso, sentimos necessidade de manifestá-la. Com estas indicações Klee estabelece uma estreita relação entre a criação artística e as forças que nos animam. A manifestação da criação através da manipulação da matéria morta só é possível fazendo-a funcionar, tal como nosso corpo funciona animado pela vida.

Por certo todos sabemos o que é a “vida”, pois ela é o que nos mesmos somos, entretanto quando nos deparamos com uma metáfora como esta, que relaciona a criação com as forças da vida, somos impelidos a refletir novamente sobre seu fundamento. O que é em essência a vida? Qual sua característica fundamental que nos faz compreender melhor a criação?

Vida e criação são conceitos extremamente amplos e, por isso mesmo, não se deixam aprisionar por alguma definição. Rotular é aqui incorrer em erro. Devemos ter o cuidado de não nos determos nos conceitos isolados, pois provavelmente ficaríamos perdidos na vastidão de cada um deles, e sim, seguindo as indicações de Klee, pensar em sua relação. O que liga um termo a outro, o que estabelece a relação indicada, é a funcionalidade, a função. Está dito no primeiro parágrafo: “necessitamos de algum modo revelá-la, manifestá-la em suas funções tal como se patenteia em nós”. Nos mesmos e a matéria que manipulamos funcionam, e este funcionar é o que manifesta tanto a vida como a criação. O que quer dizer isso? A relação da criação com a vida foi utilizada como uma mera metáfora poética?

Os dados que temos ainda são insuficientes para nos assegurar do sentido preciso das palavras de Klee, mas se nos

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afastarmos um pouco do capítulo em questão, encontramos no capítulo 6, do livro de Klee1, um esclarecimento sobre o sentido do conceito de função utilizado. Desta vez a relação entre criação e vida é ainda mais enfatizada e o sentido da palavra “funcionar” é caracterizado com clareza.

Buscamos, não a forma, mas a função. Também neste ponto devemos observar a maior precisão possível. O funcionamento de uma máquina é uma coisa; o funcionamento da vida, outra, e muito melhor. A vida cria e se reproduz. Quando alguma máquina teve filhos?2

A vida “cria e se reproduz”. Tende fundamentalmente a permanência e perpetuação. O que todo ser vivo quer, antes de tudo o mais, é permanecer vivendo. Todo corpo vivo quer permanecer funcionando e perpetuando sua espécie. A vida tem como característica fundamental o ímpeto da perpetuação, a permanência e reprodução de seu movimento. A vida se auto-alimenta e revigora, procriando e perpetuando uma força vital sem nenhum sentido ou finalidade para fora dela mesma. Não há, por princípio, nenhuma função ou finalidade fora ou além da vida que a justifique ou lhe imponha um sentido. E nosso livre arbítrio que escolhe, por vezes, um sentido para além da vida mesma. Sempre antecipadamente jogados na vida, perguntamos em inúmeras ocasiões pelo seu sentido, sua função, mas este sentido permanece sempre voltado para a vida mesma, mesmo e sobretudo, quando pensamos em nossa existência como um todo, cientes da morte e de nossas limitações.

1 Referência ao capítulo 6 intitulado “Exploração interna das coisas da natureza: realidade e aparência”, do livro: Theorie de l‘art moderne.

2 KLEE, Paul. Theorie de l‘art moderne. Gèneve: Editions Gonthier, 1971. Pag. 53

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Ao indicar que a força criativa deve participar da matéria fazendo-a funcionar, tal como a vida anima os diversos corpos existentes, Klee busca superar a diferença entre o ente natural, vivo, cuja causa do movimento provém de si mesmo e cuja finalidade da existência é simplesmente continuar vivendo, e o ente artificial obra, que tem por causa a atividade do “artífice”, e por finalidade a posterior (póstuma) leitura dos observadores em geral.

Nesta abordagem, pintar é visto como uma atividade que se auto-alimenta e quer, acima de tudo, a permanência no movimento da criação, quer ser atividade concentrada em seu próprio e vivo vir-a-ser, e de tal modo que este se propaga em seus “filhos”, futuras ações e obras que virão-a-ser a partir deste impulso.

Klee compreende a ação do pintor como diferente do fazer técnico ou artesanal usual. A maioria das coisas feitas pelo homem, coisas que constituem nosso cotidiano, é feita visando uma utilidade posterior. O armário é feito para guardar, o martelo para pregar, o carro para transportar, o sapato para calçar... O artesão e o técnico que constroem tais objetos não se envolvem criativamente com o fazer tal como o faz o pintor. Tendo uma finalidade prática posterior, que impõe um fazer voltado para o uso (a função) a que estes objetos se destinam, buscam um processo que se conclua o mais rápida e eficientemente possível, pois o objetivo ou recompensa desta produção está fora do processo de formação - está voltado e interessado no uso do objeto confeccionado.

Mas, não estaríamos forçando uma interpretação ao afirmar que a posição de Klee certamente aponta para em outra direção? Não encontramos nas palavras do texto “buscamos, não a forma, mas a função” a aparente indicação de outro sentido

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de interpretação? Não estaria a função citada voltada para a forma terminal, para o uso que se faz da pintura como objeto de contemplação e leitura? Como garantir que função indicada aponta para outro sentido?

Neste ponto não devemos pecar pela precipitação. Devemos entrever, o mais precisamente possível, o que aqui está em questão.

A linha de pensamento sugerida por Klee não se restringe a diferenciar o fazer da pintura do fazer artesanal ou industrial. Ela se posiciona em relação à “função” das obras de arte de maneira singular. Para compreendermos plenamente esta posição seria esclarecedor levar em consideração o contexto histórico que a envolve, pois a autonomia das obras de arte em relação a uma função era uma pretensão característica da maioria dos movimentos pictóricos do modernismo.

No início do século XX se tornou usual a teoria que vê a obra de arte, conceitualmente, como um objeto feito para ser contemplado esteticamente. Para estas teorias, mesmo que a obra tenha sido feita para cumprir algum outro propósito, a sua excelência, “como arte”, deriva da fruição estética. A representação, o conteúdo narrativo ou literário, a transmissão de alguma mensagem, de fatos históricos, de conteúdos religiosos ou educativos, por exemplo, foram algumas das funções exercidas pela arte que as teorias modernistas questionaram e consideraram secundárias. É o que se quer dizer ao se afirmar que a obra de arte é autônoma: ela é autônoma em relação a qualquer função pragmática.

Tal crítica estava fundamentada no fato da funcionalidade contida nas obras históricas não garantir sua qualidade estética. De fato, vários artistas pintaram, por exemplo, o tema cristão da crucificação, mas nas mãos de um Rembrandt ou de um Rubens

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o tema ganha tal estatura, a qualidade das obras é tão superior a que encontramos na maioria dos pintores que trabalharam sobre o mesmo tema, que somos levados a crer que o valor artístico é totalmente independente do motivo trabalhado. Entretanto somente nos períodos históricos mais recentes os quadros se tornaram objetos estéticos. Para os povos antigos este princípio seria incompreensível e a função primeira das obras primava, invariavelmente, pela veiculação de alguma mensagem, ou seja, de uma intenção narrativa independente do valor estético da obra. Mesmo não sendo este o fundamento do que hoje chamamos “valor artístico”, a mensagem era um componente fundamental das obras, ela era o seu princípio, a sua causa primeira.

Defender a funcionalidade e questionar a autonomia da obra de arte parece hoje um despropósito. Entretanto, o pensamento que não questiona seus próprios fundamentos, além de não compreender a base de seus princípios, incorre freqüentemente em um emaranhado de preconceitos. Cabe, portanto, suspendermos temporariamente este pré-suposto e chamarmos a atenção para o fato da crença na arte como uma elaboração criativa da linguagem, independente de sua função, ter surgido em um determinado momento histórico.

De fato, atribuir o status de criação artística a uma obra seria inconcebível para um cristão que contempla uma imagem sagrada ou para um africano diante de um totem. Para estes observadores de outros períodos históricos, o valor da forma não era o que compreendemos como “artístico”, mas sim o da apresentação corporificada do sagrado. A noção, para nós familiar, de que a linguagem da pintura envolve uma reformulação criativa dos meios de expressão, para citar outro exemplo, seria tão sem sentido para um pintor egípcio, preocupado em cumprir com perfeição os cânones de sua época, como é para nós a tentativa

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de se pintar uma figura seguindo critérios preestabelecidos como os deles.

O vínculo entre criação e a elaboração inovadora da linguagem não é, portanto, um conceito verdadeiro (se por verdade compreendermos um princípio atemporal), pois a leitura que fazemos das obras difere fundamentalmente de época para época e de cultura para cultura. Analisando criticamente estas mudanças, constatamos que a leitura das obras do passado se transforma ela mesma a cada geração, afinada com as novas convicções, conceitos e critérios. Resgatamos no modernismo um Bosch, um El Greco, o período arcaico grego passou a ser mais valorizado do que o helenístico, o “primitivismo” africano se consagra como arte. Tudo ocorre de tal maneira que mal podemos dizer o que são de fato estas obras, independente de nossos juízos de valor, sempre cambiantes, sempre questionáveis, sempre aprisionados nos limites de nossa própria e determinada visão histórica.

Mas como surge a nossa visão histórica, a perspectiva moderna, atual? Quando surge a crença na autonomia da obra de arte em relação a sua função?

André Malraux, em “Linguagem Indireta e as vozes do silêncio” observa que;

Um crucifixo românico não foi, a princípio, uma escultura, a Madona de Cimabue não foi um quadro, nem mesmo a Palas Ateneu de Fídias foi uma estátua.O papel dos museus no nosso convívio com as obras de arte é tão importante, que nos custa pensar que ele não exista, que nunca tivesse existido nos locais em que a civilização da Europa moderna é ou foi desconhecida; assim como pensar que ele exista entre nós apenas há menos de dois

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séculos. Pode-se dizer que o século XIX viveu à custa deles; o mesmo ainda acontece conosco e esquecemos que foram eles que impuseram ao espectador uma relação completamente nova com a obra de arte. Contribuíram para libertar da sua função as obras de arte nele reunidas; para transformar em quadros até os próprios retratos.(...)O museu separa a obra do mundo “profano” e aproxima-a das obras opostas e rivais. Ele é uma confrontação de metamorfoses. (...)Ao “prazer da vista”, a sucessão, a aparente contradição das escolas acrescentaram a consciência de uma procura apaixonada, de uma recriação do Universo em face da Criação.3

Estas observações de Malraux mostram uma perspectiva fundamentada na historicidade. Atualmente tendemos a identificar as chamadas “obras de arte” a partir desta “confrontação de metamorfoses” propiciada tanto pelo museu como também pelo conhecimento histórico das várias culturas e épocas. A criação se apresenta para o observador moderno como o fazer que re-elabora e atualiza a linguagem, mantendo em movimento a transitoriedade do estilo. Observando criticamente esta dinâmica de transformação incessante, percebemos que ela parece confundir a criação com a inovação e caracterizar, contraditoriamente, o dado permanente das obras de arte, isto é, o dado que é comum a tudo o que nomeamos de “obra de arte”, como sendo a transformação.

Nesta ótica, que se tornou demasiadamente corriqueira, o que era a linguagem instauradora de uma época se transforma gradativamente em um fundo árido e desgastado, moeda corrente

3 MALRAUX, André. As Vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.

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de consenso social, usada funcionalmente para transmitir mensagens sem relação alguma com a criação artística. A linguagem instauradora, criativa e autêntica, transforma-se em meio de comunicação, em técnica narrativa. Surge então, quase naturalmente, a necessidade de transformação e re-elaboração da linguagem. A inquietação criativa, que altera o próprio corpo da linguagem ao buscar nele novos sentidos e significados, renasce, e de tal modo, que somos induzidos a afirmar provisoriamente ser a arte uma criação sempre renovada da linguagem. A essência da arte fica assim determinada pela transformação histórica dos estilos.

Malraux está certo quando encontra a alavanca fundamental para este tipo de leitura historicista no museu. Ao reunir as obras de diferentes culturas e épocas, o museu as separa do mundo para o qual foram concebidas e, com isto, altera seu sentido original, ou antes, retira da obra sua “finalidade” original e lhe imprime outra. Podemos, por exemplo, não saber para a serventia de uma máscara africana, que deus a habitou, mas nem por isso deixamos de apreciá-la formalmente, de apreciar o “como” a obra foi feita e não o “para que” ela foi feita. Percebemos as diferenças de estilo entre as peças de uma tribo e outra, reconhecemos o vigor criativo de um “escultor” em comparação com os demais, e isto ocorre do mesmo modo como quando comparamos a crucificação de Rembrandt com as obras de pintores “menores”, que desenvolvem pinturas com o mesmo tema. O museu não só propicia este tipo de leitura comparativa, ele a induz.

Ao contrapor várias formulações, ressoa a noção de autonomia da arte em relação a sua função pragmática. Sem considerar a finalidade narrativa exterior, a tônica se desloca para a contemplação estética. É da “confrontação das metamorfoses” que nasce a noção de estilo, assim como a compreensão

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da criação como uma ruptura com o estilo precedente e, conseqüentemente, sua identificação com a busca do novo. É também esta confrontação que norteia a própria noção de arte - ao compararmos várias pinturas elaboradas para cumprir uma mesma função, percebemos com mais juízo o “valor artístico” de determinado pintor, em detrimento do valor meramente funcional de outro.

Note-se, entretanto e com especial atenção, que isto não significa, como quer uma crença assaz difundida, que a pintura tenha simplesmente se libertado de sua função. O que ocorreu foi muito mais uma troca, onde a apreciação formal se transformou no objetivo funcional da obra. Com isso a pintura passou a ser construída com o objetivo (a função) de ser apreciada como uma criação estética. Feita para o museu e para os livros de história da arte, seu sentido emana da “confrontação de metamorfoses”, feita por um público com um mínimo de cultura artística.

Portanto é lícito suspeitar que a transformação da mensagem narrativa em estética, a rigor, não altera o pré-suposto que vê a linguagem artística como um meio de comunicação inter-subjetiva, um “meio de expressão”. O obscuro conceito de “conteúdo formal” que substitui o conceito de “conteúdo narrativo” não deixa, neste caso, de funcionar como uma espécie de mensagem - da “recriação do Universo em face da Criação”4 - que a obra comunica a quem a contempla.

A verdadeira ruptura com a função pragmática posterior só ocorre através da adesão à outra função, interior à própria criação. É esta a posição diferenciada de Klee, pois os estudos eruditos das obras postas nas paredes dos museus, as análises da criação como uma inovação do estilo, permanecem compreendendo a linguagem como um instrumento de comunicação com o público.

4 Conforme Malraux, idem, ibidem – citação 4, p.16

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De fato a linguagem é sempre uma comunicação. Mas isso só indiretamente está relacionado à criação, pois a comunicação que primeiro se dá e oferece, é a do pintor com a linguagem. Esta busca de um sentido na linguagem é a própria criação. Em verdade o pintor está sempre tentando dialogar primeiro com a linguagem e não com terceiros. Ao conseguir quer, merecidamente, mostrar aos outros o que descobriu. Mas a criação, diálogo do pintor com a linguagem, não está voltada para terceiros. Diria até que quando a criação está por demais preocupada com a leitura do público, se perde na superfície do problema, causando os maiores equívocos.

A compreensão da criação como a elaboração-de-um-estilo-singular, tem causado crescente afetação, sem que seja levantada nenhuma suspeita sobre a veracidade de suas pressuposições. Instaurou-se uma verdadeira tradição (manutenção de um princípio) da vanguarda (ruptura com a tradição), que é uma contradição em termos. Um número cada vez maior de jovens pintores acredita, sinceramente, que ser “artista” é o mesmo que ser um inovador revolucionário. Procuram ávidos alguém que proponha alguma coisa de concreto a fim de ter o que questionar, pois só através desta postura crítica e rebelde podem cumprir sua vocação de artistas. Só assim podem se afirmar como inovadores. Constroem obras extravagantes, por vezes grotescas, por outras agressivas, para chamar a atenção sobre si. Querem sobressair, aparecer enquanto indivíduos. A obra para eles não tem valor, é um mero veículo de afirmação do ego revoltado, um instrumento de promoção do indivíduo no meio artístico consagrado. Neste caso a pintura funciona como instrumento de afirmação do sujeito. Triste cenário

A cada dia incomoda, e parece mais estranho, o justo comentário de Cézanne: “a busca da novidade e originalidade

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é uma necessidade artificial que apenas deriva da banalidade e ausência de temperamento”5. O que leva um pintor como Cézanne a fazer tal afirmação?

Cézanne não só critica a originalidade e novidade como afirma, implicitamente, que a criação não tem relação com isso, pois a busca da novidade é um frívolo objetivo da produção de pinturas. De fato, não fossem a novidade e originalidade aspectos secundários em relação a criação, não perceberíamos vigor algum, por exemplo, na obra de um pintor como Leonardo da Vinci, que de modo algum inventou o classicismo. Alguns poderão objetar que ele inovou no uso do claro-escuro e nos meios de representação do espaço, mas isso não é verdade. Em sua época isso já não era novidade. Masaccio e Giotto foram os reais “inovadores” no tocante a estes recursos da linguagem pictórica. Por certo Leonardo da Vinci levou estas questões a muito bom termo, podemos mesmo dizer que a um nível insuperável, mas verdadeiramente ele não as inventou. A novidade e originalidade, são um reconhecimento feito por quem está de fora da criação. Imaginamos um pintor conhecido, como Leonardo da Vinci, pesquisando tudo o que já foi escrito, pensado ou realizado sobre o espaço, por exemplo, ou sobre o claro-escuro, mas não o imaginamos pensando em elaborar um estilo inovador para o público de sua época.

A novidade e originalidade são, inegavelmente, uma freqüente conseqüência para todo aquele que vasculha os dadivosos horizontes da pintura, mas disto não decorre que esta seja uma pré-ocupação do pintor. Merleau Ponty esclarece:

5 Paul Cézanne. Conforme Léo Languier. Cézanne. (artistas falam de si próprios) p.46

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Mesmo tendo concluído uma obra, se o pintor já está sob algum aspecto consciente de si, o que vem com o estilo não é uma maneira, um certo número de procedimentos ou de tiques que se pudessem inventariar, mas sim um modo de formular tão reconhecível pelos outros, tão pouco visível para ele, quanto sua fisionomia seus gestos cotidianos6

Vem-me logo a mente a imagem de um antigo amigo, que ao longe reconheço pelo simples jeito de andar. Tal amigo não está a pensar que anda de tal ou qual maneira, para assim ser identificado, ele não está preocupado com seu estilo de andar, simplesmente anda. Mas quando alguém se ocupa em inventar um jeito original de andar, isso sem dúvida beira a afetação. Do mesmo modo, quando um pintor, visando à consagração diante do cenário cultural, preocupa-se em inventar um “determinado número de procedimentos ou tiques” ao gosto e compreensão do “público alvo”, ele nada mais consegue que obras banais, que denunciam sua “ausência de temperamento”.

Porque nos desviamos tanto do pensamento de Klee? Em que a análise da funcionalidade, tanto pragmática quanto estética, nos ajuda? O que ganhamos em criticar esta postura distorcida? Ganharíamos muito mais construindo uma perspectiva que compreenda a criação sob outro ângulo. Ao invés de criticar determinado princípio cabe ao pensamento positivo afirmar outro.

Ora, é esta justamente a posição de Paul Klee. Sua abordagem está voltada para busca de uma funcionalidade desvinculada da forma. Nela, a função não deve ser interpretada como uma comunicação, seja estética, literária ou, ainda

6 PONTY, Merleau. Merleau Ponty. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. p.152

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menos, subjetiva. A função indicada é antes um funcionar que se assemelha ao da Vida, e não a funcional comunicação de uma mensagem estética ou narrativa. A concepção da criação proposta por Klee não prioriza o espectador, não prioriza a leitura ou interpretação da forma. Tampouco prioriza o criador-sujeito, que pretensamente deteria um conteúdo importantíssimo a ser transmitido (mensagem) para o resto da humanidade. Para Klee a criação está voltada para si mesma. Tal como a Vida, é o desencadear de uma vitalidade que tem por sentido o próprio acontecimento do fazer. Antes a vivência da formação e só secundariamente a comunicação de uma mensagem. O pintor, assim, não pauta a sua obra (seu fazer) nem pelo observador, nem pela obra acabada. Independente da função que a obra possa ter no futuro, o pintor, recolhido e concentrado em seu ofício, compreende que na essência a criação independe de tudo o que está para fora dela; do êxito funcional, do burburinho social, do comentário dos historiadores, dos críticos, dos professores, dos curadores, dos mercadores da arte. Mais do que se afirmar ou expressar se trata de apreender o que da obra emana como um sentido. Sua experiência é de aprendizado silencioso e não de expressão. Ouvir ao invés de dizer. Mais que meio de expressão - meio de conhecimento.

É neste sentido que Klee caracteriza a criação como uma força muito delicada que anima os meios que dispõe (a linguagem). Como uma brisa, um sopro fugaz, a criação vivifica e impregna a matéria da obra, a linguagem, tal como anima a nós mesmos “no mais profundo átomo de nossa medula”. Vida e a criação são dádivas. Não há domínio nem garantia sobre sua manutenção e permanência. Nesta ótica o ego do pintor verdadeiramente criador não quer se impor, mas antes se formar, anula a si mesmo para poder aprender com a ação, para poder a

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ela se entregar. Klee expõe esta humildade do criador frente a sua própria obra através de uma metáfora:

O artista ocupou-se com este mundo multiforme e, em certa medida, incutiu-lhe sua orientação, silenciosamente, solitariamente. Está tão bem orientado que pode dar ordem ao fluxo de fenômenos e experiências. Esse sentido de direção na natureza e na vida, essa seqüência de ramificações e expansões, comparei as raízes de uma árvore.Das raízes a seiva sobe ao artista, corre por ele, flui a seus olhos. Ele é o tronco da árvore. Sobrepujado e ativado pela força da corrente, ele transmite sua visão à sua obra. Ninguém espera que uma árvore forme sua copa da mesma forma que suas raízes. Entre o alto e o fundo não podem existir imagens que sejam o reflexo exato das outras. É óbvio que diferentes funções, atuando em elementos diferentes, devem produzir divergências vitais.Mas é justamente ao artista que, por vezes, são negados estes desvios da natureza que a sua arte exige. Tem sido até acusado de incompetência e de deliberada distorção. E, no entanto, postado em seu lugar certo, como o tronco da árvore, ele nada mais faz que acumular e transmitir o que sobe das profundidades. Não provê nem controla - apenas transmite.A sua posição é humilde. E a beleza da copa não é obra sua; meramente passou através dele.7

Nada de controle, nada de domínio dos meios de expressão. O artista, humilde, antes cultiva o silêncio, a escuta

7 KLEE, Paul. História da pintura moderna. (Herbert Read) p.178

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atenta, a espera do inesperado, pois, como nos ensina o saber antigo, “se não se esperar o inesperado não se descobrirá, sendo indescobrível e inacessível.”8

O observador, por sua vez, se salvaguardar na forma criada a criação, poderá resgatar da forma sua gênese, resgatar a ação viva da criação que se oculta na forma pronta e acabada.

O leitor atento certamente não deixará de indagar em que a espera do inesperado difere da busca da novidade e originalidade criticada anteriormente por Cézanne. As indicações anteriores nos ofereceram os subsídios provisórios para uma resposta, antecipando o que virá a ser pensado nos próximos capítulos. Devemos dar um salto efetivo para fora do círculo vicioso das causas e efeitos, da divisão entre criador e observador, ou ainda da quebra da função narrativa em prol da função estética. Pensando a linguagem não como um instrumento de comunicação e sim como vivo processo de formação, estaremos no sentido correto.

Cézanne não se preocupa em ser original, pois tem problemas efetivos ligados a sua pintura que está a resolver. O pintor não trabalha sobre o vazio. Ele lida com questões objetivas que tomam e ocupam sua atenção. Ele espera que tais questões, como o espaço, a luz, a cor, e também o tema (porque não?), se “abram”, se encham de sentidos por ele ignorados. O inesperado que se abre, sempre subitamente, é uma conseqüência da atenção do pintor à obra que está a elaborar e desdobrar. Não é, assim, coisa sua, no sentido de sua criação, mas algo que “sobe” das “profundidades” da linguagem, de maneira tal que surpreende ao próprio feiticeiro que a criou. A atenção que escuta é legitimamente do pintor, mas as vozes que falam são as da própria linguagem que se manipula, provém de seus vastos sentidos e significações - algo tão externo e independente do

8 Heráclito. Fragmento 18. Os pré-socráticos. Pag.81

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pintor quanto o canto das musas, que de longe inundam o ouvido do poeta.

Portanto não se trata de uma busca da novidade e originalidade dos resultados plásticos, mas de uma espera do inesperado que se dá e oferece em meio à ação da cri-ação (notável sentido velado nas palavras - o criar composto necessariamente pela ação).

Aprofundar o cunho próprio de um fazer cuja função seja a própria criação é o objetivo que devemos perseguir. Por ora, entretanto, só podemos constatar que a caracterização da criação como vida, aponta para o caráter originário e fundamental do que se abre durante a gênese da forma. Já é bastante se agora, com mais segurança, nos esquivamos de acreditar que a criação pictórica é o imaginar de uma imagem pronta e acabada na mente do pintor, pois a forma não deve restringir ou predeterminar a abertura de possibilidades do fazer, não deve ser o objetivo do pintor. É na ação que surge o inesperado – fundamento de toda descoberta. É a abertura da ação que se oferece como o território amplo e vasto que o pintor perscruta. É ela quem surpreende tanto o criador como o observador, ampliando os horizontes da linguagem para além de um funcional e técnico instrumento de comunicação e, por fim, oferecendo-nos a experiência da pintura como um mundo.

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PARÁGRAFO II

Klee enfatiza a criação como um fazer, ou antes, como uma “gênese”. No parágrafo II pensando as possibilidades pró-prias do fazer em geral, ele distingue as obras que são fruto de uma “produção material” e obras que resultam de uma “deter-minação espermática”. Associando a princípio a criação com a vida, Klee utiliza em seguida a metáfora da fecundação. As obras como “produção” são caracterizadas como originalmente femininas com o intuito de indicar um fazer que, como a mulher quando é fecundada, espera o crescimento “carnal do óvulo”, sem interferir ou alterar na sua formação. Tal produção é cultivo e alimentação sem interferência – procriação da semente – ali-mentação do já determinado.

Por sua vez a obra como “determinação espermática” re-sulta de uma “sacudida enérgica”, de uma “inserção de energia” que gera e desencadeia, desde uma origem, o movimento de sua formação.

O pensamento apressado poderia, pelo simples fato de Klee colocar o seu desenho no campo da “determinação”, in-terpretar tais indicações como críticas da “produção” em geral. Para Klee, entretanto, a determinação espermática, a concepção, não existe sobre o nada, ela não é uma idéia solta no vazio (uma pura significação). Por mais econômico que sejam os meios utilizados, sempre se está lidando com a matéria e, logo, com uma produção. Por isso é feita a comparação (e identificação) do desenhar com o escrever. Ao escrever utilizamos o mínimo de elementos plásticos para exprimir um determinado conteúdo semântico e, neste sentido, a produção da forma plástica é mi-nimizada em relação à determinação semântica da mensagem.

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Quer isso dizer que Klee prioriza a idéia semântica, ou seja, a mensagem, como o objetivo fundamental da criação? Tal interpretação parece estranha não só em relação aos comentários que desenvolvemos, como também em relação ao restante do texto de Klee. No parágrafo IV encontramos uma clara valori-zação da produção: “a marcha para a forma ... prevalece sobre o fim terminal”; e “o caminho é o fundamental da obra”. Estas passagens não priorizam antes a produção, ou seja, a “geração”, do que a “concepção”?

Interpretando o texto no todo, percebemos que Klee tem por objetivo a crítica a produção, mas a uma produção técnica, ou seja, uma produção que meramente executa uma idéia formal preconcebida. A atenção e vocação de Klee, sobretudo em sua própria produção pictórica, estão voltadas para a composição de base, originária. Para Klee é inútil adornar ou desenvolver uma composição se sua estrutura mais simples não for criativa (viva). A posição do pintor nos lembra a do músico, que compõe uma sinfonia utilizando a princípio o piano e que sabe que a variação imposta pelos vários instrumentos da orquestra, com seus tim-bres distintos, pode “maquiar” uma música medíocre. Tal ador-no pode emprestar a música certa grandiosidade, mas jamais acrescenta qualidade à composição originária. É no esboço (no piano), que surge o “relâmpago fulgurante” da criação. Se esta base não se sustenta todo acréscimo é mero efeito decorativo.

Com isso compreendemos o sentido da “economia no em-prego dos meios plásticos” indicada por Klee. Entretanto per-manece duvidosa a perspectiva com que devemos observar a identificação entre o escrever e o desenhar.

No início do parágrafo em que encontramos – “escrever e desenhar são, no fundo, idênticos” – Klee faz uma ressalva. Ele afirma que todo fazer, por mais econômico e perto da origem, é

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sempre a manipulação de uma matéria e, neste sentido, envolve sempre uma “produção”. Isto já indica que Klee não compartilha da concepção que vê a criação como uma pura idealização men-tal da forma, isto é, “do fim terminal”. Entretanto não encon-tramos, em nenhum momento, uma crítica clara da mensagem pré-estabelecida.

Pelo contrário, a comparação entre o escrever e o dese-nhar, sugere a predominância da mensagem. Mas é a mensagem necessariamente preestabelecida? Entramos em um círculo do qual não podemos sair se nos agarrarmos obstinadamente na se-qüência do texto. Entretanto, o clima do parágrafo seguinte, nos oferece a possibilidade de saltarmos para fora do círculo e nos sugere outra perspectiva. Retomemos o trecho em questão:

A produção (geração) da forma se vê energicamente atenuada em relação à determinação (concepção) da forma.Última conseqüência destas duas espécies (causa eficiente e causa material) da formação é a forma. Dos caminhos à finalidade. Do que se faz ao perfeito. Da vida a instituição.

O tom da passagem é de constatação objetiva - fatalidade. Para Klee, o fato da “produção da forma se ver energicamente atenuada em relação a sua determinação” é uma circunstância da qual não podemos nos esquivar. Mas, de tal fatalidade, não decorre necessariamente qualquer mérito ou juízo que valorize a concepção da forma. Cruzando as duas passagens “a concepção é energicamente atenuada em relação à produção”, com a frase do parágrafo IV, “a marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por alguma necessidade interior ou exterior, prevalece so-bre o fim terminal”, percebe-se que a concepção valorizada, que

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predomina sobre a produção, não é, como o pensamento apres-sado poderia deduzir, uma concepção da “forma terminal”. Tudo indica que seria mais correto interpretá-la como uma concepção da marcha para a forma, ou seja, da gênese da obra. A concep-ção da marcha, a concepção da produção, predomina sobre a produção pura e simples, isto é, predomina sobre a produção automática, repetitiva, que faz sem pensar. Prevalece também em relação à concepção de um fim terminal, ou seja, sobre a finalidade pragmática, seja ela narrativa ou estética.

Contribui ainda para esta interpretação a passagem do pa-rágrafo IV, onde a marcha para a forma é caracterizada como tendo sua origem em uma necessidade “interior” ou “exterior”. Podemos interpretar a necessidade interior como uma neces-sidade de comunicação ou expressão do pintor (a mensagem), enquanto a exterior faz referência à representação objetiva do mundo exterior ou, ainda, a uma necessidade de realizar uma en-comenda, de fazer sucesso no mercado, de aderir a determinado estilo em voga. Tudo isto pode também servir de motivação para o desencadear de uma marcha para a forma. Mas o relevante é que quaisquer destas motivações podem gerar tanto uma marcha técnica quanto criativa e, neste sentido, é indiferente para a arte a “necessidade” que põe o pintor em movimento. Tal necessi-dade, inalienável, é o que motiva, ou antes, é o motivo do fazer. Neste sentido é precisamente sua finalidade, sua função. Mas a lição de Klee é caracterizar o valor criativo de uma obra como transcendente a esta “função”. Transcender quer dizer: ultrapas-sar a-partir-de. O valor criativo da forma, a um só tempo, depen-de e ultrapassa o seu motivo ou função.

Por isso, na seqüência do parágrafo, Klee indica que “a forma em sentido vivo é uma forma com funções subjacentes; em alguma medida é uma função de funções”1. A função expres-

1 Ver parágrafo II, p.4

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siva, representativa ou comercial é ultrapassada na medida em que conquista funções (significações, princípios e fins) subja-centes. Como compreender isto? Será que Klee inclui uma tal afirmação pelo simples gosto do enigma?

O filósofo Merleau Ponty, em passagem das mais brilhan-tes, desenvolve uma crítica ao formalismo que nos auxiliará em diversas etapas de nossas considerações e, sobretudo, no que diz respeito a questão levantada. O trecho é longo, mas esclarecedor.

Condena-se com razão o formalismo, esquecendo-se, porém, que seu erro não está em sobrestimar a forma, mas de subestimá-la a ponto de separá-la do sentido, no que não difere de uma literatura conteudista que igual-mente destaca de sua configuração o sentido da obra. O verdadeiro contrário do formalismo seria uma nova teoria do estilo, ou do discurso, que os entendesse ultrapassando a “técnica” ou o “instrumento”. O discurso não é um meio a serviço de fins exteriores, em si mesmo contendo as re-gras com que se emprega, sua moral, sua cosmovisão, do mesmo modo que um gesto às vezes sustém toda verdade de um homem. Este uso vivo da linguagem, que tanto o formalismo como a literatura de “mensagem” ignoram, é o próprio da literatura enquanto experiência e invenção. Com efeito, uma linguagem que só procurasse expor as coisas, por mais importantes que fossem, em si mesmas, restringiria seu poder de significar a enunciar fatos. Uma linguagem que, pelo contrário, atribuir perspectivas às coi-sas, dispondo-as em relevo, inaugura uma alteração que não se detém até onde vai, passando às outras que suscita. O indispensável na obra de arte, o que a torna muito mais que um meio de prazer, um órgão do espírito, cujo análogo há de se encontrar em qualquer pensar filosófico ou políti-co se for produtivo, é que contenha melhor do que idéias,

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matrizes de idéias, que nos forneça emblemas cujo sentido não cessará nunca de se desenvolver, que, precisamente por nos instalar em um mundo do qual não temos a chave, nos ensine a ver e nos propicie enfim o pensamento como nenhuma obra analítica pode fazer, pois que a análise só revela no objeto o que nele já está.2

Esta estranha capacidade das obras de arte se apresenta-rem como “matrizes de idéias” mostra que seu conteúdo é extre-mamente relativo e fugaz. As obras se mostram dependentes da compreensão de quem as observa e, assim, permanecem sempre ligadas de maneira direta à relatividade da avaliação. Esta relati-vidade, porém, não esgota o valor das obras, pois ao se mostra-rem como matrizes, as obras transcendem as particularidades de leitura. Antes de depender completamente da compreensão, elas a propiciam. Na obra pronta, no objeto conservado no museu, na forma, o conteúdo permanece transitório. O que não quer dizer que a forma e o conteúdo sejam elementos estanques, separá-veis; pelo contrário, pois se por um lado não devemos subesti-mar a forma, encarando-a como simples veículo de transmissão de um único conteúdo determinado, por outro os conteúdos não existem idealmente, como puras significações imaginárias, inde-pendentes da matriz que os oferece.

Portanto, uma obra posta na parede do museu nunca é obra acabada nem, como poderia parecer, a expressão de “uma idéia” criativa. Além das obras, e não obstante, sem nos desviarmos de-las, mas em seu próprio caminho, surge um outro dado. Dentro de cada obra há um vigor de sentido que transcende as preten-sões de seu próprio autor. A obra que funciona como uma matriz é uma obra com funções subjacentes.

2 MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos (Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1984. pag. 170

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A obra de arte não se restringe à transmissão de uma men-sagem nem o fazer a um “instrumento” ou “técnica” de comu-nicação. Há na obra de arte um sentido amplo que ultrapassa as intenções deliberadas por seu próprio autor. Malraux diria;

Apenas pelo seu nascimento, toda obra grandiosa modifica as do passado. Rembrandt deixa de ser depois de Van Gogh o que foi depois de Delacroix. [...] E se Luís David não viu os clássicos como Rafael foi porque não os olhou da mesma maneira, mas, também, porque tendo visto muito mais, não viu os mesmos.Não descobrimos senão aquilo que compreendemos. [...] E não foi a pesquisa das origens que fez compreender o Greco, foi a arte moderna. Toda ruptura de gênio desvia o domínio integral das formas. Quem faz reaparecer as estátuas clássicas? Os investigadores ou os mestres do Renascimento que lhes indicam o caminho abrindo-lhes os olhos? A não ser Rafael quem faz emudecer os góticos? O destino de Fídias está nas mãos de Miguel-Ângelo que nunca viu suas estátuas; o gênio austero de Cézanne magnífica os Venezianos que o faziam desesperar, e imprime a pintura de Greco como a sua chancela irmã; [...]. A metamorfose não é um acidente, é a própria lei da vida da obra de arte. Foi nos ensinado que a morte não obriga o gênio ao silêncio, não é porque ele prevaleça contra ela, perpetuando a sua linguagem inicial, mas porque lhe impõe uma linguagem incessantemente renovada, por vezes esquecida, como um eco que responderia aos séculos com as suas vozes sucessivas: a obra prima não mantém um monólogo supremo, mas sim um diálogo invencível.3

3 André Malraux. As vozes do silêncio. Livros do Brasil. Lisboa. s/d. Pag. 58/59

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O que Cézanne viu na obra dos Venezianos e na pintura de Greco por certo estava e permanece lá. A leitura de Cézanne é realmente uma das perspectivas possíveis trazida a luz através de sua obra, ou antes, através da criatividade de seu olhar. Mas seria forçado supor que os Venezianos ou o Greco construíram suas obras pensando no ponto de vista que, séculos mais tarde, Cézanne teria. E o que dizer dos clássicos gregos? Por certo não construíram suas obras pensando na perspectiva em que seriam vistas por Rafael, David ou Picasso.

É impossível para o pintor pensar em todas as perspectivas nas quais sua obra pode ser lida. E, entretanto, permanece espan-toso como as obras citadas propiciam concretamente as leituras feitas séculos mais tarde. Parece realmente que tais obras foram construídas levando em consideração uma perspectiva, um co-nhecimento, que seus autores ignoravam.

O que isso significa? Pensávamos a formação e acabamos esbarrando em uma estranha característica da forma das obras de arte – a sua abertura de significados. Tal abertura ultrapassa as concepções usuais que vêem a criação como uma expressão. De-nota que a criação não é uma experiência subjetiva transmitida, em um segundo momento, pela obra realizada. Indica antes que a formação da obra, enquanto aventura e descoberta, constitui o núcleo mesmo da experiência criativa. O pintor tem uma vivên-cia criativa durante o fazer da obra e o significado desta ação, seu conteúdo, ultrapassa suas pretensões. Por ora só podemos constatar este fenômeno e suspeitar que a abertura de leitura das obras de arte, reflete a abertura criativa do fazer, do criar-em-a-ção.

Insistindo no sentido e na seqüência proposta por Klee, percebemos que a conquista desta abertura não é casual, mas fruto da instauração de uma gênese. Ao começo impera, a “mas-

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culina propriedade da sacudida enérgica. Em seguida, o cres-cimento carnal do óvulo.” No começo, onde o espírito é todo segurança, a obra surge de uma intenção deliberada do pintor – nasce de uma determinação. O pintor inicia a ação formulan-do suas bases, instaurando o campo do acontecimento a partir de uma necessidade interior ou exterior, subjetiva ou prática. Em seguida, na etapa de crescimento, o pintor nada faz além de se deixar levar, ou antes, acompanhar solícito, dando vazão ao que, da linguagem mesma, surge espontaneamente. “Nada mais faz que acumular e transmitir o que sobe das profundida-des. Não provê nem controla - apenas transmite. A sua posição é humilde.” A ação, o obrar, desenvolve-se por si mesma. Ad-quire novos sentidos, amplia seu significado. O próprio autor se torna expectador. Dizer e ouvir se confundem. A inspiração e a expiração, a impressão e a expressão se identificam. Uma outra voz fala pela boca do poeta-pintor. Um diálogo invencível surge entre a obra e seu primeiro espectador – o próprio autor. Como se chama este com quem o pintor dialoga em meio a seu ofício? A musa, o demônio ou um espírito? Será o trabalho, o acaso, o inconsciente ou a razão? Nunca temos certeza, mas podemos pressentir que a conquista do diálogo é a condição propícia para que a obra alcance o cunho de uma matriz. Para que ela adquira uma dinâmica interna que, tal como a vida, quer a continuidade e, por isso, abre caminhos e significados mais amplos e diversi-ficados.

Tal dinâmica foi aqui nomeada como gênese. O pintor cria antes de tudo e, sobretudo, uma gênese. Mas a gênese, enquanto atividade do pintor, é um fazer e, dizendo isso, permanecemos perigosamente próximos de uma compreensão do fazer usual que segue uma seqüência de etapas com determinada finalidade. Permanecemos enredados em uma seqüência de começos, meios

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e fins similares ao do fazer em geral. Em verdade a compreensão usual desta seqüência é que reclama finalidades e causas, conota o fazer como meio e acaba compreendendo a criação como uma espécie de mensagem.

Se quisermos alcançar a abertura própria do fazer criativo, devemos pensar a dinâmica de formação da obra de um modo mais amplo, como um todo coeso, dotado de um sentido que transcende o começo-meio-fim, que transcende as causas e fi-nalidades, ultrapassa a realização de um objeto com um signi-ficado pré-determinado. Devemos pensar a gênese não só como atividade do pintor, ou seja, como um fazer humano, mas como a vida das coisas em geral, como sua natureza, que misteriosa-mente impregna e anima a forma da obra.

De fato, tal abordagem parece a mais correta, pois se há alguma outra coisa possível de ser lida e relida das mais diver-sas maneiras, se há algo que, tal como a obra de arte, funciona como uma “matriz de idéias”, não se restringindo jamais a uma interpretação exclusiva, tal “coisa” é a natureza. Lida e relida das mais diversas maneiras no decorrer dos séculos a natureza aparece sempre, a cada vez, como “o real”, até que nova leitura desvele novos sentidos, e a revele como “o fundo falso” do visí-vel. Por isso Klee, após caracterizar o fazer como uma gênese da qual participam tanto a determinação como a produção, inicia o parágrafo III com o tema do movimento natural (em geral), isto é, do movimento como dado prévio que anima todas as coisas da natureza sem nelas se deter.

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PARÁGRAFO III

Klee inicia o terceiro parágrafo afirmando que do “ponto de vista cósmico”, ou seja, na natureza em geral, impera a eterna mudança de tudo. Tudo flui, tudo passa, tudo se move sem cessar. A inércia e fixidez das coisas não são mais do que ilusão. Tudo está sujeito ao fluxo eterno do devir.

Pensar o fundamento da natureza como mudança e devir, remete, quase necessariamente, ao pensamento pré-socrático dos primórdios da filosofia e, mais especificamente, ao pensamento de Heráclito. A referência aqui não é meramente acadêmica – não visa somente ilustrar ou afiançar o pensamento de Klee, mas antes aprofundar as sucintas indicações do início do parágrafo III, que fazem referência a um princípio primordial gerador de todas as coisas, procurado desde o nascimento da filosofia. Tal princípio foi pensado por Heráclito como vir-a-ser e perecer. Tal como Klee, o filósofo antigo se espantava diante da fugacidade de tudo. Ainda ecoam suas palavras;

Não vos deixeis enganar! É vossa curta vista, não a essência das coisas, que vos faz acreditar ver terra firme onde quer que seja no mar do vir-a-ser e perecer. Usais nomes das coisas, como se estas tivessem uma duração fixa: mas mesmo o rio em que entrais pela segunda vez, não é o mesmo da primeira vez.1

Heráclito suspeita do simples e corriqueiro ato de nomear qualquer coisa, pois nomear só é um ato possível se o que é

1 Heráclito; conforme Nietzsche. In: Os pré-socráticos (col. os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1985.

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nomeado mantiver sua identidade. Para demonstrar o inusitado deste ato, Heráclito utiliza como exemplo a imagem de um rio. Certamente ao entrarmos num rio as suas águas fluem e nunca são as mesmas. Mas, na verdade, não nomeamos tal ou qual rio em que nos banhamos, por suas águas. Antes se trata das águas que correm naquele determinado local. Quando voltamos ao mesmo rio para nos banhar, não esperamos encontrar as mesmas águas, voltamos ao mesmo local para nos banharmos em novas águas. O local onde correm as águas é o que nos possibilita nomearmos tal ou qual rio. Com isso a lógica racional aparentemente resolve a questão e não vê nela qualquer problema mais sério.

Mas será que devemos resolver a questão apressadamente, antes mesmo de perceber o que nela está em causa? Insistindo um pouco mais, e evitando a solução fácil, podemos levantar uma objeção: no decorrer dos séculos, um abalo sísmico ou coisa do gênero, pode mudar o leito do rio em questão, sem que por isso deixe de se tratar daquele determinado e nomeado rio. Agora voltamos a nos banhar no mesmo rio em outro local e em outras águas. O que então permanece como “o mesmo rio” para que possamos nele voltar a nos banhar? A fim de encontrar a identidade do rio, sem depender do local por onde ele passa ou das águas que fluem constantemente, resta-nos ainda a sua fonte. O rio é batizado pelas águas que fluem provenientes daquela determinada fonte longínqua. Mas também a fonte não pode ser identificada nem pelas águas nem por seu local, pois as águas subterrâneas, sempre se renovando, podem brotar em um outro local pelos mesmos motivos sísmicos que mudaram o leito do rio. Que característica então nos permite nomear determinado rio? Será que com isso alcançamos o inusitado da questão? Será justo supor que Heráclito não pretende afirmar verdade alguma, mas somente propor um enigma insolúvel para o pensamento lógico?

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Heráclito pensa o conflito entre a mudança e permanência. A imagem do rio, entretanto, é ingrata e esquiva. Talvez possamos resolver o dilema de como podemos nomear as coisas, utilizando uma outra imagem menos capciosa. Uma montanha, por exemplo – é sólida e se associa facilmente a algo como uma “terra firme” que podemos nomear. Troquemos a imagem tentando manter o espírito do enunciado por Heráclito:

Tudo está em movimento, mesmo a mais sólida montanha de pedra é constantemente desbastada pela mais leve brisa. Por isso não devemos chamar a montanha de montanha, pois em breve ela se transformará em colina e, em seguida em planície.

Colocada desta maneira mais simples, a citação parece ingênua. Facilmente concluímos que o tempo de duração ou permanência entre uma mudança e outra do terreno, permite nomearmos aquela elevação íngreme, terminada em cume, de “montanha”, aquela pequena elevação de “colina”, e aquele terreno plano de “planície”.

Com a introdução do conceito de tempo resolvemos tudo facilmente – o tempo tudo transforma! Sob sua norma tudo está em movimento. Concluímos provisoriamente que é ele o responsável pelo vir-a-ser e perecer. Através dele podemos delimitar um período onde as coisas mantêm uma certa identidade, podendo, assim, receber um nome.

Mas o que é o tempo? A questão leva o cunho mais filosófico do que estético. Certamente não nos cabe aqui abarcar uma questão tradicional da filosofia, tão abrangente quanto o número de filósofos existentes. Cabe-nos somente chamar a atenção para um aspecto peculiar que se apresenta quando retomamos o pensamento de um filósofo originário.

A tradição posterior afirma ser o tempo e o espaço princípios a priori. Mas jamais teríamos a noção do que é o tempo

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ou o espaço se não existisse antes a transformação. A noção de tempo nasce justamente do fato de vermos, a todo o momento, as coisas se transformando. O tempo provém do vir-a-ser. Se tudo permanecesse inalterado não conceberíamos o tempo. Ele provêm da mudança que lhe é anterior. O vir-a-ser, portanto, não deriva do tempo, antes se trata do contrário. Do mesmo modo o espaço não é nada em si mesmo. Só existe através dos corpos e das energias neles contidos. O espaço não seria concebível se, por uma magia maligna, as coisas ocupassem sempre os mesmos lugares. Retiremos o movimento das coisas, e também nos imaginemos paralisados, olhos fixos sempre na mesma direção, vendo sempre a mesma imagem, e vislumbramos como a noção de espaço não existiria se antes não houvesse o movimento. É pela mudança que concebemos o espaço como um vazio possível de ser ocupado, é por imaginarmos um longo movimento até alcançarmos o alto de uma montanha, que a vemos em um espaço longínquo, ou seja, é pela mudança que concebemos o espaço como um dado a priori.

Vislumbramos agora o fundo da questão envolvida na citação de Heráclito. Mostrando-se como a origem tanto do tempo quanto do espaço, a transformação e a mudança, isto é, o vir-a-ser, projeta uma perspectiva diferenciada sobre tudo. É ela a essência primeira das coisas, anterior mesmo às noções de tempo e espaço.

Sob esta perspectiva fundamental, tudo perde a estabilidade para entrar em um jogo dinâmico de vida e morte, de vir-a-ser e perecer, onde o devir incessante nega a tudo uma identidade fixa. Por isso Heráclito utiliza a metáfora do rio. O rio se apresenta antes de tudo como movimento e nem o tempo nem o espaço dão conta de sua identidade. A imagem é intencionalmente paradoxal porque nomear um rio é batizar algo que, a todo o momento, nos escapa.

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Mas porque nos afastamos tanto do texto de Klee? A constatação da dinâmica vital de todas as coisas foi introduzida por Klee para fundamentar a afirmação de que a pintura é, antes de tudo, uma gênese. Do mesmo modo como nos enganamos diante da aparente permanência e estabilidade das coisas naturais, a aparência objetiva da obra de arte, enquanto coisa ou forma, obscurece seu caráter essencialmente dinâmico de cria-ação.

Um pouco à frente, no parágrafo IV, Klee indica objetivamente esta identidade entre a gênese do mundo e da pintura, ao afirmar: “nunca, em nenhuma parte, a forma é resultado adquirido, acabamento, remate, fim, conclusão. Há que concebê-la como gênese, como movimento, seu ser é o devir, e a forma como aparência não é mais do que uma maligna aparição, um fantasma perigoso”2.

“Nunca, em nenhuma parte”, significa que não só na pintura, mas também na vida, tudo é movimento, devir, nada tem uma duração fixa. Klee repete a afirmação do parágrafo III, mas neste trecho a comparação entre as coisas naturais e a pintura é feita para tornar patente o caráter dinâmico da própria forma pintada.

O devir incessante a tudo transforma e certamente as obras pintadas estão incluídas neste contexto. Mas em que o devir interfere na forma de uma obra? Quer isso dizer que a forma da obra com o tempo se deteriorará, as cores desbotarão, as fibras apodrecerão, até que não reste nada além de pó? Certamente que não! Klee afirma que o ser mesmo da forma é, aqui e agora, o devir, o movimento, o vir-a-ser e perecer. Acreditando verdadeiramente que a criação está na ação, a forma mesma, tal como se apresenta em sua mais absoluta densidade e realidade, subitamente perde sua consistência de uma maneira peculiar.

2 Conforme Paul Klee, parágrafo IV

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Não se trata de imaginar que a forma se transformará no decorrer do tempo, mas de compreendê-la como devir no que ela é. Nesta compreensão a forma contêm a mesma ambigüidade da imagem do rio utilizada por Heráclito.

Klee esclarece este ponto de vista peculiar analisando os elementos plásticos da pintura. Ele observa que o único elemento estático da pintura é o ponto, pois o “fator tempo intervém logo que um ponto entra em movimento e se transforma em linha. Do mesmo modo uma linha produz uma superfície em seu movimento. E ainda é pelo movimento da superfície que se produz o espaço.”3

Neste trecho Klee utiliza a palavra “tempo”, o que o leva logo a seguir a afirmar um paradoxo conceitual: que “o espaço também é uma noção temporal”4. Entretanto, levando em consideração as observações anteriores (que esclarecem ser o tempo e o espaço noções derivadas do vir-a-ser), percebemos que no fundo nem Klee, nem Heráclito, pensam o tempo como fundamento, mas antes o movimento, o vir-a-ser e perecer, o devir incessante que nega a tudo uma identidade fixa.

É neste sentido, rejeitando a distinção derivada de tempo e espaço, que devemos compreender a forma como um ente dinâmico. “A obra de arte nasce do movimento, ela mesma é movimento fixado, e se percebe no movimento (músculo dos olhos).”5 Esta dinâmica vital é a norma da natureza e da obra. A “inércia das coisas na esfera terrestre”6, que nos permite nomeá-las, “é uma farsa”7.

3 Paul Klee. Theorie de l’art moderne. Genéve: Gonthier, 1971. p.374 idem, ibidem. p.375 idem, ibidem. p.38 6 referencia interna7 referencia interna

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Ao perceber que toda forma e tudo o que é está em transformação, e de tal modo que todo ente, toda realidade, se mostra impalpável e essencialmente inconsistente, como um fantasma, o pintor lança seu olhar para além – intui que o real é o devir, ou seja, as forças de geração e manutenção (de formação) dos entes em seu vir a ser.

A força autônoma de geração e revelação, que possui em si o princípio do movimento e do vir a ser de tudo o que advêm é, como vimos, o que Klee chama de vida. Vida é a força que gera e sustenta todas as coisas em seu vir-a-ser próprio. O pintor acompanha a vitalidade da natureza. Em uma brilhante passagem Klee afirma com clara intuição dos princípios que, para o pintor, “a seus olhos, as formas detidas não representam a essência do processo criador na natureza. A natureza naturalizante lhe importa mais do que a natureza naturalizada”8.

Acompanhar a natureza naturalizante é deixar-se envolver pelo fluxo-formação que anima a obra e lhe imprime a pulsação da vida. Tal vitalidade, contudo, tanto na arte quanto na existência em geral, é um fundamento que nunca se consuma e, mesmo sendo responsável por tudo o que aparece, nunca se mostra plenamente, podendo somente ser intuída. Klee observa:

A arte atravessa as coisas, vai mais além tanto do real quanto do imaginário.A arte joga, sem suspeitar, com realidades últimas e, entretanto, as alcança efetivamente. Assim como uma criança nos imita em seu jogo, assim também nós imitamos no jogo da arte as forças que criaram e seguem criando o mundo9.

8 Paul Klee. Theorie de l’art moderne. Genéve: Gonthier, 1971. p. 28, 9 Idem, ibidem. Cap. 3, p. 42.

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A arte imita as forças de criação do mundo. Mundo e arte se originam de um mesmo princípio — da força de criação que gera todo movimento e que faz funcionar os entes, sustentando-os em seu vir a ser próprio.

Entretanto, esta natureza naturalizante, mesmo sustentando tudo o que se manifesta, nunca se mostra, pois o que vemos é sempre a natureza naturalizada, o fim terminal, a forma detida, morta, a ilusão da aparência.

A natureza naturalizada, a forma revelada nas aparências que constantemente vemos, é um manifestar-se sempre atualizado da natureza naturalizante, da força de revelação. Klee indica que ela é uma “maligna aparição”, um “fantasma perigoso”. Isto implica em compreender que a forma revelada, ou seja a aparência permanente das coisas, oculta a força de sua revelação ou formação, mas também que neste ocultar há um insistente permanecer junto. Forma e formação se co-pertencem. A formação já está, por sua própria natureza, inclinada para a forma, assim como a forma já traz em si, mesmo que oculta, sua formação. Permanecendo presente a forma revelada, permanece presente também a força de revelação que a sustenta. Nesta relação ocorre uma crescente exaltação. O que não cessa de permanecer oculto enquanto advêm, não cessa de permanecer na presença. A forma oculta sua força de revelação, mas o que está oculto é o que sustenta a forma em sua revelação. Há assim uma ambigüidade originária no ser da presença; se a forma é aparência e ilusão, o real, o que efetivamente se manifesta e apresenta, é a força de revelação que permanece sempre oculta, sustentando a forma revelada em seu vir-a-ser.

Nesta tensão entre forma e formação é impossível a separação dos dois combatentes. Não há força de revelação sem o que é revelado, nem forma revelada sem força de revelação

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que a tenha gerado e a mantenha. A forma, no instante mesmo em que é revelada, oculta a força de revelação que, por sua vez, nega a densidade da forma ao mostrá-la como aparência fugidia e enganosa. O oculto e o manifesto não estão separados, mas inclinados um para o outro, cada qual dependendo do oposto para garantir sua identidade. A guerra dos opostos unifica, identifica e exalta os combatentes como tais.

Tal unidade dos opostos deve também ser compreendida precavendo-se das noções derivadas de tempo e espaço. Os oponentes não estão localizados em lados contrários (espaço) nem se opõe porque hora impera um e hora outro (tempo). Em verdade são variações do mesmo, são a própria unidade da mudança e do devir.

Para compreendermos esta unidade do diverso basta um exemplo: o oculto não existe sem o manifesto assim como o quente não existe sem o frio, o forte sem o fraco e etc. Tomemos a temperatura como exemplo. Trinta abaixo de zero pode ser considerado quente em relação a cinquenta abaixo de zero. Só existe oposição quando estabelecemos o marco-zero como parâmetro. No caso em questão o homem-cientista estipulou o marco-zero no ponto onde a água se transforma em gelo. Mas porque não estabelecemos este marco no ponto onde a água entra em ebulição? Ou ainda, não seria mais justo utilizarmos o critério do cotidiano onde o quente e o frio se referem à temperatura normal do corpo humano? Sentimos frio ou calor na medida em que a temperatura se afasta dos trinta e sete graus que é a temperatura normal de nosso corpo. Quente e frio não são, portanto, opostos que existem em si e por si mesmos. Tal oposição não existe previamente na natureza, o que é frio para o homem não é frio para o pinguim. Na natureza o que de fato existe é uma mudança de temperatura e não o quente e o frio.

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O mesmo acontece com a verdade e a mentira, o bem e o mal, o belo e o feio. Sua tensão de oposição não faz parte da natureza das coisas. Do mesmo modo a tensão de oposição entre o oculto e o manifesto, o real e o imaginário, a forma e o conteúdo, a expressão e a impressão não fazem parte da natureza da pintura.

Toda oposição é instaurada pelo homem e, diria Nietzsche, pelo homem que está no poder. É o homem poderoso que estabelece o marco zero de onde surge toda oposição. Por isso Heráclito afirma que o divergente consigo mesmo concorda, e das tensões contrárias acaba por nascer a noção de uma unidade harmônica.10

Nesta perspectiva, a essência das coisas, isto é, sua identidade permanente, não é um dado a priori como a idéia ou o conceito. Ela nasce da mudança e diversidade de tudo. Não há nenhuma unidade originária da qual tudo deriva, nenhuma idéia ou conceito existente a priori em um mundo supra-sensível – pelo contrário é da diversidade, da vida, que nasce a noção de unidade. Através do vir-a-ser, isto é, da mudança pura e simples de temperatura, por exemplo, instaura-se, para quem observa tal mudança, o marco zero, do qual nasce a guerra dos opostos. Da guerra, da unidade originária da luta, provêm os combatentes. O que aparece como durando, como presente, como real, é apenas a vitória momentânea de um dos combatentes, que oculta o realmente permanente – o conflito. Para Heráclito esta disputa é a lei, a justiça, o Um. O vir-a-ser, como o que possibilita toda identidade e oposição é a única unidade efetiva e permanente.

Esta permanente dinâmica do vir-a-ser os gregos pré-socráticos chamavam de phýsis. A palavra foi utilizada por

10 Cf. Heráclito. Fragmento 8: “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia”. Os pré-socráticos. p. 84

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Homero com o sentido de fazer nascer, produzir, fazer brotar. Significava a fonte originária de todas as coisas, a força que as faz nascer, brotar, desenvolver-se, renovar-se incessantemente. Por fim significava também a realidade primeira e última, subjacente a todas as coisas da nossa experiência – acepção posteriormente traduzida para “natureza”. Tais acepções estão intimamente relacionadas às indicações de Klee e nos interessam particularmente. Cabe portanto nos determos aqui um pouco mais.

O modo de ser da phýsis como o que brota, jorra, abre-se, desabrocha e se manifesta, é este movimento-permanente; só o devir da phýsis, responsável por todas as transformações, permanece o mesmo, idêntico e inalterado. Paradoxalmente isto quer dizer: o que nunca muda é a eterna mudança de tudo. A phýsis é o permanente lugar de onde tudo emerge e para onde tudo submerge constantemente. Só a phýsis nunca se oculta ou subtrai. É, assim, o que vive sempre, o âmbito de todos os âmbitos, o concreto por excelência.

Nesta compreensão, a natureza (phýsis) não é a simples soma dos entes que não foram produzidos pelo homem e que compõe uma totalidade prefigurada, com montanhas, árvores e animais. Ela é o campo de aparição das diferenças. Natureza não é, portanto, nem a aparente superfície das coisas nem uma essência interior, eterna e imutável, que o pintor imita ou toma como modelo, mas o que, ao instaurar o combate funda o diverso, dando assim identidade à multiplicidade dos entes. É o combate do múltiplo – o real, o único Um que a tudo unifica.11

11 Cf. Heráclito Fragmento 50 : “Se apreenderem não a mim, mas o sentido, então é sábio dizer no mesmo sentido: Um é Tudo”. Os pré-socráticos. p. 111.

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Mas dissemos tudo sobre o combate que se trava diante da forma objetiva da obra? Há aqui uma peculiaridade enfatizada por Klee que não podemos deixar de assinalar. A forma aparente, sendo “fantasma perigoso” e “maligna aparição”, não se opõe de maneira direta à presença como uma ausência. Por certo, para cada forma aparente negam-se à presença muitas outras, o pouco obstrui o muito, o isolado nega o todo. Mas a negação da forma, além de ser uma negação do ente à presença, pode ainda ocorrer de uma outra maneira. A forma enquanto “fantasma” nos engana, nos faz acreditar que o que vemos é um outro – o oculto é aqui uma fantasmagoria que se dá em meio ao ente presente, ele é uma dissimulação12. Enquanto o negar-se se opõe diretamente ao aparente, o dissimular-se, paradoxalmente, acontece em meio ao ente presente. Teríamos assim três modos básicos de ser da presença: a presença que se manifesta, aquela que se nega e a que se dissimula.

Do mesmo modo na forma da obra, além do que ela nega deixando ausente, deixando não pintado, se dissimula o acontecimento da formação. A forma esconde sua formação. Durante o fazer várias formas podem surgir. Desta diversidade o pintor seleciona algumas, encaminha sua obra para determinada configuração. As não eleitas, as formas que permanecem ocultas, negando-se simplesmente ou dissimulando-se como caminhos não escolhidos, permanecem como um campo de determinadas possibilidades associadas às formas eleitas. O pintor se alimenta destas associações possíveis. Quanto mais ele instaura um autêntico jogo do fazer, mais a obra conquista o campo das possibilidades e ganha a estatura de um mundo. O

12 Acerca dos dois modos de ser da ocultação, ver Heidegger, Martin. El origem de la obra de arte. México: Fondo de Cultura Econômica, 1958. p. 69.

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que o pintor constrói é uma phýsis. Mais do que uma forma ele cria a força que as faz nascer, brotar, desenvolver-se, renovar-se incessantemente. Tudo ocorre a partir da instauração desta dinâmica de auto-realização da obra, que traz em si seu oculto (em suas duas formas) e seu exposto. A arte do pintor não é apenas um saber ver o fazer como uma abertura (condição própria do observador que salvaguarda no criado a cri-ação), mas, antes disso, a decidida instauração da abertura originária (phýsis) na idéia-formação-forma (gênese) da obra.

Trabalhando sobre a abertura, ou seja, sobre a procura dos caminhos plenos, a obra se oferece diferente do que é, se apresenta como um resultado escolhido que oculta a pluralidade de opções do fazer, que oculta a dinâmica abertura que a fundamenta. Apresenta a imagem como falsa aparência, que pode nos enganar se a observarmos, não como um vir-a-ser, mas como uma opção eleita. A forma que revela sua formação, porém, apresenta-se como um simulacro, um fantasma que oculta e deixa-se ver ocultando a ação formadora. Quanto mais profundo é o olhar do pintor mais ele percebe e mostra, em lugar da imagem finita da natureza, a imagem da criação como um processo.

Porque a obra não está na matéria de que é constituída (na tinta e na tela), nem além (na imagem, que é intangível), porque ela é um fundo falso do visível que promove uma intuição da formação, ela expressa antes de tudo a abertura da cri-ação. Tal criação não é imaterial como a essência ou a idéia, é temporal e espacial, está atravessada nas coisas, em meio a elas, em sua pele, em seu corpo. O quadro é um ente concreto que ultrapassa a si mesmo ao manter visível o acontecimento por ele aberto, vale frisar, a instauração de uma phýsis.

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Pablo Picasso indica esta natureza da obra que ultrapassa a si mesma nos seguintes termos:

A idéia é um ponto de partida, nada mais. Se você contemplá-la, verá que se transforma em uma outra coisa. Quando penso muito em alguma coisa, vejo que sempre a tive completa, em minha cabeça. Como, então esperar que continue a interessar-me por ela? Se eu persistir, ela se revela de maneira diferente, porque uma outra questão intervém. No que me concerne, de qualquer modo, minha idéia original já não tem interesse, porque, enquanto a realizo, estou pensando em alguma outra coisa.O importante é criar. Nada mais importa: a criação é tudo.Você já viu um quadro terminado? Um quadro ou qualquer outra coisa? Ai de você, o dia em que disserem que você terminou! Terminar uma obra? Terminar um quadro? Que absurdo! Terminá-lo significa acabar com ele, matá-lo, livrar-se de sua alma, dar-lhe o seu golpe final: uma situação extremamente infeliz, tanto para o pintor como para o quadro.O valor de uma obra reside precisamente naquilo que ela não é.13

O valor de uma obra reside precisamente naquilo que ela não é quando ela conquistar uma abertura que contém o seu ainda não feito. Lançando-nos no porvir a obra nos oferece o caminho, o norte, a phýsis instaurada pelo pintor. Estas observações nos interessam particularmente, pois com elas saímos dos limites da obra particular para nos lançarmos na dimensão da obra como o conjunto dos quadros realizados por um pintor. A phýsis não está

13 Pablo Picasso. In: Teorias da arte moderna. Pag. 277

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aprisionada nas obras particulares. Ela é antes o âmbito de toda a produção de um autor.

As obras do passado expressam ou comunicam um sentido aberto transcendente, podem funcionar como matrizes de idéias, porque a phýsis instaurada pelo pintor ultrapassa o quadro realizado, é um campo onde luta a aparição do possível. Por isso, nas primeiras obras do iniciante já pressentimos o pintor maduro. Mesmo na obra do iniciante impera um impulso que ultrapassa não só as obras realizadas como até o que, para o pintor, era possível realizar em toda uma vida. A totalidade das pinturas de um autor não esgota a natureza (phýsis) de sua obra. Ao observarmos a seqüência de pinturas realizadas na vida de qualquer bom pintor, percebemos que sua obra se encaminha, a cada quadro, em uma direção própria. A obra desdobra uma phýsis singular. Este sentido, esta direção, esta pesquisa desenvolvida, esta estética perseguida ou, o que aqui nomeamos de phýsis da obra, projeta-se de tal maneira para além das obras individuais que facilmente imaginamos que o pintor chegaria ainda mais longe, no mesmo sentido, se vivesse por mais alguns anos.

O ir “mais longe”, entretanto, não deve ser considerado qualitativamente, como um juízo de valor. As derradeiras obras de um pintor são, sem dúvida, mais maduras, mas não necessariamente “melhores”. Não se trata de ver as obras iniciais como esboços toscos da “grande obra”. As obras individuais, de qualquer fase da obra de um pintor, permanecem sublimes, pois estão impregnadas com seu oculto (sua negação e sua dissimulação) que permanece ali pronto para ser desvelado como um outro possível daquela phýsis singular. Madura ou imatura o que surpreende nas obras de arte é a conquista decisiva de uma phýsis que abre um mundo de possibilidades próprias.

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A phýsis da obra é, na acepção estrita da palavra, um sentido. Sem fim ou começo, latente desde sempre como uma autêntica possibilidade do mundo da pintura, a phýsis nos “excita” e “provoca”, nos desperta uma disposição criadora.

A obra, assim compreendida como uma abertura, como uma forma de conhecimento e aprendizagem, em que o artista escuta tanto quanto diz, contém uma pluralidade de leituras possíveis, independente das mudanças de ponto de vista ou de observador. Antes se trata de divergências dentro do próprio quadro, que apreende e “imita” a abertura da experiência do real. Àquilo que na obra é pura possibilidade, fica associado ao que ela é como resultado, do mesmo modo como o oculto permanece associado ao revelado. Cultivar este campo é manter, decididamente, um combate sempre renovado entre os opostos, de onde nasce a noção de unidade da phýsis, tanto do mundo quanto da obra.