filosofia em retomada: compreensão do projeto da filosofia

200
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Francisco Valdério Pereira da Silva Júnior Filosofia em retomada: compreensão do projeto da filosofia com Éric Weil e Paul Ricoeur São Paulo 2015

Upload: others

Post on 16-Oct-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Francisco Valdério Pereira da Silva Júnior

Filosofia em retomada: compreensão do projeto da filosofia com Éric Weil e Paul Ricoeur

São Paulo

2015

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Francisco Valdério Pereira da Silva Júnior

Filosofia em retomada: compreensão do projeto da filosofia com Éric Weil e Paul Ricoeur

Doutorado em Filosofia

Tese, sob a orientação do Professor Doutor Marcelo

Perine, apresentada à Banca Examinadora de

Defesa como exigência parcial para obtenção do

título de Doutor em Filosofia pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo.

São Paulo

2015

Banca Examinadora

Prof. Dr. Marcelo Perine – PUC/SP (Orientador)

Prof. Dr. Evanildo Costeski – UFC

Prof.ª Dr.ª Jeanne-Marie Gagnebin de Borns – PUC/SP

Prof. Dr. Jean-Luc Amalric – UNICAMP

Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde – PUC/SP

A Odara e Olga para que sempre se inspirem naqueles que persistem em viver a inconveniente

verdade como aposta na humanidade.

AGRADECIMENTOS

A Ana minha amorosa esposa, primorosa companheira com quem, a mais de vinte anos, vivo

uma grande história de amor e divido as melhores, as mais interessantes, inteligentes e bem

humoradas horas de conversas...

A minha Mãe por toda sua dedicação e por ter me ensinado, com sua fé, o significado de

palavras como bravura, persistência, coragem, tenacidade...

A Marcelo Perine não apenas pela orientação e ensinamentos no curso deste trabalho, mas,

sobretudo, pela inesperada e grata amizade que me ofertou ao longo desses, já, oito anos...

Aos professores que compuseram a Banca do Exame de Qualificação, Antonio José Romera

Valverde e Jean-Luc Amalric, pelas contribuições enriquecedoras e aos demais professores do

programa, sobretudo, aqueles com quem tive o imenso prazer de conviver e aprender muito:

Antonio José Romera Valverde (mais uma vez), Jeanne-Marie Gagnebin, Marcio Alves da

Fonseca, Mario Porta, Rachel Gazola, Salma Muchail...

A todos que encontraram, no turbilhão da correria dos nossos dias, algum tempo e forma de

me ajudar e incentivar, em especial: Andréa de Araújo, Alex Oliveira, Alessandro Francisco,

Anderson Everton, Antonio José Moraes, Augusto Lobato, Berenice Gomes, Bira do Pindaré,

Carolina Martins, Cristiano Capovilla, Elio Pantoja, Fabio César Costa, Fernando

Nascimento, Flávia Tane, Francisco Gonçalves, Francisco Viana, João de Deus Castro, José

Antonio Pinheiro Jr, Joslene Rodrigues, Julio Guterres, Katia Cilene Pereira da Silva, Lincoln

Serejo, Luís Magno Veras, Marcelo Vais, Marlon Botão, Nelsinho Brito, Raimundo Fonseca,

Raimundo Marques, Ricardo Ferro, Rita de Cássia Oliveira, Silvio Bembem, Thaís Pagano,

Ubiratane Rodrigues, Willian de Jesus.

A FAPEMA pela bolsa que tornou possível a formação de mais um pesquisador em nosso

sofrido Maranhão...

RESUMO

Essa tese aborda a relação entre Éric Weil e Paul Ricoeur. Malgrado estilos inteiramente

distintos no tratamento das questões filosóficas, suas perspectivas convergem para o que aqui

advogamos sob o estatuto do projeto da filosofia – seja por uma Lógica da Filosofia (Weil),

seja numa hermenêutica filosófica (Ricoeur). Weil e Ricoeur optam pelo sentido presente em

todo discurso, mesmo no que procura eliminar o sentido pela atestação da indecisão diante do

conflito das interpretações e/ou da impossibilidade da redução da violência ao discurso. Nem

o lógico da filosofia nem o hermeneuta fazem qualquer concessão à fácil leitura da

multiplicidade dos discursos tentando suprimi-los numa mediação totalizadora. Tampouco

cedem para a poderosa crítica demolidora da possibilidade de universalização que, ao

sustentar a polarização radical entre todos os discursos, consolida a fragmentação e o

permanente ambiente de insuperabilidade do impasse. O recurso que ambos lançam mão é a

retomada: conceito capaz de operar uma orientação através das disparidades discursivas em

confronto, respeitando-lhes a diferença, ao mesmo tempo em que as eleva além de toda

fragmentação e incomunicabilidade. Aceitando o desafio de pensar a continuidade a despeito

das rupturas, na história e no discurso, buscam conduzir a reflexão ao nível da compreensão

universal pela possibilidade do direcionamento coerente, isto é, sensato. Nesse sentido, a tese

defende que a tomada de posição de Ricoeur não é apenas em favor do projeto filosófico

weiliano – sintetizado na fórmula kantiano pós-hegeliano –, é também a reapropriação efetiva

desse projeto atuante, agora, não mais pelo encadeamento das tipologias discursivas, mas

através das singularidades filosóficas.

Palavras-chave: Retomada, Projeto da Filosofia, Sentido, Violência, Tomada de Posição.

SUMMARY

This thesis addresses the relationship between Eric Weil and Paul Ricoeur. Despite being their

styles fully different, at the treatment of philosophical questions, their perspectives converge

in what we advocate here under the statute's project of philosophy - whether for a Logic of

Philosophy (Weil), whether in a philosophical hermeneutics (Ricoeur). Weil and Ricoeur opt

for this sense in any discourse, even in attempts to eliminate the sense, by attestation of

indecision in view of the conflict of interpretations and / or of the impossibility of reducing

violence to the speech. Neither the philosophy's logician, nor the hermeneut, it makes any

concession to the easy reading of the multiplicity of discourses, trying to suppress them at a

totalizing mediation. Nor they give in in to the powerful devastating criticism of the

possibility of universalization that by supporting the radical polarization between every

speech, consolidates fragmentation and permanent insuperability the deadlock environment.

The resource that both throw hand is the resumption: concept able to operate a guidance

through the discursive disparities in confrontation, respecting them the difference, while that

rises beyond all fragmentation and incommunicability. Accepting the challenge of thinking

about continuity, in spite of the ruptures in the history and discourse, they seek lead to

reflection at the level of universal understanding by the possibility of coherent directioning,

that is, judicious. In this sense, the thesis argues that the taking of Ricoeur's position is not

only in favor of the weiliano philosophical project – synthesized in the Kantian formula post-

Hegelian –, It is also the effective reappropriation of this active project, now, no longer by the

chain of discursive typologies, but through the philosophical singularities.

Keywords: Resumption, Project of Philosophy, Sense, Violence, Taking Position.

Não é o tempo que passa, mas nele passa a existência do mutável

Immanuel Kant, CPR – Analítica dos Princípios

Sumário

Resumo............................................................................................................... 05

Lista de Siglas.................................................................................................... 09

Introdução............................................................................................................. 10

1. Pensar o sentido e a violência............................................................................... 22

1.1. Residual poético e o entretempo da filosofia......................................................... 22

1.2. A violência e o desvio pelos símbolos, “A Simbólica do Mal”.............................. 30

1.3. Topologia da violência: “linguagem e violência, o debate de 1967”..................... 39

1.4. Niilismo e filosofia................................................................................................ 45

1.5. Filosofia e tomada de posição................................................................................ 54

2. Rupturas, retomada, releitura.............................................................................. 62

2.1. Nota sobre o esquematismo................................................................................... 62

2.2. O significado da tradução de reprise..................................................................... 63

2.3. Aplicação da retomada........................................................................................... 71

2.3.1 Filosofia, história e história da filosofia.......................................................... 71

2.3.2 Retomada na composição da hermenêutica ricoueriana..................................... 79

2.3.3. “Ruptura irreparável” e “aporética leitura” do discurso filosófico weiliano.... 86

2.3.4. O sentido, a ruptura, os “mestres da suspeita”................................................. 94

2.3.5. Decisão pela não violência na narrativa do processo jurídico........................... 102

3. Pós-hegelianos......................................................................................................... 109

3.1 Eric Weil: Hegel e a escritura de um projeto inacabado........................................ 109

3.2 Paul Ricoeur: entre tentação e renuncia à Hegel..................................................

3.3 Ricoeur e a leitura do Hegel de Weil.....................................................................

118

131

3.4 Os enredos do poder e a theoria................................................................................ 136

3.4.1. O paradoxo do político....................................................................................... 137

3.4.2. Filosofia Política e o problema do indivíduo................................................... 141

Conclusão .................................................................................................................... 150

Bibliografia.................................................................................................................. 160

Anexos........................................................................................................................... 172

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil

LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

Obras de Eric Weil

LP Logique de la Philosophie LF Lógica da Filosofia

PP Philosophie Politique FP Filosofia Política

PM Philosophie Morale FM Filosofia Moral

HE Hegel et l’État HE Hegel e o Estado

PK Problèmes Kantiens PK Problemas Kantianos

EC I Essais et Conférences, Philosophie I

EC II Essais et Conférences, Politique II

PR I Philosophie et Réalité I

PR II Philosophie et Réalité II

Obras de Paul Ricoeur

SM La Symbolique du Mal SM A Simbólica do Mal

CC La Critique et la Conviction CC A Crítica e a Convicção

TA Du Texte à l’Action TA Do Texto à Ação

TI Teorie de la Interpretation TI Teoria da Interpretação

MV Metaphore Vivre MV Metáfora Viva

TR 1 Temps et Récit 1 TN 1 Tempo e Narrativa 1

TR 3 Temps et Récit 3 TN 3 Tempo e Narrativa 3

HMO Histoire, Memoire, Oubli HME História, Memória, Esquecimento

SMA Soi Même comme un Autre SMO O Si Mesmo como Outro

PR Parcours de la Reconnaissance PR Percurso do Reconhecimento

RF Reflexion Faite AI Autobiografia Intelectual

HV Histoire et Verité HV História e Verdade

L1 Lecture 1, L1 Leituras 1

L3 Lecture 3 L3 Leituras 3

J1 Le Juste 1 J1 O Justo 1

TT Les Temps du Texte

HI Hermenêutica e Ideologias

Outras siglas e/ou abreviações

CRP Crítica da Razão Pura

Fil. Dir Filosofia do Direito

Enciclopédia Enciclopédia das Ciencias Filosóficas

Fenomenologia Fenomenologia do Espírito

Lógica. Ciência da Lógica

10

INTRODUÇÃO

L’homme trouve dans l’action l’unité de la vie et du discours

Éric Weil

Desde a tese de Luís Manuel Bernardo, bem como outros trabalhos na mesma linha,1

nos parece bastante fecundo e interessante abordar o viés hermenêutico da filosofia de

Éric Weil.2 Para o intérprete português, a obra de Éric Weil é capaz de potencializar

leituras renovadas ao se concentrar no gesto da antecipação hermenêutica, sobretudo no

papel desempenhado pelo conceito operatório da retomada no interior da Lógica da

Filosofia. Ainda segundo Bernardo, de algum modo, a filosofia de Weil voltada para o

duplo linguagem-discurso se situa no ponto do que se convencionou chamar viragem

linguística do pensamento. Esse mesmo duplo acompanha as reflexões que partem da

filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur posicionada na mesma quadra histórica e,

portanto, participante do mesmo debate. É fato que há diferenças entre uma e outra

filosofia, e a elas nos reportaremos sempre que a exigência se fizer presente.

No entanto, o que desperta nossa curiosidade é a existência de certas convergências e

cruzamentos no tocante ao que intentamos compreender sob a ideia de projeto da filosofia ou

projeto de pensamento, ao qual os filósofos e/ou as filosofias se agrupam ao tomarem posição

no bojo da própria tradição constituída, da qual a história da filosofia não é senão sua expressão

mais acentuada. A Lógica da Filosofia de Éric Weil e a hermenêutica filosófica de Paul Ricoeur

têm motivos de sobra para pertencer ao mesmo projeto de pensamento como um todo. E já

adiantando em nossa interpretação, isso se nota no uso que faz a filosofia de Ricoeur da matriz

hermenêutica retomada, presente no quadro da Lógica da Filosofia.

Pressupomos haver uma moldura comum de análise entre a filosofia sistemática de

Weil e a hermenêutica de Ricoeur. Ambos têm na linguagem a fonte primeva do filosofar;

não é estranho para eles que o problema do conflito entre as filosofias seja um desafio à

própria filosofia. O afrontamento desse problema, no caso da filosofia weiliana, ocorre

1 Em mente, basicamente, os trabalhos de J. M. Breuvart, Tradition, effectivité et theorie chez Éric Weil et Hans

George Gadamer, e J. M. Buée, La Logique de la Philosophie et l’Hermeneutique de Gadamer, in Cahiers Éric

Weil I, Lille, PUL, 1987, respectivamente, p. 143-163 e p. 165-195. 2 Cf. Luís Manuel Bernardo. Linguagem e discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Éric Weil, Lisboa:

INCM, 2003. Texto em polêmica com interpretação tradicional do pensamento weiliano que centra no binômio

razão/violência e não no par linguagem/discurso, como sugere o título da tese. O trabalho visa ainda converter toda

filosofia de Éric Weil numa teoria linguística, exatamente por ter neste binário o centro de gravidade desta filosofia.

11

pela articulação de uma lógica que busca a compreensão de todas as figuras dos discursos

filosóficos num mesmo movimento,3 enquanto em Ricoeur se dá por uma hermenêutica

que – dialogando “de próximo em próximo”, “de nó em nó” –, possa arbitrar o conflito

das interpretações.

O debate entre Éric Weil e Paul Ricoeur não é apenas virtual. Ambos estiveram frente a

frente em algumas ocasiões. Ricoeur, por exemplo, dedica uma longa crônica à Filosofia

Política na edição de setembro de 1957 da revista Esprit4, à qual Weil responde com uma

carta.5 Convidado pela Société Française de Philosophie em 1963 para uma exposição

sobre a Lógica da Filosofia, Éric Weil apresenta o texto Philosophie e realité a eminentes

interlocutores entre os quais figuram Jean Wahl e Paul Ricoeur, este na ocasião lhe dirige

três questionamentos (cf. PR I, 7ss). Dividiram também a mesa por ocasião da Semana de

Intelectuais Católicos ocorrida em 1967, em Paris, sobre o tema Violência e linguagem. A

comunicação de Ricoeur, subsequente à intervenção de Weil, faz questão de referendar a

Lógica da Filosofia como seu ponto de partida, texto no qual o hermeneuta encontra

elementos mais que suficientes para contrapor as teses advindas do estruturalismo no

tocante à linguagem.6 Além disso, na conclusão do Colloque International de Chantilly em

homenagem a Éric Weil, em 1982, Paul Ricoeur pronunciou uma magistral comunicação De

l’Absolu à la Sagesse par l’Action na qual buscava responder a contribuições anteriores

acerca da Lógica da Filosofia, em especial quanto ao que denominou de “as transições mais

difíceis”, no que concerne ao projeto weiliano do discurso coerente a ser mantido para além

da categoria do Absoluto7. Para tanto, adotou a leitura que na ocasião qualificou de “aporética

leitura do texto weiliano”.8

Voltaremos, no transcurso desta tese, a todos esses encontros. Por ora destacamos que a

3 A Lógica da Filosofia é a principal obra de Éric Weil, o que ele propõe nela é “o discurso sobre a

discursividade e a pluralidades das formas discursivas, nas quais esta se inscreve, na efetividade dos discursos

concretos produzidos pelos homens”, conforme Bernardo, op. cit. p. 15. Ela está organizada em 18 categorias

filosóficas cuja sequência é: Verdade, Não-Sentido, Verdadeiro e Falso, Certeza, Discussão, Objeto, Eu, Deus,

Condição, Consciência, Inteligência, Personalidade, Absoluto, Obra, Finito, Ação, Sentido, Sabedoria. 4 P. Ricoeur. La «philosophie politique» d'Éric Weil, Esprit, n.º 254, octobre (1957): 412-429, depois em L1, 39-

58 [Ed. Brasileira]. 5 Éric Weil carta a Paul Ricoeur de 15 de outubro de 1957.

6 E. Weil. Violence et langage in Cahiers Éric Weil I, Lille, PUL, 1987, p. 23-31 e P. Ricoeur. Violência e

linguagem in L1, 59-68 [Ed. Brasileira]. 7 Cf. P. Ricoeur. De l’Absolu par l’Action à Sagesse in Actualité d'Éric Weil. Actes du Colloque International.

Chantilly, 21-22 mai 1982, éd par le Centre Éric Weil, UER de Philosophie de Lille III, Paris: Beauchesne, 1984,

p. 407. 8 Marcelo Perine levanta severas suspeitas e não vê assim tão aporéticas as questões lançadas pelo filósofo

hermeneuta. Acredita mesmo que se tratam muito mais de problemas do que de aporias propriamente cf. M.

Perine. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2013, p.

188ss.

12

leitura filosófica, desatada pela hermenêutica ricoeuriana, se compreende como leitura de

segunda ordem, como releitura que procura articular toda a tradição filosófica e cultural com

o discurso da modernidade em vistas da transformação do tempo presente. Portanto, trata-se,

como tentamos demonstrar, de uma “retomada” sui generis da qual a hermenêutica filosófica

lança mão no sentido de orientar seus esforços para a compreensão da realidade histórica. Eis

porque é possível o estabelecimento de uma cumplicidade entre o conceito weiliano da

retomada e o procedimento da leitura (releitura, refiguração, apropriação) da hermenêutica

filosófica ricoeuriana. Cumplicidade conceitual-metodológica porque, antes, solidariedade de

projeto filosófico: Ricoeur toma para si, com certa recorrência, o mesmo qualificativo com

que Weil manifestava sua própria maneira de filosofar, o de ser um kantiano pós-

hegeliano, e isso não é de modo algum despropositado de sentido, sobretudo para um

filósofo e uma filosofia de franca opção pelo sentido como é a filosofia ricoeuriana.9

Talvez se torne mais clarividente o vínculo de projeto filosófico ao qual aqui aludimos,

dando as indicações das fontes de nossa inquietação quanto ao empreendimento desta tese. A

senha inicial foi dada por Marcelo Perine. Esse pioneiro e renomado intérprete brasileiro do

pensamento weiliano, ao documentar a gratidão de Ricoeur para com Weil, narrando seu

impactante encontro com o hermeneuta, após se apresentar como estudioso da obra de Weil,

colheu do pensador de Valence a singela afirmação: “O senhor não pode imaginar o quanto eu

devo a Eric Weil”.10

Mas essa generosa declaração não fornece o material de sua gratidão,

deixando tão somente implícita uma dívida no âmbito da pesquisa filosófica cultivada pelo

hermeneuta, que tomamos por inspiração inicial desta tese – ou como aquilo “que está

provocando” essa pesquisa, conforme afirmou Marcelo Perine.11

Na sequência, quem nos permitiu avançar foi aquele que os weilianos reputam como o

mais conceituado intérprete do pensador franco-alemão, Gilbert Kirscher, por se referir a uma

partilha de programa filosófico entre Weil e Ricoeur desde os idos dos anos 1950,

especialmente pelas remissões deste último à Lógica da Filosofia, a Hegel e o Estado e à

9 É sugestivo que a fórmula kantiano pós-hegeliano atribuída a Weil jamais apareça em sua obra. No entanto,

segundo depoimento de Marcelo Perine, essa fórmula figura como a maneira pela qual Weil enxergava sua

própria filosofia cf. palestra sobre Éric Weil no espaço cultural da Editora É Realizações por ocasião do

lançamento das traduções de Filosofia Moral e Hegel e o Estado em 03 de junho de 2011. Disponível em:

http://www.erealizacoes.com.br/espaco/janelaVideo.php?video=Palestra_Éric-Weil&posicao=2. A fórmula se

torna ainda mais curiosa uma vez que surge frequentemente em Ricoeur, p. ex., TR 3, 389; TA, 251; CC, 118.

François Dosse, ao escrever a biografia de Ricoeur, também atribui a Weil essa fórmula e acrescenta que a

partilha dela por Ricoeur ocorre, sobretudo, no tratamento das questões relacionadas à filosofia política cf. F.

Dosse. Paul Ricoeur: Le sens d’une vie (1913-2005). Paris: La Découverte, 2008, p. 499. 10

Cf. M. Perine. Éric Weil e a compreensão do nosso tempo: ética, política, filosofia. São Paulo: Loyola, 2004, p. 10. 11

Cf. M. Perine (palestra sobre Éric Weil).

13

Filosofia Política. Para o autorizado intérprete, ambos organizam suas respectivas filosofias

em torno de alguns temas comuns: Ricoeur, por exemplo, reconhece na Lógica da Filosofia o

desenvolvimento de um filosofar próximo ao seu, especialmente por tratar as mesmas aporias

da compreensão da realidade histórica e por confrontar advento e sentido; ele também

considera a oposição categoria-atitude de modo muito similar ao evento e a estrutura.

Ademais admite a exigência da compreensão conduzida pela ideia de supressão (Aufhebung)

da história na filosofia,12

isto é, aquilo que Ricoeur chama de término da história num leitor,

no caso, o leitor filósofo (cf. HV, 36). Uma evidente partilha de inclinação hermenêutica se

deposita nesse resíduo do leitor que, como se verá mais tarde, aparece na obra de Ricoeur sob

o conceito de refiguração.

Enfim, mas não por último, temos a posição de Luís Bernardo, advogada em sua exímia

tese de doutorado Linguagem e Discurso, ao buscar extrair da filosofia weiliana uma

hermenêutica, permitindo ampla compreensão das potencialidades discursivas e linguísticas

da filosofia weiliana no confronto com as posições da análise do discurso filosófico da

modernidade e da ação comunicativa de Habermas. O livro de Bernardo, desse modo, abre

uma excelente perspectiva ao confrontar filosofias que se debruçam no plano da linguagem e,

portanto, para os propósitos desta pesquisa, uma acentuada interface da Lógica da Filosofia

com a hermenêutica ricoeuriana.

Após essa rápida retentiva às três fontes de nossa “provocação” inicial, passemos em

revista a particularidade dessemelhante da obra de cada um dos autores com o intuito de

realçar um traço marcante presente em ambos: o de que o diferente pode ser compreendido

como uma modalidade do mesmo e, nesse sentido, não é descabido o movimento do

pensamento pela continuidade.

Chama atenção, de um lado, que Ricoeur tenha uma obra diversificada, expansiva e

multifacetada, distribuída em quase trinta títulos produzidos, nos quais, o hermeneuta,

saltando de tema em tema, de problema em problema, frequentando autor por autor, confronta

as mais díspares áreas do conhecimento sem nenhum alinhamento sequencial no qual,

necessariamente, os temas se prenderiam. Contudo, não ignora, em absoluto, sua unidade

temática, a ponto de se ver por vezes obrigado a recolher os “fios soltos” de sua vasta

produção – como em Autobiografia Intelectual (Réflexion Faite – 1995), A Crítica e a

12

G. Kirscher. La Philosophie d’Éric Weil: systématicité et ouverture. Paris: PUF; Namur: Press Universitaire de

Namur 1989, p. 10.

14

Convicção (1995) e O meu caminho filosófico.13

De outro lado, nesse particular e sob essa

flagrante diferença de caráter editorial, Weil produziu uma obra muito enxuta: a rigor

escreveu a Lógica da Filosofia (1950), Hegel e o Estado (1950), Filosofia Política (1956),

Filosofia Moral (1961), Problemas Kantianos (1963), e teve reunidos em quatro volumes

artigos, recessões e alocuções radiofônicas: Ensaios e Conferências I e II (1970 e 1971) e

Filosofia e Realidade I e II (1982 e 2006 publicações póstumas).14

Mas são as três primeiras obras, como defendem os argutos intérpretes Bernardo e

Kirscher,15

ou o conjunto das cinco obras temáticas, como atesta o primoroso comentador

Perine,16

que constituem o núcleo do pensamento weiliano. Os demais trabalhos, como

informa Kirscher, simplesmente compõem ensaios propedêuticos ao sistema weiliano e não

dizem nada que não esteja compreendido e devidamente situado no interior do sistema.17

Polêmica à parte, pois sendo três ou cinco o quantitativo de livros que contêm o cerne do

pensamento de Éric Weil, não se poderá dizer que sua obra não seja condensada. Mas

condensação não significa ausência de pluralidade. Muito pelo contrário, quem já teve a

oportunidade de atravessar alguns dos livros de Weil, e mesmo alguns dos seus artigos, sabe

que a diversidade, a multiplicidade dos discursos e a fragmentação é o afrontamento mais

característico do seu pensamento. “Weil nos reconduz sempre a uma mesma ideia: o homem

está inserido num mundo concreto no qual tem tentado dizer o sentido de sua história de

múltiplas maneiras, ao mesmo tempo complementares e antagonistas”.18

A esse propósito, é importante mencionar a famosa anedota contada por Raymond Aron de

que Weil dizia querer colocar um “ponto final na filosofia”,19

ou seja, o pensador franco-alemão

13

O meu caminho filosófico é uma Lectio magistralis proferida na Universidade de Barcelona em 24 de abril de

2001 in. D. Jervolino. Introdução a Ricoeur. São Paulo: Paulus, 2011, p. 120-143. 14

Emparelhada a essa diferença bibliográfica, convém observar certa coincidência biográfica entre os dois

pensadores. A história deles, colocada lado a lado, permite compreender como suas trajetórias pessoais

convergem para escolhas filosóficas muito aproximadas. Sobretudo, no que se refere ao enfrentamento da

violência e o diálogo produtivo com o diferente, no caso a reunião de duas grandes tradições da filosofia: alemã

e francesa. Ora, ambos, alistados nas forças da resistência francesa, lutaram no front contra o nazismo; os dois

foram capturados e viveram por cinco anos cativos dos alemães em campo de prisioneiros de guerra; eles dois

mantiveram-se à margem do modismo filosófico que mobilizou grande parte da intelectualidade francesa na

segunda metade do século XX; um e outro se conservaram trabalhando discretamente para ressurgirem como

figuras de expressão ao fim daquele século. Weil é o alemão que precisou aprender francês como estratagema de

sobrevivência durante o exílio na nova pátria e, assim, pode melhor dialogar com essa outra tradição; Ricoeur é o

francês que aprendeu alemão primeiramente na fronteira, quando morou em Estrasburgo, e depois traduzindo,

quando prisioneiro, o Idem de Husserl. 15

Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 11; G. Kirscher, op. cit. p. 7ss e G. Kirscher, A abertura do discurso filosófico,

ensaio sobre a Lógica da Filosofia, Belo Horizonte, Síntese n. 41 (1987): p. 44-45. 16

Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., p. 53. 17

Cf. G. Kircher, art. cit. p. 45 e op. cit. p. 9. 18

J.- M. Buée. Éric Weil, penseur de l’unité plurielle in Critique n. 636, mai (2000): p. 397-397. 19

Raymond Aron. Memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 812.

15

situava-se na linha aberta por Platão, aquele que sempre se considerou o zênite da filosofia do

seu tempo e de quem colhemos a afirmação; “quem é capaz de visão de conjunto está apto para

a dialética [= filósofo], e quem não é capaz, não está”20

. Posiciona-se também na perspectiva de

Hegel, que não se propôs pensar uma filosofia, mas pensar a filosofia (cf. EC I, 130). Weil,

autor de sistema e ciente dos riscos, quer dizer, com conhecimento de causa, assumiu a tarefa de

pensar a totalidade sistematicamente num ambiente em que não era mais bem-vinda essa

maneira de encarar o pensamento filosófico. Hoje não é absolutamente estranha a ninguém a

hostilidade dispensada ao pensamento sistemático desde o início do século passado e como essa

perspectiva se tornou completamente démodé na França de 1940 em diante, chegando, por

conseguinte, ao nível do acirramento crescente contra essa modalidade de pensar. A suspeita

quanto a isso é reforçada pelo que nos diz Jean-Michel Buée:

a França dos anos cinquenta, dominada pelas correntes filosóficas para às

quais a Lógica da Filosofia era, em grande parte, estrangeira – dificilmente

poderia despertar outra coisa que desprezo e mal-entendido. Além disso, o

contexto imediatamente posterior, o da filosofia francesa dos anos sessenta e

setenta, não era propício para dissipar esta incompreensão: que poderia

significar, com efeito, uma concepção afirmando que a filosofia, nasce de

uma livre decisão em favor da razão, que é essencialmente busca do

universal e da coerência, num tempo que se dá por tarefa principal

desmistificar, desconstruir, de colocar em questão, de todos as maneiras

possíveis, uma tradição que Weil parecia, ao contrário, querer perpetuar?

Sem dúvida essa é a origem da atitude adotada pela maioria daqueles que

ocuparam o devant de la scène intelectual da época – Paul Ricoeur constitui

a única exceção notável. A qual bom debate se presta um pensamento que

não tinha outra finalidade senão uma espécie de reedição de Hegel ou Kant,

e do qual o estilo, tanto quanto o conteúdo, parecia pertencer ao passado

encerrado?21

Paul Ricoeur não aparece de maneira fortuita nessa citação. A situação dele não era muito

diferente nesse mesmo período. Durante a década de 1960, na qualidade de incômodo

adversário do movimento estruturalista, tentava, também no contra fluxo da onda, o resgate

do sujeito através de novas determinações: fosse por uma reflexão filosófica de Freud em Da

20

República, 537 c. 21

« la France des années cinquante, dominée par des courants philosophiques auxquels la Logique de la

philosophie était largement étrangère – ne pouvait guère susciter autre chose que méprise et malentendu. Qui

plus est, le contexte immédiatement postérieur, celui de la philosophie française des annés soixante et soixante

dix, était peu propice à dissiper cette incompréhension: que pouvait signifier en effet une conception affirmant

que la philosophie, née d’une libre décison en faveur de la raison, est essentiellement recherche de l’universel et

de la cohérence, en un temps qui se donnait pour tâche principale de démystifier, de déconstruire, de mettre en

question, de toutes les façons possibles, une tradition que Weil semblait au contraire vouloir perpétuer? Sans

doute est-ce là l’origine de l’attitude adoptée par la plupart de ceux qui occupaient le devant de la scène

intellectuelle de l’époque – Paul Ricoeur constitue la seule exception notable. À quoi bon débattre avec une

pensée qui n’était finalement rien d’autre qu’une sorte de redite de Hegel ou de Kant, et dont le style autant que

le contenu semblait appartenir à un passé révolu?» J.-M. Buée. Éric Weil, penseur de l’unité plurielle, art. cit. p.

390.

16

Interpretação (1965) em que a psicanálise é apresentada como uma espécie de arqueologia do

sujeito; fosse tomando a direção de uma reflexão hermenêutica sobre a linguagem em O

conflito das Interpretações (1969) onde não concede ao modelo linguístico nenhuma forma de

absolutização. Assim se explica a maneira pela qual opunha à teoria geral das relações de

Levi-Straus, fundador e principal expoente do estruturalismo, uma teoria geral da

interpretação. Sua hermenêutica, então marginalizada pelo triunfalismo do estruturalismo,

buscava assimilar e integrar todas as aquisições das ciências humanas graças a sua posição

intangível de diálogo e de abertura, contrária ao fechamento da linguagem sobre si mesma ou

do encerramento dos diversos sistemas linguísticos.22

Assim como se pode encontrar nessa atmosfera de animosidade a razão para o tardio

reconhecimento de Ricoeur, se poderá também verificar alguns traços e motivações para

aquela ainda não merecida consagração do pensamento de Weil,23

apesar dos notáveis e

avolumados esforços em torno de sua filosofia em vários quadrantes do planeta.24

Jean Wahl

se refere a Lógica da Filosofia como uma espécie de Fenomenologia do Espírito dos anos

195025

, e Merleau-Ponty a coloca na tradição dos grandes livros sagrados e clássicos da

filosofia por ser enigmático e altivo (cf. PR II, 251), para dar apenas dois exemplos

contemporâneos a Weil.

Pesa, amiúde, contra pensadores sistemáticos, como os acima citados Platão e Hegel, a

acusação de serem inconvenientes por sempre dizer tudo, no entanto, se negligencia, com a

mesma frequência, que não é necessária a explicitação de tudo que é dito. Daí porque não se

pode olhar para a ordem dos livros de pensadores desse naipe – da mesma forma que os

títulos por eles escolhidos – e não pensar no significado que possuem. 26

Situando-me ao lado

daqueles que localizam o núcleo do sistema weiliano no composto dos cinco livros (LP, HE,

PP, PM e PK, produzidos nessa ordem cronológica e sistemática), convém observar que, no

próprio movimento sistemático dessa composição, se percebe, duplamente, sempre um Kant

posterior a Hegel.

22

Cf. F. Dosse, História do estruturalismo II: o canto do cisne, de 1967 a nossos dias. Tradução de Álvaro

Cabral. Bauru, SP: Edusc, 2007, p. 348-349. 23

Cf. L. M. Bernardo, op. cit., p. 12. 24

A filosofia de Éric Weil tem despertado interesse e tem sido estudada por pesquisadores de várias partes do

mundo: além da Alemanha, berço da formação intelectual do pensador, e da França, onde se desenvolve sua

filosofia, há ainda Itália, Bélgica, EUA, Romênia, Portugal, Burkina Faso, Chile e Brasil. 25

Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., p. 29. 26

Existe uma organização temática e sistemática presente nos diálogos de Platão cf. V. Goldschmidt. Os

diálogos de Platão: estrutura e método dialético. São Paulo: Loyola, 2002. O mesmo ocorre com Hegel cf. V.

Safatle. Curso sobre a Ciência da Lógica de Hegel: aula 1. São Paulo: USP, 2011, p. 7ss.

17

Com efeito, depois da Lógica da Filosofia, Weil publica apenas dois trabalhos de

envergadura dedicados a autores individuais, respectivamente Hegel e Kant – e curiosamente

Kant depois de Hegel. Filosofia Política e Filosofia Moral, que são desdobramentos da

Lógica da Filosofia, no que concernem às categorias Ação e Consciência, podem, igualmente,

ser encaradas na mesma perspectiva. Em se tratando da Consciência, é o discurso kantiano

que aparece em viva luz, a ponto de Marcelo Perine considerar a Filosofia Moral como o

texto mais kantiano pós-hegeliano de Weil.27

No que diz respeito a Ação, comumente tida

como a categoria na qual é Marx quem aparece, é preciso levar em consideração a presença de

Hegel, sobretudo se se considera que a categoria da Ação é aquela na qual Hegel já se

encontra subsumido. Aliás, a Ação é a categoria que possui, com conhecimento de causa, a

maior clareza de ser pós-hegeliana no sentido de que ela sabe que é (tem consciência), do

ponto de vista histórico, uma tradução de Hegel (cf. HE, p. 135). A própria presença de Marx,

como discurso dominante dessa categoria,28

subscreve nosso entendimento, pois Marx é o

filósofo que se propõe realizar a filosofia que, para ele, é a filosofia de Hegel. E Weil sustenta

que Marx, ao lado de Engels, é o mais genuíno hegeliano (cf. HE, 17ss e 123ss).

De outra maneira: trata-se de uma retomada do Absoluto sob a história e, portanto, filosofia

não mais do ponto de vista de Deus (cf. LF, 105), mas do homem. Além do mais, é ponto

pacífico que quanto a sua estrutura, Filosofia Política guarda total identidade com a Filosofia

do Direito de Hegel sem, contudo, dar o mesmo tratamento aos problemas. Creio poder

afirmar dessa obra o mesmo que Ricoeur afirma da categoria do Absoluto: função hegeliana,

conteúdo não hegeliano.29

Isso para ilustrar que a organização do sistema como um todo

pressupõe um kantismo pós-hegeliano.

Ora, a Introdução da Lógica da Filosofia é um movimento do filosofar que, recriando

retrospectivamente as condições necessárias do sentido do próprio filosofar weiliano, fornece

a chave de acesso ao sistema como lógica do discurso.30

Nesse sentido, o pertencimento da

Introdução e o lugar que ocupa no escopo do sistema, como sugere Bernardo, não é

acontecimento fortuito, uma vez que, para Weil, todo particular precisa justificar seu lugar

27

Cf. M. Perine (Palestra). 28

Sobre a caracterização da categoria da Ação na Lógica da Filosofia como marxista cf. A. Tosel. Action

reisonnable et science sociale dans la philosophie d’Éric Weil in Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa,

série III, vol. XI/4(1981): p. 1162ss e mais recentemente cf. J. Quillien. La reprise, Kant, Marx. Cultura –

Revista de História e Teoria das Ideias, Lisboa, 31 (2014): p. 56. 29

Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 410. G. Kirscher corrobora ao indagar que ao publicar uma Filosofia Política, na

linha de Hegel, Weil, não “subordina as esferas da moralidade individual e da organização econômica e social à

esfera política? E se Weil não chega a qualificar o Estado como divino sobre a terra, não foi ele quem declarou

que não se pode pensar a política senão do ponto de vista do governo?” cf. G. Kirscher, art. cit. p. 43. 30

Cf. L. M. Bernardo, op. cit., p. 65.

18

dentro do sistema, e dessa constatação é preciso extrair todas as consequências. Entre as quais

a que advogamos contida na ideia de que a organização sistemática da filosofia é também

compreensão de si mesma e, destarte, comunica uma posição filosófica assumida com

conhecimento de causa, vale dizer, da visada recorrente sobre o todo do discurso (cf. LF, 103).

A história da filosofia é exatamente essa tomada de consciência por parte da filosofia cujo

resultado é a filosofia sistemática – a reflexão da filosofia sobre sua própria história (cf. LF,

104). Ora, é enorme a variedade dos discursos filosóficos desde o surgimento da filosofia no

século VI a.C. De lá para cá, só cresceram e se acentuaram o montante das divergências

filosóficas.

Além do arbítrio no conflito das interpretações que essa problemática suscita, há também,

certamente, o problema da escolha, problema que não é particular de nosso tempo, mas nele

potencializado ao extremo. Uma ideia, ou melhor, uma questão, que sabemos ser problemática

há muito nos estudos de filosofia, é a da escolha de uma filosofia. Sabemos que existe

filosofia para todos os tipos e gostos – muito embora gosto não devesse ser aquilo pelo qual

alguém define sua escolha por determinada filosofia. E todas elas, a despeito de suas

diferenças, muitas vezes extremamente radicais e diametralmente opostas, mantêm a

pretensão de atingir a verdade mesmo que seja negativamente, ou seja, desautorizando aquilo

que se apresenta como verdade sem sê-lo efetivamente ou sê-lo ainda que parcialmente.

Os critérios da escolha de uma filosofia como resposta a essa última problemática são tão

diversificados quanto as próprias filosofias. O mesmo pode ser dito do abandono de uma

filosofia por outra: é o esgotamento de certa filosofia em oferecer respostas satisfatórias que

permite outro tipo de escolha, por vezes considerando o avanço em relação à precedente, ou

mesmo saltando de uma para outra sem aplicar qualquer critério de decisão, inclusive por

ignorar o critério que aplica. Compreendemos, com Weil e Ricoeur, que, sem essa visada, a

história da filosofia não passaria de uma lição de ceticismo, na qual as diversas filosofias

estariam condenadas ao desfile solipsista mediante à contradição e à destruição mútua (cf.

HV, 46) pelo embaraço da abundância das explicações (cf. PR I, 257).

Ocorre propriamente que o filósofo não pode deixar de olhar para sua própria história,

capítulo da história humana que recebe sua elaboração, e deixar de pensar sobre os vestígios

daquilo que o constitui no presente. Assim, a história da filosofia, sem se reduzir a uma

coleção de posições sobrepostas, permite um direcionamento a despeito da irredutibilidade

existente entre as distintas correntes e/ou singularidades filosóficas. Repitamos: refletir

19

sistematicamente acerca da filosofia é compreender a própria história da filosofia. Ora, como

há muitíssimas digressões em direções variadas, é preciso um procedimento para que o

filósofo possa lançar mão a fim de articular o conjunto das filosofias na elaboração desse

monumento que é a história da filosofia. Para Weil e para Ricoeur esse recurso é a retomada,

conceito “que permite a aplicação da lógica à realidade histórica [...] que permite a

compreensão dos discursos concretamente sustentados pelos homens do passado e do

presente” (LF, 123), ou ainda, operação de segundo grau na qual o filósofo compõe a história

(cf. HV, p. 39).

Noutros termos: mediante esse recurso o filósofo tem a possibilidade de retomar tudo que

se encontra estilhaçado. E retomar significa aqui poder reunir, reagrupar, recuperar no

conjunto das digressões múltiplas aquilo que é possível apreender numa mesma modalidade

em que os discursos se formulam. Anuncio minha tese: a hermenêutica de Paul Ricoeur é uma

hermenêutica de retomadas. História e Verdade atesta muito bem essa afirmação: a enérgica

recusa de dissociar elucidação dos conceitos diretores e intervenção na crise civilizatória (cf.

HV, 08) nada mais é do que uma nova maneira de afirmar que a reflexão filosófica está

assentada na articulação atitude-categoria, no melhor estilo da Lógica da Filosofia.

Ora, Ricoeur afirma que existe uma palavra que retoma reflexivamente os temas geradores

de uma civilização em marcha (cf. HV, 09), nesse sentido, é palavra que ouve antes de ser

pronunciada, é palavra que observa as atitudes humanas na história e se permite categorizar

essa experiência, cada uma dessas experiências ou, pelo menos, tantas quantas forem

possíveis devido à situação de estilhaçamento em que se encontram.

Por essa perspectiva, Ricoeur não se propõe o empreendimento das interpretações globais

da história, muito embora tal empreendimento também não esteja interditado. Pensar noutra

via, a via do próximo em próximo, do problema em problema, a via que privilegia o

particular, isto é, aquela que dá proeminência e voz ao singular.

Manifestado esse quadro convém, agora, delinear a problemática de cada um dos três

capítulos desta tese. No primeiro pensamos inicialmente poder situar o nosso lugar de

compreensão a partir da relação poesia e filosofia para em seguida articular uma reflexão

acerca do sentido e da violência tomando por base A Simbólica do Mal como uma espécie de

reflexão que, não podendo confrontar a violência diretamente, esmiúça seus significados

através dos símbolos originários: mancha, culpa e pecado. Esse longo desvio pelos símbolos

que escrutina as sendas da origem do mal, confere à relação profundamente imbricada entre

20

mitos e logos a base sobre a qual é possível ser pensada a violência enquanto constitutiva na

sua relação com o discurso filosófico. Realizada essa apreensão tentamos num segundo

momento situar o lugar da violência tomando como referência o debate de 1967, linguagem e

violência, entre Weil e Ricoeur no qual, pela comparação de ambos, é realçada as estratégias

utilizadas por cada um dos filósofos contra esse adversário comum. Essa reflexão deságua

num levantamento da situação do nosso tempo, tendo como polos balizadores a violência, sob

a faceta do niilismo, e a própria filosofia. Ao fim desse capítulo, ensejamos uma abordagem

de caráter amplo sobre a tarefa do filosofar ligado prioritariamente à reflexão weiliana em que

é revelado o aspecto fundamental da tomada de posição como aspecto irrenunciável da

filosofia que se quer realizada.

Abrimos o segundo capítulo com uma pequena nota sobre o esquematismo em Kant cuja

finalidade, de caráter meramente introdutório, visa situar o leitor quando das várias remissões

feitas a esse conceito. O significado da tradução do termo reprise na sequência cumpre dupla

função: tentar dar corpo a um problema ainda muito incipiente no âmbito dos pesquisadores

weilianos de língua portuguesa e tornar o mais claro possível o significado do conceito quanto

a própria pesquisa em andamento.

No entanto, a temática basilar do capítulo gira em torno da função operatória da retomada,

analisada no contexto da composição da hermenêutica ricoeuriana. Procedendo pela releitura

de sua própria obra, Ricoeur demonstra como uma questão antes marginalizada em seu

percurso é recuperada respondendo na direção do sentido e como essa leitura de si mesmo é

correlata ao conceito de apropriação. Nessa linha é que sugerimos a apreciação que Ricoeur

faz acerca da Lógica da Filosofia leitura que, confrontada com a crítica de Labarrière e

contrastada com a interpretação que Marcelo Perine faz dessa leitura, revela sua apropriação

do discurso filosófico de Weil. A tomada de posição de Ricoeur em defesa da continuidade do

discurso filosófico weiliano nessa confrontação não se diferencia daquilo que a hermenêutica

ricoeuriana realiza na sua relação com os “mestres da suspeita” quanto à análise histórica –

ambas discussões circunscritas mediante o desafio imposto pelas rupturas. Essa orientação da

hermenêutica encontra sua justificação na decisão pelo projeto da não violência – trazido à

tona pela Lógica da Filosofia – visível quando observado na narrativa do processo jurídico.

No terceiro, tratamos da complexa relação de Weil e Ricoeur com a filosofia de Hegel. Eric

Weil mesmo reputando a Hegel como aquele que empreendeu o projeto, em matéria de

filosofia, da mais elevada estatura, compreende que seu intento é projeto inacabado. Paul

Ricoeur, envolvido com Hegel de maneira semelhante, oscila entre reconhecimento e crítica

21

da filosofia hegeliana o que faz dela, para a hermenêutica, imprescindível ao mesmo tempo

em que impossível de ser realizada. Ainda no tocante a relação com Hegel, apresentamos a

leitura de Ricoeur ao Hegel de Weil na Lógica da Filosofia intencionando confirmar como

suas leituras sobre o filósofo do absoluto são convergentes. A última parte desse capítulo

retorna a questão proposta no início acerca da realização do projeto da filosofia pela via política,

agora, respeitante ao poder mediante o paradoxo político e ao exame da Filosofia Política. Essa

articulação temática permite compreender como o projeto filosófico precisa considerar a

travessia pelas particularidades das relações de poder sem abrir mão de uma orientação rumo à

universalidade, ao mesmo tempo em que integra a experiência singular concreta do indivíduo.

Portanto, é uma theoria, uma visão do todo, que é acionada quando do desafio da superação da

violência na história.

Os dois últimos textos que compõe os anexos foram produzidos enquanto tentávamos tornar

mais clara a problemática da presente tese. Nesse sentido, como artigos vinculados a mesma

pesquisa, acreditamos que a presença deles, mesmo que a título suplementar, possa se prestar a

esclarecimentos de passagens que se revelem obscuras durante o percurso no corpus de análise

propriamente.

22

1. Pensar o sentido e a violência

La liberté plonge dans le fonds chaotique de l’être

Paul Ricoeur

1.1. Residual poético e o entretempo da filosofia

Da mesma maneira como os autores pelos quais nos orientamos nessa tese, pretendemos

começar nossa reflexão pela entrada que por si só não se justifica e aguarda de todos aqueles

que tomarão contato com esse trabalho uma generosa dose de benevolência a fim de poder

comprovar o que se propõe. É em termos de uma narrativa da promessa que iniciamos esse

trabalho, ou melhor, como uma aposta de ainda poder dizer algo em favor da reflexão filosófica.

Isso porque mesmo em filosofia (e esse é um dos pressupostos para ambos pensadores aqui

destacados), frequentemente hoje em dia, muito se ignora do que efetivamente está em questão.

Ao longo dos séculos, muito embora problemas tenham sido adequadamente tratados e outros

tantos até mesmo encontrando resolução satisfatória, é provável que questões primordiais

herdadas pela filosofia acabaram por sedimentar-se e, eventualmente, ser esquecidas. Contudo,

a filosofia insiste ainda tratar “de coisas tão antigas, tão profundas que são recobertas por todas

as camadas do esquecimento não pensante” (FM § 21, b).

Do que se trata então quando falamos da filosofia? O que nos impõe a reflexão filosófica

quando o implicado é a própria filosofia? Por quais critérios escolhemos e nos mantemos

diante de determinada filosofia ou a abandonamos para, em seguida adotar outra orientação,

se nos for permitido responder as questões anteriores? Partimos de uma convicção a propósito

dessas indagações: a filosofia tem a ver com o envolvimento de algo que a antecede e a

compreende, mas que só se torna compreensível por meio dela. Sob essa ótica, a filosofia é

um posicionamento diante da realidade, ou se se preferir, diante dos fatos que constituem o

todo da realidade na qual a própria filosofia é um deles.

O agravante é o frequente esquecimento do fato de a filosofia ser apenas mais uma voz em

meio a outras, além da mesma se subdividir nas mais disparatadas vertentes. O chocante, para

falar como Ricoeur, é o fato de que sempre se pode dizer de uma questão que ela não é

filosófica!1 A dificuldade aumenta quando, não podendo falar (não sem ressalvas) da filosofia

no singular, constata-se que há pluralidade de filosofias. No entanto, ainda assim falamos de

filosofia, conscientes ou não de que há outras falas, outros discursos igualmente dispostos a

1 Cf. Ricoeur apud J.-M. Gagnebin. Da dignidade ontológica da literatura in Fernando Nascimento e Walter

Salles (Org. e trad.). Paul Ricoeur; ética, identidade e reconhecimento. Rio de Janeiro: PUC/Rio, São Paulo:

Loyola, 2013, p. 37.

23

tratar dos mesmos temas e problemas, com abordagens muitas vezes concorrentes e contrárias

quanto ao que tomam a analisar. Tudo isso sem se importar que a escolha por esse ou aquele

discurso, essa ou aquela filosofia transcenda a questão de gosto. São poucos aqueles, mesmo

entre os filósofos, que se deixaram apanhar por esse problema, mas esses seguramente

merecem a posição que têm no universo da tradição filosófica.

Não é incomum atualmente, no âmbito da chamada sociedade da informação, cuja

linguagem é definida pela hipertextualidade, não saber exatamente a que problemas certas

respostas foram inicialmente sugeridas. O tempo da convivência de todos os discursos foi

primorosamente identificado como o tempo do conflito das interpretações: quando muito se

fala sobre tudo é preciso temer que nada ou pouquíssima coisa seja dita. De igual modo,

quando todos falam ao mesmo tempo e, assim, se leva muito barulho para as ruas, deve-se

considerar seriamente a possibilidade de uma grande dificuldade de entendimento entre todos

a respeito do que é dito.2

Não sabemos o quanto a situação presente assim descrita exige que se inicie uma reflexão

como esta pela ênfase do sentido e da violência. Entretanto, ao menos para os autores que

tratamos de acompanhar, uma incursão pelo sentido, num ambiente caracterizado como é o

nosso pela primazia da violência, faz todo sentido. Porém, não nos parece que encontraremos

de imediato o sentido se nos dirigirmos ao que poderia ser identificado como o sentido hoje.

Como dissemos, essa questão (ou, se se quiser, noção) está na base da própria filosofia, e a ela

não é possível aceder sem um desvio que procure recuperar, não uma anterioridade, no

sentido de originalidade arcaica, mas, o que importa lá e cá, o percurso.

O maior defeito de todos que estudam filosofia e dela retiram alguma lição é a compreensão

de que não há acesso imediato à realidade. A reflexão filosófica costuma ser um trabalho, se se

tem alguma clareza sobre o significado da palavra trabalho, muito penoso. Mas não por isso

deixa de ser gratificante e, porque não, prazeroso, como qualquer outra atividade que alcança

seu fim e, por assim dizer, atinge sua excelência – obtém aquilo que se propôs realizar.

2 «(...) une époque qui cherche une primière catégorie et qui, de plus, est consciente du fait qu’elle cherche, et

qu’elle cherche une catégorie primière, non pas un fait ou une réalité, une telle époque ne connaît plus la

pauvreté qu’elle cherche. Le malaise que l’envoie á la quête d’une telle catégorie est provoqué par l’embarras

des richesses. Elle sait trop de choses, trop de vérités, elle connaît trop de contenus, trop de situations. Quand

elle trouve ce qu’elle a cherché, elle ne peut le saisir et le garder qu’au prix du plus grand effort : les mots dont

elle dispose sont changés d’histoire, ses concepts sont entrés en relations infinites e indéfinies. Or, elle cherche

un fondement simple et qu’elle devra garder simple. La difficulté appartient à la nature même de la tâche. » (LP,

91). Noutro lugar a mesma observação: «Il semble que nous souffrions d’un embarras dês richesses; de même

l’on a parfois l’impression que notre époque dispose de toutes sortes de réponses mais ne sait pas toujours

précisement à quelles qustions ces réponses pourraient correspondre. » (PR I, 07).

24

A filosofia procede por uma série de mediações com o intuito de se aproximar daquilo de

que aborda. E é somente com esse caráter de aproximação que o filósofo se permite dizer

alguma coisa. De forma alguma isso implica que aquilo que é dito pelo filósofo não tenha

nenhuma consistência por ter se deixado levar por elucubrações, por vezes muito distintas do

que de imediato deveria ser tratado. Muito pelo contrário, é exatamente por não se deixar

permitir um fácil acesso ao real – até porque não há acesso fácil ao real – que a filosofia acredita

dispor de um discurso mais equipado para o tratamento dos diversos temas que compõe o todo

da realidade, especialmente quando seu tema é o Todo. No entanto, nada disso impõe que a

filosofia obtenha a última palavra acerca de tudo, seu discurso é tão somente mais um, tem a

mesma legitimidade de qualquer outro que queira se dirigir aos problemas que a realidade

suscita. Diremos até, como Éric Weil, que a filosofia possui o mais fraco entre todos eles por ser

discurso razoável (cf. LF, 14ss), mas o que aparece como virtude para o filósofo torna-se vício

para os demais. O que toma por sua força é, aos olhos dos outros, sua fraqueza. O filósofo terá,

assim, de aprender a conviver com essa dura lição que o empurra para a solidão.

Mas o filósofo não está absolutamente sozinho, ele partilha a companhia dos que como ele

(outros filósofos, pensadores, poetas, literatos, homens de cultura) são incapazes de aceder ao

real sem adotar um conjunto de desvios que, frequentemente, parece levá-los bem longe das

preocupações momentâneas que costumam dar início ao processo do pensamento. Outros

filósofos (e filosofias) que como ele também operaram e operam levando sempre em

consideração esse de afrontamento de cerco, que não consegue se aproximar senão

empreendendo várias voltas. Por mais paradoxal que pareça é distanciando-se do que de

imediato investiga que a filosofia realmente se torna próxima de seu objeto, isto é, próxima de si

mesma. Um desvio pelos vastos continentes do pensamento parece ser uma exigência para

todos os que querem demarcar suas próprias fronteiras. E essa é, sem dúvida, uma das maiores

lições colhidas do filósofo da Lógica da Filosofia, como aquele da hermenêutica filosófica.

Se pudermos nos valer de uma imagem, podemos dizer que a filosofia é tanto ampla

quanto profunda. Uma amplitude que nos remete ao longínquo e uma profundidade que tem a

ver com a densidade do agora. Em ambos os casos a filosofia se perde numa espécie de

opacidade do real, seja a do tempo remoto, seja a da prospecção do presente. Em cada uma

delas é a mesma modalidade de resistência à reflexão que se impõe. Mas é dessa forma, sem

medo de se perder, que a filosofia deve encetar a superação do que se apresenta como

distâncias invencíveis. Algo longe e profundo, profundo porque longe, longe porque profundo

25

toca a filosofia. É a esse algo que a filosofia sente necessidade de responder. É para essa

alguma coisa que a filosofia se sente impelida a voltar-se sobre si mesma.

É essa interpelação do logos, desde o seu surgimento, que faz o problema do sentido e da

violência assumirem para as filosofias de Eric Weil e de Paul Ricoeur um lugar de destaque.

Para eles, estes são problemas constitutivos da própria filosofia: o logos somente surge muito

tempo depois de os homens terem se organizado em comunidades e, portanto, de terem sido

atravessados por todos os conflitos nascidos no seio destas. Noutros termos: antes do

pensamento, há vida humana e vida orientada. Aliás, a pergunta inicial que funda a filosofia

quer dar conta daquilo que orienta o mundo. O ambiente que antecede o nascimento da filosofia

é compreensível para a própria filosofia. No entanto, é o ambiente em que não havia nenhuma

divergência entre o dito e o vivido como ocorre no tempo da filosofia.

Para Weil, isso ocorre após ter sido rompido o laço que fazia coincidir linguagem e

condição, lugar em que nada precisava ser dito por que o indivíduo tinha exata consciência do

que precisava fazer (cf. LF, 135). O que foi rompido, o que foi perdido é o que dará filiação a

todos os romantismos e seus sonhos de nostalgia. Entretanto, esses “primitivos” que foram

capazes de detectar seu próprio dilaceramento, de forma alguma tomaram isso como

problema, seu problema, a bem da verdade “ser duplo não é, para eles uma doença... é seu

estado natural” (LF, 155). Somente para a consciência refletida do homem moderno, esse

observador de si próprio, que vê o dilaceramento do homem no contexto do pensador

primitivo, essa duplicidade é tomada como um problema – quem sabe até, como o mais grave

entre os problemas que enfrenta.

Não é o que ocorre, por exemplo (mas não somente), com a idealização que se faz sempre

a propósito de um retorno a um tempo historicamente indeterminado, tomado como superior

em tudo, em contraposição à vida contemporânea? Nietzsche foi, certamente, um dos

primeiros entre os modernos a sugerir a parada na época trágica dos gregos, ambiente, para

ele, em que se pôde ter a visão do todo num lugar. Eis porque em Nietzsche o esteta não só

antecipa o filósofo, mas supera-o. Sua crítica a Sócrates, a Eurípedes e a toda ciência moderna

encontram nessa dimensão sua raiz mais profunda.3 Ferdinand Tönnies, fez escola ao acentuar

e assentar sua clássica distinção entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft)

a partir do Nietzsche de O nascimento da tragédia, obra em que viu a representação

3 Nietzsche faz uma imagem idealizada da alta cultura das sociedades pré-capitalistas e, segundo Lukács, sua

crítica romântica da civilização capitalista é centro de sua estética e, por conseguinte, de sua filosofia. Cf. M.

Löwy. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998, p. 37.

26

idealizada de uma comunidade dionisíaca.4 Essa lembrança é muito menos uma crítica com

todos os seus predicados do que uma compreensão do fenômeno. Dizemos isso por

compreender o problema partilhado por todos os romantismos como da mais alta importância.

Ora, essa orientação se caracteriza pela dolorosa convicção de que faltam ao real presente

certos valores humanos essenciais que foram alienados, ou seja, a nostalgia do que foi

perdido é o centro dessa visão. Aquilo que perdura como objeto dessa nostalgia – seja ele

inteiramente mitológico ou lendário, como, por exemplo, o Éden, a Idade de Ouro ou a

Atlântida perdida – é sempre a idealização do passado.5

Éric Weil refere-se a esse período como o tempo do não mais: lugar da coincidência entre

situação e linguagem, fonte de todos os reclamos da volta de uma dignidade outrora

imaginada e vivida em plenitude. Tempos imemoriais, sem datação, mas existente como

sentimento. Lívio Sichirollo chama atenção para o fato de que nossa época “é o que ela é”,

nos cabendo “apenas compreendê-la em função de sua (suas) moral (morais) histórica(s) e

de sua política, nós vivemos sempre num ‘entretempo’”.6 Daí porque, longe qualquer

censura, a perspectiva romântica trazida a lume, nos ensina, ela tem a função de nos instruir

sobre nosso próprio tempo e, portanto, nos informa sobre nós mesmos.

Para Weil, temos “vivido na feiura do ainda não e do nunca mais” (LF, 26). Nós nos

apreendemos nesse entretempo e somente o superaremos observando as duas pontas situadas,

respectivamente, no residual da linguagem e na aposta do discurso. Uma aposta que se deixa

4 Cf. F. Volpi. O niilismo. Tradução de Aldo Vannucchi. São Paulo: Loyola, 1999, p. 67.

5 M. Löwy e R. Sayre. Romantismo e política. Tradução de Eloísa de Araújo Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1993, p. 21 e 22. Uma expressão disso é, seguramente, o que Ricoeur qualificou de a segunda fonte do

neoconflitos das sociedades avançadas, o mito do simples, ou seja, "a tentação de se construir, ao lado da

sociedade global, por demais complexa, uma sociedade neo-arcaica, artesanal e agreste, francamente

institucionalizada... ou pelo menos instituída no nível de economia de subsistência e de troca" (HI, 165). Essa

tipificação serve como matriz heurística no intuito de contrastar certos posicionamentos esquerdistas, que

mirando sua crítica no sistema capitalista, sentem-se impelidos a resgatar princípios e valores que por si sós são

impotentes sem o crivo resignificador que deve passar pela própria sociedade onde se encontram. O sonho

romântico de uma vida sossegada em meio ao caos urbano; a percepção de um lugar que em nada parece com o

que lhe fora descrito pelos seus antepassados ou mesmo pelo que chegou a ver e viver outrora em vaga

lembrança de infância. O esquerdismo ecológico é o filho desse romantismo que, como sabemos é anticapitalita,

mas que sempre se ignora, é também, em boa medida, reacionário. O mito do simples é perigoso porque me joga

numa inércia que idealiza um passado que não voltará mais, ao mesmo tempo em que me toma o presente

percebido não mais como meu. Toda análise que inicia com a expressão "na minha época..." incorre em grande

medida cair no imobilismo saudosista do mito do simples. Nesse caso é sempre bom dar ouvidos a oportuna

advertência de Éric Weil de que “on n’échappera pas aux problèmes de son temps en alléguant la situation no

problématique d’autres époques” (PM § 16 a). Não nos enganemos quanto ao poder destruidor dessa violência

acumulada, entre estas duas sociedades que dividem o mesmo espaço histórico. A intolerância é o sintoma que

informa a não superação do ciclo vicioso que são os dissidentes e os repressores. 6 « l’époque est ce qu’elle est, nous pouvons seulement la comprendre en fonctions de sa (ses) morale (s) historique

(s) et de sa politique ; nous vivons toujours dans un «entre-temps» » L. Schirollo. Morale et politique, actualité de

Weil (et Kant) in Actualité d’Éric Weil, Actes du collloque International, Chantilly 21-22 mai 1982, p. 268.

27

instruir por esses rumores, cujos símbolos são sua codificação, mas que ao se deixarem

interpretar fornecem os passos seguintes.

Dessa feita é que se pode descrever a Lógica da Filosofia como um percurso que vai da

verdade do silêncio ao silêncio da sabedoria. Pois é no entretempo que tudo o que é dito pelo

discurso, a partir da linguagem, é para ser compreendido no intuito de nada mais precisar ser

dito. A tarefa é a superação de todas as formas de violência, e se algo insiste ainda em ser dito,

é porque a violência age na história. O perigo que sempre ronda é a idealização que se pode

fazer desses rumores que sobrevêm em linguagem poética, como adverte Ricoeur:

a parada no trágico, a complacência no trágico, contém em si sutis

perversões; as consciências sem recursos profundos procuram nele um álibi

fácil; o niilismo nele se enfeita de cores estéticas e introduz

fraudulentamente a crueldade, a fruição do sem-sentido, o amargo prazer de

sofrer e fazer sofrer, de destruir. (L3, 136).

De outro lado, essas relações humanas, como todas as demais, não são desprovidas de

sentido porque violentas. Pelo contrário, foram capazes de conduzir os seres humanos durante

séculos dando contorno às suas vidas, permitindo que os humanos daquele tempo fossem

capazes de falar de si mesmos, primeiramente por intermédio da linguagem poética (mythos),

em seguida organizando discursos (logos). O que observamos é que temos numa e noutra

filosofia o esforço para preservar o sentido a despeito da violência inerente às ações humanas.

Sobretudo, por compreender que a filosofia herda palavras plenas de sentido que não somente

a precedem, mas igualmente a interpelam.

Esse nos parece ser o ponto de partida comum a ambos filósofos em questão: a interpelação

que sofre a reflexão filosófica originariamente. A filosofia nasce provocada por uma mensagem

que a antecipa em séculos, contudo, somente pode ser compreendida com ela. Ou, se se preferir,

como diz Ricoeur: “Mithos já é logos mas há que retomar no discurso filosófico” (SM, 28). Para

Weil a filosofia não nasceu, ela apenas esperou pelo filósofo, precisamente esperou pela

pergunta do filósofo (cf. LF, 161). Eis porque um sentido antes plenamente vivido, porque

inseparável da vida e há muito perseguido, informa, mesmo que inconscientemente, o homem:

“o pensamento não surge do pensamento, mas do que não é pensamento” (PM, § 22 e).

Para Weil, “[O] homem é filósofo porque não está na presença, mas a ausência que o

impele a compreender é também o modo no qual ele obtém a presença” (LF, 594); “o homem

é poeta antes de ser filósofo, e depois de tê-lo sido” (LF, 594). Poesia é compreendida num

sentido em que arte e vida estão demasiadamente misturadas. Trata-se, enfim, da poesia

28

fundamental, aquela na qual é criado todo o sentido concreto. A poesia, para dizer de forma

paradoxal, é a compreensão do que “há de mais incompreensível no homem”.7

Recuperar o sentido desses rumores, saber ouvir esses murmúrios é a primeira habilidade

conferida à filosofia, mas ela não é a única nessa tarefa, antes dela é o poeta que ouve ou, para

falar como Ricoeur, são os poetas – sobretudo nesse ambiente que caracteriza a condição

moderna do homem – os primeiros a escutar a pequena voz perdida no tumulto incrível de

todos os sinais trocados (cf. CC, 229). É como hermenêutica, no sentido mais genuíno da

expressão (disposição radical para ouvir a mensagem), que a filosofia opera seu próprio

desenvolvimento. Por um lado, a poesia não compreende bem sua própria expressão: “o poeta

não sabe... se falou de si ou do mundo, e até se foi realmente ele quem falou, tal como ele se

‘conhece’. A poesia compreende, mas não sabe nem o quê, nem como” (LF, 596).8 Por outro,

se o poeta “não compreende” aquilo que ouve, é por ouvir e dizer honestamente o audito que

ele se revela superior. É aí que a filosofia tem consciência do fascínio que a presença,

revelada pela poesia, exerce sobre ela e que ainda não alcançou.9 Uma presença quase que

enigmática porque se reporta a uma origem não datada. Semelhante às antinomias kantianas,

essa origem “é aquilo que sempre está lá no seio da palavra atual. Trata-se, portanto, de um

anterior que é mais da ordem do fundamental que do cronológico” (CC, 201).

Daí porque a poesia nesse contexto nada tem a ver com a arte das rimas, métricas, escolhas e

posições verbais. Aqui “lidamos com algo incomparavelmente mais antigo que qualquer

distinção entre a arte e a vida, a arte e a verdade e todas as oposições que preenchem as

profissões de fé dos artistas e as acusações de seus críticos... Aqui, o termo poesia designa

aquela espontaneidade na qual a arte tem sua origem” (LF, 594-595). “Os poetas... não pedem

ao discurso o que encontram no sentimento. Mas a filosofia não conflita com eles nem é

depreciada por eles: aceita-os como são, porque neles ela descobre sua origem” (LF, 597). Weil,

tal como Ricoeur, se reporta com vigor e entusiasmo às fontes não filosóficas da filosofia.

Poder-se-ia facilmente deduzir desse ponto, como muitos o fizeram, que há uma disputa

entre poesia e filosofia, entre o poeta e o filósofo. Não se trata disso: admitimos uma dialética,

pois se o poeta é aquele que embaraça o conceito do filósofo, este não se sentirá menos filósofo

por querer apreender novamente num conceito (desembaraçar) aquilo que o poeta dissipa ao

7 M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 199.

8 Noutra passagem da LP « Xénophane suit Homère et ne peut être pensé sans celui-ci. Mais Homère ne peut

être compris (c’est-à-dire dans le concret : critiqué et repoussé) sans la catégorie élaborée et devenue

saisissable chez Xénophane. » (LP, 109). 9 Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 121.

29

anunciar. A filosofia é esse trabalho de recomeçar, atividade sempre disposta a apreender aquilo

que lhe opõe (e apõe) resistência (cf. LF, 551ss). Pois, para Weil, o que a filosofia quer

compreender “é precisamente o que não é coerente, não é discurso unido por uma categoria, não

é atitude impelida à unidade pela reflexão. Para a filosofia... a história tem seu sentido em sua

coerência, mas tem seu conteúdo no incoerente, no contraditório, na violência” (LF, 123).

Nessa perspectiva, “[A] filosofia é sempre a mesma, não porque ela persiste, mas porque

ela sempre recomeça. Assim como a poesia é a eterna juventude da criação, ela é a eterna

renovação do homem que se tornou outro para si mesmo” (cf. LF, 608). Mas ela o faz de

maneira diversificada, uma vez que age sempre com conhecimento de causa, não de sua

própria causa – isso, como dissemos, ela ignora – mas de todas as etapas do processo de seu

desenvolvimento. Nesse sentido, quando ela chega ao mesmo (agora outro) do qual partiu

torna-se consciente do ato próprio do significar assinalado desde o seu começo. Como

Ricoeur, podemos afirmar que, nesse caso, a tarefa da filosofia é acompanhar o trabalho

interno das interpretações sucessivamente divergentes e cumulativas que prosseguem através

dos séculos que chegam até nós (cf. CC, 198).

Chega a ser bastante reveladora a maneira como Weil compreende, em sua Lógica da

Filosofia, a mensagem anunciada por Parmênides e/ou por todos os que buscaram a verdade

absoluta e acabaram por descobrir que a linguagem é mentira, que somente o silêncio é a

coincidência com o outro que é verdade absoluta, isto é, que a verdade não é formulada e sim

vivida, e vivida fora da linguagem (cf. LF, 18). Como podemos observar, embora a verdade

não possa ser exposta, ela permanece acessível pela vivência. Parmênides não tem dúvidas da

precedência do silêncio em relação ao discurso e do acabamento do discurso no silêncio: é

este seu projeto. Em que pese falar, discutir e até mesmo reconhecer (negativamente) a

existência do erro, Parmênides é filho de uma “civilização desenvolvida”, para ele, o

resultado de seu projeto é a verdade do silêncio. Ser e linguagem identificam-se na unidade

eterna, imóvel, imutável, nenhuma pergunta é possível, qualquer resposta, inimaginável (cf.

LF, 134). Toda aparência, e a linguagem é aparência, é enganadora, daí porque se cai

facilmente no que não é e nunca é o que é (cf. LF, 140).

Não há como falar diretamente desse fundo histórico residual ao qual a própria filosofia

permanece vinculada. Qualquer aproximação deve ser indireta, desviante, por vezes até

tergiversativa, a fim de recuperar a mensagem que se faz ouvir como metáfora ou como

símbolo. A linguagem é violência, mas por ser linguagem ela faz sentido ao homem. Aliás, é

por fazer sentido ao homem que este pode chamá-la de violência: a violência jamais seria

30

historicamente anterior ao sentido se não fosse posteriormente compreendida logicamente.

Mesmo quando ainda não havia o logos, a existência no silêncio de todas as vivências, foi o

sentido que impulsionou a história humana, ou seja, aquilo que sempre pode ser transmitido,

não obstante a violência sempre implicada. Na memória de nossa cultura, forjada a partir das

mais distantes e diferentes civilizações, está presente o fascínio pela força e pela astúcia como

componentes indeclináveis do viver divino e humano.10

1.2. O enfrentamento da violência do desvio pelos símbolos: A Simbólica do Mal

É comum a Ricoeur, bem como a alguns dos seus intérpretes, acentuar que o seu projeto

inicial de uma filosofia da vontade ficou pelo caminho. O curioso, nesse âmbito, é a

coincidência com a curvatura à hermenêutica que sofre sua filosofia para não mais sair dela.11

A

Simbólica do Mal, de 1960, é o texto que marca esse momento. Malgrado sua hermenêutica

nessa fase possuir um caráter muito limitado, como o próprio filósofo reconhece12

, ela vai

adquirir musculatura ao longo dos anos seguintes. Ela apreende determinações que presidirão

empreendimentos futuros de destaque, tais como os temas da metáfora e da narrativa.13

Mas é

aqui que é esboçada sua primeira definição de hermenêutica, concebida como uma decifração

de símbolos entendidos como expressões de duplos sentidos a partir de uma interpretação literal

que leva a uma segunda interpretação mais rica (cf. RF/AI, 71-72), porém permeada ainda pela

opacidade. Assim, a explicação da linguagem simbólica, originada nesse texto, é a acentuação

10

Assinala Éric Weil; « Le progrès vers un état de paix et d’honnêteté n’est pas un rêve, puisque l’histoire de

l’humanité en montre la réalité : le simple fait que nous avons fini par considérer la violence ouverte ou

camouflée comme un mal en est la preuve, tandis que, pendant des millénaires, l’humanité admirait sincèrement

le fort et le rusé, le violent Archille et l’esprit fertile en inventions d’Ulysse, pour ne citer que des noms qui nous

viennent d’une civilizations hautement développée. » (EC I, philosophie, 170). 11

O projeto inicial que contaria com três volumes Filosofia da vontade I, infinitude e culpabilidade, Filosofia da

vontade II, A Simbólica do Mal e um terceiro prometido, mas nunca escrito, cf. Pellauer. Compreender Ricoeur.

Tradução de Marcus Penchel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 63, cf. também SM, 26, nota e RF/AI, 65. 12

Em TA, 41 Ricoeur afirma que reduzira a hermenêutica à interpretação dos símbolos, isto é, a existência de um

duplo sentido no qual um segundo é sempre encoberto por um primeiro. O mesmo ocorre quanto ao “excesso de

sentido característico das obras literárias” (TI, 93). Um duplo sentido num determinado discurso, verbal e não

verbal, explícito e implícito, definem, para Ricoeur, o que ele entende por obra literária (cf. TI, 94). Razão pela

qual a obra literária não pode ser abordada tão diretamente, justamente por não estar articulada, de imediato, ao

nível lógico (cf. TI, 103). 13

«Le mythe... il présuppose la médiation du récit et celle de la temporalité.» F. Dosse. Paul Ricoeur: le sens

d’une vie, op. cit. p. 282. A Simbólica do Mal dá inicio a uma filosofia da imaginação cujo Tempo e Narrativa

não é senão ainda a passagem dessa filosofia (cf. RF/AI, 120). “La symbolique du mal, La métaphore vive e

Temps et récit aspiram mesmo, sob várias formas, ao título de poéticas, menos no sentido de uma meditação

sobre a criação primordial do que no de uma investigação das múltiplas modalidades daquilo a que chamarei

posteriormente uma criação ordenada, ilustrada não apenas pelos grandes mitos sobre a origem do mal, mas

também por metáforas poéticas e enredos narrativos” (RF/AI, 66). “O conceito de hermenêutica sofre uma

verdadeira dilatação em contato com as ciências linguísticas. A hermenêutica do símbolo vai sendo substituída

por uma hermenêutica da linguagem em geral”. S. de G. Franco. Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul

Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995, p. 53.

31

da dimensão linguística da nossa experiência com o inconsciente (cf. CC, 100).

Segundo Pellauer, Ricoeur sublinhou a maneira como símbolos da falta ou erro prendem-se à

experiência. No caso em voga, em A Simbólica do Mal, considerando essa experiência sob a

mediação da linguagem, notadamente através da linguagem dos mitos referentes à origem e ao

fim do mal.14

Assim, simbolicamente mediatizada, tal experiência humana é trazida à

linguagem e encontra-se já desde sempre antecipada; todo o real se apresenta à maneira de um

texto que pode ser lido.15

Para Ricoeur, ainda segundo Pellauer, três são as atribuições dos mitos: envolvem toda

humanidade numa história ideal; narram um tenso direcionamento dessa humanidade entre um

início e um fim de sua experiência para, finalmente, ensejarem atingir o enigma da existência

humana.16

Numa palavra, “o mito tem uma carga ontológica pelo fato de que aponta para a

conexão entre nossa realidade essencial e nossa existência histórica efetiva, como uma verdade

universal de caráter temporal e concreto cuja forma narrativa não pode ser reduzida a um

conceito”.17

Ricoeur manteve-se muito atento ao fato de as palavras ricas de sentido sempre

precederem o discurso conceitual e, de imperecíveis, continuarem a interpelar o filósofo.18

Nas

palavras do próprio hermeneuta: "É... pelas expressões menos elaboradas, mais balbuciantes...

que a razão filosófica se deve deixar interpelar. Assim, há que proceder de forma regressiva e

retroceder das expressões 'especulativas' às expressões 'espontâneas'" (SM, 21).

A partir dessa compreensão antecessora à reflexão, novas determinações serão acrescidas

ao que designará por mitos. Assim, os mitos, longe de serem uma explicação errônea por

meio de imagens e de fábulas, são, tal como entendidos pela história das religiões, narrativas

de uma tradição antiga sobre acontecimentos que tiveram seu lugar na origem dos tempos,

cuja destinação, de certa forma, funda a ação ritual dos homens hoje e, de maneira geral,

informa ações e pensamentos pelos quais o homem se compreende a si mesmo no seu mundo

(cf. SM, 21).

Justifica-se, assim, para Ricoeur, o porquê de o mito precisar perder suas pretensões de

explicação, deixar excluir qualquer intenção etiológica, uma vez que não podemos mais religá-

lo, quanto ao seu tempo, à nossa história ou mesmo seus lugares à nossa geografia. Tudo isso se

14

Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 59. 15

Cf. M. D. Costa, Introdução à edição portuguesa de TA, p. 12. 16

Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 59. 17

Idem. 18

Cf. M. da P. Villela-Petit. Perspectiva ética e busca do sentido em Paul Ricoeur. Síntese – Revista de Filosofia,

Belo Horizonte, v. 34, n. 108 (2007): p. 07.

32

perdeu. No entanto, privado de explicação, o mito ganha em termos de capacidade de

exploração e compreensão, isto é, cresce a sua função simbólica cujo poder é descobrir o elo

entre o homem e o seu sagrado. Paradoxalmente falando, segundo Ricoeur, é desse modo

desmitologizado que o mito, pelo contato com a história científica, obtém sua dignidade de

símbolo e é içado à dimensão do pensamento moderno (cf. SM, 22).

A Simbólica do Mal é, seguramente, um livro de enfrentamento da violência pelo crivo da

tríade da má vontade: mancha, pecado, culpa. Nele Ricoeur desenvolve uma fina reflexão que

se volta para a violência originária. Não é fortuito que tenha escolhido os símbolos primários

(mancha, pecado, culpabilidade) para promover seu enfrentamento desviante da violência. Ora,

mesmo que para vencer a violência seja preciso descer ao seu terreno, não será possível obter

êxito nessa empreitada sem compreendê-la. Nessa obra Ricoeur empreende uma vigorosa

análise que procura decifrar os símbolos da violência originária. Busca compreender as marcas

deixadas pela violência nas experiências mais longínquas da vivência humana. Para o ser

humano, a violência não é uma experiência muda e saber decifrar essa experiência se torna

decisivo para o seu devido enfrentamento.

Para Ricoeur, tal enfrentamento da violência originária ocorre em ato, na exata passagem da

possibilidade do mal à realização dele, isto é, entre a falibilidade e a falta (cf. SM, 19). Ato

ocorrido pela confissão, quando considerada a consciência religiosa, que como “toda palavra

pode e deve ser ‘retomada’ no discurso filosófico” (SM, 20). Contudo, o hermeneuta previne

sobre a frequente tentação de querer tomar o caminho mais racionalizante das elaborações

tardias, formada na época agostiniana, chamada de “pecado original”. Para ele, um erro no

campo da interpretação, uma vez que desconsidera a dificuldade da própria filosofia para tratar

de marcas nada racionais e que sobrevêm à filosofia apenas como expressões pouco elaboradas

e de maneira balbuciante (cf. SM, 21).

Antes de toda especulação, segundo Ricoeur, situa-se a experiência viva que encontramos

nos mitos, isto é, nas narrativas de uma tradição sobre acontecimentos que tiveram lugar na

remota origem dos tempos e que se destinaram a fundar a própria ação ritual dos homens da

atualidade, por ter instituído as formas de ação pelas quais esse homem ainda se compreende a

si mesmo no seu mundo. É como compreensão e não como explicação que o mito revela todo

seu poder de rearticulação entre o homem e seu sagrado a partir da sua função simbólica (cf.

SM, 22). Por já não haver mais possibilidade de religar etiologicamente o tempo mítico ao

tempo da história, tampouco seus lugares à nossa geografia, o mito é manifestação simbólica, é

manifestação de sentido que o intérprete deve dignificar como o substrato aquém de todo

33

pensamento, que lhe confere seu próprio fundo.

Essa postura Ricoeur chamará paradoxalmente de desmitologização dos mitos – numa clara

referência ao teólogo e filólogo Rudolf Bultmann. Não mais passando pelo crivo da explicação,

o mito está livre em sua dimensão simbólica e, portanto, apto a comunicar o pensamento

moderno. Assim compreendido o mito, o problema do mal assume o aspecto da crise pela qual

o elo entre o homem e seu sagrado é constantemente ameaçado de rompimento: “o mal é por

excelência a experiência crítica do sagrado” (SM, 22), por outro lado, é essa mesma crise – por

considerar o começo e fim das coisas simultaneamente – que reenvia a experiência humana ao

Todo no qual lhe é conferido um sentido (cf. SM, 22).

No entanto, só se obtém esse sentido se se opera por ação retrospectiva: é o pecado original

que reenvia ao mito da queda que, por sua vez, reenvia à confissão dos pecados. Noutros

termos, a linguagem da confissão é linguagem retomada pelo mito e, posteriormente, pela

especulação (racionalização). Eis aqui uma característica muito particular do procedimento

ricoeuriano no que tange a interpretação dos mitos primordiais em sua explicitação da atitude

que lança o mal humano na história e, portanto, da violência anterior a qualquer categorização.

Situada historicamente (cronologicamente) anterior, a violência só recebe seu sentido quando,

posteriormente é compreendida logicamente: “Não há autonomia da especulação e mesmo o

mito é secundário; mas também não há consciência imediata da culpa que possa fazer economia

dessas explicações secundárias e terciárias. É o ciclo da confissão, do mito e da especulação que

há que compreender” (SM, 26).

Ora, para Ricoeur, o que o mito da queda narra é a entrada do pecado no mundo, o que será

posteriormente erigido em doutrina pela especulação sobre o pecado original (cf. SM, 24). Mas

o pecado já é em si uma concepção mais arcaica da falta: a “mancha” compreendida como

nódoa a partir de fora. Contudo, tal experiência (pecado, mancha, culpabilidade) não é só

perdição, alienação de si, mas também, e concomitante, experiência de ser si mesmo. O pecado

é igualmente a experiência que pode me conduzir de volta a mim mesmo. À semelhança do

poder do incondicionado, ao qual é levada a razão pela ilusão transcendental kantiana, aqui,

igualmente, o pecador toma consciência de si mesmo pelo caráter próprio do escandaloso (cf.

SM, 25). Aquilo que é informado pelo labirinto da experiência humana é que não somos

lançados no inefável quando exploramos as profundezas dos mitos do mal, muito pelo

contrário, é na linguagem que desembocamos e, portanto, naquilo que é a totalidade produtora

de sentido da vivência humana.

34

Para Ricoeur, é na tríade especulação, mito e sentido que uma circularidade operante

apreende a experiência do mal originário. Nenhuma consciência do mal, no caso, da culpa, é

imediata. Ela reflete no símbolo dos mitos e, posteriormente, na especulação. O que existe é

reenvio através do qual explicações secundárias (mitos), e terciárias (especulações) são

acionadas para que seja possível compreender (cf. SM, 26).

Na verdade, é esse longo desvio pelos signos e pelas obras corporificadas no mundo da

cultura que fazem de A Simbólica do Mal esse despertar para uma concepção de reflexão

indireta na qual o sujeito é confrontado com os signos depositados na memória e na imaginação

das grandes tradições literárias (cf. RF/AI, 70), buscando basear a confissão da vontade má

sobre um conjunto de símbolos e mitos decifrados no texto público das grandes culturas (cf.

RF/AI, 75). O símbolo é, assim, fundamentalmente, um signo de reconhecimento que os

homens dirigem uns aos outros.19

Enfatizada essa sua característica de reconhecimento não

direto, não imediato, o símbolo quer dizer outra coisa que aquilo que diz, é um signo no qual o

sentido aparente implica um sentido oculto. Portanto, ele situa-se a meio caminho entre a

experiência muda e o discurso teórico.20

Em síntese, talvez seja preciso admitir que nenhuma

criação simbólica não deixa de se enraizar, em última instância, no fundo simbólico comum da

humanidade. (cf. TA, 41).

A consciência se permite interpelar pelo que lhe antecede. Seguramente uma das marcas

decisivas da hermenêutica ricoeuriana é a consciência de que as palavras plenas de sentido

precedem ou se inscrevem paralelamente ao discurso conceitual do filósofo.21

Como afirma

Jervolino, para Ricoeur, há “uma tese geral: a reflexão filosófica nunca começa do zero, mas da

riqueza de sentido da linguagem, que se manifesta nos símbolos e nos mitos”.22

A filosofia assim repete, a cada nova etapa em que se encontra, aquilo que lhe é mais

peculiar: o que a intriga a responder a si mesma a respeito de uma inquietação originária. Mas

originário não substancial, antes murmúrio, eco de uma palavra não mais ouvida em sua

plenitude. E por ouvir insuficientemente o que é dito preliminarmente acerca do que a

constitui propriamente, a filosofia se vê duplamente lançada no seu caminhar pela marca da

incerteza ou da precariedade de todas as respostas. Contudo, nada disso implica o abandono

da verdade sobre o mundo. Aliás, abandono que significaria igualmente renúncia ao que se

põe adiante quando é através de uma pergunta que se permite guiar a reflexão (todo o

19

Cf. Abel-Porée. Le vocabulaire de Paul Ricoeur. Paris: Ellipses, 2007, p. 77. 20

Idem. p. 75. 21

Cf. Villela-Petit, art. cit. p. 14. 22

D. Jervolino, op. cit. p. 40-41.

35

desenvolvimento do pensamento até o presente atesta isso). “O que em filosofia chamamos a

‘finitude’ consiste em distinguir o fim e o limite. Com o limite, olhamos dos dois lados: para

o antes e para o depois; com o fim, estamos apenas no aquém e sem ter com que mobilar o

além” (CC, 220). O ceticismo – tendo ou não clareza disso – ainda é uma busca que

confronta, e por vezes interdita, tudo o que não condiz com o que sabe ser um conteúdo

linguístico deixado para trás. Eis por que:

é preciso renunciar à quimera de uma filosofia sem pressuposições... Primeiro,

há símbolos; encontro-os, acho-os; são como ideias inatas da antiga filosofia...

É a contingência das culturas inseridas no discurso. Para mais, não conheço os

símbolos todos, o meu campo de investigação é orientado, e porque é

orientado também é limitado. (SM, 36).

A linguagem fala que primeiramente só há atitude, e só então depois, muito depois

categoria. O pensamento recupera para a reflexão o que antes existe como vivência. De algum

modo, repitamos com Ricoeur, "o mythos já é logos, mas há que o retomar no discurso

filosófico." (SM, 35).

É por essa maneira particular de retomada, em que mito e símbolo falam do que ainda nos

diz respeito, que construímos nossa incessante memória cultural. Memória ativada, seja

retrospectivamente seja por novas descobertas, pelos retornos às fontes, pelas reformas e

renascimentos que, muito mais que revivalismos do passado, constituem a montante de nós

mesmos e o que se pode chamar de neopassado (cf. SM, 38). Ricoeur enfatiza o alcance

dinâmico de um pensamento sempre voltado para frente. Sua hermenêutica não nutre nenhuma

nostalgia pelo tempo perdido, em vez disso, se situa numa espécie estratégia de ingenuidade

pós-crítica a fim de alcançar à frente, no poder acolhedor da palavra (discurso), o após da

destruição dos ídolos.23

Porém, não cair em saudosismos não significa não querer pensá-los: “a recaída no nosso

arcaísmo é, sem dúvida, o modo desviado mediante o qual mergulhamos no arcaísmo da

humanidade, sendo essa dupla ‘regressão’, por sua vez, o caminho possível de uma descoberta,

de uma prospecção, de uma profecia de nós mesmos” (SM, 29). É por razões como essa que A

Simbólica do Mal é tida como a obra que "realiza a segunda revolução copernicana do filosofar,

na exata medida em que o seu grande intuito é mostrar ao sujeito moderno que ele deixou de ser

o centro de que parte a reflexão filosófica".24

O regresso para as mais distantes memórias da

história humana é indicativo de que esse aquém da reflexão filosófica, algo que só pode ser

23

Cf. F. Dosse, op. cit. p. 285. 24

M. L. Portocarrero, prefácio à edição portuguesa de SM, 2013, p. 7.

36

recuperado parcialmente, e que constitui a própria reflexão, fala de um sujeito que somente é

capaz de falar de si mesmo por vias indiretas. Ricoeur, segundo Dosse, permanece kantiano no

sentido da interiorização da tensão entre o infinito e finitude da condição humana.25

A finitude

do homem se encontra espremida entre duas infinitudes: da mesma forma que é impossível

atingir sua origem humana, também não consegue responder pelo seu término. Noutros termos,

o que o recurso ao símbolo acaba por revelar é uma “tensão entre a exigência infinita e o

mandamento finito” (SM, 79).

Não é acidental que Ricoeur tenha extraído a fórmula que encerra esta obra – o símbolo dá a

pensar – da terceira Crítica kantiana.26

O que revela esse projeto de sua filosofia da vontade é o

aparecimento “do símbolo como mediação essencial para se chegar a um sujeito emancipado

tanto de sua ingenuidade primeira, bem como de seu narcisismo idealista”.27

O pressuposto

ricoeuriano é o de que os símbolos comportam expressões de duplo sentido; um significado

literal, usual, comum que guia o desvelamento de outro de natureza mais oculta, mas que está

verdadeiramente voltado para o símbolo mediante esse primeiro sentido. Essa é a direção da

fórmula o símbolo dá a pensar (cf. RF/AI, 71-72).

Nessa fórmula há uma dupla afirmação, segundo Pellauer: “primeiro, que símbolo nos dá

algo, tem um caráter de dom; segundo, que esse dom exige o pensamento, o que significa que

temos que encontrar uma maneira de começar não do zero, mas a partir dos símbolos e mitos”.28

Por estar comprimido entre duas infinitudes – a do começo que não é grau zero (e sim

imemorial) e a que projeta o pensamento para frente – a finitude do sujeito e, portanto, seu

descentramento, nunca foi tomado por Ricoeur como semelhante às posições que fizeram dessa

constatação a própria dissolução do sujeito.29

Assim informada é que a reflexão se conduz na

direção de uma segunda revolução kantiana.

A simbólica do mal... define uma hermenêutica em que o projeto é decifrar

ambivalência dos símbolos concebidos como expressões de duplo sentido.

Diferente do signo, o símbolo manifesta uma intencionalidade dupla. Ele visa

um sentido primeiro, literal, através do qual se enxerta uma intencionalidade

segunda que só é acessível pelo primeiro sentido. Resultando na sedimentação

de significados ao longo do tempo, a última conservando sempre as

significações precedentes.30

25

Cf. F. Dosse, op. cit. p. 283. 26

Cf. Abel-Porée, op. cit. p. 76. 27

F. Dosse, op. cit. p. 279. 28

D. Pellauer, op. cit. 2009, p. 61. 29

Cf. F. Dosse, op. cit. p. 283. 30

« La Symbolique du mal... définit une hermenéutique dont le projet est de dechiffer l’ambivalence des

symboles conçues comme expressions à double sens. À la difference du signe, le symbole manifeste une

37

O que se adquire é a ampliação da compreensão da finitude a partir do símbolo. Irradiações

multívocas são nuançadas a fim de se obter maior clareza como de uma mesma unidade, no

caso o símbolo, podem ser extraídas múltiplas significações sem, contudo, invalidar seu

encadeamento. É o próprio Ricoeur quem promove o diagnóstico da aproximação entre essa

teoria dos símbolos, a síntese conceitual pela teoria da metáfora e a teoria kantiana do

esquematismo. Conceito e símbolo não estão necessariamente em oposição, não é negando o

primeiro que se conclui pela exegese infindável que o segundo suscita. Ocorre apenas que ao

não poder esgotar a exigência de ulteriores pensamentos produzidos a partir dos símbolos, o

conceito não consegue abarcar todas as possibilidades semânticas dele derivadas. Porém não se

chega a esse “excesso de sentido” senão pelo sôfrego trabalho do conceito (cf. TI, 104). “O

símbolo serve então para romper o encanto pernicioso do estágio narcisista da autoconsciência,

para ferir o cogito em sua autoposição. Ele restaura o homem numa totalidade: o símbolo dá a

pensar que o cogito está no interior do ser e não o inverso”.31

Essa posição retrata bem mais que a problemática específica da entrada do mal no mundo,

trata também do estatuto geral da autocompreensão, objeto dos questionamentos de A Simbólica

do Mal. Ao aceitar a mediação pelos símbolos e mitos, termina por incorporar na reflexão da

autocompreensão um pedaço da própria história da cultura (cf. RF/AI, 72-73). Ricoeur admite

que sua interpretação em A Simbólica do Mal foi criada intencionalmente visando amplificar a

própria interpretação ao dotá-la com a devida atenção para o excesso de significado contido no

símbolo (cf. RF/AI, 77). O símbolo constitui excesso de significação que emerge da tensão

entre duas significações: a literal e a simbólica. Sendo que, é impossível aceder à significação

secundária do símbolo (o sentido excessivo) sem partir da significação primária.32

Trata-se, notadamente, da autoposição do cogito que, recuperada pela autocompreensão das

mediações simbólicas, é saber reflexo. O alargamento do qual o símbolo é dotado permite ver

nele mais que expressões de duplo sentido, mas, igualmente, manifestações que as culturas

tradicionais inseriram para designar seu próprio mundo em seus elementos, dimensões e

aspectos (cf. TA, 41). Enraizado profundamente nas constelações mais duradouras do

sentimento da vida e do universo, os símbolos nunca morrem, apenas sofrem transformações

intentionalité double. Il vise uns sens premier, littéral, à travrs lequel se graffe une intentionnalité second qui

n’est accessible que par le primier sens. Il en résulte une sédimentation des significations à travers le temps, la

derniére conservant toujours les significations précédentes.» F. Dosse, op. cit. p. 280-281. 31

« Le symbole lui sert alors á rompre les charmes pernicieux du stade narcissique de la conscience de soi, à

briser le cogito dans son autoposition. Il réstaure l’homme dans une totalité: «Le symbole donne à penser que le

cogito est à l’intérieur de l’être et non l’inverse» F. Dosse, op. cit. p. 282. 32

Cf. I. Gomes em sua Introdução à edição portuguesa de TI, p. 35.

38

(cf. TI, 110). Por querer justamente compreender e interpretar tudo o que produzem

significativamente os homens no tocante ao que vivem, presenciam e aspiram, Ricoeur é levado

à prática fenomenológica de enxerto hermenêutico (graffe herméneutique).33

Praticando fina descrição fenomenológica aplicada ao tema da confissão, Ricoeur situa em

que circunstâncias a violência originária presente nas comunidades arcaicas é de ordem

existencial inapelável e, portanto, impossível de desenraizar: "... a mancha adere a tudo o que é

insólito, a tudo o que é terrífico neste mundo, a tudo o que é simultaneamente atraente e

repulsivo que ela é, afinal, inesgotável e inextirpável." (SM, 28).

Noutro enraizamento, se refere à disciplina psicanálise em que chega à mesma conclusão,

pois o signo, ao permanecer no limite entre impulsos em conflito e significantes que traduzem

estes impulsos, abre a necessidade de uma exegese, uma vez que o texto, passível de decifração,

constitui enigma. Na psicanálise, o símbolo “está na fronteira entre os impulsos e discursos.

Está ‘ligado’ às forças mais íntimas do homem, às suas vivências”.34

A leitura pelo viés da

psicanálise requer o reconhecimento, por parte da reflexão, de recursos imprescindíveis os quais

precisará acionar e dos quais não dispõe. A consciência, por não ser uma instância automática

do sentido, precisa, no contato com a psicanálise, desapropria-se de si mesma e se permitir

orientar por aquilo obterá como fruto desse contato: as marcas existenciais do homem, isto é, o

processo de decifração, significação das pulsões e desejos que recoloca a vida sob a perspectiva

profundamente existencial (cf. CI, 21).

Daí porque ganha importância o mal. O mal como dimensão inescapável do humano, atado

ao sofrimento, impõe grande desafio à teologia e à filosofia justamente pelo escândalo

revelador do caráter impenetrável da existência e, portanto, revelador igualmente dos limites

inerentes ao pensamento lógico reflexivo, sempre habituado à clareza dos conceitos e à

simplicidade das definições, em seu poder de atingir a verdade nessa dimensão. Desse modo,

é que o mal não pode ser reduzido à simples visão ética do homem e do mundo, a pluralidade

dos mitos acerca da origem do mal indica bem mais que isso: indica um mal vivido, um mal

praticado pelo homem ao mesmo tempo em que dele sofre os efeitos. Somos responsáveis,

mas também vítimas. A profunda abordagem de A Simbólica do Mal faz de Ricoeur um dos

maiores expoentes da fenomenologia da religião, comparável a Rudolf Otto, Gerardus Van

der Leeuw e Micea Eliade.35

33

Cf. M. Villela-Petit, art. cit. p. 09. 34

I. Gomes, op. cit. p. 36. 35

Cf. D. Jervolino, op. cit. p. 40.

39

Essa divisa estabelece bem o campo filosófico de Ricoeur marcado desde sempre pelo

problema do absurdo e pelo inverso da ação, o sofrimento.36

E também por não ser possível

avistar a gênese do mal, mas tão somente sua atestação a partir de uma narrativa mítica que

articula indissociavelmente sentido e acontecimento,37

é que Ricoeur pode situar a origem do

mal na liberdade humana.38

“O poder do homem é misteriosamente ocupado por uma tendência

para o mal que lhe altera a própria origem” (SM, 104). No entanto, a experiência do mal

continua a ser uma experiência singular: “É impossível comparar as formas do mal, totalizá-las,

precisamente porque o mal é por natureza dessemelhante, diabólico, ou seja, dispersão, divisão.

Não há sistemas do mal; o mal é sempre o unicamente único” (CC, 154).

Contudo, para Ricoeur, certas palavras da experiência mítica a respeito do mal como, por

exemplo, a confissão, são pronunciamentos do homem acerca de si mesmo. Ora, como toda

palavra pode e deve ser retomada no discurso filosófico (cf. SM, 20), a experiência do mal, da

violência originária, que se expressa no mito, pode ter seu sentido recuperado pelo discurso

filosófico. Daí porque ao tratar da mancha, do pecado e da culpa A Simbólica do Mal não faz

outra coisa senão compreender o vínculo indissolúvel, a partir do símbolo, entre as dimensões

do sentido e da violência. Pelo fato de sempre partir de algum lugar, e por partir a reflexão

filosófica de um lugar remoto, no caso, a linguagem mítica, é preciso recuperar a experiência

humana escondida por detrás desses grandes símbolos da existência. A pergunta que orienta

toda essa ação é: haveria, para além do mito, outro modo de compreender a falta sem

dissolver o seu aspecto de acontecimento e sem separar o acontecimento do sentido?39

Notadamente a pergunta orientadora não prescinde da articulação possível e necessária entre

sentido e violência.

1.3. Topologia da violência: “linguagem e violência, o debate de 1967”

Num debate elucidativo acerca do problema da relação entre violência e linguagem

ocorrido em 1967, Weil e Ricoeur defendem a ideia de que a violência só se tornou problema

porque ela esbarrou na linguagem.40

Não há outra maneira de reconhecer a problemática da

violência a não ser encontrando seu limite na linguagem. Esse encontro, entre violência e

36

Cf. M. L. Portocarrero, op. cit. p. 7. 37

Idem, p. 8 38

Cf. Dosse, op. cit. p. 282. 39

Cf. M. L. Portocarrero, op. cit. p. 9. 40

Noutra oportunidade nos referimos de maneira mais didática a respeito das exposições de cada um dos autores

e a ela remetemos. Cf. F. Valdério. Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre

Weil/Ricoeur, Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, ano 6, jan./jun., n. 11 (2014): 159-171.

40

linguagem, resultou em consequências para as duas dimensões: por um lado, a violência se

expressa, se diz, como sugere Ricoeur, “a violência fala” (cf. L1, 61), ou ainda, como Weil “é

a linguagem que faz aparecer a violência”.41

A linguagem dá significado ao que em si mesmo

se quer ausência de qualquer significado, ou seja, ela faz com que o absurdo entre no campo

das significações. Com o advento da linguagem até o sem sentido da violência pode ser

compreendido. A linguagem é a modalidade de um ser que ao falar já deu um passo na

discussão e, portanto, avançou ao âmbito da racionalidade: somente o homem, por ser falante

(ou pensante) apreende a violência no mundo. Ora, o único ser capaz de falar é também o que

é capaz de revelar a violência na vida e, por ser o único a se referir à violência, ao sem sentido

e ao que ocorre contra sua vontade e desejo,42

é também o único que pode dizer não ao

insensato e buscar um sentido para seu próprio discurso, para todo discurso: um sentido para a

vida. Em síntese: os indivíduos superaram a sua violência privada quando foram capazes de

subordiná-la a uma regra do direito, para falar como Weil, quando se submeteram ao processo de

discussão diante de um tribunal civil secular (cf. LP, 181).

Entretanto, a linguagem não sai ilesa desse encontro, aliás, a violência não se comporta

nessa relação como mera oposição à linguagem humana, apenas lhe oferecendo resistência,

mas como sua absoluta negação. E, para ser ainda mais exato, trata-se de uma “violência que

habita o próprio discurso”.43

Noutros termos: a linguagem passa a ser instrumentalizada pela

violência. Ela põe-se a serviço da típica violência do discurso: a dominação. Ora, a

humanidade, para sobreviver ao longo da história, precisou se organizar para lutar contra a

violência da natureza exterior. Um tipo de violência completamente estranha e hostil

(furações, inundações, tempestades, avalanches, terremotos, etc.) ao homem. O emprego das

forças humanas – igualmente violência – para domesticar a natureza exterior faz prevalecer,

primeiro, o trabalho, em seguida, um sentido para a vida desse homem que luta para controlar

as forças hostis da natureza. O apossar-se da natureza pelo trabalho, encontra no pensamento

e, portanto, na linguagem sua justificação. A linguagem, assim, se torna instrumento do

homem para o controle da natureza. Eis porque se pode falar, como Éric Weil, de um

“progresso pela dominação”.44

Para Ricoeur, será essa tentativa crescente de domínio absoluto

por um discurso, ou mesmo a intenção de cada vez mais cercear todos os demais, a maneira

como esse fenômeno da dominação se presentifica.

41

E. Weil. Violence et langage in Cahiers Éric Weil I, Lille, PUL, 1987, p. 23. 42

Idem, p. 23-24. 43

J-P Labarrière. A figura de Sócrates na Lógica da Filosofia de Éric Weil. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte,

46 (1989): 85. 44

E. Weil, art. cit. p. 25.

41

É a partir dessa imposição de um discurso que (um povo, classe, grupo) a palavra

pronunciada exprime, ao mesmo tempo, violência e sentido. Desde quando a natureza se

tornou signo e prova de poder, isto é, quando foi reduzida puramente a bens produzidos, a luta

pela posse desses bens e também dos meios de produzi-los tornou-se objeto de ulterior luta,

que não conhece outros objetivos ou regras senão o sucesso. Deste momento em diante não

existe outra “orientação” além do desejo imediato alimentado pelo anseio de dominação e

posse. Nessa análise, como na de Horkheimer, a história da dominação da natureza pelo

homem pode também ser descrita como história da dominação do homem pelo homem.45

A sociedade do trabalho, tal como a conhecemos hoje, “renuncia ao uso individual da

violência e contribui para a luta contra o inimigo comum: a natureza exterior”.46

A violência

social, a violência da sociedade capitalista exige ser traduzida numa linguagem, no caso,

linguagem instrumental, discurso calculista, lógica da eficácia. Com esse fato é possível que

se confirme a suposição weiliana de que a violência entre os homens será progressivamente

dominada, pois ao desejarem o máximo de riqueza que a produção de bens pode gerar, os

homens não podem contar com a violência que em si mesma não pode ser considerada

produtiva. Pelo contrário, em si mesma a violência só oferece risco para todo processo produtivo.

Se sedutora na aquisição da riqueza, a violência é, ao mesmo tempo, temerária pelo inconveniente

de estar à disposição de todos que dela queiram e possam fazer uso.

Na linguagem da própria sociedade do trabalho e de acordo com sua própria lógica, mesmo

que ela ainda ignore isso – o que é um fato –, só se poderá obter sucesso pleno agindo pelo

progresso da não violência. Eis o paradoxo! A transição da comunidade à sociedade, levada a

efeito pela violência originária, se inscreve no processo da luta contra a natureza exterior e da

apropriação da riqueza produzida pelo trabalho. A exigência fundamental desse

empreendimento para obtenção de êxito total, da maneira como requer sua lógica e

linguagem, é o progressivo desaparecimento da violência. No entanto, é preciso garantias de

que a unidade sensata do mundo na qual outrora o homem depositava suas esperanças tenha

novamente lugar nesse mundo em que os únicos valores reconhecidos são a medida e o cálculo.

A situação intermediária vivida entre sentido e violência não é indecidível como parece. Aliás,

dela é preciso sair e sair em favor do sentido. Ora, as três regras de bom uso da linguagem

sugeridas por Ricoeur, ao fim de sua intervenção, orientam para a consecução dessa tarefa. É

45

Cf. M. Horkheimer. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Editorial Labor

Brasil, 1976. 46

E. Weil, art. cit. p. 26.

42

exatamente para uma aplicação da não violência que elas se prestam. Em síntese, elas dizem que

é preciso primeiramente tomar discurso e violência como a oposição mais fundamental da

existência humana; em seguida, submeter as duas morais weberianas (da convicção e da

responsabilidade) uma à outra dialeticamente e, por fim, ter respeito à pluralidade e a

diversidade da linguagem (cf. L1, 67-68).

Sob a primeira regra identificamos o que pode ser a nuance das abordagens dos dois

autores, ao menos no diz respeito ao presente debate: Ricoeur, diferentemente de Weil nessa

ocasião, distingue linguagem e discurso e faz cair sobre o segundo termo o peso do que

acredita ser a oposição mais concreta em relação à violência. Ao propor essa distinção

Ricoeur sugere um degrau de descida em relação à compreensão formal,47

no caso, a saída do

formalismo em que se encerra toda oposição entre linguagem e violência para outro

formalismo mais próximo, se podemos nos expressar assim, da concretude histórica: o da

oposição entre discurso e violência. É mediante essa sutil diferenciação que o filósofo

hermeneuta remete ao seu particular debate com as correntes estruturalistas. Não vem ao caso

avançar por esta via, basta por ora, para as intenções da discussão aqui proposta, dizer que, ao

invés de uma “anatomia da linguagem”, a análise deve recorrer à “fisiologia da palavra”,

segundo as expressões do próprio Ricoeur (cf. L1, 61).48

Isso significa que não se trata de tomar as estruturas do texto sem qualquer referência a uma

presumível intenção do autor. Ricoeur censura essa posição por compreender que no âmbito da

anatomia da linguagem não se critica o sujeito como uma abstração objetivante, mas sua

diluição em face de uma redução da linguagem ao funcionamento de um sistema de signos sem

qualquer sustentação num sujeito (cf. RF/AI, 81). Antes, sugere o hermeneuta, é preciso tomar a

palavra assumindo seu valor de usos na frase. E nesse domínio da fisiologia da palavra se abre o

campo propriamente da luta entre violência e discurso que, por sua vez, por ser o campo

operatório do discurso, desdobra-se em três momentos: o político, o poético e o filosófico.

Em cada um desses momentos o que está em questão é a palavra como “o nó da violência

e do sentido” (L1, 62). No político as palavras sínteses que expressam a violência do

47

Ricoeur aqui nuança uma diferença detectada noutra ocasião em relação à filosofia de Weil quando de sua

apreciação da Filosofia Política infra p. 142ss. 48

Em CC Ricoeur utiliza a expressão autonomia semântica do texto para ilustrar uma ideia de dentro do

estruturalismo da qual ele mesmo se diz praticante por entender que o texto significa por si mesmo e, portanto,

sempre escapa ao seu autor. Nisso residiria uma diferença entre uma análise estruturalista e um estudo estrutural

de determinados textos. A ideia de uma autonomia semântica do texto abre o próprio texto às múltiplas

abordagens, mas que levam em conta tão somente sua objetividade enquanto algo dito e escrito independente das

intenções do autor. Essa objetivação do texto Ricoeur a toma num sentido positivo: como passagem obrigatória

através da explicação, visando uma melhor compreensão, não descarta o regresso ao enunciador (cf. CC, 110).

43

discurso assumem duas direções: tirania e revolução; a primeira através do sofista capaz de

mobilizar o ódio cimentado no crime e no sacrifício à morte; enquanto que a segunda ocorre

pela tomada de consciência que opera o sentido pela sublevação. Porém, nenhuma dessas

duas palavras esgotam as possibilidades da violência nesse âmbito, pois é preciso considerar

que o exercício normal da atividade política é tocado sempre pelo jogo turvo do sentido e da

violência (cf. L1, 63). Em se tratando do poético, essa tensão vigora quando o sentido

desvelado pela poesia e a captação do ser (resultante do processo operatório da palavra) são

obtidos por constrição, isto é, pela força com que o poeta obriga as coisas a falar. Por fim, a

manifestação da violência no discurso filosófico ocorre em função da singularidade com que

este sempre se manifesta, seja na sua questão inicial que põe o pensamento em movimento

seja no seu percurso reflexivo, ou mesmo no seu acabamento prematuro dado que, para

Ricoeur, a obra filosófica “sempre termina cedo demais” (cf. L1, 65).

O que observamos nessas três modalidades discursivas é a consciência a propósito do uso da

violência. Essa tomada de consciência deve informar as ações quanto ao uso indeclinável que se

faz da violência. E se essa compreensão não é suficiente para a interdição dessa força

destruidora, ao menos serve para informar a consciência da necessidade de um projeto

progressivo de não-violência. Para Weil, da mesma forma que a renúncia ao uso individual da

violência é o que contribui para que se possa vencer a natureza exterior, também só é possível,

para o homem da sociedade do trabalho e para a própria sociedade, obter plena satisfação se se

deixar orientar pelo progresso da não violência. Somente esse abandono da violência contribui

para que o inimigo comum seja finalmente vencido e o homem, todo homem, satisfeito. Essa foi

a razão para que esse indivíduo ao longo dos séculos empregasse todos os meios de que dispôs

para disciplinar sua natureza interior, uma vez que seus desejos naturais sempre tiveram de ser

controlados para que atingisse não o que historicamente desejou, mas o que lhe foi prometido

de acordo com sua contribuição na produção.

Por outro lado, a tensão entre sentido e violência é demasiada complexa para ser

superada na mera constatação de uma razão educadora das paixões. O efeito desse processo

criou um ser reduzido a simples membro da sociedade do trabalho. Nele não há um Eu, uma

personalidade, mas uma coisa qualquer, pois o indivíduo é aquilo que ele faz, “ele só é

alguém sendo alguma coisa” (FM § 22 e) – uma vez que “a coisificação, na sociedade

moderna, é o preço da personificação” (FP § 24, c). Tal como a sociedade, reduzida à sua

maneira organizacional imposta pela lógica da racionalidade e da eficácia, o organizador, o

indivíduo, também não passará de uma peça importante e indispensável do trabalho social

44

para compor esse mecanismo social.

A linguagem, assim, sofre de um paradoxo irrenunciável: ao mesmo tempo em que

empresta sentido e significado à violência é por ela instrumentalizada. A linguagem que

comanda a moderna sociedade do trabalho é a linguagem que domina todos em vista do

acordo objetivo: eficácia. Seu mandamento é: aceitar os meios que objetivamente estão

aptos para levar ao sucesso ou renunciar os bens antes produzidos. Não existe propriamente

alguém que emita ordens como bem lhe convém, apenas uma única ordem é ditada: aquela

que submete tudo e todos à lógica da eficácia. Nesse sentido, é inevitável e violento o

choque entre duas dimensões históricas: os aceitam as regras da imposição do progresso

técnico e os que não se submetem a esses senhores da natureza e que, portanto, estarão

fadados ao desaparecimento.

Se a linguagem eficaz libertou o homem da servidão natural, criou, por outro lado, uma

segunda natureza tão absurda e violenta quanto a primeira, e até mais tirânica, pois ela não

deixa ao homem seu Eu: o homem “tornou-se um objeto, mas objeto incômodo – e, ao mesmo

tempo, só um objeto vazio e sem sentido”.49

Essa segunda natureza da linguagem da eficácia

apenas instrui, informa, forma, etc., não é seu papel educar no sentido pleno que esta palavra

deve receber. O resultado de tudo isso, segundo Weil, é o aumento progressivo do tédio infinito

e insensato. Tédio de uma linguagem que age, mas que não significa nada para o indivíduo.

Tédio do qual só se pode escapar “pela violência desinteressada, interessada somente pela

possibilidade de se afirmar como indivíduo contra os outros indivíduos, violência a serviço dos

senhores e que não tem outra orientação senão fazer esquecer a insensatez dos interesses que

satisfazem a sociedade”.50

Ao indivíduo resta lamentar sobre o óbvio de que a linguagem da

racionalidade acaba sendo para ele uma grande mentira. Resultado da palavra que, embora

prenhe de significado, quando falsificada a serviço da dominação de tudo e de todos, não

significa nada. Ou quiçá seu significado seja a pilhagem de todo e qualquer sentido mediante a

permanente presença da falsificação da palavra.

A promessa de libertar o homem da natureza e da violência só foi cumprida muito

precariamente pela racionalidade. Contudo, essa dialética entre violência e sentido nos informa

acerca de um caminho ainda por ser percorrido, pois só o ser violento, se ele fala, pode buscar

um sentido para o que faz.51

Ora, foi a vitória sobre uma primeira natureza exterior e hostil que

49

E. Weil, art. cit. p. 29. 50

Idem. 51

Idem, p. 30.

45

trouxe à consciência uma segunda natureza, a do trabalho organizado. E é a existência desta

problemática, por sua vez, que tem o mérito de possibilitar a formulação da questão: “o que

alcançamos e deveremos alcançar é tudo o que queremos alcançar?”.52

Eis, para Weil, onde se

localiza o sentido enobrecedor da história humana. Reconhecer essa questão é, igualmente,

compreender o próprio sentido que a humanidade atribui a si mesma, dado que tal questão não

poderia sequer ser formulada onde a necessidade e a violência pura reinassem absolutamente.

Nosso desafio atual é, para Weil, ser capaz de formular essa questão numa linguagem que

seja acessível a todos, ao mesmo tempo em que possamos oferecer resoluções apropriadas.

O risco é sempre o de sermos incapazes de traduzir adequadamente essa questão e, portanto,

anularmos toda e qualquer resposta satisfatória. Noutros termos, trata-se para o homem de

se exprimir e de se dizer por inteiro e completamente, de se apreender no que nele une

violência e sentido, violência e linguagem; ou ainda violência e discurso, segundo Ricoeur.

Nesta última acepção da dualidade, o significado é que “a linguagem não é apenas sistema

de sinais, mas discurso, capacidade do sujeito de dizer algo a respeito do mundo para outros

interlocutores e para si mesmo”.53

Enfim, visa o compreender, no sentido de tomar junto, o

que se separou dele na sua emancipação da natureza em vista da liberdade. Será, então, a

velha trindade hegeliana reclamada, pois o homem exprime, nega e pensa a violência e, ao

pensá-la, também a ultrapassa, mas por ser a violência o que igualmente o constitui, essa

ultrapassagem é sempre precária, já que a violência é o que nele fala.

1.4. Niilismo e filosofia

A situação contemporânea é curiosa, se considerada do ponto de vista da confrontação

com épocas bem distintas, como as que viveram, no passado remoto, a humanidade em

relação ao sistema de valores e crenças que a orientaram por séculos. Falamos do tempo

que de certa maneira ainda nos modela, pois, tempo paradigmático para tudo que somos e

atingimos: o tempo da tradição oral dos mitos.

É verdade que deuses, divindades, forças estranhas incompreensíveis, sobrenaturais, etc., não

têm mais espaço entre nós (ou pelo menos não nos ocupam da mesma maneira que outrora).

Contudo, nada disso impede que observemos hoje a conduta humana guiada por outras forças

estranhas à sua vontade. Forças nada místicas, diríamos até que totalmente profanadoras por

52

Idem. 53

D. Jervolino, op. cit. p. 46.

46

desencantarem em toda parte e produzirem dissolução de todas as certezas. É no extremo do

território do tangível e da objetividade técnica que impera, paradoxalmente, a incerteza sobre

tudo. Nada parece durável, tudo se tornou fugaz. Reina aquele que compreendeu primeiro que o

obsoleto, como experiência do poder corrosivo do negativo, é mandatário. E essa é sem dúvida

a característica mais evidente do que responde por niilismo.

Já não é negado por ninguém o profundo sentimento de mal-estar vivido pela

humanidade. Paira uma espécie de autocompreensão não consentida de nós mesmos. Na

quadra histórica em que nos encontramos, a sensação é de que caímos num atoleiro para

dele não mais sair. Pelo menos é o indicativo de boa parte da filmografia (pós)apocalíptica –

em colaboração ou não com uma literatura de catástrofe – produzida nos últimos 80 anos e

cujo tratamento oferecido ao futuro é sempre a ruína.54

Uma das características mais distintivas, para Weil, do homem é que a possibilidade

constitutiva da violência faz com que esse homem não seja absolutamente discurso, embora

seja discurso, ele não o é no fundo do seu ser, pois é um ser que sempre pode se voltar

contra o discurso (cf. LF, 87). Essa lucidez permite que o filósofo não ceda à ilusão de

acreditar que mesmo depois de milênios, após ter deixado as cavernas para, em seguida,

fixar-se em comunidade civilizatória mundial sob a regência da técnica, o homem não seja

capaz de dar um passo que o reconduza à sua situação primitiva.55

Não é preciso ir longe

para observar que esse passo em falso é muito mais frequente do que se imagina, ocorre que

ele tem sido dado, em pequena escala, pelo indivíduo e não pelo homem.56

54

Refiro-me aqui a uma série de filmes distópicos começando por Metrópolis (Fritz Lang, 1927), passando, entre

outros, por Fahrenheit 451 (François Truffaut, 1966), Laraja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971), Blade Runner

(Ridley Scott, 1982), Matrix (Wachowski, 1999), AI (Steven Spielberg, 2001), As Invasões Bárbaras (Denys

Arcand, 2003), Filhos da Esperança (Alfonso Cuarón, 2006), Ensaio sobre a Cegueira (Fernando Meirelles,

2008), até Elysium (Neill Biomkamp, 2013), nos quais é retratada uma humanidade absolutamente fracassada e

impossibilitada de êxito coletivo, quando não à beira da completa extinção. 55

Segundo J-F. Robinet, Weil descreve uma análise profundamente rigorosa e até mesmo “profética” acerca da

relação do individuo e da sociedade contemporânea marcada pela lógica da eficácia do mecanismo social. Nela o

homem estaria como que coagido em sua individualidade, suscitando nele reações insensatas e violentas, o que

termina por se constituir no próprio círculo vicioso da história contemporânea Cf. Weil et le nihilisme in

Kirscher-Quillien, Sept étudies sur Éric Weil, Lille, PUL, 1982, p. 196. 56

Adverte Éric Weil: « Qu’est-ce qui pourrait alors nous trouber ? Simplement le fait que nous avons obtenu ce

qu’ils avaient promis et ce que nous désirions – et que nousne sommes pas tout à fait satisfaits des résultats...

Peut-être pourrions appeler cela: l’ennui. Or, c’est d’un oeil désapprobateur que d’ordinaire on considère

l’ennui; et si quelqu’un se plaint de s’ennuyer nous ne le prenons pas trop sérieux. Qu’il s’occupe, disons-nous

volontiers, qui’il fasse lui-même quelque chose pour sortir de son ennui. Mais l’ennui pourrait devenir chose

tout à fait sérieuse se une civilization entière venait à en être affligée, car, dans ce cas, il n’y aurait plus

personne pour dire aux autres pourquoi ils s’ennuyaient et ce qu’il fallait faire pour y porter reméde. Si, une fois

qu’ils ont obtenu tout ce qu’ils pouvaient raisonnablement demander, les gens sont toujours insatisfaits, et si

tout le monde partage de même sentiment d’insantisfaction, alors on pourrait avoir recours à des choses

47

Contudo, nada impede que esse passo seja dado também em larga escala, isto é, por uma

comunidade, mesmo que forçada a isso pela sociedade da técnica, dado o nível de acirramento

a que chegaram as potências pelo controle da riqueza global. Éric Weil é muito claro quando

se reporta ao desdobramento possível desse mundo, sempre “ameaçado de se tornar insensato

por força de se fazer racional” (cf. FP, § 40, d). Para Weil,

A perfeita organização racional seria a vitória total do homem sobre a

natureza exterior; seria a libertação total do homem com relação à

natureza, mas criaria, ao mesmo tempo, um vazio no homem que teria à

sua disposição a totalidade do seu tempo. Porém, reduzido a puro ser

social, ele não usaria sensatamente esse tempo. A menos que o homem não

renuncie a todo o sentimento, o que teríamos depois da transformação total

da natureza exterior seria o reino do tédio, único sentimento sobrevivente,

um tédio que não estaria mais insatisfeito com isso ou aquilo, com tal

imperfeição, tal necessidade, tal injustiça social, mas com a própria

existência, o que levaria rapidamente à destruição violenta do estado ideal

alcançado (FP § 27, a).

Esse traço marcante da história presente é notavelmente tratado pelo artigo A era das

distopias da economista Maria da Conceição Tavares. Nele a autora destaca a imobilidade da

história a partir do falecimento de quaisquer projetos coletivos calcados pelos movimentos

utópicos dos séculos XVIII, XIX, e XX, mas que não chegaram até o final deste último: “a

orientação histórica rumo à liberdade e à igualdade, elaborada no Iluminismo, acabou no final

do século XX”.57

Não há mais nenhuma história que ilumine o futuro. O que subsiste é um

sentimento de vazio cujo marco é a derrocada, no plano macroeconômico, do que antes se

tinha por Estado planificador, substituído pela desregulamentação e fragmentação econômica

transnacional erigida no bojo da globalização.

O que ecoa, ainda segundo Tavares, é a mudança no modo de pensar a história; não há mais

um movimento na direção da igualdade. Para ela, nada se move; política, economia, relações

internacionais, nada! Nenhum fato é suficientemente impactante para ser capaz de produzir algo

novo – seria impensável não grassar nenhuma perspectiva transformadora no mundo a eleição

de um “afro-americano” para presidente dos EUA em 1950. Pois bem, entre nós isso se mostrou

completamente irrelevante com a eleição de Barack Obama em 2008. Assim, sem nenhuma

direção, o futuro tornou-se ilegível, completamente amorfo. A clássica querela da esquerda

situada entre os projetos de reforma ou revolução, que por todo o século XX impulsionaram as

déraisonnables. On peut tomber d’accord sur un point et un seul: à savoir que la violence est le seul vrai passe-

temps. » (PR I, 302-303). 57

Maria da Conceição Tavares. A era das distopias in Insigth-Inteligência, jan./fev./mar. n.º 64, (2014): p. 21ss.

48

transformações no progresso social humano, minguou ante a naturalização das desigualdades

ambientadas nos interesses que se querem puramente fragmentários.58

O que provavelmente temos vivido é o advento de uma história asfixiada porque já não

conta (ou conta muito precariamente) com o oxigênio da tradição para manter aceso o fogo da

utopia.59

É evidente um cansaço cultural assinalado no tempo presente. É isso que Ricoeur

descreve como esgotamento, isto é, a experiência dramática do nosso tempo em que impera a

convicção difusa, invasora, segundo a qual, pela primeira vez, nossa herança cultural já não

parece mais capaz de reinterpretação criadora e de projeção para o futuro (cf. HI, 162). É

como se a história não mais avançasse, mas, de alguma forma, continuasse movimentando-se,

só que em dilatação lateral. Todo o conhecimento produzido em séculos avolumou-se no

tempo presente: a contínua produção derivada da sofisticação dos meios técnicos irrefreáveis

é permanentemente e massivamente despejada sobre nós.

Segundo Franco Volpi, o sociólogo Arnold Gehlen, ao analisar o conceito de posthistoire

nos idos dos anos 1950, concluiu que nossa história sofreria de uma espécie de torpor. O

crescente desenvolvimento da indústria na direção de uma administração universal teria

levado à estagnação do atual estado social por conta das próprias disfunções inerentes ao seu

funcionamento. Paralisada pela dinâmica do desenvolvimento tecnológico industrial – que

impõe um estado de motilidade perpétua, em que tudo se reproduz e se repete sem fim – fica

decretada a “estase da história”. Esse quadro da cristalização da sociedade e da cultura é

marcado, sobretudo, por nele estarem suplantadas as ideias e nas quais invenções, elevadas ao

primeiro plano, estariam fadadas ao rápido envelhecimento e, de igual modo, repentina

substituição. Tudo ocorrendo sem comprometer o crescimento contínuo da humanidade e seu

padrão de vida, o que significaria não mais se tratar de desenvolvimento e sim de movimento

incessante.60

Nesse quadro das sociedades industriais avançadas, adensam-se novos conflitos e Ricoeur

chama atenção para um deles: a ausência de projeto coletivo nos chamados países de primeiro

mundo. É sabido que os países mais atrasados miram os países já consagrados pela chegada

nessa condição, mas aos países tidos por avançados lhes falta qualquer propósito quanto a um

projeto para o conjunto dos homens e para a pessoa singular. Conjuga-se a isso o

58

O problema de base destacado pela autora centra-se no fato da exacerbação do indivíduo, mais que isso, em

sua faceta piorada, diz ela: “individualismo burguês, bem ou mal, tinha uma face progressista. O individualismo

pequeno-burguês não tem face nenhuma! É uma coisa chata! É uma crise que se manifesta pela ausência, pelo

vácuo e não sai daí.” Idem, p. 26. 59

Cf. F. Volpi, op. cit. p. 117. 60

Idem, p. 116-117.

49

aniquilamento das normas (pelo excesso ou pelo abandono) e o esquecimento das heranças

tradicionais, ou seja, é como esgotamento que as sociedades capitalistas avançadas cumprem

seu ciclo de desenvolvimento.

A herança cultural que outrora serviu de propulsão para que essas sociedades chegassem

ao ponto em que se encontram já não as informa mais (pelo menos não como antes). Na

medida em que essa herança deixou de ser reinterpretada criativamente também

interrompeu a produção de novas situações. Eis porque torna-se visível ao filósofo – e a

toda boa compreensão do tempo presente – a irrupção do perigo da nova atitude centrada na

experiência "selvagem" a partir do zero. Sem projeto coletivo, a experiência selvagem bate

à porta da civilização e insinua-se como única alternativa frente ao que denuncia como

falência das instituições. O que se revela urgente para todos é saber formular e responder a

pergunta de orientação weiliana sobre satisfação de todos e cada no âmbito da sociedade.61

Sem a capacidade para visualizar qualquer sentido para a história presente e futura a partir

da história passada (nossa herança cultural), haveremos que coexistir por muito tempo com

atitudes originadas na violência polarizada, que Ricoeur chamou de ilusões da dissidência e

tentação da ordem (cf. HI, 162-163).62

Da mesma forma, no plano cultural, convivemos impassíveis com tudo o que há de bom e

mau gosto, sem qualquer critério para decidir, simplesmente porque todo e qualquer critério é

uma afronta à única decisão que importa: a do indivíduo. Coexistimos, assim, sem assombro,

com o empilhamento do que há entre o pior e melhor dos produtos e serviços, da cultura e dos

subprodutos dela (lixo cultural para utilizarmos uma expressão cunhada por Ariano

61

Cf. Éric Weil, art. cit. p. 29. 62

No primeiro polo, ilusões da dissidência, “todas as instituições aparecem como um bloco indivisível de poder

e de repressão; todas as autoridades são establishment: dos bancos às igrejas, passando pelas empresas, pelo

meio universitário e pela policia. Assim esquematizada, a sociedade só pode depender de uma estratégia do

confronto e da polarização, destinada a revelar a fisionomia repressiva que se oculta por detrás de toda máscara

liberal. E se a própria palavra, cativa do poder, não é mais ouvida, o que permanece, então, é a ação pontual, a

violência muda. Instala-se, assim, na dissidência, uma das juventudes mais inteligentes e mais honestas.

Doravante, é fora dos aparelhos da democracia formal, à margem da burocracia dos partidos e dos sindicatos,

que ela vai instalar-se. Por sua vez, ela se vê ameaçada pela grupusculização, que introduz a dissidência na

dissidência. De tudo isso, a sociedade vê apenas as exterioridades coloridas: as vestes, os costumes, o

nomadismo e a anticultura, em suma, uma imagem alternadamente terna e agressiva.” O segundo polo, tentações

da ordem, já “nos é bastante conhecido: essencialmente reativo, alimenta-se de medo e de ódio. O que mais

estarrece é que a tentação da ordem parece, hoje em dia, afetar por completo a classe média, colocada em

posição defensiva. Trata-se, à primeira vista, de um curioso paradoxo o fato de o ingresso na abundância se ver

acompanhado de tanta insegurança. É como se aqueles que ultrapassaram a fronteira de abundância sentissem

toda vantagem social como uma aquisição ameaçada pelo menor sinal de retrocesso, devendo ser defendida

contra a camada social imediatamente inferior. Donde a defesa avarenta de todo privilégio e o apetite obsessional

de segurança.”

50

Suassuna63

). Daí porque nos habituamos ao presente, quer dizer, nos mantemos indiferentes

em nossa atualidade a tudo que deveria prover elevação espiritual.

Não é difícil entender o porquê de o acúmulo de quinquilharias conspirar para o que obsta

o avanço da história. O peso de coisas que não levam mais a lugar algum, porque nenhuma

importância existe em consequência do aglomerado sem sentido e desconexo. O que antes

empurrava a história está, hoje, sem força diante do que podemos chamar de amontoado. Não

mais seguimos em frente porque tudo o que foi produzido (e continua a ser produzido

assimetricamente) é o próprio entrave do avanço da história. Por ignoramos o que é essencial

em todas as áreas, esbarramos e nos acostumados com esse amontoado. Eis aqui o que se

habituou denominar fim da história; e nesse sentido, em lato senso, o fim da história é a

história sem fim, porque história sem sentido. Sem telos não há utopia!

O niilismo, assim, não só é capaz de conduzir ao deserto, mas, igualmente, expandir

infinitamente seus limites – um “deserto que cresce” segundo uma expressão de Franco

Volpi.64

Quanto mais radicalizada é a crítica niilista tanto maior a aridez do lugar no qual

somos mantidos cativos pela incapacidade para tomar decisões. Sem qualquer parâmetro,

nada pode ser decidido. A marca desse tempo é a absoluta incerteza sobre tudo. Ora, ao

sugerir a total inapreensão de tudo, está igualmente interditado o esforço do pensamento para

qualquer tipo de unidade ou, como fala Robinet, a “impossibilidade de elaborar um discurso

coerente sobre o real, impossibilidade do discurso objetivo”.65

Eis porque se pode dizer que a

característica mais profunda do niilismo é a falta de sentido66

.

O niilismo é, pois, a “falta de sentido” que desponta quando desaparece o

poder vinculante das respostas tradicionais ao porquê da vida e do ser. É o

que ocorre ao longo do processo histórico no decorrer do qual os supremos

valores tradicionais que ofereciam resposta àquele “para quê?” – Deus, a

Verdade, o Bem – perdem seu valor e perecem, gerando a condição de

“ausência de sentido” em que se encontra a humanidade contemporânea.67

Tal caracterização do niilismo, que incide decisivamente sobre os vários campos (história,

política, arte, religião, economia, etc.), conduz a reflexão a um diagnóstico terrível: a

racionalidade do mundo moderno é portadora dos processos corrosivos de todos os valores e

sentidos. Dessa forma, não é difícil compreender as razões (ou contrarrazões) que fazem

63

A. Suassuna apud L. Guedes. Ariano Suassuna: Dom Quixote contra o imperialismo norte-americano.

Suplemento Correio das Artes, 2014. 64

F. Volpi, op. cit. p. 89. 65

J-F. Robinet, art. cit. p. 189. 66

Cf. F. Volpi, op. cit. p. 16. 67

Idem., p. 56.

51

nossa atual civilização técnico-científica se confundir com o momento da cristalização

cultural.68

Técnica e niilismo seriam, assim, as duas características essenciais da realidade

contemporânea, isto é, de como a organização metódica e universalizante do trabalho impõe a

destruição de todos os valores e sentidos em nome do único valor e sentido que importa: o

próprio trabalho. Esse diagnóstico é o que subjaz no impasse que situa em lados opostos os

que apregoam a continuação do progresso técnico alcançado pela sociedade mundial, a

exemplo do que advogam empresas e governos de diferentes matizes e seus tecnocratas, e

todos os que desejam a renúncia do progresso, de uma vez por todas, como miram os grupos

ecológicos radicais e fundamentalistas.

Eis a armadilha contemporânea em que não caem nem Weil nem Ricoeur. Ambos não se

deixam apanhar pelos discursos que estabelecem a oposição radical entre o entusiasmo pelo

progresso e sua deploração – dicotomia tão comum nos dias atuais. Para os dois pensadores é

essa realidade que precisa ser enfrentada. Weil e Ricoeur permitem à filosofia algo mais que a

resignação diante da constatação do fenômeno do niilismo e seu avanço. Suas filosofias são,

cada uma ao seu modo, uma reflexão que não se rende à violência, muito pelo contrário.

Aliás, se nos for permitido dizer igualmente a respeito de Ricoeur aquilo que Perine escreve

da filosofia weiliana, trataremos as duas como filosofias que descobrem seu segredo e sua

tarefa no confronto com a violência, 69

no enfrentamento do niilismo, qualquer que seja a

forma que ele assuma. Ou como diz outro intérprete do pensamento weiliano:

A todo o momento da história os homens podem destruir o que os outros

construíram de razoável em seus discursos e no seu mundo histórico. É

sempre possível que o demônio do negativo seja mais forte que a vontade de

vida e de civilização. De fato, a história mostra regressões no

desenvolvimento da civilização. A história não é desenvolvimento contínuo

da razão. O tema do niilismo está então presente em toda filosofia, na

medida em que a filosofia é uma tomada de consciência da razão, de seu

valor e de sua precariedade.70

Dissimetria entre a acumulação de todas as coisas e a ausência de sentido de toda essa

acumulação: absolutização da nadificação (insensatez) preenchida por coisas totalizadoras.

Embora pareçam cúmplices, material e formal aqui não informar nenhum real possível por

68

Cf. Idem p. 117. 69

M. Perine. Violência e niilismo. O segredo e a tarefa da filosofia. Kriterion. Revista de Filosofia, Belo Horizonte,

v. XLIII, n. 105, jul./dez. 2002, p. 106-126. Depois em M. Perine. Éric Weil e a compreensão do nosso tempo, op.

cit. pp. 141-171. 70

« à tout moment de l’histoire les hommes peuvent détruire ce que les autres ont construit de raisonnable dans

leurs discours et dans leurs monde historique. Il est toujours possible que le démon du négatif soit plus fort que

la colonté de vie et de civilisation. Et de fait, l’histoire montre des régressions dans le développement de la

civilisation. Le thème du nihilisme est donc présent dans tout philosophie, dans la mesure où toute philosophie

est une prise de conscience de la raison, de sa valeur, et de sa précarité » cf. J.-F. Robinet, art. cit. p. 191.

52

equivalerem todas as possibilidades da realidade: tudo é possível ao mesmo tempo em que

tudo é igualmente inapreensível, portanto, nada é legitimo. O amontoado é tomado por um

nada que o abarca e exige que ele seja cada vez maior. A forma (vazio, nada) não se permite

preencher por nenhum conteúdo significante, porque tudo é completamente sem valor,

obsoleto, insensato. O vazio niilista consome permanentemente tudo. É um nada que se

alastra sem qualquer comiseração.

Do ponto de vista weiliano, razão e violência pura são produtos de uma reflexão radical

que nos conduz às causas e aos princípios últimos. Ora, o mundo no qual o indivíduo vive é

um misto de violência e razão, noutros termos, misto de matéria e forma. Nele não se encontra

nem a forma pura nem a matéria pura. No entanto, são essas possibilidades que, juntas,

permitem compreender o real.71

Nesse ponto, uma digressão pela reflexão de Ricoeur acerca do vazio das categorias do

Sentido e Sabedoria da Lógica da Filosofia72

talvez se revele bastante produtiva. Nela o

hermeneuta conclui, após refletir o sentido da Ação em sua retomada do projeto de coerência

a despeito do Absoluto e para além dele, por uma espécie de coerência extenuada e regressiva.

Para Ricoeur, há uma precedência postulada pela reflexão weiliana, sobretudo pelo que

informa um “texto desconcertante” para todo filósofo que se guia pelo discurso e descobre, a

partir do próprio discurso, que a fonte primária constituidora da própria filosofia e, portanto, a

que pauta a filosofia permanentemente, se esvai num não discurso.

A filosofia lida com outra coisa que não um discurso, mesmo coerente, com

outra coisa que não a razão, mesmo em ação, outra coisa, mas algo de

humano, se ela quer se compreender. O que esse fato significa na filosofia e

para a filosofia, eis o problema que devemos enfrentar. Mas desde já, ficou

claro que a vida fora da razão discursiva não é apenas um fato observável:

ela constitui, e para a própria filosofia, o limite do discurso (LF, 589).

Nessa passagem, segundo Ricoeur, Weil tem presente a grandeza da dificuldade de todo o

empreendimento de sua lógica da filosofia e assinala a desembocadura onde se põe todo o

discurso consciente (ou não) de sua realização. A filosofia que não teme cruzar todas as

fronteiras do pensamento sabe se orientar pelo Sentido. No entanto, a única garantia de

coerência do discurso que o Sentido pode dar num além da Ação é um vazio de conteúdo no

qual ele cai; vazio compatível à utopia da própria Ação que quer realizar o discurso, ou seja, o

fim do discurso mediante sua realização.

71

Cf. Idem, p. 190-191. 72

Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 419ss.

53

O que sobra é um discurso que se enxerga muito mais como atitude do que propriamente

como discurso. O empreendimento da realização do discurso, pela Ação que se sabe

inultrapassável na qualidade de atitude, exige um discurso fraco, murmúrio categorial.73

Esse

“pouco que resta” é o bastante para a filosofia continuar sua trajetória de saber sobre si

mesma, mas agora despida de toda materialidade histórica. Ela mantém seu itinerário

mediante a convicção de que tudo o que adquiriu foi graças aos acidentes históricos com os

quais se misturou, e conclui que tudo aquilo que lhe precede e que ela somente captou

precariamente é também o que encontrará ao fim de um longo percurso. É através dessa fraca

sonoridade discursiva que Ricoeur apresenta outra passagem da Lógica da Filosofia como

resposta ao “texto desconcertante”,74

por explicitar de maneira, sem igual, a concepção da

precedência que ambos filósofos observam em relação à filosofia:

Se, portanto, existe uma categoria para além da categoria da ação – e a ação

o exige, na medida em que ela ainda não se concluiu, na medida em que ela

fala da negatividade, de fim de futuro –, ela só pode ser a categoria da

filosofia, uma categoria que não serve para compreender tudo, mas que

funda a filosofia para ela própria, uma categoria sem atitude, categoria vazia

que sempre se preenche, categoria essencialmente por vir na qualidade de

não atitude, e que é a categoria da presença. Ela não ultrapassará a ação; no

entanto, ela não indicará um fim à filosofia; ela será sua conclusão, assim

como será sua origem. Ela não transcenderá o mundo, mas será a

transcendência no mundo. Ela será, portanto, a fonte de discurso na qual o

discurso se aprenderá. (LF, 591).

O “nada” compreendido depois da Ação (cf. LP, 590), o “vazio” da categoria do Sentido é

o perigo em que incorre toda reflexão filosófica. É através dela que podem adentrar todos os

processos destruidores da reflexão. Ora, por se tratar de forma sempre vazia e, portanto,

sempre aberta a determinações, esse vazio é a porta por onde entram também o nada da

violência e do niilismo.

Contudo, o filosofar só é possível por essa abertura fundamental. Que não se possa deixar de

pensar o vazio e se permitir, assim, abrir possibilidades livres de quaisquer determinações são

conquistas que a própria filosofia trouxe para o âmbito da reflexão. O problema é que o vazio

no qual frequentemente se cai tornou-se impeditivo de qualquer construção e de qualquer

preenchimento de conteúdos, sempre parciais, que sejam superados ulteriormente noutra forma.

No vazio do absurdo não se espera nenhum preenchimento, não há conteúdo para ser

experimentado, toda e qualquer materialidade é repelida pela força da negatividade total que

73

Cf. Idem, p. 418. 74

Idem, p. 419.

54

não quer conhecer nenhuma positividade, isto é, apenas ação de uma liberdade insensata porque

negatividade sem objetivo. É a isso que Robinet identifica como niilismo absoluto.75

É desse modo que o vazio da forma, no qual se situam Sentido e Sabedoria, difere do

absurdo. Podemos dizer que o problema que se revela para própria Ação é a questão do

sentido ou, para traduzir a questão em termos da própria ação (política), a questão do fim da

ação, de toda ação, o fim mesmo do discurso (moral e político, cf. FM § 24 c). Para utilizar os

termos de Marcelo Perine, trata-se de compreender que “o problema do sentido é o sentido do

problema”76

, isto é, que o aquém do discurso e, portanto, seu acabamento é o que situa o

problema como decisão pelo sentido: “... se somos levados a buscar um fim – o que significa,

um sentido – ...decorre que a ciência filosófica do fim da existência humana visa a algo que

não se encontra no seu domínio. Para acusar o caráter paradoxal do problema poder-se-ia falar

do sentido da busca do sentido” (FM § 24, d).

Essa é umas das conclusões sustentadas por Ricoeur ao fim de sua comunicação sobre a

Lógica da Filosofia. Ele admite que é através de um grau suplementar de formalismo, após a

ação, no caso, Sentido e Sabedoria, que o projeto de coerência do discurso é salvo. Aliás,

sobre isso temos a dizer que apesar das objeções de Marcelo Perine, a propósito da

interpretação do filósofo hermeneuta, acreditamos que ela reage oportunamente às investidas

contrárias ao empreendimento weiliano.77

1.5. Filosofia e tomada de posição

Vivemos uma época, para falar como Éric Weil, provocada pelo mal-estar do excesso de

riquezas, tempo embaraçoso no qual se sabe sempre coisas em demasia, se conhece

abundantemente verdades e existe farta informação à disposição de todos sobre conteúdos e

situações (cf. LF, 134). No entanto, essa condição que parece dispor de toda sorte de respostas

carece de correspondência entre estas e as questões levantadas (cf. PR I, 07).78

75

Cf. J-F. Robinet, art. cit. p. 200ss. 76

Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 188ss. 77

Infra p. 73ss. 78

Bernheim-Chauí nos fazem um prognóstico desse fenômeno ao dizem que “o conhecimento contemporâneo

apresenta, entre outras características, as do crescimento acelerado, maior complexidade e tendência para a

rápida obsolescência. O que tem sido chamado de explosão do conhecimento é um fenômeno tanto quantitativo

quanto qualitativo, no sentido de que o volume de conhecimento disciplinar aumenta e, ao mesmo tempo,

surgem novas disciplinas e subdisciplinas, algumas das quais transdisciplinares. Por isso falamos também em

explosão epistemológica. De acordo com dados fornecidos por James Appleberry, citados por José Joaquín

Brunner, o conhecimento com base disciplinar registrado internacionalmente levou 1.750 anos para duplicar pela

55

Essa superabundância de todas as coisas em todas as áreas convive sem assombro com a

pobreza de espírito que conduz à escassez do pensamento na sociedade, em princípio mundial,

e que, paradoxalmente, busca se definir cada vez mais como sociedade da veloz circulação da

informação e do conhecimento.

Esse quadro não é uma particularidade do nosso tempo, aliás, o que conhecemos é o

agravamento de situações perfeitamente conhecidas já por Platão, que não somente

identificou e conheceu as várias vertentes79

– muitas delas abrigadas no seio de sua própria

academia –, como com elas manteve um produtivo e fecundo “diálogo” a fim de situar, cada

uma destas “sabedorias”, no âmbito de sua própria filosofia. Com efeito, compreender

filosoficamente, para Platão, é um procedimento dialético que reconhece a diversidade em

tensão com a unidade, seja pela divisão segundo as ideias seja pela condução da pluralidade a

uma única ideia.80

Assim, Platão é quem surge como o que primeiro confere à filosofia o caráter da tomada de

posição. É verdade que se pode dizer que Sócrates, antes, já tinha concebido a filosofia nesses

termos e que sua condenação e morte diante da cidade não é senão o emblema maior dessa

tomada de posição pela filosofia. Entretanto, com Sócrates a filosofia ainda não é,

propriamente, para falar uma vez mais como Weil, tomada e tornada objeto e sim a

comunidade que discute, isto é, a discussão.81

O alvo de suas pré-ocupações é a comunidade.

Aprendemos com a Lógica da Filosofia que o pressuposto de toda comunidade é a

linguagem na qual e pela qual se desenvolvem as discussões em vista do acordo. Sendo que o

primeiro acordo é justamente o de que todos podem falar e que ao fazê-lo adotaram a via que

pode leva ao reconhecimento mútuo. Contudo, tal reconhecimento não é gratuito e sem

tensão, pelo contrário, carrega a história da violência criadora da humanidade e, dessa forma,

a discussão ainda é a reprodução subliminar da luta bruta entre os conteúdos das culturas

impermeáveis umas às outras (cf. LF, 180).

Dito de maneira diferente: na origem da polis, o evento que marca toda a política ocidental

primeira vez, contando a partir do princípio da era cristã; depois disso a cada 150 anos e, por fim, a cada 50 anos.

Atualmente, ele é multiplicado por dois a cada cinco anos, e projeta-se que, em 2020, duplicará a cada 73 dias.

Estima-se que a cada quatro anos duplica a quantidade de informação disponível; como os analistas observam,

porém, somos capazes de dar atenção apenas a cerca de 5 a 10% dessa informação.” Ver Bernheim-Chauí,

Desafios da universidade na sociedade do conhecimento: cinco anos depois da conferência mundial sobre

educação superior. Brasília : UNESCO, 2008, p. 08. 79

Cf. M. Perine. Quem são os inimigos de Filebo? (Fil. 44 b 6) in Hypnos, São Paulo, n. 26 (2011): 73-92. Cf.

também J-M. Gagnebin. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 193-194. 80

Cf. M. Perine. Éric Weil e a compreensão do nosso tempo, op. cit. p. 145. 81

Cf. M. Perine. Da Discussão ao Objeto. Platão retoma Sócrates? in Cultura – Revista de História e Teoria das

Ideias, Lisboa (II Série) n. 31 (2013): p. 89-108.

56

é o surgimento da democracia. No entanto, não se pode esquecer que a instituição que não

somente a antecede, mas possibilitou o seu advento foi o “conselho de guerra” no qual reis e

guerreiros, os aristoi, tinham assento para, em condições de igualdade, opinar e deliberar,

como é narrado por Homero.82

A política e, mais tarde, a própria democracia nascentes são

oriundas da violência. Senão diretamente, o são a partir da cessão que a violência permite,

uma pausa no conflito a fim de poder organizar o comando.83

Uma aristocracia guerreira

antecede, assim, tudo o que reconhecemos e chamamos pelo nome de política.

Contemporânea aos primeiros desenvolvimentos da política, a filosofia conheceu no seu

nascedouro um mundo essencialmente político (cf. LF, 188), para o qual, após ser capaz de

formular discursos (o Verdadeiro e o Falso), volta-se quase que integralmente. Isso explica

porque, sem abandonar toda a construção lógica e epistemológica e os problemas daí

decorrentes, a filosofia em dado momento do seu incipiente percurso se desloca do eixo

cosmológico para o eixo ético – desce do céu à terra como diz Cícero.84

Ora, se Sócrates é tido como o que opera esse deslocamento e mais, como o que se constitui,

para toda filosofia posterior, em patrono – mesmo não tendo sido o primeiro filósofo (Tales),

tampouco aquele a quem se atribui a invenção do neologismo filosofia (Pitágoras) ou da

dialética (Heráclito, Parmênides) –, então, de maneira tácita ou explícita se aceita que a filosofia

se compreenda pela linguagem, pelo discurso, pela discussão, pela política no interior da polis.

No mundo do advento da polis o mais forte não é mais o que impõe e se sobrepõe brutalmente

aos demais, mas o que faz o melhor uso da linguagem, isto é, do discurso. Importa agora ter

razão e isso significa que é preciso ser soberano pela linguagem (cf. LF, 181). Onde o centro do

mundo é o discurso demonstrativo da verdade não contraditória, passa a ter razão aquele que

demonstra ser o mais hábil no uso da técnica do discurso.85

É assim que a filosofia tem atrelada a si, como o DNA que define o caráter de uma vida

inteira, o traçado marcante da via política.86

Que política e filosofia não se confundem, que a

82

Cf. J-P. Vernant. Os gregos inventaram tudo (entrevista). Caderno Mais, Folha de São Paulo, domingo, 31 de

outubro de 1999, p. 4. 83

« Là où l’emploi de la violence est exclu les hommes règlent leur vie en commum par le moyen du langage

formellement un : ils discutent. » (LP, 121). 84

Cf. Disputaciones Tusculanas,V 10. 85

« L’emportera celui qui si fera entendre et saura empêcher que son concurrent ne soit entendu, soit qu’il le

rend ridicule et le fasse apparaître comme um homme dont on ne peut rien espérer de sérieux, soit qu’il rend

suspect comme capable de revenir à la violence. » (LP, 126-127). 86

Em Vernant encontramos: “Entre política e logos, há assim, relação estreita, vínculo recíproco. A arte política

é essencialmente exercício da linguagem, e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de

sua eficácia, por intermédio de sua função política.” J.-P. Vernant. As origens do pensamento grego. Tradução

de Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro : Difel, 2002, p. 54.

57

política só se compreende pela ótica da filosofia, que a filosofia submete o projeto da política

ao seu próprio projeto; etc., tudo isso é correto. No entanto, essa aparente influência da

filosofia sobre a política se reverte em dependência da filosofia em relação à política, ou nos

permite ao menos falar de uma dimensão política da atividade filosófica.

Não existe projeto que não queira ser realizado. Não basta falar, é preciso acontecer: como

filha do tempo da cisão entre palavra e ato, a filosofia sabe que só pode ser realizada se

conseguir operar o discurso da ação ou, o que é o mesmo, da ação enquanto discurso. Numa

palavra: que o homem se compreenda como discurso agente.

Se é possível voltar a Sócrates como a figura emblemática da filosofia em que palavra e

ação estão intrinsecamente conjugadas, é porque já se compreendeu que a filosofia carrega

consigo a marca do posicionamento político. Que se afirme uma vez mais: toda a Grécia, todo

o mundo grego é mundo essencialmente político. Ora, a filosofia que nasce nesse mundo não

pode deixar de sê-lo também. O contraste é que a “relatividade” é afirmada por toda parte,

justamente porque, através do conflito entre as partes, só se percebe partes e nunca o todo.

Entretanto, a filosofia ao ser exigida a se posicionar diante do conflito (por ser ela uma das

partes e dado o caráter emergente e perene da sua natureza política) só pode apreciar esse

problema sob o ponto de vista que é propriamente o seu, isto é, o do todo, o ponto de vista da

universalidade. Ela não apenas submete a exame o conflito entre as partes como, igualmente,

é levada a uma tomada de posição. Eis porque Sócrates, para falar como Kirscher,

compreende não esta ou aquela discussão, mas a discussão como um todo ao discutir a

discussão.87

“Sócrates discute e faz exclusivamente isso” (LF, 189).

O que a filosofia procura não se restringe ao entendimento desta ou daquela posição, mas

da compreensão de toda discussão. A filosofia com Sócrates, através do minucioso exame

dialético das partes, toma posição pelo universal. A matriz da qual parte todos os discursos

conflitantes é a linguagem e, nesse ponto, todos os adversários concordam mesmo que sobre

isso se calem (aliás, o silêncio é a contraprova do acordo tácito). O que se verifica é a

natureza de um postulado: se se parte de um mesmo princípio, pode-se chegar, apesar (e por

causa) da discussão, a um mesmo acordo, a uma conclusão da discussão que satisfaça a todos

e a cada um – não apenas uns com os outros como também entre si mesmos – no interior da

comunidade.

87

Cf. G. Kirscher, op. cit. p. 246.

58

Nem por isso, todo o esforço de Sócrates não o impede de fracassar88

, quer dizer, não o

conduz necessariamente a ser bem-sucedido (cf. LF, 191). É assim que Platão é impelido,

segundo Weil, a ultrapassar a discussão e, portanto, ir além de seu próprio mestre (cf. LF,

188). Mais que isso: sua filosofia é a primeira que busca a compreensão total (cf. LF, 219). O

fato da morte de Sócrates pela comunidade (cf. LF, 204), fato “que decide a vida inteira de

Platão” (LF, 188)89

, o faz tomar consciência90

“de que não basta que o acordo seja alcançado

entre todos os participantes da discussão... é preciso ademais que esse acordo revele a

realidade e o que é em verdade” (EC I, 243), isso que só pode ser atingido, para Platão, pela

dialética. Eis por que com Platão a dialética não será apenas método ou técnica, mas uma

posição filosófica, a única “adequada à compreensão da realidade, concebida como a

identidade do uno e do múltiplo ou, o que é o mesmo, como misto gerado por uma causa

inteligente, que mantém em contínua interação os princípios do limite e do ilimitado”. 91

Ademais, fica manifesto que para empreender um novo projeto filosófico, a partir do que

fracassou, é preciso dissipar os mal-entendidos intencionais (ou não) dos quais o antigo projeto

se torna alvo após sucumbir – sobretudo por parte das correntes adversárias. Não haveria

nenhuma razão para Platão proceder assim, em seu resgate da memória de Sócrates, se sua

filosofia partisse do zero. A defesa da memória do seu mestre, com a qual Platão inicia sua

atividade literária, ocorre não apenas contra a animosidade dos democráticos que condenaram

Sócrates, mas a favor de todos os que estiveram sob a influência do grande mestre.92

A ágora,

antes circunscrita ao espaço físico da polis, ganha com a delimitação operada por Platão

ambientação mais ampla e duradoura; diríamos hoje que o espaço se tornou “virtual”. Ao

contrário do que pensa Hannah Arendt que diz ser Platão o responsável por fazer cindir ética e

política – filosofia e polis – ao se retirar da arena política arrastando a discussão para dentro da

Academia.93

É perfeitamente possível pensar o oposto ao retratar que Platão submete a política

ao projeto de totalidade da filosofia conferindo àquela a visão e o alcance que sozinha jamais

teria. O que na verdade a genialidade de Platão opera é uma inversão.

Digamos que a discussão, outrora restrita aos domínios da polis, recebe com a

sistematização intentada por Platão, no que qualifica e distingue seu discurso e o de Sócrates

88

H. Arendt. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins [et al.]. 3 ed. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 2002, p. 92. 89

Grifos meus. 90

Cf. M. Perine, Da discussão ao Objeto, art. cit. p. 101. 91

Cf. Idem, p. 99. 92

Cf. Idem, p. 105. 93

Cf. H. Arendt, op. cit., p. 91ss.

59

dos demais, a amplitude da história. A discussão – insuficiente, mas necessária –, agora

incorporada ao projeto da filosofia sistemática de Platão, rompe as fronteiras do tempo para se

estabelecer como atividade paradigmática para toda a posteridade. A luta empreendida por

Platão para preservar a memória do grande mestre, bem como situar diante de sua própria

filosofia, cada um dos discursos existentes e vigentes em sua época, exige sofisticados

recursos linguísticos – Jeane Marie Gagnebin chama de sutis estratégias retóricas – cuja

finalidade é o convencimento de que sua narrativa corresponde ao relato fidedigno dos

acontecimentos.94

Não sem levar em consideração que, apesar da verdade enunciada pela

linguagem, existe a cilada em que cai a discussão e à qual é preciso dar resposta: “pode haver

erro sem que a investigação seja capaz de descobrir contradição alguma” (LF, 202).

O que percebemos assim é que a posição assumida por Platão “se vê entrincheirada entre

um discurso mentiroso, mas que parece verdade, e um discurso verdadeiro que não consegue

impor sua verdade”.95

Como podemos observar, não se trata de uma posição confortável, pelo

contrário: sem poder abrir mão das conquistas trazidas pela nova ciência que não é apenas

outra corrente (cf. LF, 188), reconhece igualmente sua insuficiência diante dos demais

discursos que buscam suplantar seu oponente. Marcelo Perine se refere ao Górgias como uma

“verdadeira declaração de guerra à retórica”, no qual Platão reagiu aos discursos que retomam

antigas acusações que faziam de Sócrates o inimigo do povo e traidor da democracia.96

Todo esse linguajar bélico (estratégia, trincheira, declaração de guerra) por parte destes

intérpretes desse momento áureo da filosofia não é absolutamente descabido e sem propósito.

Na guerra, como na política, o que importa para se sagrar vencedor é a tomada de posição no

sentido da conquista do território adversário. Já dissemos que a filosofia não está reduzida à

política, tampouco ela é a guerra. Contudo, não se pode ignorar que a linguagem da qual

inevitavelmente a filosofia faz uso contém a seiva da contra-dicção em que se situam todos os

discursos e, portanto, da competição entre eles.

Talvez ninguém tenha sido mais explícito nesse quesito do que Marx. Sua célebre Décima

primeira tese sobre Feuerbach é uma sonora conclamação a uma tomada de posição: é preciso

94

Cf. J.-M. Gagnebin, Lembrar, Escrever, Esquecer, op. cit. p. 194. 95

Cf. Idem., p. 188. Na Lógica da Filosofia lemos: « La Vérité est ainsi saisie, mais elle l’est seulement comme

le fond sur lequel tout disparaît, non comme celui sur lequel tout se montre: le discours est le mal. » (LP, 93) e

ainda, « Le langage ne suffit pas pour saisir la Vérité qui le transcende; mais il peut se montrer lui-même dans

sa vraie nature, qui est d’être faux. » (LP, 105). 96

Cf. M. Perine, Da Discussão ao Objeto, art. cit. p. 105.

60

não mais interpretar o mundo, mas transformá-lo!97

Em que pese todas as críticas quanto a esse

posicionamento categórico em matéria de filosofia – pois sempre se pode dizer que não há

transformação do mundo sem interpretação do mundo98

ou que a interpretação já é um processo

de transformação99

– Marx não tergiversa sobre o conflito que é a própria filosofia.

No entanto, antes dele podemos ainda encontrar em Kant circunstância parecida: o

criticismo transcendental é, como toda manualística largamente enfatiza, um posicionamento

acerca do conflito entre, ao menos, duas grandes correntes epistemológicas: racionalismo e

empirismo. Mas sua filosofia como um todo não se reduz a esse aspecto da primeira Crítica,

reduzida ao que se consolidou chamar revolução copernicana. Muito mais do que isso, como

aprendemos com Weil, essa filosofia é uma tomada de posição pelo fato, pelo sentido, ou pelo

fato que é o sentido. Em síntese, é uma tomada de posição que assume pensar aquilo que Weil

está convencido de ter encontrado na última Critica kantiana: o sentido como fato da razão.

Tarefa ainda por ser realizada por situar-se nos primórdios de uma segunda revolução

copernicana do pensamento kantiano (cf. PK, 8ss).

Essa é a razão pela qual optamos por não multiplicar os exemplos que pululam ao longo da

história da filosofia. Não se trata de construir uma galeria ilustrativa das correntes filosóficas

e suas perspectivas diferentes e divergentes, empreendimento que seria tanto enfadonho

quanto inútil aos propósitos desta pesquisa. Para nós, basta salientar essa dimensão do

filosofar e enfatizar, como Weil, que o mais fundamental quanto a isso é discutir, não esta ou

aquela posição, mas o fundamento de toda tomada de posição (cf. HE, 11).

Quanto à percepção desse caráter da filosofia, a abordagem de Paul Ricoeur não difere e

sua hermenêutica da “palavra que reflete com eficácia e que age mediante reflexão” (HV, 9) é

a própria atestação disso. Se porventura discorda da posição adotada por Marx – uma vez que

não há oposição radical entre o pensamento que observa e contempla e a práxis

transformadora –, é porque assume outra posição que vê na dialética do trabalho e da palavra

um campo de significações que não distingue dizer e fazer, significar e agir, pois

demasiadamente misturados, não coloca em esferas contrapostas theoria e práxis (cf. HV, 9).

Ademais, Ricoeur declara estar desde muito cedo fascinado pela arte de disputar questões (cf.

RF/AI, 48).

97

Cf. K. Marx. Sobre Feurerbach (1845) in A Ideologia Alemã. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e

Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 537 e 539. 98

Toda reflexão de Ricoeur na dialética entre trabalho e palavra alude a isso cf. HV, 8, 201ss. 99

« l’homme qui a compris ce qu’il fait n’est plus l’homme qui l’a fait, et sa prise de conscience est em même

temps la saisie de son attitude et sa libération de celle-ci » (LP, 70).

61

Essa hermenêutica compreende, à semelhança da Lógica da Filosofia, que uma

diversidade sempre pode ser agrupada em torno de eixos diretores, de natureza metodológica

ou temática. Não se trata de uma tipologia, um arranjo a partir de ideais-tipos, mas isso não

significa que aqui se prescinda de uma orientação do âmbito do pensamento universal (cf. HV,

7). Para Ricoeur, repetimos, não há dissociação entre clarificação dos conceitos orientadores

da investigação filosófica e preocupação interventora de natureza crítica na crise civilizatória

em andamento (cf. HV, 8) – pensar e interferir na realidade efetiva constituem duas

modalidades de uma mesma abordagem.

Um pensamento militante, assim, para lembrar Antonio Candido,100

compreende que a

diversidade das ações históricas permite uma orientação quando submetidas ao crivo

conceitual. A hermenêutica filosófica ricoeuriana faz passar a multiplicidade pela unidade do

conceito. Contudo, longe de querer suprimir a multiplicidade, esse procedimento é sua

atestação: tal como se pode verificar na duplicidade do uno aparente do símbolo (cf. CI, 15),

depois chamada de excesso de significação (cf. TI, 102), quando também se quer colocar em

evidência que a unidade só pode ser conseguida na medida em que organiza, num mesmo

feixe, diversas orientações que a princípio se revelam divergentes. Em síntese: com um e

outro filósofo temos uma tomada de posição pelo todo, visam, ao mesmo tempo, pensar o

todo pelas partes e/ou as partes pelo todo.

100

F. Aguiar (org.) Antonio Candido: pensamento e militância. São Paulo: Humanitas e Fundação Perseu

Abramo, 1999. Ricoeur também se refere ao seu pensamento no trato das questões políticas de igual modo cf.

CC, 158 e RF/AI, 56.

62

2. Rupturas, retomada, releitura

Comprendre c’est prendre ensemble les contradictions dans l’unité d’un sens

Éric Weil

2.1. Nota sobre o esquematismo

Kant, em sua Crítica da Razão Pura, define esquematismo como a conduta intelectual

que, procedendo por esquemas como elementos de mediação, aplica as categorias aos

fenômenos.1 Será através desse intermediário que o puro entendimento (categoria) e os

dados do sensível eliminam toda heterogeneidade e operam a síntese entre o geral da

categoria e o temporal do conteúdo da experiência. Para Kant, os conceitos são diversos e

heterogêneos assim como o sensivelmente dado, no entanto os conceitos podem ser

agrupados possibilitando que se cumpra a agenda do entendimento. “O conceito do

entendimento contém a unidade sintética pura do diverso em geral”.2

Importa para Kant, uma vez que todos os conceitos necessitam de esquemas, que haja

uma representação mediadora entre intuição e conceito.3 Esse terceiro termo estabelece o

“diálogo” entre a homogeneidade da categoria e a heterogeneidade dos fenômenos, por

possuir um lado intelectual e outro sensível permite a aplicação do primeiro aspecto ao

segundo.4 Isso porque a multiplicidade das impressões sensoriais necessita receber unidade

para que possam ser determinadas, ou seja, é preciso que um material indeterminado

estabeleça relação com sua forma determinada. Mas mesmo sendo um para o outro –

intuição e conceito, o material de uma forma e a forma de um material – não se pode

prescindir do terceiro momento dessa relação, pois é preciso ter mente que o esquematismo

é transcendental e, portanto, do âmbito das condições de possibilidade em que conceitos

“são formas possíveis para o material da intuição”.5

A certos conceitos devem se ligar determinadas experiências, senão a realidade não

passaria de uma livre divagação da fantasia e nenhum conhecimento dela seria efetivo. O

esquema da categoria como uma determinação transcendental do tempo é um método de

temporalização que faz a mediação entre o conceito e a intuição. Nesse particular, é o tempo

1 Cf. CRP, A 140, B 179.

2 CRP, A 138, B 177

3 Cf. O. Höffe. Immanuel Kant. Tradução de Christian Viktor Hamn e Valério Rohden. São Paulo: Martins

Fontes, 2005, p. 111. 4 CRP, A 138, B 177

5 Cf. O. Höffe, op. cit. p. 112.

63

– “como condição formal do diverso em geral”6 – que admite a superação da

heterogeneidade existente entre os fenômenos e os conceitos, estes por serem temporais

precisam se conceitualizar e aqueles necessitam ser temporalizados para se fenomenalizar.7

O esquema é ainda uma espécie de monograma da imaginação pura no qual as imagens

têm a possibilidade de ser geradas. Dessa forma, os esquemas distinguem-se das imagens

por estas serem produtos empíricos da imaginação empírica e poderem servir de exemplos

ilustrativos dos conceitos.8 Dito de outra maneira: o esquema do conceito é a representação

de um processo geral da imaginação para dar ao conceito a sua imagem.9 Kant fornece

como exemplo o esquema do triângulo que “só pode existir no pensamento e significa uma

regra da síntese da imaginação com vista a figuras puras no espaço”.10

Nesse sentido, o

esquema é a condição sob a qual o entendimento legislador faz juízos com os seus

conceitos, juízos que servirão de princípio a todo o conhecimento do diverso .

O múltiplo, o heterogêneo, o variado, e toda gama do dado da sensibilidade é sintetizado

pela imaginação para, pela representação gerada, compreender a própria diversidade sob um

determinado conhecimento. Para Kant, síntese e esquema não são a mesma coisa, isto é, não

cumprem a mesma função na imaginação pura: o esquema pressupõe a síntese. A

imaginação opera a síntese e a partir desta esquematiza.

2.2. O significado da tradução de reprise

Tem se mostrado bastante atrativa a maneira como os estudiosos da filosofia de Éric

Weil, em especial os de língua portuguesa, se debruçam sobre a o significado da tradução

reprise por retomada. Perine, por exemplo, embora reconheça que a tradução do termo

reprise por reassunção, feita por Bernardo, seja correta, chama atenção para o fato de no

Brasil a tradução mais difundida ser retomada, por esta comportar, além da significação de

“voltar a assumir, tornar a tomar (algo concreto ou abstrato, que se perdeu), recuperar”,

também há o sentido de “dar continuidade a, continuar (o que foi interrompido)”.11

Por sua

vez, Bernardo, conquanto admita a tradução de reprise por retomada seja pela adoção dos

6 CRP, A 138, B 177

7 Cf. J.-M. Vaysse. Vocabulário de Immanuel Kant. Tradução de Claudia Berlinder. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2012, p. 29. 8 Idem. Cf. CRP, A 142, B 181

9 Cf. CRP, A 140, B 180

10 Idem.

11 Cf. M. Perine, Da Discussão ao Objeto, op. cit. p. 89, nota 1 em que chama atenção para o verbete retomada

no Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009.

64

weilianos brasileiros e pelo colóquio monotemático que debateu esse conceito12

, seja pelas

razões indicadas por Perine, não se dá por vencido e adverte que reassunção seria mais

adequado para caracterizar o processo no âmbito da hermenêutica filosófica, por não se

prestar facilmente a aproximações equívocas como ocorre, segundo pensa, a outros termos

congêneres.13

Não pretendemos, ao apontar para essa dimensão que ocupa lateralmente os

pesquisadores, edificar nenhuma posição imbatível quanto a esse quesito. Contudo, uma vez

que também refletimos em língua portuguesa, não é possível negligenciar essa noção chave

e, além do mais, central na presente tese, sobretudo pelo papel que desempenha no âmbito

da Lógica da Filosofia, na qualidade de conceito articulador das categorias-atitudes dos

discursos filosóficos, bem como, o que advogamos nesta tese, na orientação geral do

procedimento adotado pela hermenêutica ricoeuriana.

Assim, instigados pelo que fazem estes intérpretes, convém adotar estratégias similares.

Ensaiamos nossa própria reflexão sobre esse ponto, começando pelo que faz Kirscher, que

embora não trabalhe em língua portuguesa, nos oferece uma reflexão centrada no

esclarecimento do conceito a partir da própria palavra. Sua empreitada é no sentido de

verter o vocábulo, primeiramente, na língua de origem.14

Devidamente atento à sua advertência quanto a situações usuais muito particulares em

que se deve utilizar a distinção entre termo e conceito, acreditamos que o esforço aqui tenta

se enquadrar naqueles casos das aplicações em que a permuta de significados entre as duas

funções da palavra concorre para a elucidação através do entendimento da multiplicidade de

sentidos. Kirscher possibilita a compreensão, na mútua articulação conceito-palavra, da

retomada como:

o ato de tomar novamente o que tinha sido deixado de lado, de apanhar o que

havia sido perdido, de refazer um escrito abandonado, de voltar a uma

atividade interrompida, de restaurar um trabalho, de corrigir um tecido

rasgado, de replicar no palco ou tomar a palavra novamente, de repetir uma

figura verbal, de revitalizar um pensamento esquecido, de impulsionar uma

12

Colóquio Internacional Éric Weil Le reprise, les reprises Lisboa, 2012 Universidade Nova de Lisboa e Centre

Éric Weil Université de Lille 3. Todos os trabalhos foram organizados e publicados num único volume dirigido

por L. M. Bernardo; P. Canivez; E. Costeski. A Retomada na Filosofia de Éric Weil, Cultura. Revista de

História e Teoria das Ideias (Lisboa), 31(2013). 13

Cf. L. M. Bernardo, Retomar: uma condição narratológica de textualidades comuns, Cultura, op. cit. p. 302,

nota 2. 14

Cf. G. Kirscher. Le début est dans la reprise, Cultura, op. cit. pp. 31-45.

65

nova energia, de recuperar uma propriedade dada, etc.15

Essa polissemia com a qual a palavra retomada em seu uso corrente joga é um traço

comum tanto em relação ao termo quanto ao conceito: no primeiro, uma extensa rede de

significados transmitidos pelas diferentes acepções usuais do termo; no segundo, o de uma

ação sobre o diverso das atitudes humanas que permite apreender na teia dos múltiplos

sentidos aquele que é o essencial de um determinado discurso.

Segundo Kirscher, do ponto de vista conceitual – conceito para e da Lógica da Filosofia

– a retomada (reprise) é, antes, um ato interpretativo, mas não podendo desconsiderar o

significado verbal fundamental nele presente, pois ato e resultado, simultaneamente,

designado pela forma infinitiva retomar (reprendre). “A ‘compreensão’, diz Kirscher,

corresponde ao ato de ‘compreender’ do qual ela resulta, a ‘retomada’ ao ato de ‘retomar’ e

ao discurso no qual resulta”, isto é, a retomada é, ao mesmo tempo, ato e resultado do ato

designado pelo verbo retomar.16

Em uma nota muitíssimo esclarecedora sobre um

desdobramento dessa ideia, segue dizendo que a palavra “repreensão” (repréhension) – do

latim reprehensio, ação de desdizer-se ou retratar-se; correção; repreensão, censura;

refutação17

– poderia ser o mesmo que compreensão, pois “retomar” (reprendre) é

“compreender” (comprendre). Mas o termo se revela, no entanto, inadequado visto que “tem

uma significação reduzida ao domínio do juízo de valor (reprovação)”, inadequação muito

fácil de ser constatada, dado que uma reprimenda ocorre sempre que se deixa de fazer algo

e/ou se faz algo de errado.

Se dirigirmos nosso olhar para o termo prendre, raiz mais próxima da forma básica

prend- da qual partem as demais formas, verificaremos que entre toda a riqueza polifônica

do vocábulo18

, há sempre um conjunto de palavras correlatas para onde converge uma

significação comum. No Brasil, habitualmente traduzimos prendre por tomar, expressão

igualmente rica do ponto de vista semântico, convergente de significações múltiplas. Na

Lógica da Filosofia não se trata tanto de tomar (prendre), mas de retomar (reprendre)19

ou,

15

« l’acte de prendre à nouveau ce que l’on avait laissé de côté, de rettraper ce qui avait été perdu, de

retravailler un écrit délaissé, de revenir à une activité interrompue, de restaurer un ouvrage, de repiécer un

tissu déchiré, de répliquer sur scène ou de prendre à nouveau la parole, de répéter une figure verbale, de

revivifier une pensée oubliée, d’impulser une nouvelle énergie, de récuperer un bien donné, etc. »Idem, p. 33. 16

« La « compréhension » correspond à l’acte de « comprendre » dont elle résulte, la « reprise » à l’acte de

« reprendre » et au discours qui en résulte » Idem, p. 31. 17

Houaiss, op. cit. 18

O Houaiss, op. cit. atribui mais de 50 significações a esta expressão. 19

É interessante notar, no tocante a argumentação aqui apresentada, o fato de que das 20 ocorrências da forma

reprendre na Lógica da Filosofia, apenas em duas não foram traduzidas para retomar, mas para “recompor” e

“refazer”. No entanto, o sentido permanece o mesmo diante do (com)texto no qual a palavra fora utilizada.

66

mais precisamente, de retomada (reprise). No entanto, não se retoma senão aquilo que já se

tomou antes. Sob esse ângulo, retomar constitui uma ação sobre ação.

De qualquer maneira, o ponto para o qual Kirscher chama atenção permanece aberto à

reflexão. É impossível desatrelar por completo o conceito de sua significação verbal, por

outro lado, para funcionar como conceito uma palavra não pode se limitar à sua forma

verbal. Existe uma amplitude do conceito que o uso corrente não consegue acompanhar,

entretanto, o conceito é sempre utilizado em circunstâncias muito especiais, o conceito é

sempre daquela filosofia, daquele filósofo, etc.

A dificuldade, no caso específico da retomada, é que a multiplicidade significados do

termo tende para a recolha comum de sentido no conceito, este por sua vez, que atua na

diversidade das significações, exige a captura do sentido subliminar, anunciado tão somente

marginalmente, para depois categorizá-lo.

No fundo, para a Lógica da Filosofia, a questão é a de como interpretar uma maneira de

viver, no que ela é capaz de produzir, por suas próprias atitudes, de novidade. Saber o que se

manifesta de radicalmente novo nessa atitude, ainda que ela não se dê conta disso. Até esse

ponto, não se trata ainda de elevação de uma atitude à uma categoria. Pois o sentido daquilo

que é enunciado pela atitude é captado apenas parcialmente e, assim, não permite que o

sentido manifesto seja compreendido em toda sua extensão como novo, muito embora esse

novo esteja lá, misturado com a antiga forma que acaba de ser retomada. Sem reconhecer a

nova figura do sentido, uma vez que encoberta pelo véu do “já conhecido” e “bem

conhecido”, a retomada ignora o que efetivamente de novo nasceu nesse movimento.

Contudo, em que pese seu desconhecimento da nova figura do sentido no momento da

apreensão, ela deverá se confrontar com essa nova figura de sentido.20

Pois, algo se comportou diferentemente quando da visada retrospectiva. O que antes era

tomado por permanente passa a nebuloso e eis que nasce o trabalho da interpretação. A

retomada apreende a atitude nova com a ajuda de uma categoria mais antiga que ela retoma

no sentido corrente do termo. No entanto, do ponto de vista da Lógica da Filosofia, “não é a

antiga categoria que é ‘retomada’: é a nova atitude que é ‘retomada sob’ ou ‘retomada pela’

categoria anterior”. 21

“Retomar” uma “forma de vida”, não é apenas retornar a uma forma de

vida antiga, como parece indicar a palavra (“re-tomar”, “tomar

20

Cf. G. Kirscher, Le début est dans la reprise, art. cit. p. 31-32. 21

Idem, p. 31.

67

novamente”), mas interpretar o que esta forma de vida exprime e afirma

dela mesma e de seu mundo, é tentar dar forma de discurso coerente

consciente de si à linguagem que ela fala, é então, tentar compreender a

atitude que se apresenta e que suscita a interpretação na medida em que ela

surpreende, turva, choca, inquieta. A interpretação tenta esclarecer o que

aparece e encontra o sentido essencial dessa atitude. Ela tende para a

explicitação e a formulação desse sentido que ela antecipa totalmente

ligado a uma forma estabelecida, fixada, de compreender. Ela visa a

categoria filosófica na qual a atitude compreenderia seu mundo e se

compreenderia a si mesma. A plena compreensão seria alcançada se o

discurso filosófico conseguisse atingir, em sua unidade e em sua unicidade,

esse sentido essencial da atitude, presente em todas as outras: a categoria

de atitude, categoria única e não misto de categorias, donde categoria

irredutível a todas as outras, determinante a atitude correspondente como

“pura”.22

É na qualidade de um compreender que a retomada eleva uma linguagem de uma

determinada forma de vida a um discurso elaborado e coerente. Porém, essa compreensão é

embaralhada por atingir a verdade dessa linguagem apenas parcialmente. Assim, o que é

atingido pela compreensão também se esquiva dela, isto é, o radicalmente novo essencial e

fundamental da atitude se manifesta e se esconde.

Feitas essas considerações acerca da correspondência, na própria palavra, entre conceito

e termo, passemos a uma pequena observação de Evanildo Costeski sobre a tradução do

termo reprise para a língua portuguesa. Ele argumenta que, não obstante a existência de um

homônimo em nossa língua, sua opção é pela tradução dada por Marcelo Perine, uma vez

que “a reprise weiliana não indica uma simples reprise ou repetição automática de um

conteúdo ou de uma linguagem anterior, mas justamente, uma retomada fundamentada na

própria liberdade do homem da atitude”.23

Costeski compreende bem a existência de uma primeira camada da compreensão, isto é,

o seu aspecto descritivo da reprise, muito embora não seja este seu único papel, não

podemos ignorá-lo. Ricoeur que, por vezes, faz uso do processo de descrição

22

« Reprendre » une « forme de vie », ce n’est donc pas revenir à une forme de vie ancienne, comme semble

l’indiquer le mot (« re-prendre », « prendre à nouveau »), mais interpréter ce que cette forme de vie exprime et

affirme d’elle-même et de son monde, c’est tenter de donner forme de discours cohérent et conscient de soi au

langage qu’elle parle, c’est donc tenter de comprendre l’attitude qui se présente et qui suscite l’interprétation dans

la mesure où elle étonne, trouble, heurte, inquiète. L’interprétation tente d’éclairer ce qui apparaît et de trouver le

sens essentiel de cette attitude. Elle tend vers l’explicitation et la formulation de ce sens qu’elle anticipe tout en

demeurant attachée à une manière établie, fixée, de comprendre. Elle vise la catégorie philosophique dans laquelle

l’attitude comprendrait son monde et se comprendrait elle-même. La pleine compréhension serait atteinte si le dis-

cours philosophique parvenait à saisir, en son unité et en son unicité, ce sens essentiel de l’attitude, présent dans

toutes ses expressions et dans toutes ses actions, qui distingue cette forme-là de la vie de toutes les autres: la

catégorie de l’attitude, catégorie unique et non mixte de catégories, donc catégorie irréductible à toutes les autres,

déterminant l’attitude correspondante comme « pure » Idem, p. 32. 23

E. Costeski. Atitude, Violência e Estado Mundial Democrático: sobre a filosofia de Éric Weil. São Leopoldo:

Unisinos; Fortaleza: UFC, 2009, p. 89, nota 44.

68

fenomenológica que a reprise comporta, tal qual nossa argumentação acima a respeito do

vocábulo apontou. Nesse sentido e a esse respeito as contribuições dos tradutores

portugueses de A Simbólica do Mal são precisas, dizem:

A expressão sui generis que Ricoeur utiliza é «répétition en imagination et

en sympathie», a qual é utilizada para tentar conciliar o método eidético da

fenomenologia com a crença da consciência religiosa... o método

filosófico, de alguma forma, tenha de tentar colocar-se no lugar da

consciência religiosa para poder reconstruir a experiência que pretende

descrever... “répétition” será igualmente utilizado... para designar a

reiteração de determinados atos em contexto ritual.24

O que escapa ou ignoram geralmente os tradutores/comentadores de Ricoeur é o fato de

que ele faz uso da reprise numa direção muito próxima à de Eric Weil. Devidamente

considerado, esse cruzamento permite estabelecer as linhas de convergências entre estes

autores trazidos ao diálogo. Como foi possível perceber acima, não se trata somente de

descrição, mas da capacidade de ouvir atentamente o discurso que se manifesta a fim de

recriar o mesmo ambiente do qual o discurso primeiro partiu. O exemplo vem do próprio

Ricoeur ao explicitar não somente as intenções do método, mas também a predisposição que

se deve ter para ser capaz de se colocar no lugar do outro:

o mythos já é logos, mas há ainda que o retomar no discurso filosófico.

Esta propedêutica mantém-se ao nível de uma fenomenologia puramente

descritiva que deixa falar a alma crente cujas motivações e intenções o

filósofo adota provisoriamente; o filósofo não as “sente” na sua primeira

inocência [naïveté première], “ressente-as” [Il les “ressent”] num modo

neutralizado, no modo do “como se” (SM, 35).

Os tradutores de A Simbólica do Mal têm uma percepção bastante ilustrativa daquilo que

queremos apontar, eles nos alertam para o fato de Ricoeur jogar com os termos “reprise” e

“repetição” ao utilizar a palavra “ressentir” (ressent) – uma referência a Nietzsche, como

observam – cujo prefixo comum a ambas palavras indicaria tanto repetição quanto retomada

do sentimento num plano diferente, no caso, num plano axiologicamente neutro da pura

descrição.25

A esse propósito, nos pareceria igualmente produtiva a confrontação da retomada com a

repetição em Kierkegaard e o eterno retorno nietzschiano, como faz Costeski,26

assim como

com a mimesis de Aristóteles. Ora, nada parece mais radicalmente pobre em sua

significação ordinária que o que se verifica sob o nome de imitação (mimesis). Se apenas

24

Nota dos tradutores portugueses de SM, nota 2, p. 19-20 [Ed. port.]. 25

Cf. Idem, nota 16, p. 35 [Ed. port.]. 26

E. Costeski, op. cit. p. 93ss.

69

permitíssemos que a palavra imitação traduzisse mimesis sem considerar todas as

determinações que esta palavra comporta e transfere à esta outra que serve como

equivalente, interditaríamos a reflexão filosófica pela impossibilidade da recuperação de

sentido. Compreendemos que mimesis não é apenas o ato e o efeito de imitar algo,

tampouco a mera reprodução (mesmo que seja a tentativa mais fiel) de alguma coisa. Ora,

as palavras em filosofia ganham em espessura ao serem adotadas como conceitos. A mais

ordinária das palavras possui, em filosofia, sedimentos que a constituem e ampliam seu

significado. O significado tido por original não é absolutamente abandonado, mas,

tampouco, a filosofia se contenta com ele.

A palavra mimesis já possuía um significado antes de ser retomada por Aristóteles. O

mais conhecido foi aquele adotado por Platão em que a mimesis aplicada à arte não era mais

do que imitação da imitação. Sabemos que, do ponto de vista da ontologia platônica, a arte,

por ser cópia das coisas tangíveis, que por sua vez são expressões da Ideia, assinalaria o

duplo empobrecimento da realidade.

Entretanto, é com Aristóteles que essa expressão ganha riqueza perene ao passar pela

reflexão poética ressurgindo como uma espécie de criação ou recriação do real segundo as

leis da possibilidade e da verossimilhança.27

De apenas reprodução, ainda que seja a mais

exata possível de algo (imagem, cópia, plágio, representação, repetição), a mimesis passa a

significar a atividade segundo a qual novas dimensões, antes inimagináveis, são acrescidas

às coisas.

Na tragédia grega, lugar de grande convergência da reflexão de Aristóteles sobre a

poética, o novelo da trama é desfiado não apenas em observância aos versos poéticos, mas,

sobretudo, quanto às ações, uma vez que é sobre estas que o verdadeiro ato criador da

mimesis implica.28

Ao representar, o ator (quem atua, age), desapropria-se de si mesmo para

comunicar uma ação que só a princípio não é sua, mas que dela participa (méthexis)

possibilitando-lhe uma amplitude de caracteres originariamente não atribuídos ou

desvelando-os em si mesmo porque outrora ignorados. Dessa forma a encenação teatral

desenvolve, ela própria, ações sobre ações. Não se trata simplesmente de uma representação

imagética, muito embora isto esteja contemplado durante a encenação, mas o movimento do

desenrolar de uma intriga há muito conhecida sem, no entanto, nunca ter sido visualizada. A

27

Cf. G. Reale. História da Filosofia Antiga v. 2. Tradução de Henrique C. de Lima Vaz e Marcelo Perine. São

Paulo: Loyola, 1996, p. 485ss. 28

Idem, p. 486.

70

tragédia, por ser uma composição do mito, é mimesis da ação. Com Aristóteles, a mimesis

deixa de ser tão somente a condição passiva de mera cópia e assume a condição também de

uma méthexis.

É nesse mesmo sentido que Ricoeur associa seu conceito de refiguração à mimesis.

Dialeticamente falando, só num primeiro nível mimesis é imitação, pois sobre esse nível

desdobram-se dois outros: a mimesis como reconstrução e, por fim, como capacidade

transformadora, a refiguração (cf. CC, 118-119). Para ele, pela sua capacidade de, a partir

da obra, reestruturar o mundo do leitor desarrumando, contestando e remodelando as

expectativas do leitor, esse conceito cumpre uma função muito similar à da mimesis, pois

importa não reproduzir o real, mas reestruturar o mundo do leitor em confronto com o

mundo da obra. Assim, o leitor é arrebatado, a partir do interior, em sua experiência

cotidiana (cf. CC, 236).

Para Ricoeur, a experiência da tradução exige que o sentido das palavras seja, cada vez

mais, adivinhado sem, no entanto, que se possa fundá-lo definitivamente numa estabilidade

adquirida. “Traduzir é inventar uma constelação idêntica em que cada palavra recebe o

apoio de todas as outras e, gradualmente, tira benefício da familiaridade com a língua

inteira” (MV, 126).

Eis porque não veríamos nenhuma dificuldade insuperável no uso do termo reprise, em

português, para traduzir o conceito reprise em francês. Especialmente porque sendo a

tradução uma troca, no caso da reprise, a primeira troca que se impõe é a que ocorre entre

conceito e termo. Se se mantêm as mesmas extensões características do termo weiliano e,

portanto, da inovação que imprime na palavra; se se observa que na espessura da palavra há

sedimentos outros, oriundos de significações de uma longa tradição, e que é na permuta que

se resolvem, então, não há por que temer o uso do homônimo desta palavra.

Tal como mimesis não é só imitação, reprise não é somente repetição. Ambas expressões

guardam o caráter de uma continuidade sem, no entanto, se esgotar naquilo que continuam

ou repetem. Dito de outra maneira; permitem ser a mesma coisa de maneira diferente, e

acentuando essa diferença, acabam por reconhecer no outro do qual se originam e partem

um aspecto de si mesmo. Aliás, quando Kirscher nomeia seu artigo com a afirmação da

Lógica da Filosofia de que “o começo está na retomada” (LF, 608) não (re)afirma outra

coisa senão, rigorosamente falando, que não há originalidade em filosofia, segundos os

71

fortes termos da Filosofia Moral.29

A filosofia, diz Weil, “é sempre a mesma, não porque ela

persiste, mas porque ela sempre começa. Assim como a poesia é a eterna juventude da

criação, ela é a eterna renovação do homem que se tornou outro para si mesmo”. (LF, 608).

2.3. Aplicação da retomada

2. 3. 1. Filosofia, história e história da filosofia

Tentemos compreender agora, a partir do que ficou dito, o uso desse recurso por meio de

dois dos seus mais entusiasmados seguidores: Éric Weil, para quem a retomada, conceito

operatório de sua Lógica da Filosofia, é o próprio esquema: “a retomada, para empregar um

conceito kantiano, é o esquema que torna a categoria aplicável à realidade e que permite

assim realizar concretamente a unidade da filosofia e da história” (LF, 123); e Paul Ricoeur,

que adota a mesma conduta pelo enfrentamento minucioso da multiplicidade, da diversidade

e singularidade em que opera sua hermenêutica, seja pela simbolização como anteriormente

na sua reflexão em A Simbólica do Mal seja usando a esquematização ou mesmo admitindo

explicitamente o emprego da retomada.

Eric Weil apresenta a retomada na Lógica da Filosofia como um conceito essencial à

verdade, que permite a aplicação da Lógica à realidade histórica ao buscar compreender os

discursos concretamente sustentados pelos homens do passado e do presente. Por ter

escolhido compreender e por compreender somente por meio do que se desenvolveu na

coerência (categoria), a filosofia articula categoria pura e atitude irredutível, ou seja, prende

junto a dinamicidade das livres atitudes humanas com o que permite pensar essa mesma

liberdade no discurso filosófico (cf. LF, 118ss)

A relação liberdade-discurso é o ponto da questão de Costeski sobre a retomada, para a

qual sugere três funções: uma é a que transforma atitude em categoria; a outra é a que cria a

linguagem; e por fim, a que é aplicada à realidade à semelhança do Schema kantiano. O

intérprete sugere ainda que as duas primeiras funções se ligam à dýnamis da

liberdade/espontaneidade das atitudes, enquanto a terceira cumpriria a função mais lógica

29

« La philosophie, em particulier, si elle tient à être vrai, n’est qu’une collection de bana lités et ne peut être

que cela : si elle ne dit pas ce que tout l’homme sait (mais ne sait la plupart du temps, il est vrai, que de manière

inconsciente, ce qui fait que la vérité apparaît dans les actes, et se cache ou est niée dans les paroles), si elle ne

dit pas ce qui permet à tout homme de reconnaître qu’il a’agit de lui-même et de ce qu’il fait, sent, voit, pense, la

philosophie sera originale, c’est-à-dire fausse, et sa fausseté se montrera, soit dans son incohérence, soit dans

son incapacité de retrouver ou de conserver la possibilité de comprendre positivement ce qui, selon les discours

et les actions de tout le monde, importe » (PM § 15 e).

72

propriamente, pois permite “a compreensão da dinamicidade da atitude dentro da

sistematicidade da Lógica da Filosofia”.30

Sem querer estabelecer polêmica desnecessária, somos levados a fazer um pequeno

reparo nessa interpretação, uma vez que isso se revela necessário e fecundo para a

finalidade de nossa exposição. Do ponto de vista de nossa interpretação, as atitudes só

podem se transformar em categoria exatamente na medida em que lhes é conferida, desde

sempre, sua função lógica. Tendo a retomada assumido a mesma função que o esquema, ela

só pode querer enfeixar o conjunto das atitudes históricas do homem empírico para poder

compreender sua dinamicidade. Se, por um lado, a primeira função, como fala Costeski, está

vinculada à liberdade das atitudes humana, por outro, essa mesma liberdade é já liberdade

orientada e, portanto, articuladora e não entregue à dispersão. É ponto pacífico que a

retomada retenha em si os dois aspectos apontados por Costeski, mas por ser conceito

operatório da Lógica e por ser o lógico da filosofia o operador do conceito, só há retomada

se conjugadas, simultaneamente, liberdade e discurso, violência e razão.

É por meio dessa articulação que a filosofia vai se tornando cada vez mais consciente da

insensatez daquilo que ela pretende compreender e, portanto, do que não se presta a fácil

unidade. Trata-se, enfim, para a filosofia, da promoção do seu próprio encontro com a

história. Por um lado, completamente estilhaçada, por ser o ambiente inequívoco da

violência, a história só pode receber algum sentido na coerência do discurso. Por outro lado,

a filosofia, inclinada para a compreensão do discurso e pelo discurso, sabe que o conteúdo

da história é incoerente, é pura contradição. É nesse domínio da abordagem da relação entre

filosofia e história que a partilha de procedimento, entre Weil e Ricoeur, pode ser

amplamente percebida.

Por considerar que a filosofia “é a reflexão da realidade no homem real” (PR I, 13), que

este escolheu livremente a razão e para ela está voltado, Weil postula a identidade da

filosofia e da história (LF, 103ss). Para a filosofia esse homem é homem do discurso

razoável – nem totalmente razão, nem totalmente entregue à violência – que se decide pelo

discurso coerente em vista de sua universalidade. Mas essa tomada de consciência pelo

homem só é possível “depois de haver percorrido o discurso em sua totalidade” (LF, 103).

Isso significa que a filosofia mantém um olhar retrospectivo sobre si mesma para, em

seguida, constituir-se como sistemática, quer dizer, como história filosófica da filosofia: “a

30

Cf. E. Costeski, op. cit. p. 89.

73

filosofia só se compreende em sua história e nada é senão essa tomada de consciência” (LF,

104).

Ora, a história é sempre a história feita por homens, narrada por homens, lida por homens

e, no caso da história da filosofia, esse homem é o filósofo que, como diz Ricoeur, tem

motivos muito particulares para empreender a leitura que finaliza a história na perspectiva

da coincidência entre afloramento da consciência e sua reassunção . Por outro lado, ainda

segundo Ricoeur, esse mesmo trabalho de leitura empregado pelo filósofo, quer dizer de

retomada, é aquilo que reabre a história e lhe dá prosseguimento em duas direções: na

perspectiva de uma “lógica da filosofia”, cuja pesquisa é orientada pela exaltação de um

sentido coerente a ser decifrado na história; e na direção de um diálogo sempre mais

singular e exclusivo com os filósofos e as filosofias individualizadas, cuja meta –

aparentemente menos ambiciosa, mas não por isso menos importante – é a articulação

intersubjetiva da história (cf. HV, 35ss).

Para Ricoeur, a primeira direção é a maneira como Weil, entre outros31

, desenvolve sua

interpretação da razão e da história. Compreende que o aflorar da consciência, nesse

pensador, tem claro para si que o que se procura, em si mesmo, coincide com a história da

consciência. O itinerário que leva do eu ao Eu é considerado ao preço de um longo desvio

que a reflexão realiza pela história e nela redescobre seu próprio sentido. Amplitude e

sistematicidade são o que se busca operar nesse tipo de leitura da história. O percurso

escolhido é o que ocorre pela via longa do desvio pela história da consciência.

Compreendamos a modificação. Não é apenas a consciência que dota a história de

sentido ao desenvolver uma história da razão. Ao fazê-lo a consciência permite-se

compreender que é a própria razão a ser historicizada. O desenvolvimento da história da

razão, que leva qualificação à história, é o ponto de sutura entre historicidade da razão e

significação histórica (cf. HV, 37-38). A consciência recobra seu sentido nesse duplo

movimento de maneira reflexiva. Efetivamente, estamos aqui às voltas com uma

modalidade muito particular de aplicação ao fenômeno histórico, pela filosofia, da

fenomenalização do conceito temporalizado e do tempo conceitualizado, extraídos da

filosofia kantiana como acima descrito. Não é absolutamente estranha a apropriação desse

método, uma vez que, segundo Ricoeur, é o filósofo que compõe a história pela aplicação da

retomada, por ele entendida como operação de segundo grau e ato exclusivo de

31

Faz referência, além do próprio Weil, a Comte, Hegel, Brunschvicg e Husserl (cf. HV, 36).

74

responsabilidade filosófica (cf. HV, 39).

Na linguagem de Eric Weil, a história dos historiadores faz surgirem

“atitudes” humanas; o filósofo, pelo seu ato específico de retomada, eleva

as “atitudes” ao nível de “categorias” num “discurso coerente”; mas então

essa história do espírito já é uma “lógica da filosofia” e não mais uma

história de historiador (HV, 39).

Desse modo, em que pese as objeções que o historiador possa vir a fazer, o filósofo segue

compondo a história que não é história de historiador, tampouco é realidade absoluta

(história substancializada), mas possibilidade de leitura em função do sentido. É por esse

ato da retomada, segundo Ricoeur, que a descontinuidade entre o evento e o advento

permanece como experiência da manifestação do sentido (cf. HV, 40). Ou como diz Weil, os

acontecimentos não trazem o sentido da história, estes importam ou não quando vistos do

único ponto que constitui a história como unidade: o sentido formal. Na medida em que a

unidade precede logicamente os acontecimentos, ela não é abstraída deles (cf. FM § 13 c).

Não há necessitarismo que comandaria a história de uma vez por todas. De nenhum

acontecimento (ou mesmo do conjunto deles) se extrai absolutamente a marcha totalizadora

do mundo. O que se tem é apenas um pressuposto assentado nas atitudes humanas que o

filósofo retoma na linha do sentido, sem que isso signifique virar as costas para os perigos

que rondam toda história da consciência. Em síntese, o que o filósofo busca é reencontrar

em sua história, história da filosofia, os objetivos próprios da razão. E ele os re-encontra

“como única consciência humana cujo sentido está a caminhar como uma série contínua de

momentos lógicos” (HV, 42). Contudo, esses objetivos são os de quem escolheu livremente

a razão e sabe plenamente que ela não é a única possibilidade.

A segunda direção indicada – por onde se movimenta a própria prática filosófica

ricoeuriana –, tende a ser algo muito diferente por se concentrar, sobretudo, nas dobraduras

dos sistemas. Aqui a condução da leitura filosófica da história se faz privilegiando a

intimidade e a singularidade: seja das filosofias particulares seja dos problemas específicos

tratados por estas filosofias (cf. HV, 40ss). Importa o voltar-se para essas modalidades, nas

quais campeiam a multiplicidade, para buscar nelas o fio condutor que atravessa toda uma

época, não para colocar as filosofias e/ou seus problemas no movimento da história, mas

para cada vez mais vincular essas dimensões às pessoas e às obras de seu próprio tempo.

Assim, mergulhada no contexto no qual determinada filosofia foi produzida e frequentando

exaustivamente um determinado autor (ou um número restrito deles), essa leitura, tão

chocante para o historiador comum quanto a anterior, busca compreender as relações

75

estreitas dessa espécie de comunicação mais próxima que os filósofos estabelecem na

comunidade em que estão inseridos. A condução da reflexão ocorre pela via curta do

próximo em próximo.

a história da filosofia compreendida como memória das grandes filosofias

singulares: pois nesse caminho, que parte de minha situação em direção à

verdade, não há senão uma via de superação, a comunicação. Não tenho

senão um meio de sair de mim mesmo: é expatriar-me em outrem. A

comunicação é uma estrutura do conhecimento verdadeiro. Graças a ela, a

história da filosofia não se reduz a um desfile irracional de monografias

dispersas, pois ela manifesta o “sentido” para mim desse caos histórico.

Essa história não é mais o “museu imaginário” das obras filosóficas, mas o

caminho do filósofo de si para si mesmo. A história da filosofia é obra de

filosofia como desvio da clarificação do eu (HV, 55).

Compreendida nesse envolvimento intersubjetivo, no qual é pela comunicação total das

consciências que se verifica o próprio conhecimento a partir de vestígios e documentos, a

história só é captada indiretamente como diálogo, dado que não há um outro que responda

em reciprocidade imediata. Do mesmo modo, a vigência dessa leitura não privilegia apenas

os grandes gênios e as generalidades decorrentes da investida global, mas, igualmente, faz

uma opção pela obra na medida em que esta é singularidade irredutível a tipologias.32

Vista

sob esse prisma, e tendo que dividir centro de gravidade entre o gênio criador e a obra

singular, a história surge como uma série descontínua de múltiplas emergências em que o

aflorar da consciência passa pelo tratamento específico de cada uma delas fim de ter o seu

sentido próprio manifesto.

Para Ricoeur, ambas as possibilidades de leitura estão assentadas sobre a retomada. A

história pode ser lida singularmente como história da consciência, quer dizer, como busca

sistemática cujo intuito é encontrar um sentido humano que unifique e torne razoável a

história humana que é única (cf. HV, 277 e L1, 147). Mas há também a leitura que implica

os homens no plural, nela as pessoas são tomadas como centros radicalmente múltiplos que

necessitam ser tratados em sua existência singular – história das consciências. No primeiro

caso, a consideração da história no singular implica a verificação da pluralidade, uma vez

que se trata de unificação de sentido que perpassa a história humana. No segundo caso,

considerada em sua pluralidade, a história tende ao exame singular por querer reorganizar o

cosmo a partir de obras particulares. Os dois caminhos, para Ricoeur, são legítimos e

atestam a continuidade e a descontinuidade da história, pois, ao mesmo tempo em que se

32

Para Ricoeur, “quanto mais se aprofunda uma filosofia, mais se aceita o nos deixarmos expatriar por ela (mais

se compreende, em consequência, a irredutibilidade dessa filosofia a tipos)” (HV, 60).

76

pode verificar nela um único sentido em marcha é possível tomá-la como uma disparatada

constelação de pessoas (cf. HV, 42).

Para Ricoeur, a leitura debruçada sobre os eventos permite que se compreenda que o

problema do sentido não é exaurido pela investida que segue a linha do encadeamento.

Eventos são os nós da história que, como tais, são centros organizadores do pensamento e,

nesse sentido, plenos de significação. Concentrar atenção em tais dobras do sistema é

permitir-se multiplicar, em variadas direções, o problema que ali se localiza, sem, contudo,

comprometer a escolha inicial que conduziu o pensamento até aquele ponto.

Pode pois a história ser lida como desenvolvimento extensivo do sentido e

como irradiação de sentido a partir de uma multiplicidade de centros

organizadores, sem que nenhum homem mergulhado na história possa ordenar

o sentido total desses sentidos irradiados. Toda “narrativa” participa de dois

aspectos do sentido: como unidade de composição, ela aposta na ordem total

em que se unificam os eventos; como narração dramatizada, ela corre de nó

em nó, de rugosidade em rugosidade. (HV, 43).33

Notadamente, nenhum privilégio é advogado para qualquer uma dessas leituras. Não se

pretende estabelecer um julgamento de mérito que poria em relação hierárquica estas

leituras. Na prática, Ricoeur defende que a história se presta a essa dupla leitura: por um

lado, aquela do advento da consciência histórica, desvelador de sentido que leva a um

otimismo da ideia; por outro, a da produção de diversos centros de consciências condutores

à ambiguidade trágica da ação do homem, marcada sempre pelo recomeço e pela

possibilidade de desilusão. Ambas conduzem a reflexão filosófica à compreensão de que o

objeto da história é o próprio sujeito humano (cf. HV, 43ss).

Novamente percebemos que, para Ricoeur, é preciso que haja a coincidência entre as

duas vias – longa e curta – no tratamento da compreensão histórica. Todavia, tanto o ponto

de partida quanto o de chegada atestam esse dilaceramento em que se encontra o homem.

Posição absolutamente semelhante defendida por Weil, pois a identidade entre filosofia e

história situa-se exatamente no homem que, sendo liberdade e linguagem, decide-se por

realizar um discurso voltado para o universal, mas que não possui garantia alguma de que

obterá sucesso, simplesmente porque sabe não ser razão, mas razoável, isto é, ele tem

apenas a possibilidade de realizar sua razão pela liberdade e sua liberdade pela razão.

“História humana e filosofia são, assim, apenas dois aspectos que o homem apresenta a si

33

Noutra passagem a mesma ideia: “Toda história pode ser compreendida como exaltação de um sentido e

emergência de singularidades. Essas singularidades são ou acontecimentos ou obras, ou pessoas. A história

hesita entre um tipo estrutural e um tipo baseado em acontecimentos. Mas é unicamente na clarificação do

discurso filosófico que essas duas possibilidades se separam e se manifestam.” (HV, 77).

77

mesmo de si mesmo” (LF, 105).

Para Éric Weil, atitudes são determinadas vivências que o homem mantém no mundo –

pouco importando se consciente ou não delas. Nesse mundo, o homem faz, isto é, realiza

sua vida em benefício de si mesmo inserido numa comunidade. Nesse mundo do existir, não

importa nenhum discurso, nem mesmo outra atitude além da que ele mesmo pratica. E se a

sua inserção na comunidade passa a considerar outra atitude, será tão somente a título de

negação. As atitudes se bastam a si mesmas, e o homem concreto (ou um conjunto deles),

que vive numa determinada atitude, pode nela permanecer indiferente a todas as outras e ao

que delas vier a ser formulado discursivamente (cf. LF, 106). Esse é, podemos dizer, o

aspecto sincrônico nuançado pela Lógica da Filosofia, no qual as atitudes são captadas num

eixo de coexistência em que a simultaneidade é sua marca indelével. Porém, discursos são

formulados em torno do que constitui o essencial de uma determinada atitude, a despeito de

sua recusa, e são estes discursos que importam para a filosofia.

As categorias, por sua vez, são a tomada de consciência, pelo homem, do que ele faz. As

categorias são os discursos que se forjam a partir das atitudes, mas somente para quem (o

filósofo) fez a opção pelo discurso e quer compreender o discurso que se produz sobre a

materialidade da história, sobre as ações dos homens. Por se compreender numa tomada de

consciência de si mesma, as categorias conduzem a uma compreensão da história pelo

sentido. Não exatamente uma sucessão temporal, histórica, mas lógica: “todas juntas, elas

revelam o sentido da história a quem escolheu o sentido, porque elas se compreendem...

como obra da história”. (LF, 109).

Ora, por ser a Lógica da Filosofia alimentada pela história e por organizar

sistematicamente os discursos filosóficos no âmbito da história, ela se constitui como uma

história da filosofia, ou antes, uma história filosófica da filosofia. Toda a exposição

ordenada da Lógica da Filosofia, que reflete as diversas figuras do discurso filosófico

distribuídas ao longo das sucessivas categorias-atitudes formuladas pela filosofia para si

mesma, visa ao encadeamento – não necessário, mas possível e, portanto, livre – em que a

filosofia e a história, ao se co-responderem, igualmente, se compreendem. A filosofia

olhando para seu longo caminho retoma a história, quer dizer, retoma sua história no tecido

da própria história dos homens.

Dessa forma, a retomada, em articulação com a filosofia e com o sentido, configura-se

78

como “um posicionamento diante da realidade, da história, de si e dos outros” .34

Um

posicionamento que leva em consideração, notadamente, o todo da realidade histórica que

também é o todo da filosofia. Pois, voltada para a história, a filosofia reconhece no seu

próprio percurso o que desde sempre a conduziu, a saber: o que faz sentido. Para Weil, “a

filosofia se define como ciência do sentido” (LF, 593) e, portanto, pode igualmente ser dito

que o que é retomado ao longo de sua trajetória é justamente o próprio sentido: é o sentido

aquilo que perpassa em cada atitude-categoria.

Na Lógica da Filosofia, o sentido é pensado como unidade estrutural (formal), daí não

ser possível confundir seu conteúdo com algo único e absoluto. Na filosofia weiliana a

razão é sabedora, enquanto afirma a estrutura sensata, de que nenhum discurso é suficiente

em si mesmo a ponto de esgotar o sentido concreto. Nela a razão é sempre aberta ao

conjunto das determinações do real. 35

O sentido como a “categoria filosófica da filosofia” é o norte do caminhar na história e

também o critério sob o qual toda decisão é tomada. Engana-se quem acredita que aqui não

se trata de decisão. Sendo a história o campo das múltiplas e diversas decisões, a filosofia,

por se tratar de compreensão, não pode querer compreender esta ou aquela decisão, mas o

seu conjunto: a filosofia decide e se decide em razão do sentido de todas as decisões. “A

tomada de consciência da história humana” (PR I, 35) conduz a filosofia a uma tomada de

posição e, portanto, à ação.

É necessariamente à história que eu me dirijo. Pois é apenas pela totalidade

da existência humana que o sentido pode ser atingido no devenir total. Eu

busco a totalidade da unidade e somente uma atitude fundamental, mantida

através da totalidade temporal, pode me fornecer o sentido. Não se trata

mais primeiro do que eu decido, mas a partir do que e em vista do que eu

me decido. A situação é única, a atitude pode ser retomada. O que me faz

tomar posição são as atitudes humanas concretas que eu reencontro –

mesmo que seja apenas para me opor a todas elas: toda compreensão, toda

justificação se elaboram diante da história (EC I, 221).36

Para Weil, uma vez efetuada a tomada de consciência, o discurso age: “o homem que

compreendeu o que faz já não é mais o homem que fez” (LF, 106) ou, como diz o intérprete:

34

D. Lins Jr. Filosofia, Filosofia, retomada e sentido in Cultura, op. cit. p. 110. 35

J.- M. Buée, Eric Weil, penseur de l’unité plurielle, art. cit. p. 394. 36

« C’est nécessairement à l’histoire que je m’adresse. Car la totalité de l’existence humaine qui en est le sens

ne peut être saisie que dans le devenir total. Je cherche la totalité de l’unité, et seule une attitude fondamentale

gardée à travers la totalité temporelle peut me fournir le sens. Il ne s’agit plus d’abord de ce que je décide, mais

de ce en partant de quoi et en vue de quoi je me décide. La situation est unique, l’attitude peut être reprise. Ce

qui me fait prende position, ce sont les attitudes humaines concrètes que je rencontre – même si ce n’est que

pour m’opposer à elles toutes : toute compréhension, toute justifications s’élaborent devant l’histoire ». (EC I,

221).

79

“a realidade compreendida já não é a mesma de antes da compreensão”.37

Assim, a tomada

de consciência é, ao mesmo tempo, a apreensão da atitude e a libertação dela (cf. LF, 106).

O homem “retoma... um discurso que, na sua ação, ele já ultrapassou” (LF, 122-123). Em

síntese: a retomada se revela uma tomada de posição da filosofia que, através de uma

compreensão pela história em razão do sentido, visa à sua realização.

Eis porque se pode dizer que da mesma maneira que o Sentido é a categoria da filosofia

é, também, a categoria da retomada.38

Por que o sentido como categoria da retomada?

Exatamente porque é o sentido que orienta a decisão da filosofia pelo todo da história que é

sua. O que é retomado pela filosofia é o sentido presente em cada decisão, em cada atitude

humana, em cada discurso constituído na história. A multiplicidade das atitudes recebe uma

ordem na unidade que é a categoria e em presença de uma coerência reclamada por todos os

discursos – até mesmo por aqueles que desejam varrer toda coerência do discurso. Por

conseguinte, o sentido é o fato presente irrenunciável no qual desemboca a particularidade

dos discursos. Para Weil, a terceira Crítica kantiana mostra que o verdadeiro problema é o

da unidade do mundo humano, mundo teórico, prático, mundo do sentido – numa palavra: a

unidade sintética do existir humano. É sob esse ângulo, para o pensador franco-alemão, que

é possível falar da realidade como uma totalidade compreensível (cf. PK, 61).

2.3.2. Retomada na composição da hermenêutica ricoeuriana

É sob essa articulação da dispersão que se torna não somente instigante, mas muito

reveladora a maneira como Ricoeur esquematiza sua atividade filosófica conscientemente,

atuante na dispersão, ou melhor, como aplica o esquema sobre a diversidade de sua própria

obra:

Em cada um de seus livros, Ricoeur esboça vastos afrescos históricos que

tentam reconciliar as abordagens mais diversas. Esse é o traço secretamente

‘hegeliano’ desse pensamento, que, contudo, resiste à ideia de uma síntese

totalizante... O oposto dessa riqueza é que, por vezes, pode parecer difícil

delimitar o núcleo de sua concepção hermenêutica. A unidade é o único

problema suscitado por esse pensamento hermenêutico. Problema relativo

porque ele é o resultado de uma superabundância.39

Trata-se, para nós, de uma aplicação sui generis da retomada. A retomada em Ricoeur

quando adotada em relação ao próprio percurso se caracteriza pela recuperação de uma

37

M. Perine. Política e compreensão da política (editorial), Belo Horizonte, Síntese, 43 (1988): p. 10. 38

Cf. D. Lins Jr., art. cit. p. 119. 39

J. Grodin. Hermenêutica. Tradução de Marcos Marcionillo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012, p. 95.

80

problemática. Nesse sentido, podemos afirmar que a hermenêutica ricoeuriana é uma

hermenêutica aplicada das retomadas aplicadas à sua própria obra. Como filosofia aberta à

multiplicidade, a hermenêutica filosófica ricoeuriana não pode deixar de considerar a

diversidade que representa sua própria obra. Portanto é que vê “muitas vezes nos restos do

tema precedente” a urgência de outro tema. Isso ocorreu, por exemplo, na relação que

estabeleceu com a psicanálise, uma vez que A Simbólica do Mal é o prenúncio do que

desenvolveria em Ensaio sobre Freud (cf. CC, 110).

Não atuando, preferencialmente, pela via longa dos desvios da história da consciência,

Ricoeur procede pela via curta a partir dos problemas, digamos que ele atua de nó em nó. No

entanto, não abre mão dos resultados a que chegaram os que fizeram a opção pelos longos

desvios, tanto os que atuaram pela história da consciência, quanto os que se debruçaram por

outros caminhos como a psicanálise, a linguística, o estruturalismo, etc. É dessa forma que

compreende que o seu próprio percurso não é marcado pela alternativa contínuo-descontínuo,

uma vez que cada livro gravita em torno de um problema fragmentário soçobrado de uma

reflexão precedente (cf. CC, 115). O que era discurso não dominante outrora, mas atuante de

algum modo, passa a ser predominante, depois de recuperado por aquela obra para a qual foi

promovido. O que antes era marginalizado torna-se o centro de toda uma obra. O que ocorre

no âmbito da produção filosófica de Ricoeur é um movimento sempre retrospectivo. Não é

bem progressivo o desenvolvimento de seu pensamento, mas uma volta atrás que recupera

uma problemática quase esquecida.

A inovação semântica é uma das situações em que a extração de uma problemática é

recuperada da condição residual de reflexões anteriores. Cada vez mais consciente de que a

linguagem se tornara, durante as décadas de 1970 e 1980, o palco de todos os confrontos,

Ricoeur, sem se desfazer do lugar de seu pertencimento – movimento fenomenológico e

hermenêutica – volta-se para o aspecto criativo da linguagem e indaga a respeito da formação

de novas significações. Seu problema é o da imaginação semântica constituído a partir da

esquematização de uma regra inteligível à maneira do famoso “esquematismo” do

entendimento, segundo Kant.40

A inovação semântica, retirada da condição de subproduto das

obras anteriores, permite que Ricoeur elabore nesse momento de embate o que toma por obras

gêmeas: Metáfora Viva e Tempo e Narrativa

40

Cf. P. Ricoeur, Lectio Magistralis, op. cit. p. 125. Em TR 1, lemos « C’est cette synthèse de l’hétérogène qui

rapproche le récit de la métaphore...Dans l’un et dans l’autre cas, l’innovation sémantique peut être rapportée à

l’imagination produtrice et, plus précisément, au schématisme qui en est la matrice signifiante » (p. 11).

81

uma funcionando no quadro dos tropos, a outra no quadro dos gêneros

literários. Na realidade, as vias da imaginação criativa ou, se se preferir, os

caminhos da esquematização, são diferentes. Num a produção de uma nova

relevância atributiva fora de uma atribuição abusiva, no outro, a produção de

enredos combinando, de uma forma original, intenções, causas e acaso.

Nesse sentido, Tempo e Narrativa pode ser situado na linha de uma filosofia

da imaginação que teve o seu ponto de partida em A Simbólica do Mal. Este

paralelismo entre Tempo e Narrativa e A Metáfora Viva, considerado na

perspectiva da inovação semântica, é prosseguido numa esfera

complementar: em ambas as instâncias, a tarefa da hermenêutica é trazer à

luz um tipo de inteligibilidade compatível precisamente com este trabalho de

esquematização no plano da imaginação e estabelecer a sua primazia em

relação a simulações resultantes de uma lógica de transformações. (RF/AI,

120).

Ouvimos ainda, do próprio Ricoeur, que se colocadas lado a lado obras como A Simbólica

do Mal, Ensaio sobre Freud, Metáfora Viva, Tempo e Narrativa, por exemplo, permitem

compreender que, embora haja um movimento que gira em torno da inovação semântica, cada

obra, a partir do recurso recapitulativo, descreve sua própria problemática retirada de uma

reflexão precedente. A teoria semântica dos símbolos fornecida por A Simbólica do Mal é

desenvolvida pela Metáfora Viva como figura do estilo que explora os campos semânticos

incongruentes, e por Tempo e Narrativa na qualidade dos gêneros literários da construção de

intrigas (cf. CC, 115-116).

Para ele, exatamente por estar a Metáfora Viva numa relação crítica com A Simbólica do

Mal é que foi capaz de extrair uma teoria semântica do símbolo naquela obra, uma teoria mais

abrangente porque mais equipado que antes para tratar deste problema. Contudo, confessa

Ricoeur, com a Metáfora Viva é um passo atrás que é dado, ela é uma volta a A Simbólica do

Mal depois de ter passado por Freud (cf. CC, 116). O mesmo se passa com o narrativo que

havia encontrado muito antes de Tempo e Narrativa, em 1955, quando publica História e

Verdade, e, até mesmo antes disso já em A Simbólica do Mal, já que mitos além de símbolos

são narrativas (cf. CC, 117).

O percurso de sua obra não se explica pelo binário contínuo-descontínuo e sim por uma

espécie de “repetição” em que operar um passo atrás se torna decisivo. Assim, o

encadeamento de sua reflexão não se registra no âmbito da alternativa continuidade ou

ruptura, mas, notadamente, em termos de retomada. Referindo-se a Memória, História,

Esquecimento diz:

Como todas as minhas obras anteriores, ela se originou da descoberta e do

exame das questões residuais deixadas sem solução numa obra anterior –

nesse caso, Tempo e Narrativa, na qual a experiência temporal era

diretamente confrontada com a atividade narrativa, sem considerar a

82

mediação exercida entre uma e outra pela memória.41

Essa leitura de si mesmo também foi percebida por outro intérprete. David Pellauer, por

exemplo, nos informa igualmente a respeito de Memória, História, Esquecimento que são nos

temas e tópicos anteriores que Ricoeur configura um novo trabalho. Na qualidade de produtos

de um desenvolvimento assentado em afloramentos precedentes algo novo é acrescentado.

Nessa obra, Ricoeur retoma a discussão de Tempo e Narrativa da história como discurso

narrativo e como condição de possibilidade, questões que, na verdade, remontam às primeiras

reflexões de Ricoeur, sobre o lugar da subjetividade e da verdade na história, presente nos

ensaios reunidos sob História e Verdade.42

Não é difícil verificar nessa releitura de si mesmo como o conceito leitura joga um papel

decisivo na composição da hermenêutica filosófica. Contudo, essa evidencia se torna ainda

maior quando o associamos a outro conceito central em Ricoeur, a saber, a apropriação.

Considerada como a contrapartida da autonomia semântica, em razão da separação texto-

autor, apropriar-se é tornar seu o que é alheio. Esse ato, que exige a incorporação do outro,

sugere também existência de um distanciamento a ser superado. Tal distancia, além de ser um

fato (hiato espacial e temporal efetivo), é igualmente a tensão entre alteridade e a ipseidade (o

outro e o mesmo) pela qual alienação cultural e autocompreensão podem se corresponderem.

Para tanto, o escrever e o ler se elevam como modalidades constituintes fundamentais desse

processo: a leitura enquanto pharmacon resgata uma significação do texto que, a princípio lhe

é estranho, se aproximando, suprimindo e preservando, a distância cultural (cf. TI, 91).

Do ponto de vista histórico, esse problema encontrou suas mais ilustres formulações no

Iluminismo do século XVIII, ao querer tornar presente a cultura da antiguidade não obstante a

intervenção da distância cultural, e no Romantismo alemão que, com seu giro dramático,

indagou pela possibilidade de nos tornarmos contemporâneos dos gênios do passado (cf. TI,

91-92). É desse problema que decorre a dialética, posta em ação pela hermenêutica

ricoeuriana, entre os termos distanciamento e apropriação: um significando, antes de qualquer

coisa, estranhamento, mas num sentido produtivo, quer dizer, metodológico; e outro, por seu

turno, voltado para o resgate das heranças culturais. Para a hermenêutica ricoeuriana, não

existem problemas filosóficos numa dada tradição enquanto nela habitamos na ingenuidade da

primeira certeza. Somente após perdida essa primeira ingenuidade é que a tradição se torna

problemática. É a distância com um discurso, um texto que impõe limites à compreensão. Daí

41

P. Ricoeur, Lectio Magistralis, op. cit. p. 138. 42

Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 147.

83

então, é que se faz necessário recuperar o sentido dessa tradição atravessando a alienação

cultural constituída pela apropriação do passado numa luta sem trégua com o distanciamento.

É esse processo de uma produtiva tensão mantida entre apropriação e distanciamento que

recebe, na hermenêutica filosófica, o nome de interpretação. É nesse ponto que a relação entre

escrita e leitura ganha o seu sentido mais fundamental (cf. TI, 92).

Como bem sabemos, para Ricoeur, o centro de gravidade da hermenêutica é o projeto de

mundo suscitado pela leitura do texto. Para ele, essa seria a problemática decisiva que

justifica o deslocamento do problema do texto para o que chama de mundo da obra (cf. TA,

110). Nas palavras do historiador Roger Chartier trata-se daquilo que inventivamente fazem

os indivíduos com o que recebem dos textos (discursos, obras, monumentos, objetos)

recriando e produzindo algo a partir desse empoderamento.43

Ainda segundo Chartier, a

hermenêutica se esforça por compreender num sentido eminentemente prático, isto é,

impondo-se a possibilidade da aplicação do texto sobre a situação do leitor. Isso significa, nos

termos da hermenêutica filosófica, uma configuração narrativa correspondente a uma

refiguração da própria experiência. Uma teoria da leitura, assim, é exigida como ponto de

articulação entre o mundo do texto e o mundo do leitor (sujeito) querendo, dessa forma,

compreender, pela apropriação dos discursos, a maneira como esses mesmos discursos

atingem o leitor e o impelem para uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo.

Para Ricoeur é duplo o objetivo de uma teoria da leitura: por um lado, pensar a leitura como

condição de possibilidade semântica na qual se opera a refiguração da experiência; de outro,

ter no ato da apropriação o médium da constituição e da compreensão de si mesmo.44

É o

texto, assim, que se torna a mediação necessária entre o escritor e o leitor (cf. TI, 135). O

hermeneuta (leitor, intérprete) ao dizer, reativa o dizer do texto que, por sua vez, é um re-dizer

(cf. TA,162). Diz Ricoeur:

se a leitura é possível, é exatamente porque o texto não está fechado em si

mesmo, mas aberto a outra coisa; ler é, em qualquer hipótese, encadear um

discurso novo no discurso do texto. Este encadeamento de um discurso num

discurso denuncia, na própria constituição do texto, uma capacidade original

de ser retomado, que é o seu caráter aberto. A interpretação é a conclusão

concreta desse encadeamento e deste retomar. (TA, 155).

Retomada e encadeamento não implicam noutra coisa senão na possibilidade da leitura

como recuperação do sentido do texto. Contudo, o sentido não é tanto em relação à intenção

43

Cf. R. Chartier. Cultura escrita, literatura e história Tradução de Ernanai Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2001, p. 67. 44

Cf. R. Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo.

Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 24.

84

do texto, a menos que seja na acepção em que somos dirigidos para abertura do pensamento

produzida pelo texto, isto é, quando marchamos no caminho voltado para o oriente do texto

(cf. TA, 159). Apoiado nalguns resultados da reflexão logicista (Frege e Husserl), Ricoeur

compreende o sentido não como uma ideia na mente de alguém ou um conteúdo psíquico,

mas como um objeto ideal possível de ser identificado e reidentificado por diferentes

indivíduos em tempos distintos como um só e o mesmo (cf. TI, 134). Assim, o texto,

destituído de seu uso historicista, isto é, quando deixa de estar voltado unicamente para o

âmbito leitores específicos, implica a superação do processo histórico no sentido de que é

também um objeto atemporal que cortou seus laços com todo desenvolvimento histórico (cf.

TI, p. 135).

O que deve ser compreendido e, portanto, o que se deve apropriar num texto, não é a

intenção do autor supostamente ocultada detrás do texto, tampouco a situação histórica do

texto comum ao escritor e aos leitores originais, nem mesmo as expectativas ou

autocompreensão que de si possuíam tais interlocutores, como idealiza o romantismo. Importa

apropriar-se do sentido do próprio texto – compreendido agora como dinamicidade dada à

direção do pensamento aberta pelo texto – de poder desvelar um mundo que constitui a

referência do texto (cf. TI, p. 136). Dessa forma, é que se pode falar da fusão de horizontes,

na qual o mundo do leitor funde-se com o mundo do escritor. Para Ricoeur, “o sentido de um

texto está aberto a quem quer que possa ler... porque o texto se subtraiu ao seu autor e à sua

situação, subtraiu-se igualmente ao seu endereçado original” (TI, 137).

É dessa forma que um texto pode falar, pode ser compreendido além de seu próprio tempo.

Ora, como é verificável, para Ricoeur, com a escrita, é o texto propriamente que se torna

autônomo em relação à intenção do autor, desse modo, significação verbal e significação

psicológica diferem, daí o porquê de o texto não coincidir com aquilo que o autor quis dizer.

O texto, assim, pode descontextualizar-se de suas origens e se recontextualizar em nova

situação pela leitura. É exatamente esse grau de emancipação ocorrido na relação entre o

escrever e o ler que produz, para a hermenêutica, o considerável efeito do distanciamento

alienante (Verfremdung). Fenômeno constitutivo do texto como escrita é condição sob a qual

acontece toda interpretação. O distanciamento alienante é ainda aquilo que condiciona a

própria compreensão, mas também o que deve ser vencido por esta compreensão (cf. TA, 118-

119). O recurso para vencer o distanciamento é a apropriação – ou aplicação do texto à

situação presente do leitor, o momento em que a aplicação de uma configuração narrativa

particular à situação do sujeito transforma, pela interpretação, a compreensão de si mesmo do

85

sujeito e do mundo45

. Como contrapartida da escrita, a apropriação compreende pela

distância, compreende à distância e responde, não ao autor, mas, como vimos, ao sentido (cf.

TA, 123). Através da apropriação, a hermenêutica filosófica, atualiza o texto pela leitura

aberta à relação entre o mundo do texto (ficção e história) e mundo do leitor que recebe,

atualiza e realiza o texto ao ponto de modificar sua concepção individual, sua representação

do tempo, e sua visão enquanto sujeito.46

Para Ricoeur, aquilo que é apropriado é o sentido do texto aberto pela obra. Diante do texto

abrem-se propostas de mundos ao leitor. Não se trata de uma intenção a ser descoberta e que

se põe detrás do texto, mas o que figura à sua frente: o leitor se expõe ao texto e dele recebe

um si mais vasto como experiência existente porque mediado pelo mundo cultural. Um si que,

segundo Ricoeur, é constituído pela “coisa do texto”. O leitor é levado, então, a desapropriar-

se de si mesmo para se apropriar desse novo mundo que para ele se abre pelo texto. Assim, a

compreensão é tanto desapropriação quanto apropriação. O leitor deve se perder de si mesmo.

Eis por que não se deve mais prescindir da crítica das ilusões à maneira dos mestres da

suspeita e, portanto, opor hermenêutica e critica das ideologias (cf. TA, 124). Em síntese:

apropriação é espelhamento, saber reflexo no qual o acabamento de uma interpretação (de

texto ou discurso) é completada na interpretação de si de um sujeito que passa a se

compreender de outro modo ou até mesmo começa a se compreender melhor (cf. TA, 155),

pelo momento do trabalho de refiguração da experiência, postulada como universal, a partir

de configurações textuais particulares.47

Vencer a distância entre o estranho e o próximo permanece a tarefa mais fundamental da

hermenêutica. É essa luta travada contra o afastamento cultural, a finalidade mais

propriamente hermenêutica, pois luta contra o afastamento em relação ao sistema de valores

sobre o qual se estabelece o texto, o sentido. Desse modo, no âmbito da hermenêutica

ricoeuriana, apropriação é a interpretação que, no seu último estágio, quer aproximar,

igualizar, assimilar, dotar de contemporaneidade e semelhança o que, antes, era diferente.

Realização conseguida mediante a interpretação atualizadora do sentido do texto para o leitor

presente. Numa palavra: quando o estranho se faz próprio (cf. TA, 156; TI, 135).

45

Cf. R. Chartier. Formas e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Tradução de Maria de

Lourdes Meirelles Matencio. Campinas: Mercado de Letras; ALB, 2003, p. 152. 46

Cf. R. Chartier. Cultura escrita, literatura e história, op. cit. p. 116. 47

R. Chartier. História Cultural, op. cit. p. 26.

86

2.3.3. “Ruptura irreparável” e “aporética leitura” do discurso filosófico weiliano.

Traçado esse percurso em que Ricoeur se debruça retrospectivamente sobre sua própria

atividade hermenêutica, quadro no qual nos oferece uma leitura de si mesmo pelo desvio e

pelos outros e pelo que entende sob a insígnia de apropriação, é hora de submeter a exame a

posição adotada pelo hermeneuta na única vez em que precisou realizar uma apreciação

global do projeto weiliano da coerência categorial do discurso filosófico contido na Lógica da

Filosofia. No já mencionado Colóquio Internacional em Chantilly (1982), encerrado pela

comunicação de Paul Ricoeur De l’Absolu à la Sagesse par l’Action, P.-J. Labarrière tinha

ocupado a mesa de debates do dia anterior com a intervenção Temporalité et procès des

catègories dans la Logique de la Philosophie na qual advogava a ideia – segundo Perine,

igualmente tangente a outro trabalho Le Discours de l’Alterité: une logique de l’expérience –

de que haveria um resto fora do todo configurado pelo abandono do Absoluto e a queda na

Obra. Os termos de Labarrière alhures são:

Ou essa atitude [Obra] se diz efetivamente na categoria que lhe corresponde,

e ela é de certo modo domesticada, ao encontrar lugar em um discurso de

razão que a integra à filosofia; a totalidade, nesse caso, é salva, mas não há

mais resto; ou se trata, realmente, de uma virada no movimento da obra, e a

razão filosófica é despedida para dar lugar a expressões que não respondem

mais aos cânones de coerência; então é a totalidade que é posta em crise, e o

discurso (...) se encontra uma primeira vez rompido ao meio.48

Assim, o projeto de Weil estaria marcado por um caráter profundamente insólito por tentar,

de uma só vez, desenhar o espaço da conjunção e da ruptura. Conjunção que quer a garantia

da continuação da lógica na filosofia cujo traço é o ultrapassamento de uma pela outra nas

diversas disciplinas que as constituem, mas também ruptura, uma vez que por conta disso, se

percebe que lógica e filosofia não são imediatamente idênticas. A presença das duas figuras, o

homem da violência e o filósofo, assinala igualmente a impossibilidade, dado que são figuras

irredutíveis uma à outra: este por ambicionar o recuo da violência e aquele pelo engajamento

do contato direto com a história. Inconciliáveis, só restaria à Weil, segundo Labarrière, a

alternativa:

ou bem ele considera que o homem da obra se estabeleceu fora das regras

elementares da interação humana, e sua posição lhe aparece, na melhor das

hipóteses, como anúncio de uma negatividade “bruta” que teria por tarefa

reduzir pela conversão da razão; ou bem ele parte desta alternativa durável

para o seu próprio projeto de compreensão universal, para melhor dar conta

– como lógico da filosofia – do lugar que mantém a violência no

48

P.-J. Labarrière apud M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 157.

87

desenvolvimento do discurso.49

O pressuposto de Labarrière, segundo Marcelo Perine, seria uma contraposição que

entende existir entre Kant e Hegel, contida na filosofia weiliana, e que amarraria o nó

indesatável desta filosofia, solúvel tão somente ao preço da arrebentação: se há um resto fora

do todo é porque Kant teria cedido espaço a ele; se não há, então, é Hegel quem detém a

última palavra50

– uma interpretação da fórmula kantiano pós-hegeliano, em termos de

alternativa, é apresentada. Nela, Weil é tido como um anti-hegeliano e esse é o ponto com o

qual Perine, nesse momento, rivaliza.51

Em síntese, as rupturas seriam de duas ordens: primeiramente, a inconciliável relação da

violência com o discurso caracterizadas, principalmente, pelas categorias-atitudes Obra,

Finito e Ação em sua oposição à do Absoluto. A opção pela Ação apontaria o momento

kantiano em razão da perfeição relativa onde se reconciliam parcialmente discurso e

violência52

. Em seguida (e consequentemente), a intemporalidade essencial do gesto lógico

que deixaria indecidível a situação das duas últimas categorias – a do Sentido e,

especialmente, a da Sabedoria –, que em continuidade e em descontinuidade com a sequência

das categorias permanecem como a marca da suprema ambiguidade.53

Sobretudo porque as

articulações inerentes ao discurso fundam-se em movimento e repouso (atitudes e categorias)

como momentos de todo processo,54

não obstante a Ação seja definida, por Weil, como a

última categoria do discurso filosófico. Nesse caso, como pode haver prosseguimento se só há

discurso inerte? Situação ainda mais radicalizada aplicada à Sabedoria. É assim, segundo

Labarrière, que ambas as rupturas comprometeriam o projeto de coerência do discurso da

Lógica da Filosofia.

O que Perine não percebeu, na qualidade de bom weiliano assumido, foi a presença de

outro weiliano em Ricoeur – só que um weiliano atípico que, procedendo a uma interpretação

pela interpelação e estranhamento, submete seu interlocutor ao máximo da exigência

conceitual para extrair dele as consequências lógicas de suas próprias escolhas metodológicas.

49

« ...ou bien il considère que l'homme de l’oeuvre s'est mis en dehors des règles élémentaires de l’échange

humain, et sa position lui apparaîtra, au mieux, comme l’énoncée d'une négativité « brute » qu'il aura pour

tâche de réduire en la convertissant en raison; ou bien il part de cette alternative durable à son propre projet de

compréhension universalle, pour mieux rendre compte – en logicien de la philosophie – de la place que tient la

violence dans le déploiement même du discours. » P.-J. Labarrière. Temporalité et procès des catégories dans la

Logique de la Philosophie, Actes du Colloque International, op. cit. p. 48. 50

Cf. M. Perine, op. cit. p. 157. 51

Idem, p. 125ss. 52

Cf. Labarrière, Temporalité et procès... art. cit. p. 50. 53

Idem, p. 51. 54

Idem, p. 49.

88

Ricoeur não é apenas de um kantiano55

que aprecia (nos dois sentidos da palavra) a filosofia

de Éric Weil, mas, igualmente, um kantiano pós-hegeliano, como temos tentado demonstrar

ao longo de toda essa tese, segundo os critérios do próprio Perine, que se vale dessa

formulação como chave interpretativa de toda filosofia weiliana.56

Ora, Ricoeur afirma, em muitos momentos de sua vasta atividade filosófica, preconizar

esse estilo kantiano pós-hegeliano de filosofar (cf. TN 3, 367). O hermeneuta declara tomar

emprestado essa expressão que, segundo diz, Weil aplica a ele próprio. Quanto a si mesmo, o

hermeneuta diz assumir o paradoxo contido na expressão kantiano pós-hegeliano; paradoxo

de um kantismo que “precisa mais ser feito que repetido”, quer dizer, continuado sem,

contudo, deter-se nele. Eis o Hegel que se coloca, cronologicamente falando, depois de Kant.

Mas como somos leitores tardios de um e outro, permutamos entre eles por perceber, em nós,

que algo de Hegel venceu Kant e, igualmente, algo de Kant venceu Hegel. Mais hegelianos

que kantianos quando da superação da moralidade formal pela realização da liberdade; mais

kantianos que hegelianos quando a dialética dos limites da razão (dialética entre razão teórica

e razão prática) não apenas sobrevive à crítica de Hegel, mas se impõe a todo hegelianismo.

Para Ricoeur, é essa mistura que nos faz pensá-los juntos – seja um contra o outro, seja um

pelo outro. Mistura que é ainda a estrutura do nosso discurso filosófico na atualidade. Se outra

coisa resultar dessa tarefa, ainda será um pensar a partir de Kant e Hegel. Sem mais, é dessa

maneira que Ricoeur aplica a si mesmo a fórmula weiliana (cf. CI, 343ss).

Como Weil jamais deixou suficientemente claro o que entedia por kantiano pós-hegeliano

– a não ser para aqueles que acompanham bem de perto sua obra, sobretudo para os que

usufruíram de sua companhia na qualidade de ouvintes57

– coube a Ricoeur, ao recorrer

muitas vezes a essa fórmula, explicitar a ideia contida nessa “relação cruzada com Kant e

Hegel” – para utilizar uma expressão de Villela-Petit.58

E é como tensão em

complementaridade que Ricoeur define o itinerário do projeto daqueles que seguem essa

bizarra categoria dos kantianos pós-hegelianos (cf. TA, 250).

55

Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 156. 56

Idem, p.125ss. 57

Na palestra já mencionada M. Perine narra como colheu a definição coloquial, jamais escrita, com a qual Weil

se definia. Weil instigado num debate a definir sua posição filosófica, numa das vezes que frequentou o

efervescente centro jesuíta de estudos e pesquisas Les Fontaines – centro cultural situado em Chantilly, nos

arredores de Paris, que na altura contava com uma bela biblioteca –, cravou o kantiano pós-hegeliano. Perine,

que frequentou o mesmo ambiente durante seu doutorado, diz ter ouvido o testemunho de outros vultos que ali

partilharam da companhia de Weil, figuras como o hegeliano Marcel Régnier, o próprio Pierre Jean Labarrière, o

teólogo Paul Valadier. 58

Cf. M. da P. Villela-Petit, art. cit. p. 13.

89

De certa maneira Perine reconhece isso, simplesmente porque sabe que compreender a

fórmula weiliana significa compreender Weil tal como ele se compreendeu.59

Nesse sentido,

quando aplica a Weil o que Ricoeur aplica a si mesmo (ao tomar de empréstimo a fórmula de

Weil e concluir que Kant e Hegel devem ser dialetizados), Perine não faz outra coisa senão

assumir a interpretação ricoeuriana da expressão de Weil sobre sua filosofia e validá-la como

empreendimento filosófico para todo projeto de pensamento hodierno: “dos discursos

filosóficos verdadeiramente contemporâneos, o de Weil ilustra essa tarefa filosófica à

perfeição”.60

O kantismo revela-se, para Perine, como uma retomada de Kant sob Hegel

admitindo tudo que este trouxe de definitivo para a filosofia.61

E o que isso significa? Para

Perine, que Weil não fez uma escolha entre Kant e Hegel, “mas entre a consciência kantiana e

a pretensão hegeliana”.62

A escolha “é a da autonomia e dos limites da razão, a da

universalidade da razão no ser finito, a consciência do finito a partir do infinito, do finito

imediato ao infinito”, mas também a consciência que “não poderá renunciar à busca do

absoluto, do fundamento de toda realidade humana e mundana”.63

Em parecença com

Ricoeur, para quem há sempre a tensão entre a finitude de nossa condição e a sua

possibilidade de abrir-se ao infinito,64

Perine define as bases da relação Kant-Hegel na

dialética kantiana do interesse teórico-prático65

como capaz de informar todo hegelianismo.

Mesmo quando descreve o movimento da “aporética do discurso weiliano” em Ricoeur,

Perine acompanhando-o bem próximo, para ao fim chegar à conclusão de que as aporias se

converteram em problemas ao perceber que o próprio Ricoeur salva a coerência do discurso in

extremis, isto é, no esforço regressivo da re-leitura.66

Mas não teria sido esse desfecho a

condução pré-meditada da própria leitura aporética? É o que acreditamos. A rigor, não há

divergências entre Perine e Ricoeur na interpretação da filosofia de Éric Weil, pois ambos a

compreendem na mesma chave: de uma filosofia kantiana pós-hegeliana.

Contudo, Perine não se deu conta de que a tarefa de Ricoeur era responder, com sua

aporética leitura, aos ataques de Labarrière e que, nesse sentido, se prestava à mesma

finalidade que a sua. O texto de Pierre-Jean Labarrière encontrou na comunicação de

encerramento de Paul Ricoeur seu contragolpe oportuno. Poder-se-ia refazer todo o percurso

59

Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 125. 60

Idem, p. 128. 61

Idem, p. 126 e 130. 62

Idem, p. 125. 63

Idem, p. 127. 64

Cf. C. M. Cesar. Ética e Política in Paul Ricoeur: ensaios. São Paulo: Paulus, 1998, p. 39. 65

Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 127. 66

Idem, p. 160ss.

90

de Ricoeur, mas acreditamos que, além do que já expusemos até aqui, é suficiente chamar

atenção tão somente para algumas outras pistas deixadas no seu texto, que denotam seu

intento de auxílio ao projeto (com o qual partilha) de Weil.

Basta, por exemplo, observar que já na abertura de sua comunicação Ricoeur admite

responder ao que entende ser o desafio partilhado por todos que ali se encontravam, no que

concerne ao texto da Lógica da Filosofia. É esse desafio que o faz justificar seu “tom de

questionamento”. Para nós, trata-se de uma cabal acolhida da situação de enfrentamento pela

qual o texto weiliano era submetido e, portanto, da escolha pelo método da “aporética leitura”.

Uma opção, nos parece, que acontece menos em razão do texto propriamente dito e mais em

função das expectativas.67

Uma atenta observação em torno do seu título e da extração dos questionamentos que dele

faz – especialmente segundo e terceiro questionamentos68

–, permite-nos verificar não haver

condescendência, por parte de Ricoeur, com qualquer interrupção do discurso. O título é a

descrição de um movimento que leva do Absoluto, cuja passagem obrigatória ocorre pela

Ação, à Sabedoria. A interpretação ricoeuriana contém em sua consideração todas as

categorias intercaladas entre estas três, sobretudo o resgate da problemática que conduz ao

Absoluto. Porém são os questionamentos, como mencionamos, que explicitam com maior

clareza a tomada de posição pela coerência do discurso presente na Lógica da Filosofia. Diz a

segunda questão formulada por Ricoeur: “em que sentido a categoria da Ação permite retomar

o projeto de discurso coerente para além da categoria do Absoluto?”.69

Não se inscreveria esse

questionamento na mesma compreensão em que “o problema do sentido é o sentido do

problema”,70

isto é, da intenção e da decisão pelo sentido? É obvio que sim, uma vez que o

sentido da categoria da Ação é perseguir o projeto do discurso coerente, que não é outra coisa

senão o sentido mesmo desse projeto.

A terceira questão torna-se ainda mais reveladora da recusa de Ricoeur em renunciar ao

projeto descrito na Lógica da Filosofia, suas concessões são, quando muito, dificuldades, mas

nunca um impedimento definitivo em seu movimento:

de que maneira as últimas categorias, a do Sentido e a da Sabedoria,

preservam o caráter de discurso coerente que parece ter sido rompido,

ou ao menos profundamente alterado, ao mesmo tempo pela saída da

67

Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 407. 68

O primeiro questionamento manteremos em suspensão até o próximo capítulo, uma vez que o mesmo se presta

a uma interpretação de Hegel, objeto daquele capítulo. 69

P. Ricoeur, art. cit. p. 413. 70

M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 188.

91

categoria do Absoluto, pela promoção da categoria da Ação e pela

permanência de uma irrupção da violência fora do discurso e no

discurso? 71

Todo o indicativo aqui é referente ao sôfrego trabalho das últimas categorias que, no seu

intento de concluir o discurso coerente, herdam a tríplice problemática: o trauma do abandono

do Absoluto, ascese da Ação e o invencível dualismo violência-discurso. Nesse último caso, a

questão repõe os termos do próprio Labarrière ao referir-se à dicotômica relação da violência

fora do (todo) discurso. Mas enfatizamos a sentença de Ricoeur no ato da formulação do seu

questionamento que as categorias mencionadas “preservam o caráter de discurso coerente”.

Declaradamente Ricoeur dirige sua “aporética leitura” às mesmas dobras das “rupturas

irreparáveis” contrapostas à Lógica da Filosofia (Absoluto-Obra-Sentido-Sabedoria), só que

as compreende num movimento ainda maior (Deus-Condição-Consciência-Inteligência-

Personalidade-Absoluto-Obra-Finito-Ação-Sentido-Sabedoria).72

Na sequência, é a conclusão

da interpretação pela recorrência que vem em socorro do projeto da coerência do discurso.

Rigorosamente falando, é o recurso da releitura a réplica às pretensas lacunas que uma

primeira leitura pode suscitar para quem nesta se detém. Para Ricoeur é somente pela re-

leitura que a coerência é salva, e salva in extremis, ou seja, tardiamente num último esforço

da reflexão. É exatamente esse gesto regressivo que mantém a coerência do discurso. Há duas

razões convergentes: primeiro que a entrada no discurso é sempre uma escolha injustificável e

ela é sempre uma escolha presente a cada passagem; em seguida que a ordem progressiva

pode ser recusada, uma vez que cada nova atitude é contingente. A relação entre discurso e

violência é testemunho suficiente, dado que a violência compreendida não é violência

esgotada, mas outra.

No entanto, importa saber que a estrutura do discurso weiliano, ponto de vista formal,

resguarda que nenhuma coerência pode ser preservada seguindo tão somente a progressão das

categorias. Chama atenção Ricoeur para a advertência contida na Lógica do fato da passagem

de uma categoria à outra ser, ao mesmo tempo, livre e “incompreensível” (LF, 487) e que

“toda passagem é escândalo para o ultrapassado” (LF, 488). Daí porque a violência, inscrita

também no discurso, é a própria progressão. Aos olhos do hermeneuta, uma coerência

recorrente é a única coerência possível. Semelhante à produção de uma tela em que é

71

P. Ricoeur, art cit., p. 407. 72

Cf. « De quelle manière les dernières catégories de Sens, de Sagesse préservent-elles le caractère de discours

cohérent qui paraît avoir été rompu, ou du moins profundément altéré, à la fois par la sortie hors de la catégorie

d’Absolu, par la promotion de la catégorie d’Action er par la permanece ou la résurgence de la violence hors

du discours et dans le discours? » Idem, p. 409.

92

imprevisível definir onde será aplicada a próxima pincelada, mas tão logo aplicada e a obra de

arte finalizada, mostra-se necessário que ela tenha sido naquele lugar e daquela maneira. Eis

a imagem que Ricoeur faz da Lógica da Filosofia. Para ele, é preciso que uma segunda leitura

informe ao leitor a convicção de uma coerência somente recorrente, pois é somente in

extremis, dada a constante ameaça que circunda a realização do discurso, que o projeto de

coerência categorial pode ser salvo.

Corrobora para essa releitura, recuperação da coerência do discurso pela recorrência, outra

anedota que cerca a escrita da Lógica da Filosofia. Segundo Perine, Weil teria apresentado ao

seu diretor de tese Jean Wahl o texto começando já na categoria da Verdade, ao que colheu

deste a advertência de que não poderia entregar o texto naquelas condições, sob pena de não

ser entendido, e que deveria então escrever uma Introdução. Weil teria retrucado argumentado

não existir Introdução ao sistema, mas acabou seguindo a recomendação e escreveu o texto

“autônomo” que figura no início de sua principal obra.73

Se tomarmos a direção proposta por

Bernardo, em Linguagem e Discurso e tudo que ali se diz sobre o papel que desempenha a

Introdução na Lógica da Filosofia, haveremos de dar ainda mais razão a Ricoeur. Bernardo

compreende que a Introdução não é apenas um texto propedêutico como aqueles dos Ensaios

e Conferências, mas um olhar retrospectivo sobre o todo do sistema,74

uma retomada do

sistema em que são postas as questões de fundo do discurso weiliano presente na outra parte

subsequente da Lógica da Filosofia.

Nesse caso, convalidamos aqui, num movimento de reciprocidade, a tese de Bernardo

relativa à Introdução bem como a interpretação ricoeuriana da releitura. Sendo a Introdução o

olhar retrospectivo do sistema sobre si mesmo, em última instância é o leitor que está sendo

igualmente comunicado preventivamente quanto à circularidade do processo discursivo e, nesse

caso, aquele que se manteve atento a isso, não atravessou inadvertidamente as densas paredes

da Lógica, podendo concluir, com franco conhecimento de causa, junto com Weil que:

A única introdução ao sistema se encontra, portanto, em seu fim, e consiste

na justificação da escolha que foi feita no início. Ela se confunde com a

prova da circularidade. Isso implica que todo livro filosófico só é

verdadeiramente compreensível na segunda leitura, visto que a primeira

‘ideia’ só é pensada, isto é, completamente desenvolvida e, assim,

apreensível, na última, visto que somente então a aparência de uma primeira

e de uma segunda ideia se dissipa (LF, 620).75

73

Cf. M. Perine (palestra). 74

Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 36ss. 75

Passagem citada por Ricoeur para fechar sua exposição em ilustração de sua interpretação da coerência de

releitura cf. Ricoeur, art. cit. p. 423.

93

Notadamente se, para Ricoeur, o projeto não é interrompido, ainda que ao grande custo de

uma reflexão extenuada cujo resultado é murmúrio categorial,76

então não há razão para ser

tomado como colaborador da existência de quaisquer rupturas do discurso da Lógica. As

ponderações elencadas indicam algo diferente de querer obstaculizar, permanentemente, o

avanço da reflexão weiliana. Antes, no caso de Éric Weil, trata-se muito mais de um

procedimento que, ao se reconhecer pelo outro, se apropria do caminho incursionado com

todas as suas implicações para, ao mesmo tempo, melhor percorrer o seu próprio caminho e,

assim, desbravar novas possibilidades de sentido.77

Ricoeur procede pela reexposição problematizadora. Sua hermenêutica refaz o caminho

repetindo o desenvolvimento do pensamento do seu interlocutor apondo-lhe resistência ao

máximo para, ao mesmo tempo e na justa medida, lhe restituir a palavra. É dessa forma que

atua junto ao texto da Lógica weiliana quando propõe concentrar-se nos trajetos mais

complicados enfrentados pelo texto. Afinal, a chamada “aporética leitura” é o percurso que

Ricoeur (re)faz sobre o texto weiliano com a finalidade de saber se em algum momento o

discurso é rompido. Dessa forma, torna-se bastante esclarecedor observar que em nenhum

momento Ricoeur se refere ao projeto de coerência da Lógica da Filosofia como impossível;

as expressões que utiliza são: “combate dramático”, “complica sua tarefa”, “torna mais

difícil”, “dificuldade de manter o projeto de coerência”, etc. Aliás, na abertura da sua

intervenção declara que apesar das “difíceis transições”, a “a Lógica da Filosofia mantém seu

projeto de coerência para além da categoria do Absoluto”.

Se correta a interpretação de Marcelo Perine do intento de Labarrière (e a nossa em débito

a ela), seguramente não passou despercebida por Ricoeur que, como pensador antidualista

contumaz, jamais se rendeu aos apelos da reflexão que impõe a alternativa. Sendo assim,

também não se renderia ao pressuposto da opção violência-discurso, tampouco a uma escolha

entre Kant e Hegel expressas pela leitura que fez Labarrière da Lógica da Filosofia de Éric

Weil. Texto, aliás, que Ricoeur manteve sempre na mais alta conta (cf. HV, 78-79).

Se Labarrière, por um lado, acusa Weil de ter no Absoluto o seu típico momento hegeliano e

se insiste na ambígua intemporalidade da Lógica da Filosofia, que oscila entre movimento e

repouso, característica da processualidade do movimento da lógica, que “deixaria escapar ao

seu império uma atitude e uma categoria – Sabedoria, realização do Sentido – de onde já não se

76

Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 421. 77

Na edição brasileira de Introdução a Tempo e Narrativa, Hélio S. Gentil expressa que uma das características

de Paul Ricoeur é o diálogo com “os mais diferentes autores, respeitando-lhes o trabalho e extraindo deles o mais

relevante ao desenvolvimento de sua própria investigação.” (p. XI).

94

vê como ela ainda pode, privada dessa estruturação, existir em figura de história”78

; Ricoeur, de

outro lado, adverte: já não é mais hegeliano (ou não o é inteiramente) aquele que adentra no

Absoluto79

e repõe as coisas noutros termos, pela recusa de qualquer ponto de repouso, uma vez

que pelo termo mesmo da presença que nós não temos, tampouco somos.80

Sabedoria não é

realização do Sentido, trata-se para Ricoeur de outra coisa, não mais de uma atitude e de uma

categoria, mas de um “nível suplementar de formalismo”, de “um sentido do sentido”.

O que Ricoeur vê na verdade é o mesmo duplo com o qual sua hermenêutica sempre esteve

envolvida: o duplo que encontrou no excesso de significação; o duplo que remete de uma

significação primária a uma secundária; da ideia de que o discurso filosófico é sempre

incompleto, pois, na melhor das hipóteses, o discurso “se situa no caminho de um ideal que

pode especificar, mas nunca propriamente alcançar.”81

Posição em franca simetria com àquela

defendida por Weil de que não existe propriamente um saber absoluto, mas sim a ideia deste

saber (cf. LF, 610 e PR I, 49).

2.3.4. O sentido, a ruptura, os “mestres da suspeita”

Estamos convencidos de que Ricoeur também aposta na aposta de Weil e fez da aposta de

Weil a sua própria aposta, isto é, a aposta de uma permanente decisão pelo sentido.82

É essa

primazia da existência de um sentido mais universal, sob a qual não paira dúvida, o que

incomoda demasiadamente Gagnebin.83

A evidência dessa ausência em Ricoeur é observada a

partir do exame do cogito através dos “mestres da suspeita” – Marx, Nietzsche e Freud –

operada pela obra Da Interpretação: ensaio sobre Freud de 1965. Confrontando com a posição

de eliminação da questão do sentido adotada por Michel Foucault, na conferência de 1964,

“Nietzsche, Freud, Marx”84

(portanto, no mesmo período o recurso às mesmas hermenêuticas

78

P.-J. Labarrière apud M. Perine, op. cit. P. 159. 79

Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 408. 80

P. Ricoeur, art. cit. 419. 81

D. Pellauer, op. cit. p. 117. 82

Para D. Pellauer, em Ricoeur “uma decisão pode ser entendida tanto como pensamento (do que está para ser

feito) quanto um julgamento (de fazê-lo). Uma decisão, portanto, é como um acontecimento, no sentido de que

se resume a tomar posição” cf. Idem, p. 29. 83

Cf. J.-M. Gagnebin. Da dignidade ontológica da literatura in Nascimento-Salles, op. cit. p. 45, também em J.-

M. Gagnebin. Interpretação e suspeita in S. T. Muchail; M. A. da Fonseca; A. Veiga-Neto (Org.). O mesmo e o

outro: 50 anos de história da loucura. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 215-222. 84

M. Foucault. Nietzsche, Freud, Marx in Ditos & Escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas

de pensamento. M. B da Motta (Org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2000, pp. 40-55.

95

da suspeita85

), Ricoeur é tido como aquele que, segundo Gagnebin, “não colocará jamais em

questão essa noção de base da hermenêutica”. Ainda para a intérprete, mesmo sem ceder ao

radicalismo de Foucault, talvez fosse preciso querer recolocar de outro modo a questão do

sentido. O que se aprende com Ricoeur é bem diferente, pois, muito embora atravesse

conscientemente todo embaralhamento narrativo, prima sempre pela linearidade.

Será realmente possível... assegurar o “sentido de uma vida” por sua

narração, pela história de um indivíduo ou de um grupo, história resguardada

pela reconstrução rememorativa? Essa hipótese, que me parece sustentar o

conceito de identidade narrativa, não pressuporia uma “coerência da

existência”, como Ricoeur traduz Zusammenhang des Lebens de Dilthey,

algo que não podemos postular?86

O diagnóstico acima é certeiro. Se nos é permitido dizer, Jeanne Marie Gagnebin agarra o

bicho pelos chifres! Contudo, talvez não se trate, como defende a intérprete, apenas de um

pedido exorbitante ao modelo hermenêutico de Ricoeur de dar conta de narrativas terríveis,

ameaçadoras e de desfecho mortal,87

mas, uma vez mais, de tomada de posição. Ricoeur é

categórico quanto à escolha de suas batalhas. Eis a declaração: “daqueles com quem não tenho

relação de conflitualidade produtiva não falo... não estão nem na posição de adjuvantes nem na

de oponentes; estão numa situação neutra; estão onde não passo” (CC, 114). Seria o caso de

Foucault de 1965, devido a As Palavras e as Coisas (1966),88

livro sobre o qual Ricoeur

manteve muitas reservas.89

Porém, o mesmo não se pode dizer do último Foucault de quem,

afastado de si mesmo, por conta de obras como O uso dos prazeres (1984) e O cuidado de si

(1984), Ricoeur se sentiu mais próximo (cf. CC, 113). Isso explica porque esse importante

pensador somente aparecer ulteriormente na reflexão de Ricoeur, precisamente da década de

85

Éric Weil, num texto de 1955 Pensée dialectique et politque, ao analisar o uso político do conceito de

ideologia em Marx, aborda o papel do interesse inconsciente e da falsa racionalização a que chegaram, por vias

distintas, outros pensadores. Weil, como Foucault, não utiliza a expressão “mestres da suspeita”, mas põe lado a

lado Marx, Freud e Nietzsche sob o mesmo aspecto que os promoveram ao merecimento ulterior deste título: a

falsa consciência. Sobre essa ainda afirma: « Ce qu'on appelle souvent « fausse conscience » est, du point de vue

historique, un concept prócedent à la fois de l'enquête socratique, qui tâche de libérer l'homme de ses opinions,

et de l'anthropologie judéo-chrétienne, pour laquelle le coeur de l'homme est menteur et sa raison, obnubilée. »

(EC I, 261). 86

J.-M. Gagnebin, Da dignidade ontológica da literatura, op. cit., p. 53. 87

Cf. Idem, p. 54. 88

M. Foucault. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9 ed. Tradução de Salma T.

Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 89

“A ideia das episteme que se substituem umas às outras com transições aleatórias, não só me parecia

ininteligível como, sobretudo eu considerava que ela não se apoiava numa riqueza de conteúdo suficientemente

grande para cada uma das episteme. Como pode se falar, no século XVII, da episteme da representação, sem ter

em conta a matemática, o direito, já para não falar da teologia?” (CC, 113). E. Chaves alicerça a interpretação

foucaultiana dos mestres da suspeita à teoria do signo e a episteme da semelhança, esta última objeto de As

Palavras e as Coisas livro no qual Foucault se encontrava trabalhando à época. Cf. E. Chaves. Nietzsche, Freud

e Marx: Ricoeur, Foucault e a questão da hermenêutica in Asas da Palavra (UNAMA), v. 12 (2009): p. 294.

96

1980 em diante.90

Rigorosamente falando, o que está posto em questão é o mesmo de antes em relação ao que

se pode considerar a antinomia continuidade/descontinuidade do processo histórico

compreendido pelo discurso filosófico. A história, tal como no discurso filosófico weiliano,

pode ser pensada em sua continuidade apesar das rupturas que lhe são constitutivas. A

retomada do Foucault daquele primeiro período pode ser bastante elucidativa. Ricoeur

dedicou à Arqueologia do Saber (1969)91

uma generosa passagem de Tempo e Narrativa em

que discute o conceito de “formação discursiva” pelo qual atravessa a ideia de que a

continuidade da memória e, portanto, a história do sujeito, seria uma ilusão idealista (cf. CC,

113). Muito embora Ricoeur reconheça que A Arqueologia do Saber recoloque sob outro viés

a questão de uma coerência global e de uma substituição total deixada a cabo por As Palavras

e as Coisas (cf. TN 3, 372 n. 28), nela ainda persiste não apenas a rigorosa formulação como

igualmente a resolução em favor do segundo termo da antinomia, em que a revolução

documentária é o probatório da descontinuidade.

Ricoeur diz não ter nenhuma objeção de cunho epistemológico quanto ao privilégio dado

aos cortes, às rupturas, às crises, no que tange a reconstrução do passado histórico, pela

arqueologia do saber (cf. TN 3, 370). No máximo lembraria a essa nova disciplina, por conta

da opção receptiva da história das ideias praticada por sua própria hermenêutica, que ela não

pode se emancipar completamente do contexto geral em que a continuidade temporal

readquire seu direito e, assim, se permite articular com a história das ideias. Noutro registro,

as rupturas epistemológicas não evitam que as sociedades existam seguindo outras vias,

institucionais, por exemplo, e não apenas as dos saberes (cf. TN 3, 372). O que é passível de

verificação é que Ricoeur acolhe de bom grado a tese dos cortes epistemológicos, apenas lhe

oferecendo a possibilidade de uma leitura mais receptiva.

O dissenso se concentra mesmo na argumentação de que essa nova disciplina contesta a

continuidade pela associação “à ambição de uma consciência constituinte e dona do sentido”

90

Referências a M. Foucault aparecem em TR 3, SMO, MHO escritos em 1985, 1990 e 2000 respectivamente.

No que diz respeito a esse quesito, F. Dosse esclarece que uma inflexão é produzida na perspectiva de Foucault a

partir de 1978, na qual o sujeito, antes tomado unicamente como receptáculo das transformações impostas do

exterior pelas diversas modalidades de poder, passa a ser problematizado em si mesmo, quer dizer, o horizonte

foucaultiano sofre um deslocamento que vai do desenvolvimento da norma, passando pela relação saber/poder até a

problematização da autoconstituição do sujeito. Pela investigação do governo dos outros, Foucault chega à

problemática do governo de si mesmo. E uma evolução dessas não poderia passar despercebida pela hermenêutica

ricoueriana. Cf. F. Dosse, Paul Ricoeur: le sens d’une vie, op.cit. p. 634ss. 91

M. Foucault. Arqueologia do Saber. 7 ed. Tradução de Luiz F. B. Neves. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2009.

97

(TN 3, 370). E aqui talvez se torne ainda mais clara a tomada de posição de Ricoeur acerca do

sentido. Valendo-se dos termos e expressões utilizadas por Foucault para qualificar e criticar a

história contínua, Ricoeur contra-argumenta;

nada obriga a ligar a sorte do ponto de vista continuísta da memória às

pretensões de uma consciência constituinte... Parece-me perfeitamente

admissível invocar uma “cronologia contínua da razão”, ou até “o modelo

geral de uma consciência que adquire, progride e se lembra” (p. 16), sem por

isso eludir o descentramento do sujeito pensante operado por Marx, Freud e

Nietzsche. Nada exige que a história se torne “para soberania da consciência

um abrigo privilegiado” (p. 23), um expediente ideológico destinado a

“restituir ao homem tudo o que, há mais de um século, vem lhe escapando

sem cessar” (p. 24). Ao contrário, a noção de uma memória histórica às

voltas com o trabalho da história exige a meu ver o mesmo descentramento

invocado por Michel Foucault. Mais ainda, “o tema de uma história viva,

contínua e aberta” (p. 23) parece-me ser o único capaz de apoiar uma ação

política vigorosa na memorização das potencialidades abafadas ou

recalcadas do passado. (TN 3, 373-374).92

A posição de Ricoeur não poderia ser mais esclarecedora: fazer passar a tese da

continuidade pelo rigoroso crivo dos “mestres da suspeita” e, além disso, querer, igualmente,

dar ouvidos a todas as vozes submersas, só demonstra a envergadura dos desafios com os

quais a hermenêutica quer permanecer envolvida. Porém, devemos notar que quando Ricoeur

chega aos mestres da suspeita, outra confrontação já havia ocorrido e seu resultado, se não

estava totalmente concluído, estava devidamente claro para o hermeneuta: o descentramento

do sujeito que A Simbólica do Mal pôs às claras. Essa obra opera o que Ricoeur nomeia de a

segunda revolução copernicana do pensamento (SM, 374). Texto profundamente vincado pela

conclusiva fórmula do inconcluso projeto da filosofia da vontade: “o símbolo dá a pensar”.

Ricoeur não põe em dúvida o sentido porque conclui que o sentido não coincide com a

consciência, conclui pela impossibilidade de acesso imediato da consciência ao sentido que

não é único, mas múltiplo.

Dessa forma, não deve estranhar que a aguda crítica dos “mestres da suspeita”, convocada

92

« rien n’oblige à lier le sort du point de vue continuiste de la mémoire aux prétentions d’une conscience

constituante... Il me paraît parfeitement admissible d’invoquer une « chronologie continue de la raison », voire

« le modèle général d’une conscience qui acquiert, progresse et se souvient » (p. 16), sans pour autant éluder le

décentrement du sujet pensant opéré par Marx, Freud, et Nietzsche. Rien n’exige que l’histoire devienne « pour

la souveraineté de la conscience un abri privilégié » (p. 23), un expédient idéologique destiné à « restituer à

l’homme tout ce qui depuis un siècle n’a cessé de lui échapper » (p. 24). Au contraire, la notion d’une mémoire

historique en proie au travail de l’histoire me paraît requérir le même décentrement que celui invoqué par

Michel Foucault. Bien plus, « le thème d’une histoire vivante, continue et ouverte » (p. 23) me paraît seul

capable d’adosser une action politique vigoureuse à la mémorisation des potentialités étouffées ou refoulées du

passé. » (TR 3, 317-318). Fizemos um pequeno reparo na tradução da terceira citação de M. Foucault a partir da

tradução brasileira da Arqueologia do Saber, sem a qual a sentença permanece ininteligível. As passagens

citadas por Ricoeur estão localizadas aqui respectivamente em pp. 9, 14, 16.

98

por Ricoeur, difira da de Foucault, pois embora tenha tido nesses pensadores o adverso com o

qual teve que se explicar (cf. CC, 110), os três, para Ricoeur, têm a relação simulado-

manifestado como a categoria fundamental da consciência. O hermeneuta acredita mesmo

que, apesar de serem destruidores, não se trata de mestres do ceticismo, mas antes, daqueles

que “pela invenção de uma arte de interpretar [...] vencem a dúvida sobre a consciência por

uma exegese do sentido”. Embaraços e impasses com os quais suas críticas estão envolvidas

não constituem o essencial delas, mas o ato através do qual limpam o horizonte para a uma

ciência mediata do sentido irredutível à consciência imediata (cf. CI, 127-128). O resultado da

travessia pelos mestres da suspeita é a ratificação da extensão da consciência do duplo oculto-

aparente.

Particularmente no caso de Freud, segundo Dosse, uma dupla confrontação; o encontro

com outra dialética, consciente/inconsciente, que buscava e encontrava uma minoração do

tema perpassado por toda A Simbólica do Mal, a culpabilidade; e da psicanálise como

hermenêutica rival à sua interpretação amplificante dos símbolos.93

Ainda assim, Ricoeur,

“atribui a Freud uma posição análoga àquela de Nietzsche e de Marx, a de um pensamento da

suspeita capaz de revelar, de desmascarar, de descobrir as verdades ocultas para a

consciência”.94

Não é isso que temos com Foucault, para quem Marx, Nietzsche e Freud não só não

multiplicaram os signos, como também não os dotaram com novos sentidos. Para ele, o que

ocorreu foi que ao modificarem a natureza dos signos pela adoção de novas técnicas

interpretativas mudaram também a maneira como podiam ser interpretados, o que termina por

implicar não apenas no processo de interpretação, mas também no próprio intérprete.95

A

descentralização que operam (pela análise histórica das relações de produção, pela genealogia,

pela psicanálise) não assegura salvaguarda alguma que vise a reconstituição de projeto do

trabalho do sentido, muito pelo contrário, determina uma empresa em que se tenta desfazer as

últimas sujeições antropológicas.96

Aprofundada nessa perspectiva, essa aposta é a da

dissolução do sujeito pelo interminável processo interpretativo advogado, segundo Foucault,

pelos três pensadores.

quanto mais longe vamos na interpretação, ao mesmo tempo nos

aproximamos de uma região absolutamente perigosa, na qual a interpretação

vai encontrar não só seu ponto de retrocesso, mas onde ela própria vai

93

Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 293. 94

Idem, p. 291. 95

Cf. M. Foucault, Marx, Nietzsche, Freud, op. cit. p. 43 96

Cf. M. Foucault, Arqueologia do Saber, op. cit. p. 13ss.

99

desaparecer como interpretação, ocasionando talvez o desaparecimento do

próprio intérprete. A existência sempre aproximativa do ponto absoluto da

interpretação seria, simultaneamente, a aproximação de um ponto de

ruptura.97

O que se torna evidente, para nós, a partir do confronto entre Ricoeur e Foucault a

propósito da convocação dos “mestres da suspeita”, é que, uma vez mais, se trata de decisão.

Nada disso deve absolutamente surpreender, uma vez que no tópico em que Foucault é

chamado ao debate, o do Ser-afetado-pelo-passado, Ricoeur contextualiza e reitera sua

posição: “É o próprio propósito de ‘fazer a história’ que pede o passo atrás do futuro para o

passado” (TN 3, 368). Ora, sejamos ainda mais generosos e compreendamos num plano ainda

mais abrangente o que põe às claras todo o capítulo que encerra o percurso traçado por Tempo

e Narrativa ao longo dos três volumes. O que se tem ali é a tarefa da realização de um projeto.

Senão por que Ricoeur conclamaria Para uma hermenêutica da consciência histórica?

Com efeito, Ricoeur compreende que Foucault, como crítico radical da historiografia,

realiza enfática defesa da arqueologia do saber enquanto ciência que se quer sem precedentes.

O deslocamento que opera essa nova ciência é aquele em que a teoria do arquivo (registro das

formas discursivas) cede lugar à arqueologia (descrição das transformações interdiscursivas),

isto é, inverte o procedimento guiado pela análise regressiva condutora das formas discursivas

aos enunciados nus operando o retorno aos possíveis campos de aplicação, sem que se trate

absolutamente de uma repetição do ponto de partida. Assim, a arqueologia não busca a

reconstrução das continuidades, quer dizer, não reconstitui o passado repetindo o que foi, seu

interesse é diverso disso, é de reescrever o já escrito.

Segundo Ricoeur, esse procedimento atua em quatro frentes: novidade como intermédio

entre ponto de ruptura e acúmulo com o já-dito; contradição enquanto lugar do descompasso,

dissensão e asperezas do discurso; comparação em que arqueologia se faz interdiscursiva,

sem com isso descambar numa hermenêutica das intenções e motivações; por fim,

transformação onde, propriamente, a arqueologia joga seu destino ao, não incorrendo nem no

imobilismo eleático nem na sucessão linear historicista, irrompe o tema da descontinuidade

voltando seu olhar para os cortes, brechas, aberturas, redistribuições súbitas opostas ao hábito

historiográfico demasiado preocupado com continuidades. Seu paradoxo, prossegue Ricoeur,

não está no fato da arqueologia multiplicar as diferenças, mas em recusar-se a diminuí-las.

Isso porque essa disciplina não tem por finalidade de seu projeto superar as diferenças e sim

analisá-las ao ponto de diferenciá-las ainda mais (cf. MHE, 210ss).

97

M. Foucault, Marx, Nietzsche, Freud, op. cit. p. 45.

100

Ao rejeitar o vínculo necessário entre a continuidade de uma memória comum e as

pretensões de uma consciência constituinte, Ricoeur não se porta como arauto do regresso

triunfante da continuidade histórica que desconsideraria toda crítica que aponta para as

fissuras, mas ao contrário, como aquele que sabe que apesar das rupturas (e também graças a

elas) a história é a livre decisão de alguém que aposta na compreensão pelo sentido. Eis

porque, para Ricoeur, entre memória e história não cabe mais a posição intransigente de

Foucault situando em lados opostos a descontinuidade ostentada pelo discurso histórico e a

continuidade presumida do discurso da memória (cf. MHE, 214). Ricoeur está ciente de que

empreendimentos globais da história são arriscados, no entanto, jamais os interditou (cf., HV,

9). Como alguém que se pauta contra a violência, ou melhor, pelo desenvolvimento do projeto

da não-violência (cf. HV, 225-250), não pode abdicar do sentido. Para ele, tanto a ideia de

uma continuidade incessante da história, se não se permite informar pelas rupturas, corrobora

com a violência. Da mesma forma, as infindáveis mutilações da descontinuidade, se, de igual

modo, desconsidera, de uma vez por todas, sedimentações que implicam sobre todo processo

de inovação, deixariam a história à mercê da violência muda. O resultado disso é a imposição

da incomunicabilidade entre os diversos discursos, porque incapazes de falar a não ser com

sigo mesmo.

A bem da verdade, essa é uma antiga advertência que Ricoeur aplica sobre os dois

caminhos de leitura da história. Sem enaltecer nenhum deles, lembra que ambos podem

conduzir à morte da história: um porque ao efetuar compreensão histórica o faz suprimindo a

história no sistema das categorias, como em Eric Weil, em que “atitudes ainda estão na

história, as categorias não compõem mais uma história, e sim uma Lógica da Filosofia” (HV,

78-79); no outro, conduzido pela sua hermenêutica, a história é igualmente destruída pela

prática que conduz à esquizofrenia, uma vez que aqui o que se verifica é o salto de filósofo

em filósofo sem que se esclareça a passagem. Os filósofos, tomados assim, deixam de

pertencer a qualquer época e, ao flutuarem como singularidades fora da história, são reduzidos

a essências singulares anacrônicas, intemporais. Suas obras são vertidas numa espécie de

absoluto portador de seu próprio passado, mas essencializado (cf. HV, 79). Conquanto essas

direções não descambem nem para o discurso absoluto nem para a singularidade absoluta elas

são capazes de conduzir a reflexão filosófica à compreensão de que o objeto da história é o

próprio sujeito humano (cf. HV, 43ss).

Em síntese: o ponto decisivo relativo ao projeto da hermenêutica ricoeuriana concebe que a

“a crítica da finalidade, entendida como termo final imposto de fora a um funcionamento

101

mecânico, não esgota a questão do sentido, pois a verdadeira finalidade não é um alvo

proposto do exterior; é a plena manifestação da orientação de um dinamismo” (L1, 65). É

preciso enfrentar toda crítica, pois é pelo cruel aprendizado da ruptura, essa dura escola da

decepção, que se constitui a única oportunidade de sutura. Para Ricoeur, esse rude processus

de dilaceramento ainda está em fase de desenvolvimento para todas as ciências humanas (cf.

HV, 185).

É interessante que Gagnebin exalte tão entusiasticamente o sujeito dilacerado98

e não tenha

a mesma complacência com a questão do sentido sustentada por Ricoeur, mesmo

considerando que ele o conserva ao preço dos desvios e pela opacidade indeclinável que

encontra suas raízes naquilo que, simultaneamente, nos precede e nos ultrapassa.99

É verdade

que nada está finalizado, e é exatamente por não haver finalização que tudo pode ser

retomado. Mas em se tratando de Weil e Ricoeur a retomada exige ser posta no âmbito de

uma orientação. Ora, uma vez que há, em última instância, para Ricoeur, um tênue vínculo

entre o sujeito e o sentido100

– tanto pela fragilidade do primeiro quanto pelo caráter errático

do segundo – desfazer-se do sentido, ainda que a título de suspensão, seria o mesmo que cair

no polo oposto ao triunfalismo do cogito, isto é, seria colaborar decisivamente para sua

humilhação, dado que nessas circunstâncias o sujeito estaria absolutamente desamparado, sem

qualquer possibilidade de orientação: “a compreensão do texto não é o seu próprio fim, ela

mediatiza a relação consigo de um sujeito que não encontra, no curto circuito da reflexão

imediata, o sentido da sua própria vida” (TA, 155). Então, como não esperar que Ricoeur

mantenha, quanto a isso, sua posição, com bem sabemos reiteradas vezes, de recusa?

Ademais, vincular sujeito e sentido não é subordinar o segundo ao poder interpretativo do

primeiro termo. É, efetivamente, a apropriação de um projeto de mundo que é desvelado

diante do sujeito, nele, o sujeito é levado, antes de querer arvorar-se senhor de si mesmo, a

novas formas de conhecer a si mesmo mediante a interpretação. Diante do sentido, na

qualidade de leitor, o sujeito não se projeta a si mesmo, mas é alargado na sua capacidade de

autoprojeção pela multiplicidade de sentidos (de mundos) abertos pelo ato da interpretação

(cf. TI,137). Contrária à tradição do cogito, o sujeito não se conhece a si mesmo de maneira

imediata, mas pelas digressões do sentido depositado nas grandes obras da cultura. (cf. TA,

123).

98

Cf. J.-M. Gagnebin. Lembrar, Escrever, Esquecer, op. cit. especificamente capítulo 11 Uma filosofia do cogito

ferido: Paul Ricoeur, p. 163-178. 99

Cf. Idem, p. 177. 100

« la constitution du soi et celle du sens sont contemporaines » (TA, 152).

102

2.3.5. Decisão pela não violência na narrativa do processo jurídico

Quiçá por uma rápida demonstração da posição ricoeuriana, mediante outro tipo de

narrativa, a da incursão pelo direito, seja, a esse título, uma boa ilustração. Para Ricoeur, o rito

processual, como modalidade da narrativa da promessa, ocorre a partir de três círculos

concêntricos: direito penal, direito civil e direito distributivo.

Se é no último que se concretiza a promessa da pacificação da sociedade pelo

envolvimento da sociedade como um todo num sistema de distribuição de papéis, de tarefas e

de obrigações que no limite assume – sua tarefa mais difícil – a distribuição de poder pela

distribuição de posições de autoridade e comando; se no segundo círculo temos o empenho da

palavra levada a cabo pelo reconhecimento de que é preciso reparar um dano e, portanto, a

instituição da confiança que revela “os laços de uma promessa que tocam qualquer coisa de

fundamental”; é no primeiro círculo que toda promessa é possível, pois é ele que constitui a

região de racionalidade intermédia (entre racionalidade moral e racionalidade do Estado

misturadas com a violência), onde o pressuposto é justamente a ruptura entre o discurso e a

violência, para retomar a célebre oposição de Éric Weil no início de Lógica da Filosofia, o

processo é o lugar privilegiado de uma discussão ordenada e ritualizada (cf. CC, 162ss).

Para Ricoeur, a narrativa do processo jurídico é a forma codificada do conflito – fenômeno

muito mais amplo sob o qual se desenvolvem outros fenômenos sociais consideráveis,

inerentes ao funcionamento da sociedade, e situado na origem da discussão pública. Detrás do

processo há o conflito, a pendência, a demanda, o litígio; e no plano de fundo do conflito há a

violência. A justiça é, nesse sentido, o espaço do confronto com essa potência negativa como

esforço da sociedade somada a outras alternativas opostas à violência como, por exemplo, o

Estado de direito. Segundo Ricoeur, a longa meditação de Weil sobre a relação entre discurso

e violência introduzida pela Lógica da Filosofia é, decerto, elucidativa, pois todas as fases do

processo jurídico (deliberação, tomada de decisão e sentença) manifestam a escolha do

discurso contra a violência. “Só se mede plenamente o alcance dessa opção contra a violência

e a favor do discurso, quando se toma consciência da amplitude do fenômeno da violência”

(cf. J1, 178-179).

Em contraste com a posição de Ricoeur – visando realçá-la ainda mais –, temos as

reflexões de outro pensador que na atualidade tem recebido ampla aceitação de suas teses nos

meios acadêmicos e jurídicos. Trata-se do ensaísta e jurista italiano Giorgio Agamben. Não é

103

que o pensador italiano se faça apologista da violência, longe disso! Mas, para ele, instituição

e violência, estão, a tal ponto, cada vez mais, misturadas na contemporaneidade que a norma

jurídica se constitui na expressão do próprio Estado de Exceção.

Agamben afirma que nosso tempo está estruturado de tal forma que o enigma das relações

entre normas jurídicas e a própria vivência das pessoas celebra a insolvência destas últimas

sem que elas sejam capazes de se dar conta. O Estado de Exceção é a "terra de ninguém" onde

vigora o puro arbítrio da suposta ordem jurídica sobre a vida do indivíduo reduzido a puro

ente administrado no qual o campo de concentração se tornou o paradigma político do

moderno. Segundo Agamben, a forma legal assume as feições daquilo que não pode ter forma

alguma, isto é, aquilo que deveria ser tão somente exceção é transformado em normalidade.101

Crucial, para o pensador italiano, é a permanente tendência de a política contemporânea

balizar sua conduta obedecendo cegamente um conjunto de dispositivos legais que deveria

servir tão somente para situações especiais, mas que cada vez mais se consolida como

paradigma de governo. A aguda observação da crescente redução da política ao jurídico em

nossos dias é o que torna essa reflexão algo ímpar, pois problematização que revela, nessa

tendente indistinção político-jurídico, como o jurídico vem se ocupando com todos os

aspectos da vida humana.

Com a dissolução da política é, segundo Agamben, a própria noção tradicionalmente

estabelecida do homem como animal político que se vê em xeque. Noção essa que permitiu

olharmos para a linguagem como aquilo que constitui a própria comunidade da discussão por

ser o homem dotado de fala, logon. Ocorre que agora, esse participante da comunidade

discursiva se encontra diante da falência desse princípio sem que ao menos se dê conta das

implicações que isso acarreta. Para Agamben, é na passagem da voz à linguagem (Aristóteles,

Política e Metafísica) que encontramos a estrutura do problema por ele identificado: uma

indistinguível fronteira entre zoé e bios – vida nua e espaço político, vivente e cidadão – em

que a dissolução de uma na outra constitui a maneira mais exacerbada dos atos de violência

praticados pelo Estado. O jurídico tornou-se sagrado e o homem, homo sacer.

No seu livro Sacramento da Linguagem, Agamben pratica uma espécie de arqueologia do

juramento e põe em relevo a maneira pela qual todas as formas de associação política

dependentes da linguagem entraram em colapso. Ele nos mostra que, em nosso tempo, há um

declínio irreversível do juramento: somos a geração que, predominantemente, vive sem se

101

Cf. G. Agamben, Estado de exceção. 2 ed. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 12.

104

importar com o vínculo fundante que é o juramento para o corpo político. Entretanto, segue

dizendo, que o fato de vivermos o ocaso desse tipo de vida coletiva implica o limiar de novas

formas de associação política que por essa razão ainda não foram apreendidas.102

Assim, o juramento, como exemplo emblemático do atual uso da linguagem, é o instituto

no qual nenhuma garantia pode ser depositada. Desde a sua constituição nas culturas mais

remotas, como as escavações arqueológicas de Agamben permitem encontrar, o juramento é

tomado como um flagelo no qual “a infidelidade à palavra dada, a mentira ou o erro nas

fórmulas rituais”103

são o que melhor o caracteriza. O juramento contém intrinsecamente

sempre a possibilidade outra, inversa, daquilo que propõe garantir. Daí porque juramento e

perjúrio são faces do mesmo ato.104

As escavações de Agamben terminam por atestar a relação

entre antropogênese e o próprio presente alojado numa arché. Nesse sentido, a hipótese

colocada é que o juramento ao se constituir como

enigmática instituição ao mesmo tempo jurídica e religiosa... se tornará

inteligível unicamente se a situarmos numa perspectiva na qual ela põe em

questão a própria natureza do homem como ser falante e como animal

político. É disso que provém a atualidade de arqueologia do juramento.105

A face do problema político atingido é o da redução do ser vivo a uma realidade puramente

biológica e, portanto, redução do homem à vida nua.106

Voz sem língua ou linguagem vazia é,

no âmbito da política, cidadania restringida à dimensão do homem como puro vivente, homo

sacer. Em síntese; imersos numa absolutização da opacidade jurídica, o Estado de Exceção

pretende plena dominação de todos aqueles que foram igualmente reduzidos a suas funções

meramente biológicas.

Em que pese essa lúcida caracterização da banalização do mal feita por Agamben e seu

prognóstico, é necessário, para sair do impasse, avançar na direção de uma relação cada vez

mais constitutiva entre liberdade e instituição. Ricoeur está convicto de há uma destinação

comunitária do animal humano que se realiza quando o homem ingressa, através da

cidadania, na humanidade (cf. HV, 255). Essa tomada de posição pela não violência não se

confunde com nenhuma ilusão meramente pacifista inspirada nalguma ingenuidade que

menosprezaria a violência contida na própria linguagem. Aquilo que Ricoeur não abre mão é

o estabelecimento de procedimentos jurídicos capazes de efetivar a vida dos indivíduos em

102

G. Agamben, O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. Tradução de Selvino J. Assmann. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 09. 103

Idem. p. 14 104

Cf. Idem. p. 16 105

Idem. p. 19. 106

Cf. Idem. p. 81

105

instituições justas. Pensando a identidade narrativa Ricoeur afirma:

identidade narrativa se distingue da identidade biológica – marcada pelo

código genético de cada um, imutável desde o momento da concepção ao da

morte, e por outros traços individuais (impressões digitais, assinatura, traços

do rosto etc.) – e não tem outra continuidade a não ser uma história de vida;

a narrativa, por seu turno, expressa o “quem” da ação e a única forma de

permanência que convém à identidade narrativa não pode ser senão a de uma

promessa, graças à qual eu me mantenho na constância de uma palavra dada

e mantida. Contudo, a identidade narrativa tem, ela própria, suas armadilhas,

seus usos e abusos, suas caricaturas, como se vê no que tange aos povos e às

nações, em que ela oferece uma cobertura ao medo, ao ódio, à violência, à

autodestruição.107

Ricoeur não desconhece a mentira, o perjúrio, e todo poder destrutivo da violência

embutido na palavra, mas a narrativa só pode firma-se pela promessa. É verdade que o

vínculo é fraco, especialmente se considerarmos que, do ponto de vista político, o

esgotamento da democracia representativa surge na atualidade como uma das evidências do

fracasso da palavra: o slogan eleição traição é ecoado sem cessar. A fonte desse descrédito,

segundo Ricoeur, é que os conceitos maioria e minoria, que outrora embalaram, com certo

êxito as democracias modernas, em especial aquelas de modelo anglo-saxão, já não

correspondem mais à conjunção entre os explorados e a parte esclarecida da opinião pública

que exigia mudança, liberdade e justiça. Hoje, tudo indica, que pela ampliação da classe

média, a ideia de maioria vincula-se à defesa das aquisições próprias dessa classe, avessa

também ela à mudança.

A liberdade de expressão, âmago dessa instituição, acabou por se converter em mera

escusa por não ter enfrentamento todas as formas de injustiça que denunciou durante todo o

tempo em que esse princípio se manteve salvaguardado. O que aparece com o declínio da

democracia representativa é a traição dos liberais que ao promoverem as guerras coloniais

(entre outras) expuseram aí também o fracasso da palavra, impotente, agora, diante das

injustiças. O que se tinha por tolerância mútua entre pessoas de palavra é visto tão somente

como o selo da cegueira em relação às injustiças. A palavra transformou-se no álibi da

violência (cf. HI, 165ss).

O drama contemporâneo se situa entre a polarização crescente da liberdade e instituições.

Da liberdade que irredutível à razão, mas que também não se realiza na violência. Razão e

violência continuam a jogar decididamente no tabuleiro da história os destinos de todos. Toda

violência contida na sociedade insere-se, sub-repticiamente, na dificuldade de se conjugar,

107

Ricoeur, Lectio Magistralis, op. cit., p. 127.

106

num mesmo movimento, os progressos da liberdade e das instituições. Essa determinação

diante da violência é uma decisão de princípio para a própria filosofia, pois

retrospectivamente, até onde nos encontramos na história, não é possível conceber vida

humana além das instituições. Nossa situação é paradoxal porque o esgotamento – nossa

incapacidade de reinterpretação criadora das heranças culturais – nos conduz a um fascínio de

uma liberdade sem instituições. Semelhante a pomba de Kant, iludida por acreditar que voaria

mais alto e melhor se não fosse, aquilo que propriamente lhe permite voar, a resistência do

ar.108

O problema de fundo é ainda o do Contrato Social no qual vigora a ideia de uma recíproca

desistência entre todos os membros da sociedade em favor da promoção da liberdade

selvagem à liberdade civil. Ocorre que com as novas determinações introduzidas pela atual

etapa de desenvolvimento (entre elas o próprio solapamento das instituições) é prudente

buscar o alargamento desse pacto inicial (político e soberania) no sentido de um acordo mais

abrangente. Pacto que ao envolver todas as instituições, órgãos governamentais ou não, seja

capaz de dotá-las de amplos dispositivos de participação popular visando desperta a cidadania

ativa. Devemos repensar hoje, mais do que antes, todas as instituições como realizadoras da

liberdade, pois é somente pelo crivo das instituições que a liberdade pode tornar-se liberdade

sensata.

Não obstante esta digressão, bem como as demais, todas as considerações, acerca da

aplicação da retomada, nos permitem indagar se não estaríamos aqui diante daquela situação

em que somos surpreendidos pela descoberta de novas possibilidades de leitura? Com

Ricoeur, a resposta é seguramente sim. Pois nele “frequentemente é no fim do percurso, com

o intuito de retomar retrospectivamente os momentos reflexivos precedentes, que o leitor deve

esperar um esboço de prazer intelectual”.109

Ademais sua compreensão da própria filosofia

requer, além da reabertura permanente das questões, a devida atenção a recursos antes

despercebidos tanto em relação à sua própria obra quanto à dos autores lidos por ele.110

Ora,

Ricoeur concebe sua hermenêutica filosófica, em geral situada no interior da tensão que

impõe a alternativa entre explicação e compreensão, proporcionando uma moldura altamente

fecunda de problematização para as ciências humanas. Desta postura dialógica adotada diante

dos conflitos, ele extrai as potencialidades das posições em disputa buscando superar a

108

CRP, A 5, B 8 109

J. Michel. A questão do sujeito em Ricoeur e Deleuze in Nascimento-Salles, op. cit. p. 11-12. 110

Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 18.

107

dicotomia em que se encontram.111

É a essa atitude presentemente na hermenêutica

ricoeuriana uma das suas marcas registradas a qual podemos chamar de arbitragem.

A hermenêutica filosófica de Ricoeur compreende que jamais o mundo do texto é fechado

e, portanto, sempre apto a receber toda consciência que nele se dispuser a habitar. Essa troca

entre uma consciência e o texto é que remete ao ato de leitura propriamente pelo qual o

mundo do texto se vê apropriado pelo leitor que, dessa maneira, passa à compreensão de si

mesmo. O ato de leitura se torna a realização da hermenêutica amplificadora do sentido.112

A

tarefa de compreender é o fazer ou refazer a operação discursiva portadora da inovação

semântica (cf. TA, 34).

A hermenêutica de Ricoeur permanece tanto como uma tarefa quanto como uma aposta de

uma retomada possível da força no sentido.113

É nessa perspectiva que indagamos se a

“aporética leitura” não corresponderia à exigência da “elaboração de uma filosofia crítica do

sentido”,114

uma vez que a trajetória traçada se situa na linha do sentido do sentido que ao

apontar para o futuro não ignora o acúmulo do passado, mas não dota o porvir com nenhum

conteúdo pré-estabelecido, permanecendo aberto o futuro pelo vazio da possibilidade de

orientação em razão do sentido.

O sentido de um texto não está detrás do texto, mas à sua frente. Não é algo

de oculto, mas algo de descoberto. O que importa compreender não é a

situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível... o

texto fala de um mundo possível e de um modo possível de alguém nele se

orientar (TI, 132).

Ao que parece, a coerência do discurso se torna aqui em Ricoeur a própria retomada, mas

retomada, agora num novo sentido, diferente daquele exposto por Weil em sua Lógica, mas

igualmente em débito com ela. Contudo, ainda se trata de uma retomada e nessa qualidade

aquilo que é retomado tornou-se algo novo. Diríamos então que com Ricoeur ela sofreu novas

determinações, foi alargada pelo próprio movimento da retrospecção. O que temos é uma

“leitura como atividade específica de recepção e de reapropriação transformadora”.115

Retomada que é re-leitura, refiguração, transformada pelo próprio movimento sobre si

mesmo, por sua própria recorrência – uma retomada da retomada é operada.

A Lógica da Filosofia, nessa perspectiva, teria sido lida à semelhança de qualquer outra

111

Cf. F. Dosse, História do estruturalismo I: o campo do signo – 1945/1966. Tradução de Álvaro Cabral. Bauru,

SP: Edusc, 2007, p. 19. 112

Cf. J. Grodin, op. cit. p. 104. 113

Cf. J. Michel, op. cit. p. 26. 114

M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. 128. 115

J.M. Gagnebin, Lembrar, Escrever, Esquecer, op. cit. p. 174.

108

narrativa que em Ricoeur pressupõe que algo de idêntico aconteça a despeito de toda intriga e,

nesse sentido, implica em integrar os acontecimentos múltiplos e dispersos numa história

única cujo sentido é percebido como um todo envolvente (cf. TI, 156). Quem já atravessou a

Lógica da Filosofia sabe que essa obra não apenas se presta a essa leitura como oferece a

mesma perspectiva através das várias figuras do discurso que nela se efetuam numa narrativa

autossuficiente, circunscrita pela mediação analógica da prosopopeia.116

116

Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 11. Em Marcelo Perine a prosopopeia é a prova de que não há ruptura

irreparável no discurso weiliano, pois ela é o artifício pelo qual o discurso filosófico elabora o discurso

incoerente da coerência cf. Filosofia e Violência, op. cit. p. 214.

109

3. Pós hegelianos

A prática teórica é a prática de uma ação que se compreende a si mesma na procura de uma inteligibilidade

Paul Ricoeur

3.1. Éric Weil: Hegel e a escritura de um projeto inacabado

É muito comum entre os leitores, estudiosos e críticos de Éric Weil ter Hegel como um dos

seus principais interlocutores. De fato, Éric Weil dedicou a Hegel um expressivo conjunto de

trabalhos monográficos no interior de sua produção intelectual,1 bem como seu livro Hegel e

o Estado,2 tese complementar de doutoramento de Estado, ao lado de sua famosa Lógica da

Filosofia, tese principal, em que figura a categoria do Absoluto, categoria filosófica da

filosofia ou ainda categoria na qual a filosofia se pensa, cuja tematização Weil reputa a Hegel.

É conhecida a intensa participação de Éric Weil nos congressos internacionais sobre Hegel,

bem como os prêmios e homenagens que ali recebeu, entre os quais por “ter feito frutificar os

motivos hegelianos no presente”3. Além do já citado Hegel e o Estado que encarna muito de

sua polêmica e divergente interpretação em relação a Alexandre Kojève, ambos considerados

os responsáveis pela renovação dos estudos hegelianos na França.4

Esperamos que essa breve caracterização acima seja suficiente para demonstrar como o

próprio Weil jamais renunciou à sua influência hegeliana. Ademais, segundo pensa, a filosofia

1

No período de vinte cinco nos, Weil escreveu sobre Hegel: “La morale de Hegel” in Deucalion, 5(1955): 101-

116, depois in EC I, 142-158; “Hegel” in Les philosophes célèbres, Paris, 1956, pp. 258-265, depois in EC I,

125-141; “Hegel et nous” in Hegel-Studien, Beiheft, 4(1969):7-15, depois in PR I, 95-106; “De la dialectique

objective” in Les études philosophiques, 1970, pp. 339-346, depois in PR I, 59-68; “The hegelian dialectic” in

The legacy of Hegel, Haia, 1973, pp. 49-64, depois in PR I, 107-125 (em tradução francesa); “Hegel et le

concept de révolution”, in Archives de philosophie, 39(1976): 3-19, depois in PR I, 127-145; “La philosophie du

droit et la philosophie de l’histoire hégélienne” in Hegel et la Philosophie du droit, Paris, 1979, pp. 5-33, depois

in PR I, 146-166. Acrescenta-se ainda o texto “Rousseau et Hegel”: “Rousseau und Hegel” in trad. Par G.

Kirscher et J. Quillien, p. 150-162 depois in PR II, 150-162. 2 Sobre Hegel et l’État Marcelo Perine destaca: “escrito como tese complementar... o livro provocou uma

reviravolta na interpretação da Filosofia do Direito de Hegel, em cuja linha inserem-se os já clássicos trabalhos

de Ritter (Hegel e la rivoluzione francese. Nápoles: Guida, 1977), de Avineri (La teoria hegelina dello stato.

Bari: Laterza, 1973), bem como os estudos de Löwith e Riedel, elaborados entre 1962 e 1968, e publicados num

volume de 1969 com o título Studien zu Hegels Rechtsphilosophie. Também o grande pesquisador de Hegel, K.

H. Ilting (Hegel diverso. Le filosofie del diritto dal 1818 al 1831. Bari: Laterza, 1977), destacou a importância da

obra de Weil e da controvérsia por ela suscitada... A leitura weiliana, sem dúvida controvertida, fez escola nos

estudos hegelianos. Também sob a influência weiliana situam-se os trabalhos de Fleischman, E. La philosophie

politique de Hegel. Paris: Plon, 1964, e de D’Hondt, J. Hegel, philosophie de l’histoire vivante. Paris: PUF,

1966; Hegel secret. Paris: PUF, 1968, e Hegel e son temps. Paris: Ed. Sociales, 1968. Cf. M. Perine. Éric Weil e

a compreensão do nosso tempo, op. cit. p. 89. 3A. Deligne, Action et reception d’Éric Weil en Allemagne in Critique n. 636, mai (2000): p. 408.

4 Cf., Gilbert Kirscher em sua apresentação de PR II, p. X. Conta-se que Kojève e Weil passavam noites inteiras

em Clamart a discutir Hegel.

110

de Hegel é, por um lado, a última das grandes filosofias e, por outro, a primeira filosofia

contemporânea. E a contemporaneidade de Hegel reside no fato de que “sua filosofia fala

ainda de nosso mundo e não fala tanto para nós quanto de nós” (EC I, 127).5

Mas Hegel não é considerado por Weil senão ao preço de ser repensado (Nachdenken) (cf.,

PR I, 103). Ou para falar como um grande intérprete do pensamento weiliano, Gilbert

Kirscher: compreender a filosofia de Weil é também compreender sua compreensão e a sua

crítica a Hegel.6 Para Weil, muitos podem se acreditar hegelianos por subscreverem cada

palavra do mestre, mas não serão no sentido mesmo de Hegel, pois “ninguém mais do que

Hegel tomou a sério a história, e aquele que, querendo permanecer fiel a Hegel, nega cento e

vinte e cinco anos de história renega aquele que ele pensa adorar” (EC I, 141). Noutros

termos, se se deve interrogar Hegel é porque interrogamos a nós mesmos. Inversamente,

somente porque devemos confrontar a nossa história é que Hegel deverá ser (re)considerado -

isso demonstra, para Weil, quão profundamente o autor da Fenomenologia do Espírito

informou nosso tempo. Ocupamo-nos de Hegel “porque é contra ele e o que representa que

nós nos definimos: ele permanece o ponto de referência ao qual nós nos orientamos” (PR I,

100).

Contudo, engana-se quem imagina encontrar respostas fáceis na filosofia de Hegel. Ilude-

se aquele que acredita que o contato com esta filosofia lhe indique – sem um grande esforço

de compreensão – clareza quanto ao embaraço que se tornou o nosso tempo. O texto de

Hegel, segundo Weil, não é convidativo, não seduz pelo charme de seu estilo, pelo contrário,

Hegel é não só difícil por ser um filósofo, mas é o mais difícil entre todos filósofos (cf. EC I,

126). E a dificuldade própria de sua escrita não tem outra função senão a de ajudar o leitor

(uma ajuda negativa é verdade), a de protegê-lo quanto a um problema suplementar, isto é,

impedi-lo de tomar por simples o que é demasiadamente complexo (cf. EC I, 125).

E o complexo, aquilo que precisa ser desembaraçado, é a nossa realidade efetiva

(Wirklichkeit). Aliás, a forma do embaraçamento é a maneira pela qual essa realidade se

presentifica e se constitui. Tal embaraço, esse bloqueio que de imediato impõe limites ao

5

Hegel, dirá ainda Weil, « est avec nous, parce qu’il est présent dans la pensée de notre époque, parce qu’il a

exercé – et excerce par leur intermédiaire sur nous – l’influence la plus grande sur ses successeurs – même, et

peut-être surtout, sur ceux qui se sont révoltés contre lui: l’un Kierkegaard de la façon la plus consciente, un

Jacob Burckhard; encore un Ranke, Nietzsche lui-même, sans parle disciples fidèles-infidèles du type de

Feuerbach ou de Marx, tous sont proprement incompréhensibles sans lui, quand bien même ils ne se

comprendraient pas par lui seul. La théologie, l’histoire, la pensée politique et sociale, l’esthétique: en chacun

de ces domaines, Hegel est avec nous, notre bonne ou mauvaise conscience, mais toujours présent. En

comprenant Hegel, dirions-nous, nous espérons mieux nous comprendre nous-mêmes. » (PR I, 95-96). 6 Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 116.

111

pensamento, não é senão as contradições que afligem o entendimento. Assim, se a filosofia

quer ser outra coisa que a afirmação de sua própria falha, de sua própria impossibilidade, ela

precisa se tornar saber, saber absoluto, deve querer ultrapassar a contradição do entendimento

estático e, antes de tudo, superar a dicotomia entre a subjetividade e a objetividade, entre o

finito e o infinito, entre a realidade e o pensamento (cf. PR I, 110). Não por outra razão Hegel

se impôs a tarefa de pensar a realidade em todas as suas contradições. Noutros termos:

Hegel quis compreender e compreender a realidade total em sua unidade: o

homem normal aceita (mesmo se ele as observa) as contradições dos

discursos e das ações... e aos olhos de Hegel, é precisamente a

multiplicidade dessas posições que constitui o grande problema, o problema

filosófico. Hegel quer ser filósofo e ser filósofo, para ele, é não construir um

discurso coerente a mais entre tantos outros discursos coerentes,

explicativos, redutores, mas compreender a realidade una na unidade da

verdade (EC I, p. 130).7

Em resumo, para Hegel trata-se de querer compreender a razão em razão, mas da maneira

como ela existe concretamente, a saber, na unidade das contradições.8 Esse pensar a realidade

é deduzido das preocupações de Kant em descobrir as possibilidades da compreensão total.

Ora,

é sob solo kantiano que Hegel, assim como Fichte e Schelling, malgrado

todas as suas diferenças, tentaram levar a cabo a empresa de construir um

discurso único que capte o todo da realidade natural e intelectual. Essa

empresa, segundo Hegel, Kant não concluiu porque não superou, mas

radicalizou os dualismos entre entendimento e sensibilidade, entre razão

teórica e entendimento, razão teórica e razão prática, conhecimento dos

fenômenos e pensamento de um absoluto não-empírico, mundo da

experiência e mundo da lei da razão, numa palavra: finitude do homem e

infinitude da liberdade.9

Na perspectiva weiliana, “o infinito só é verdadeiro se nada se lhe opõe ou limita: ele não

pode ser senão a totalidade estruturada do finito”.10

Para Weil, a estrutura só tem sentido se

ela quer dar conta do estruturado. Sobre isso o próprio Hegel diz:

A recondução do ser particular finito ao ser como tal em sua universalidade

inteiramente abstrata tem de ser vista como a primeira exigência teórica e,

inclusive, também prática... o homem deve elevar-se a essa universalidade

abstrata em seu modo de pensar, no qual lhe é de fato indiferente se os cem

táleres são ou não são, independentemente de qual relação quantitativa eles

7 « Hegel ait voulu comprendre, et comprendre la réalité totale en son unité: l’homme normal accepte (même si

il les remarque) les contradictions des discours et des actions ... et aux yeux de Hegel, c’est précisément la

multiplicité de ces positions qui constitue le grand problème, le problème philosophique. Hegel veut être

philosophe, et être philosophe, pour lui, ce n’est pas construire un discours cohérent de plus, explicatifs,

réducteurs, mais comprendre la réalité une dans l’unité de la vérité. » (EC I, 130). 8 Cf., M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., p. 119.

9 Idem, p. 118.

10 Idem, p. 118.

112

possam ter com seu estado patrimonial, bem como lhe é indiferente se o

estado patrimonial é ou não é, isto é, se na vida finita ele é ou não é (pois é

intencionado um estado, um ser determinado).11

Para Hegel, a filosofia só se compreende como saber absoluto e se quer assim; mas a que

custo? Hegel é categórico: é necessário nos livrarmos do acidental, do fortuito, do que cai.

Isso explica por que Hegel reprovou a Kant a sua ternura pelas coisas finitas (cf. PR I, 123).

Vivemos aliás uma época em que a universalidade do espírito está

fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se tanto

mais insignificante; em que a universalidade se aferra a toda sua extensão e

riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe à atividade do

indivíduo na obra total do espírito só pode ser mínima. Assim ele deve

esquecer-se, como já o implica a natureza da ciência. Na verdade, o

indivíduo deve vir-a-ser, e também deve fazer, o que lhe for possível, mas

não se deve exigir muito dele, já que muito pouco pode esperar de si e

reclamar para si mesmo.12

Contudo, lembra Weil, antes de tudo, vivemos, finitos, no finito e tudo isso se torna para

nós uma renúncia, um fardo, sob certos aspectos, pesadíssimo. Para Weil, essa é a razão pela

qual a dialética hegeliana deve responder a questões do tipo: a que preço deve-se querer

constituir a filosofia em saber absoluto? Para todos nós, indivíduos que se sabem indivíduos

no finito, este sacrifício não é demasiado e pode sempre ser recusado. Weil chama atenção

sempre a esse finito que pode protestar – e frequentemente protesta – com conhecimento de

causa contra as pretensões do saber absoluto. Kierkegaard, por exemplo, é lembrado por Weil

justamente por essa razão.

O finito, o individual, ao elevar-se ao universal não retém em si esse universal ou é

somente sorvido por ele? A crítica de Weil torna-se mais precisa e, ao mesmo tempo, mais

intensa:

Poder-se notar de início que o percurso que conduz ao saber absoluto

começa na certeza imediata e com a constatação das contradições às quais

ela chega a partir do momento em que se quer dizer essa experiência.

Noutros termos, a filosofia inicia-se na linguagem. Ora, Hegel, que celebra

em textos magníficos, sobretudo na Fenomenologia (e, numa visão mais

estreita, na Enciclopédia, § 459), a grandeza da linguagem, não trata dela

explicitamente, não a tematiza. Poder-se-á responder que a Fenomenologia é

inteiramente uma história do discurso. Mas, por sustentável que pareça

apoiar essa tese, ela parece conduzir a uma outra dificuldade não menos

inquietante: é necessário então que o sistema, para conservar a circularidade

que o prova, volte ao ponto de partida no finito que é a Fenomenologia, a

qual, como Hegel tinha afirmado inicialmente, seria necessariamente a

primeira parte do sistema - enquanto que a Enciclopédia, que tem muita

11

Cien. Log., 79. 12

Fenomenologia, Prefácio, § 72, p. 70.

113

dificuldade de situar Fenomenologia, volta ao início da Lógica, ao Ser, e

termina com um texto de Aristóteles que afirma o Nous como substância-

sujeito e como vida, como objeto-sujeito da visão, da théoria, na qual

desaparece a linguagem ao mesmo tempo em que o indivíduo (PR I, 124).13

Essa crítica weiliana, uma apreciação de caráter sistemático da filosofia hegeliana

segundo Paul Ricoeur, é compreendida como uma falha de Hegel em seu projeto da

passagem do ser em si ao para si.14

Para Weil, Hegel tomou o saber absoluto pela prova da

circularidade. Em muitas passagens da exposição do método-conteúdo Hegel diz isso

muito claramente: “O método é, dessa maneira, não uma forma exterior, mas a alma e o

conceito do conteúdo, do qual só difere enquanto os momentos do conceito vêm também

neles mesmos, em sua determinidade, a aparecer como a totalidade do conceito”15

, ou

ainda:

Porém, examinando mais de perto esse desenvolvimento, salta à vista que

não ocorreu porque uma só e a mesma coisa se tenha modelado em

diferentes figuras; ao contrário, é a repetição informe do idêntico, apenas

aplicado de fora a materiais diversos, obtendo assim uma aparência tediosa

de diversidade. Se o desenvolvimento não passa da repetição da mesma

fórmula, a ideia, embora para si bem verdadeira, de fato fica sempre em seu

começo.16

Para Weil, essas passagens indicam, satisfatoriamente, como a Fenomenologia passa ao

sistema, mas não o movimento contrário, isto é, da Enciclopédia à Fenomenologia. Esse

retorno o próprio Hegel renunciou a dizer, e essa é uma das razões apontadas por Weil para

caracterizar seu descrédito quanto ao fato de Hegel ter alcançado o saber absoluto (Cf. PR I,

52).

13

« On pourra noter ensuite que la démanche qui conduit au savoir absolu commence dans la certitude

immédiate et avec la constatation des contraditions auxquelles celle-ci aboutit dès q’on veut dire cette

expérience. En d’autres termes, la philosophie débute das langage. Or Hegel, qui célèbre dans des textes

magnifiques, sourtout dans la Phénoménologie (et, dans une vue plus étroite, dans l’Encyclopédie, § 459), la

grandeur du langage, n’en traite pas explicitement, ne le thématise pas. On pourrait répondre que la

Phénoménologie tout entière est une histoire du discours. Mais, pour soutenable que nous paraise pereille thèse,

elle semble conduire à une autre dificulté non moins inquétante: il faudrait alors que le système, pour conserver

la circularité qui seule le prouve, remène à ce départ dans le fini qu’est la Phénoménologie, laquelle, comme

Hegel l’avait affirmé à l’origine, serait donc nécessairement la première partie du système – tandis que

l’Encyclopédie, revient au début de la Lógique, à l’Être, et se termine par un texte d’Aristote qui affirme le Noûs

comme substance-sujet et comme vie, comme objet-sujet de la vue, de la théoria, dans laquelle disparaît le

langage en même temps que l’individu. » (PR I, 124). 14

P. Ricoeur, art. cit. p. 414. 15

Enciclopédia § 243. 16

Fenomenologia, Prefácio, § 15, p. 33. Exemplos poderiam se multiplicar ainda na Ciência da Lógica “a

exposição do que unicamente pode ser o método verídico da ciência filosófica recai no interior do tratado da

própria lógica; pois o método é a consciência sobre a forma do interior movimento de si de seu conteúdo” (p. 33)

e também na Filosofia do Direito “dialética não é um atuar externo de um pensamento subjetivo, ao contrário, é

a alma própria do conteúdo, a qual organicamente faz crescer seus ramos e seus frutos. Para esse

desenvolvimento da ideia como atividade própria da razão, o pensamento enquanto subjetivo observa-o somente

sem nele acrescentar de sua parte um só ingrediente” (§ 31).

114

O pensamento deve se realizar para se saber absoluto, e aqui reside a razão, apontada por

Weil, pela qual Hegel não ultrapassou sua pretensão. Weil está convencido dos limites do

grande livro que é a Fenomenologia, ao qual se refere como “esse tesouro de ideias” (PR I,

97) – livro que torna possível uma lógica da filosofia, mas não a realiza (cf. LF, 457). A

pretensão hegeliana é, pois, a de constituir a filosofia em saber absoluto, unidade que se funda

a si mesma, que não tem necessidade de fundamento exterior. Para Hegel, o finito se conhece

desde agora no infinito, e a ontologia é verdadeiramente “o pensamento de Deus antes da

criação do mundo, antes da queda do conceito na realidade empírica, nesse Dasein que é uma

das categorias mais primitivas, mais pobres, e por isso a de um pensamento que ainda não se

compreendeu na sua onipotência” (PR I, 104).

Esse projeto de pensamento inacabado tem desdobramentos inclusive na história, quer

dizer, na política. Para Weil, a solução para o problema crucial do nosso presente, o problema

da alienação do homem diante do acúmulo do capital foi visto e descrito tanto por Hegel

como por Marx. Entretanto, “ainda não foram dados sequer os primeiros passos de uma teoria

da política que leve em conta as novas formas de Estado que se produziram nesse entretempo”

(HE, 128/129).17

Para Weil, embora Hegel e Marx delineiem o que se pode chamar o Estado presente, sua

forma futura não é (e não poderia como ainda não pode ser) descrita, pois ambos sabem que o

que conta é a tomada de consciência completa de uma situação histórica e esta não indica

outra coisa que seu ultrapassamento, da mesma forma como ambos veem a impossibilidade de

traçar uma imagem precisa do Estado por realizar, porque só o sentido da oposição ao

existente está determinada, mas não a forma nova que resultará da ação (cf. HE, 125). Noutros

termos: o que se designa pelo nome de dialética do finito e do infinito não desaparece e o

discurso universal ou saber absoluto, a cada um de seus passos, só atinge o finito, e o Todo

não pode ser enunciado (cf. PR I, 66ss). Assim se pode dizer que o Estado, a política, bem

como a história e a filosofia, permanecem por se realizar e a reconciliação universal

concebida corretamente, segundo Weil, pela filosofia hegeliana não existe ainda no mundo

das necessidades e dos sofrimentos injustos (cf. PR I, 99).

A dimensão história dessa crítica é percebida e formulada assim por Weil:

Esquece-se muito facilmente que a Fenomenologia foi terminada no

momento da batalha de Jena. A “alma do mundo” que em Jena Hegel vê

17

É preciso dizer que essa afirmação de Éric Weil se situa nos anos de 1950 e deve ser considerada nesse

contexto para que seja melhor compreendida.

115

passar debaixo de sua janela não é ainda o Napoleão de Tilsitt, o Napoleão

da Espanha, o de Moscou - não é, sobretudo, o Napoleão de Santa Helena.

Os fatos seguiram o curso que se sabe: seria inimaginável que o homem para

o qual a leitura dos jornais era a prece matutina do honesto homem moderno

não tivesse tomado nota. Napoleão cai, o mais alto ponto da história não é

atingido, o Império Mundial do Espírito que termina o desenvolvimento da

Fenomenologia não se realizou (HE, 86).

Seguindo o preceito hegeliano de que o adversário deve ser atacado em seu ponto forte,

Weil questiona o projeto filosófico de Hegel, não para invalidá-lo ou replicá-lo em seus

pormenores, mas para considerá-lo em seu conjunto e saber até que ponto o Espírito

completou sua tarefa.18

É a partir da sua pretensão que Hegel deve ser compreendido e

julgado. É preciso perguntar se Hegel realizou aquilo que pensou ter realizado; se o sistema,

tal como ele se apresenta, cumpre aquilo que afirma ter cumprido.19

Pretensão que pode ser

atestada em passagens como essa:

Graças à natureza demonstrada do método, a ciência se apresenta como um

círculo em si mesmo enredado, em cujo início, no fundamento simples, a

mediação abarca de volta [zurückschlingt] o fim; deste modo, esse círculo é

um círculo de círculos; pois cada elo isolado, como animado pelo método, é

a reflexão-em-si que, ao retornar ao início, ao mesmo tempo é o início de um

novo elo... O método é o conceito puro, que apenas se relaciona consigo

mesmo; ela é, por conseguinte, a relação simples consigo, a qual é ser. Mas

também ser preenchido, o conceito que se apreende a si, o ser como a

totalidade concreta, igualmente pura e simplesmente intensiva.20

Para Weil, atingir o Absoluto não é ainda terminar o processo do filosofar. A sua Lógica da

Filosofia mantém seu projeto de discurso coerente para além da categoria do Absoluto.21

Para

ele, o que há é “uma ideia do saber absoluto, mas não há saber absoluto, quer dizer, a filosofia

permanece sempre filosofar” (PR I, 49). Está convencido de que “em uma análise categorial,

não é a elaboração que importa, o sistema desenvolvido, mas a categoria filosófica que torna

esse sistema possível para nós e necessário para si mesmo” (LF, 478).

18

Éric Weil nos lembra que os críticos contemporâneos de Hegel não estavam alheios às dificuldades do sistema:

« Déjà, les disciples directs de Hegel ont cru découvrir des lacunes à l’intérieur du système, ses adversaires

contemporains ont affirmé que la cohérence déductive était due à un vice de subreption à peine caché. J. E.

Erdmann, disciple direct et fidèle, un des l’esprits philosophiques parmi les auditeurs de Hegel, discernait des

incohérences, dans la philosophie nature, dans la logique, dont il avait bien vu la profunde évolution depuis la

Logique de Nuremberg aux éditions berlinoises de l’Encyclopédie. Rosenkrantz, qui, est vrai, n’avait pas suivi

les cours de Hegel, mais à qui la famille avait confié les papiers du maître, se demandait quel était le vrai

rapport entre la Phénoménologie et le Système, rapport qui, d’ailleurs, faisait problème pour Hegel lui-même

dès l’époque de Heidelberg. Schelling, ennemi acharné, et son seul grand disciple Julius Stahl, compréhensif

celui-là et qui ne voulait rien perdre de l’acquis hégélien, objectaient très tôt que Hegel n’avait déduit que ce

qu’il avait obtenu par analyse positive de la réalité historique et naturelle » (PR I, 104-105). 19

Cf. M. Perine, op. cit., p. 121. 20

Cien. Lóg., 283-284. 21

Cf., P. Ricoeur art. cit., p. 407.

116

Safatle também chama atenção para as dificuldades da Enciclopédia em situar a

Fenomenologia ao tentar reduzi-la a mero “momento interno à filosofia do espírito”.22

Ainda

segundo Safatle, Hegel tinha a intenção de realizar uma nova edição da Fenomenologia,

projeto interrompido devido à sua morte. Essa intenção do autor demonstra ao intérprete que

esta obra continuava como peça fundamental do projeto filosófico hegeliano.23

Ora, se se

considera isso, então é preciso dar razão a Weil, pois o projeto de um saber absoluto é

inconcluso, a passagem do em si ao para si é falha. O que há na verdade é somente a

pretensão hegeliana do acabamento do sistema, mas não propriamente um projeto concluído.

Hegel insiste que “o método surgiu deste modo como o conceito que se sabe a si mesmo,

que tem por objeto a si como o absoluto, tanto o subjetivo como o objetivo, ou seja, como o

corresponder puro do conceito e de sua realidade, como uma existência que é ele mesmo”.24

Sendo assim, não nos parece problemático compreender a Fenomenologia como uma entrada

no sistema se se considera que é pela experiência que aparece a explicitação dos pressupostos

filosóficos e das reconfigurações dos mesmos. Sendo a Fenomenologia a primeira parte do

sistema é ela que gera o que vem a seguir.25

Entretanto, para Weil, o problema se coloca de outra maneira: “Se a Fenomenologia era

tudo, porque Hegel escreveu a Enciclopédia?” (LF, 457). A história editorial da

Fenomenologia revela que seu Prefácio é um acerto de contas com o todo dessa obra: “Esse

começo é o todo, que retornou a si mesmo de sua sucessão [no tempo] e de sua extensão [no

espaço]”.26

Mas pode-se dizer o mesmo desta obra em relação ao todo do sistema? O sistema

desenvolvido tem um olhar retrospectivo de si mesmo? A Fenomenologia está qualificada

nesse sentido? Há quem diga que a Fenomenologia, após ser considerada a justificação da

Ciência da Lógica, é também seu paulatino abandono.27

Posição que seria referendada pela

Enciclopédia:

o ato livre do pensar é isto: colocar-se no ponto de vista em que é para si

mesmo, e por isso se engendra e se dá seu objeto mesmo... na verdade o

resultado último da ciência, no qual ela alcança de novo seu começo e

22

V. Safatle. Curso Ciência da Lógica. Aula 1. de 09.08.2011, p. 9. 23

Idem. 24

Cien. Lóg., p. 265. 25

Cf. V. Safatle. op. cit. p. 10. 26

Fenomenologia, Prefácio, § 12, p. 31. 27

Cf. L. B. Puntel. A “Ciência da Lógica” de Hegel e a dialética materialista: uma nova visão de um antigo

problema in Síntese v, II, n. 05 (1975): p. 05.

117

retorna sobre si mesma. Dessa maneira a filosofia se mostra como círculo

que retorna sobre si, que não tem começo.28

O que chama atenção é o fato de que a Fenomenologia ao chegar à Lógica seja apartada da

tríade Lógica, Enciclopédia e Filosofia do Direito. Considerando que o estatuto da

Enciclopédia seja “o mais problemático”, como explicar esse envolvimento sistemático com a

Lógica e a Filosofia do Direito, a primeira de onde ela parte e a segunda que faz remissão à

sua estrutura em seu último parágrafo, como nos lembra Weil?

Certo que se pode dizer que há uma “dupla figura do sistema”, sendo que a versão

fenomenológica não se deixaria sorver completamente pela enciclopédica uma vez que realiza

uma experiência filosófica autônoma.29

Todavia, há uma reivindicação da Introdução em

relação ao sistema: “o resultado é somente o mesmo que o começo, porque o começo é fim”.30

A Introdução ao sistema, a Fenomenologia do Espírito, é uma retomada do sistema em

segunda leitura? Ela consegue pôr as questões de fundo de todo desenvolvimento ulterior?

Weil acredita que não. Como um pressuposto da Lógica a Fenomenologia estaria plenamente

justificada como introdução ao sistema já que

o conceito da ciência pura e a sua dedução são dessa maneira pressupostos

no presente tratado, tendo em vista que a Fenomenologia do espírito nada

mais é do que a dedução do mesmo. O saber absoluto é a verdade de todos

os modos da consciência, pois, assim como aquele percurso do mesmo o

produziu, apenas no saber absoluto se dissolveu perfeitamente a separação

entre a certeza de si mesmo e se tornaram idênticas a verdade dessa certeza

bem como essa certeza da verdade. A pura ciência pressupõe, com isso, a

libertação da oposição da consciência.31

Ora, o que não está demonstrado, pelo menos satisfatoriamente aos olhos de Weil, é o olhar

retrospectivo do sistema ou a volta do sistema à sua introdução. Num exame da análise

hegeliana do Estado, Weil apresenta as razões que podem ser redirecionadas para o conjunto

da filosofia de Hegel e que servem como síntese de sua crítica a esse gigante do pensamento

ocidental:

Pode ser que Hegel não tenha tido razão; pode ser (e isto parece mais

provável ao autor) que sua tese não possa ser refutada, conquanto possa ser

ultrapassada, ou seja, mantida em toda a sua extensão, mas alargada e levada

mais longe: 130 anos de uma história bastante movimentada terminaram por

apresentar problemas que era impossível formular antecipadamente, ao

menos de forma concreta (HE, 10-11).

28

Enciclopédia § 17. 29

Cf. V. Safatle. Curso Ciência da Lógica. Aula 1 de 08.2011, p. 09. 30

Fenomenologia, Prefácio, § 22, p. 37. 31

Cien. Lóg., 28.

118

Para Weil, Hegel viu que o mundo é estruturado e, portanto, sensato. E tanto o estruturado

quanto o sentido se revelam no discurso da filosofia, discurso que é saber e que revela ao fim

de seu percurso-discurso seu próprio começo, antes não pensado explicitamente (cf. PR I,

103). Entretanto, essa é uma tarefa que ainda está por ser realizada pelo filosofar.

3.2. Ricoeur: entre tentação e renúncia a Hegel.

Ricoeur não dispensou uma quantidade expressiva de estudos específicos ao filósofo

alemão.32

Não obstante, Hegel sempre exerceu um fascínio sobre Ricoeur pelo caráter

surpreendentemente enigmático com que o filósofo alemão se apresenta ainda nos dias atuais,

sobretudo pelo dualismo suscitado nas mais diversas tendências. Hegel se presta a todo tipo

de usurpação e gosto: na política é tido como pensador da ordem racional pela direita e como

pensador da liberdade entre as esquerdas; no âmbito teológico é, para uns, tomado como

pensador do cristianismo por ter levado a sério a Trindade e tentado fazer dela um sistema;

para outros, exatamente por querer transformar em sistema filosófico “a boa nova” é que se

coloca fora do cristianismo. Contrária a estas posições teológicas se situam os racionalistas

afirmando que em Hegel encontramos um humanista, um pensador ateu, pois quem fala pelo

o espírito é próprio humano (cf. TT, 9-10).

Toda essa controvérsia em torno do pensador alemão assegura não apenas a riqueza desse

pensamento que frutifica sem cessar, mas também a sua atualidade. “A situação na qual se

encontra Hegel... pode ser caracterizada pelas heranças que são honradas e que ainda são, de

muitos pontos de vista, as nossas” (PR, 190). A atualidade de Hegel se legitima pela

compreensão de que há acúmulo suficiente, entre nós hoje, da experiência humana, podendo

assim ser decifrado seu sentido enquanto objeto do mundo na sua relação com tudo que

atenda sua efetuação (cf. TN 3, 343).

Mas então porque Ricoeur propõe renunciar Hegel? Podemos dizer, com Dosse, que o

texto com o título “Renunciar a Hegel”, capítulo que ocupa páginas fundamentais do terceiro

volume de Tempo e Narrativa, é, particularmente, a tentativa refletida de Ricoeur de

32

Um inventário dos estudos de Ricoeur sobre Hegel é dificílimo aja vista que o encontramos, de forma

pulverizada, em grande parte dos textos de Ricoeur. Contudo, há certos textos que concentram, o que podemos

chamar, o essencial da reflexão hegeliana aos propósitos da hermenêutica filosófica. Tais trabalhos encontramos

em: TT, 9-29 Hegel aujourd’hui; TA 251-260 e 281-302 o capítulo La raison pratique, precisamente o item 4,

La tentation hégélienne e o capítulo Hegel et Husserl sur l’intersubjetivité; TR 3, 280-299, o capítulo Renunciar

a Hegel; L3, 41-62 O estatuto da Vorstellung na filosofia hegeliana da religião; PR, 187-200 e 201-232 o

terceiro estudo O reconhecimento mútuo, precisamente, item 3 Hegel em Iena: Anerkennung e item 4

Reatualizações do argumento de Hegel em Iena.

119

compreender sua confrontação, sua apropriação e sua própria resistência a Hegel, percorrida

no conjunto dos três volumes daquela obra33

. E mais! É também, ainda segundo Dosse, a

renúncia da leitura que Kojève fez de Hegel, leitura amplamente dominante quanto ao

ingresso e a receptividade de Hegel na França.34

Com efeito, Ricoeur dedicou ao filósofo

alemão páginas significativas em outros textos: antes em seu artigo Hegel aujourd’hui, de

1974, e em Do Texto à Ação de 1986. No primeiro, confessa mais que sua dialética relação de

fascínio-refração para com Hegel (cf. TT, 20), admite, igualmente, que a hermenêutica

filosófica é uma espécie de filosofia hegeliana infeliz (cf. TT, 28). No segundo texto,

consolida o que anteriormente tinha esquematizado diante da filosofia hegeliana,

especialmente no que tange a tomá-la como tentação e seu combate constante ao que não

consegue desviar. No conjunto de sua abordagem, Ricoeur localiza sua aproximação e adesão

a Hegel a partir de três pontos.

Primeiro é a resultante de sua própria relação com a psicanálise de Freud ao perceber que

existe tanto um núcleo comum entre a psicanálise e a Fenomenologia do Espírito como uma

orientação invertida a propósito dessa partilha. Para Ricoeur, Hegel, como Freud, acentua o

papel do sentimento no homem, que não é apenas pensamento, mas também enraizamento

numa força vital. Passagens na Enciclopédia e, em particular, na Fenomenologia do Espírito

descrevem com precisão, não o desejo animal, mas o que se origina de outro desejo, o desejo

humano.35

É esse desejo do desejo que conduz a reflexão hegeliana ao tema do

reconhecimento, tema central para a psicanálise: o desejo de reconhecimento. No fundo, a

dialética senhor-escravo e a interpretação freudiana do Édipo se inscrevem na mesma

problemática situada na sutil batalha de cada homem com a figura parental, quer dizer, trata-

33

Cf., F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit., p. 494. 34

Cf. F. Dosse, A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Ed. Unesp, 2012, p. 243ss. Ver

também F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 498, 502. O próprio Ricoeur declara, ao tratar da relação dialética

entre negatividade e instituição, que “era preciso, como os pesquisadores na linha em que eu próprio me situo,

retroceder até os fragmentos da época de Iena em vez de dar uma sequência aos trabalhos de Alexandre Kojève,

autor da famosa Introdução à leitura de Hegel (aulas dadas de 1922 a 1930), trabalhos que tomavam como

referência a Fenomenologia do Espírito e atribuíam assim à luta entre o senhor e o escravo o lugar que

conhecemos; a aposta era ao se confrontar com o tema do reconhecimento em seu estágio incoativo o leitor

poderia esperar ver trazidos à luz do dia recursos de sentido que não teriam sido esgotados pelas obras acabadas

mais tardiamente, até a última, Princípios da filosofia do direito, na qual o tema do reconhecimento e do ser

reconhecido perdeu não apenas sua densidade de presença, mas também sua virulência subversiva. Em

compensação, o preço a ser pago é uma leitura trabalhosa que torna os não-especialistas tributários da

reconstrução feita pelos especialistas.” (PR, 189). 35

Fenomenologia § 69, “Enquanto o senso comum recorre ao sentimento – seu oráculo interior – descarta quem

não está de acordo com ele. Deve deixar claro que não tem mais nada a dizer a quem não encontra e não sente

em si o mesmo; em outras palavras, calca aos pés a raiz da humanidade. Pois a natureza da humanidade é tender

ao consenso com outros, e sua existência reside apenas na comunidade instituídas das consciências. O anti-

humano, o animalesco, consiste em ficar no estágio do sentimento, e em só poder comunicar-se através do

sentimento.”

120

se, para Ricoeur, de saber como é possível transformar uma situação desigual em

reciprocidade (cf. TT, 20-21).

Embora as duas perspectivas cheguem ao mesmo diagnóstico, é nesse ponto que elas se

dividem em suas orientações. Freud, olhando sempre para trás, opera uma espécie de

arqueologia que escava camadas cada vez mais profundas na infância. A psicanálise assim

busca, num processo de regressão na linguagem orientado pelas pulsões e pelos instintos, os

nós fundamentais dos distúrbios humanos. Hegel, por sua vez, observando um sentido na

direção do fim, uma teleologia, propõe ver como o homem percorre a experiência sempre que,

a partir do desejo e do conflito, adentra no mundo da cultura que, progressivamente

complexo, exige o desenraizamento biológico. O que é ressaltado pela hermenêutica

ricoeuriana é como uma teoria da cultura serve de contrapeso à teoria das pulsões (cf. TT, 21).

Ademais, se no primeiro caso, o sentido é deslocado para trás do sujeito, porque a psicanálise

propõe uma regressão ao arcaico; agora, na Fenomenologia do Espírito, o sentido está situado à

frente dele, pois é somente na etapa seguinte, diante de si, num outro, que uma figura encontra

seu sentido. Arqueologia do sujeito e teleologia do sujeito deslocam, de maneira

diametralmente opostas, o que tomam por origem do sentido (cf. CI, 22). Numa orientação, o

recuo ao nosso arcaísmo, noutra, a progressão que nos desarraiga. A filosofia hegeliana é então

acolhida pela hermenêutica ricoeuriana nessa articulação dialética profunda com Freud.

O segundo ponto da admissão se estabelece em torno da teoria hegeliana do espírito objetivo.

Nela Ricoeur encontra o tema (que na via política jamais abandonou) da relação da liberdade

com as instituições. Ricoeur está convicto da necessidade de pensar o trauma profundo

produzido no seio da sociedade na atualidade: por um lado, o agressivo processo de

burocratização predominante sobre as instituições; por outro, a concepção crescentemente

unitária das liberdades como puro protesto e, portanto, anti-institucional. É Hegel, uma vez

mais, que torna presente a questão: como é possível ao homem encontrar liberdade nas

instituições? (Cf. TT, 22). No fundo, Hegel, segundo Ricoeur, tenta responder à teoria do

“estado de natureza” de Hobbes indagando se existe, na base do viver junto, uma motivação

originariamente moral que possa ser identificada como desejo de ser reconhecido (cf. PR, 178).

Notadamente, é enquanto Anerkennung (reconhecimento) que Hegel visa superar o desafio

posto pela filosofia política hobbesiana. Ricoeur destaca três aspectos desse conceito: garantia

do vínculo entre auto-reflexão e orientação para o outro, fonte da determinação da interação

de um si em sua reciprocidade intersubjetiva com os outros; o dinamismo da negatividade

121

condutora à positividade, e, a institucionalização progressiva visando a estabilização da

violência. Assim considerada, a Anerkennung – que também supõe uma vida ética concreta

(Sittlichkeit) no lugar das relações artificiais indutoras do grande artifício que é o Leviatã –,

permite, após suas sucessivas elaborações, que a luta pelo reconhecimento prospere ainda em

nossos dias. Contudo, a institucionalização precisa se manter vinculada ao dinamismo do

negativo, fazendo com que cada avanço institucional seja uma resposta concreta a ameaças

específicas no seio da comunidade. É na correlação entre o nível de injustiça e o nível de

reconhecimento que o conceito Anerkennung nos permite aprender mais a respeito do injusto

e do justo, remetendo-nos assim à sua própria correspondência originária, a relação de um si

com o outro (cf. PR, 187ss). Noutros termos: é o sofrimento da injustiça que leva à

consciência da justiça e clama pela sua realização. Esse processo da confrontação de uma

vontade com outras é que faz o homem adentrar propriamente na estrutura institucional a que

damos o nome de direito.

Que lição colhemos aqui com Hegel? Não se trata da interdição da liberdade pelo direito,

mas o contrário disso, temos a situação do direito como caminho da liberdade. A liberdade

quando oposta às determinações materiais exteriores permanece abstrata (cf. TN 3, 333-334).

Eis, para Ricoeur, a ideia genial e inultrapassável de Hegel: “o direito não é um sistema

autônomo e suficiente em si mesmo, mas cujo sentido filosófico é a passagem de uma

liberdade abstrata a uma liberdade real” (TT, 23). Tese que, segundo Ricoeur, demonstra por

que é o espírito objetivo e não o espírito absoluto o coração do pensamento de Hegel. O

hermeneuta observa ainda que a atuação da dialética ocorre a propósito da situação de

embaralhamento profundamente vivida pela humanidade, na qual um sentido se desenha por

meio das contradições superadas. É ao humano que Hegel visa responder: “a lógica interna é

uma espécie de estrutura dialética da produção do sentido do humano por si mesmo” (TT, 23).

A relação do um com os outros – do indivíduo com a comunidade – aparece a Ricoeur como o

verdadeiro desenlace dialético da trama posta em movimento pelo estranhamento da

consciência do ser-outro, alienação (Entfremdung):

Para nós, modernos, a entrada na cultura é inseparável de uma libertação que

nos torna estranhos às nossas próprias origens. Nesse sentido, a alienação da

tradição tornou-se uma componente inelutável de toda a nossa relação com o

passado transmitido. Doravante, existe um fator de distanciação no âmago de

toda a pertença a uma herança cultural, qualquer que ela seja (TA, 251).

O que seduz fortemente Ricoeur é essa vivência num determinado estado de costumes, isto

é, aquilo Hegel nomeou Sittlichkeit. Intrigante é o caráter enigmático da Sittlichkeit que,

122

sedimentada nas tradições fundadoras, nos chega como fonte da ação sensata (cf. TA, 250).

Hegel é sedutor por dotar a lei esvaziada, oriunda do formalismo de Kant, de estrutura viva da

ordem progressiva na família, na economia e na política (ou família, sociedade civil e Estado),

empreendendo várias mediações entre liberdade e norma. Mediações que, aos olhos de

Ricoeur, fazem da Sittlichkeit, alçada ao nível institucional, o verdadeiro conceito de razão

prática pelo seu poder de conferir às leis a concretude histórica. Ora, um direito somente pode

ser reconhecido por estar sob o abrigo da lei, assim, esta se converte na própria arquitetônica a

partir da qual uma instituição política permite que o indivíduo encontre sentido e satisfação

em sua vida (cf. TA, 253).

Dizer que a política é saber arquitetônico é compreender que é “um saber que coordena o

bem do indivíduo com o da comunidade e que integra as competências particulares numa

sabedoria relativa ao todo da cidade”. Sob esse aspecto, o homem é tomado como indiviso

entre o querer bem de si mesmo e a sua função no interior da cidade (cf. TA, 253). A via

institucional, cujo núcleo é o Estado de direito, é o chão onde cada um passa a reconhecer a si

mesmo e os outros na vontade do todo, uma vez que a “autoridade das leis éticas é

infinitamente mais elevada”.36

A liberdade então é nomos; lugar da edificação da polis e onde

o conjunto dos cidadãos encontra proteção.

No tocante a esse ponto, há um posicionamento forte de Hegel contra Kant, pois ele

compreende o homem não apenas como consciência individual, mas como aquele que, pela

relação dialética estabelecida entre essa consciência individual com as outras consciências

individuais, produz as instituições (cf. TT, 18). Portanto, é um Estado de direito que encontra

sua justificação ao facultar a todas das vontades individuais o reconhecimento entre si pela

liberdade. Para Ricoeur, é através dessa ação sensata na e pela vida política que Hegel se

revela inultrapassável, uma vez que essa ideia ainda não se realizou. O que Hegel fez foi

descrever para onde tendia o Estado moderno que, por estar no seu começo, carecia de

desenvolvimento suficiente para que fossem apresentadas, consequentemente, as razões de

sua complexa efetivação (cf. TA, 253).

Nenhum Estado real atingiu em sua plenitude o sentido que Hegel só decifra

em germe e em suas formas incoativas... Sejam quais forem os

desenvolvimentos por vir do direito, é certo que ainda resta ao Estado tornar-

se, internamente, o Estado de todos, e, externamente, o Estado Mundial. A

história pensante não fecha o passado: só compreende o que já está findo: o

passado ultrapassado (Princípios da filosofia do direito, § 343). Nesse

sentido, o acabamento pronunciado pelo famoso texto do prefácio dos

36

Fil. Dir. § 146.

123

Princípios da filosofia do direito não significa mais do que aquilo que Éric

Weil leu nele: “uma forma de vida envelheceu” (Hegel et l’État, p. 104).

Outra forma pode, portanto, elevar-se no horizonte. O presente em que todo

passado ultrapassado é depositado tem eficácia suficiente para nunca

terminar de se estender em memória e antecipação (TN 3, 345).37

Vemos, portanto, que “renúncia” implica, como antecipamos acima, apropriação de uma

parte considerável do pensamento hegeliano. Apropriação que visa salvar, por exemplo, a

reflexão hegeliana sobre as instituições calcada na eticidade (Sittlichkeit). Para Ricoeur,

segundo Dosse, a mediação institucional permanece constitutiva da ética do sujeito e “da

passagem da liberdade selvagem à liberdade sensata”, problema maior, uma vez que resta

sempre por saber como a liberdade ao adentrar nas instituições permanece liberdade para todos.

Ricoeur sustenta, com Hegel, que a vontade coletiva e o exercício efetivo das instituições

constituem a base de um acordo no qual a mutualidade das mediações é a salvaguarda da

liberdade.38

A terceira motivação da adesão ocorre pela reflexão de Hegel sobre a relação entre religião

e filosofia. Dinâmica promotora, segundo Ricoeur, do problema propriamente hermenêutico:

a interpretação. Problema fortemente observado por Hegel, segundo o hermeneuta, na

Fenomenologia do Espírito, no capítulo sobre a religião, bem como no fim da Enciclopédia.

O que Ricoeur ressalta nessa relação entre religião e filosofia, independentemente de quais

sejam as interdições postas à concepção de Hegel e os resultados por ele alcançados, é que

com os mitos algo de irredutível à linguagem utilitária e à dominação da natureza pelos

homens é dito. No dizer abre-se o mundo propriamente humano pelo qual uma representação

significa o dito constituinte da relação dos homens entre si, com as coisas que os circundam e

com próprio ser. É enquanto Vorstellung (representação/figuração) que a significação se

manifesta em determinadas relações do mundo humano, mas que só é capaz de se efetivar

pela figuração (cf. TT, 24). Com Hegel a Vorstellung sublinha não apenas narrativas e

símbolos, mas expressões tão elaboradas e até mesmo conceitualizadas tais como: Trindade,

Criação, Queda, Encarnação, Salvação, etc. (cf. L3, 41). Tal figurativo, Ricoeur põe em

simetria com sua conclusiva fórmula do seu inconcluso projeto da filosofia da vontade: o

figurativo dá a pensar da mesma forma que o “símbolo dá a pensar”. Pois foi Hegel quem

tentou antes uma recapitulação da simbólica universal mediante todas as religiões buscando

37

Além dessa passagem, há outra que se refere simultaneamente a Hegel e a Marx: « savent... que la prise de

conscience complète d’une situation historique indique que cette situation doit être et será dépassée, comme les

deux voient l’impossibilité d’élaborer une image precise de l’état à réaliser, parce que seul le sens de

l’opposition à l’existant est déterminé, mais non la forme nouvelle qui sera le résultat de l’action » (HE, 107). 38

Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 499.

124

compreender o sentido daquilo que chamou Begriff (conceito, cf. TT, 24). Por conta do seu

caráter potencialmente especulativo, o pensamento figurativo se justifica como o mais

próximo da filosofia (cf. L3, 42).

Para Hegel, embora a religião permaneça figurativa, ela de alguma forma prefigura pelo

caráter especulativo que engendra. É esse estatuto ambíguo da Vorstellung que faz dela, no

sistema hegeliano, estar próximo do fim, mas inadequada para ser o fim (cf. L3, 43). A tese de

Hegel é a de que por mais racionalizada que seja a Vorstellung, ela permanece figuração e,

portanto, não alcança a condição de Begriff (cf. L3, 41). Qual a razão dessa dubiedade?

Segundo Ricoeur, Hegel, por um lado, reconheceu o poder recapitulativo da Vorstellung

quando esta repete o movimento do próprio espírito ao refletir, na estrutura do pensamento

figurativo religioso, a experiência realizada nas particularidades históricas; por outro, este

último aspecto fez com que Hegel mantivesse demasiadamente presa a Vorstellung às

determinações culturais. Sem discutir no momento o mérito dessa tese, Ricoeur compreende

que se trata de uma dialética da Vorstellung possível apenas pela retomada, interna ao

pensamento figurativo, da auto-estruturação do espírito no seu processo de manifestação cujo

traço fundamental é o reconhecimento que faz de si mesmo ao percorrer as diferentes etapas

do seu desenvolvimento (cf. L3, 43-44).

Não obstante o fascínio que o pensamento de Hegel exerce sobre Ricoeur, o hermeneuta

aponta algumas resistências invencíveis existentes na filosofia do espírito. Verificamos que,

para Ricoeur, a posição que conduz à convergência entre liberdade e instituições, embora

confessadamente tentadora, não satisfaz, exatamente por legar ao abandono o papel que

desempenha o finito na mediação do mundo. Em Hegel, como lembra o hermeneuta, a

tentativa se torna tentação ao cindir ontologicamente espírito subjetivo e espírito objetivo, ou

antes, a mutação que sofre a consciência, deixada para trás, para dar lugar ao espírito: “o

percurso dialético resultante pressupõe uma visão unitária do Espírito através de suas

múltiplas realizações”.39

Sabemos que em Hegel a Sittlichkeit é “a rede das crenças

axiológicas que regulam a divisão do permitido e do proibido numa dada comunidade” (TA,

250), ou seja, é o espírito objetivo, anteriormente subjetivo, que compreende as instituições

fundamentais do mundo humano e é nessa qualidade de realidade histórica que tende a

assumir autoconsciência, revelada a si mesma nas produções superiores, sob a forma do

absoluto.

39

Cf. Idem p. 494.

125

Eis o ponto: o absoluto! É aqui que se acende a luz amarela do alerta sobre o perigo da

força sedutora da concepção hegeliana. Mas só pode chegar a essa tomada de consciência

quem não se deteve diante da reflexão hegeliana e se atreveu a segui-la até onde é possível

avistar, com segurança, sua desembocadura. Somente quem cumpriu esse itinerário pode

incorporar Hegel ao seu próprio modo de filosofar sem temor e prevenir os incautos e

receosos de que:

Nunca se deve perder de vista, para não sermos tentados a considerar melhores

as nossas soluções, que devem ser respostas num espaço cosmopolítico em

que existem outras. É preciso lembrar-nos sempre de que nossa intenção

universalizante é em parte uma pretensão, e que ela exige reconhecimento

pelas outras para ser confirmada na sua intenção. (CC, 176).40

Feita essa advertência, sigamos com a observação crítica de Ricoeur acerca da tentativa de

Hegel tornada tentação ao hipostasiar o espírito objetivo a título de uma síntese definitiva. O

resultado nevrálgico disso é a supressão de toda relação intersubjetiva que, segundo Ricoeur,

deve permanecer como horizonte para toda dialética entre liberdade e instituição. Essa

implicação do erigir-se em pretensão de saber é duplamente preocupante: primeiramente

porque ruinosa na teoria ao manter-se na dicotomia que buscava transpor o fosso entre

intenção e realização do Estado; em seguida, perigosa na prática por servir de álibi aos

fanatismos políticos, frequentemente responsáveis pelas tiranias, que se arrogam como as

detentoras da verdade histórica (cf. TA, 254ss).

Num desvio pela mediação ideológica, Ricoeur recusa a intenção totalizadora do espírito

objetivo. Situando-se no campo da crítica das ideologias compreende que a realidade empírica

do Estado – lugar indeclinável das legítimas objetivações e alienação das relações

intersubjetivas – precisa salvaguardar a ideia de uma constituição política correspondente à

satisfação e reconhecimento por parte do indivíduo. Tarefa, segundo pensa, a cargo da crítica

por operar o desmascaramento dos mecanismos dissimuladores e, consequentemente, elevar o

laço comunitário muito além das distorções ideológicas. A crítica das ideologias, na qualidade

de momento crítico da razão prática, ocupar-se-ia, assim, das relações dissimuladas ocorridas

ao nível do trabalho, do poder e da linguagem. Mas ao operar nesse nível, a crítica também se

liberta dos limites do discurso e descobre que a ideologia desempenha outro papel, agora,

mais positivo, porque legitimador do poder uma vez que cumpre a função de integração do

tecido social (cf., TA, 257). Para Ricoeur, haveria aqui uma espécie de reconversão do saber

em crítica. Ao se submeter a exame, o saber reconhece que não há lugar não ideológico, isto

40

Grifos meus.

126

é, que não é exterior à ideologia, permitindo assim que do próprio centro irradiador da

ideologia, o pretenso saber do todo, se converta, pela crítica, à sabedoria prática.

Ricoeur é incisivo quanto à impossibilidade de se totalizar a experiência humana. Para ele,

algo de insular permanece irredutível nessa experiência (cf. TT, 25). Não se pode querer

totalizar os espíritos dos povos em um único espírito do mundo (cf. TR 3, 348). Esse projeto

fracassou, pois

vimos desfazer-se, no século XX, a pretensão da Europa a totalizar a história

do mundo; assistimos até à decomposição dos legados que ela tentara

integrar sob uma única ideia diretora. O europocentrismo morreu com o

suicídio político da Europa durante a Primeira Guerra Mundial, com a

divisão ideológica provocada pela Revolução de Outubro e com o recuo da

Europa no cenário mundial, devido à descolonização e ao desenvolvimento

desigual – e provavelmente antagonista – que opõe as nações

industrializadas ao resto do mundo (TN 3, 348).

Notadamente, Hegel deve ser renunciado na sua pretensão de mediação total. A tentativa

hegeliana se torna tentação quando o saber pretensiosamente acredita numa inevitável

mediação total. Acontece que o conhecimento (atingido no albor do século XX) das

pluralidades das partições sobre as quais a humanidade joga não torna mais possível a

totalização dos espíritos dos povos num único Espírito do mundo em cuja história encontraria

sua realização.41

“O que se desfez foi a própria substância do que Hegel tentara alçar à

categoria de conceito” (TN 3, 349).

Considerando essa intenção da conceitualização, é particularmente exemplar as conclusões

do exame crítico de Ricoeur a respeito do estatuto da Vorstellung na filosofia da religião de

Hegel. Triangulando entre a Fenomenologia do Espírito, Enciclopédia e as Lições de Berlim,

sobretudo na primeira e na última, Ricoeur submete à análise a ideia hegeliana de que a

Vorstellung, pensamento figurativo, embora potencialmente especulativo, não se confunde

com este, devendo, portanto, desaparecer em benefício da realização da tarefa especulativa,

papel exclusivo do conceito (Begriff). Lembremos que, para Hegel, há uma “resistência à

transposição do pensamento figurativo para o pensamento conceitual, em razão de seus

vínculos com os acontecimentos históricos, dos conteúdos imagéticos e das tradições

sedimentadas” (L3, 48-49).

Contudo, Ricoeur percebe uma sutil e sofisticada imposição da alternativa realizada por

Hegel no tocante ao uso da linguagem religiosa que o faz oscilar: ora pelo reconhecimento

desta ora pela sua dissolução (cf. L3, 52). A Fenomenologia, por exemplo, é o texto da

41

Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 495.

127

hostilidade e da impaciência com o pensamento figurativo que, capaz apenas de mediações

imperfeitas, aborta a Aufhebung; enquanto Lições de Berlim assume a perspectiva mais

integradora da Vorstellung pela mutualidade entre as funções figuração e conceituação (cf. L3,

52ss). Ricoeur, muito mais sensível a esta segunda perspectiva, levanta a questão de saber se o

conceito esgota o sentido que a representação, nas suas múltiplas manifestações imagéticas,

faz emergir (cf. TT, 24). Para ele, a dinâmica interna, que dirige o pensamento figurativo para

o pensamento especulativo, sem declinar dos seus traços narrativos e simbólicos, é processo

interpretativo sem fim (cf. L3, 61). O deslocamento operado por Ricoeur concede centralidade

à linguagem que, na qualidade de objeto simbólico, se manifesta inesgotável e, portanto,

irredutível à conceitualização.42

A história mostra a mesma irredutibilidade ao colocar em movimento forças incontroláveis.

Assim, entra em decomposição o que Hegel tomou como efetuação do Espírito e, nesse

sentido, se torna impossível uma totalização. Hoje o que nos mobiliza, nos arrebata e nos

intriga não é mais o destino dos grandes vultos, mas as forças anônimas da história.

Abandonamos pensar a história como totalidade efetuada, tanto faz se incoativa ou germinal,

em nome dos mais diversificados anseios de liberdade dos povos. Importa agora é perceber

como o papel crescente da diferença tem prevalecido sobre a identidade. Para Ricoeur, há

eventos que escapam à pretensão totalizadora do discurso. Eventos que, quaisquer que sejam

suas razões, demonstram a finitude do ato filosófico. Ora, ao se deparar com tais

pressuposições incontroláveis é preciso abandonar o hegelianismo e admitir que esse projeto

estava, ele próprio, submetido ao regime da finitude (cf. TN 3, 350-351).

A posição de Ricoeur atinge na relação entre Hegel a e finitude um brilho solar: uma vez

mais é Kant quem se impõe, ou melhor, o projeto do seu kantismo pós-hegeliano. É no

problema gerado pela relação evento-discurso que Ricoeur retrocede de Hegel para Kant – ou

para certos aspectos do kantismo em face de Hegel –, tomando o gigante de Königsberg como

o filósofo que pensa os limites. A obstinação de Kant, ensina Ricoeur, é a de nos lembrar que a

experiência humana não se eleva ao ponto de vista do todo, pois é sempre de alguma

perspectiva que refletimos as coisas. Portanto, a filosofia tem por tarefa tomar consciência dos

limites do saber. Com Hegel temos o oposto, pois os limites caem em mediações nas quais são

sempre ultrapassados. Sendo assim, como, então, responder à incessante experiência humana

fugidia do real rebelde, do mal, do evento? Não se trata de uma escolha entre limite ou

mediação, mas da consciência da liberdade como responsabilidade dos limites da existência e

42

Cf. F. Dosse, A história, op.cit. p. 245.

128

do saber. A consciência revela que há pontos intransponíveis, não para a liberdade,

permanentemente potência negativa e criadora, mas para o saber. A liberdade não é sabedora

de si mesma, ela é e se quer sempre um risco. A liberdade não tende para a segurança do saber

que encontramos em Hegel, aproxima-se, antes, da aposta da espera em Kant. O curso da

história humana não se baseia sobre o saber, mas inclina-se para seus limites (cf. TT, 26).

A suspeita que incide sobre a distinção ontológica imposta por Hegel conduz a reflexão

ricoeuriana à rejeição da hipóstase do espírito que, elevado acima das intersubjetividades,

erige a hipóstase do Estado. Noutro registro, o ponto de chegada dessa renúncia torna-se

ponto de partida porque a alternativa proposta, em substituição à hipóstase do espírito

objetivo, são as relações intersubjetivas. Existe um mundo cultural comum por onde passam

as relações de uns com outros, nele eus (moi) são confrontados com outrens (autrui), todos

em nível superior de relações comunitárias e societárias. Lembremos que em jogo se encontra

a dialética da liberdade e da instituição, agora traduzida em observância ao que Ricoeur

chama de individualismo epistemológico, isto é, no âmbito da compreensão que fazem os

sujeitos, uns em relação aos outros, buscando regular sua própria ação com base nessa mesma

compreensão em relação com os demais (cf. TA, 254-255). Daí porque não se pode

acompanhar Hegel no seu postulado segundo o qual o espírito do mundo é obra em

desenvolvimento na história que escapa aos seus atores.43

Não seria essa posição de renúncia análoga àquela que advoga o inacabamento do discurso

que Hegel pretensiosamente alega ter dado fim? Para Ricoeur, Hegel permanece em sua

intenção tornada pretensão e, no caso, tentação a ser cuidadosamente observada porque

totalizadora de toda história. Uma filosofia que se pauta pelo arbítrio do conflito das

interpretações, como é a hermenêutica filosófica, jamais pode deixar-se sucumbir ao apelo da

mediação total. Para Ricoeur, o questionamento dos conflitos entranhados na realidade produz

múltiplas e alargadas mediações. E a ambição de totalizá-las num sistema como o de Hegel é

empreendimento suspeito e fantasioso. Torna-se evidente, além do aspecto indireto e

mediador da reflexão, o aspecto fragmentário e, portanto, a impossível mediação total (cf.

RF/AI, 83).

Contudo, a hermenêutica ricoeuriana precisa manter sua relação com Hegel na base da

tensão entre tentação e renúncia. Por um lado, porque não concebe uma filosofia da

interpretação sem que esteja em constante debate com Hegel, uma vez que, nele temos a

43

Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 494.

129

convicção de que a experiência humana é sensata e que não estamos lançados no absurdo.

Mediante um sentido que nos atravessa e nos constitui acabamos por constituir esse mesmo

sentido. Em síntese, é essa reciprocidade que faz Ricoeur se manter próximo de Hegel: “a

substância é sujeito, por consequência o progresso do sentido é um progresso do sujeito”. De

outro lado, a irredutível diferença que responde pela função da finitude correspondente à

interpretação: toda orientação interpretativa, situada no ponto de vista do finito e não do todo

ocorre através dos discursos. Para Ricoeur, a pretensão hegeliana é irrealizável porque um

círculo insuperável se forma entre o intérprete e a coisa interpretada: o intérprete ao mesmo

tempo em que compreende, a partir de si mesmo, a coisa interpretada é por ela informado

acerca de seu próprio si. Ao acreditar ter tragado o ponto de vista do intérprete em benefício

do sistema, Hegel julga ter apaziguado a situação conflitiva inerente ao discurso (cf. TT, 27).

É deste modo que Ricoeur justifica sua renúncia progressiva da ideia de um sistema

totalizante. Buscando situar-se numa modesta posição dialógica, em que as diversas esferas

do saber são respeitadas em sua particularidade, Ricoeur não pode sustentar a menor

pretensão de englobar tais esferas do saber num mesmo movimento – o que, seguramente,

resultaria na redução de toda riqueza e, portanto, de toda pluralidade dos “jogos de

linguagem”. Se, por um lado, a tentativa de Hegel não pode deixar de ser compreendida, por

outro, ela permanece tentativa-tentação impugnada na passagem ao ato tentação-pretensão.

Por ser a hermenêutica filosófica um diálogo com toda singularidade, Hegel, pela sua

grandeza e como filósofo particular, não pode ser, à semelhança do que ocorre com todos os

outros filósofos singulares, negligenciado. Aliás, quanto a isso o título que apresentamos

acima é revelador da ideia que aqui advogamos. Sempre que nos deparamos com a

confrontação que Ricoeur se impõe em relação à filosofia de Hegel consolida-se em nós a

ideia de que Ricoeur quer se manter atado a Hegel, mesmo que seja por uma tênue linha. Dito

de outro modo, se, por um lado, por ser sua hermenêutica um movimento de diálogo,

sobretudo com as singularidades filosóficas, não pode sucumbir à ideia de uma totalidade

invencível, por outro lado, ao se permitir escrutinar as sendas mais distintas do pensamento

filosófico aufere destas um fio de Ariadne sempre possível de refazer caminho percorrido:

“penso que uma das tarefas da filosofia é proceder sempre a uma recapitulação crítica de sua

própria herança” (TA, /237).

A questão peculiar que envolve a leitura de Hegel é a de que essa singularidade filosófica

tem a estranha pretensão de ser o todo da história. Talvez a apreensão de Hegel pela

hermenêutica filosófica seja um caso atípico, pois ao invés de proceder superando o

130

estranhamento para fazer-se próximo, queira tornar-se próximo para fazer-se distante, fundada

na convicção de que quanto mais conhecemos Hegel, tanto mais somos capazes de resistir à

força de suas investidas. Ricoeur manterá, por todo percurso da sua obra, a mesma atitude

diante de pensamentos com o mesmo grau de complexidade. Na mesma linha se pronuncia

Labarrière ao afirmar que ser hegeliano é antes de tudo renunciar à imediaticidade do saber.

Quem se aferra no interior do sistema de Hegel não compreende coisa alguma, tampouco as

ruínas que se tornaram o próprio hegelianismo. Ricoeur, ao contrário desse primeiro

conhecimento que se definha deixando os restos de Hegel à beira da estrada, relaciona-se com

Hegel de forma muito mais problematizante.44

A relação de Ricoeur e Hegel permanece nesse processo dialético em que não podendo

afastar-se por completo, exatamente como na navegação espacial, permanece cônscio de

empreender uma órbita elíptica em torno do autor da Fenomenologia do Espírito, mas alerta

quando da aproximação do perigeu para não ser sorvido pelo maior campo de tração.

Acreditando-se devidamente equipado, Ricoeur não se permite nem ser tragado pela tentação

da totalidade, tampouco abdica da orientação que ela permite, não deixando, assim, entregar-

se aos confins das singularidades estilhaçadas. Ele entende que não se deve ceder nem sobre a

existência do horizonte do Uno, tampouco sobre a irredutibilidade da diversidade.45

A postura

de Ricoeur é da adoção de um procedimento que trança discursos aparentemente opostos,

semelhante à confrontação operada entre a expressão da arqueologia do sujeito no modelo

psicanalítico com a teleologia do sujeito da Fenomenologia do Espírito.46

Não se verifica no

âmbito do acolhimento da hermenêutica filosófica nenhuma exclusão mútua – a despeito das

direções antagônicas assumidas por cada perspectiva –, mas a convergência quanto a uma

melhor explicitação do sentido e do próprio sujeito.

Diante de Hegel, Ricoeur permanece entre tentação e renúncia e, portanto, se inscreve na

mesma problemática que vê o sistema do absoluto incontornável, mas inconcluso e, ademais,

impossível de se concluir. A tentativa hegeliana não é renunciada como tentativa

propriamente, mas em seu aspecto tentador. A tentativa deve continuar tentativa e não

acabamento. Para a hermenêutica ricoeuriana o trabalho filosófico não é nunca conclusivo, ele

sempre prossegue.

44

Cf. P-J. Labarrière apud F. Dosse, idem. p. 497. 45

F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 498. 46

Idem. p. 496.

131

Eis por que ser pós-hegeliano não significa ser anti-hegeliano: não se trata de argumentar

contra Hegel e sim afirmar que não é mais possível pensar em conformidade com ele, mas

depois dele. Entretanto, é preciso considerar, segundo Ricoeur, que o abandono de Hegel não

deixa de produzir, naquele seduzido pela potência criadora do seu pensamento, o preço da

ferida incurável. E malgrado as legítimas lamúrias que sempre acompanham o trabalho de

luto, este não se concretiza sem o empreendimento da coragem (cf. TN 3, 351). A esse

conselho se soma o qualificativo de significação hegeliana, portanto, paradoxal, que Dosse

atribui a Labarrière, para o qual o “Renunciar a Hegel” não é bem uma despedida, mas

expressão do permanente desaparecer.47

Se a emenda é válida, então, neste caso, a coragem deve ser redobrada, pois, saibamos

todos, conscientes ou não de sermos herdeiros de Hegel, que o velório é demasiadamente

custoso porque é o próprio morto que resiste ao sepultamento.

3.3. Ricoeur e a sua leitura do Hegel de Weil

Retomemos a questão anteriormente deixada em suspenso quando da apreciação de

Ricoeur sobre a categoria do Absoluto na Lógica da Filosofia. Trata-se da primeira questão de

sua aporética leitura: “qual é a significação da categoria do Absoluto?”.

Em sua apreciação a essa questão, Ricoeur salienta que é preciso ter claro que a categoria

do Absoluto no texto weiliano não é o término do discurso, dessa forma, querer falar de um

momento hegeliano é mais desvio que esclarecimento. Ricoeur indica a passagem na Lógica

em que Weil nos adverte acerca das diferenças entre seu sistema e o sistema de Hegel:

a exposição (uma exposição) do sistema está diante dos olhos de todos na

Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel. Remetemos – pura e

simplesmente – o leitor a ela, sem medo de confusão: as diferenças entre seu

sistema e a presente análise categorial são demasiado claras no que tange ao

fim e também ao início, e à sequência do presente trabalho irá torná-las

ainda mais visíveis: o Absoluto não é aqui a última categoria (LF, 478).

Para Ricoeur, o significado desta declaração realça a virada antropológica sofrida pela

categoria do Absoluto e, assim, não é mais nenhum hegeliano que adentra nela. Destaca a

epígrafe de abertura da categoria:

O homem que não se contenta em expressar-se no conflito como imagem,

mas volta-se para o conflito para aprendê-lo em sua universalidade concreta,

chega ao discurso único e absolutamente coerente no qual ele desaparece

47

Idem. p. 497.

132

enquanto personalidade: é o pensamento que existe pensando-se a si mesmo:

o Absoluto (LF, 449).

Constata que o homem se tornou o centro da reflexão, não em sua particularidade, mas na

sua humanidade, ou seja, o que qualifica sua particularidade humana.48

Segundo Ricoeur, tal

característica deliberadamente antropológica da categoria do Absoluto se explica bem antes,

quando a categoria Deus é abandonada. Weil descreve ali, aos olhos do hermeneuta, a atitude

do crente em face da conjunção religião-filosofia, que em termos da Vorstellung e Begriff

hegeliana, perdeu todo o significado, pois não há mais coincidência de conteúdo entre religião

e filosofia. O que ocorre é a atitude do crente, homem que perdeu a fé e se lança para o

Absoluto.

Eis porque é um homem humano, já humanizado, que chega ao Absoluto. Não há filosofia

do ponto de vista de Deus, mas do ponto de vista do homem. Weil pode ser lido como aquele

que, depois da categoria Deus, deu “adeus à Deus”, um adeus dilacerante constatado pelas

admiráveis páginas dedicadas ao crente, em especial o imenso respeito e a profunda

compreensão demonstrada, ainda que a fé, nessa análise, se mantenha confinada no

sentimento e privada de determinações, o que seria para Hegel, segundo Ricoeur, uma

religião. As categorias que intercalam o pico Deus e o ápice Absoluto – são elas, Condição,

Consciência, Inteligência, Personalidade –, contribuem para a definição do caráter

deliberadamente antropológico da categoria do Absoluto ao humanizarem todo o processo na

direção desta: a Condição, por exemplo, “rejeita a profanação integral do homem da perda da

fé, porque é ela que, em retrospectiva, revela a fé como fuga diante da realidade da vida”.49

Diz a epígrafe dessa categoria: “A fé deixa o homem na liberdade sem um conteúdo

determinado por sua liberdade. Ela aparece então ao homem na vida como uma fuga diante a

realidade desta vida – que é a condição” (LF, 287).50

Para Ricoeur, ao abandonar a fé e entrar no mundo para transformá-lo pelo trabalho, para

observá-lo, conhecê-lo cientificamente e implantar uma história, o homem se esforça por

interpretar toda essa condição em termos de progresso. As demais categorias sucessoras, cada

uma a seu modo, acompanham e agravam esse processo de humanização até a chegada ao

Absoluto: interiorização manifesta pela consciência, livre flutuação da inteligência em querer

compreender tudo e não se compreender, interpretação de si em termos de crise e de conflito

da personalidade. Sobre essa última, Ricoeur destaca no texto weiliano: “A personalidade está

48

P. Ricoeur, art. cit. p. 408. 49

Idem p. 409. 50

LP, 203.

133

sempre na crise; sempre, isto é, a cada instante, ela se cria ao criar sua imagem, que é seu por

vir. Sempre ela está em conflito com os outros, com o passado, com o inautêntico” (LF,

428).51

Ricoeur chama atenção para o fato de a palavra Absoluto ser pronunciada no momento da

formulação da categoria da Personalidade, que é a antecessora imediata da categoria do

Absoluto. Cita a epígrafe da categoria da Personalidade: “O homem que não se contenta com

o jogo da inteligência, mas se interpreta a si mesmo – sem renunciar, no entanto, à

inteligência –, se constitui como centro de um mundo que é o de sua liberdade. Ele é valor

absoluto, fonte de valores: personalidade” (LF, 399).52

Eis a razão de a categoria da

Personalidade ser já pós-cristã, com força de ser secularizada.

Para Ricoeur o Absoluto se traduz em termos inteiramente humanos em virtude de sua

relação com a crise e o conflito que marcam a categoria da Personalidade. O Absoluto é,

como lembra no texto weiliano, o pensamento pensando a si mesmo (LP, 319 []), isto é, um

“salto da atitude para fora do conflito a fim de colocá-lo sob o título da particularidade

compreendida”.53

Em que sentido ainda é possível falar de um hegelianismo desse Absoluto?

Indecidível é a resposta de Ricoeur,54

pois se não há um conteúdo hegeliano, persiste uma

função hegeliana, no sentido de que, “o discurso no qual o Absoluto se compreende tem um

caráter total que parece excluir que haja um depois, um além do Absoluto”.55

Assim, por uma diretriz totalizante da categoria do Absoluto, Weil, segundo Ricoeur,

“repetiria o discurso hegeliano sem reproduzi-lo”. Para tanto, chama atenção para as

ressonantes e abundantes fórmulas hegelianas utilizadas na Lógica da Filosofia na categoria

do Absoluto:

Não existe discurso coerente do indivíduo: existe discurso coerente... O

homem compreende, contanto que seja esse discurso em sua totalidade... O

que agora se exige do homem – o que ele exige de si mesmo – é mais que

isso, e distinto: já não basta se conformar ou se subordinar a um outro para

se ver transformado ou refletido: trata-se do Absoluto no qual o indivíduo

51

LP, 303. 52

LP, 283. 53

P. Ricoeur, art. cit. p. 410. 54

Essa indecisão sobre Hegel se aplica muito mais a Ricoeur. Não se verifica uma indecisão de Weil quanto a

Hegel, aliás, Weil resolve-se com Hegel na categoria do Absoluto e, depois, se houver um Hegel, ele estará,

como todos os outros, repensado, integrado ao sistema da Lógica. Para falar como Perine, Weil reteve do sistema

hegeliano além de seu resultado o problema da unidade dessa obra cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p.

171. Ricoeur oscila sempre entre tentação hegeliana (TA, 251ss) e renúncia de Hegel (TR 3, 280ss) e essa

leitura pendular de um suposto hegelianismo de Weil me parece muito mais um prélio intimo que o hermeneuta

trava sempre que se defronta com pensamentos que se situam na órbita de Hegel, mesmo aqueles que estão entre

seus mais severos críticos. 55

P. Ricoeur, art. cit. p. 410.

134

desaparece... O homem compreende (contém) a personalidade, e o homem é

o pensamento, e o pensamento é o ser. A nova atitude é alcançada. Já não é

necessário buscar como o homem e o Ser se encontram: eles são um no

discurso. O que precisa ser não explicado, mas explicitado, é essa unidade

como unidade dos conflitos em sua totalidade... Para o Todo, não existe outro

(LF, 452 ss.).

Estariam nesse ponto identificadas as raízes de todas as dificuldades de leitura das últimas

categorias, entre as quais a de “explicitar a unidade dos conflitos na sua totalidade”.56

O que

parece problemático para Ricoeur é a identificação do discurso coerente, projeto levado

adiante por Weil, com o discurso totalizante do Absoluto, aqui abandonado.57

Ricoeur diz

compreender bem os motivos pelos quais se deixa o Absoluto, aliás, estes são até fáceis, uma

vez que não se trata mais aqui do Espírito e sim do próprio homem, da humanidade nele.

Contudo, a mesma compreensão não se aplica à manutenção do projeto de discurso coerente

além do discurso do Absoluto, tomado como “discurso único e absolutamente coerente”.

Pergunta Ricoeur: permanecerá esse discurso coerente apenas deixando cair o epíteto único e

o advérbio absolutamente?58

Situada dessa maneira, a Lógica da Filosofia será encarada, a

partir de suas últimas categorias, como um combate dramático para preservar a coerência

para além do discurso absoluto, que é também o discurso do Absoluto.

O que intriga o hermeneuta é o fato de o alvo da crítica weiliana dirigida a Hegel ser

exatamente e igualmente o que ela conserva posteriormente: a pretensão do discurso

absolutamente coerente. Ricoeur desnuda aquilo que o anti-hegelianismo de Weil critica de

maneira mais ferina: “Hegel deu somente o em si do Absoluto não seu para si”. Por que razão

então atravessar apenas uma pretensão se ela sequer é uma atitude a ser elevada ao status de

categoria? No entanto, segundo Ricoeur, Éric Weil parece nos advertir acerca da necessidade

de se passar pelo modelo de coerência introduzido por Hegel, em especial o da Enciclopédia,

para termos o direito ao título de pós-hegelianos, pois o caminho é muito mais árduo para

quem nunca pensou em ser pós-hegeliano. Aquele que não passou pela empreitada da

Enciclopédia não sabe o que ali se fala e nem o que significa o falar.59

Para Ricoeur, “só o abandono da Personalidade, no horizonte do discurso único e

absolutamente coerente, dá o direito de levar ao discurso as atitudes que nascem da recusa do

56

Idem p. 411. 57

Com Hegel, segundo Weil, a filosofia pensa-se a si mesma, o Absoluto é a categoria na qual a filosofia se

compreende e, por se compreender, ela sabe que nenhuma totalização deve deixar de fora o que lhe recusa em

conhecimento de causa, isto é, depois que a própria filosofia se compreendeu. Ora, não é apenas possível, como

o é efetivamente, a recusa filosofia, no entanto, a filosofia deve buscar compreender mesmo isso (sua recusa)

num discurso coerente, essa é sua intenção, não uma totalização, é discurso coerente. 58

P. Ricoeur, art. cit. p. 411. 59

Idem.

135

Absoluto e do seu discurso”.60

Cita a passagem da Lógica da Filosofia:

Se a forma que esse sistema assumiu em Hegel é uma forma definitiva, a

forma do sistema, se essa forma concreta cumpre o que promete, eis uma

pergunta que é uma das mais importantes para o filósofo e o historiador da

filosofia. Mas seja qual for a maneira que se responda a ela, e mesmo

supondo que a resposta seja negativa, nem por isso é menos verdadeiro que

Hegel foi o último na breve série dos grandes filósofos: ele descobriu a

categoria filosófica da própria filosofia. É possível que ele tenha descoberto

em si, isto é, para nós, que nos compreendemos, num mundo transformado

por sua descoberta, o que ele descobriu, sem talvez o compreender

completamente. Mas esta crítica – se é que se trata de uma –, tornou-se

possível graças a ele (LF, 480-481).

Questiona o filósofo hermeneuta se essa severa advertência dirigida aos fenomenólogos,

hermeneutas, pensadores políticos e pensadores da política, não se aplica ao próprio Éric

Weil, isto é, contra sua própria tentativa de perseguir e de preservar para além do Absoluto o

projeto do discurso coerente, ao preço de atravessar as “fissuras irreparáveis” –, segundo a

expressão de Pierre-Jean Labarrière.

Para Ricoeur, as duas categorias posteriores ao Absoluto e antecessoras da Ação, a Obra e

o Finito, constituem a revolta não somente contra a coerência hegeliana, mas contra toda

coerência. Éric Weil, ao descrever tais atitudes derivadas do escândalo da razão pergunta-se

pelo resto que vem depois do pensamento – pensamento, razão, e não somente discurso

absoluto, sublinha Ricoeur. Uma vez mais a Lógica da Filosofia é citada:

Resta o escândalo da razão. O homem não pode pensar mais longe que o

Absoluto, visto que pensar é buscar a coerência e que a coerência é tudo, em

si e para si. Mas o homem pode haver pensado, pode haver concordado com

tudo o que a ciência ensina, e pode não pensar, não querer pensar, se recusar

ao Pensamento (LF, 488).

Ricoeur acredita tratar-se aqui ainda de uma fala típica do homem do Absoluto

escandalizado pelo fato de ser ultrapassado por uma atitude que lhe escapa (cf. LF, 488).61

O

pensamento se escandaliza com a instauração do “contra-pensamento” pela a Obra e pelo

Finito. Eis porque Ricoeur fala da dramaticidade vivida ao fim da Lógica da Filosofia. Tanto

o abandono da categoria Deus quanto o abandono da categoria Absoluto são aqui simétricas

por produzirem o mesmo efeito: perda da fé na primeira e escândalo da razão na segunda.

Ambas marcadas pela dor, pelo desamparo, pelo dilaceramento do sujeito. O que difere uma

ultrapassagem da outra é que a segunda é com conhecimento de causa, isto é, ela se sabe pós-

hegeliana.

60

Idem. 61

(LP, 346).

136

A leitura de Hegel por Weil não nos parece distante da leitura que faz o próprio Ricoeur.

Daí porque sua conduta quanto ao filósofo alemão não se assemelha a tantas outras, tanto na

filosofia como fora dela. Além do mais, no quesito Absoluto, é sempre mais fácil rejeitar a

concepção de Hegel de uma vez por todas, como fazem muitos dos pensadores

contemporâneos, do que proceder como Ricoeur que, não obstante seus senões, tece

considerações positivas, ao mesmo tempo em que, mantendo equidistância dela, não se deixa

seduzir por completo a ponto de não conseguir se desvencilhar.

3.4. Os enredos do poder e a theoria

Em maio de 1957 surge, na revista Esprit, o famoso artigo O paradoxo político, refletindo

sobre os dois grandes eventos do século – As chamas de Budapeste e o Relatório de

Khrushtchev ao XX Congresso do PCUS. Eventos que explicitam a dupla natureza do poder, a

saber, que o político é atravessado por uma tensão entre a racionalidade e o mal. Dois anos

antes Ricoeur tinha publicado uma coletânea de textos de “ocasião” aos quais nomeou

História e verdade, organizados em dois movimentos articulados de idas e vindas em relação

à estrutura interna desta obra: um primeiro dedicado à elucidação dos conceitos diretores, isto

é, de cunho epistemológico e metodológico e, em seguida, textos de intervenção na crise

civilizatória em curso ou de orientação de pedagogia política (cf. HV, 07). A segunda edição

desta obra em 1964 trazia o artigo mencionado e o inseria, após meditada deliberação, em seu

segundo movimento.

Essa última observação, que poderia parecer mera curiosidade editorial, é, na verdade, uma

constatação de que uma apreciação desse artigo já não pode, a nosso ver, prescindir do lugar

escolhido pelo próprio autor para situá-lo. Noutros termos, o artigo O paradoxo político

insere-se no contexto da investigação sobre os enigmas do poder político que desafiam a

reflexão filosófica e a ação desta reflexão no que interessa ao mundo da cultura (cf., HV,

20).62

Como já tínhamos afirmado, para Ricoeur, pensar e intervir constituem duas facetas de

uma mesma abordagem filosófica.

O artigo O paradoxo político é, assim, um texto cujo movimento é também retrospectivo

em relação à pesquisa das significações conceituais, pois a interpretação dos eventos dos

quais quer dar conta pressupõe uma theoria ou, nas palavras do autor, um certo orgulho de ser

62

Bastaria lembrar que a filosofia ricoeuriana está sempre às voltas com o que toma como pressuposto

fundamental, o não filosófico, nesse caso a violência e o mal como o que precede toda filosofia cf. D. Pellauer,

op. cit. p. 18.

137

“intelectual” (cf., HV, 08). Contudo, não nos propomos agora desenvolver uma reflexão capaz

de articular o artigo em questão com o todo dessa fascinante obra – o foco desse estudo nos

impõe uma abordagem mais restritiva. Importa tão somente explicitar a circunscrição desse

texto no conjunto e no coração dessa obra como um ensaio que, ao pertencer a um todo maior

que o envolve, contém em si o germe glorificador “da palavra que reflete com eficácia e que

age mediante reflexão” (HV, 09).

Será esse o núcleo de compreensão decisivo para o curso desta investigação. Antes, porém,

é preciso retomar a diretriz da tese advogada no texto, bem como alguns aspectos da

interpretação de Ricoeur acerca dos eventos a que ela se refere.

3.4.1. O paradoxo do político

A análise ricoeuriana se inicia, após breve preâmbulo sobre a Revolução da Hungria e a

sua violenta interdição pelas tropas do Exército Vermelho, advertindo que aqueles –

sobretudo, os marxistas – que não creem na autonomia relativa do político diante da história

econômico-social, são incapazes de perceber que o problema do poder em regime socialista

não difere fundamentalmente de qualquer outro regime e que, ademais, é agravado por

possibilidades superiores de tirania. O que exigiria, nesse caso, controles democráticos mais

eficazes e rigorosos a fim de conter essa sanha da racionalidade de impor-se a qualquer custo

(cf. HV, 252).

Todo o texto gira em torno da tese da autonomia do político e esta é, por sua vez, definida

pela dupla natureza do poder, portanto, do paradoxo segundo o qual as possibilidades de

perversão são concomitantes e proporcionais ao aumento da racionalidade (cf. HV, 252). Por

ser dotado de uma racionalidade específica, o político é também portador de males

específicos irredutíveis a qualquer base econômica. Senão o Estado Soviético, alvo prioritário

das reflexões de Ricoeur naquele momento, teria sido a consagração da libertação do homem

de toda alienação política, uma vez que se propunha colocar termo à exploração econômica.

Mas não foi nada disso que se viu.

O artigo de maio de 1957, como texto que se volta plenamente para a história, tenta captar

seu tempo no conceito ao mesmo tempo em que submete a escrutínio os acontecimentos – ou

se se prefere, reler o poder à luz da theoria. Assim, a tese da dupla natureza do poder é

também sua mais dura crítica ao monstrengo que se tornara então o Estado Soviético. Um

Estado planificador que, por ser tal, era mais racional e, igualmente, passional. Suas mazelas

138

(os expurgos stalinistas nos gulags, as perseguições, prisões e assassinatos da polícia secreta,

etc.), denunciadas pelo Relatório de Khrushchev, são também a prova irrefutável dessa dupla

natureza da política, pois foi querendo eliminar a exploração econômica que o político

mostrou sua faceta mais cruel à claridade do dia, instituindo todos os expedientes típicos do

abuso de poder. Essa será a tônica de todo o ensaio: “É mister sustentar esse paradoxo, de que

o maior mal adere à maior racionalidade, que existe alienação política, porque o político é

relativamente autônomo” (HV, 253).

Tal autonomia se compreende quando a política é tomada como uma preocupação com o

todo da vida humana. Desde os pensadores antigos, a política embora portadora de fortes

elementos irracionais, pertence ao campo do racional, caso contrário, seria ela, a própria

razão, a sucumbir. A filosofia, assim, ao integrar a política ao seu corpus, lhe confere

movimento e a coloca a serviço de seu projeto. Eis porque a política para os antigos, segundo

Ricoeur, detém seu telos na “coisa pública” ou no “bem comum” (cf. HV, 253). É exatamente

nisso que reside a autonomia do político: a procura da realização da meta humana de

humanizar o homem elevando-o à condição de cidadão. Esquece-se, frequentemente, que essa

é também a razão pela qual ética e política são correlatas. A razão é o todo do qual a política

parte e para a qual está voltada. E é esse universal da razão que define a natureza específica

do político, que define, portanto, sua autonomia e irredutibilidade diante da esfera econômica.

Para Ricoeur, toda e qualquer crítica à especificidade do político deve pressupor essa

distinção cuja equação básica em filosofia política encontra-se formulada no Contrato Social,

ou seja, no pacto de todos e de cada um com os outros que constitui o povo propriamente e,

nesse sentido, o Estado (cf. HV, 256). Protestos, por mais fundamentados que sejam, contra

essa ideia, alegando, seja sua abstração e idealidade seja sua hipocrisia e enganação, não

suprimem a força intrínseca deste ato virtual que é ato fundador da nação, antes o pressupõe.

É “esse ato, dirá Ricoeur, que constitui a política como tal” (HV, 256). Por outro lado, é

justamente através da idealidade deste ato fundador – ato inaugural no qual se reconhece a

existência de uma universalidade responsável pela marcha da política – que facilmente a

mentira é inserida na política:

o político está inclinado à mentira, porque o vínculo político tem a realidade

da idealidade: – essa idealidade é a da igualdade de cada um diante de

todos... mas, antes de ser hipocrisia atrás da qual se esconde a exploração do

homem pelo homem, a igualdade perante a lei, a igualdade ideal de cada um

diante de todos, é a verdade do político. É ela que faz a realidade do Estado.

(HV, 256-257).

139

O Estado, assim, se revela como a maior expressão da idealidade que também é sua

realidade. Noutros termos, a enganação na política só é possível porque essa idealidade de

uma universalidade lhe serve como álibi. Uma classe dominante só pode valer-se desse trunfo

para aparelhar determinado Estado (ou todo e qualquer Estado empírico) porque esse Estado

possui em sua estrutura jurídica essa universalidade como realidade anterior a toda

exploração. “Para tornar-se Estado uma classe deve fazer penetrar seus interesses na esfera da

universalidade do direito” (HV, 257), diz Ricoeur numa formulação curiosamente muito

próxima ao que Gramsci entende por hegemonia.63

É assim que uma idealidade do direito

acaba legitimando a realidade da força. A realidade da política, destarte, se configura

profundamente labiríntica, uma vez que é pela legitimidade desta abstração que os

oportunistas de plantão mobilizam o discurso enganador que ludibria em nome da liberdade.

O escândalo é que a palavra, única garantia da fundação política e de sua realização, sempre

pode ser falsificada. A grande dificuldade da política, segundo Ricoeur, é que ela se inscreve

nesta dubiedade do acordo fundante: “fazer surgir a coincidência de uma vontade individual e

passional com a vontade objetiva e política, em suma, fazer passar a humanidade do homem

pela legalidade e sujeição civis” (HV, 258).

Ora, é no plano das paixões, do empírico, do particular, etc. que se revela o jogo bruto da

política. Mas, por outro lado, é também nesse mesmo plano que qualquer transformação pode

ser produzida e receber seu sentido. É na relação com o econômico, mas não a ele

subordinado, que essa situação é atingida e desnudada. A crítica fulminante de Marx alcança a

alienação política nesta dimensão ao revelar a falsa consciência do homo oeconomicus. De

outra maneira, a mentira que se engendra no político pela abertura da legitimidade da

idealidade (também legitimidade da força) é desmascarada quando vista a partir do mundo do

plano econômico sem se deixar reduzir a esta dimensão.

A alienação política é a contraface da autonomia política e não subproduto das relações

econômicas. Lembremos que o labirinto do político se caracteriza, por um lado, pela

idealidade que ao fundamentar uma comunidade real – porque legítima comunidade do direito

– funda a própria liberdade dos cidadãos universalmente, pois iguala todos nesse princípio

formal; e, por outro lado, o mesmo princípio torna-se ficção apta a vestir a hipocrisia de uma

63

Gramsci considera dois grandes planos superestruturais que perpassam todo o tecido social: a sociedade civil e

a sociedade política (o Estado). Esses correspondem, no âmbito da cultura, à função de hegemonia exercida pelo

grupo dominante em toda sociedade e outra, do âmbito do direito, a expressão hegemônica do comando jurídico

do governo. Cf. A. Gramsci. Cadernos do cárcere. v. 2. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2 ed. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 12.

140

classe dominante. O mal em política ocorre nesta passagem à existência civil pela lei

consentida por todos (cf. HV, 256). O fosso abissal na passagem do político à política, da

reflexão à ação, da theoria à práxis, é que possibilita as distorções no discurso, uma vez que o

específico do político se encarna na especificidade dos meios da política. São os meios que

determinam a política, não existe política que não se depare e não tenha que escolher entre os

meios tecnicamente mais adequados no cumprimento de seu propósito. É dessa forma que se

pode definir a política como exercício do poder, seja na aquisição ou conservação, seja na

administração das coisas ou no governo das pessoas. Esse costuma ser o temerário de certas

análises do político que, situadas fora do seu tablado e das coxias (ou mesmo quando lá

inseridas), ignoram o funcionamento das molas do poder.

Ocorre que para evitar esse discurso moralista, a política deve ser confrontada

primeiramente com o econômico-social – a fim de tornar evidente sua autonomia diante dessa

esfera –, e somente depois com a ética (cf. TA, 387ss). Do político à política é que se

compreende que o “idealismo do direito não se mantém na história senão pelo realismo

arbitrário do príncipe”, que “a esfera política se divisa entre o ideal da soberania e a realidade

do poder, entre a soberania e o soberano, entre a constituição e o governo” (HV, 264). Ricoeur

lembra que é essencialmente para essa contradição que a crítica de Marx ao Estado chama

atenção: a denúncia de uma ilusão que pretende fazer do Estado o verdadeiro mundo do

homem, substituindo o mundo real pelo irreal sem resolver as contradições reais nascidas pela

aplicação do direito fictício nas relações entre os homens (cf. HV, 263).

O grande problema é que “Sonhamos com um Estado em que estivesse resolvida a

contradição radical que existe entre a universalidade visada pelo Estado e a particularidade e o

arbitrário que a afeta na realidade; o mal é que esse sonho está fora de alcance” (HV, 264). A

alienação política é, assim, algo constitutivo da existência humana, existência que comporta

em si mesma a cisão da vida abstrata do cidadão e a vida concreta do mundo do trabalho (cf.,

HV, 265). No entanto, para Ricoeur, o marxismo não deixou espaço para uma problemática

autônoma do poder na medida em que reduz toda e qualquer alienação à alienação econômica

e social (cf. HV, 265). A questão é que o mal político só se torna grave porque supõe, ao invés

de negar, uma totalidade diretora das ações humanas na qual se realizaria o Estado, caso

contrário, o mal político não teria a menor importância.

Ricoeur concluirá seu artigo O paradoxo do político no sentido da impossibilidade de o

Estado deperecer, como quer a proposição “desastrosa” do marxismo. Assumida essa posição,

ela lançaria para um futuro indeterminado o fim do mal do Estado, do mal político, quando na

141

verdade esse problema prático exige ser confrontado hic et nunc (cf. HV, 267). Ricoeur elenca

um conjunto de dispositivos de caráter universal irrenunciáveis para todo e qualquer Estado,

sobretudo para o Estado de regime socialista. Dado que esse Estado é diagnosticado como

mais passional porque mais racional, por estender o cálculo e a previsão a setores da

existência humana que outrora se encontravam entregues ao acaso e ao improviso, é ele que

precisa de efetivos controles democráticos a fim de estabelecer limites ao seu poder. O Estado

não podendo desaparecer também não pode existir demasiadamente.64

Pois bem, é nesse ponto que o diálogo entre Paul Ricoeur e Éric Weil pode ser retomado.

Ora, as diretrizes acima evocadas para impor limites ao Estado, por conta da natureza

paradoxal do poder estão, curiosamente, em franca harmonia com o pensador franco-alemão.

Porém, é preciso, antes, verificar algumas considerações de Ricoeur à Filosofia Política.

3.4.2. Filosofia Política e o problema do indivíduo

No intervalo de 5 meses, o número de outubro de 1957 da revista Esprit traz uma

instigante resenha de Ricoeur à Filosofia Política de Éric Weil. Crônica capaz de perceber que

nem tudo de importância criadora no universo filosófico se passava no devant de la scène

daquele momento da filosofia francesa.65

O que nos parece central nesse segundo artigo é que,

à primeira vista, Ricoeur orienta-se por uma leitura do texto weiliano, preferencialmente,

singularizada, destacando o indivíduo em prejuízo de uma abordagem quanto à forma

especulativa de Éric Weil. As questões lançadas logo no início de sua crônica tentam

apreender em que dimensão está encerrado o indivíduo no discurso da Filosofia Política.

Indaga seu interlocutor sempre no sentido da insistência em apresentar teses nas quais o

indivíduo aparenta ser sacrificado em razão de uma suposta universalidade que, aliada,

primeiro, a uma comunidade histórica e, em seguida, ao Estado (cf. L1, 42), levaria o

indivíduo a uma identificação, rápida e sólida, com a paixão e a violência (cf. L1, 43).

64

Não se trata aqui da defesa do Estado mínimo como é a proposição do chamado neoliberalismo. Na tese do

ultraliberalismo, o Estado é visto como um mal necessário por sua natureza intervencionista e, nesse sentido,

como algo que no fundo obsta o desenvolvimento da sociedade. Para o estabelecimento de uma sociedade

totalmente livre, segundo a perspectiva do liberalismo econômico, seria melhor que o Estado desaparecesse.

Rigorosamente falando, socialistas e anarquistas – malgrado as amplas diferenças que mantém entre si e com o

liberais –, acabam, no limite, convergindo para tese do desaparecimento do Estado. Para uma melhor

caracterização destas semelhanças remetemos ao livro de P. Canivez. Educar o cidadão? Tradução de Estrela dos

Santos Abreu e Cláudia Santoro. Campinas, SP: Papirus, 1991, p. 15ss. 65

Cf. M. Perine, Apresentação da tradução brasileira de FP, p. 05. A mesma observação em J.-M. Buée, art. cit.

p. 390.

142

Essas questões conduzem Joel Roman a dizer que há um protesto de Ricoeur a Weil, por

considerar que o hermeneuta herda de Weil o problema antropológico, a saber, a

irredutibilidade do homem como, ao mesmo tempo, razão e violência. A percepção desse

intérprete é que Weil por vezes insinuaria, aos olhos de Ricoeur, querer separar esses dois

polos, cujo resultado seria a dicotomia na abordagem política: de um lado, um formalismo

político (idealismo político) que garantiria ao Estado seu papel normativo porque racional

contra a violência do indivíduo; de outro lado, o esquecimento de que o próprio Estado tem

origem na violência assim como todo indivíduo partilha da razão. Protesto agudo que faria

Ricoeur convocar outros textos de Weil para opor ao próprio Weil.66

Pois bem, essa posição é difícil de ser sustentada por duas razões: primeiramente, essa

atitude faria Ricoeur parecer alinhado a uma corrente filosófica que rejeitaria um maior acento

sobre a racionalidade do político para, em contraposição, inscrever neste a pegada mais forte

da singularidade do mal do poder. Entretanto, o próprio Ricoeur sugere resistir à tentação de

se contrapor a abordagens conduzidas pela forma e pela força (cf. HV, 253). Para ele, como

dissemos acima, é necessário manter a tensão sobre estas duas investidas.

Em segundo lugar, observando a própria advertência logo no início da Filosofia Política

quanto a qualquer concessão à parcialidade da análise, Weil chama atenção para o que toda

abordagem filosófica (se se pretende tal) dever observar: “só a totalidade estruturada pode ser

verdadeira” (FP, 11), pois o particular não é senão uma abstração que, ao ver um aspecto do

todo, efetua um recorte mecânico tentando isolar um essencial, o que toma por fundo dos

fenômenos e, assim, podendo ser levado ao equívoco de se refutar a moral pela política e vice

versa, submetendo ao mesmo destino lei e liberdade, sociedade e Estado, as ideias e as

realidades (cf. FP, 13).

Para Éric Weil, o indivíduo não está ausente da reflexão política, mas também não é ele

que constitui o fundamento da política. O indivíduo que importa é aquele que acede ao

universal. O universal não desconsidera o indivíduo, antes, passa por ele (FP § 6 e 7). Ricoeur

é bem consciente disso quando afirma:

(...) no termo do movimento que vai da moral formal ao Estado mundial, a

política reencontra seu sentido moral; mas a reflexão passa agora pela

história dos homens: o que era problema para o indivíduo voltado sobre si

mesmo revela-se como problema posto realmente pela ação política, cujas

condições reais de solução são criadas pela ação política – a última palavra

pertence, contudo, à prudência dos governantes, que são indivíduos. Só a

filosofia política permite dizer que, finalmente, “o indivíduo razoável está

66

Cf. J. Roman, Ricoeur entre Hanna Arendt et Éric Weil, Esprit n. 140-141, jui./aût (1988): p. 42.

143

acima do Estado” (p. 254), porque inicialmente “o sentido do Estado está na

existência livre e razoável” (p. 237). Mas essa verdade final do indivíduo

passa pela mediação do Estado... Quem aceita esse longo desvio, esse

aprendizado dos intermediários indispensáveis, descobre o princípio de uma

ação sensata e, acima do mercado, a possibilidade de um além da ação, a

possibilidade da “teoria”, da “visão do sentido”, em poucas palavras, da

filosofia como discurso. (L1, 56-57).

A partir dessa robusta declaração, podemos dizer que não é propriamente a análise que se

desdobra pela anterioridade da forma que é censurada por Ricoeur. Aliás, na confrontação

com a história humana ela é requerida, dado que o que nela se aprecia é o outro irredutível do

discurso: a violência. Sendo assim, constata-se que é uma investigação conduzida pelas

formas que atinge com maior precisão a realidade da violência. Lembremos que toda

discussão indicada pelo O paradoxo político procura, a partir das formas do poder, explicitar

as práticas assumidas pelo mal político. A tese segundo a qual a crescente racionalidade que

termina por produzir distorções políticas perigosíssimas é resultante da tensão entre theoria e

poder, entre razão e violência. Ora, não seria essa uma investigação que se propõe cada vez

mais singularizada porque toma como ponto de partida o plano da universalidade? O mal

político não é aqui desnudado em sua particularidade porque debitado da totalidade

envolvente da comunidade a que se chega pela análise reflexiva?

A resposta é positiva, sobretudo, se se leva em consideração a enfática recusa de Ricoeur

em opor theoria (que procede a análise do “tipo” ou formalista) e práxis (cf., HV, 8ss). O

paradoxo político situa-se no entrecruzamento das análises que se dirigem preferencialmente

aos conceitos e que se desenvolvem em choque com os fatos históricos: “Não hesitaria em

dizer que o paradoxo político consiste precisamente nesta confrontação entre a forma e a força

na definição do Estado” (TA, 394).67

Ora, é, precisamente, nessa direção que Éric Weil problematiza a ação em sua Filosofia

Política. É muito significativo que Weil compreenda o termo política no sentido aristotélico

como consta nas primeiras linhas da Filosofia Política.68

Sabemos que para Aristóteles a

política pertence ao campo das ciências práticas e não à atividade puramente teorética que,

por sua vez, se sobrepõe ao prático e o integra. A essa indicação a Filosofia Política dá o seu

próprio tom. Dito de outro modo, embora sob o domínio do contemplativo, sua análise do

67

Uma outra formulação que remete a mesma duplicidade originária do poder: “Fui sempre muito impressionado

pelo caráter de dupla face do poder político, por isso o chamei de paradoxo político. (...) Por um lado, a sua

racionalidade. (...), mas o Estado tem outra face, a racionalidade tem um avesso: o resíduo da violência

fundadora (...), que se deve, em parte, a uma herança, mas a uma herança singular, cuja natureza é, para mim,

cada vez mais enigmática.” (CC, 138). 68

« Le terme politique sera pris dans ce livre em son acception antique, aristotélicienne, de politiké

pragmatéia,considération de la vie em commun des hommes selon les strutures essentielles de cette vie. » (PP § 1).

144

fenômeno político não está absolutamente determinada a ele. A definição da política na

sequência é, sob esse aspecto, rigorosa, pois ao mesmo tempo em que realça a dimensão da

ação razoável universal não deixa de destacar sua origem empírica: “A política, ciência

filosófica da ação razoável, refere-se à ação universal. Por sua origem empírica, esta ação não

visa ao indivíduo ou ao grupo enquanto tal, mas à totalidade do gênero humano, mesmo sendo

a ação de um indivíduo ou de um grupo.” (FP 15-16).

Toda argumentação posterior de Weil, mesmo conduzida, preferencialmente, pela forma,

não deixa de advertir para possibilidades de o Estado se desencaminhar, sobretudo, pelas

céleres vantagens oferecidas pela violência na execução de determinada política. Sobre esse

ponto convém destacar a percepção do grave problema de quem possa ser o juiz, entre os

indivíduos e grupos, para representar e encarnar o interesse universal (cf. FP, 175). O que se

torna evidente nessa questão, assim como é perceptível em Ricoeur, são os dois supostos: a

forma da totalidade do bem do corpo político e a força da violência empírica da

individualidade sempre aberta ao estabelecimento de uma classe dominante. Não há assim

nenhum descuido da Filosofia Política no tocante aos perigos que rondam o Estado.

Mas Ricoeur insiste em Weil tender sempre eludir o paradoxo político, permanecendo num

formalismo político e moral (cf., L1, p. 50). No tocante a esta objeção Weil responde

diretamente ao seu interlocutor:

O Estado é forma, mas a forma real e agente, e no qual a violência e seus

conflitos tomam consciência de si mesmos, uma forma aristotélica, não uma

forma abstrata. Talvez a nossa diferença (o termo é bastante forte) venha

também em parte do fato de você aproximar mais Estado e Governo do que

eu tenderia a fazê-lo: eu falaria mais facilmente de um governo violento que

de um Estado violento.69

A réplica de Weil não deixa de ser surpreendente. Os vínculos do Estado com o governo

sugerem que Weil visualiza um duplo formalismo que, no caso da Filosofia Política, situaria o

Estado num nível mais elevado, enquanto o governo num degrau abaixo, portanto, mais

próximo e suscetível dos enredos do poder. A resposta, talvez surpreendente ao próprio

Ricoeur, uma vez que doravante seguirá, em ao menos outras duas oportunidades, essa

orientação, que enfatiza sua proximidade e diferença em relação a Éric Weil; seja no

tratamento de sua própria filosofia seja em relação à filosofia weiliana. A primeira ocorre dez

69

« L'Etat est forme, mais forme réelle et agissant, et dans laquelle la violence et ses conflits prennent conscience

'eux-mêmes, une forme aristotélicienne, non une forme abstraite. Peut-être notre différend (le terme est trop fort)

vient-il aussi en partie du fait rapprochez davantage Etat et Governement que je n'aurais tendence à le faire: je

parlerais plus volontiers d'un gouvernement violent que d'un Etat violent » Éric Weil, 15 de outubro de 1957, carta

a Paul Ricoeur.

145

anos depois desta sua crônica, quando ambos dividem o tema Violência e linguagem numa

mesa de debates em 1967. Nessa ocasião dirá o hermeneuta:

A oposição formal de linguagem e violência deve ser previamente aceita por

qualquer um que fale. Mas, tão logo dizemos isso, impõe-se o sentimento de

que essa oposição formal não esgota o problema, mas apenas o cerne com

um grande traço que encerra o vazio. E por quê? Porque a oposição que

compreendemos, e da qual partimos, não é exatamente a de linguagem e

violência, mas – segundo os termos de Éric Weil na Lógica da filosofia, da

qual se pode reconhecer o eco na minha introdução – é a oposição do

discurso e da violência, mais exatamente do discurso coerente e da violência.

(L1, p. 60-61).

Para Ricoeur, linguagem situar-se-ia num nível superior de formalismo ao discurso. Isso

explicaria, por exemplo, sua opção pela palavra no confronto aberto com as correntes

estruturalistas. A ênfase na palavra, e não propriamente na língua como a maioria dos

linguistas, liga-se à compreensão de que é nesse reino do meio da violência e do discurso que

toda batalha deve ser decidida.

A outra ocasião é ocorre nas homenagens prestadas a Éric Weil na conferência de

encerramento do Colóquio de Chantilly em que sustenta, em contraste com os golpes

desferidos por Labarrière à Lógica da Filosofia, haver um nível suplementar de formalismo na

Lógica da Filosofia. Duplo formalismo que manteria o projeto weiliano plenamente intacto.

Ricoeur argumenta que as razões que explicam e explicitam a existência da categoria formal

da Sabedoria após a categoria formal do Sentido são as mesmas que permitem a integridade

do projeto de coerência retomado pela Ação. Para Ricoeur, somente esse duplo formalismo ou

formalismo duplicado é capaz de salvar a realização do projeto weiliano no constante

processo da ameaça da ruptura.

Não obstante essa rápida digressão, voltemos à crônica de Ricoeur dedicada a Filosofia

Política e notemos como é curioso seu empenho em manter-se próximo de Weil ao selecionar

uma passagem identificada com seu paradoxo político (cf. L1, 50, nota):

O problema é elevar-se à razão subsistindo, subsistir para elevar-se à razão, e

este problema deve ser resolvido no plano do empírico, da violência, das

paixões dos grupos e dos extratos, da competição e da luta entre os Estados,

no plano também do trabalho e do poder que ele oferece, da organização e,

portanto, da riqueza. (FP, 261-262).

Essa passagem de Weil é muito clara quanto ao que concerne ao Estado moderno superar,

isto é, ela capta o problema crucial da contemporaneidade cuja justa formulação foi

encontrada pelo romantismo e da qual o paradoxo político não é outra coisa senão uma forte

alusão. Noutros termos, Ricoeur reconhece, assim como Weil, na dolorosa convicção do nosso

146

tempo que nos faltam certos valores humanos essenciais, valores há tempos alienados pela

nova ordem social guiada pelo racionalismo econômico ocidental, o capitalismo.70

Contudo,

não se corteja por este reconhecimento nenhuma passividade: seja a da recusa da denúncia

romântica; seja a da resignação diante do avanço do progresso técnico. Como se pode notar, O

paradoxo político se dirige à mesma necessidade apontada pela Filosofia Política, a saber, a

busca da conciliação do justo com o eficaz.

Eis porque não se pode dizer que a Filosofia Política esteja encerrada num formalismo. Aliás,

formalismo é tudo que o texto weiliano procura superar. Uma filosofia política orientada pela tese

segundo a qual o progresso para não violência é o que define para a política o sentido da história

(cf. FP, 311) não pode ser acusada de negligenciar o problema do poder e do mal político.

Especialmente por situar a política ao nível em que ela realmente conta: no plano do econômico,

do mecanismo social. É só aqui, nesse plano dos conflitos – onde os atores políticos desenvolvem

suas reflexões e tomam suas decisões – que política obtém seu significado (cf. FP, 301).

Ricoeur sabe que a reflexão weiliana não compreende a razão como já pronta. Não ignora o

ponto de partida dessa filosofia na equivalência entre razão na história e ação razoável (cf. L1,

39). Da mesma forma que identifica a articulação entre o sistema da filosofia e seu capítulo a

Ação, capaz de desenvolver seus próprios conceitos e estruturas essenciais. Com se verifica

desde o início de sua leitura, Ricoeur se dá conta da necessidade de a Filosofia Política romper

a barreira do formalismo no concreto histórico. Assim, compreende que a moral abstrata é

somente um ponto de partida, necessário, mas que precisa ser envolvida e superada numa teoria

da comunidade e do Estado (cf. L1, 40). Percebe que a moral formal, se quiser se realizar, terá

que abandonar o ponto de vista negativo do indivíduo (que somente julga, condena, limita, etc.)

permitindo-se integrar à racionalidade do Estado integrando comunidade e sociedade.

Eis o audacioso projeto de uma Filosofia Política. Mas nesse particular compete muito

pouco à filosofia. No máximo, ela é capaz de orientar a ação pela tomada de consciência,

informando ao homem de ação sobre aquilo que se tornou indispensável para o sucesso de sua

tarefa. Mas engana-se quem acredita existir por conta disso alguma garantia de êxito da

empreitada. Esse projeto não possui nenhuma ilusão acerca de um triunfalismo da razão,

tampouco se perfila entre os que ultimam o total desamparo da comunidade diante do

vigoroso e vertiginoso progresso técnico.

70

Cf., M. Löwy e R. Sayre. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 22.

147

Ricoeur e Weil convergem suas respectivas análises para a ideia de controles democráticos

buscando o estabelecimento de um Estado saudável, que não se deixe manusear pela

racionalidade dominadora disposta sempre a impor, a tudo e a todos, seu progresso sem freios.

Esses controles são necessários para impor limites institucionais ao próprio Estado, tais como: a

independência do judiciário que garanta inclusive o direito do cidadão contra o próprio Estado;

a opinião pública livre fundada no conhecimento (ciência) independente do Estado e do

mercado; sindicatos livres que em sua tensão contra o Estado protejam o interesse dos

trabalhadores ao mesmo em que inserem as aspirações destes no debate público; e a discussão

dos partidos (o parlamento) capaz de elaborar os interesses na perspectiva da totalidade.

Vemos em ambos filósofos que a satisfação de todos e de cada um no interior do Estado

somente é possível pela mediação das instituições e que estas precisam ser saudáveis. Todas

as proposições se conduzem no sentido de salvaguardar o cidadão diante do Estado; de

proteger o indivíduo em relação às pretensões absolutistas e totalitárias; de preservar o

singular em presença do universal. Dito de outra maneira, não há prejuízo do indivíduo desde

que este não seja fim em si mesmo. É o universal que não é a superação do individual

(singularidade), mas, antes, tem nele o meio de sua própria realização, ou de maneira

invertida, o indivíduo só é indivíduo enquanto atestação de outros indivíduos, portanto, da

individualidade que é a universalidade dos indivíduos.71

Mas após todos esses cruzamentos resta indagar sobre as razões dos admiráveis

questionamentos ao texto weiliano. Cabe saber o porquê das críticas de Ricoeur a Weil em sua

crônica. A hipótese que apresentamos não é a de uma “correção” desta filosofia política

cruzando-a com o pensamento político de outro pensador, Hannah Arendt, por exemplo, tal

como Ricoeur procedeu em relação a Habermas e Gadamer – como é a proposição de

Roman.72

Nos parece que Ricoeur ao imiscuir-se sobre as questões da individualidade e do

formalismo busca situar sua própria filosofia. É sua postura filosófica, não necessariamente

71

Na Filosofia Moral lemos: « individualité – terme surprenant et, par là même, significatif, puisqu’il contient, à la

fois, l’universalité du concepte et la non-universalité de ce qu’il désigne de façon universalisante » (PM, § 9 f). 72

Essa é a posição de J. Roman art. cit. p. 48. Entretanto, o debate entre a hermenêutica das tradições e critica

das ideologias, que caracterizou o cisma entre Gadamer e Habermas por ocasião da publicação do memorável

livro do primeiro Verdade e método, fora um acontecimento público de grande repercussão no contexto da

filosofia do século passado ao qual Paul Ricoeur se viu obrigado a um posicionamento – uma moldura desse

debate consta em F. Valdério A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Éric Weil, Cultura, op. cit. pp.

227-246. O mesmo já não se verifica em relação a Weil e Hannah Arendt. Sem dúvidas, suas filosofias guardam

diferenças essenciais como observa Roman, ou mesmo Ricoeur em sua retomada de ambos no artigo Ethique et

politique, mas tais diferenças estão longe de constituírem uma polêmica. Para uma apreciação do estado da

questão que envolve o debate Gadamer-Habermas ver TA, 329-371 e também J. Grondin, op. cit. p. 81-91, E.

Stein. Dialética e hermenêutica: uma controvérsia sobre o método em filosofia in Síntese 29 (1983): 21-48.

148

sua posição em relação à filosofia weiliana, que ele confronta. Não se trata de querer reprovar

ou “corrigir” a posição adversária, mas aprofundar sua própria perspectiva de leitura.

As questões lançadas à Filosofia Política nesta sua crônica são para, no seu melhor estilo,

fazer coincidir a “via curta” do conhecimento de si mesmo com a “via longa” da interrogação

pela história da consciência (cf. HV, 37). No caso, o desejo de justificação no indivíduo,

enquanto fonte da liberdade razoável, com a ordenação propriamente dita da liberdade para a

qual o Estado está vocacionado (cf. L1, 58). Roman compreende bem isso quando diz que a

filosofia hermenêutica de Ricoeur é a explicitação de seu próprio trabalho de pensamento. No

entanto, não deduz daqui que o procedimento utilizado por Ricoeur exige, quase sempre, uma

leitura cerrada dos autores a quem se dedica, uma “leitura aporética”, a fim de tirar deles as

consequências lógicas de suas próprias escolhas metodológicas ao mesmo tempo em que

avivar as linhas de sua própria filosofia. Essa parece ser a tônica da leitura da Filosofia

Política.

Sabemos que esse procedimento de Ricoeur, por vezes demasiado crítico, implica sempre

em querer reabrir questões aparentemente já consolidadas e/ou despercebidas em obras de

determinados filósofos73

tanto quanto de seus intérpretes. No caso particular de Weil, os

senões apontados por Ricoeur, não significam protesto, mas, antes, a clareza de que o diálogo

deva ser cada vez mais fecundo com essa filosofia. Orientação hermenêutica que exige um

diálogo sempre mais singular e exclusivo com cada autor e sua filosofia.74

Nesse caso, as

críticas são sempre no sentido de fazer aflorar a violência, para si próprio, uma vez que

conduz uma investigação mais singularizada, quando esta parece querer se dissimular na

disposição universal do Estado.

Se a violência é colocada no início em franca relação com o indivíduo é porque, deduzirá

Ricoeur, será exigido, pela razão, do Estado individual (esse indivíduo histórico) se

reconciliar com seus pares numa comunidade mundial. Ora, o indivíduo jamais poderia ser

concebido como o princípio privilegiado da política já que as relações imediatas (soberanas)

entre indivíduos empíricos são, por sua natureza, relações violentas (cf., FP, 301). Mas alguma

promessa fundadora permite resgatar esse indivíduo, pelo menos é o que nos indica sua carta

resposta à Ricoeur:

73

Pellauer, op. cit. p. 18. 74

“Esse término da história dos historiadores no ato filosófico pode ter prosseguimento em duas direções: na

direção de uma ‘lógica da filosofia’ mediante a pesquisa de um sentido coerente através da história; na direção de

um ‘diálogo’, de cada vez singular e cada vez exclusivo, com os filósofos e as filosofias individualizadas” (HV,

p. 36).

149

Completamente em acordo com sua questão de que o indivíduo não seja

caracterizado apenas pela violência, eu acrescentaria somente que se trata

aqui, não do indivíduo em sua totalidade, em toda a sua plenitude, se me

perdoa a expressão, mas do indivíduo tal como ele se mostra sob o ângulo da

política: a este nível, o indivíduo é só indivíduo (e não “papel”), na medida

em que ele não coincide com o seu “papel” e se mostra assim arbitrário – um

arbitrário que a política pode e deve reconhecer, com a única condição de

não contradizer sua ocupação (os governos que se interessam pela vida

pessoal dos seus cidadãos me preocupam muito – eles deveriam se limitar a

criar as condições necessárias para essa vida). A moral do indivíduo não se

esgota na do cidadão: talvez não é ela mesma uma moral da decisão e da

ação, ou não o é exclusivamente.75

Mais uma vez é manifesto o degrau que nuança a orientação das filosofias de Weil e

Ricoeur. Portanto, longe de ser uma correção de rota, a postura ricoeuriana sobre o texto de

Weil é a leitura ou releitura refiguradora, aquela que busca a compreensão de si mesmo pela

compreensão do outro. Essa é razão pela qual sua confrontação com a Filosofia Política,

conduzida por uma análise prospectiva do mal e do poder, termina por reforçar em Ricoeur a

convicção de que esse livro ganha robustez (cf., L1, 57). A prova de força desse texto lhe

advém da constatação e confissão de sua aproximação com a filosofia weiliana, uma vez que

o pensamento é também conduzido, pela ação, à theoria (cf., L1, 58 e PP, 349). A confissão de

Ricoeur é emblemática, pois o situa no mesmo projeto filosófico que busca, através da ação, a

satisfação verdadeira no além da própria ação.

75

« Tout à fait d'accord si vous demandez que l'individu ne soit pas caractérisé par la seule violence; j'ajouterais

seulement qu'il s'agit ici, non de l'individu en sa totalité, dans toute sa rondeur, si vous me passez cette

expression, mais de l'individu tel q'il se montre sous l'angle de la politique: a ce niveau, l'individu n'est individu

(et non "rôle") que dans la mesure où il ne coïncide pas avec son "rôle" et se montre ainsi arbitraire – d'un

arbitraire que la politique peut et doit reconnaître, à la seule condition qu'il ne contredit pas à s'occuper (les

governements qui s'intéressent à la vie personnelle de leurs citoyens m'inquiètent beaucoup – ils devraient se

contenter de créer les conditions nécessaires d'une telle vie). La morale de l'individu ne s'épuise pas dans celle

du citoyen: peut-être n'est-elle même pas une morale du faire et de l'action, ou ne l'est-elle pas exclusivement. »

Éric Weil, 15 de outubro de 1957, carta a Paul Ricoeur.

150

Conclusão

La vraie éternité, qui n’est pas la durée infinie de ce qui ne dure pas, mais la

vue qui saisit le tout em son unité

Éric Weil

Com a apropriação do conceito operatório da retomada pela hermenêutica não é apenas um

procedimento que é herdado, mas um mesmo propósito face ao desafio de pensar, através da

filosofia, o diverso. Ora, por ser a retomada um conceito pertencente ao quadro geral da

Lógica da Filosofia o qual atua sobre a multiplicidade dos discursos, acreditamos que essa

herança implica também uma cumplicidade entre Éric Weil e Paul Ricoeur em relação a

consecução do projeto da filosofia. Todos os cruzamentos demonstrados nessa tese entre os

dois filósofos buscaram destacar essa dimensão. A Lógica da Filosofia toma como desígnio

verter todos os discursos em razão do sentido que se forma através de cada um deles. A

hermenêutica filosófica ricoeuriana segue abrindo caminho por entre as particularidades

discursivas procurando situar, em cada uma delas, o sentido que lhes constitui.

Nos debates públicos que em vida os dois filósofos travaram é reveladora e fecunda a

análise que empreendem contra o adversário comum: a violência. Se suas análises divergem é

somente enquanto nuance e mal-entendidos que elas se apresentam. Se não podemos

responder precisamente que o conceito de retomada é o objeto da dívida de Ricoeur para com

Weil, diremos, então, que esse conceito, ocupa, pelo menos, uma posição central no escopo da

hermenêutica filosófica de Ricoeur. Além do mais, o programa filosófico que ambos

procuram cumprir a partir dos anos 1950, ou mesmo em relação ao contexto de “resistência”

ao pensamento da moda que domina o panorama intelectual da França no mesmo período, não

são fatos passíveis de serem reduzidos à mera coincidência.

A Lógica da Filosofia é um texto que abriga o contínuo da linguagem fatiada pelas

interrupções discursivas. A hermenêutica filosófica ricoeuriana é uma militância na e pela

diversidade, enquanto que a Lógica da Filosofia não permite que a unidade se encerre em si

mesma, sem deixar-se atravessar pela diversidade. O exame que ambos realizam sobre a

relação filosofia e história, história da filosofia, é emblemático a esse respeito, pois acreditam

que somente na linha da recomposição da história pelo discurso filosófico é que a primeira se

torna compreensível. Observamos então, que se trata de uma troca: uma que olha o discurso

filosófico seria completamente vazio de conteúdo (matéria) sem as ações que se desenrolam

na história; a outra seria totalmente ininteligível sem que fosse possível ser apreendida numa

151

estrutura (formal) de sentido.

Se o discurso filosófico persegue o sentido na história humana, é porque a filosofia, desde

sempre, se encontra interpelada por aquilo que lhe precede e lhe constitui. Ela sabe que é

somente pelas mediações no mundo da cultura – dos tempos mais remotos ao entretempo

fatiado por todos os discursos – que é capaz de compreender sobre si mesma. A poesia, sob as

vestes dos mitos, recobre toda essa dimensão do humano e se oferece como fonte primária de

sentido da história humana.

Para Ricoeur, o símbolo é a unidade produtora de sentidos múltiplos da jornada

comunitária empreendida pelo homem. É ele que conduz ao fundo histórico comum da

humanidade no qual se depositam as raízes do próprio mal, portanto, da violência. Violência

que advém à reflexão na sua condição de irredutível diante do discurso filosófico. Assim,

enquanto experiência humana impenetrável e inextirpável, a violência se impõe como o maior

desafio para a filosofia uma vez que tudo que ela produz é desorientação, insensatez, absurdo.

Nem por isso, a filosofia se dará por vencida, exigindo-se, em proporcionalidade simétrica,

encontrar estratégias para confrontar todo o poderio desse adversário. A filosofia então

percebe que a violência está profundamente imbricada na linguagem – pois expressão humana

por excelência –, sabe que a violência divide com ela o mesmo território e que, portanto, é

capaz de ser compreendida.

Na cultura de nossa época, os rastros da violência se fazem presente com grande fervor sob a

face do niilismo que se avoluma incessante e absolutamente sobre o todo da realidade histórica.

Há todo um panorama – desregulamentação da economia, despolitização da política, imperativo

da técnica, etc. – que parece obstar qualquer resposta satisfatória na perspectiva utópica, porque

antes, turva os discursos como agentes capazes de formular qualquer pergunta sobre o sentido

da história humana. Para Weil, os atuais caminhos da mundialização efetiva da sociedade

decidirão o futuro da humanidade contemporânea, nele nos deparamos diante de uma

bifurcação: podemos trilhar pela orientação razoável no decurso dessa história em que pese

todos os percalços; mas podemos também engendrar pela pura técnica, onde a violência se

tornaria o único remédio para o tédio de uma existência sem sentido.

1

Nesse ponto extremo, o triunfo da cultura de consumo, universalmente

idêntica e integralmente anônima, representaria o grau zero da cultura de

criação; isso seria o ceticismo em escala planetária, o niilismo absoluto no

1 Cf. J. M. Buée, Éric Weil penseur de l’unité plurielle, art. cit. p. 391.

152

triunfo do bem-estar. É preciso reconhecer que tal perigo é pelo menos igual

e talvez mais provável que o da destruição atômica (HV, 285).

Nessa perspectiva, resta à filosofia, que se compreende pela busca do sentido, indagar

sobre o sentido daquilo que não oferece sentido algum: a violência que em si mesma é

absurdo. Por um lado, o discurso filosófico sabe que a violência é irredutível à razão; por

outro lado, nenhuma possibilidade de sentido verdadeiro será legítima se evitar a

compreensão desse seu outro, isto é, se se abdicar confrontar esse inimigo com a única arma

da qual é possível dispor: a compreensão analítica da realidade.

Ora, por ser a experiência do mal impossível de ser totalizada, ela é essencialmente

dissipadora. A total adesão ao império da fragmentação não conduz com a tarefa fundante da

própria filosofia que exige dela a compreensão: tomar junto, numa unidade de sentido, tudo o

que se dissipa. É em torno dessa articulação uno-múltiplo que as filosofias de Weil e Ricoeur

talvez apresentam seu aspecto mais curioso. Weil e Ricoeur, conforme sublinhamos desde o

começo desta tese, são partícipes de um mesmo projeto de pensamento, cooperam, a partir de

uma tomada de posição pela filosofia, no domínio da compreensão do diferente na perspectiva

busca da unidade do múltiplo. Eles dois são filósofos percorreram vias distintas no tratamento

de um mesmo propósito no âmbito da filosofia.

Eis o momento em que talvez sejamos intimados a fazer um deslocamento do acento da

conjunção para a disjunção. Notificação justificada sobre o que, frequentemente, se faz

quando a reflexão filosófica é produzida perante as sendas abertas da continuidade. O ímpeto

do tempo do império da diferença decreta que toda comparação entre filosofias deve,

necessariamente, apresentar caracteres dessemelhantes. Uma vez que, o inscrito na direção da

continuidade é acontecimento inválido, aos olhos daqueles que se acreditam no comando do

desenvolvimento epistemológico contemporâneo.

Depois de ter percorrido as reflexões acerca do cruzamento entre Lógica da Filosofia e

hermenêutica filosófica, e apontado repetidamente suas semelhanças, devemos atender as

expectativas acima em mediação a elas para não os desapontar. Contudo, o comparativo

proposto nesta tese recorreu a outras reflexões além de Weil e Ricoeur para, em colaboração

ou em confronto com elas, melhor ilustrar e evidenciar a partilha de projeto de pensamento

residentes em suas filosofias.

Ora, se realmente temos que manifestar suas diferenças, quer dizer, explicitar em que se

afastam os dois filósofos, haveremos de afirmar que ela acontece no campo da estratégia.

Característica que, de alguma forma, acreditamos já ter sugerido por vezes ao longo desta

153

tese. Estrategicamente falando, Ricoeur busca aproximação maior com o acidental, por se

situar mais próximo da singularidade, com o fatídico, o errático, etc. sem que com isso perca a

referência capaz de articular toda a dispersão em proveito de uma visão que tende para o

universal. Não é por acaso que Ricoeur, apesar de toda a variedade temática e diversidade de

pesquisa de sua obra atingindo áreas muito distintas do conhecimento, como atestam os mais

diversos intérpretes, jamais deixou de buscar uma orientação geral para o conjunto do seu

trabalho informando seus leitores quanto ao itinerário, ainda que errante, norteado por uma

theoria.

Assim, muito mais afeito à singularidade, Ricoeur pode ser compreendido como o filosofo

que pensa o uno no múltiplo. Sua conduta se pauta por uma espécie de orientação em que o

encontro com o singular não apaga a perspectiva que se permite pensar na direção de uma

visão do todo. Enquanto essa é a conduta de Ricoeur, Weil organiza o pensamento numa

perspectiva global, quer dizer, ele envolve toda a pluralidade numa unidade. Weil pensa o

múltiplo no uno. Busca realizar uma compreensão da multiplicidade a partir de uma visão

global na qual a multiplicidade não é reduzida à totalidade, mas tampouco abdica pensar o

todo cedendo à atestação das diversas falas, dos múltiplos discursos que constituem esse todo.

Ao contrário, o todo se compreende nessa multiplicidade e é nessa multiplicidade que o todo

deve se encontrar e se pensado. Como diz Buée, Éric Weil é o “pensador da unidade plural”.2

Estas seriam, por assim dizer, as duas grandes estratégias que distinguem as abordagens de

um e outro filósofo no tratamento da realidade histórica. Em síntese: a aposta de Weil é o

pensar o múltiplo no Uno e a aposta de Ricoeur é o pensar o Uno no múltiplo.

A posição de Weil é de que “o Uno só é no tempo e no discurso e no múltiplo, o eterno só

se mostra hoje e nada é se não se mostra. É igualmente verdadeiro... que o múltiplo só aparece

visto do Uno, que o tempo só se revela quando olhado do ponto de vista do presente eterno”

(LF, 104). A posição de Ricoeur não parece diferir: “Contra esta fragmentação sem fim eu

ponho a hipótese da existência de uma unidade funcional entre os múltiplos modos e gêneros

narrativos... o caráter comum da experiência humana que é marcado, articulado, clarificado

pelo ato de narrar em todas as suas formas, é o seu caráter temporal” (TA, 24). Depois de

Hegel ambos se encontram em Kant: “não é o tempo que passa, mas nele passa a existência

do mutável”.3

A diferença entre um e outro tende muito mais para uma espécie de modulação na maneira

2 Idem p. 389.

3 CRP A 144, B 183

154

de abordar os problemas da filosofia. Esse traço do diálogo entre Weil e Ricoeur, proposto ao

longo de toda essa tese, pode ser verificado no debate na Société Française de Philosophie o

qual deixamos em suspenso, deliberadamente, até o momento visando salientar essa

peculiaridade a qual temos nos referido desde o início. Nesse encontro acentuamos que o

percebido a princípio como diferença entre os dois autores é, reduzido pelo próprio Weil a

apenas mal-entendido a serem dissipados, uma vez que Ricoeur, segundo Weil, repete,

implicitamente, nos seus questionamentos a sua compreensão (cf. PR I, 47, 48).

Após Éric Weil fazer a exposição de sua filosofia – especificamente de sua Lógica da

Filosofia, com a comunicação Philosophie et realité –, Ricoeur o interpela solicitando-lhe um

esclarecimento quanto ao que tomou por oscilação entre os extremos presentes no discurso

filosófico: o necessário, como aquilo que se espera quando todo conteúdo do pensamento se

desenvolveu plenamente; e o possível, que comportaria o retorno do ato do filosofar

propriamente, sempre por se realizar. Ricoeur questiona se essa oscilação não exigiria uma

modalidade intermediária que se projetaria, em duplicata, tanto para o lado dos conteúdos (o

necessário) quanto para o lado do ato do filosofar (o possível), isto é, o que nomeia de

provável-plausível. Explica que, nesse nível, se colocado do ponto de vista dos conteúdos,

apenas alguns discursos (míticos, não míticos, científicos), já iniciados por outros, podem ser

retomados em coerência. Sendo assim, a retomada ocorreria tentando organizar “certa massa

imperfeita de discurso”, que não é nem necessário nem possível, mas localizado entre os dois,

isto é, no provável. Porém, no outro nível, situado entre o seu ato singular e um outro ato de

filosofar, é o plausível o tênue elo da comunicação entre os interlocutores. Por estar o sujeito

do discurso sempre condicionado, é o provável (do lado dos conteúdos) ou o plausível (do

lado do ato) que se coloca entre o necessário e o possível. Para Ricoeur, este seria o elemento

de ligação dos discursos que se oferecem à conversação (cf. PR I, 46).

A essa interpelação Éric Weil responde com a observação de que talvez não se encontre no

mesmo nível que seu inquiridor, pois, diferentemente do hermeneuta, o lógico da filosofia,

não se volta prioritariamente para o necessário e o possível, tampouco para o que se situa

entre eles, o plausível, mas para o que está abaixo destas camadas, o real. O que interessa a

Weil é o real do discurso do homem, quer dizer, se o homem possui realmente um discurso.

Importa, para ele, é que possibilidade e necessidade são fundadas na realidade. Weil diz ser

esse o seu brado contra o construtivismo em filosofia que, como bem sabemos, com ele, não

ultrapassou a primeira Crítica kantiana ao fazer do real um objeto do constructum à maneira

da teoria do conhecimento. Ora, para Weil, reconhecer a necessidade dedutiva (a dedução das

155

pressuposições formalmente necessárias de um dado discurso) não significa a reconstrução

real desse discurso hipoteticamente necessário – pressuposição na qual reside o erro

fundamental de boa parte da metafísica tradicional (cf. PR I, 47).

Ricoeur acata que o real do discurso efetivamente dado vem em primeiro. Contudo, indaga

que um discurso, para ser compreendido, deve ser aceito pela sua plausibilidade. A coerência,

insiste o hermeneuta, exige o plausível como uma espécie de chave de acesso capaz de

adentrar no discurso a partir de algum ponto e, portanto, se faz participante do debate. Do

contrário, os discursos tornam-se completamente estranhos e, desse modo, bloqueados pelas

limitações culturais na retomada do que já avançou na linguagem. Weil, lembrando (não sem

ressalvas) Jaspers, assinala que até mesmo o discurso do louco é accessível, já que

compreender ou não um tal discurso é responsabilidade nossa, não do louco. Recorda com

isso – uma ideia já mencionada nessa tese oriunda do próprio Ricoeur –, de que há duas

tentações em filosofia: a esquizofrenia, na qual o pensamento se fende, a um só tempo, em

várias linhas divergentes; e a monomania, em que o caráter é o da obsessão por uma e única

ideia. Para Weil, como para Ricoeur (conforme já observamos anteriormente), o exercício da

filosofia é equilibrar-se entre essas tentações. Conquanto, no caso de Weil, a decisão é

orientada para num mesmo movimento, reconhecer a existência de todo discurso, não apenas

os discursos plausíveis, e ainda compreendê-los numa unidade estrutural (cf. PR I, 47-48).

Ricoeur reitera que nem a pura necessidade nem a possibilidade – uma sempre fora de

alcance e a outra completamente inacessível –, por não constituir a ninguém, também não

constituem a filosofia. Esta por sua vez é somente existente na qualidade de obras finitas do

espírito, obras literárias com começo e fim. Com efeito, Weil observa que a própria sentença

de Ricoeur assegura que essas obras pertencem à realidade, elas existem. Nesse sentido,

relevante não é se são ou não plausíveis, mas o fato de existirem. Ora, só se pode responder ao

dito (a resposta pode não agradar e se pode recorrer ao ineditismo acreditando ingenuamente

que o mundo não é suficientemente velho para algum desmentido), pois o plausível é de outra

ordem, quer dizer, está voltado para a adesão pessoal. É inegável o poder do juízo de valor em

relação ao que foi dito e sob o qual se desenha a adesão. Independente de poder acessar um

dado discurso, esse discurso permanecerá discurso, ou seja, é algo dito e, portanto, passível de

resposta. Mas em se tratando de reflexão filosófica, e não da vida pessoal de quem quer que

seja, esta reflexão lida com o real, e é uma questão muito fácil em relação àquela da

plausibilidade, da verdade, da credibilidade, da necessidade hipotético-dedutiva de tal

discurso (cf. PR I, 48).

156

Ricoeur, como de costume, mais afeito às transições (multiplicidade), enquanto Weil, sem

ignorar as transições, se volta para o que confere unidade e constitui o fundamento das

transições. Para Ricoeur, há um aspecto vinculante em toda multiplicidade; para Weil, uma

unidade estruturante da multiplicidade. A diferença entre os filósofos – quer na mesa redonda

em 1957, quer aqui neste debate em 1963, ou mesmo em 1967, bem como em 1982 – se situa

ao plano da nuance: seja desnivelando “Estado e governo”; seja dissipando mal-entendidos na

relação necessidade-possibilidade-realidade; quer atribuindo um caráter gradual entre

“linguagem e discurso”; quer em relação à compreensão da retomada de forma menos

extrínseca e regressiva em sua função interpretativa.4

A presente tese, tratando da retomada como conceito operatório tanto na filosofia de Éric

Weil quanto na hermenêutica de Paul Ricoeur, procurou, igualmente aditivar a reflexão acerca

do projeto da filosofia como uma espécie de outra face. Tentamos inscrever nessa primeira

reflexão uma segunda camada para a qual não está interditado o pensamento que continua

numa dialética do mesmo e do outro. Dito de outro modo, um sentido retomado para um novo

projeto que, no entanto, continua, de alguma forma pela retomada do antigo. Talvez não tenha

sido possível visualizar essa intenção até o presente momento sem que seja fornecida a uma

espécie de senha inserida em surdina. Semelhante uma marca d'água na qual uma imagem é

formada por diferenças na espessura de uma folha de papel, podendo ser vista apenas quando

o papel é colocado contra a luz, sem qualquer interferência no já escrito.

Através dessa dupla configuração da tese, retomada-projeto, acreditamos poder apontar

melhor as razões do pensamento conduzido pela possibilidade do sentido. Estudar filosofia é

hoje, mais do que qualquer outra época – pelo acúmulo de saberes que se querem monológicos

e do barulho produzido por todas as vozes –, buscar clareza dos projetos de pensamento que se

defrontam em nosso mundo e a necessidade de tomar posição diante desse quadro. É assim que

as obras de Weil e Ricoeur, como reflexões que se impõem a tarefa de compreender o sentido da

história humana, confrontam a multiplicidade. Em ambos, a leitura da história tem no conflito

entre as filosofias sua marca indelével. Neles encontramos essa capacidade de refletir

filosoficamente sobre a filosofia, numa lógica ou numa hermenêutica, considerando os vários

discursos presentes, irredutíveis, mas envolvendo-os pelo viés da comunicação.

Ambas as filosofias se caracterizam, sobretudo, por serem filosofias dialéticas e, nesse

sentido, não se limitam as contradições, embora tenham nelas sua raiz. E como qualquer

4 P. Ricoeur, art. cit., p. 414.

157

outra filosofia dialética a contradição não se esgota em si mesma, mas precisa ser

compreendida em seu movimento. Importa, então, é voltar-se para os discursos e

compreendê-los como unidade de sentido, é crucial atravessar suas incoerências conflitivas

em nome da coerência postulada e reivindicada por cada um desses discursos. Nessa

perspectiva, a tarefa da filosofia é superar essa violência pelo arbítrio, recuperando o sentido

da discussão propriamente que nasce antes de cada filosofo particular e de cada filosofia

específica.

O tratamento dispensado a Hegel visou considerar também esse aspecto ao demonstrar

como os dois pensadores apreciam (nos dois sentidos da expressão) o projeto filosófico

hegeliano. Além do mais, foi igualmente a oportunidade para confrontar uma questão que nos

foi apresentada desde o início desta pesquisa, a qual postulava uma divergência entre Weil e

Ricoeur em relação à aproximação ao filósofo alemão. O autor da Lógica da Filosofia estaria

mais próximo de Hegel enquanto o hermeneuta dele se afastava. Essa hipótese – que nos

parece bastante centrada numa primeira leitura do “Renunciar a Hegel” em Tempo e

Narrativa – foi considerada de maneira assaz. Entretanto, os estudos nos permitiram

compreender noutra direção. Weil demonstra a aporia de fundo da filosofia hegeliana,

inacabamento do seu projeto mediante a pretensão, e não realização, do saber absoluto de

acordo com a prova pela circularidade exigência estabelecida pelo próprio Hegel quanto ao

pensamento sistemático. A consequência dessa compreensão é a do Absoluto não figurar, na

Lógica da Filosofia, como última categoria e ademais, a de ser acareada com as categorias da

revolta (Obra, Finito, Ação). Weil, digamos assim, se resolve com Hegel na passagem pelo

seu projeto. Ricoeur atesta a mesma pretensão e trata de impugná-la tão logo ela se arvore em

totalização. Hegel é, assim, firmemente revisitado por Ricoeur que encontra nessa filosofia

eixos diretores imprescindíveis para o tratamento das questões com as quais sua própria

reflexão está envolvida. A hermenêutica filosófica ricoeuriana permanece numa constante

tensão com o filósofo alemão.

A filosofia sendo articulada pelo projeto do sentido contra a violência não se conclui, pois

a violência, enquanto irredutível à razão, permanece o desafio mais urgente para a realização

desse projeto. Elucidar a relação entre filosofia e violência é o que torna possível superar as

dificuldades postas pelos ceticismos epistemológicos e relativismos ético-político. Por ser

inconclusa a filosofia sempre continua, e continua tanto a partir da interrupção do discurso

filosófico quanto da restituição do sentido que se faz presente em todo e cada discurso.

Vimos que o sentido é apenas uma categoria formal para a qual os discursos estão voltados

158

(conscientes ou não) e dela recebem sua orientação interna de coerência. Não sendo conceito

preenchido de uma vez por todas, o sentido é presença que não se esgota num conteúdo

definido. Não existe sentido pré-determinado porque a filosofia se pauta pelo projeto que é o

próprio homem e como tal é o pro-jetar-se da finitude aberta à totalidade da história. O

projeto da filosofia é possibilidade para quem fez a escolha pela razão, quem tomou posição

pelo sentido e quem é, assim, capaz de pensar a pluralidade dos discursos e suas respectivas

respostas a esse mundo.

Abertura impositiva da dissimetria, na qual todas as respostas são equivalentes (e,

igualmente, equidistantes) cuja significação não ultrapassa a desvalorização mútua em que

caem todas as respostas e, portanto, da destruição da possibilidade da verdade mediante a

prevalência da interdição da conduta diligente do diálogo, não é abertura, é fechamento. O

posicionamento das filosofias de Weil e Ricoeur difere completamente desse quadro sem, no

entanto, negligenciá-lo. Weil porque vê nas épocas de crise o predomínio amplo da

ambiguidade de perguntas e respostas, o que põe em xeque a própria tradição filosófica e todo

sentido concreto da vida, mas que como tal são épocas propícias para filosofia, pois é nesse

ambiente que a lógica se faz necessária e compreensível (cf. LF, 608). Ricoeur por

compreender que a história humana é crivada por acontecimentos que, na condição de nós,

são centro organizadores de significação (cf. HV, 42-43).

Ao atuar na fragmentação, Ricoeur se permite amplos desvios na própria pesquisa que

desenvolve. No entanto recompõe sua obra mediante uma retomada do seu trabalho que,

numa re-leitura de si mesmo, redescobre vestígios que antes, se não estavam completamente

ignorados, habitaram apenas lateralmente sua reflexão. Leitura de si em profunda sintonia

com a leitura procedida junto a todos os demais autores com que a hermenêutica filosófica se

ocupa, pois leitura que implica vencer uma distância pela apropriação cujo resultado dessa

confrontação com o texto é a possibilidade de uma nova maneira de ser e existir do próprio

leitor.

A leitura ou “aporética leitura” da Lógica da Filosofia pela hermenêutica filosófica não

está isenta dos mesmos efeitos, pois aditivada também ela pela apropriação. Sendo

duplamente confrontado – pelo texto de Weil e pela interpretação de Labarrière – Ricoeur

promove a interpretação que, sem ferir de morte a Lógica da Filosofia, lhe restitui à palavra

servindo, igualmente, à sua hermenêutica: o embate que ali ocorre é o do projeto da

continuidade do discurso pelo sentido, malgrado toda ruptura incontornável. A discussão em

relação aos mestres da suspeita não se presta senão à mesma finalidade, uma vez que no plano

159

propriamente da história, Ricoeur está constantemente envolvido com a problemática: como

conferir uma memória comum da humanidade em face a multiplicidade de sua experiência

histórica?

O hermeneuta está convicto de que a memória continua nas grandes obras da cultura que

funcionam como profundas marcações diretoras da história humana. No território político são

as instituições que, salvaguardando toda possibilidade de se fazer frente ao absurdo da

violência, cumprem função similar. Aqui a convergência entre Weil e Ricoeur salta aos olhos,

pois ambos, sem se descuidarem do papel que joga a violência imiscuída nas instituições,

fazem a aposta de que esse primeiro acordo contra a violência entre os homens é a via capaz

de conduzir a história humana na perspectiva da satisfação de todos e cada um.

160

Bibliografia

De Eric Weil;

La Philosophie de Pietro Pomponazzi; Pic de la Mirandole et la Critique de l’Astrologie,

Paris, Vrin, 1986.

Logique de la philosophie. 2 ed. Paris: Vrin, 1996. [Ed. Brasileira: Lógica da filosofia.

Tradução de Lara Malimpenso e revisão técnica de Marcelo Perine. São Paulo: É Realizações,

2011.]

Hegel et l’Etat. 2 ed. Paris : Vrin, 1966.[Ed. Brasileira: Hegel e o Estado. Tradução de e

revisão técnica de Marcelo Perine. São Paulo: É Realizações, 2010.]

Philosophie Politique. Paris, Vrin, 1991. [Ed. Brasileira: Filosofia política. Tradução de

Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1990.]

Philosphie Morale. Paris, Vrin, 1998. [Ed. Brasileira: Filosofia moral. Tradução de Marcelo

Perine. São Paulo: É Realizações, 2011.]

Problèmes Kantiens, 2 ed. Paris, Vrin, 1982. [Ed. Brasileira : Problemas kantianos. Tradução

de e revisão técnica de Marcelo Perine. São Paulo: É Realizações, 2011.]

Essais et Conferénces, tome I, Philosophie. Paris : Vrin, 1991.

« L’Antropologie d’Aristote » (1946), « La place de la Logique dans la pensée

aristotélicienne » (1951), « Quelques remarques sur le sens et l’intetion de la Métaphysique

aristotélicienne » (1967), « Sur le matérialisme des stoiciens » (1964), « Hegel » (1956), « La

morale de Hegel » (1955), « La morale de l’individu et la politique » (1965), « Du droit

naturel » (1968), « Philosophie et histoire » (1953), « De l’intérêt que l’on prend à

l’histoire » (1935), « Pensée dialectique et politique » (1953), « La science et la civilization

moderne ou le sens de l’insensé » (1965), « De la réalité » (1964).

Essais et Conferénce, tome II, Politique. Paris : Vrin, 1991.

« J. J. Rousseau et sa politique » (1952), « La sécularisation de l’action et de la pensée

politique à l’époque moderne » (1962), « Masses et individus historiques » (1957),

« Christianisme et politique » (1953), « Le conflit entre violence et droit dans les téories

politiques selon Meinecke » (1961), « De la loi fundamentale » (1957), « Machiavel

aujourd’hui » (1951), « Les origenes du nationalisme » (1947), « le problème de l’État

multinatinal : l ‘Autriche-Hungrie » (1952), « Raison, morale et politique » (1948), « Sur le

sens du mot ‘Liberté’ » (1948), « Guerre et politique selon Clausewitz » (1955), « Philosophie

politique, Théorie politique » (1961), « Propagande, verité et mass media » (1953),

« Responsabilité politique » (1957), « Tradition et traditionalisme » (1953), « L’État et la

violence » (1962).

Philosophie et Réalité I, Paris, Beauchesne, 1982.

« Souci pour la philosophie, souci de la philosophie » (1968), « Philosophie et réalité »

(1963), De la dialectique objective » (1970), Bons sens ou philosophie » (1955), « Hegel et

nous » (1969), « La dialectique hégélienne » (1973), « Hegel et le concept de la révolution »

(1976), La Philosophie du Droit et la philosophie de l’histoire hégélienne » (1979), « La fin

de l’histoire » (1970), « Valeur et dignité du récit historiografique » (1976), « Qu’est-ce

qu’une ‘percée’ en histoire ? » (1975), Le particulier et l’universel en polítique » (1963),

« Politique et morale » (1962), « Faudra-t-il de nouveau parler de morale ? » (1976), « Vertu

du dialogue » (1952), « L’éducation en tant que problème de notre temps » (1957), « Les

161

études humanistes, leur objet, leurs méthodes et leurs sens » (1970), « Pierre Bayle – 1647-

1700 » (1949), « De nature », « Reflexions sur la liberté, le contentement et l’organization »

(1953).

Philosophie et Réalité II, Paris, Beauchesne, 2003.

I. Conférences « La culture », « Les fondements de la philosophie » (1962), « Science, magie et

philosophie » (1952), « De la réalité et de la nécessité » (1963), « Historicité et scientificité de

la philosophie » (1957), « Les Lumières comme trait essential de la pensée européenne »

(1965), « Philosophie et politique » (1952), « Politique et morale » (1966), « Le concept de

droit naturel » (1957), Contrainte sociale et liberté de l’individu » (1957), « Kant et la

Révolution en France » (1974), « Rousseau et Hegel » (1965); II. Émissions radiophoniques

« Héraclite » (1954), « Les acquisitions d’Aristote » (1954), « L’évolution de idées pendant la

Réforme allemande » (1953), « Hobbes », « L’esprit nouveau de la Régence » (1954), « Le

mouvement philosohique en France sous Louis XV » (1954), « Kant » (1954), « La philosophie

allemande et le romantisme » (1954), « Clemens Bretano et l’Histoire du brave Gaspard et de la

belle Annette » (1954), « Heinrich von Kleist, Michel Kohlhaas » (1954 ou 1955),

« Schopenhauer » (1954), « Nietzsche et la philosophie » (1954), « Thomas Mann, La Mort à

Venise » (1955), « Hegel » (1931) ; III. Documents « Idées pour la Logique de la philosophie »

(1938-1939), « Soutenance de thèse : Logique de la philosophie, Hegel et l’État », « Une lettre

de Maurice Merleau-Ponty à Éric Weil » (1948 ou 1949); IV. « Le cas Heidegger » (1947).

Essais sur la philosophie, la démocratie et l’éducation, (Cahiers Eric Weil IV) Lille : Presses

universitaires de Lille 3, 1993.

« Mythe et foi » (1954), « Complexes français » (1955), « La pensée philosophieque et

politique en Europe» (1964), « La philosophie française et l’existentialisme » (1952),

« Religion et politique » (1955), «La démocratie dans un monde de tensions» (1951), « L’idée

d’éducation dans l’enseignement américain » (1946), « Le rôle des Universités : les

humanités et l’enseignement supérieur de masse » (1973), « Plaidoyer pour les humanités »

(1973), « Interventions lors d’un colloque consacré aux langages des études humanistes »

(1969).

Essais sur la nature, l’histoire et la politique, Lille : Presses Universitaires du Septentrion,

1999.

Artigos dispersos

«Marx et la liberté », Critique II, nº 8-9, janv.-fév. 1944, p. 68-75.

«A propos du materialisme dialectique »,Critique I, nº 1 juin 1946, p. 83-90.

Politique et bonne volanté »,Critique I,nº 2, juil. 1946.

« Hegel et son interprétation communiste »,Critique VI,nº 41,oct. 1950.

« French Philosophy Today. The first of two talks by E. W », The Listener, 1952.

« The strenght and weakness of Existentialism. The second of two talks by E.

W » The Listener.1952.

« Préface » á Gerhard Kruger, Critique et Morale chez Kant, Paris , Beauchesne.

1961.

« Philosophie et réalité », Bulletin de la Société française de Philosophia,t LVI,

162

1963

« La philosophie est-elle scientifique? »,Archives de Philosophie, 33, 1970.

« Violence et langage », Recherches et Débats,1967, nº 59 ; repris in Cahiers

Eric Weil I, Lile, PUL, 1987.

« Morale » (1971), Encyclopaedia Universalis, XIII.

« Pratique et praxis », (1972), Encyclopaedia Universalis XIII.

« Raison », (1972), Encyclopaedia Universalis, XIII.

« Frauda-t-il nouveau parler de morale », in Savoir, faire, espérer: les limites

de la raison, Bruxelles, Publications des Facultés Universitaires Saint-Louis,

1976.

« L' avenir de la philoshophie », in Cahiers Eric Weil I, Lille,PUL, 1987

Traduções avulsas

A educação enquanto problema do nosso tempo in. Quatro textos excêntricos: Hannah

Arendt, Eric Weil, Bertrand Russell, Ortega y Gasset. Seleção, prefácio e tradução Olga

Pombo, Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p.

Sobre Eric Weil

Números especiais

Argumentos Revista de Filosofia “Eric Weil: lógica, moral e política”, ano 6, n. 11-

Fortaleza, jan/jun. 2014.

Cultura – Revista de história e teoria das ideias “A retomada e as retomadas na filosofia de

Eric Weil”, Lisboa, (II Série) vol. 31 – 2013.

Critique n° 636 : Weil, Kojève, Bataille Revue Critique, Minuit, mai. 2000.

KIRSCHER, G ; QUILLIEN, J. (Org). Cahiers Eric Weil V, « Eric Weil : philosophie e

sagesse », Collection UL 3, Lille, Presses Univ. Septentrion, 1996.

KIRSCHER, G ; QUILLIEN, J. (Org). Cahiers Eric Weil III, « Interprétations de Kant »,

Colletion UL 3, Presses universitaires de Lille, 1993.

QUILLIEN, Jean. (Org.). Cahiers Eric Weil II « Eric Weil et la pensée antique », Lille,

Presses Univ. Septentrion, 1989.

Síntese Nova Fase “Homenagem a Éric Weil”, Belo Horizonte, n. 46 vol. XVII, mai./ago.,

1989.

QUILLIEN, Jean. (Org.). Cahiers Eric Weil I. « Eric Weil : l’avenir de la philosophie. Violence

et langage. Huit études sur Eric Weil ». Lille, Presses universitaires de Lille, 1987.

KIRSCHER, G ; QUILLIEN, J. (Org). Sept études sur Éric Weil, Lille, Université de Lille 3,

Diffusion PUL, 1982.

Annali della Scuola Normale Superiore de Pisa (serie III), 11, v. XI, 4, 1981, p. 1139-1287.

CIAFRÉ, G; MORRESI, R; SCHIROLLO, L. TABONI, P. F. (Org.). Filosofia e Violenza.

163

Introduzione a Éric Weil, Galantina, Congedo Editore, 1978.

Archives de Philosophie, 33(1970):361-622 - Hommage à Éric Weil.

Livros

Actualité d'Eric Weil. Actes du colloque International. Chantilly, 21-22 mai 1982, éd par le

Centre Éric Weil, UER de Philosophie de Lille III, Paris: Beauchesne, 1984.

BERNARDO, Luís, Manuel A. V. Linguagem e discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a

filosofia de Éric Weil. Lisboa: INCM, 2003.

COSTESKI, Evanildo. Atitude, violência e Estado Mundial Democrático: sobre a filosofia

de Eric Weil. São Leopoldo: Unisinos; Forteleza: UFC, 2009.

CAMARGO, Sergio Siqueira. Filosofia e política em Éric Weil: um estudo sobre a ideia de

cidadania na filosofia política de Éric Weil. São Paulo: Loyola, 2014.

CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Tradução de Estela Abreu dos Santos e Claudio

Santoro. Campinas: Papirus, 1991.

__________ Le politique et sa logique dans l’oeuvre d’Eric Weil. Paris : Ed. Kimé, 1993.

__________ Éric Weil (1904-1977) ou la question du sens. Paris : Ellipses, 1998

__________ Weil. (Figures do Savoir), Paris : Les Belles Lettres, 1999.

GANTY, Etienne. Penser la modernité: essais sur Heidegger, Habermas et Eric Weil.

Namur : Presses Universitaires de Namur, 1997.

KIRSCHER, Gilbert. La philosophie d’Eric Weil : systematicité et ouverture. Paris : PUF,

1990.

__________Figures de la violence et de la modernité : essais sur la philosophie d’Eric Weil.

Lille : PUL, 1992.

__________Eric Weil ou La raison de la philosophie. Paris : Presses Universitaires du

Septentrion, 1999.

PERINE, Marcelo. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. 2 ed.

rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2013. [Ed. francesa: Philosophie et Violence: sens et

intention de la philosophie de d’Eric Weil. Traduit de Jean-Michel Buée. Paris : Beauchesne,

1991].

__________ Eric Weil e a compreensão do nosso tempo: ética, política, filosofia. São Paulo:

Loyola, 2004.

SAVADOGO, Mahamadé. Eric Weil et l'achèvement de la philosophie. Namur: Presses

Universitaires de Namur, 2003.

SOARES, Marly. O filósofo e o político segundo Eric Weil. São Paulo: Loyola, 1998.

Teses/Dissertações em língua portuguesa

ALVES, Maria Gabriela Feio Bacelar. Violência e educação: da razão filosófica à razão

pedagógica. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto,

1999.

ASSIS, Aparecido de. Educação e moral na filosofia de Eric Weil (Doutorado em Filosofia).

São Paulo: PUC/SP, 2011.

164

SOARES, Daniel Soares. O mal radical como violência em Eric Weil. (Mestrado em

Filosofia). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.

BERNARDO, Luís Manuel A. V. A filosofia moral de Eric Weil. 1990. 605 f. Tese

(Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova,

Lisboa, 1990.

BRANCO, Judikael Castelo. Violência e ação política em Eric Weil. (Mestrado em

Filosofia). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011.

CAMARGO, Sergio de Siqueira. Educação e cidadania na filosofia política de Eric Weil.

Mestrado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000.

LINS JR, Daniel da Fonseca. A categoria da Ação em Eric Weil. (Mestrado em Filosofia).

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006.

MARQUES, José Eronaldo. O agir razoável segundo Éric Weil. (Mestrado em Filosofia).

Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2012.

SILVA NETO, Antonio Gonçalves da. A ação política segundo Éric Weil. (Mestrado em

Filosofia). Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1998.

UCHÔA, Marcela da Silva. Educação e instrução em Eric Weil (Mestrado em Filosofia).

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2013.

VALDERIO, Francisco. Dialética do Estado: ação política na filosofia de Eric Weil.

(Mestrado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.

VALE, Renato Silva do. A ação no Estado em Éric Weil. (Mestrado em Filosofia).

Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2012.

Artigos avulsos em língua portuguesa

BERNARDO, Luís Manuel A. V. Inteligência, personalidade e obra: Eric Weil, leitor de

Nietzsche in MONTEIRO, António Enes (Org.). Reencontro com Nietzsche no centenário da

sua morte (1900-2000). Porto: Granito Editores e Livreiros, 2001. p. 37-51.

__________ O problema da experiência na Lógica da Filosofia de Eric Weil, Lisboa, Quid -

Revista de Filosofia, Cotovia, 2000.

__________Presença de Santo Agostinho na Logique de la Philosophie de Eric Weil, Actas do

Congresso Internacional "Confissões" de Santo Agostinho, 1600 Anos depois. Presença e

Atualidade, Lisboa, Universidade Católica, 2002.

__________ Filosofia em ação: construção e transmissão do conhecimento filosófico. Revista

da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, n. 14, p. 153-161, 2001.

__________ Liberdade ou satisfação: a crítica de Eric Weil ao Existencialismo in Actas do

Colóquio Internacional Jean Paul Sartre: uma Cultura da Alteridade, Filosofia e Literatura,

Lisboa: Universidade Nova, 2005. p. 277-290.

COSTESKI, Evanildo. O estado mundial em Eric Weil. Revista Temas e Matizes, n. 06,

Paraná, 2004, p. 05-10.

KIRSCHER, Gilbert. A abertura do discurso filosófico, ensaio sobre a Lógica da Filosofia de

Eric Weil. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte. v , n. 41. p. 41-54, 1987.

PERINE, Marcelo. Eric Weil entre Hegel e Kant e além deles. Síntese Revista de Filosofia,

Belo Horizonte, v. 33, n. 107, 2006, p. 315-326.

165

__________ A filosofia de Eric Weil. Nova Fase, Belo Horizonte. v , n. 41. p. 95-100, 1990.

__________(Editorial) Política e compreensão da política. Síntese Nova Fase. Belo

Horizonte. v 15, n.º 43. p. 5-10. mai./ago. 1988.

__________A não violência: O desafio da ação razoável segundo Éric Weil. Síntese Nova

Fase. Belo Horizonte. v 16, n.º 45. p. 89-93. jan./abr. 1989.

__________Filosofia e violência. Síntese Nova Fase. Belo Horizonte. v, n. 41. p. 55-64.

1987.

__________Ética e política: Irredutibilidade e interação das relações assimétricas. Síntese

Nova Fase. Belo Horizonte. v 17, n.º 48. p. 35-46. jan./mar. 1990.

__________ (Nota bibliográfica) A Filosofia de Éric Weil. Síntese Nova Fase. Belo

Horizonte. v 17, n.º 49. p. 95-100. abr./jun. 1990.

__________ (Editorial) Modernidade e crise moral. Síntese Nova Fase. Belo Horizonte. v

17, n.º 50. p. 5-11. jul/set. 1990.

__________A modernidade e sua crise. Síntese Nova Fase. Belo Horizonte. v 19, n.º 57.

p.161-178. abr./jun. 1992.

SANTOS, Erisvaldo. P. dos. (Nota bibliográfica), Síntese Nova Fase. Belo Horizonte. v 21,

n.º 66. p. 423-426.

SILVA NETO, Antônio Gonçalves da. A moral como ponto de partida da Philosophie

Politique de Éric Weil. Goiânia, Fragmentos de Cultura, 7 (25): 141-152, 1997.

Sítios:

http://www2b.ac-lille.fr/philo/centreweil.htm

http://eric-weil.biblio.univ-lille3.fr/biographie.html.

http://www.erealizacoes.com.br/espaco/janelaVideo.php?video=Palestra_Eric-

Weil&posicao=2.

De Paul Ricoeur

Finitude et culpabilité II: la symbolique du mal. Paris: Aubier, 1960. [Ed. Portuguesa: A

simbólica do mal. Tradução de Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Edições 70, 2013].

Histoire et vérité. Paris: Seuil, 1958. [Ed. Brasileira: Historia e verdade Tradução de F. A.

Ribeiro. Rio de Janeiro: Forence, 1968].

La métaphore vive. Paris; Seuil, 1975. [Ed. Brasileira: A metáfora viva. Tradução de Dion

Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000].

Le conflit des interprétations. Essais d’herméneutique. Paris: Seuil, 1969. [Ed. Brasileira: O

conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Tradução de Hilton Japiassu. Rio de

Janeiro: Imago, 1978].

Soi-même comme um autre. Paris: Seuil, 1990. [Ed. Brasileira: o si-mesmo como um outro.

Tradução de Ivone C. Beneditti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014].

Du Texte a l’Action: essais d’Hermeneutique II. Paris: Seuil, 1986. [Ed. Brasileira: Do texto

à acção: ensaios de hermenêutica II. Tradução de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando.

Porto: Rés-Editora, 1989].

Temps et récit. 3v. Paris: Seuil, 1983, 1984, 1985. [Ed. Brasileira: Tempo e narrativa. 3v.

166

Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010].

Hermenêutica e ideologia. Organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu.

Petrópolis: Vozes, 2008.

Leituras 1: em torno ao político. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1995.

Leituras 2: a região dos filósofos. Tradução de Marcelo Perine e Nicolás Nyimi Campanário.

São Paulo: Loyola, 1996.

Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo:

Loyola, 1996.

Le paradoxe politique, Esprit, n.º 250, mai (1957): 721-745.

La «philosophie politique» d'Eric Weil, Esprit, n.º 254, octobre (1957): 412-429. [Ed.

Brasileira: A "filosofia política" de Éric Weil in Leituras 1: em torno ao político. Tradução de

Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1996, p. 39-58].

Ethique et politique, Esprit, n.º 101, mai (1985): 01-11. [Ed. Brasileira: Ética e política in Do

texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Tradução de Alcino Cartaxo e Maria José

Sarabando. Porto: Rés-Editora, 1989].

Hegel aujourd’hui in Les temps du texte: recueil des contributions de Paul Ricoeur à la Revue

Etudes Théologiques et Religieuses (1974-1989), Montpellier et Paris, Institut Protestant de

Théologie, tome 80, nº hors-série – supplément au 4 (2005): p. 9-28.

Réflexion Faite: autobiographie intellectuelle, Paris: Esprit, 1995. [Ed. Portuguesa:

Autobiografia intelectual in Da metafísica à moral. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 45-136].

L’idéologie et l’utopie. Paris: Seuil, 1997. [Ed. Brasileira: A ideologia e a utopia. Tradução

de Silvio Rosa Filho e Thiago Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2015].

Autrement: lecture d’Autrement qu’être ou ou-delà de l’essence d’Emmanuel Levinas. Paris:

PUF, 1997. [Ed. Brasileira: Outramente: leitura do livro Autrement qu'etre ou au delà de

l'essence de Emmanuel Lévinas. Trad. Pergentino S. Pivatto. Petrópolis: Vozes, 2008].

La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. [Ed. Brasileira: A história, a memória, o

esquecimento. Tradução de Alain François [et al.] Campinas: Editora Unicamp, 2007].

Percurso do reconhecimento. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola,

2006.

Sur la traduction. Paris: Bayard, 2004.

Écrits et conferérences 1 :autour de la psychanalyse. Paris: Seuil, 2008. [Ed. Brasileira :

Escritos e conferencias 1: Psicanálise. Tradução de Edson Bini. São Paulo : Loyola, 2010].

Écrits et conferérences 2 :herméneutique. Paris: Seuil, 2010. [Ed. Brasileira : Escritos e

conferencias 2: hermenêutica. Tradução de Lúcia Pereira de Souza. São Paulo : Loyola, 2011].

Teoria da interpretação: o discurso e excesso de significado. Tradução de Artur Morão.

Porto: Porto Editora, 1995.

A crítica e a convicção. Tradução de Antonio Hall. Lisboa: Edições 70, 1997.

O discurso da acção. Tradução de Artur Morão. Lisboa: edições 70, 2013.

Na escola da fenomenologia. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2009.

O que nos faz pensar: a natureza e a regra (com Jean-Pierre Changeaux). Tradução de Isabel

Saint-Aubyn. Lisboa: Edições 70, 2001.

167

Sobre Paul Ricoeur

Esprit, n.º 140-141, juillet-août (1988).

Ricoeur-Gadamer: presença do outro e interpretação. Mente, Cérebro e Filosofia, São Paulo:

Duetto, n. 11, 2004.

ABEL, Olivier; PORÉE, Jérôme. Le vocabulaire de Paul Ricoeur. Paris: Ellipses, 2007.

ANDRADE, Abrahão Costa. Paul Ricoeur: o sujeito na história. Síntese – Revista de

Filosofia, Belo Horizonte, v.34, n.º 108 (2007): 23-32.

BULAWSKI, Stefan. Interpretação e subjetividade em Paul Ricoeur. Síntese – Revista de

Filosofia, Belo Horizonte, v.31, n.º 101 (2004): 375-388.

CESAR, Constança Marcondes (Org.). Paul Ricoeur: ensaios. São Paulo: Paulus, 1998.

DOSSE, François. Paul Ricoeur: les sens d’une vie (1913-2005). Revue et augmentée.

Paris : La Découverte, 2008.

DOUEK, Sybil Safdie. Paul Ricoeur e Emmanuel Levinas: um elegante desacordo. São

Paulo: Loyola, 2011.

FRANCO, Sérgio de Gouvêa. Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul Ricoeur. São

Paulo: Loyola, 1995.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Interpretação e suspeita in MUCHAIL, Salma Tannus;

FONSECA, Marcio Alves da; VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). O mesmo e o outro: 50 anos de

história d a loucura. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 215-222.

GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da modernidade: uma aproximação à arte do

romance em Temps et Récit de Paul Ricoeur. São Paulo: Loyola, 2004.

GRONDIN, Jean. Hermenêutica. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola,

2012.

JERVOLINO, Domenico. Introdução a Ricoeur. Tradução de José Bortolini. São Paulo:

Paulus, 2011.

MAGALHÃES, Thereza Calvet de. A reflexão de Ricoeur sobre o justo. Síntese – Revista de

Filosofia, Belo Horizonte, v.29, n.º 93 (2002): 103-115.

MAGALHÃES, Thereza Calvet de. Tempo e narração: a proposta de uma poética da

narração em Ricoeur. Síntese, Belo Horizonte, n.º 39 (1987): 25-36.

NASCIMENTO, Fernando ; SALLES, Walter (Org.). Paul Ricoeur: ética, identidade e

reconhecimento. Tradução de Fernando Nascimento e Walter Salles. Rio de Janeiro: Ed. PUC-

Rio; São Paulo: Loyola, 2013.

NICOLAZZI, Fernando. Paul Ricoeur (1913-2005). In. PARADA, Maurício (Org.). Os

historiadores: clássicos da história, vol. 3, de Ricoeur a Chartier. Petrópolis, RJ: Vozes: PUC-

Rio, 2014. p. 09-35.

OLIVEIRA, Rita de Cássia. A confirmação do sujeito capaz em Ricoeur: identidade pessoal e

imputação moral. Cadernos de ética e Filosofia Política, n.19, 2/2011, p. 29-42.

PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Tradução de Marcus Penchel. Petrópolis: Vozes,

2009.

PIVA, Edgar. A questão do sujeito em Paul Ricoeur. Síntese – Revista de Filosofia, Belo

168

Horizonte, v.26, n.º 85 (1999): 205-237.

REIS, José Carlos. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e “Annales”: uma

articulação possível. Síntese Nova fase, Belo Horizonte, v.23, n.º 73 (1996): 229-252.

VILLELA-PETIT, Maria da Penha. Perspectiva ética e busca do sentido em Paul Ricoeur.

Síntese – Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v.34, n.º 108 (2007): 5-22.

Bibliografia Geral

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2 ed. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo:

Boitempo, 2004.

__________ O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução

de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

__________ Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 2

ed. Belo Horizonte: editora UFMG, 2010.

__________ O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. Tradução de Selvino J.

Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

AGUIAR, Flávio (Org.). Antonio Candido: pensamento e militância. São Paulo: Humanitas e

Fundação Perseu Abramo, 1999.

ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins [et al.]. 3 ed. Rio de

Janeiro: Relume Dumará, 2002.

AUBENQUE, Pierre. Antropologia da prudência in A prudência em Aristóteles. Tradução de

Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 173-244.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 2ed. Tradução, introdução e notas de Mario da Gama

Kury. Brasília: Editora Unb, 1992.

ARON, Raymond. Memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

BERTI, Enrico. O método da filosofia prática in. As razões de Aristóteles. 2 ed. Tradução de

Dion Davi Macedo, São Paulo: Loyola, 2002, p. 115-156.

BERNHEIM, Carlos Tünnerman; CHAUÍ, Marilena Souza. Desafios da universidade na

sociedade do conhecimento: cinco anos depois da conferência mundial sobre educação

superior. Brasília: UNESCO, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A ontologia política de Martin Heidegger. Tradução de Lucy Moreira

César. Campinas: Papirus, 1989.

CASTORIADIS, Cornélius. Sobre o Político de Platão. São Paulo: Loyola, 2004.

CICERÓN, Marco Tulio. Disputaciones Tusculanas. Introducción, traducción y notas de

Alberto Medina González. Madrid: Editorial Gredos, 2005.

CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história. Tradução de Ernanai Rosa. Porto

Alegre: Artmed, 2001.

__________ A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela

Galhardo. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrnad Brasil, 1990.

__________ Formas e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Tradução de

Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas: Mercado de Letras; ALB, 2003.

CHÂTELET, François. História das ideias políticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

169

CHAVES, Ernani. Nietzsche, Freud e Marx: Ricoeur e Foucault e a questão da hermenêutica.

Asas da Palavra (UNAMA), v. 12, p. 289-296, 2009.

DELEUZE, Gilles. A Filosofia Crítica de Kant. Lisboa: Edições 70, Tradução de Germiniano

Franco, 1994.

DESCAMPS, Christian. As ideias filosóficas contemporâneas na França (1960-19850).

Tradução de Arnaldo Marques. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp,

2012.

__________ A história. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, SP: Edusc, 2003.

__________ História do estruturalismo I: o campo do signo – 1945/1966. Tradução de

Álvaro Cabral e revisão técnica de Márcia Mansor D’Alessio. Bauru, SP: Edusc, 2007.

__________História do estruturalismo II: o canto do cisne, de 1967 a nossos dias. Tradução

de Álvaro Cabral e revisão técnica de Márcia Mansor D’Alessio. Bauru, SP: Edusc, 2007.

__________História e ciências sociais. Tradução de Fernanda Abreu. Bauru, SP: Edusc,

2004.

__________ A história em migalhas: dos annales à nova história. Tradução de Dulce A. Siva

Ramos. Campinas: Ensaio; Editora Unicamp; Movimento de ideias/ideias em movimento,

1994.

ENGELS, Friedrich, MARX, Karl. A ideologia alemã. Tradução de Rubens Enderle, Nélio

Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso no Collège de France (1981-1982).

Tradução de Marcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2 ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2006.

__________ A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de

setembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

__________ As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9 ed.

Tradução de Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

__________ Arqueologia do Saber. 7 ed. Tradução de Luiz F. B. Neves. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2009.

__________ Nietzsche, Freud, Marx in Ditos & Escritos II: arqueologia das ciências e

história dos sistemas de pensamento. MOTTA, M. B da (Org.). Tradução de Elisa Monteiro.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 62-67.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

GOLDSCHMIDT, Victor. Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético. São Paulo:

Loyola, 2002.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. v. 2. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2

ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

GUEDES, Linaldo. Ariano Suassuna: Dom Quixote contra o imperialismo norte-americano.

Suplemento Correio das Artes, 2014.

HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga? 3ed. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo:

Loyola, 2008.

170

HASSNER, Pierre. La philosophie politique de M. Éric Weil in Revue française de science

politique, Année 1958, Volume 8, Numéro 2, p. 423 – 431.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com colaboração

de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança

Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2005.

__________Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: 1830. 3v. Tradução de

Paulo Meneses com colaboração de José Nogueira Machado. São Paulo: Loyola, 1995.

__________Ciência da lógica: (excertos). Seleção e tradução de Marco Aurélio Werle. São

Paulo: Barcarolla, 2011.

__________Linhas fundamentais da filosofia do direito: ou Ciência do Estado em

compêndio. Tradução de Paulo Meneses... [et al.]. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.

__________Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo:

Martins Fontes, 2003.

HERRERO, Francisco Xavier. Religião e história em Kant. São Paulo : Loyola, 1991.

HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução de Christian Viktor Hamn e Valério Rohden. São

Paulo: Martins Fontes, 2005.

HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e

Alexandre Fradique Morujão com introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 5 ed.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

__________Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier. 3 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005, p.

23-45.

LÖWY, Michel; SAYRE, Robert. Romantismo e política. Tradução de Eloísa de Araújo

Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

LÖWY, Michel. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1996.

MARX, Karl. Critica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e

Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005.

MERLEAU-PONTY, Maurice. As aventuras da dialética. Tradução de Claudia Berliner. São

Paulo: Martins Fontes, 2006.

NICOLAU. Marcos Fabio A. A ciência da lógica no sistema hegeliano. Kínesis, v. II, n. 3

(2010): 144-156.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Tradução,

notas e posfácio de Jacó Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

NUNES, Benedito. No tempo do niilismo: e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2008.

PERINE, Marcelo. Nas origens da ética ocidental: a Ética a Nicômaco. Síntese Nova Fase,

Belo Horizonte, v. 9 n. 25 (1982) 21-38.

__________Quatro lições sobre a ética de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2006.

PEREIRA, Oswaldo Porchart. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

PLATÃO. A República. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins

Fontes, 2006.

171

__________Político in Coleção Os Pensadores. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz

Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 135-269.

PORTA, Mario A. G. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Loyola, 2002.

PUNTEL, L. B. A "Ciência da Lógica" de Hegel e a dialética materialista: uma nova visão

de um antigo problema in Síntese v, II, n. 05 (1975): 03-36.

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre

os homens in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1997.

SAFATLE, Vladimir. Curso sobre a Ciência da Lógica de Hegel. São Paulo: USP, 2011.

TAVARES, Maria da Conceição. A era das distopias in Insigth-Inteligência, jan./fev./mar. n.º

64, (2014): 21-28.

VOLPI, Franco. O niilismo. Tradução Aldo Vannucchi. São Paulo: Loyola, 1999, p. 43-64.

VAZ, H. C. de Lima. Escritos de filosofia II: Ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 80-

134.

__________Escritos de filosofia VI: Ontologia e história. São Paulo: Loyola, 2001, p. 121-

161.

VAYSSE, Jean-Marie. Vocabulário de Immanuel Kant. Tradução de Claudia Berlinder. São

Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução de Ísis Borges B. da

Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

__________Os gregos inventaram tudo (entrevista). Caderno Mais, Folha de São Paulo,

domingo, 31 de outubro de 1999, p. 4-5.

WEBER, Max. Ciência e política duas vocações. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octany

Silveira da Mota. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 2002.

ANEXOS

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 159

Resumo

A civilização da técnica instituiu o progresso pela dominação. Essa violência teve (e ainda tem) seu limite na linguagem, isto é, a violência tanto se denuncia quanto se compreende pela linguagem. Eric Weil e Paul Ricoeur concordam quanto a esse aspecto e é esse primeiro acordo que possibilita pensar que ambos os filósofos estão envolvidos num mesmo projeto de pensamento. Basicamente por entender que o sistema dialógico weiliano é uma fecunda fonte a serviço da hermenêutica ricoueriana, especialmente, por ser o texto da Logique de la Philosophie um discurso sobre a discursividade total. Tal projeto de discursividade está apoiado numa tensão entre sentido e violência. Conceitos centrais, como se sabe, também para a hermenêutica de Ricoeur. A exploração de muitas temáticas por parte da hermenêutica ricoueriana demonstra que esse seu procedimento desenvolve-se, a nosso ver, em flagrante contato com o conceito de retomada de Weil. Dito de outra maneira: metodologicamente a filosofia ricoueriana caracteriza-se pela releitura das filosofias o que também é a característica do movimento das categorias que se encontram e se enfrentam na Logique de la Philosophie.

Palavras-chaves: Linguagem; iolência; sentido.

AbstRAct

The civilization of the technique has instituted the progress by domination. This violence had (and still has) its limit in the language, that is, the violence denounces itself so as it is understood by language. Eric Weil and Paul Ricoeur agree in this regard and this is the first agreement that makes it possible to think that both philosophers are involved in the same project of thought. Basically by understanding that the Weilian Dialogic System is a fruitful source of ricouerian hermeneutics, especially, for being the text of Logique de la Philosophie a discourse of the discourses. Such discourses project is supported in a tension between sense and violence. Central concepts, as we all know, also to the hermeneutics of Paul Ricoeur. The exploration of many themes from ricoeurian hermeneutics demonstrates that this develops your procedure, in our view, in contact with the concept of resumption of Weil. Said in another way: methodologically, ricoeurian philosophy is characterised by the re-reading of the philosophies, which is also the characteristic of the categories movement that meet and face off in the Logique de la Philosophie.

Keywords: Language; violence; sense.

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Francisco Valdério*ARe

vist

a de

Filo

sofia

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre eric Weil e Paul Ricoeur

* Doutorando da PUC/SP e professor da Universidade Estadual do Maranhão. Email: [email protected]

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 160

Introdução

Discutir a presença de uma hermenêutica na filosofia weiliana é um em-preendimento ainda controverso.1 No entanto, este trabalho se propõe tão so-mente a delinear algumas aproximações ou pontos de contatos, que também podem ser de desacordos, entre Eric Weil e Paul Ricoeur naquilo que faz desta temática, senão o plenamente admitido de sua filosofia, pelo menos o plausí-vel. Dizemos isso por estarmos, parcialmente, mobilizados pela leitura da tese de Bernardo que vê na obra de Éric Weil, pelo seu poder de potencializar leitu-ras renovadas, a capacidade também da antecipação hermenêutica (BERNARDO, 2003, p. 23). Essa tese, que procura ver na filosofia weiliana mais que uma filosofia dialética de gosto metafísico, encontra no centro dela lingua-gem e discurso. Não é recente a tentativa de estabelecer entre a obra de Weil e a hermenêutica uma ligação estreita. Há que citar, por exemplo, os artigos de Jean-Michel Buée e Jean-Marie Breuvart publicados no final dos anos 1980 (BREUVART, 1987, p. 143-163; BUÉE, 1987, p. 165-195).

Não nos propomos aqui, como também estes outros trabalhos, discutir as diferenças entre os pensadores. Não que as negligenciemos ou intentemos reduzi-las, tratando essas filosofias como mera repetição uma da outra. No entanto, destacamos simplesmente – o que não é pouco para nossas forças – certas convergências e alguns cruzamentos, esperando assim mostrar que a filosofia weiliana é, senão ela mesma uma hermenêutica tal como entende Bernardo, ao menos, uma fecunda fonte a serviço desta.

É possível dizer, ainda a título de introdução, que a inspiração inicial deste trabalho toma por base o que diz o próprio Paul Ricoeur, testemunhado por Marcelo Perine em seu livro comemorativo ao centenário de nascimento de Éric Weil, quando se apresenta como devedor da figura de Éric Weil (2004, p. 10). Podemos também reivindicar aquela manifestação acerca de sua própria filoso-fia referindo-se a ela como seguidora do estilo kantiano pós-hegeliano, fórmula, como se sabe, tão cara a Éric Weil (RICOEUR, 1991, p. 389; 2010, p. 367).

Um dos mais conceituados intérpretes do pensamento de weiliano, Gilbert Kirscher, nos diz que: “Desde 1952, P. Ricoeur se refere à Lógica da Filosofia (e a Hegel e o Estado), reconhecendo um filosofar próximo do seu, confrontando as mesmas aporias da compreensão da realidade histórica e do advento do sentido”. Pergunta ainda o intérprete, se “a oposição weiliana da atitude e da categoria não é ela análoga àquela do evento e da estrutura, e a exigência da compreensão não conduz ela, por uma necessidade de essência,

1 Em 2003 o português Luís Manuel Bernardo publicou sua tese de doutoramento sobre Eric Weil. Texto com o qual polemiza com o que chama de interpretação tradicional deste pensador. Defende, então, uma leitura centrada no par linguagem/discurso tal como o titulo de sua tese enfoca em contraposição ao par razão/violência. Seu trabalho visa converter a filosofia weiliana como um todo numa teoria linguística, leitura que para muitos interpretes não está em questão.

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 161

à supressão (no sentido da Aufhebung) da história na filosofia?” (KIRSCHER, 1989, p. 10). Em Ricoeur, tal questão pode ser entendida como a do término da história num determinado leitor que completaria a obra do historiador, o leitor filósofo (RICOEUR, 1968, p. 36). Uma inclinação à hermenêutica está assim, nos parece, no mínimo indicada.

Em todo caso, pressupomos haver um quadro comum de análise entre a filosofia sistemática de Weil e a hermenêutica de Ricoeur. Ambos têm na lin-guagem a fonte primeva do filosofar; não é estranho para nenhum deles que o problema do conflito entre as filosofias seja um desafio à própria filosofia, no caso de Weil pela articulação de uma lógica que as compreenda num mesmo movimento, enquanto em Ricoeur por uma hermenêutica que possa arbitrar o conflito das interpretações.

Para o curso de nossa argumentação tomaremos a relação entre os pen-sadores em dois momentos: inicialmente o debate sobre o tema Violência e linguagem por ocasião da Semana de Intelectuais Católicos ocorrida em 1967 em Paris.2A comunicação de Ricoeur, logo após a de Weil sob o mesmo tema, não esconde o ponto de partida de sua intervenção, como ele mesmo explicita ao dizer que o eco de suas palavras podem ser encontrados na Lógica da Filosofia (RICOUER, 1995, p. 61). Em seguida, tentaremos estabelecer uma relação entre o conceito de retomada em Weil e a atitude filosófica da releitura, para onde parece convergir os esforços de Ricoeur em seu debate com a tradi-ção e a cultura moderna.

“Violência e linguagem”: o debate de 1967

A intervenção de Éric Weil

A contribuição weiliana ao debate começa indagando sobre os critérios para decidir uma escolha entre violência e linguagem. Não haveria certa inge-nuidade neste tipo de questão, visto que ela apenas leva em conta situações extremas em que a violência se oferece como possibilidade muda, brutal e renúncia a toda comunicação com os homens? Será simples assim uma esco-lha entre violência e linguagem?

Na verdade, linguagem e violência estão mais implicadas do que podem indicar num primeiro momento, pois “é a linguagem que faz aparecer a violên-cia.” (WEIL, 1987, p. 23). É somente o homem que se caracteriza propriamente

2 Em 1967, a Semaine dês Intellectuels Catholiques, dedicada ao tema La Violence, ocorreu de 1º. à 7 de fevereiro. Foi posteriormente publicada em Recherches et Débats n.º 59 (1967). A mesa Violence et langage – objeto do debate entre Weil e Ricoeur e que contou ainda com a participação de Etienne Borne –, nas páginas 78-86 e 86-94, respectivamente. O texto de E. Wel foi republicado em Cahiers Eric Weil I(1987, p. 23-31) e o de Ricoeur em Leituras 1: em torno ao político (1995, p. 59-68). A referência aqui é retirada dessas republicações.

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 162

pela violência, justamente por ser ele um ser falante (ou pensante), é também o único a revelar a violência na vida, no mundo. Se os animais são chamados de violentos, é o homem que os chama, se possuem uma história, é [ainda] o homem que a escreve. Assim, “só o homem conhece e se refere à violência, ao absurdo, ao sem sentido e ao que acontece contra sua vontade e desejo” (id. ibid., p. 23-24). Por esta razão, é também o único que pode dizer não ao insen-sato e buscar um conteúdo para sua vida.

A humanidade ao longo da história sempre precisou lidar com a violên-cia. Ela se organizou para lutar contra a violência da natureza exterior e, assim, também deu um sentido para sua vida. Trabalho e poesia3 são suas grandes conquistas. Para Weil, a situação ideal para a humanidade seria uma perfeita adequação de ambas. Acontece que a humanidade não é composta de um único grupo e, nesse sentido, se um grupo conseguiu, por obra de suas forças, banir a violência de seu interior, nada impediu que outros fizessem uso dela com legitimidade por considerá-la suficientemente sagrada, exatamente por empregar, na possessão da natureza (trabalho), seu pensamento. Noutras pa-lavras, a luta contra a natureza exterior encontrou sua justificação na lingua-gem. Eis por que esta luta introduz uma novidade radical: “a do progresso pela dominação.” (WEIL, 1987, p. 25).

Paradoxalmente é também neste contexto que o homem pela primeira vez experimenta a violência de forma translúcida, quer dizer, ele a vê como tal, pois é quando ela é nomeada, pensada, tratada, que se mostra inteiramente despida. O que passa a existir é “violência do senhor com o escravo, revolta do escravo, violência do escravo com a natureza, da natureza com todos e dos senhores entre eles” (op. cit.). Desde que bens produzidos a partir da natureza se tornaram signo e prova de poder – e o poder, a honra e a glória é tudo que distingue o senhor –, a luta pela posse desses bens, e dos meios de produzi--los, tornou-se o objeto de uma luta que não conhece outros objetivos ou regras senão o sucesso. Não há outra motivação além do desejo imediato alimentado pelo anseio de dominação e posse.

Essa luta contra a natureza exterior e a apropriação da riqueza produzida pelo trabalho caracterizam a transição da comunidade à sociedade. Nesta nova configuração o mundo perdeu sua unidade sensata na qual o homem tinha seu lugar. Em seu lugar surge uma natureza que pode ser conhecida, mensurável, decomposta e analisável, numa palavra, dominada. Contudo, para Weil, isso supõe que a violência entre os homens seja também ela progressivamente dominada, pois os homens ao desejarem o máximo de riqueza que a produção de bens pode gerar, não podem contar com a violência que em si mesma não pode ser considerada produtiva. Pelo contrário, em si mesma a violência é pe-

3 Para Weil, aqui nesse texto, poesia é entendida em sua acepção mais abrangente, como “invenção de mundos possíveis”, sublinha. Ora, essa conotação será a mesma que Ricoeur desenvolve quando trata da narrativa ficcional.

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 163

rigosa, porque põe em risco todo processo produtivo. Se, por um lado, a violên-cia aparece como sedutora na aquisição da riqueza, por outro, certamente, terá o inconveniente de estar à disposição de todos que dela querem e podem fazer uso. Daí porque a linguagem da sociedade do trabalho, embora violenta, é também a linguagem da eficácia.

Rendido a esta condição, o homem da sociedade do trabalho “renuncia ao uso individual da violência e contribui para a luta contra o inimigo co-mum: a natureza exterior.” (WEIL, 1987, p. 26). Também será por essa razão que esse indivíduo empregará todos os meios de que dispõe para disciplinar sua natureza interior, uma vez que seus desejos naturais devem ser controla-dos para que atinjam não o que ele deseja, mas o que lhe é devido de acordo com sua contribuição na produção. É reduzido a simples membro da socie-dade do trabalho que ele ocupa o mundo. Aqui não há um Eu, uma persona-lidade, mas uma coisa qualquer, pois o indivíduo é aquilo que ele faz. Tal como a sociedade, reduzida à sua maneira organizacional imposta pela ló-gica da racionalidade e da eficácia, o organizador também não passará de uma peça importante e indispensável do trabalho social para compor esse mecanismo social.

A linguagem que comanda a sociedade é a linguagem que domina a to-dos em vista do acordo objetivo: eficácia. Ou se aceita os meios que objetiva-mente estão aptos para levar ao sucesso ou se renuncia os bens antes produ-zidos. Não existe ninguém que dê ordens como bem lhe convém, apenas uma única ordem é ditada: a da linguagem da eficácia que comanda a todos. Nesse sentido, o choque entre duas tradições históricas, ou melhor, duas linguagens, é inevitável e violento: aqueles que não se submeterem aos senhores da natu-reza estarão fadados ao desaparecimento. Weil chama aqui esta nova lingua-gem de discurso sério, isto é, que só conhece a constatação da objetividade. Qualificações privadas, tais como crenças, convicções, desejos, etc., só con-tam se oferecerem algum benefício para ordem produtiva.

Curioso é que essa linguagem, esplendidamente eficaz, que libertou o homem da servidão natural, criou, por outro lado, uma segunda natureza tão absurda e violenta quanto a primeira, e até mais tirânica, pois ela não deixa ao homem ser Eu: o homem “tornou-se um objeto, mas objeto incômodo – e, ao mesmo tempo, só um objeto vazio e sem sentido.” (WEIL, 1987, p. 29). Esta segunda natureza da linguagem da eficácia apenas instrui, informa, forma, etc., não é seu papel educar. O resultado de tudo isso, segundo Weil, é o au-mento progressivo do tédio infinito e insensato. Tédio de uma linguagem que age, mas que não significa nada para o indivíduo. Tédio do qual só se pode escapar “pela violência desinteressada, interessada somente pela possibili-dade de se afirmar como indivíduo contra os outros indivíduos, violência a serviço dos senhores e que não tem outra orientação senão fazer esquecer a insensatez dos interesses que satisfazem a sociedade”(loc, cit.). Ao indivíduo

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 164

resta lamentar sobre o óbvio de que a linguagem da racionalidade acaba sendo para ele uma grande mentira, só que uma mentira por omissão.

A promessa de libertar o homem da natureza e da violência não foi cum-prida pela racionalidade. No entanto, subsiste a tensão entre “a repressão da violência e, ao mesmo tempo, o desejo de sentido [...], porque só o ser violento, se ele fala, pode buscar um sentido.” (WEIL, 1987, p. 30). Se por um lado a vi-tória sobre uma primeira natureza exterior e hostil inaugurou uma segunda natureza, a do trabalho organizado, esta por sua vez tem o mérito de por a questão “se o que alcançamos e deveremos alcançar é tudo o que queremos alcançar” (loc. cit). Para Weil, é essa questão que enobrece a história humana, pois é nela que o sentido se aloja. Questão que não poderia ser posta onde a necessidade e a violência pura pesam sobre o ser humano. Hoje, adverte--nos,tal questão é possível, muito embora a linguagem na qual ela se formula não seja acessível a todos.

Para Weil, esta questão nos põe frente a frente com nosso desafio na atu-alidade, seja na sua formulação, seja na sua resolução – lembrando que a se-gunda condição depende fatalmente da primeira. Trata-se para o homem de se exprimir e de se dizer por inteiro e completamente, de se apreender no que nele une violência e sentido, violência e linguagem. Noutros termos, trata-se de se compreender, no sentido de tomar junto o que se separou dele na sua emancipação da natureza em vista da liberdade. Será, então, a velha trindade hegeliana reclamada, pois o homem exprime, nega e pensa a violência e, ao pensá-la, também a ultrapassa, mas por ser a violência o que igualmente o constitui, essa ultrapassagem é sempre precária, já que a violência é o que nele fala.

A intervenção de Paul Ricoeur

Logo após Weil é Ricoeur quem abre sua intervenção dizendo que “vio-lência e linguagem ocupam, cada uma, a totalidade do campo humano.” (RICOEUR, 1995, p. 59). Tal como seu antecessor, está convencido de que a violência em suas formas extremas, quer dizer, interior (o crime) e exterior (furacão, inundação, avalanche etc.), ditam a conduta do homem. Compreender estas faces da violência é, para Ricoeur, a tarefa do filósofo, uma vez que o que confere unidade ao problema da violência é que ela encontra seu limite na linguagem. Somente “para um ser que fala, e falando, busca o sentido, para um ser que já deu um passo na discussão e sabe alguma coisa da racionali-dade, que a violência constitui problema, que a violência se apresenta como problema” (RICOEUR, 1995, p. 60).

Mas Ricoeur percebe que a oposição entre linguagem e violência é ape-nas oposição formal, assim é preciso estender a reflexão até onde esta posição se realiza, isto é, na concretude da oposição do discurso e da violência. É aqui

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 165

que o fenômeno da dominação se faz presente, por que é neste ambiente que um discurso particular tenta prevalecer sobre os demais como totalidade filo-sófica. É dessa “impostura” que nasce a falsificação da palavra, aquilo que faz da linguagem o verbo da violência. “A violência fala”! É falando também que deixou de ser pura violência para entrar num campo em que a exigência de sentido é presente.

Não se poderia sugerir esse problema da dialética do sentido e da violên-cia – bem como sua resposta – se se permanecesse numa abordagem estrutu-ralista, o que Ricoeur chamou na ocasião de “anatomia da linguagem”. É pre-ciso, então, recorrer a uma “fisiologia da palavra”. É no discurso, na palavra emitida, na fala – de um povo, classe ou grupo – que a expressão da violência e vontade de sentido se juntam e se enfrentam.

Enfrentamento que só ocorre quando a palavra assume seu valor de uso na “frase”. É só então que se entra propriamente no campo da luta entre vio-lência e discurso. O falar (frase) desdobra-se em três momentos: o político, o poético e o filosófico. Em todos eles a palavra é tida como “o nó da violência e do sentido” (RICOEUR, 1995, p. 62). A palavra no político se diz tirania (a vio-lência que através do sofista mobiliza o ódio cimentando o crime no sacrifício à morte) e revolução (tomada de consciência). No entanto, estas duas palavras (tirania e revolução) não esgotam as possibilidades da violência política, haja vista que ela é presente também no seu exercício normal, em que “o político, progressivamente, é tocado por este jogo turvo do sentido e da violência” (RICOEUR, 1995, p. 63). Os indivíduos superaram a sua violência privada quando foram capazes de subordiná-la a uma regra do direito. Na palavra poética a dupla tração do sentido e da particularidade violenta surge por cons-trição, quer dizer, pela força que o poeta infringe às coisas ao falar. O sentido se dá pelo advento do desvelamento e da abertura pela captura do ser que a palavra opera. Já na palavra da linguagem filosófica Ricoeur é mais explícito em sua proximidade com Weil: “Estou perfeitamente de acordo com Éric Weil sobre o fato de a filosofia se definir integralmente pela vontade de sentido, pela escolha do discurso coerente. O que é abertura para o poeta é ordem e coerência para o filosofo” (RICOEUR, 1995, p. 64). Destaca então que três são as formas com que no discurso filosófico a violência se manifesta: primeira-mente pelo viés da singularidade da questão que inicia o filosofar, em se-guida pelo próprio percurso, também singular, trilhado pelo filósofo e, por fim, a violência do acabamento prematuro do discurso, dado que uma filoso-fia está sempre encerrada de alguma forma num livro e como tal, não deixa de ser uma obra finita do espírito; “o livro, diz Ricoeur, sempre termina cedo demais” (RICOEUR, 1995, p. 65).

Ricoeur conclui sua comunicação elencando três observações: 1) refere--se a uma destinação da linguagem, a despeito da critica às causas finais lan-çadas a este tipo de ideia que segundo ele não podem impedir que uma orien-

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 166

tação em meio ao dinamismo assinala a vivacidade da questão do sentido; 2) de que toda redução da razão ao entendimento torna-se profundamente vio-lência, porque somente razão instrumental; 3) por fim, o problema da lingua-gem não está reduzido ao problema da estrutura, especialmente, porque o sentido escapa a esta abordagem. Sugere, para tanto, três regras de bom uso da linguagem; que discurso e violência sejam tomados como os contrários mais fundamentais do existir humano; que uma dialética entre moral da con-vicção e da responsabilidade seja a mediação necessária (mas não suficiente) em que campeia o discurso e violência; e que a não-violência do discurso ca-racterize-se pelo respeito à pluralidade e a diversidade das linguagens.

Retomada, releitura e sentido

É curioso que Ricoeur fale logo em seguida a Weil, curioso porque esta sequência é também o que acreditamos fazer, recorrentemente, sua filosofia hermenêutica. Pois bem, o pensamento ricoeuriano caracteriza-se, sobretudo, como uma filosofia especializada na leitura, na re-leitura e, portanto, herme-nêutica. É uma filosofia que retoma as possibilidades da conversação, que busca continuamente reabrir e refinar questões filosóficas, de modo a nunca deixar exaurir a filosofia (PELLAUER, 2009, p. 12), seja a partir dos filósofos e dos seus sistemas seja da narrativa histórica ou ficcional com o intuito de sem-pre retroalimentar o pensamento. Sobre isso, Ricoeur nos diz que filosofar é antes de tudo perturbar uma problemática anterior retalhando as questões principais para, assim, abrir novas perspectivas (RICOEUR, 1968, p. 52).

Nesse sentido, o modo do proceder filosófico de Paul Ricoeur será a reex-posição. O que significa que ele avança cuidadosamente refazendo cada etapa do pensamento daqueles com quem dialoga. Retém, ao máximo seu leitor, pela “reprise” dos supostos filosóficos de seus interlocutores, para enfim apon-tar seu ultrapassamento. Esta nova apresentação do pensamento alheio – o que para muitos faz parecer que Ricoeur não tenha um pensamento próprio (GAGNEBIN, 2009, p.163), não é somente um método que utiliza para atraves-sar com segurança uma filosofia (ou um pensamento de modo geral) ao mesmo tempo em que o critica, mas a face de uma filosofia convencida de que o dia-logo cerrado com as filosofias é o caminho mais apropriado num contexto his-tórico em que o conflito entre as filosofias é sua marca indelével. Ou, se se preferir, de uma interpretação cuja característica é a pluralidade inultrapassá-vel (RICOUER, 1995a, p. 104).

Jeanne-Marie Gagnebin lembra, por exemplo, que os títulos que Ricoeur escolhe para seus três livros Leituras toma por base seu conceito de leitura, compreendido “como atividade específica de recepção e de reapropriação transformadora.” (GAGNEBIN, 2009, p. 174), obras que testemunham a leitura que o próprio filósofo faz de si mesmo pela leitura de outros pensadores filóso-

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 167

fos e não filósofos (GAGNEBIN, 2009, p. 174-175). Parece que essa atitude de reexposição conserva muito do que Weil chama de retomada:

[...] fenômeno fundamental na história do pensamento e da histó-ria pura e simples, isto é, a apreensão do novo numa linguagem antiga, a única à disposição do inovador (que, no entanto, a trans-forma), a única, sobretudo, na qual pode se fazer entender pelos seus contemporâneos, com o risco, quase uma certeza, de não ser compreendido sem um esforço considerável pela posteridade que aproveita do que ele trouxe para desenvolver uma nova lin-guagem (um novo sistema conceitual): Hegel, por vezes, assume esse sentimento quando declara, em meio a suas mais severas críticas dirigidas a Kant, que a filosofia começa com Kant (WEIL, 1982, p.18-19).4

Marcelo Perine, por sua vez, nos diz que a fórmula kantiano pós-hege-liano, com a qual exerce sua hermenêutica da filosofia de Éric Weil (1987), é uma retomada de Kant ao mesmo tempo em que assume tudo o que Hegel trouxe de definitivo para a filosofia e tudo o que Hegel significa para a filosofia (PERINE, 1987, 120 et seq). Ou, como diz outro interprete, “da vontade de supe-rar Hegel sem dele abdicar.” (BERNARDO, 2003, p. 19). Podemos dizer ainda que “a retomada é a compreensão de uma atitude (ou categoria) nova sob uma categoria precedente, compreensão realizada na e por esta atitude anterior.” (WEIL, 1996, p. 98).

Para Weil, a filosofia compreende que a história, tomada pela perspectiva do homem agente, tem seu sentido na sua coerência, no entanto, seu conteúdo é incoerência, pura contradição e violência, porque exposto às condições do mundo. Hegelianamente falando, será a tentativa de querer sempre compreen-der de maneira não-contraditória as contradições da realidade. Assim, o con-ceito de retomada, confessamente extraído das reflexões kantianas, é o esquema que torna a categoria aplicável à realidade e que permite dessa forma uma con-versão concreta da unidade da filosofia e da história (WEIL, 1996, p. 98).

Ricoeur refere-se algumas vezes a esta atitude/conceito. Em História e verdade, por exemplo, nos diz que o término da história do historiador como obra escrita no leitor filósofo é uma retomada do filósofo e que pode seguir em duas direções: no sentido de uma “lógica da filosofia” mediante a pesquisa de um sentido coerente através da história, e também na direção de um “diálogo”, cada vez singular e exclusivo, com os filósofos e as filosofias individualizadas. (RICOEUR, 1968, p. 35-36). Essa passagem nos sugere que Ricoeur apoia-se neste conceito para caracterizar o que viria a ser sua própria maneira de abor-

4 Sublinhamos a palavra sentimento nessa passagem indicando o que chama a atenção de E. Costeski (2009, p. 100), quando afirma que o específico da retomada é a apreensão tanto da coerência do discurso da categoria como da violência da liberdade poiética da atitude, da unidade do pensamento (coerência da categoria) e do não pensamento (violência da atitude).

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 168

dagem filosófica. Senão, vejamos o que ele diz também, sobre a retomada, em sua conferência no colóquio de 1982 em homenagem a Éric Weil:

poder-se-á dizer aqui que Weil privou-se de recursos discursivos impor-tantes colocando o acento principal sobre “o finito e o naufrágio” (échec).Os leitores de Gadamer, mais ainda os de Heidegger e Jaspers, não se deixarão encerrar na proclamação de incoerência e tirarão partido do que Éric Weil chama retomada num sentido menos extrínseco e menos regressivo que o admitido por Weil, e encontrarão no texto mesmo de Éric Weil a sugestão de outra concepção de coerência, ao invés de uma reivindicação de incoerência. Penso na seguinte passagem: “A categoria (do Finito) olha assim todas as categorias anteriores como interpreta-ções do ser-no-mundo (o projeto) que permanecem determinadas pela concreção do mundo. A tarefa da filosofia segundo a categoria é assim libertar o homem pela possibilidade, pela destruição das formas fixadas do pensamento, pela redução das questões tradicionais à sua origem na possibilidade do discurso aberto.” (RICOEUR, 1984, p. 414-415).5

Penso que Ricoeur situa-se entre os leitores a quem se refere acima. Sabemos o quanto os filósofos citados exerceram influência no pensamento dele. Isso explica, talvez, seu grande esforço para preservar a crítica dirigida a Gadamer, Heidegger e Jaspers, lançada pela filosofia weiliana, ao mesmo tempo em que busca também ultrapassar esta crítica por dentro da própria formulação, trazendo junto os filósofos da finitude, devolvendo-lhes a palavra. Noutra passagem, no mesmo colóquio, diz:

Mas, da mesma forma que um crente deve dialogar com um Weil que parte da perda da fé, que um hegeliano deve dialogar com um Weil que vê em Hegel uma filosofia que falhou na passagem do em si ao para si, da mesma forma o hermeneuta deve dialogar com um Weil que não acredita nos recursos discursivos dos filósofos da finitude. O sentido que ele dá às retomadas o impede de tirar [desse] lado uma filosofia da interpretação” (WEIL, 1996, p. 413-414).

O que Ricoeur critica em Weil é o aspecto limitante das retomadas im-posto às filosofias do finito com as quais sua hermenêutica ininterruptamente dialoga. Ora, para ele, as retomadas definem muito bem a atitude filosófica em seu percurso singular, quer dizer, definem toda a articulação sequenciada pelo filósofo “no horizonte de uma tradição, que é sempre tradição particular, libertando palavras já sedimentadas; nenhum filósofo pode praticar a reto-mada total dos seus pressupostos. Não existe filósofo sem pressupostos.” (RICOEUR, 1995, p. 65).

Em resumo, segundo Roman, Ricoeur retém de Weil inicialmente a colo-cação do problema antropológico, segundo o qual o homem é discurso e vio-

5 Ricouer cita Weil (1996, p. 391).

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 169

lência ao mesmo tempo e permanentemente. Entretanto, protesta em relação à filosofia weiliana sempre que percebe esta tentando, de algum modo, res-tringir ou confinar a singularidade no campo da violência para situar a razão numa totalidade (o Estado). (ROMAN, 1988, p. 42). Para Ricoeur, abertura é si-nônimo da tensão entre singularidade e totalidade.

conclusão

Essa tentativa de aproximação entre estes pensadores não pretende indi-car mais que pistas direcionadas a uma hipótese. Pistas que podemos encon-trar nas declarações do próprio Paul Ricoeur referidas acima e no que deixou ao longo de sua produção intelectual. A aproximação entre esses pensadores pressupõe, entre outras coisas, o entendimento de que no panorama atual de grande apelo do discurso técnico o diálogo travado outrora por estas filosofias não se interrompeu, uma vez que as questões levantadas permanecem, em boa medida, ainda as nossas. Diálogo possível, enfim, pelo volume de questões semelhantes tratadas por suas obras com destaque para as que circundam e confrontam a violência. A hipótese que sugerimos é que ambos participam de um mesmo quadro de análise na medida em que partilham do mesmo projeto de pensamento. Tal moldura pode ser apreendida a partir dos conceitos que o próprio Ricoeur desenvolve, ligando-os à filosofia de Weil, tais como o para-doxo político e o mal, ou ainda na fórmula weiliana do kantiano pós-hegeliano, bem como aqueles que pinçam do próprio Weil; ação e decisão, conceitos sem-pre referidos quando e sobretudo ̶sua análise entra no campo ético-político. Ademais, há o conceito de retomada cuja presença em sua filosofia hermenêu-tica é visível, especialmente quando passamos a considerar o jogo da alteri-dade que nela ocorre. É contornando estes conceitos que pensamos a aproxi-mação entre hermenêutica ricoeuriana e a filosofia sistemática weiliana.

No debate acima reproduzido em suas linhas mestras é nítido o duplo esforço de Ricoeur: para situar seu confronto com o estruturalismo e também se manter vinculado à filosofia weiliana. Não é difícil sustentar que os dois filósofos estão, apesar de suas diferenças, engajados num mesmo projeto de pensamento. Projeto de pensamento definido pela finitude do homem e sua abertura ao sentido da história. Não um sentido pré-estabelecido, pré-deter-minado, mas sentido que se apoia na variedade dos discursos e na plurali-dade das respostas desse mundo e a esse mundo. O que podemos perguntar é até que ponto Ricoeur é mais radical do que Weil ao chacoalhar a glória do sujeito e lhe lembrar, simultaneamente, sua inscrição na história e sua fini-tude (GAGNEBIN, 2009, p. 178).

A ideia central desta pesquisa quer desdobrar-se na compreensão de que ambos participam de um mesmo quadro de análise, na medida em que parti-lham do mesmo projeto de pensamento: o que busca confrontar a violência em

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 170

seu próprio domínio. O fundo comum do debate acima é que a linguagem se traduz como discurso com e contra a violência. A ação em ambos é ação que não tergiversa em relação a seu encontro com o mal.

Mas de todos os elementos fornecidos por Eric Weil à filosofia hermenêu-tica de Paul Ricoeur, destacamos a presença marcante da retomada. Eis por que, para nós, a hipótese que sugerimos pode se sustentar, uma vez que am-bos acreditam na filosofia como busca incessante do sentido. A história, diz Ricoeur, pode

ser lida como desenvolvimento extensivo do sentido e como irradiação de sentido a partir de uma multiplicidade de centros organizadores, sem que nenhum homem mergulhado na história possa ordenar o sentido total desses sentidos irradiados. Toda ‘narrativa’ participa de dois aspectos do sentido: como unidade de composição, ela aposta na ordem total em que se unificam os eventos; como narração dramatizada, ela corre de nó em nó, de rugosidade em rugosidade. (RICOEUR, 1968. p. 43).

Dois caminhos, duas filosofias, um mesmo projeto: o sentido.Um projeto de pensamento, assim, nunca é completamente concluso, é

preciso (ou possível) sempre continuar de onde foi interrompido, especial-mente porque o sentido não é uma categoria ou conceito preenchido, pelo contrário, o sentido é presença sem, no entanto, se esgotar num conteúdo de-finido. As duas filosofias se propõem percorrer os caminhos da libertação do sentido de todas as amarras políticas, históricas e filosóficas. Por isso, creio que a hermenêutica ricoeuriana pode ser considerada um prolongamento, em muitos aspectos, da lógica do discurso que Weil tomou como sua tarefa e que nunca escondeu ter nascido antes dele. Sabemos da ojeriza que Weil guarda em relação à ideia de originalidade em filosofia (PERINE, 2004, p. 28-29).

Referências bibliográficas

BERNARDO, Luís Manuel A. V. Linguagem e discurso: uma hipótese herme-nêutica sobre a filosofia de Eric Weil. Lisboa: INCM, 2003.

COSTESKI, Evanildo. Atitude, violência e estado mundial democrático: sobre a filosofia de Eric Weil. Fortaleza: Editora UFC, 2009.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. 2. ed. São Paulo: Edições 34, 2009.

KIRSCHER. Gilbert. La philosophie d’Éric Weil: systématicité et ouverture.Paris: PUF, 1989.

PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Tradução de Marcus Penchel. Petrópolis: Vozes, 2009.

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014 171

PERINE, Marcelo. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. São Paulo: Loyola, 1987.

_____. Eric Weil e a compreensão do nosso tempo: ética, política, filosofia. São Paulo: Loyola, 2004.

QUILLIEN, Jean. (Org.). Cahiers Eric Weil I. Eric Weil: l’avenir de la philosophie. Violence et langage. Huit études sur Eric Weil. Lille, Presses universitaires de Lille,1987.

RICOEUR, Paul. Leituras 1: em torno ao político. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1995.

_____.Temps et récit. 3v. Paris: Seuil, 1991.

_____. Tempo e narrativa. v. 3. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

_____. História e verdade. Tradução de F. A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense, 1968.

_____. Autobiografia intelectual. In: ____. Da metafísica à moral. Lisboa: Instituto Piaget, 1995a, p. 45-136.

_____. De l’Absolu a la Sagesse par l’Action, in: Actualité d’Eric Weil. Actes du colloque International. Chantilly, 21-22 mai. 1982. Paris: Beauchesne, 1984, p. 407-423.

ROMAN, Joël. Entre Hannah Arendt et Eric Weil. Esprit, n. 140-141, juillet-août 1988: p. 38-49.

WEIL, Éric. Logique de la philosophie. 2. ed. Paris: Vrin, 1996.

_____. Problèmes kantiens. 2. ed. Paris: Vrin, 1982.

_____. Essais et conférence I: philosophie. Paris: Vrin, 1991.s

Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério

CulturaVol. 31  (2013)A Retomada na Filosofia de Eric Weil

................................................................................................................................................................................................................................................................................................

Francisco Valdério

A hermenêutica de Paul Ricoeur e aretomada de Eric Weil................................................................................................................................................................................................................................................................................................

AvisoO conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquerexploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferência do documento.Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislação em vigor em França.

Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a ediçãoeletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França)

................................................................................................................................................................................................................................................................................................

Referência eletrônicaFrancisco Valdério, « A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil », Cultura [Online], Vol. 31 | 2013,posto online no dia 12 Dezembro 2014, consultado a 21 Fevereiro 2015. URL : http://cultura.revues.org/1872 ; DOI :10.4000/cultura.1872

Editor: Centro de História da Culturahttp://cultura.revues.orghttp://www.revues.org

Documento acessível online em:http://cultura.revues.org/1872Documento gerado automaticamente no dia 21 Fevereiro 2015. A paginação não corresponde à paginação da ediçãoem papel.© Centro de História da Cultura

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 2

Cultura, Vol. 31 | 2013

Francisco Valdério

A hermenêutica de Paul Ricoeur e aretomada de Eric WeilPaginação da edição em papel : p. 227-246

Introdução1 Tornou-se lugar comum adotar certos cuidados ao estabelecer comparações entre filosofias,

entre os quais o de nem sempre indicar as semelhanças. Ou indicando-as é preciso, logo emseguida, informar suas rupturas e diferenças. Quase como se uma investigação dessa naturezafosse desprovida de fecundidade por lançar sobre as filosofias comparadas a desconfiança deque não passariam de má tradução ou repetição de uma em relação à outra ou qualquer outracoisa do gênero. Isso para não falar de um temor ainda maior: o que acompanha toda suspeiçãopela continuidade como se nela se inscrevesse, necessariamente, o que se repudia sob o nomemetafísica.

2 Lembramos a essas amplas condutas, imbuídas desse espírito persecutório e que dominam osambientes acadêmicos, que aquilo que Aristóteles chama de mímesis criadora é o norte do quese tenta visualizar, seguindo preceitos de dois grandes filósofos do século XX: Eric Weil ePaul Ricoeur – eles próprios protagonistas desta investigação. Do primeiro a assertiva segundoa qual não há filosofia original e do segundo a ideia de que o investigador da filosofia assumeresponsabilidade pelos problemas que suscita a partir do que já fora consolidado.

3 Entretanto, se esquece com frequência que o estabelecido em filosofia, as fontes que abastecemsua reflexão (sejam elas filosóficas ou não) não são pacíficas, pelo contrário, o que serve àfilosofia é quase sempre o que lhe oferece resistência, o que foge à sua reflexão e se recusa àunidade. O que se trata de compreender em filosofia, diz Eric Weil:

é precisamente o que não é coerente, não é discurso unido por uma categoria, não é atitude impelidaà unidade pela reflexão. Para a filosofia... a história tem seu sentido em sua coerência, mas temseu conteúdo no incoerente, no contraditório, na violência: a retomada, para empregar um termokantiano, é o esquema que torna a categoria aplicável à realidade e que permite assim realizarconcretamente a unidade da filosofia e da história. (LP, 82).

4 Permitimo-nos visualizar um projeto da filosofia postulado, porque já iniciado e em plenoexercício. Nesse caso, tal projeto exige que se submeta toda riqueza da multiplicidade dasatitudes na história à filosofia. Não se trata de qualquer continuidade que se insere sub-repticiamente, muito pelo contrário, trata-se de uma posição filosófica (o que certamente é umtruísmo) assumida com conhecimento de causa. Pois é sobre a problemática da multiplicidadeda verdade em história, da variedade dos discursos e das interpretações, mais precisamente,sobre o conflito das interpretações que Ricoeur enseja a filosofia hermenêutica.

História e verdade em retomada5 É conhecida a boa impressão que a obra de Eric Weil, muito especialmente o conceito

retomada, causou em Paul Ricoeur.1 Razão pela qual o hermenêuta não ignora esse conceitoquando o aprecia sob uma refinada observação crítica (cf. AEW, p. 413 ss.). Não nos competirádiscutir aqui a procedência e as consequências dessa crítica, mas tão somente tentar alinhar aaplicabilidade da retomada tal qual ela se apresenta na Logique de la Philosophie e seu rastrona hermenêutica de Ricoeur.

6 Para tanto nos valeremos inicialmente de um texto no mínimo curioso sob esse aspecto:História e Verdade. Surgido em 1955 em primeira edição, essa obra, por se tratar de umacoletânea de escritos dispersos ao longo dos anos 1949 a 1954 e, portanto, contemporâneaà publicação da Logique de la Philosophie (1950), talvez nos sirva, ao receber essa unidadesistemática na forma de um livro, como pista reveladora de uma possível cumplicidade deprincípio à qual aludimos acima e que, doravante, intentaremos deixar sugerida.

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 3

Cultura, Vol. 31 | 2013

7 São muitas as vozes que se ouvem em História e Verdade. O seu tom é o do diálogo esua justificativa permanentemente com as mais díspares posições históricas e filosóficas,uma característica que se estenderá por toda produção intelectual de Paul Ricoeur. Mas,apesar de (ou graças a) toda essa diversidade, obra que não abre mão do que o filósofochama de a elucidação dos conceitos diretores, isto é, segue a investigação dos procedimentosepistemológicos rumo a uma theoría, mas que também é, ao mesmo tempo, o percurso daprópria crise civilizatória em andamento mediante a intervenção teórica. É assim, olhandopara um todo maior que o envolve, uma theoría, é que se sente mais capaz de se misturar aosacidentes históricos com todos os enigmas que neles se enredam.

8 Os textos reunidos nesse livro apenas mantêm certo parentesco de ritmo cuja regra desua consonância involuntária é ainda, em parte, estranha ao autor (cf. HV, 07). Mas essadiversidade tem uma ordem na economia da obra, como enfatizado acima, e é a ela que o autorremete, sem cessar, com o intuito peremptório da indissociabilidade entre aquilo que orientae aquilo desvia:

a maneira filosófica de me achar presente à minha época parece-me vinculada a uma capacidadede reinterpretação das intenções remotas e dos pressupostos radicais de ordem cultural subjacentes(...) Assim a reflexão sobre o acontecimento me recambia a essa pesquisa das significações eencadeamentos nocionais. (HV, 08).

9 É evidente, a partir de uma fala como essa, que a organização metodológica presente nessaobra já é, ela própria, em retomada. Para ser mais explícito: “creio na eficácia da palavraque retoma de modo reflexivo os temas geradores de uma civilização em marcha” (HV, 09),ou ainda: “a história do historiador é obra escrita ou ensinada, que, como toda obra escritae ensinada, só tem seu termo no leitor, no aluno, no público. É essa retomada, pelo leitorfilósofo, da história tal qual é escrita pelo historiador que da origem aos problemas”. (HV,35). O leitor filósofo é tido como aquele que se reconhece num outro e só se reconhece porqueesse outro lhe faz problema.

10 A leitura da história aparece assim como segunda leitura, uma re-leitura do filósofo que, emRicoeur, prima menos pela singularidade dos discursos filosóficos do que pelos problemas alisuscitados e que reivindica, para cada um desses problemas, o mesmo estatuto que se atribuiao movimento de conjunto da razão operante (cf. HV, 40). A tensão entre Uno e Múltiplo emRicoeur não ocorre somente entre o pensamento que caminha rumo ao discurso absolutamentecoerente como em Weil, mas se defronta, se perde, se desapossa, se desvia a cada novaencruzilhada, ou se se permitir a cada fronteira, cuja abertura e ramificações são tão dignas deincursões quanto a escolha pela compreensão global.

11 Dirá então que a história “é una pelo progresso dos instrumentos, tem muitas maneiras de sermúltipla; divide-se não somente em civilizações e períodos, no espaço e no tempo, ainda emcorrentes que desenvolvem cada qual seus próprios problemas, suas crises e suas invençõespróprias” (HV, 90). O espírito dessa nova empreitada da história deverá ser receptivo, de total“disponibilidade”, de franca “submissão ao inesperado”, de aplicada “abertura a outrem” (HV,35). Ricoeur está convencido que uma filosofia sistemática encerra a história, encerra umahistória. (cf. HV, p. 78 ss.). Mas seu termo por um leitor, o filósofo, é abertura, prosseguimento.

12 É esse duplo movimento que chamará de via curta e via longa: o entrelaçamento no quala subjetividade privada está envolta de imediato, mas que também participa do itineráriodesenvolvido, preferencialmente, pela investigação da história da consciência. Ambas devemse corresponder para uma maior consciência de si mesmo. Passemos então a esse exercício.

A via curta e a via longa do “enxerto hermenêutico sobre afenomenologia”

13 Serão também as irradiações multívocas que participam da preocupação de Ricoeur quando elese propõe fundar, em O conflito das interpretações, a hermenêutica na fenomenologia ou seucélebre “enxerto hermenêutico sobre a fenomenologia” (cf. CI, 09). Sua inquietação mestra éa relação que se pode estabelecer entre a vida das múltiplas significações e seu encadeamentocoerente capaz de facultar toda e qualquer compreensão da vida (cf. CI, 09). Nesse caso, avia curta assumirá a face da ontologia da compreensão, à maneira heideggeriana, que põe o

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 4

Cultura, Vol. 31 | 2013

problema da compreensão ao nível da finitude do ser desvencilhando-se dos enrijecimentosmetodológicos epistemológicos e assumindo a compreensão como um modo do próprio ser –o Dasein só existe compreendendo.

14 Para Ricoeur, a Analítica do Dasein leva ao encontro do último Husserl. Aquele que pôso acento crítico da fenomenologia no objetivismo. Acento que, levado às suas últimasconsequências, é a contestação da importação compulsória do modelo metodológico dasciências naturais pelas ciências humanas. Afasta-se, consequentemente, com isso tambémdo projeto diltheyniano conduzindo essa reflexão à Lebenswelt, ou seja, à anterioridade darelação sujeito-objeto ditada pelo “mundo da vida” que não é outra coisa senão a plenitudedas significações. O último Husserl, assim, segundo Ricoeur, subverte ao substituir umaepistemologia da interpretação por uma ontologia da compreensão (cf. CI, 10). Destarte,muito esquematicamente falando, estariam delineadas as contribuições dessa ontologia dacompreensão à hermenêutica.

15 Entretanto, a Ricoeur, a constatação da ontologia indica tão somente uma orientação, mas nãofinaliza o processo. Isso porque põe em dúvida se essa ontologia direta que prescinde, logode saída, da exigência metodológica – e do círculo da interpretação por ela próprio deduzido(cf. CI, 10, TA, 337ss.) –, é capaz de manter o horizonte problemático de partida e superar aparcialidade na qual lança toda interpretação. A Analítica do Dasein ignora deliberadamentetais problemas uma vez que seu desígnio não é resolvê-los, mas dissolvê-los (cf. CI, 13).Ricoeur, assim, se põe de pleno acordo com Eric Weil quanto a essa insuficiência da ontologia.Para Weil, a ontologia é incapacitada para fundar um discurso único sobre o qual todosestariam de acordo, um discurso que perpasse todas as comunidades (cf. LP, 36) e que façasentido para cada uma delas a despeito dos sentidos multívocos que lhes constituem. Umproblema se torna evidente: a atestação da multiplicidade e a necessidade de sua superação.

16 Essa é a razão pela qual, nos parece, é preciso empreender a segunda marcha, a via longaque também determina o “enxerto”. Essa outra via assume, “ambiciosamente”, no dizer dohermeneuta, a tarefa de alcançar – mas ao preço de uma modificação estrutural do seu percurso– o nível da ontologia em duplo plano: semântico e reflexivo. Ricoeur parte da ideia de quese devemos buscar a compreensão como modo de ser será na linguagem mesma que se devebuscar. De tal modo que a análise da linguagem se revela necessária e com ela o contatoconstante com as práticas metódicas de interpretação oriundas de certas disciplinas.

17 Mas não se deve perder de vista que a linguagem expressa toda compreensão ôntica: o textoé, por excelência, o campo da existência polissêmica. Essa observação, longe de interditar oconcurso metodológico o pressupõe. Reza aqui o motivo pelo qual se deve, nesse primeirotrecho da via longa, o plano semântico, encontrar “um eixo de referência” que sirva parao conjunto da hermenêutica (cf. CI, 14). Para Ricoeur, um caminho que vai da exegese àpsicanálise, atravessado por diferentes autores, tais como Santo Agostinho, Schleiermacher,Dilthey, Nietzsche e Freud, concebe que a pluralidade de sentidos presentes, seja no texto,na escrita, ou na cultura, além de se imbricarem mutuamente, expressam – a despeito (mastambém por causa) da objetivação que a submete –, a própria vida. Em todos é possívelverificar certo dispositivo de transferência que permite a compreensão do sentido sempreerrático da vida no sentido fixado da obra acabada (e/ou reciprocamente). O “nó semântico”ou o “elemento comum” que orienta a investigação hermenêutica aparecerá assim sob a figurado duplo ou múltiplo sentido, cuja função será, a cada momento e de modo diferente, mostrar-se ocultando-se (cf. CI, 14).

18 A semântica, aos olhos de Ricoeur, se torna simbólica, isto é, movimento na linguagem queexpressa a multiplicidade de sentidos. Ora, o que essa multiplicidade comporta, em si mesma,é a tensão entre um sentido oculto e um outro sentido aparente: o símbolo. Este, por sua vez, éincapaz de deixar vir à tona seu aspecto oculto senão por uma decifração, que embora parcial,porque indireta, é somente captada de maneira figurada. Mas é, exatamente, nesse processoque ocorre um estreitamento, no qual uma pluralidade é interpretada como um duplo. Decorre,dessa duplicidade que caracteriza o símbolo, um renovado conceito de interpretação: “háinterpretação onde houver sentido múltiplo; e é na interpretação que a pluralidade dos sentidostorna-se manifesta” (CI,15). É o próprio campo hermenêutico que sofre alargamento por

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 5

Cultura, Vol. 31 | 2013

esta nova determinação da interpretação. O que fica claro nesse processo é que a pluralidadedos sentidos passa (no melhor estilo hegeliano) pela interpretação e que, por sua vez, dá-sea compreensão nesse estreitamento que é a apreensão do duplo oculto-aparente, no qual osegundo é desdobrado no primeiro.

19 A análise linguística demonstra que, ao tabular as diversas modalidades da expressãosimbólica, chega-se a uma estrutura comum, mas não sem o complemento do recurso dafixação das formas aparentadas que se pode perceber no conjunto de certas disciplinas díspares,tais como a fenomenologia e a psicanálise. Concluirá nesse primeiro trecho um projeto dahermenêutica:

Ela começa por uma investigação, em extensão, das formas simbólicas e por uma análisecompreensiva das estruturas simbólicas. Prossegue por um confronto dos estilos hermenêuticos epor uma crítica dos sistemas de interpretação, referindo a diversidade dos métodos hermenêuticosà estrutura das teorias correspondentes. Prepara-se, assim, para exercer sua mais alta tarefa, queseria uma verdadeira arbitragem entre as pretensões totalitárias de cada uma das interpretações.Ao mostrar de que maneira cada método exprime a forma de uma teoria, ela justifica cada umanos limites de sua própria circunscrição teórica. Eis a função crítica dessa hermenêutica tomadaem seu nível simplesmente semântico. (CI, 16 e 17).

20 Projeto que clama em sua constituição, como podemos observar, pelo problema da unidadedo falar humano. É praticamente impossível não sentir aqui as reverberações da Logique de laPhilosophie, mas deixemos essas comparações para em seguida. Sigamos por ora a reflexãoricoeuriana.

21 Pois bem, o enfoque semântico tem duplo êxito: não rejeita, não obstante suas ressalvas,nenhuma das metodologias no campo da análise linguística, além de fundir a hermenêutica nafenomenologia, dado que certos cruzamentos no campo linguístico são inevitáveis. Mas essepercurso necessário, para Ricoeur, não é suficiente. A ele deve se acrescentar o plano reflexivose um projeto de uma hermenêutica filosófica deve ser levado adiante.

22 Ao observar que a própria linguagem exige ser referida à existência, como se verificouanteriormente, conclui-se desse ponto uma espécie de caminho de volta. Ora, não se tinha antespartido da ontologia e se chegado à linguagem? Parece que agora é exatamente o contrário:um caminho de regresso que reintegra a semântica na ontologia é propiciado pela reflexão: “oelo entre a compreensão dos signos e a compreensão de si”, um si revelado como um existente,mas recuperado como um resultado, captado reflexivamente. Assim, diz:

Toda interpretação se propõe a vencer um afastamento, uma distância, entre a época culturalrevoluta, à qual pertence o texto, e o próprio intérprete. Ao superar essa distância, ao tornar-secontemporâneo do texto, o exegeta pode apropriar-se do sentido: de estranho, pretende torná-lopróprio; quer dizer, fazê-lo seu. Portanto, o que ele persegue, através da compreensão do outro,é a ampliação da própria compreensão de si mesmo. Assim toda hermenêutica é, explícita ouimplicitamente, compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro. (CI, 18).

23 O cogito só é capaz de prosseguir informando qualquer conhecimento de si mesmo se obtivermediações de tudo o que lhe envolve, se a ele aplica-se às objetivações nas quais a vida sereflete. É somente assim, na posse de um outro, que o cogito é para si mesmo.

24 Mas esse outro do cogito não é somente esta circunscrição inapelável do mundo da vida paraonde é inelutavelmente tragado. Há outro cogito que igualmente impõe sua verdade (que nocaso é não-verdade ou ainda verdade difusa): o abismo em que se esgueira, nas suas múltiplasartimanhas, a falsa consciência. Esse domínio secreto do e no humano no qual a todo momentopodemos sempre cair – muito embora não inadvertidamente desde que os mestres da suspeitanos armaram para vigília. Para Ricoeur, essa ultima razão é o que qualifica uma filosofia dareflexão num registro oposto ao de uma filosofia da consciência. De maneira diferente; eis porque uma história da consciência deve abrir espaço para uma filosofia da reflexão.

25 A conclusão pelo paradoxo é inevitável: a compreensão se dá apenas quando consideramosas objetivações da vida que por sua vez só se oferece em interpretações precárias oriundasda falsa consciência. Pode-se assim justificar porque uma hermenêutica filosófica, aos olhosde Ricoeur, deva também ser uma hermenêutica crítica. O hermeneuta deve conduzir a máinterpretação à compreensão. Sobretudo porque se no plano semântico o sentido por acréscimo

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 6

Cultura, Vol. 31 | 2013

tornou-se perceptível, escapa-lhe, no entanto, o sentido difuso, operado pelo ardil da falsaconsciência, somente explicitado e atingido no plano reflexivo.

26 Com efeito, a última palavra ainda não será dada neste plano. Deduzir a existência pela reflexãosem percorrer essa etapa (existencial) é o mesmo que ter corrido em círculo sem chegar a lugaralgum. A via curta, da ontologia do ser como um dado, e a via longa, do processo gradativo quealcança indiretamente o mesmo ser, devem agora se encontrar na esfera da própria existência.Se uma via informou que o ser é pressuposto, a outra só pode aceitar, após sua meditação,concebendo esse ser como ser interpretado no próprio movimento da interpretação (cf. CI,20). Esse regresso à problemática do ser demanda, por parte da filosofia, recursos dos quaisela não dispõe de imediato e só os terá acessando outra disciplina, a psicanálise. Noutrostermos, Ricoeur propõe uma leitura filosófica da psicanálise: ora, se o ser revelado é reveladona linguagem e se a consciência é incapacitada para perceber o que a aflige, então é precisodescer desse aparente chão da consciência ao movediço território do inconsciente e receber,de bom grado, as contribuições fundamentais que a psicanálise tem a oferecer à filosofia.

27 Para Ricoeur, é exatamente na crítica das pretensões da consciência de erigir-se como fonte einstância de sentido que a psicanálise se volta para a ontologia. Descobrir fundamentalmenteque o homem se orienta em sua vida por suas pulsões, pelo seu desejo, é encontrar igualmentesua raiz existencial. O inconsciente é a zona na qual as significações fundamentais da vida sedistinguem radicalmente daquilo que a consciência imediata registra. Essa hermenêutica dasprofundezas que é a psicanálise, para falar como Habermas, acentua a mesma questão desdesempre: a relação entre linguagem e vida, significação e desejo, sentido e energia (cf. CI, 21).

28 A reflexão é ultrapassada na direção da existência quando se opera a decifração do sentidoposto pelo desejo, mas o acesso a esse sentido no desejo ocorre sempre como interpretação.O ser, para Ricoeur, permanece ser interpretado. Daí que muito mais importante que odeslocamento do sujeito para detrás de si mesmo é o fato do deslocamento ou o movimentoda interpretação. A comparação com outra hermenêutica, a da Fenomenologia do espírito, éindicativa dessa tese: enquanto o primeiro tipo de hermenêutica opera por regressão ao arcaicoem direção ao que ele chama de uma arqueologia do sujeito, esse segundo tipo procede pelomovimento do sentido em marcha, em que uma teleologia do sujeito define, na etapa seguinte,a superação de uma figura anterior por outra mais atual porque retém, para si mesma, todosentido que a precedeu.

29 O intuito de Ricoeur é o de destacar como no próprio movimento da interpretação umaalteridade fundamental é necessária para a compreensão do sentido. Somente na dialéticadas figuras do oculto no aparente é que a existência se torna significativa. Uma tomada deconsciência de um si existencial ocorre pela apropriação do que se põe fora desse si, mas que,igualmente, lhe diz respeito. Tudo o que se estabeleceu como cultura (obras, instituições, etc.)fala desse si. A imersão num si do sujeito passa pela exegese da objetivação do mundo dacultura (cf. CI, 22ss).

30 O mesmo se aplica ainda a uma fenomenologia da religião que dirige a compreensão nãopela arché (psicanálise) ou pelo télos (Fenomenologia do Espírito), mas pelo sagrado, poisvisa uma escatologia. De qualquer forma, uma vez mais, é a compreensão de si mesmo numoutro que é reclamada para o horizonte ontológico. E será mais efetiva tal compreensãoquanto mais radical for a despossessão de si mesmo pela leitura de um outro, como é o casoda fenomenologia da religião que, segundo Ricoeur, não se dá ao sujeito e é, até mesmo,inacessível a ele. A ontologia assim se revela inseparável do sôfrego trabalho da interpretação(cf. CI, 23). Noutros termos, não há triunfo de uma ontologia, mas antes sua mutilação emface da visada que lhe constitui o processo da interpretação.

31 Contudo, interpretações rivais, longe de se encerrarem em monólogos, podem ser esclarecidasquanto ao lugar existencial de onde falam e, portanto, mobilizadas para reconhecerem umaúnica problemática que as envolvem. A tarefa da hermenêutica então será a de mostrar a essasmodalidades seu abrigo numa mesma estrutura ontológica que possibilita toda a diversidadedas interpretações por intermédio da riqueza interpretativa a que se prestam determinadossímbolos. Da unidade que é o símbolo se deduz a multiplicidade das interpretações.

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 7

Cultura, Vol. 31 | 2013

32 Ao fim do percurso, Ricoeur estabelece o vínculo entre via curta e via longa. Não é possível,para ele, prescindir de uma ou outra, é necessário para reconhecer-se e compreender-se asi mesmo percorrer a diversidade das filosofias individualizadas, mas percorrê-las em seusdesencontros harmônicos. É o que, percebemos, ocorrer no outro exemplo, o do debate entreHans-George Gadamer e Jürgen Habermas ao qual, agora, submetemos nossa análise.

Uma moldura do debate Gadamer/Habermas e a “retomada”hermenêutica ricoeuriana

33 Não nos compete desenvolver linha a linha esse magnífico debate que entrou para os anais dahistória da filosofia,2 os limites e propósitos desta comunicação se debruçam sobre um aspectomuito específico dele: o de demonstrar como o procedimento de Ricoeur nesse conflito assumeo mesmo movimento da retomada no contexto da filosofia weiliana. Não por outra razãotomaremos o curso desenvolvido desta contenda descrita e analisada pelo próprio Ricoeur.

34 Pois bem, uma vez mais percebemos que é no liame, no ponto axial da imposição da alternativa,no caso, entre hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias – no qual ocorre pretensãode universalidade de uma em detrimento da outra –, que a hermenêutica de Ricoeur opera.É aqui (ou assim) que se insere sua filosofia hermenêutica ao esboçar um programa dehermenêutica crítica que busca compreender a controvérsia entre Gadamer e Habermas numatensão em complementaridade.

35 Muito esquematicamente falando, a raiz da crítica ou a “pedra de toque”, como diz Ricoeur,desferida por Habermas à hermenêutica gadameriana pode ser resumida na maneira como estacompreende a tradição e, conjuntamente a isso, sua reabilitação do preconceito e da autoridade.Para Gadamer os pré-conceitos não constituem um gênero indissolúvel, não há apenas pré-conceitos falsos, mas existem aqueles que informam e carregam sua legitimidade que é alegitimidade própria da tradição.

36 Para a hermenêutica das tradições certos acordos preexistem para o bem da própriacomunidade “no sentido de reconhecer que, à margem dos fundamentos da razão, a tradiçãoconserva algum direito e determina amplamente as nossas instituições e comportamentos”.3

Assim, a hermenêutica, voltada para a existência de acordos prévios, quer, na esteira doesquecimento do ser heideggeriano, “descobrir e tornar consciente algo que permaneceencoberto e desconhecido por aquela disputa sobre métodos, algo que, antes de traçar limitese restringir a ciência moderna, precede-a e em parte torna-a possível”,4 como dirá o próprioGadamer na abertura de seu magistral livro. O que se propõe, assim, deste lado do debate,segundo Ricoeur, é “o reconhecimento das condições históricas às quais toda a compreensãohumana está submetida ao regime da finitude” (TA, 329).

37 Habermas não vê como acordos e consensos podem ser garantidos em dada comunidade, umavez que esta é incapaz de superar o fenômeno da ideologia, tomada, por ele, como distorçãosistemática da comunicação que aflige essa comunidade. Ademais, a ideologia unida a outrofenômeno do qual é tributária, o da dominação, constitui o agravante de qualquer compreensãodo pertencimento como quer a hermenêutica das tradições. Tal patologia, não somente dacomunicação, mas da própria linguagem, distorcida nas condições de exercício que, concre-tamente, vinculam-se nas relações societárias do mundo do trabalho e do poder, requer, paraHabermas, que procedimentos explicativos sejam acionados, uma vez que os membros dacomunidade ignoram o desvirtuamento da comunicação a serviço da dominação. O limitedessa hermenêutica, como entende Habermas, se inscreve na natureza de seu campo demobilidade: a comunicação da linguagem ordinária. Ainda segundo Habermas, há proposiçõesque resistem a esse domínio porque estão inseridos em sistemas linguísticos organizadosmonologicamente e, consequentemente, escapam da competência do hermeneuta.5 Essasuperação, através da explicitação explicativa, somente pode ocorrer, a seus olhos, pela crítica,mais precisamente, pela crítica das ideologias.

38 O cerne de sua reprovação ao status do pertencimento hermenêutico de Gadamer é porquepercebe, de imediato, a ontologização dessa hermenêutica e, consequentemente, no acordoprévio aquilo que se impõe como constituinte de uma tradição e seus derivados (preconceitoe autoridade). É a propósito dessa hipóstase que Habermas brama contra Gadamer sua aposta

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 8

Cultura, Vol. 31 | 2013

do ideal de comunicação capaz de balizar os comunicadores contra todas as formas assumidaspela falsa consciência que se apresentam aos agentes e, assim, conduzi-los, pela reflexãodiscursiva, a um exercício permanente de recusa da autoridade pela dominação.

39 Essa curiosa questão de fundo sob o solo da ontologia é bastante reveladora, nela podemosverificar uma retomada da crítica de Marx dirigida a Hegel: a que reprova o atraso da dialéticade Hegel em relação ao sentido encontrado dado que o olhar deste é sempre retrospectivo,enquanto Marx aponta para frente às baterias que irrompem o sentido.6 Weil sobre isso, parecerealinhar ambas as posições quando reconhece que o discurso ontológico vê com profundidadeo problema da multiplicidade dos discursos, muito embora seja incapaz de superá-los como discurso que seja do homem no qual todos os homens estariam de acordo (cf. LP, 34 ss.).A investigação de Ricoeur parece querer o mesmo realinhamento, tal como a retomada naLogique de la Philosophie exige a libertação do sentido de todos os traçados definidores. Eis,portanto, por que não deve surpreender a aparição de Eric Weil, numa formulação da retomada,nesse debate sobre a tradição:

Ter-se-á observado, todavia, que Gadamer utiliza a palavra Vernunft, razão, e não Verstand,entendimento; é possível um diálogo, baseado nisto, com Habermas e K. O. Apel, tambémeles preocupados em defender um conceito de razão distinto do entendimento planificador, quevêem sujeito ao projecto puramente tecnológico. Não se exclui que a distinção, cara à escola deFrancfort, entre a acção comunicativa, obra da razão, e ação instrumental, obra do entendimentotecnológico, apenas se sustenta pelo recurso à tradição – pelo menos à tradição cultural viva – poroposição à tradição politizada e institucionalizada. A distinção que, igualmente, Eric Weil entreo racional da tecnologia e o razoável (raisonnable) da política seria também aqui, bem colocada;também em Eric Weil, este razoável não existe sem um diálogo entre o espírito de inovação e oespírito de tradição. (TA, 341).

40 Ricoeur, a despeito de sua defesa da tradição contra certa pretensão da crítica das ideologiasem desautorizá-la como fonte do conhecimento, não deixa de estabelecer os limites destacompreensão da tradição em Gadamer, cuja orientação ele qualifica de submissa e, nessesentido, menos acolhedora da crítica das ideologias (cf. TA, 333). Ora, sabemos que paraEric Weil a tradição é vista de maneira cumulativa e objetiva avançando e informandoaos que vivem hoje seu próprio sentido, ao contrário do que encontramos em Gadamercujo movimento, empreendido pelo intérprete, é sempre regressivo na direção de uma zonaprimitiva onde se desenvolve a vida da consciência.7

41 Ricoeur parece ter em mente, quando reclama a presença de Weil nesse debate, o polifacéticoconflito entre justiça e eficácia como foi formulado na Filosofia Política, e vê, nessa dinâmicaatual do conflito entre hermenêutica e crítica das ideologias uma insuficiência, não do conflitoem si, mas da incapacidade das posições conflitivas verem que somente sob o efeito de umaretomada criadora das heranças culturais que aponte para um despertar sempre renovado daresponsabilidade política é que poderão receber seu sentido.

42 Semelhante a Weil, Ricoeur mantém equidistância tanto do discurso da condenação doprogresso técnico quanto daquele que recusa absolutamente toda nostalgia das comunidadestradicionais em nome da absoluta inovação. Não por acaso, o que chamará de o paradoxopolítico é o que aproximará, por vezes, da formulação weiliana da tarefa de todo Estadomoderno: a conciliação entre justiça e eficácia, entre o cálculo da racionalidade moderna e ofundo histórico que informa todo sentido da vida humana.8 Contrário à dualidade estabelecidapela reedição do duelo entre o Romantismo e a Aufklärung – pois é como vê, em parte, o debateGadamer-Habermas que gira em torno à tradição, ainda que tenha avançado em relação ao seuformato original – Ricoeur, a favor de ambos, convoca Weil.

43 Nada disso soa estranho quando consideramos o que diz a Logique de la Philosophie sobre arelação entre comunidade e linguagem. Para Weil, não existe tradução automática em discursodaquilo que é. Na verdade a linguagem, da qual o homem faz uso, é forjada nos interesses enas convenções, criada para a satisfação das necessidades da vida comunitária e inventada, poresta, para esses fins. Essa é a razão pela qual a linguagem se revela limitada quanto à apreensãodo que está no fundo das aparências. (cf. LP, 51). A linguagem, embora seja a única maneirade a comunidade falar de si mesma, é a maneira precária de enunciar a verdade. Em síntese:a verdade é sempre o que está no fundo do discurso (cf. LP, 89).

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 9

Cultura, Vol. 31 | 2013

44 De outra maneira, as distorções da comunicação numa comunidade, longe de interditar acompreensão desta, a pressupõe uma vez que é somente por auto referência que uma tradiçãohistórica se revela. A linguagem nasce da necessidade: essa constatação explica, ou dela sepode deduzir, toda hermenêutica ou se se quer sua necessidade. Isso porque ao não poderenunciar o que seja a verdade ou enunciar tão somente negando tudo aquilo que não é verdade,dado seu caráter prático, a linguagem se presta a todo tipo de interpretação.

45 É nesse passo, a nosso ver seguindo uma indicação dada por Grondin, que Ricoeur irá vincularo conflito entre a hermenêutica e crítica das ideologias a outra distinção entre dois tipos dehermenêutica: a da confiança e a da suspeita. Distinção que estabelecerá muito antes desseconfronto entre Gadamer e Habermas e que talvez constitua uma das ideias mais fundamentaisde toda sua hermenêutica. Para Ricoeur, é preciso tomar junto essas duas modalidadesinterpretativas: a confiança que se apropria do sentido tal qual ele se dá à consciência naexpectativa de orientação, e a suspeita que se distancia da experiência imediata do sentido parareconduzi-la a uma economia mais secreta.9

Retomadas e conflito das interpretações46 O que propomos agora é demonstrar como nesses dois momentos discorridos, a hermenêutica

ricoeuriana assume a mesma operação lógica da retomada weiliana em relação ao conflito dosvários discursos filosóficos, como é possível verificar na Logique de la Philosophie. Aliás,não temos hesitado dizer que é em retomada o procedimento da hermenêutica de Ricoeur. Oespecífico, no entanto, é a clivagem por onde incursiona aquilo que a Logique de la Philosophieindica mas não desenvolve, dado que para ela as retomadas são infinitas – pois todas ascombinações são possíveis (cf. LP, 230) – e, nesse caso, não compete a essa lógica da filosofiademonstrar todas as suas possibilidades, mas tão somente a sua possibilidade.

47 Eric Weil define a retomada como “o conceito que permite a aplicação da lógica à realidadehistórica, em outras palavras, que permite a compreensão dos discursos concretamentesustentados pelos homens do passado e do presente” (LP, 82). Ora, sabemos que aquilo comque se ocupa a Logique de la Philosophie é a pluralidade das formas discursivas cujas filosofiasparticulares constituem sua realidade: a filosofia só existe enquanto filosofias, melhor ainda,enquanto conflito das filosofias. O problema, para ser mais enfático, consiste em tentar falarde filosofia no singular e não somente no plural, mas no singular como uma filosofia pluralistacapaz de superar o monologismo em que se encerram as diversas filosofias ou as “sabedoriasabsolutas” a que Weil se refere alhures (cf. PR I, 09).

48 Para Weil, é a retomada que compõe em unidade essa multiplicidade das atitudes humanas queos filósofos desenvolvem em sistemas de pensamento. Contudo, não há somente linearidadena comunicação das filosofias, mas também circularidade. É circular porque nos possibilitareconhecer o passado da humanidade como nosso próprio passado, é linear pelo abandonoque cada homem submete a si mesmo ao conceber suas decisões como estritamente pessoaise sem qualquer alcance universal, no interior de um mundo estável (cf. LP, 80). A vida dohomem, por toda sua fecundidade irradiadora, é o que informa toda elaboração posterior: “Ohomem retoma... um discurso que, em sua ação, ele já ultrapassou...” (LP, 82). Assim, se podecompreender porque a retomada possibilita a passagem da atitude à categoria bem como todatentativa de unidade do problema filosófico. Ricoeur elabora o mesmo problema da seguinteforma: “A história, para nós homens, é virtualmente contínua e descontínua, contínua comoúnico sentido em marcha, descontínua como constelação de pessoas” (HV, 42).

49 O núcleo em torno do qual gira todo esse empreendimento é o que compreende ser, exatamente,as vicissitudes o que prende as filosofias umas às outras. Aquilo que constitui problema éa ausência de uma unidade de sentido entre os vários discursos, a despeito de todos elesreivindicarem para si mesmos sua coerência em detrimento de outros ou mesmo sem fazerapelo algum à coerência, mas não se libertando dela em absoluto dado que entraram no domínioda linguagem e são discursos.

50 Desde as primeiras linhas a Logique de la Philosophie guarda a lucidez quanto ao problemadessa precariedade do discurso: “como se orientar na vida, como tomar uma decisão diante daviolência se o que o discurso diz a seu respeito não é consistente, nega a si mesmo, se aquilo

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 10

Cultura, Vol. 31 | 2013

que é, ora é isso, ora é aquilo?” (LP, 29). Difícil não cruzar tal questão com toda problemáticaperseguida por Ricoeur tanto em relação ao confronto entre hermenêutica e fenomenologia,quanto ao que concerne o problema da tradição e da crítica. Nesses momentos percebemosque o problema da ontologia é tomado com muita seriedade porque encarado como orientação,muito embora o discurso ontológico não seja, para nenhum dos dois filósofos em questão, aúltima palavra.

51 É sob o problema da multiplicidade discursiva em função da unidade temática – em queo sentido se circunscreve –, que a retomada constitui, para ambos os filósofos, a operaçãode segundo grau na qual a filosofia se desenvolve como interpretação e se compõe comoabertura a toda alteridade. O norte de toda essa dinâmica é a busca pelo destravamento epela captação do sentido. Na Logique de la Philosophie as categorias-atitudes somente sãocapazes de desenvolvimento dando ouvidos, ao máximo, às precedentes e que ao falaremde si mesmas acabam por formular o que constituirá a sucessiva. É como ouvinte, comointérprete, numa palavra, como leitor que uma categoria-atitude põe termo à categoria-atitudeprecedente. Não nos parece despropositado assentar a refiguração ricoeuriana sob a retomadaweiliana dado esse papel de leitor (ou intérprete) exercido pela categoria-atitude sob uma outracategoria-atitude (ou mesmo pela categoria sob a atitude), ao mesmo tempo em que se elaboraobservando todas as aporias lançadas por esta e só podendo constituir-se em resposta a todaselas: “É por meio da retomada que a atitude se torna categoria” (LP, 98). Toda a Logique de laPhilosophie pode ser lida como a transformação de um si mesmo que passa por um outro comoatestam os pares: filosofia-história, categoria-atitude, razão-violência, linguagemdiscurso, etc.

52 Eis a razão pela qual a filosofia só é compreendida em segunda leitura (ou releitura), e ahistória, compreendida como filosofia das atitudes humanas, sempre em retomada. Sendoa passagem de uma categoria-atitude à outra uma passagem não necessária, mas livre,“injustificável” portanto, deve-se então aceitar a descontinuidade da história, dar asilo a suasrupturas, sobretudo nessas junções torcidas. Será essa série de emergências descontínuas queexigirá para si mesma uma atenção sempre nova e totalmente devotada (cf. HV, 41) no queconcerne ao projeto da hermenêutica ricoeuriana. Entretanto, isso não basta. Pois se, por umlado, a história é essa tensão entre o evento e advento, ela também é a irradiação de um únicosentido em marcha que cruza cada particularismo das atitudes-categorias individuais, comoentende a Logique de la Philosophie.

53 Seguir a pulverização, sem temor, só é possível para quem compreendeu (e tambémempreendeu) a Lógica e sabe que direção tomar, sabe que uma orientação é possível em meioà variedade dos confrontos, não só inevitáveis como necessários. Essa segunda sequência nãoé o empreendimento de uma segunda lógica certamente, mas dela não se pode desvencilhar,pois é o que está presente como aquilo que orienta, o que permite abrir picadas sem se perder.Ricoeur vai se embrenhando filosofias adentro, considerando autor por autor, frequentandoe cruzando as áreas mais distintas do pensamento, tramando de problemas em problemas,explorando cada dobra.

54 Podemos dizer então o que está em jogo nessa aplicação das retomadas nas junções é a fusãode horizontes no qual o estranho é incorporado no que é próprio, tal como ocorre nas traduçõesde uma língua para outra.10 Ou como diz Ricoeur, o restabelecimento da dialética dos pontosde vista e a tensão entre o outro e o próprio leva à fusão de horizontes... (cf. TA, 343). Por isso,para Ricoeur, o debate nunca ocorre em termos de alternativa, mas de retomadas sucessivase criadoras.

55 Bem ao modo da Logique de la Philosophie, que compreende os embates entre as filosofiascomo esforço (no limite da extenuação) para não ceder à dualidade, a hermenêutica deRicoeur é também a recusa de toda redutibilidade ao dualismo. Tudo o que se impõe comoalternativa em matéria de pensamento é problematizado por essa hermenêutica. É desse modoque vemos seu direcionamento quanto à imposição de uma escolha entre Analítica do Dasein eepistemologia da interpretação, entre psicanálise e filosofia, entre hermenêutica das tradiçõese critica da ideologias, etc. Nesse último caso, adverte textualmente que não se trata de umclamor de anexação que anima o investigador, mas da natureza mesma do pensar filosófico

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 11

Cultura, Vol. 31 | 2013

que compreende seu resultado, apesar da garantia da irredutibilidade de posições divergentes,como sendo o lugar de uma posição que se inscreve na estrutura da outra (cf. TA, 331).

56 Essa advertência, que para nós ecoa muito mais como uma confissão, remete Ricoeur aoseu parentesco originário com Eric Weil. Se Ricoeur será muito mais econômico e, portanto,discreto ao falar de retomadas após Historia e Verdade, o mesmo não se poderá dizer dafórmula qualificativa que Weil se atribuía e que o hermeneuta diz preconizar: a de kantianopós-hegeliano (cf. TN 3, 367). Seria desprovida de sentido essa tomada de posição numafilosofia e para um filósofo de franca opção pelo sentido? Não cremos.

57 Ora, o que Eric Weil busca realizar no plano das interpretações globais da história humana,Ricoeur submete a outro registro cuja natureza somente se distingue quanto ao plano, mas nãonos parece divergir quanto ao projeto. Essa constatação nos autoriza pensar a retomada emchave kantiana pós-hegeliana? O que faz Weil ao se apropriar do esquema kantiano e chamá-lo em sua Logique de la Philosophie de retomada: bem, ele o aplica sobre a multiplicidadedos discursos filosóficos e procura determiná-los no sentido de sua compreensão, isto é,ele reagrupa discursos, os tipifica – no sentido weberiano dos tipos ideais. Numa palavra:eleva uma determinação discursiva ao plano de uma compreensão universal. A retomada é,exatamente, a finitude da multiplicidade das atitudes humanas categorizada pelo discursouniversal. Como lógica da filosofia o projeto é conclusivo, foi capaz de dizer tudo e o resto,para falar como Labarrière,11 como lógica do diálogo é sistema aberto, sistema que se concluino vazio (cf. AEW, 415) e, portanto, é preciso reabri-lo também, permanentemente, em suasjunções, eixos, bifurcações e entrecruzamentos. Nesses pontos, a nosso ver, é que Ricoeurpreconiza o empreendimento da Logique de la Philosophie.

Conclusão58 Pois bem, parece-nos que é tomando por base o problema da multiplicidade, mas não se

rendendo a ele, que Ricoeur se perfila no trajeto aberto pela Logique de la Philosophie. Oque fica claro, para nós, em toda essa análise do “enxerto” é exatamente esse programa queHistória e verdade acrescenta e põe em movimento na hermenêutica.

59 Retornemos a esse livro e ouçamos o que nele nos fala Ricoeur: “recebo o ‘penhorda esperança’ quando percebo de maneira fugidia a consonância dos múltiplos sistemasfilosóficos ainda que irredutíveis a um único sistema coerente” (HV, 11). Essa será a tônicada conduta e do procedimento de Ricoeur no exame das mais diversas áreas do conhecimentohumano e, ao mesmo tempo, o tom de sua crítica (se se trata realmente de uma crítica) a EricWeil.

60 Não ignoramos os percalços dessa incipiente análise. A bem da verdade, nossa expectativa,no que diz respeito a essa investigação, é que tenha cumprido somente precariamente seupropósito. Especialmente, pelas razões que apontamos no início quanto à arriscada iniciativada prova pela continuidade em filosofia. Ainda assim insistimos no sentido da retomada edo papel que assume na composição de certos conceitos diretores da hermenêutica de PaulRicoeur, senão de sua própria escolha filosófica. A posição adotada em todas as discussões,notadamente nas que foram evocadas e sumariamente apresentadas nesta comunicação,corrobora com certa clareza, para nós, uma opção no arbítrio do conflito das interpretações,fulcro central de sua hermenêutica.

61 Mas, chamam atenção as razões que mobilizam determinados filósofos, no caso Ricoeur,a assumir decididamente outra filosofia. Particularmente, a apropriação, no sentido de suahermenêutica, da retomada de Eric Weil. Para a total compreensão de nosso propósito restaainda que indaguemos sobre o caráter dessa tomada de posição.

Bibliografia

BREUVART, J. M., “Tradition, effectivité et theorie chez Eric Weil et Hans George Gadamer”, inCahiers Eric Weil I, Lille, PUL, 1987, pp. 143-163.

BUEE, J.M., “La Logique de la Philosophie et l’Hermeneutique de Gadamer”, in Cahiers Eric Weil I,Lille, PUL, 1987, pp. 165-195.

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 12

Cultura, Vol. 31 | 2013

COSTESKI, Evanildo, Atitude, violência e estado mundial democrático: sobre a filosofia de Eric Weil.São Leopoldo, Unisinos; Fortaleza, UFC, 2009.

GADAMER, H. G., Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2.ª ed.,tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, Vozes, 1997.

GRONDIN, Jean., Hermenêutica. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

HABERMAS, Jürgen., “Conhecimento e interesse”, in Os Pensadores: Escola de Frankfurt. São Paulo,Abril Cultural, 1974.

PERINE, Marcelo., “Filosofia e crítica das ideologias”, in Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, nº 52,199, pp. 113-34.

RICOEUR, Paul., História e verdade. Tradução de F. A. Ribeiro. Rio de Janeiro; São Paulo: Forense,1968.

––––, O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Tradução de Hilton Japiassu. Rio deJaneiro: Imago, 1978.

––––, Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Tradução de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando.Porto: Rés-Editora, 1989.

––––, De l’Absolu à la Sagesse par l’Action in Actualité d’Eric Weil. Actes du colloque International.Chantilly, 21-22 mai 1982, éd. par le Centre Eric Weil, UER de Philosophie de Lille III, Paris:Beauchesne, 1984, pp. 407-423.

STEIN, Ernildo, “Dialética e hermenêutica: uma controvérsia sobre o método em filosofia”, in Síntese,Belo Horizonte, n.º 29, 1983, pp. 21-48.

VAZ, H. C. de Lima, Ontologia e história. São Paulo: Loyola, 2001.

WEIL, Eric, Logique de la Philosophie. 2 ed. Paris: Vrin, 1996 [Ed. bras. Lógica da Filosofia. Traduçãode Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012].

––––, Filosofia Política. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1990.

––––, Philosophie et Réalité I. Paris: Beauchesne, 1982.

Notas

1 É interessante notar como em boa parte de História e Verdade há rasgados elogios de Ricoeur à EricWeil, em especial à sua Logique de la Philosophie.2 Para uma caracterização mais geral desse debate remetemos às didáticas exposições de J. Grondin,Hermenêutica. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. pp. 81-91, E. Stein,“Dialética e hermenêutica: uma controvérsia sobre o método em filosof a”, in Síntese 29,1983, pp. 21-48e do próprio P. Ricoeur, TA, pp. 329-371.3 H.-G. Gadamer, Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2 ed.Tradução de Flávio Paulo Meurer, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 421.4 Idem, p. 15.5 Cf. E. Stein, Art. cit., p. 38.6 Cf. H. C. de Lima Vaz, Ontologia e história. São Paulo, Loyola, 2001, p. 133 ss.7 Cf. J-M Breuvart, “Tradition, effectivité et theorie chez Eric Weil et Hans George Gadamer”, in CahiersEric Weil I, Lille, PUL, 1987, p. 146.8 Dirá Ricoeur “Eis uma citação de Eric Weil, muito próxima do que chamo de ‘paradoxo político’:‘O problema é elevar-se à razão subsistindo, subsistir para elevar-se à razão, e este problema deve serresolvido no plano do empírico, da violência, das paixões dos grupos e dos extratos, da competição eda luta entre os Estados, no plano também do trabalho e do poder que ele oferece, da organização e,portanto, da riqueza’ (Cf. L1, p. 50 nota e PP§ 39, e).9 J. Grondin, op. cit., pp. 93 e 94. Essa verificação é perfeitamente tangencial com outra passagem daLogique de la Philosophie e que também não deverá surpreender: “No início de uma nova época – nomomento em que um novo interesse, ao querer destruir um mundo envelhecido, organiza um mundonovo –, é, portanto, uma antiga categoria que apreende a nova atitude e fala da nova categoria, e ao falara seu respeito, também a esconde e deturpa.” (LP, 82).10 Cf. E. Stein, Art. cit., p. 35.11 J.-P. Labarrière apud E. Costeski, Atitude, violência e estado mundial democrático: sobre a filosofiade Eric Weil. São Leopoldo, Unisinos; Fortaleza, UFC, 2009, p. 100.

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 13

Cultura, Vol. 31 | 2013

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Francisco Valdério, « A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil », Cultura [Online],Vol. 31 | 2013, posto online no dia 12 Dezembro 2014, consultado a 21 Fevereiro 2015. URL : http://cultura.revues.org/1872 ; DOI : 10.4000/cultura.1872

Referência do documento impresso

Francisco Valdério, « A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil », Cultura,Vol. 31 | 2013, 227-246.

Autor

Francisco ValdérioUniversidade Estadual do Maranhão – UEMANasceu na cidade de São Luís estado do Maranhão, Brasil (1972), atua no magistério desde o términoda graduação em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão (1996), ministrou aulas de filosofiapor mais de dez anos para o ensino médio, destaque para o Centro Integrado Rio Anil e LiceuMaranhense – nesse último também desempenhou a função de Diretor Adjunto. Nesse período aindacolaborou com o ensino superior trabalhando na Universidade Federal do Maranhão e no CentroFederal de Educação Tecnológica. Em 2008 iniciou estudos de mestrado pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, após defender dissertação “Dialética do Estado: ação política na filosofia deÉric Weil” (2010) prossegue estudos weilianos no doutorado pela mesma instituição. Atualmente éprofessor de filosofia na Universidade Estadual do Maranhão.Originaire de la ville de São Luís do Maranhão, Brésil, Francisco Valdério s’est dédié àl’enseignement depuis la conclusion de sa licence en philosophie de l’Université fédérale du Maranhãoen 1996, notamment au Lycée Maranhense où fut aussi directeur-adjoint, et, en tant que collaborateur,à l’Université fédérale du Maranhão et au Centre fédéral de l’éducation technologique. En 2010, iltermine avec succès son Master à l’Université pontificale catholique de São Paulo, en soutenant unedissertation sur «Dialectique de l’Etat: action politique dans la philosophie d’Eric Weil », et devientdoctorant de la même institution. Il est actuellement professeur de l’Université de l’Etat du Maranhão.

Direitos de autor

© Centro de História da Cultura

Resumos

 Refletimos como em dois momentos – no “enxerto hermenêutico sobre a fenomenologia” eno debate da alternativa entre hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias (Gadamer/Habermas) –, Ricoeur parece acompanhar o mesmo movimento operatório da retomada: dainscrição de um discurso num outro ao mesmo tempo em que compreende toda a variedadeinterpretativa decorrente dessa alteridade, isto é, da articulação uno­-múltiplo. A hermenêuticaricoeuriana é, assim, uma tomada de posição análoga àquela da Logique de la Philosophie deEric Weil em relação ao conflito das filosofias. Porém, em Ricoeur, a retomada não é mais(predominantemente) a aplicação sobre as tipologias filosóficas ou dedução coerente atravésde uma lógica global, mas diálogo singular com os problemas suscitados pelos discursos dosfilósofos em sua pretensão de universalidade e de sentido.

L'herméneutique de Paul Ricoeur et la reprise d'Eric WeilOn réfléchit comment en deux moments – dans «la greffe herméneutique sur laphénoménologie» et dans le débat de l’alternative entre l’herméneutique des traditions et lacritique des idéologies (Gadamer/Habermas) –, Ricoeur semble suivre la même procédurede la reprise: de l’inscription d’un discours dans un autre qui comprend en même tempstoute la gamme d’interprétations qui advient de cette altérité, c’est-à-dire, de l’articulation

A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil 14

Cultura, Vol. 31 | 2013

un-multiple. L’herméneutique ricoeurienne est, donc, une prise de position analogue à cellede la Loqique de la philosophie d’Eric Weil en ce qui concerne le conflit des philosophies.Toutefois, chez Ricoeur, la reprise n’est plus (principalement) une application à des typolo-gies philosophiques ou une déduction cohérente par le moyen d’une logique globale, maisun dialogue singulier avec les problèmes soulevés par les discours des philosophes dans leuraspiration à l’universalité et au sens.

Entradas no índice

Mots-clés : reprise, multiplicité, unité, Logique de la Philosophie, herméneutiquePalavras chaves :  retomada, multiplicidade, unidade, Logique de la Philosophie,hermenêutica

Notas do autor

Serão utilizadas as seguintes siglas no corpo do texto: LP – Logique de la Philosophie, PP –Philosophie Politique, PR I – Philosophie e Realité I, AEW – Actualité d’Eric Weil. Actesdu colloque International, referente às obras de Eric Weil e HV – História e Verdade, CI – OConflito das Interpretações, TA – Do texto à Acção, TN 3 – Tempo e Narrativa, tomo 3, L1 –Leituras 1, referentes às obras de Paul Ricoeur seguidos do número da página.