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Fichamento Myto e Archivo - Por Juliana Belga ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo: una teoría de la narrativa latino- americana, p.29-79, 242-259; I - UN CLARO EN LA SELVA: DE SANTA MÓNICA A MACONDO  A tradição legalista romana é um d os componentes mais sólidos da cultura latinoamericana: de Cortés a Zapata, só cremos no que está escrito e registrado.  Carlos Fuentes O autor conta e analisa a história de Los pasos perdidos (1953) de Alejo Carpentier. Nessa história, o narrador-protagonista chega a Santa Mónica de los Venados, um povo fundado por Adelantado (pessoa a quem o reino de Castilha destinava a comandar uma expedição marítima e depois concedia o governo das terras conquistadas), um de seus companheiros de viagem. O anônimo protagonista busca no Valle del Tiempo Detenido, um lugar longe da civilização, reavivar suas energias criativas e voltar à sua vida de compositor, ou seja, ser fiel a si mesmo. Ele desejava compor um poema musical baseado no texto da Odisseia. Como ficou bastante inspirado, pediu ao Adelantado papel para escrever, mas este relutou, dizendo precisar de papel para escrever as l eis de sua cidade recém f undada, mas acabou lhe dando um caderno. Rapidamente o narrador encheu o caderno e pediu outro.  Adelantado o deu, mas advertiu que seria o último. Por isso, o narrador passou a escrever com letra muito pequena, aproveitando todos os espaços. Escrever, apagar e reescrever o surrado manuscrito. Isso prefigura a economia de perdas e ganhos do Arquivo, revela a sua origem. Possivelmente, o modo da ficção latinoamericana atual foi possível graças à novela de Carpentier. Muitos manuscritos desse tipo apareceram nas obras de Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa como emblema da textualidade mesma da novela latinoamericana. O narrador-protagonista volta à civilização com o objetivo de conseguir mais papel e tinta para terminar a sua composição, mas em vez disso, escreve uma série de artigos sobre as suas aventuras, que vendeu a várias publicações. Na ficção, estes podem ser fragmentos que levam à redação do texto Los pasos perdidos (como em outras novelas modernas, um mesmo manuscrito representa, dentro da ficção, a novela em que ele aparece. Dois eventos se fizeram como inspiração e despertaram a necessidade de o narrador- protagonista escrever quando estava ainda em busca de papel e impossibilitado de voltar à Santa Mônica. Um dos fatos é que ele, que é casado no mundo moderno de

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Fichamento Myto e Archivo - Por Juliana Belga

ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo: una teoría de la narrativa latino-

americana, p.29-79, 242-259;

I - UN CLARO EN LA SELVA: DE SANTA MÓNICA A MACONDO

“ A tradição legalista romana é um dos componentes maissólidos da cultura latinoamericana: de Cortés a Zapata, só

cremos no que está escrito e registrado.” 

Carlos Fuentes

O autor conta e analisa a história de Los pasos perdidos (1953) de Alejo Carpentier.Nessa história, o narrador-protagonista chega a Santa Mónica de los Venados, umpovo fundado por Adelantado (pessoa a quem o reino de Castilha destinava acomandar uma expedição marítima e depois concedia o governo das terrasconquistadas), um de seus companheiros de viagem. O anônimo protagonista busca

no Valle del Tiempo Detenido, um lugar longe da civilização, reavivar suas energiascriativas e voltar à sua vida de compositor, ou seja, ser fiel a si mesmo. Ele desejavacompor um poema musical baseado no texto da Odisseia. Como ficou bastanteinspirado, pediu ao Adelantado papel para escrever, mas este relutou, dizendoprecisar de papel para escrever as leis de sua cidade recém fundada, mas acabou lhedando um caderno. Rapidamente o narrador encheu o caderno e pediu outro. Adelantado o deu, mas advertiu que seria o último. Por isso, o narrador passou aescrever com letra muito pequena, aproveitando todos os espaços.

Escrever, apagar e reescrever o surrado manuscrito. Isso prefigura a economia deperdas e ganhos do Arquivo, revela a sua origem. Possivelmente, o modo da ficção

latinoamericana atual foi possível graças à novela de Carpentier. Muitos manuscritosdesse tipo apareceram nas obras de Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e MarioVargas Llosa como emblema da textualidade mesma da novela latinoamericana.

O narrador-protagonista volta à civilização com o objetivo de conseguir mais papel etinta para terminar a sua composição, mas em vez disso, escreve uma série de artigossobre as suas aventuras, que vendeu a várias publicações. Na ficção, estes podemser fragmentos que levam à redação do texto Los pasos perdidos (como em outrasnovelas modernas, um mesmo manuscrito representa, dentro da ficção, a novela emque ele aparece.

Dois eventos se fizeram como inspiração e despertaram a necessidade de o narrador-protagonista escrever quando estava ainda em busca de papel e impossibilitado devoltar à Santa Mônica. Um dos fatos é que ele, que é casado no mundo moderno de

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onde vem, se vê intimado por um frade, companheiro seu, a casar com Rosário, umanativa com quem tem estado junto durante a viagem. Mas ele considera vã essacerimônia e não quer desperdiçar com o matrimônio um pedaço de papel doscadernos que tanto cobiça. Outro fato é quando se vê diante da necessidade de

executar Nicaso, um leproso que violentou uma menina do povoado. Rosário, Nicasoe o protagonista encontram um lugar comum no precioso caderno de Adelantado. Aescrita começa na cidade com o objetivo de estabelecer critérios de ordem nasociedade e criar medidas disciplinadoras e punitivas. A escrita está ligada, portanto,à fundação de cidades e às leis. A origem da novela moderna está, pois, nesta relação,cujos vestígios temáticos aparecem durante toda a sua história.

Los pasos perdidos de Carpentier marca um momento decisivo na história da narrativalatinoamericana; é a obra fundadora da ficção do Arquivo. Trata-se de um texto emque se incluem e analisam todas as modalidades narrativas importantes na América

Latina até o momento em que foi publicado, como uma espécie de memória ativa.Trata-se de um depósito de memórias narrativas, algumas obsoletas e outras queconduzem a García Márquez. É um Arquivo de narrativas e um armazém deprimorosos relatos escritos para contar sobre a América Latina.

 Assim como o narrador-protagonista da novela descobre que é incapaz de apagar oseu passado e começar de novo, o livro, ao buscar uma narrativa nova e original, deveconter todas as anteriores e, para se tornar Arquivo, voltar à mais fundamental dessasmodalidades narrativas. Los pasos perdidos nos leva aos primórdios da escrita embusca de um presente vazio onde se possa fazer os primeiros registros. Mas em vezdisso o que se encontra é uma variedade de princípios da origem, o mais poderoso

dos quais é o discurso da lei. A obra acaba, portanto, com a ilusão de que no NovoMundo é possível fazer um novo começo, independente da história. Devido a suapreocupação com as origens, o narrador-protagonista é, ao mesmo tempo, o relato da América Latina por excelência e seu desmantelamento crítico. Daí seu caráterfundador do ponto de vista tanto da história da América Latina como da novela.

No processo de descobrir a consciência de seu narrador-protagonista, Carpentierapresenta as ruínas desse estreito caminho como o mapa de seu novo projetonarrativo. Mas quais são esses fragmentos, a antologia dessas ruínas, e o que issotem a ver com os cadernos que o narrador-protagonista implora ao Adelantado em

Santa Mônica? A resposta, como uma espécie de contraponto, está em Cien años de soledad , deGarcía Márquez, texto em que voltam a aparecer esses primorosos relatos e seobservam com maior detalhe os vestígios da origem encontrados por Carpentier.Como uma ampliação fotográfica, Cien años de soledad   contém um mapa daspossibilidades ou potencialidades narrativas da ficção latinoamericana. Se a novelade Carpentier é a ficção do Arquivo fundadora, a de García Márquez é a arquetípica.Por isso, o Arquivo como mito constitui o seu núcleo. A lista de novelaslatinoamericanas que tratam da história e dos mitos latinoamericanos é muito grandee inclui obras de escritores mais jovens e menos conhecidos.

Considerando que os mitos são relatos que tratam principalmente das origens, écompreensível o interesse da ficção latinoamericana por suas histórias e seus mitos.

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 A história, por ser um depósito de relatos sobre o princípio da América Latina moderna,é crucial para a formação do mito latinoamericano.

 A história latinoamericana sempre tem prometido não só ser nova, mas diferente. Por

outro lado, a novela, que parece ter surgido no século XVI, ao mesmo tempo que ahistória latinoamericana, é o único gênero moderno, a única forma literária que émoderna não só no sentido cronológico, mas também porque tem perdurado porséculos sem uma poética, desafiando sempre a noção mesma de gênero.

 A característica mais constante nos livros que tem recebido o nome novela na eramoderna é a pretensão de não ser literatura. Outras novelas são ou pretendem serautobiografias, uma série de cartas, um manuscrito encontrado em um baú e assimsucessivamente. Carpentier afirmou que a maioria das novelas eram recebidas pelacrítica com a queixa de que não eram totalmente novelas porque, segundo parece,para ter êxito a novela precisa alcançar o desejo de não ser literatura.

Sobre a origem das novelas, Echevarría cita Ralph Freedman, que afirma que

Em vez de analisar os gêneros e subgêneros artificialmente e depoisdar conta das excessões, é mais simples ver toda a prosa ficcionalcomo uma unidade e ligar diversas linhas a diversas origens, linhasestas que incluiriam não só a novel of manner  inglesa, ou o romance posmedieval, ou a novela gótica, como também a alegoria medieval,o Bildungsroman alemão, ou a picaresca. Algumas dessas obraspodem estar muito próximas ao material folclórico para seclassificarem como épicas, outras podem ter tido como modelos livros

de viagens ou relatos jornalísticos de certos acontecimentos, e outraspodem surgir de comédias de salão, ou até da prosa poética. Noentanto, todos, em diferentes graus, parecem refletir a vida emmundos esteticamente definidos (a vida como mito, como estrutura darealidade, como mundos de sentimentos ou do cotidiano)... (p. 37)

Echevarría preserva a noção de origens múltiplas de Freedman, e acrescenta que aorigem da novela se repete, uma vez ou outra, retendo em sua forma só o traçomimético que diz respeito a formas não literárias, não necessariamente suas própriasformas anteriores. A origem da novela é múltipla não só no espaço, mas também notempo. Sua história não é, certamente, uma sucessão linear ou evolução, mas uma

série de renovadas manifestações em diferentes lugares. O único denominadorcomum é a qualidade mimética do texto novelístico, não de uma determinadarealidade, mas de um determinado discurso que já tem a realidade nele refletido.

 A hipótese do autor é a de que a novela, por não ter forma própria, assume a formade determinado documento com a capacidade ou o poder de dizer a “verdade”.  Anovela imita esses documentos, destacando, assim, a convencionalidade destes, oseu apego às estratégias de criação similares às que governam o texto literário, quepor sua vez refletem as regras da própria linguagem. É através dessa falsalegitimidade que a novela leva a cabo a sua contraditória e velada reivindicação deser literatura. A própria concepção de novela se torna ser um relato sobre a fuga daautoridade, relato que geralmente aparece como uma espécie de subargumento emmuitas novelas. Esta fuga para uma forma de liberdade não concretizada no texto é

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também ilusória, uma representação baseada em um mimetismo que parece estarembutido na própria narrativa, como se fosse a história original, o relato de fundação.

Echevarría define como seu objeto de estudo não simplesmente a novela

latinoamericana, mas a narrativa latinoamericana de uma forma mais ampla, e dentrodessa tradição um núcleo de evolução cujo tema central, especialmente a partir doséculo XVI, é a peculiaridade diferenciadora da América Latina como entidade cultural,social e política como conteúdo narrativo.

Desde o século XVIII, todas as modalidades narrativas, especialmente a novela,tiveram que competir com as criações das ciências naturais e das ciências sociais,pois estas eram os relatos verídicos. Os estudos de Echevarría se ocupam da linhada narrativa que conduz à América Latina, donde a força mediadora da ciência foi talque as narrativas mais importantes nem sequer pretendiam ser novelas, mas diversostipos de reportagens científicas. Por conseguinte, na América Latina, nas primeiras

décadas do século XIX, a narrativa assumiu a forma de um novo discurso hegemônico:a ciência e, de modo mais específico, a mentalidade científica que se expressa nalinguagem dos viajantes que percorreram o continente escrevendo sobre a suanatureza e sobre si mesmos, tornando-se novos cronistas.

 A história da América Latina e dos aventureiros, que pretendiam perseguir ossegredos mais ocultos do Novo Mundo, ou seja, sua novidade e diferença, é narradaatravés da mente de um escritor habilitado pela ciência para descobrir a verdade.Contudo, a mente que analisa e classifica se faz presente por meio das convençõesretóricas do diário de viagem e por meio dos princípios mediadores da investigação

científica.Esta mediação determinada prevalece até a crise da década de 1920 e o surgimentoda chamada novela de la tierra ou novelas telúricas. Esta novela moderna utiliza umtipo distinto de mediação: a antropologia. Agora a promessa de conhecimento estáem um discurso científico cujo objetivo não é a natureza, mas essencialmente alinguagem e o mito. O documento que contém a verdade imitador da novela é oinforme antropológico e etnográfico. O objetivo desses estudos é descobrir a origeme a fonte da versão que uma cultura tem de seus próprios valores, crenças e história,coletando, classificando e voltando a contar seus mitos. A antropologia assume essepoder mediador pelo papel que desempenha no pensamento ocidental e pelo lugarque a América Latina ocupa na história dessa disciplina. A antropologia é uma dasvias através das quais a cultura ocidental esboça e define indiretamente sua própriaidentidade cultural.

 A maior parte da história latinoamericana recente é classificada como uma“desescrita” na medida em que reescreve a história latinoamericana a partir dessaperspectiva antropológica mencionada. Os antigos textos da história se desfazem namedida em que se empreende a escrita de algo novo. Por isso, as crônicas e os diáriosde viagem científicos do século XIX fazem parte do que o autor chama de Arquivo danovelística moderna, a modalidade para além da antropologia inaugurada por Los

 pasos perdidos. A nova narrativa desconstrói a história narrada nas antigas crônicasao mostrar que a história estava formada por uma série de tópicos cuja coerência eautoridade dependiam das crenças codificadas por um período cuja estrutura

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ideológica já não era vigente. Essas primeiras crenças codificadas eram, literalmente,a lei, e o discurso jurídico das crônicas não tem validade na nova narrativa.

Mas o texto paradigmático entre essas “desescrituras” é Los pasos perdidos  de

Carpentier, que desde o início de sua carreira se relacionou com artistas davanguarda, em particular os surrealistas, que estavam intimamente ligados àsatividades antropológicas. Na essência, a viagem que realiza o narrador-protagonistaé como a de um antropólogo, entretanto, o que ele traz no seu regresso é umaarqueologia das formas narrativas latinoamericanas. Em vários momentos da novelao narrador-protagonista desempenha os papéis de conquistador, naturalista e tambémantropólogo especialista em mitos, ao analisar os relatos que ouve na selva com osclássicos, ao buscar a estrutura fundadora do relato nos termos mais gerais.Desempenha esses papéis porque nenhum deles é vigente, nenhum lhe proporcionao apoio ideológico para chegar à verdade, a um começo, a uma origem, sendo a sua

própria história a única que pode legitimar a verdade. As novelas nunca se contentam só com a ficção; elas têm a pretensão de projetar averdade, uma verdade que está por trás do discurso da ideologia que dão forma aelas. Assim, mesmo que pareça paradoxal, a verdade de que tratam as novelas é aprópria ficção, ou seja, as ficções criadas pela cultura latinoamericana para entendera si mesma. O que resta é a abertura do Arquivo ou, talvez, somente o relato sobre aabertura do Arquivo. 

O arquivo é um mito moderno baseado numa forma antiga, uma forma de começo. Omito moderno revela a relação entre o conhecimento e o poder da mesma forma que

todas as ficções anteriores sobre a América Latina; revela o eixo ideológico quesustenta a legitimidade do poder desde as crônicas até as novelas atuais. Este é omotivo pelo qual uma espécie de arquivo, que normalmente contém um manuscrito eum arquivista-escritor, aparece com tanta frequência nas novelas modernas. O Arquivo guarda, coleciona, retém, acumula e classifica. As ficções estão reunidas emum recinto, uma prisão de relatos que é, ao mesmo tempo, a origem da novela.

Parece obvio que o mito está presente nas novelas sob as seguintes formas: existemrelatos que se assemelham a mitos clássicos ou bíblicos; existem personagens quelembram heróis míticos; certos relatos têm um caráter mítico geral porque contêmelementos sobrenaturais; o início de toda a história, que se encontra, como nos mitos,num relato de violência ou incesto. As diversas maneiras como o mito aparece dão ànovela uma aparência mítica sem que chegue a ser a versão clara de determinadomito.

 Ao mesmo tempo, por trás do relato está o projeto global da história latinoamericana,tanto como um esboço geral integrado por diversos acontecimentos e erasimportantes como a presença de personagens e incidentes específicos que parecemse referir a pessoas e acontecimentos reais.

 A combinação de elementos míticos com a história latinoamericana en Cien años desoledad   revela o desejo de fundar um mito latinoamericano assim como revela odesejo de cancelar a mediação antropológica, porque assim o relato global passa de

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metarrelato analítico a narração mítica. O mito latinoamericano é o relato de fundaçãoarticulado através da independência, da guerra civil, da luta contra o imperialismoestadunidense etc.

Esta dualidade história/mito está presente em Cien años de soledad , separando omundo do texto do mundo atemporal do mito. No entanto, o jogo de contradições queemana desta dualidade chega a uma síntese precária que talvez seja a característicamais importante da novela. O mito representa a origem. A história latinoamericana énarrada na linguagem do mito porque sempre se concebe como a história do outro,uma história forjada pelo incesto, pelo tabu e o ato formador que nomeia. A histórialatinoamericada deve ser igual a um mito para cumprir essa concepção, resultado daautoridade da mediação antropológica. A preocupação da novela com a genealogia eos atos sobrenaturais realizados por vários personagens pertence ao reino mítico. Poroutro lado, em Cien años de soledad , a história é crítica, temporal e reside em um

lugar especial: o quarto de Melquíades na casa dos Buendía, o que Echevarría chamade Arquivo. Este quarto está cheio de livros e manuscritos e possui sua própriadimensão temporal. É aqui que vários personagens tentam decifrar os papéis deMelquíades e o último Aureliano, num momento de inspiração epifânica, traduz emvoz alta quase todo o manuscrito e morre. O que acontece aqui, conforme sugere otexto da novela, não se repete. Na ficção da novela, no entanto, há muitas repetições.Úrsula, por exemplo, sente duas vezes que o tempo transcorre em círculos e que osmembros da família seguem um ou dois modelosde conduta indicados por seusnomes. O tempo é circular na ficção, mas não no quarto de Melquíades. O arquivoparece ser sucessivo e teológico, enquanto a trama da novela em si é reiterativa e

mítica. Cien años de soledad  tem duas histórias principais: uma sobre a família queculmina com o nascimento do menino com rabo de porco, a outra tem a ver com ainterpretação do manuscrito de Melquíades, que é uma história de suspense, linear,que termina quando Aureliano finalmente descobre o segredo para a tradução dospergaminhos.

 A característica do Arquivo, em Cien años de soledad  é: 1) não só a presença dehistória, de mas elementos mediadores anteriores através dos quais se narrou ahistória, sejam documentos antigos do período colonial ou científico do século XIX; 2)a presença de um historiador interno que lê os textos, os interpreta e os escreve; 3) ea presença de um manuscrito inconcluso que o historiador interno trata de completar.

De acordo com Echevarría, Melquíades representa Borges, o bibliotecário e guardiãodo Arquivo. Colocado no centro desse recinto especial de livros e manuscritos, leitorde uma das coleções de relatos mais antigas e influentes da história e da literatura,Melquíades e seu Arquivo representam a literatura, mais especificamente a literaturade Borges (irônica, crítica e destrutora de todas as ilusões e enganos).

O arquivo não é tanto uma acumulação de textos, mas o processo segundo o qual ostextos são escritos: um processo de repetidas combinações misturas e combinaçõesregidas pela heterogeneidade e pela diferença. Não é estritamente linear, pois acontinuidade e descontinuidade permanecem unidas. Este arquivo fictício,naturalmente, é como o retorno ao que está por trás do arquivo, suas manifestaçõespolíticas, o que revela o funcionamento interno da acumulação de poder; acumulação

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e poder não são senão um efeito retórico nesse arquivo de arquivos. Esta é a razãopor que as mediações antigas com as quais os latinoamericanos eram narrados estãocontidas neste Arquivo como presenças nulas. Estão apagadas e são, ao mesmotempo, a recordação de sua própria desaparição. São chaves para sistemas de

arquivo já abandonados, mas conservam sua qualidade de arquivos, sua capacidadede diferenciar, de separar. Não são arquétipos, mas um arqué de tipos.

 Arquivo e mito se unem mais como instâncias de descontinuidade que decontinuidade. Ao conhecimento e à morte são dados um valor equivalente. A morte éa metáfora estruturadora do princípio do Arquivo.

Em certo sentido, o que García Márquez tem feito é perpassar a mediaçãoantropológica e substituir o antropólogo por um historiador, desviando a atenção domito como expressão das chamadas culturas primitivas para aproximá-lo dos mitosda sociedade moderna: o livro, a escrita, a leitura, instrumentos de uma busca de

conhecimento próprio que está para além das reconfortantes interpretações míticasdo mundo que geralmente encontra. A história latinoamericana só pode tornar-se mitomisturada nesta série de problemas modernos que tanto enriquecem suas ficçõesmais memoráveis.

O arquivo e a novela aparecem ao mesmo tempo e formam parte do mesmo discursodo Estado Moderno. A América Latina se converteu em uma entidade histórica comoresultado do surgimento da imprensa, não só pela “descoberta”  de Colombo. A América Latina, como a novela, se criou no Arquivo. Em relação à capacidade danovela de manter e transmitir valores culturais, a mensagem contida em livros como

Cien años de soledad   é realmente perturbadora, pois nos diz que é impossívelacreditar em novos mitos e, no entanto, nos remetem ao momento em que nossaânsia de sentido só pode se satisfazer com os mitos.

Echevarría se interessa pelas múltiplas conexões entre o secreto, a origem e o poderque encerram o conceito de Arquivo. Como ocorre com a novela, talvez isso ocorraporque seu próprio discurso discurso tende a modificar o Arquivo, a usá-lo comodispositivo heurístico para investigar, conjurar ou inventar seus próprios fundamentos.O Arquivo, para o autor, deriva da leitura de Los pasos perdidos e Cien años de

soledad , conforme expõe neste livro. O Arquivo é, portanto, uma espécie de objetolitúrgico ao qual atribui a capacidade de revelar os segredos mais íntimos dasnarrativas em questão: sua origem secreta.

 Ao analisar a etimologia da palavra “arquivo”, Echevarría conclui que o poder, osegredo e a lei estão na origem do Arquivo. Em sua forma mais concreta, era aestrutura na qual ficavam as pessoas que administravam a lei, seus leitores, seusmagistrados. Era o edifício que guardava o poder. Em filosofia, arqué é a matériafundamental, o princípio do princípio. O mistério do Arquivo se converte na partefuncional da fundação do Estado moderno e representa a chave das narrativas queforam geradas em seu interior.

Echevarría cita Foucault, para quem o Arquivo é a lei do que pode ser dito, o sistemaque rege a aparição dos enunciados como acontecimentos singulares. O Arquivo étambém aquilo que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem numa

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multidão amorfa, nem tampouco se inscrevam numa linearidade sem ruptura, e nãodesapareçam por acaso se ocorrer um acidente externo, mas que se agrupam emfiguras distintas, se componham umas com as outras segundo regularidadesespecíficas. O arquivo não é o que protege o acontecimento do enunciado e conserva,

para as memórias futuras, seu estado civil evadido, apesar de sua fuga imediata. Éaquele que na própria raiz do enunciado-acontecimento define desde o começo “osistema de sua enunciabilidade”, longe de ser somente o que nos assegura existir nomeio do discurso mantido; é o que diferencia os discursos em sua múltipla existênciae os especifica em sua própria duração.

 A narrativa em geral, e a novela em particular, podem ser a meneira na qual seconserva o estado fugitivo do enunciado, um Contra-arquivo para o efêmero emarginal. A novela dá à negatividade do Arquivo uma forma fantasmagórica, o quediferencia em todo o período moderno. A aparente qualidade dispersiva desse Arquivo

está em seu poder de esvaziar formas narrativas prévias, poder de por em questão oconhecimento recebido e seu “coágulo ideológico” como identidade, cultura,

instituições educativas, inclusive a língua.

Existe uma força contraditória que constitui o Arquivo, que é o corte, a perda. Oobscuro perímetro da morte cerca o Arquivo e ao mesmo tempo habita seu centro, jáque a primeira lei do Arquivo é a negação, um corte que seleciona e elimina. A verdadedo Arquivo, o segredo do seu segredo, é que ele não contém nenhuma verdade. Essaqualidade desarticuladora da novela conduz a uma série de rupturas em sua história,rupturas nas quais a capacidade mimética da novela a leva a escolha de uma formadiferente, respondendo a mudanças no campo textual em que está escrita. Um novo

documento literário irá adquirir as propriedades de legitimação perdidas pelo modeloantigo e a novela seguirá essa forma como havia feito originalmente em relação aosdocumentos jurídicos do Arquivo.