fichamento do livro a sociedade contra o estado de pierre clastres

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A sociedade contra o Estado Pierre Clastres Cap. 1 - Copérnico e os selvagens Este capítulo foi escrito contra a obra de Jean-Willian Lapierre: Essai sur le fondement du pouvoir politique (1968) Sobre os critérios da classificação de sociedades em arcaicas, a saber, ausência de escrita e economia de subsistência, não há o que se discutir sobre o primeiro: ou há escrita ou não há escrita numa sociedade. Porém, ao segundo, põe-se de inicio a questão, "o que é de fato 'subsistir'? É viver na fragilidade permanente do equilíbrio entre necessidades alimentares e meios de satisfazê-las [...] as sociedades arcaicas não vivem, mas sobrevivem, sua existência é m combate interminável contra a fome, pois elas são incapazes de produzir excedentes, por carência tecnológica e, além disso, cultural". [p. 29] Sem prolongação, Clastres afirma que diversas sociedades arcaicas produzem um excedente alimentar, e segue: "não é pelo fato de que sua economia fosse de subsistência que as sociedades arcaicas 'sobreviveram em estado de extremo subdesenvolvimento até hoje' [citando Lapierre, p. 225] [...] Na realidade, a ideia de economia de subsistência provém do campo ideológico do Ocidente moderno, e de forma alguma do arsenal conceptual de uma ciência". [p. 30] Da mesma forma que o conceito de subsistência envolve um julgamento de valor sobre as sociedades assim qualificadas, também o faz o conceito de apolítico ou sociedade sem poder. O modelo ao qual ele se refere e a unidade que o mede são constituídos a priori pela ideia que a civilização ocidental desenvolveu e formou do poder. Nossa cultura, desde as suas origens, pensa o poder político em termos de relações hierarquizadas e autoritárias de comando-obediência". [p. 32] "... o poder político se

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Fichamento dos capítulos 1, 2, 3 e 4 do livro A Sociedade Contra o Estado do antropólogo Pierre Clastres

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A sociedade contra o EstadoPierre Clastres

Cap. 1 - Coprnico e os selvagens

Este captulo foi escrito contra a obra de Jean-Willian Lapierre: Essai sur le fondement du pouvoir politique (1968)

Sobre os critrios da classificao de sociedades em arcaicas, a saber, ausncia de escrita e economia de subsistncia, no h o que se discutir sobre o primeiro: ou h escrita ou no h escrita numa sociedade. Porm, ao segundo, pe-se de inicio a questo, "o que de fato 'subsistir'? viver na fragilidade permanente do equilbrio entre necessidades alimentares e meios de satisfaz-las [...] as sociedades arcaicas no vivem, mas sobrevivem, sua existncia m combate interminvel contra a fome, pois elas so incapazes de produzir excedentes, por carncia tecnolgica e, alm disso, cultural". [p. 29] Sem prolongao, Clastres afirma que diversas sociedades arcaicas produzem um excedente alimentar, e segue: "no pelo fato de que sua economia fosse de subsistncia que as sociedades arcaicas 'sobreviveram em estado de extremo subdesenvolvimento at hoje' [citando Lapierre, p. 225] [...] Na realidade, a ideia de economia de subsistncia provm do campo ideolgico do Ocidente moderno, e de forma alguma do arsenal conceptual de uma cincia". [p. 30]

Da mesma forma que o conceito de subsistncia envolve um julgamento de valor sobre as sociedades assim qualificadas, tambm o faz o conceito de apoltico ou sociedade sem poder. O modelo ao qual ele se refere e a unidade que o mede so constitudos a priori pela ideia que a civilizao ocidental desenvolveu e formou do poder. Nossa cultura, desde as suas origens, pensa o poder poltico em termos de relaes hierarquizadas e autoritrias de comando-obedincia". [p. 32] "... o poder poltico se d somente em uma relao que se resolve, definitivamente, numa relao de coero [...] a verdade e o ser do poder consistem na violncia e no se pode pensar no poder sem o seu predicado, a violncia". [p. 27]

"... a etnologia pretende situar-se de chofre no elemento da universalidade sem se dar conta de que permanece sob muitos aspectos instalada em sua particularidade, e que seu pseudodiscurso cientfico se deteriora rapidamente em verdadeira ideologia. [...] Decidir que algumas culturas so desprovidas de poder poltico por no oferecerem nada de semelhante ao que a nossa apresenta no uma proposio cientfica: antes denota-se a, no fim das contas, uma certa pobreza do conceito". [p. 32,3]

"O etnocentrismo no portanto um entrave superficial reflexo e as suas implicaes tm mais consequncias do que se poderia crer. Ele no pode deixar subsistir as diferenas (cada uma por si) em sua neutralidade, mas quer compreed-las como diferenas determinadas a partir do que mais familiar, o poder tal como ele experimentado e pensado na cultura ocidental. O evolucionismo [...] no est longe. A atitude nesse nvel dupla: primeiramente recensear as sociedades segundo a maior ou menor proximidade que o seu tipo de poder mantm com o noso; em seguida afirmar expicitamente (como outrora) ou implicitamente (como agora) uma continuidade entre todas essas diversas formas e poder". [p. 33]

Em que condies o poder poltico pensavel? "A condio renunciar, asceticamente, digamos, concepo extica do mundo arcaico [...] A condio ser nesse caso, a deciso de levar enfim a srio o homem das sociedades primitivas, sob todos os seus aspectos e em todas as suas dimenses [...] necessrio aceitar a ideia de que a negao no significa um nada, e de que, quando o espelho no nos devolve a nossa imagem, isso no prova que no haja nada que observar". [p. 35]

I] "No se pode repartir as sociedades em dois grupos: sociedades com poder e sociedades sem poder. Julgamos ao contrrio [...] que o poder poltico universal, imanente ao social [...], mas que ele se realiza de dois modos principais: poder coercitivo, poder no-coercitivo.2] "O poder poltico como coero (ou como relao de comando-obedincia) no o modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente um caso particular, uma realizao concreta do poder poltico em certas culturas, tal como a ocidental (mas ela no a nica, naturalmente). [...]3] "Mesmo nas sociedades onde a instuio poltica est ausente [...] mesmo a o poltico est presente, mesmo a se coloca a questo do poder [...] alguma coisa existe na ausncia". O poder poltico " uma necessidade inerente vida social [...] no podemos pensar o social sem o poltico". [p. 37,8]

"... a inovao social social talvez o fundamento do poder coercitivo, mas certamente no o fundamento do poder no-coercitivo [...] o poder poltico como coero ou como violncia a marca das sociedades histricas, isto , das sociedades que trazem em si a causa da inovao, da mudana, da historicidade. E assim, poderiamos dispor as diversas sociedades segundo um novo eixo: as sociedades com poder poltico no-coercitivo so as sociedades sem histria, as sociedades com poder poltico coercitivo so as sociedades histricas". [p. 39]

", pois, da coero e no do poltico que a inovao o fundamento". [p. 39]

Da tarefa da antropologia poltica:1] O que o poder poltico? Isto : o que a sociedade?2] Como e por que se passa do poder poltico no-coercitivo ao poder poltico coercitivo? Isto : o que histria?

"... no seria o poder poltico que constitui a diferena absoluta da sociedade? No teramos a a ciso radical enquanto raiz do social, a ruptura inaugural de todo movimento e de toda histria, o desdobramento original como matriz de toda diferena?". [p. 40]

Cap. 2 - Troca e poder: filosofia da chefia indgena

"... aqum ou alm da verdadeira condio poltica, sempre esta ltima que escapa ao homem primitivo" segundo a teoria etnolgica. [p. 45]

Propriedades essenciais do lder ndio [titular chief] segundo Lowie [1948]:1] "O chefe um 'fazedor de paz'; ele a instncia moderadora do grupo, tal como atestado pela diviso frequente do poder em civil e militar.2] Ele deve ser generoso com seus bens, e no se pode permitir, sem ser desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus 'administrados'.3] Somente um bom orador pode ter acesso chefia ". [p. 47]

Sobre o primeiro trao, "o modelo do poder coercitivo no ento aceito seno em ocasies excepcionais, quando o grupo se v diante de uma ameaa externa. Mas a conjuno do poder e da coero cessa desde que o grupo esteja em relao somente consigo mesmo. [...] O poder normal, civil, fundando sobre o consensus omnium e no sobre a presso, assim de natureza profundamente pacfica; a sua funo igualmente 'pacificante': o chefe tem a tarefa da manuteno da paz e da harmonia no grupo [...] ele um arbitro que busca reconciliar". [p. 47,8]

"O segundo trao caracterstico da chefia indgena, a generosidade, parece ser mais que um dever: uma servido. Com efeito, os etnlogos notaram entre as mais diversas populaes da Amrica do Sul que essa obrigao de dar, qual est preso o chefe, de fato vivida pelos ndios como uma espcie de direito de submet-lo a uma pilhagem permanente". [p. 48]

"O talento oratrio uma condio e tambm um meio de poder poltico"; os chefe devem discursar, na maioria dos povos, sobre paz, harmonia e honestidade quase todos os dias. Porm, falam, por vezes, sem receberem Teno daqueles que os escutam.

Clastres acrescenta mais um caracterstica geral dos povos sul-americanos: o reconhecimento da poligamia como privilgio mais frequentemente exclusivo do chefe. Da anlise da bibliografia etnogrfica sobre estes povos, Clatres conclui que "para a maioria das sociedades sul-americanas, a instituio matrimonial da poliginia estreitamente articulada instituio poltica do poder". [p. 52]

" ento por quatro traos que na Amrica do Sul se distingue o chefe. Como tal, ele um 'apaziguador profissional'; alm disso, deve ser generoso e bom orador; possui, enfim, o privilgio da poliginia. Entretanto, uma distino se impe entre o primeiro desses critrios e os trs seguintes. Estes ltimos definem o conjunto das prestaes e contraprestaes, pelo qual se mantm o equilbrio entre a estrutura social e a instituio poltica; o lder exerce um direito sobre um nmero anormal de mulheres do grupo; este, em troca, tem o direito de exigir do seu chefe generosidade de bens e talento oratrio. Essa relao aparentemente de troca se determina assim em um nvel essencial da sociedade, nvel propriamente sociolgico que concerne prpria estrutura do grupo como tal. A funo moderadora do chefe manifesta-se ao contrrio no elemento diferente da prtica estritamente poltica". Clatres faz aqui a diviso entre o ser e o fazer da chefia. "Humildes em seu alcance, as funes do chefe no so no entanto menos controladas pela opinio pblica. Planejador das atividades econmicas e cerimoniais o grupo, o lder no possui qualquer poder decisrio; ele nunca est seguro de que as suas 'ordens' sero executadas: essa fragilidade permanente de um poder sempre contestado d sua tonalidade ao exerccio da funo: p poder do chefe depende da boa vontade do grupo. Compreende-se ento o interesse direto do chefe em manter a paz: a irrupo de uma crise destruidora da harmonia interna pede a interveno do poder, mas suscita ao mesmo tempo essa inteno de contestao que o chefe no tem meios para superar". [p. 53,4]

"A funo, ao se exercer, indica aquilo cujo sentido se busca aqui: a impotncia da instituio. Mas no plano da estrutura, quer dizer, num outro nvel, que reside, mascarado, esse sentido. Como atividade concreta da funo, a prtica do chefe no remete, pois, mesma ordem de fenmenos que os trs outros critrios: elas os deixa subsistir como uma unidade estruturalmente articulada prpria essncia da sociedade. Com efeito, notvel constatar que essa trindade de predicados - dom oratrio, generosidade, poliginia - ligados pessoa do lder, concerne aos mesmos elementos cuja troca e circulao constituem a sociedade como tal, e sancionam a passagem da natureza para a cultura. inicialmente pelos trs nveis fundamentais da troca de bens, de mulheres e de palavras que se define a sociedade; e igualmente por referncia imediata a esses trs tipos de 'sinais' que se constitui a esfera poltica das sociedades indgenas. O poder relaciona-se portanto aqui com os trs nveis estruturais essenciais da sociedade, isto , com o prprio cerne do universo da comunicao". [p. 54,5]

A 'troca' aparente entre chefe e grupo mostra-se extremamente desigual, levando recusa da prpria ideia de troca, de mulheres do grupo pelos bens e mensagens do chefe. Num exame do movimento de cada 'signo' segundo o seu circuito prprio "descobre-se que esse triplo movimento apresenta uma dimenso negativa comum que designa a esses trs tipo de 'signos' um destino idntico: eles no aparecem mais como valores de troca, a reciprocidade cessa de regular sua circulao. Uma relao original entre regio do poder e a essncia do grupo se desvenda ento aqui: o poder mantm uma relao privilegiada com os elementos cujo movimento recproco funda a prpria estrutura da sociedade; mas essa relao, negando-lhes um valor que de troca ao nvel do grupo, instaura a esfera poltica no apenas como exterior estrutura do grupo, mas bem mais como negando esta: o poder contra o grupo e a recusa da reciprocidade como dimenso ontolgica da sociedade a recusa da prpria sociedade. [...] Com efeito, para que um aspecto da estrutura social possa exercer uma influncia qualquer sobre essa mesma estrutura, preciso, no mnimo, que a relao entre esse sistema particular e o sistema global no seja inteiramente negativa. com a condio de ser de alguma forma imanente ao grupo, que a funo poltica poder manifestar-se de maneira efetiva. Ora, nas sociedades indgenas, essa funo poltica est excluda do grupo, e at mesmo o exclui: portanto na relao negativa mantida com o grupo que se enraza a impotncia da funo poltica; a rejeio desta para o exterior da sociedade o prprio meio de reduzi-la impotncia". [p. 57-9]Conceber assim a relao entre o poder e a sociedade nas populaes indgenas da Amrica do Sul pode parecer implicar uma metafsica finalista, segundo a qual uma vontade misteriosa usaria de meios indiretos para negar ao poder poltico precisamente sua qualidade de poder. No se trata entretanto de causas finais; os fenmenos aqui analisados provm do campo da atividade inconsciente pela qual o grupo elabora seus modelos: o modelo estrutural da relao do grupo social com o poder poltico que se tenta descobrir. Esse modelo permite integrar dados percebidos como contraditrios numa primeira abordagem. Nesta etapa da anlise, compreendemos que a impotncia do poder se articula diretamente com sua situao marginal com relao ao sistema total; e essa situao resulta ela mesma da ruptura que o poder introduz no ciclo decisivo das trocas de mulheres, de bens e de palavras. Mas descobrir nessa ruptura a causa do no-poder da funo poltica nem por isso esclarece a sua razo de ser profunda. Ser que devemos interpretar a sequncia: ruptura da troca-exterioridade-impotncia, como um desvio acidental do processo constitutivo do poder? Isso deixaria supor que o resultado efetivo da operao(a falata de autoridade do poder) apenas contingente com relao inteno inicial (a promoo da esfera poltica). Mas seria ento necessrio aceitar a ideia de que esse erro coextensivo ao prprio modelo e de que ele se repete indefinidamente em uma rea quase continental: nenhuma das culturas que a ocupam se mostraria assim capaz de se proporcionar uma autntica autoridade poltica. Est aqui subjacente o postulado, completamente arbitrrio, de que essas culturas no possuem criatividade: , ao mesmo tempo, o retorno ao preconceito do seu arcasmo. No poderamos portanto conceber a separao entre funo poltica e autoridade como o fracasso acidental de um processo que visava sua sntese, como a derrapagem de um sistema desmentido apesar dele mesmo por um resultado que o grupo seria incapaz de corrigir.Recusar a perspectiva do acidente leva a supor uma certa necessidade inerente ao prprio processo , a procurar no nvel da intencionalidade sociolgica - lugar de elaborao do modelo - a razo ltima do resultado. Admitir a conformidade deste com a inteno que preside a sua produo no pode significar outra coisa a no ser a implicao desse resultado na inteno original: o poder exatamente o que as sociedades quiseram que ele fosse. E como esse poder no , dizendo esquematicamente, nada, o grupo revela, ao fazer isso, sua recusa radical da autoridade, uma negao absoluta do poder. [...] A prpria radicalidade da recusa, a sua permanncia e a sua extenso sugerem talvez a perspectiva na qual situ-la. A relao do poder com a troca, por ser negativa, no deixa de nos mostrar que ao nvel mais profundo da estrutura social, lugar da constituio inconsciente das suas dimenses, de onde advm e onde se encerra a problemtica desse poder. Em outros termos, a prpria cultura, como diferena maior da natureza, que investe totalmente na recusa desse poder. E no precisamente na sua relao com a natureza que a cultura manifesta uma negao de igual profundidade? Essa identidade na recusa nos leva a descobrir, nessas sociedades, uma identificao do poder e da natureza: a cultura negao de ambos, no no sentido em que poder e natureza seriam dois perigos diferentes, cuja identidade s seria aquela - negativa - de uma relao idntica ao terceiro termo, mas no sentido em que a cultura apreende o poder como a ressurgncia mesma da natureza.Tudo se passa, com efeito, como se essas sociedades constitussem sua esfera poltica em funo de uma intuio que teria nelas lugar de regra: a saber, que o poder , em sua essncia, coero; que a atividade unificadora da funo poltica se exerceria, no a partir da estrutura da sociedade e confrme ela, mas a partir de um mais alm incontrolvel e contra ela; que o poder em sua natureza no seno um libi furtivo da natureza em seu poder. [p. 60,1]... descobrindo o grande parentesco entre o poder e a natureza, como dupla limitao do universo da cultura, as sociedades indgenas souberam inventar um meio de neutralizar a virulncia da autoridade poltica. Elas escolheram ser elas mesmas as fundadoras, mas de modo a no deixarem aparecer o poder seno como negatividade logo controlada: elas o instituem segundo sua essncia (a negao da cultura), mas justamente para lhe negarem toda potncia efetiva. De modo que a apresentao do poder, tal como ele , se oferece a essas sociedades como o prprio meio de anul-lo. A mesma operao que instaura a esfera poltica probe o seu desdobramento: assim que a cultura utiliza contra o poder a prpria astcia da natureza; por isso que se nomeia chefe o homem no qual se quebram a troca das mulheres, das palavras e dos bens. [p. 61,2]Enquanto depositrio de riquezas e de mensagens, o chefe no traduz seno sua dependncia com relao ao grupo, e a obrigao que ele tem de manifestar a cada instante a inocncia de sua funo. [...] se [o chefe] no faz o que dele se espera, sua aldeia ou seu bando simplesmente o abandona em troca de um lder mais fiel a seus deveres. apenas atravs dessa dependncia real que o chefe pode manter seu estatuto. Isso aparece com muito nitidez na relao do poder com a palavra: pois, se a linguagem o oposto da violncia, a palavra deve ser interpretada, mais do que como privilgio do chefe, como o meio de que o grupo dispe para manter o poder fora da violncia coercitiva, como a garantia repetida a cada dia de que essa ameaa est afastada. A palavra do lder encerra em si mesma a ambiguidade de ser desviada da funo de comunicao imanente linguagem. to pouco necessrio ao discurso do chefe ser ouvido que os indgenas frequentemente no lhe prestam nenhuma ateno. A linguagem da autoridade, dizem os Urubu, um ne eng hantan: uma linguagem dura, que no espera resposta. Mas essa dureza no compensa de modo algum a impotncia da instituio poltica. exterioridade do poder corresponde o isolamento de sua palavra que traz, por ser dita duramente para no ser ouvida, testemunho de sua doura. [p. 63]Esse modo de constituio da esfera poltica pode pois ser compreendida como um verdadeiro mecanismo de defesa das sociedades indgenas. A cultura afirma a prevalncia daquilo que a funda - a troca - precisamente vendo no poder a negao desse fundamento. Mas preciso alm disso assinalar que essas culturas, ao privarem os signos do seu valor de troca na regio do poder, retiram das mulheres, dos bens e das palavras justamente a sua funo de signos a serem trocados; e ento como puros valores que esses elementos so apreendidos, pois a comunicao deixa de ser seu horizonte. O estatuto da linguagem sugere com uma fora singular esse convero do estado de signo em estado de valor: o discurso do chefe, em sua solido, lembra a palavra do poeta para quem as palavras so valores ainda mais que signos. O que pode ento significar esse duplo processo de dessignificao e de valorizao dos elementos da troca? Talvez exprima, alm mesmo do apelo da cultura a seus valores, a esperana ou a saudade de um tempo mtico aonde cada um chegaria plenitute de um gozo no limitado pela exigncia da troca. [p. 63]

Cap. Independncia e exogamia

Clastres classifica as sociedades da Floresta Tropical como "demos exogmicos", entendo por este termo "unidades principalmente residenciais, mas cuja exogamia e unilocalidade de residncia desmentem, em certa medida, a bilateralidade da descendncia, conferindo-lhes assim a aparncia de linhagens ou mesmo de cls". [p. 75]

Defendendo a heterogeneidade dessas sociedades Clastres aponta a manuteno de lderes pelas famlias extensas como traduo da vontade dessas sociedades de manterem sua identidade. E relacionando a estruta social com a estrutura poltica afirma " porque existe uma instituio central, um lder principal exprimindo a existncia efetiva - e vivida como unificao - da comunidade, que esta se pode permitir, de alguma forma, um certo quantum de fora centrfuga, atualizado na tendncia de cada grupo em conservar sua personalidade; e , reciprocamente, a multiplicidade dessas tendncias divergentes que legitima a ativadade unificante da chefia principal". [p. 77]

"Assim se verifica a presena latente, e quase furtiva, da contestao e do seu horizonte ltimo: o conflito aberto; presena no exterior essncia do grupo, mas, ao contrrio, dimenso da vida coletiva engendrada pela prpria estrutura social". [p. 77]

Da prtica da exogamia. "O intercmbio de mulheres de maloca a maloca, estabelecendo estreitos laos de parentesco entre famlias extensas e demos, institui por isso mesmo relaes polticas [...] O casamento, como aliana de famlias, e acima destas, de demos, contribui, pois, para integrar as comunidades em um conjunto, por certto muito fluido e difuso, mas que se deve distinguir por um sistema implcito de direitos e deveres mtuos, por uma solidariedade revelada ocasionalmente em circunstncias graves, pela certeza de cada coletividade de se saber rodeada, por exemplo, em caso de escassez ou de ataque armado, no de estrangeiros hostis, mas de aliados e parentes. Porque o alargamento do horizonte poltico alm da simples comunidade no depende apenas da presena contingente de grupos amigos nas proximidades: ele se reporta necessidade imperiosa, em que se encontra cada unidade sendetria, de garantir sua segurana concluso de alianas". [p. 81]

"A regra do casamento entre primos cruzados parece ser coextensiva da exogamia local [...] Da se conclui que o intercmbio de mulheres no se esetabelece entre unidades a princpio 'indiferentes' umas s outras, mas entre grupos entrelaados por estreitos vnculos de parentesco, mesmo que este seja como sem dvida provvel, mais classificatrio do que real. As relaes de parentesco j fixadas e a exogamia local somam pois seus efeitos para tirar cada unidade de sua unicidade, elaborando um sistema que transcenda cada um de seus elementos". [p. 82]

"... a exogamia local encontra o seu sentido em sua funo: ela o meio da aliana poltica". [p. 82]

Cap. 4 - Elementos de demografia amerndia