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1 VI Reunión de Antropología del Mercosur GT 29 Políticas públicas y antropología en las áreas de Derechos Humanos, Seguridad Pública y Comunidades Coordenadoras: Ana Paula Mendes de Miranda e Maria Victoria Pita AVALIAÇÃO DO TRABALHO POLICIAL NOS REGISTROS DE OCORRÊNCIA E NOS INQUÉRITOS REFERENTES A HOMICÍDIOS DOLOSOS CONSUMADOS EM ÁREAS DE DELEGACIAS LEGAIS Ana Paula Mendes de Miranda, Doutora em Antropologia Social (USP), Diretora-Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP), Professora da Universidade Candido Mendes e do Centro Universitário Bennett. Contato: [email protected] / [email protected] Marcella Beraldo de Oliveira, Bacharel em Ciências Sociais (UNICAMP) e em Direito (PUC – Campinas) e Mestranda em Antropologia Social (UNICAMP) Contato: [email protected] Vívian Ferreira Paes, Bacharel em Ciências Sociais (UENF) e Mestranda em Sociologia e Antropologia (UFRJ) Contato: [email protected] Eliane Santos da Luz, Bacharel em Ciências Sociais (UFRJ) Contato: [email protected] Marcos Vinícius Moura Silva, Graduando em Ciências Sociais (UFF) Contato: [email protected] Wilson Santos de Vasconcelos Bacharel em Ciências Sociais (UFF) Contato: [email protected] RESUMO A pesquisa tem como objetivo avaliar as características do processo de registro e investigação da polícia do município do Rio de Janeiro em casos de homicídios dolosos. Pretende-se a partir de um exame sistemático de uma amostra de 440 registros de ocorrência e das entrevistas com os agentes e autoridades policiais, avaliar os indicadores de êxito para os casos de homicídio em cinco unidades integrantes do Programa “Delegacia Legal”, assim como verificar como é percebido o fluxo do trabalho da organização policial. Sendo o homicídio doloso o crime mais grave contra a vida e considerado um dos crimes que demandam maior investigação por conta da polícia, pretendemos que este estudo permita diagnosticar como determinadas práticas policiais informam determinadas formas de tradução deste delito por parte dos seus agentes. O presente estudo foi facilitado pela forma informatizada de disponibilização dos registros. INTRODUÇÃO Esta pesquisa iniciou-se em maio de 2005 e está sendo realizada no âmbito do Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada a Secretaria de Estado de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, com recursos da Secretaria Nacional de

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VI Reunión de Antropología del Mercosur GT 29 Políticas públicas y antropología en las áreas de Derechos Humanos, Seguridad Pública y Comunidades Coordenadoras: Ana Paula Mendes de Miranda e Maria Victoria Pita

AVALIAÇÃO DO TRABALHO POLICIAL NOS REGISTROS DE OCORRÊNCIA E NOS INQUÉRITOS REFERENTES A HOMICÍDIOS DOLOSOS CONSUMADOS EM

ÁREAS DE DELEGACIAS LEGAIS

Ana Paula Mendes de Miranda, Doutora em Antropologia Social (USP), Diretora-Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP), Professora da

Universidade Candido Mendes e do Centro Universitário Bennett. Contato: [email protected] / [email protected]

Marcella Beraldo de Oliveira, Bacharel em Ciências Sociais (UNICAMP) e em Direito (PUC – Campinas) e Mestranda em Antropologia Social (UNICAMP) Contato: [email protected]

Vívian Ferreira Paes, Bacharel em Ciências Sociais (UENF) e Mestranda em Sociologia e Antropologia (UFRJ)

Contato: [email protected] Eliane Santos da Luz,

Bacharel em Ciências Sociais (UFRJ) Contato: [email protected]

Marcos Vinícius Moura Silva, Graduando em Ciências Sociais (UFF)

Contato: [email protected] Wilson Santos de Vasconcelos

Bacharel em Ciências Sociais (UFF) Contato: [email protected]

RESUMO

A pesquisa tem como objetivo avaliar as características do processo de registro e investigação da polícia do município do Rio de Janeiro em casos de homicídios dolosos. Pretende-se a partir de um exame sistemático de uma amostra de 440 registros de ocorrência e das entrevistas com os agentes e autoridades policiais, avaliar os indicadores de êxito para os casos de homicídio em cinco unidades integrantes do Programa “Delegacia Legal”, assim como verificar como é percebido o fluxo do trabalho da organização policial. Sendo o homicídio doloso o crime mais grave contra a vida e considerado um dos crimes que demandam maior investigação por conta da polícia, pretendemos que este estudo permita diagnosticar como determinadas práticas policiais informam determinadas formas de tradução deste delito por parte dos seus agentes. O presente estudo foi facilitado pela forma informatizada de disponibilização dos registros.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa iniciou-se em maio de 2005 e está sendo realizada no âmbito do

Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada a Secretaria de Estado de

Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, com recursos da Secretaria Nacional de

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Segurança Pública (SENASP). Trata-se de uma avaliação preliminar do Programa

Delegacia Legal, implantado a partir de 1999, com o objetivo de propor uma

reestruturação dos processos de trabalho nas unidades da Polícia Civil do Estado do Rio de

Janeiro.

Antes de passarmos a apresentação de resultados preliminares da pesquisa,

consideramos importante discutir algumas questões metodológicas relevantes para a

análise de políticas públicas, comparando os enfoques da Ciência Política e da

Antropologia.

Concebida como uma sub-área da Ciência Política no Brasil, o tema das políticas

públicas tem despertado cada vez mais o interesse de outras Ciências Sociais, o que pode

estar diretamente relacionado às modificações recentes da sociedade brasileira, em

especial, a redemocratização a partir da década de 1980 e as propostas de reforma do

Estado na década de 1990.

As diversas abordagens da Ciência Política acerca das políticas públicas (cf.

Arretche, 2003; Faria, 2003; Frey, 2000; Reis, 2003; Souza, 2003), têm se caracterizado

por:

• Uma abundância de estudos setoriais, em especial estudos de casos, sem um

aprofundamento analítico;

• Um escasso debate acadêmico específico sobre as políticas públicas;

• Uma proximidade com os órgãos governamentais, provocando o risco de gerar

trabalhos normativos e uma pauta “obrigatória” de pesquisas;

• Um predomínio de estudos sobre políticas públicas municipais e/ou nacionais, em

especial de governos geridos pelo Partido dos Trabalhadores (PT);

• Insuficientes análises sobre as políticas estaduais, o que poderia ser esclarecedor na

discussão sobre o federalismo no país;

• Um predomínio de temas de pesquisa relacionados às formas de participação

popular na decisão sobre políticas sociais;

• Uma concentração das análises nos atores que elaboram as políticas públicas;

• Poucos estudos que privilegiem a burocracia, grupo fundamental na análise porque

implementa as políticas públicas.

Considerando que o tema das políticas públicas constitui-se numa área propositiva,

não devemos cometer o erro de considerá-lo um assunto específico de um determinado

campo do conhecimento. Ao contrário, o nosso esforço será o de demonstrar como a

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antropologia pode, e deve, contribuir para a formulação de uma agenda de pesquisa em

políticas públicas. Neste caso, enfocando prioritariamente as temáticas da segurança

pública, dos direitos humanos e comunidades, que servirão como referencial para o Brasil

e para os demais países da América Latina, marcados pelo desafio da construção de

políticas públicas democráticas.

As abordagens antropológicas do Estado

A Antropologia Política caracterizou-se durante o período de sua formação por

analisar as sociedades ditas “primitivas”, delimitando o seu objeto na oposição que

distribui as formações sociais entre aquelas com Estado e sem Estado. Embora esta

oposição tenha marcado a Antropologia no que se refere ao estudo do governo e do poder,

a validade dessa classificação é questionada por dois antropólogos franceses. Georges

Balandier (1969) considerava que esta era uma oposição enganosa, pois criaria um corte

falsamente epistemológico. Para ele, a Antropologia Política examinava sociedades

“arcaicas”, onde o Estado não estava nitidamente constituído e sociedades em que o

Estado existe sob configurações diversas. Opinião que é compartilhada por Marc Abélès

(1990), para quem o modo como foi tratada a temática da origem do Estado pela tradição

antropológica conduziu a um problema – como negar totalmente o Estado quando o

objeto da antropologia coincidia com um conjunto de formas sócio-políticas, distintas,

mas delimitadas, cada qual a seu modo, no espaço e no tempo. A maior crítica deste autor

é direcionada à expressão de Pierre Clastres, “sociedade contra o Estado”, que julga

extremamente polêmica. Marc Abélès afirma ainda que a focalização do não-Estado e a

transformação do Estado num espectro a se conjurar é uma posição ideológica, e também

uma estratégia de construção da disciplina que afastou assim os “invasores”, cientistas

políticos e sociólogos, de seu terreno (as sociedades exóticas). Salienta ainda que a

antropologia política não poderia cair na tentação de se limitar a construir tipologias,

como a Ciência Política, mas deveria voltar-se para compreender a dinâmica do poder,

principalmente, nas sociedades políticas contemporâneas.

Atualmente, a questão que se coloca para a Antropologia Política é a da

identificação das condições dinâmicas que estão subjacentes à ordem social, ou seja, trata-

se de apreender a dinâmica das estruturas tanto quanto o sistema de relações que as

constituem, considerando as incompatibilidades, as contradições, as tensões e o

movimento inerente a todas as sociedades. Assim, os estudos antropológicos

contemporâneos abarcam um amplo campo de pesquisa, onde se destaca a análise de

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Estados e suas instituições, reconhecendo-se que as idéias e os conceitos fundamentais do

Iluminismo (‘liberdade’, ‘bem-estar’, ‘direitos’, ‘soberania’, ‘representação’,

‘democracia’), que fundamentaram a criação do Estado Moderno na Europa, foram

construídos com uma lógica interna, que presumia um determinado relacionamento entre

a interpretação, a representação e a esfera pública. Porém, a difusão desses conceitos pelo

resto do mundo, a partir do século XIX, alterou a coerência interna que unia os termos,

possibilitando uma sinopse política estruturada livremente, através da qual os diversos

estados nacionais organizaram a sua cultura política (Appadurai, 1994).

Assim, a análise antropológica tem se constituído pelo confronto entre as diversas

instituições estatais, não se limitando à mera diferenciação entre as organizações

tradicionais ou modernas, ou a uma gênese das formas jurídicas. Ao contrário dos

cientistas políticos, que se preocupam com a análise das instituições políticas, no sentido

da luta pelo controle das posições de tomada de decisões, o antropólogo tem buscado

compreender como as instituições e/ou os governos atingem seus propósitos públicos, o

que tornou vitalmente importante a distinção entre as práticas de implementação das

decisões políticas e as práticas da rotina administrativa.

O estudo comparativo das instituições estatais tem sido complementado pelas

análises da Antropologia Jurídica (Shirley, 1987), pois ao analisarmos os sistemas

políticos de uma sociedade estamos tratando também dos seus sistemas jurídicos, como

dizia Radcliffe-Brown (cf. Fortes & Evans-Pritchard, 1981). A principal contribuição da

Antropologia tem sido no sentido de ampliar o entendimento dos modos como as regras

de controle da ordem social são definidas pelos diferentes grupos, pelo modo como

expressam os conflitos e as formas pelas quais esses conflitos são administrados.

Antropologia e políticas públicas

No Brasil, a análise de políticas públicas pela Antropologia ainda não se constituiu

como um campo temático, porém já se pode falar de avanços, principalmente devido à

produção de laudos antropológicos para questões judiciais (Silva, Luz & Helm,1994),

geralmente voltados para a discussão acerca de direitos de minorias étnicas, o que

resultou em um protocolo firmado entre a Associação Brasileira de Antropologia e o

Ministério Público Federal, na década de 1980.

Pretendemos neste artigo alcançar uma perspectiva mais ampla, considerando

como a antropologia pode contribuir para a avaliação de políticas públicas.

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Em primeiro lugar, destacamos o foco na análise empírica. A etnografia em seus

moldes clássicos permite o questionamento das práticas daqueles que são responsáveis

pela implementação e execução das políticas públicas, destacando-se a dimensão

subjetiva das ações, geralmente deixada em segundo plano. No entanto, é preciso salientar

que o enfoque conjuntural, a partir dos casos analisados, deve possibilitar uma visão

estrutural das ações governamentais, a fim de que possamos apreciar seus impactos e

deduzir conseqüências futuras.

A descrição e a análise das interações sociais, que se constituem a partir da

implantação de uma política pública, possibilita a compreensão das conquistas e dos

obstáculos que surgem a partir da intervenção do poder público. Há que se ressaltar que as

resistências a uma dada política pública não são apenas sinais do fracasso da mesma, ao

contrário, podem servir como indicadores fundamentais das mudanças que estão

ocorrendo no grupo. Esta dimensão é reveladora do processo de institucionalização que se

dá mediante a padronização de comportamentos, o que será exemplificado com a análise

do trabalho policial.

Para tanto é importante que se concentre a análise na natureza do problema que a

política pública pretende solucionar. Isso parece óbvio, mas não é. É um erro muito

comum esperar que um programa/projeto transforme radical e magicamente a realidade.

Aliás, este erro é recorrente em análises de projetos voltados para a temática da segurança

pública e direitos humanos.

Um outro ponto importante diz respeito aos cuidados necessários para o uso de

métodos comparativos e os riscos da relativização radical, bem como a importância das

análises quantitativas e qualitativas de políticas públicas. A avaliação quantitativa permite

mensurar a eficiência de uma ação, ou seja, pode-se testar a relação entre o esforço

empregado na implementação de uma dada política e os resultados alcançados, bem como

medir a eficácia de uma política, na comparação entre as metas previstas e as metas

alcançadas. A avaliação qualitativa permite explorar a percepção que os indivíduos

envolvidos, direta ou indiretamente, na proposta têm acerca das deficiências e melhorias,

possibilitando a observação da efetividade da política pública, no que se refere a relação

entre os objetivos definidos e os impactos na mudança das condições sociais do grupo

(Rico,1998).

Neste artigo pretendemos avaliar o trabalho da Polícia Civil acerca dos Registros

de Ocorrência e dos Inquéritos referentes a homicídios dolosos consumados em áreas da

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capital do Estado do Rio de Janeiro, buscando enfocar a dimensão da efetividade do

Programa Delegacia Legal.

Consideramos que certas práticas e percepções policiais estão firmemente

enraizadas na sua cultura, isto é, formam uma lógica que parece ser natural e inerente ao

sistema. Interessa, portanto, descontruir e desnaturalizar essas práticas, o que possibilita a

discussão em torno da avaliação de propostas de mudança e da possibilidade mudança

dessas ações policiais.

Seguimos a perspectiva epistemológica enunciada por Geertz (1997), que indica

que o empreendimento antropológico deve voltar-se à compreensão das formas como os

“nativos” percebem o contexto em que se inserem. Por isso, no que diz respeito à

reestruturação do trabalho policial inaugurada pelo Programa Delegacia Legal,

pretendemos analisar o que os policiais fazem, como justificam o que fazem, bem como

verificar as suas reações a esse programa de governo

Para atingir o objetivo proposto optamos por duas formas de abordagem:

a) selecionamos e analisamos uma amostra de 395 Registros de Ocorrência e

inquéritos de homicídios dolosos;

b) realizamos 42 entrevistas com inspetores e delegados de cinco unidades de

Delegacias Legais na capital com um roteiro orientador das discussões.

As cinco unidades policiais selecionadas para a pesquisa foram as seguintes: 6ª DP

(Cidade Nova/1ª AISP); 12ª DP (Copacabana/19ª AISP); 20ª DP (Vila Isabel/6ª AISP);

21ª DP (Bonsucesso/22ª AISP); e, 34ª DP (Bangu/14ª AISP). Estas delegacias foram

escolhidas de acordo com uma avaliação do padrão de casos de homicídio registrados no

período de 2000 a 2003 conforme a distribuição nas Áreas Integradas de Segurança

Pública (AISP). A AISP é um projeto de correspondência geográfica entre a área de um

batalhão da Polícia Militar (responsável pelo policiamento ostensivo) e uma ou mais

circunscrições de delegacias da Polícia Civil (responsável pela polícia judiciária) contidas

nessa área. Essa reformulação pressupõe a responsabilidade compartilhada no

planejamento, coordenação, controle e avaliação permanentes das estratégias e ações da

Secretaria de Segurança Pública. Pelo ranking do número de vítimas de homicídio no

Estado do Rio de Janeiro, as delegacias analisadas ocupam as seguintes colocações: 34a

DP - 5o lugar; 21a DP - 9o lugar; 6a DP - 29o; 20a DP - 60o lugar; 12a DP - 87o lugar.

A coleta dos dados dos registros e inquéritos realizou-se por meio do Sistema de

Controle Operacional (SCO) das Delegacias Legais através das senhas de acesso

disponibilizadas pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). O Sistema de Controle

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Operacional (SCO) é o sistema através do qual são computadas e administradas todas as

informações pertinentes aos Registros de Ocorrência, Inquéritos policiais e rotinas

operacionais das delegacias incluídas no Programa Delegacia Legal. As informações

compiladas no banco de dados da pesquisa são referentes ao dia em que foram coletadas,

visto que o SCO fornece informações da atuação policial em tempo real, sendo a todo o

momento atualizado.

O ano escolhido para a análise dos registros foi o de 2002, porque neste ano

poderíamos encontrar casos já elucidados. Ao mesmo tempo, não é um ano muito

próximo da implementação do Programa Delegacia Legal, que ocorreu em 1999, o que

torna possível a análise do trabalho investigativo da polícia. É bom lembrar ainda que o

ano de 2002 foi marcado por uma interrupção neste Programa devido a mudança de

governo, durante os meses de abril a dezembro, enquanto durou a administração da

governadora Benedita da Silva. Nesse sentido, a escolha desse ano para análise também

está vinculada a possibilidade de destacar algumas características da influência que

distintas orientações políticas podem produzir na atividade policial.

O Programa Delegacia Legal

Com o objetivo de romper com os modelos e práticas que tradicionalmente eram

levadas a cabo pela polícia fluminense foi proposto um programa de reformas para a

Polícia Civil, no Governo de Anthony Garotinho, em 1999, intitulado Programa

Delegacia Legal. Nesta administração, iniciou-se a transformação das delegacias

convencionais em “legais”, e o projeto tem sido continuado pelo governo atual (Rosinha

Garotinho), de modo que em setembro de 2005, 86 das 121 delegacias distritais e

especializadas do Estado já fazem parte do Programa Delegacia Legal.

O Programa Delegacia Legal definiu uma nova forma de trabalho policial no que

diz respeito aos trâmites da investigação policial, paralelamente a uma reestruturação

administrativa e operacional nas delegacias. O termo “legal” foi incorporado ao nome do

programa para caracterizar uma dupla dimensão: as ilegalidades cometidas anteriormente

pela instituição e a idéia de uma coisa boa, “legal”, tal como é falado na gíria.

As principais transformações empreendidas dividem-se principalmente no

seguinte:

1) A reforma arquitetônica: aboliu a carceragem existente nas delegacias para que

os policiais não se ocupassem da guarda de presos; padronizou as fachadas e as

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dependências internas das delegacias para que os policiais trabalhem em um ambiente

aberto, no qual a população poderia identificar uma instituição transparente ao público.

2) A implementação de uma nova forma de gestão dos recursos policiais, onde os

profissionais que ficam no balcão de atendimento não são policiais, e sim estudantes das

áreas de ciências humanas, são eles que devem fazer o primeiro atendimento ao público e

encaminhar ao policial que irá atendê-lo e registrar a ocorrência. Há também uma nova

forma de organização do trabalho: antes três policiais ficavam em momentos distintos

responsáveis pela investigação (modelo de trabalho nas delegacias tradicionais), agora o

inspetor se torna responsável pelos casos que atende, devendo registrá-lo e também

conduzir sua investigação. Com isto o Programa buscou pôr fim as divisões em grupos –

setores internos responsáveis, por exemplo, por roubos e furtos, homicídios, entorpecentes

etc - dentro das delegacias. Estes grupos não caracterizavam um trabalho especializado,

mas sim núcleos que administravam de forma particularizada a informação. Esta ação

possibilitou um maior controle das atividades dos policiais, o que provocou muita

resistência, como foi possível observar durante a pesquisa.

3) Os procedimentos das Delegacias Legais são coletados e processados sob uma

nova sistemática de registro de ocorrência, em que todos os procedimentos devem ser

informatizados e feitos diretamente no computador, em formulários online com

terminologias predefinidas. Tradicionalmente, os espaços para o preenchimento de

características físicas dos envolvidos nos Registros de Ocorrência, por exemplo, eram

preenchidos de forma livre. Agora aumentou a padronização, o policial deve escolher uma

opção dentre as oferecidas pelo Programa no Sistema de Controle Operacional.

4) O Programa pretendeu, com a padronização, impor uma mudança

comportamental, que se tentou alcançar mediante cursos de capacitação para os policiais,

para que aprendessem a manusear os novos instrumentos disponíveis. Ressalta-se ainda

que os policiais que seguem os cursos recebem uma bolsa no valor de R$ 500,00. Todos

os procedimentos da delegacia estão, agora, socializados em uma rede que liga todas as

delegacias inseridas no Programa Delegacia Legal com o objetivo de valorizar a

transparência e controle das atividades policiais.

5) Visando à busca de aperfeiçoamento, tanto do trabalho policial quanto dos

processos de formação/capacitação, são realizadas atividades de monitoramento policial

por parte do Grupo Executivo do Programa de Delegacia Legal, desde 1999 – ano de

implementação do Programa - com intuito de analisar o trabalho dos agentes e autoridades

policiais mediante a varredura dos dados do sistema.

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A seguir, pretendemos destacar alguns pontos específicos dessa reforma da polícia

que parecem influenciar na maneira como os policiais desempenham suas funções.

Classificações do Registro de Ocorrência: primeira “reconstrução” do evento

O Programa Delegacia Legal propôs uma padronização da classificação das

ocorrências, construindo uma tabela com os detalhamentos possíveis dos delitos. Essa

prática inseriu-se na lógica de que, quanto mais detalhada for a circunstância do crime em

um primeiro momento, melhor será desenvolvido o trabalho policial no processo de

elucidação. Além disso, houve a preocupação de que esse detalhamento siga um padrão

para toda a Polícia Civil. É interessante notar a forma como os policiais utilizam essas

classificações quando se trata de um “evento morte”, traduzido ou tipificado como um

crime de homicídio doloso.

Os policiais entrevistados apontaram como fundamental para a classificação do

“evento morte” a ida ao local do fato e a preservação do mesmo. A partir desse contato

visual, eles poderiam verificar a existência de sinais de morte violenta. Se o local está em

desalinho, mas não encontrarem indício algum que permita tipificar a morte como

homicídio, eles classificam como “encontro de cadáver”. Mas se houver, por exemplo, a

morte e, ao mesmo tempo, verificarem que sumiu algum objeto de valor, será um

“latrocínio”. Se houver algum tiro na cabeça, verificam se foi suicídio ou homicídio; se

houver tiro na testa, pode ser execução. A seguir apresentamos algumas falas de policiais

que essas situações podem ser identificadas:

É muito importante preservar o local, porque se antes aparecer alguém ali ou o local for adulterado, você pode descaracterizar o que seria uma briga de dois amigos onde teria homicídio simples e se alguém tirar alguma coisa do local, você acha que é latrocínio. Às vezes, por exemplo, a família vai lá nervosa e tira alguma coisa dali, você fica achando que aquilo é um latrocínio

Em casos que encontra um corpo no meio da rua e não tem nenhuma informação a mais, eles antes de instaurar inquérito colocam como encontro de cadáver. Mas se houver dúvida se foi morte natural ou não já instaura o inquérito e coloca como homicídio, mas se for um simples encontro de cadáver não há nada a ser feito.

Se foi encontrado um corpo com um tiro, aí pode ser latrocínio, um suicídio e um homicídio; se tiver dois tiros no rosto dificilmente se trata de um suicídio, aí você já descarta essa possibilidade, mais ainda pode ser latrocínio ou homicídio. Então, dependendo do local onde o corpo estiver ou se estiver faltando algo, você tipifica aquilo como latrocínio... Mas as dúvidas não ocorrem com freqüência, o importante é ir ao local, porque ali pode ter alguma testemunha que sempre fala alguma coisa. E também se no decorrer das investigações a gente chegar a outras

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conclusões, podemos mudar a tipificação, por exemplo, um encontro de cadáver é uma tipificação que sempre vai mudar. Mas tudo isso não ocorre com freqüência, geralmente nos casos de homicídio já se sabe desde o início que é um homicídio.

Um inspetor nos disse preferir classificar as mortes como latrocínio em vez de

homicídio. Sua justificativa foi de que a condenação seria obtida mais facilmente, porque

no Tribunal do Júri ocorre “um teatro”, diz ele, e o acusado tem mais chances de

conseguir sua absolvição. Veja a seguir o trecho da entrevista:

Nós tentamos achar algo que sumiu da casa para tipificar como latrocínio, pois é um crime que não será julgado no Tribunal do Júri, vai para o juiz comum e é ele que decide e não o júri. No juiz comum é mais fácil incriminar o réu e ele ser condenado, no júri tudo é um teatro, o advogado vai armar uma cena e os jurados muitas vezes acreditam no teatro que ele está fazendo. Por isso, é mais difícil de provar que ele é culpado e de punir o autor.

Nos 395 registros de ocorrência analisados, 64% dos casos foram tipificados como

“homicídio por paf”, acompanhado do artigo 121 do Código Penal (“matar alguém”), isto

é, homicídio provocado por projétil de arma de fogo. Logo em seguida, a tipificação que

apareceu com maior freqüência nos registros foi “homicídios outros”, atribuído também o

artigo 121 do Código Penal, em 12% dos registros.

Além da ida ao local, que possibilitará a primeira tradução do evento morte em

uma categoria jurídica, é importante destacar também que as informações oferecidas pelos

laudos periciais são identificadas pelos policiais como de extrema importância para a

confirmação ou não dessa primeira classificação, como afirma o delegado a seguir:

No momento de tipificar o crime, o trabalho da perícia é muito importante, não dá para saber qual crime de fato ocorreu sem o laudo pericial, a Policia Civil não pode resolver nada sozinha! Todavia, observamos que os laudos provenientes do Instituto Médico Legal

(IML), que dizem respeito ao exame cadavérico, e do Instituto de Criminalística Carlos

Éboli (ICCE), que se referem à análise pericial do local, não contribuem para a primeira

tipificação do delito, já que, depois da abertura do Registro de Ocorrência, os laudos

demoram para chegar na polícia em média 84 e 56 dias respectivamente, de acordo com a

análise obtida através dos 395 casos de homicídios. Nesse sentido, os laudos só poderão

influenciar em uma posterior alteração da classificação elaborada a priori pelo policial, o

que resultará num registro de aditamento.

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No que diz respeito ao Programa, podemos inferir que, se antes a tipificação dos

registros era feita de forma livre, agora aumentou a padronização das categorias. A

Delegacia Tradicional dava margem para que os policiais colocassem qualquer

classificação nos procedimentos, o que o Programa Delegacia Legal não permite, pois dá

um rol de possibilidades fixas, dentre as quais os policiais têm de escolher. Esse

detalhamento está muito relacionado ao meio utilizado para a execução do crime, por

exemplo, “homicídio doloso por emprego de arma de fogo”, “por emprego de arma

branca”, “por envenenamento”, “por paulada”, “por pedrada”, entre outros.

Quando ocorre a necessidade de mudar a titulação durante o Inquérito, por

exemplo, de tentativa de homicídio para homicídio doloso consumado, deve ser feito um

Registro de Aditamento alterando a classificação inicial. Porém, algumas vezes, os

policiais não fazem esse Registro de Aditamento, tendo como conseqüência a

invisibilidade do homicídio decorrente de uma “tentativa”. O Registro de Aditamento fica

armazenado no sistema das Delegacias Legais, de modo que seja possível acompanhar as

mudanças de classificação no decorrer da investigação e também com intuito de que não

haja a possibilidade de “maquiagem” das estatísticas. Assim, o caso que foi tipificado

inicialmente como “tentativa de homicídio” deve ser depois incluído nas estatísticas como

“homicídio”, já que houve alteração na sua tipificação. É possível conferir isso através do

sistema.

É importante observar ainda que no sistema do Programa Delegacia Legal (PDL),

se o policial não atribuir um título ao Registro de Ocorrência, ele não consegue finalizar o

preenchimento do mesmo, o que impede, de certa forma, a incompletude e a ausência de

dados no campo destinado à classificação dos fatos considerados crimes. Ressalta-se

ainda que a não finalização do procedimento no Sistema Operacional, por ausência de

dados fundamentais, é percebida por alguns policiais como um fato negativo, o que,

segundo eles, torna o atendimento mais lento, porque o sistema os impede de trabalhar, o

que foi observado durante a pesquisa de campo.

Por outro lado, a possibilidade de saber como foi classificado e re-classificado um

evento morte através das informações que ficam registradas no sistema, permite um

controle do trabalho policial, diminuindo as possibilidades de mau uso da informação,

bem como a reorientação da capacitação, a partir do monitoramento dos erros.

Dinâmica do fato: segunda “reconstituição” do evento

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Além da classificação policial do evento morte, os agentes da Delegacia Legal

devem preencher um campo chamado “dinâmica do fato”, no Registro de Ocorrência das

delegacias tradicionais era chamado de “resumo do fato”, devendo conter, de forma

resumida, a descrição do evento que deu base ao título desse documento. Nesse campo, é

possível verificar as características destacadas e tomadas como importantes pela lógica

policial e que, devem constar no Registro de Ocorrência. Esta é a segunda reconstituição

do fato dentro da lógica institucional. A primeira consiste em enquadra-los em uma

classificação penal ou administrativa, isto é, dar um título ao fato criminoso. Nesse

segundo momento, o objetivo é resumir esse fato em poucas palavras.

A partir da Resolução nº 760/2005, da Secretaria de Segurança Pública do Estado

do Rio de Janeiro, a Corregedoria da Polícia Civil ficou responsável pela revisão dos

Registros de Ocorrência, principalmente no que diz respeito à verificação da

correspondência entre a “dinâmica do fato” e a tipificação do delito. Para o Corregedor

da Polícia Civil, as alterações classificatórias podem ser feitas ao decorrer das

investigações, porém, de acordo com este profissional, algumas vezes essa correção não é

realizada e a atividade da Corregedoria é identificar dos erros e de solicitar a correção

desses títulos.

Além disso, de acordo com o Corregedor da Polícia Civil, este é o campo mais

importante do Registro de Ocorrência. O que deve constar na dinâmica é a descrição de

como e onde o corpo foi encontrado:

É bom que o policial na linha do campo venha fazendo essa descrição, o corpo foi encontrado tantas horas na rua tal, coloque como foi encontrado, se o local é mal iluminado, se é local de desova, porque isso é fechar uma linha de investigação para saber se no local tem grupo de extermínio, saber se é comum naquele local a desova.

Observamos que, na dinâmica do fato, a descrição é muito técnica, abordando

mais os procedimentos do policial do que o fato em si. Perguntamos a um inspetor que

trabalha na Corregedoria como ele percebia o preenchimento e o que achava ser

importante constar nesse campo. Ele respondeu que:

Na dinâmica do fato o policial poderia aproveitar para dizer se o local estava iluminado, quantas pessoas havia lá, se era um local público muito movimentado, etc, isto é, descrever o local e não só as providências que foram realizadas logo que tomou conhecimento do fato delituoso. Isso deveria estar na parte de diligências realizadas no local e não na parte da dinâmica do fato. Eles misturam muito esses dois campos, o da dinâmica e o das diligências no SCO. O primeiro

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diz respeito ao que o Policial Civil autor do registro fez, ali deve ir descrito se ele também foi ao local, se tirou foto ou não, se encontrou alguma coisa etc, se não vier nada escrito neste campo, não é porque o policial não fez nada, mas porque ás vezes escreveu no local errado, pôs na dinâmica junto às diligencias da PM. Este inspetor demonstrou a forma como o campo “dinâmica do fato” é preenchido:

com ênfase mais nas atividades administrativas realizadas pelo policial do que com o foco

voltado para a investigação do crime, isto é, descrevendo as circunstâncias em que

ocorreram os crimes. É importante salientar ainda que existem vários campos do Sistema

de Controle Operacional das Delegacias Legais, criados para o Registro de Ocorrência,

que devem ser preenchidos obrigatoriamente, mas dois deles se mostraram importantes

para a investigação e para a tipificação do crime: o campo “dinâmica do fato” e o campo

“diligências realizadas” no local do crime e, como disse o inspetor acima citado, muitas

vezes os policiais confundem os dois campos, descrevendo a dinâmica do fato e as

diligências realizadas no mesmo campo.

Em uma das delegacias que pesquisamos, uma inspetora que cuida dos inquéritos

afirmou que geralmente a Polícia Civil não vai ao local e o que consta no relato da

dinâmica são os dados fornecidos pela Polícia Militar. Ou seja, apesar da maioria dos

policiais afirmarem que é de extrema relevância para a classificação do evento, tanto

quanto para a sua posterior investigação, a ida ao local do crime, foi amplamente

verificado durante as entrevistas, que essa não é uma atividade realizada comumente pela

Polícia Civil. Sendo assim, as informações que constam no Registro acabam sendo as que

o policial militar que foi ao local verificou e trouxe para a Polícia Civil. A inspetora disse:

Na dinâmica se coloca o que o PM tem a dizer sobre o fato, já que nem sempre a Polícia Civil vai ao local. Então o PM vem até a delegacia e conta sobre o ocorrido e o policial civil digita no computador. Quem vai ao local geralmente é a perícia do local - o ICCE - e não o policial civil, a delegacia só faz o contato telefônico para o ICCE solicitando o seu comparecimento no local, mas o policial civil pode ir também se quiser. Por exemplo, em alguns casos o PM chega depois do ocorrido, anota os dados de todas as vítimas sobreviventes que foram para o hospital, traz esses dados para a delegacia, porque essas pessoas são colocadas como testemunhas e devem prestar declaração depois de saírem do hospital. Também é importante constar na dinâmica as testemunhas do local, se o autor é identificado ou não... Muitos policiais relataram, durante as entrevistas, que o preenchimento da

dinâmica do fato muitas vezes é feito com base na informação do comunicante, que

muitas vezes é o policial militar. A partir da análise dos 395 Registros de Ocorrência

observamos que 58% deles continham relatos padronizados, fornecidos pela Polícia

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Militar, isto é, com mais informações sobre as diligências realizadas pelo policial militar

no local do que sobre as características do fato em si.

É importante notar que o campo da dinâmica do fato contém a segunda tradução

do fato, tradução que neste momento é feito de forma descritiva. É com base nessas

poucas informações iniciais que a Polícia Civil irá conduzir a investigação. No Programa

Delegacia Legal, este é um dos campos imprescindíveis do Registro de Ocorrência que

deve ser preenchido obrigatoriamente, se não for preenchido o Sistema de Controle

Operacional (SCO) impede sua conclusão, a tela do computador não “fecha”. Porém,

apesar do Programa impedir que esse campo não seja completado, o seu preenchimento,

na prática, acaba sendo mal realizado pelos policiais, que se referem muito mais a

procedimentos administrativos do que a características importantes para a investigação do

crime com intuito de uma possível elucidação do mesmo.

Abertura do Inquérito: Práticas Informais

Conforme prevê o ordenamento jurídico, os crimes de homicídio têm como titular

da ação penal o Estado, que deve abrir o Inquérito tão logo tome conhecimento do fato

através de suas instituições. Na prática, tal medida não é levada a cabo nas delegacias, os

policiais muitas vezes retardam a abertura do Inquérito. Os motivos dessa extensão dos

prazos legais parecem estar inserida em uma lógica policial, por exemplo, uma das formas

identificadas de driblar esses prazos legais foi através de práticas que apesar de serem

informais, estão institucionalizadas na polícia: a chamada Verificação de Procedência de

Informação (VPI). Kant de Lima (1995) constatou em sua pesquisa sobre a Polícia Civil a

existência deste procedimento informal na polícia. Verificamos durante a pesquisa que a

VPI é instaurada quando não há informação suficiente para a abertura de inquérito. Um

delegado nos disse, durante entrevista, que são feitas investigações preliminares para

saber o que ocorreu, e, em caso de necessidade, instaura-se o inquérito, isto é, somente se

ficar constatada a ocorrência de um crime.

Verificamos, durante a pesquisa, a existência da chamada VPI, por exemplo, em

casos classificados como “encontro de cadáver”, quando os policiais não têm certeza se

foi de fato um homicídio, um latrocínio, um suicídio ou morte natural, pois não há marcas

aparentes de violência aparente, ou ainda se foi um caso de morte natural. Nesse caso, a

primeira classificação do registro, segundo eles, fica comprometida, pois não é possível

identificar o crime a partir das evidências do corpo ou do local. Se tipificarem de início

como homicídio, o inquérito deverá ser instaurado imediatamente, de acordo com o

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Código de Processo Penal Brasileiro. Os autos em VPI têm capa branca e têm 30 dias para

serem concluídos.

A análise dos 395 Registros de Ocorrência demonstrou que alguns inquéritos de

homicídio demoravam muito mais do que 30 dias pra serem instaurados. Ou seja,

seguindo o prazo da VPI, ele deveria ser instaurado até 30 dias e sem a existência da VPI

o inquérito deveria ser instaurado no mesmo dia da abertura do Registro de Ocorrência.

Dos 385 registros de homicídios dolosos analisados - com exceção dos dez casos de

flagrantes, que não necessitam de Portaria para a abertura do Inquérito, pois seguem outro

procedimento, que é o da elaboração do Auto de Prisão em Flagrante - somente em 124

casos (33,5%) o inquérito foi instaurado no mesmo dia ou um dia depois do Registro de

Ocorrência. Contudo, verificamos que, se retirarmos os 15 casos que não são flagrantes, e

que, não tiveram o inquérito aberto em 2002, nem até o presente momento, o tempo

médio de abertura do inquérito nas Delegacias Legais corresponde a 29,81 dias depois do

registro inicial. A seguir, a tabela com a divisão por períodos da instauração do inquérito:

Tempo de Abertura do Inquérito (dias) Número de Registros %

0 –30 261 67,8

31-60 44 11,4

61-90 22 5,7

91-120 13 3,4

121-150 18 4,7

151 em diante 12 3,1

Não foi aberto o inquérito 15 3,9

Total 385 100,0

A obtenção desse tipo de dado – quanto tempo levou desde a feitura do RO e a

instauração do inquérito – para todos os casos de 2002 das cinco delegacias analisadas, só

foi possível através do SCO das Delegacias Legais. Essa é uma possibilidade de controle

do trabalho policial bastante interessante quando tratamos do crime de homicídio. Como

todos os procedimentos estão disponíveis virtualmente, mesmo que na realidade já

tenham sido enviados à justiça, é possível mesmo assim obter os dados desse tipo. Antes

da instauração do sistema Delegacia Legal não havia como ter acesso, na polícia, aos

inquéritos que já haviam sido enviados à justiça, pois não existia uma cópia desses

inquéritos. Quando estes eram enviados à justiça, alguns dados sobre o Inquérito ficavam

registrados em “Livros de Registro” na Delegacia, mas não havia como ter contato com o

próprio Inquérito. Muita informação ficava perdida e para resgatá-la era necessário ir ao

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Fórum para ver esses documentos ou ao arquivo cartorário, se esse já tivesse sido

recolhido. A partir da Delegacia Legal esses documentos estão disponibilizados

virtualmente, então, tivemos acesso a todos os registros e inquéritos das cinco delegacias

legais selecionadas para a pesquisa no ano de 2002, independentemente se esses

documentos estavam na delegacia, na justiça ou no arquivo. É importante observar que

este é um dos exemplos do enorme controle que passou a existir desde a implementação

deste Programa de Governo com relação ao trabalho policial.

Prática arraigada na Instituição – trabalho orientado por prazos

O Programa Delegacia legal permitiu um maior controle sobre o cumprimento de

prazos na polícia, na tela do computador destaca-se em vermelho quantos dias estão fora

do prazo. Isso acarretou maior volume de trabalho para o Ministério Público, fato que

levou à criação da Central de Inquéritos.

Uma das críticas feitas em relação a este Programa de Governo é que as

Delegacias Legais acabaram por abarrotar o Ministério Público, já que, a partir do

Programa, passaram a cumprir os prazos mais corretamente. Considerando os 395

registros de ocorrência foi possível verificar que deste total, somente 22 Registros se

encontravam fora do prazo.

O Ministério Público, por sua vez, demora muito tempo para despachar e devolver

os casos para a polícia para que ela prossiga nas investigações, muitas vezes retendo os

inquéritos por mais de três meses. Isto pode ser comprovado se considerarmos que, dos

385 inquéritos analisados no banco de dados do Sistema de Controle Operacional das

Delegacias Legais (os não-flagrantes), 63,4% desses inquéritos estão no Ministério

Público e não nas delegacias. Quando o inquérito é enviado definitivamente à justiça, para

o oferecimento da denúncia, a situação que consta no banco de dados do SCO da

Delegacia Legal é de “Relatado à justiça”. Porém, dos 385 registros que analisamos,

somente 16 deles, o que corresponde a 4,2% registros, se encontravam nesta situação no

momento da coleta dos dados. Desta forma, a maior parte dos inquéritos está na situação

“enviado à justiça” (63,4%), o que significa que eles estão no Ministério Público. Como

foi constatado durante a pesquisa na análise dos registros, a maioria dos inquéritos é

enviada para a justiça quando o prazo das investigações está encerrado. Nesses casos, se as

investigações não foram concluídas, é solicitado um novo prazo para prosseguir. Contudo,

observamos durante a pesquisa empírica nas delegacias de polícia, que, em alguns casos,

os registros de ocorrência que estão na situação de “enviados à justiça” podem ter sido

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denunciados pelo Ministério Público, iniciando uma ação penal e por isso não ter mais

retornado à delegacia. Por exemplo, se o Promotor ao receber o inquérito, mesmo sem a

peça que o finaliza – o relatório final do delegado – ,ele poderá oferecer denúncia se achar

suficiente o embasamento que consta no inquérito. Mas este não é um fato que ocorre com

muita freqüência. Pode ocorrer também que o policial, mesmo tendo relatado o inquérito à

justiça e este não tenha mais voltado para a delegacia, não tenha alterado sua “situação” no

SCO. Vale lembrar que todos os dez casos de flagrante se encontram na situação de

“enviado a justiça”.

Uma inspetora responsável por dar andamento aos inquéritos argumenta que o

tipo de trabalho que ela faz nos processos para envio à justiça, solicitando novo prazo, é

somente o cumprimento burocrático:

Como este fato aconteceu em 2002, a única possibilidade de manusear o inquérito segundo a policial é ficar cumprindo os prazos, pois dificilmente irá conseguir mais alguma coisa. Aí o inquérito fica indo e voltando para a justiça. Vai e volta, vai e volta. Assim fica difícil terminar tudo. A gente não tem essa facilidade de estar o tempo inteiro na rua porque também tem que tratar destes casos. A gente não encontra ninguém, não aparece ninguém. Aí o Ministério Público acha que a gente não fez nada, porque o inquérito vai para lá do mesmo jeito que chegou.

O argumento da inspetora acima reforça a idéia de que a polícia acaba fazendo um

trabalho burocrático mais do que investigativo. O novo prazo pedido é para cumprir uma

determinação legal e não para, de fato, ir a fundo nas investigações do crime. A idéia do

Programa de Governo de suprimir a cartorialização da delegacia vai sendo suplantada

progressivamente pela volta aos velhos hábitos.

Sobre a implementação do Programa Delegacia Legal, vai voltar tudo o que era antes. No início foi bom, mas agora já está acumulando todo o serviço novamente. O trabalho é burocrático, a gente acaba fazendo só trabalho burocrático, não a investigação...

Assim também argumenta outro policial:

Deve haver uma harmonia entre investigação e formalização. Se não formalizar tudo no papel é a mesma coisa que não existisse. O nosso trabalho é avaliado somente com base no que está no papel, mas a investigação não é feita só disso, senão a gente vira meros autuadores. Só com papel não soluciona nada. Então mesmo que seja feita a investigação externa, a gente tem que colocar tudo no papel depois. (...) Então a Delegacia Legal auxilia demais nos recursos materiais,

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mas a mesma investigação que é feita aqui é feita nas Delegacias Convencionais. A Delegacia Legal só investiu em formalização.

Esse policial toca no ponto fundamental do Programa de Governo que tenta tornar

públicas as informações da investigação policial, pelo menos internamente para a

instituição, considerando que elas podem ajudar na elucidação de outros delitos

relacionados e também como uma forma de evitar a corrupção interna. O Programa

Delegacia legal conta com a prática de registro das informações investigativas para que

elas fiquem disponíveis e organizadas, e não se tornem algo pessoal de um determinado

policial ou delegado. As informações são assim de caráter institucional e não pessoal. Isto

é, o policial precisa compreender que o registro das informações no sistema é algo

fundamental para a efetividade do Programa e que elas devem ser publicizadas

institucionalmente. Porém, não é isso que ocorre. A prática de registro acaba sendo muito

precária e, conseqüentemente, as investigações deixam muito a desejar. A lógica policial

não é a do registro no banco de dados, mas a de particularização da informação, ou seja, o

registro em um outro formato, que somente ele possa ter acesso. Os motivos desse não

registro podem estar relacionados a diversas causas lícitas e ilícitas, porém, importa aqui

salientar que essa lógica impede a realização efetiva do Programa de Governo. Um

delegado titular disse ainda que não vê nenhuma diferença na investigação do homicídio

nas delegacias legais e nas delegacias convencionais:

Não há muita diferença entre a investigação feita em um DP legal e em uma delegacia convencional, a única diferença que existe é que os recursos materiais aumentaram, como computador que agiliza o trabalho, impressora etc., mas que em termos de método investigativo continua a mesma coisa. Em relação ao pessoal disponível, a situação permanece a mesma.

Nesse sentido, esses profissionais identificam o trabalho policial como sendo mais

burocrático do que investigativo. Muitas vezes, como foi mostrado, este trabalho está

orientado pelos prazos legais de envio à justiça, isto porque o trabalho policial deve ser

periodicamente informado à justiça.

Caráter pessoal das investigações

Outro ponto que merece destaque em relação à investigação do crime de

homicídio diz respeito ao modo como os policiais percebem o trabalho de investigação.

Segundo eles, este trabalho está mais relacionado a uma característica pessoal do agente

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policial, ligado a uma “vontade de investigar” do que a uma infra-estrutura ou a uma

lógica institucional.

Perguntamos a um delegado qual a principal diferença no que diz respeito à

investigação na delegacia legal e na delegacia tradicional e ele nos respondeu que:

Não tem tanta diferença, depende da boa vontade do investigador. É claro que com relação a estrutura houve uma mudança significativa, melhorou as condições de investigação, mas se o policial não gosta do que faz um computador não vai mudar a mentalidade dele. A questão é muito particular de cada um. Não adianta você colocar um policial que gosta de fazer serviço externo que gosta de ficar na rua pra ficar aqui dentro mexendo no computador, isso não adianta! Ele gosta da rua. Não vai funcionar em um computador. (...) O programa de fato é legal, o negócio é quantos policiais vão trabalhar nisso... agora o policial é responsável por todos os registros... o negócio é não sobrecarregar o policial! Então o que depende mais é de vontade, de interesse, de empenho do policial e de não sobrecarregá-los.

Mais especificamente, com relação ao homicídio os policiais e delegados dizem

que o profissional deve ser mais “sensível”, mais “perspicaz” entre outras características

apontadas. Como aponta um inspetor a seguir:

O policial que investiga homicídio é um policial mais dinâmico, perfeccionista, tem mais sagacidade que os outros policiais, essas são características naturais que os policiais tem e que os delegados tem de ter a sensibilidade em perceber e alocar ele para o que ele é bem de fazer. Agora a delegacia legal coloca os policiais para fazerem tudo, aí o delegado não pode trabalhar com as características de cada policial. Tem policial que não sabe fazer trabalho de rua, tem outros que não sabem fazer RO.

Por outro lado, um delegado de polícia não concordou com essa argumentação das

características pessoais dos agentes na investigação do homicídio. Disse que não é algo

que nasce com o indivíduo, mas algo que ele apreende durante sua carreira através dos

cursos de especialização para investigação do homicídio.

Equipes especializadas: Delegacia Legal X Delegacia Convencional

Uma das críticas feitas com insistência por quase todos os policiais e delegados

entrevistados sobre o projeto do Programa Delegacia Legal dizia respeito à proposta de

supressão das “equipes especializadas”, para que o policial registrasse e investigasse

qualquer ocorrência que fosse a ele destinada. Nas delegacias convencionais existiam

núcleos de investigação formados por uma equipe de policiais que investigavam as

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ocorrências depois de separadas por tipos de crimes, assim, os inquéritos de homicídios

eram destinados à uma equipe que iria investigar somente aquele tipo de crime.

Apesar de nunca ter trabalhado em uma delegacia convencional, um delegado

aponta que a especialização é de suma importância porque o policial tem que ter tirocínio

(conhecimento adquirido na experiência prática), o policial que atende homicídio segundo

ele, tem uma característica diversa dos demais policiais e isto deve ser valorizado.

Contrariando a lógica do Programa, disse claramente que, na delegacia em que trabalha,

ele prioriza as especializações:

Eu presumo que a especialidade da convencional seja mais producente, porque você tem aquele policial que sabe conduzir aquela investigação. Na Delegacia Legal os policiais agora vão ter de fazer tudo, e não dá para ter um expert em todos os assuntos. Na Delegacia Legal é bom porque você tem mais informação. O SCO é ótimo, mas você tem que selecionar um policial porque o trabalho policial não é matemático, tem que ter o tirocínio do cara. Esses policiais que trabalham em homicídio, eles não servem para investigar outros tipos de crimes, porque eles estão mais sensíveis aos detalhes e mais observadores, se eles ouvirem determinado tipo de coisa, fala com a pessoa para ela se aprofundar naquilo, ou perceber contradições. O trabalho deles é mais demorado, eles ficam cozinhando aquilo, chamam a testemunha de novo... Agora, esse cara é muito lento para trabalhar roubo de loja, por exemplo, porque esse é um crime que pede uma investigação mais rápida, se ele demorar muito para investigar um roubo, o cara já roubou várias outras lojas, já fugiu e você não encontra ele mais. Isso depende das peculiaridades de cada policial. Aqui eu separo, para inquéritos de homicídio, vão dois policiais, para roubo em estabelecimento comercial eu coloco outros policiais.

Segundo este mesmo delegado, ter os policiais especializados é importante,

porque ele pode relacionar aquele fato que atende com as outras ocorrências do mesmo

gênero que está sob sua responsabilidade.

Dependendo da área, se você levanta, por exemplo, um homicídio em um morro decorrente de tráfico e tem vários outros crimes pendentes, dependendo da área em que estão acontecendo àqueles crimes, eles têm relação. O policial então vai poder vincular com aqueles casos que ele tem, se colocar todos os policiais para fazer tudo, o procedimento que um fez não vai ter vínculo nenhum com o que o outro fez, os policiais nem vão ficar sabendo do outro. Já se você tem o policial que investiga só aquilo, então quando você levanta um, você já pega mais três ou quatro casos.

Segundo outro delegado, é válida a manutenção da especialização nas delegacias,

pois, por meio delas, ele pode trabalhar com as particularidades e características de cada

policial:

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No meu ponto de vista o que prejudica na investigação principalmente dos crimes graves na delegacia é essa necessidade de todos terem que fazer clínica geral e não ter a especialização como existia na delegacia antiga, na convencional. (...) Às vezes o que é que acontece, o policial do atendimento na delegacia legal, eu vou te dar um exemplo, eu sou um policial e estou ali na mesa, um inspetor fazendo registro, “ah, chegou a conhecimento um caso de homicídio”, fiz registro e a partir do momento eu sou vinculado aquele homicídio para apurar o fato até o final. Claro, tem na resolução que passa homicídios, extorsão, tráfico é encaminhado para o GIC[grupo de investigação continuada], que tem a função de fazer a investigação desses crimes mais graves. Mas o que é que aconteceu? O policial que atendeu não foi o primeiro que chegou no local, por mais que o cara ponha no papel esmiuçadinho o que ele fez, o cara vai pegar depois não foi o que esteve no local. Mas eu acho que deve compartimentizar aqui dentro da delegacia, dentro da minha equipe a existência desses grupos, dar preferência, às vezes acaba até transferindo, olha, dá procedimento para um, dá procedimento para outro, você vai trabalhar com fulano, isso vai ser do cicrano, entendeu?

Ao contrário da maioria dos entrevistados, um delegado nos enuncia que, na

verdade, não existem especialistas que sejam peritos em um tipo de crime na polícia,

porque a experiência de manutenção do modelo que prioriza as “equipes especializadas”

não resultou em melhores resultados nas investigações, mas sim um acúmulo de

procedimentos sem andamento.

Esse sistema de não ter especialista, pelas estatísticas, produz muito mais resultados do que dos chamados especialistas dele! Como é que explica isso? Porque números não mentem!?(...)O que acontece, é que eles já empregam esse tipo de especialização nas delegacias e por isso que os resultados são baixos. Mas por que os resultados são baixos? Por falta de compromisso. (...) O brilhante especialista também não faz coisa nenhuma. Vamos chegar lá, são 146 casos de homicídios, por exemplo, numa determinada delegacia, em seis meses. 146 casos. Quantos casos foram resolvidos? Dois! E tem especialistas! Bom, pra mim não são especialistas, porque tem 146 casos e se resolve dois. Eu acho que alguma coisa está errada! E os delegados ainda continuam com essa história de especialistas... os especialistas, nada mais são do que aquele cara que não faz coisa nenhuma. Se você pegar os inquéritos você vai ver que eles estão parados, os especialistas não estão trabalhando em especialização nenhuma.

Deve-se ressaltar que um dos principais objetivos preconizados pela reforma é

responsabilizar o policial pela ocorrência que atende, ou seja, de criar uma relação entre o

fato, a investigação, o policial e o resultado do trabalho realizado por ele. No entanto,

segundo observamos, é principalmente no que diz respeito ao esforço de impor novas

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formas de controle e avaliação do trabalho policial que a polícia mais resiste. Evitam

particularizar as responsabilidades e incumbem ao grupo os resultados do trabalho.

CONCLUSÃO

Buscamos analisar a efetividade do Programa Delegacia Legal no que se refere ao

trabalho de registro de ocorrências e de investigação, dando destaque aos casos de

homicídio. Podemos afirmar que não há hoje mais resistência à reforma arquitetônica,

com a supressão da carceragem, o que já havia sido motivo de muitos debates. As

melhorias de estrutura administrativa também foram incorporadas pelos policiais

positivamente. Porém, há que se observar como as práticas policiais têm sido

influenciadas por essa política pública. Atualmente, já está havendo um reconhecimento

de que o Programa Delegacia Legal atingiu seu objetivo de atuar sobre a apropriação

privada por parte dos policiais de informações que são públicas. Ainda há o “chute” das

ocorrências, ou seja, práticas através das quais os policiais tentam convencer os cidadãos

a não registrarem, mas isso se torna quase impossível nos casos que envolvem mortes. Os

mecanismos de monitoramento que o Programa oferece representaram um avanço no

controle da qualidade da informação. Se ainda não houve um impacto na eficiência

policial, ou seja, se a produtividade no que se refere à elucidação de crimes ainda é baixa,

é bom lembrar que antes não havia nem a possibilidade de saber quais crimes teriam sido

registrados.

A resistência ao Programa no que se refere às novas práticas procedimentais de

investigação devem ser pensadas como um indicador de que houve uma tentativa de

mudança da lógica policial, para que deixe de ser uma rotina cartorial e se transforme

numa ação mais investigativa.

Nesse sentido, o debate acerca da especialização das equipes é revelador. De um

lado, os argumentos favoráveis à especialização se baseiam em características pessoais, de

outro, os argumentos contrários afirmam que a especialização só existe mediante a

qualificação profissional, e deveria ser restrita a situações específicas (como exemplo o

caso da Delegacia de Atendimento a Mulheres), e não ser utilizada nas distritais. Revela-

se assim a oposição clara entre o modelo de profissionalismo, proposto pelo Programa, e

o modelo tradicional, onde o funcionário resiste à regulação de padrões a fim de manter

seus poderes e vantagens.

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