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SITIENTIBUS Revista da Universidade Estadual de Feira de Santana Educação

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SITIENTIBUS

Revista da Universidade Estadual de Feira de Santana

Educação

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A revista Sitientibus está registrada e indexada (Base de dados) nos órgãos:

Sumários Correntes Brasileiros (IBICT - década de 80)

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http://www.latindex.unam.mx/latindex/admon2/catalogo/reporte_param2.html?folio=2091

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SITIENTIBUS

Revista da Universidade Estadual de Feira de Santana

Educação

n. 49 julho/dezembro 2013

ISSN 0101 - 8841

SITIENTIBUS FEIRA DE SANTANA n. 49 p. 1-145 jul./dez. 2013

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Os trabalhos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Permitida a reprodução, total ou parcial, desde que citada a fonte.Solicita-se permuta./Exchanges desired./Èchange de publications solicité./Se solicita intercambio de publicaciones.

Periodicidade - Semestral

Endereço PostalEditor da Revista SitientibusUniversidade Estadual de Feira de SantanaAv. Transnordestina, s/n - Novo Horizonte - CEP: 44.036-900Tel./Fax: (75) 3161-8xxxE-Mail: [email protected] Page: http://www.uefs.br/sitientibusFeira de SantanaBahia-Brasil

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia

Sitientibus : Revista da Universidade Estadual de Feira de Santana - Ano I, n. 1 (jul.dez. 1982) - - Feira de Santana: A Universi dade, 1982 - v. : il. ; 21,5 cm

Semestral. Edição interronpida do 2º sem. 84 ao 2º sem. 85 / 1989 a 1991. Pubçlicaçãio multidisciplinar, a partir do n. 19 cada número será dedi- cado a uma área do conhecimento. ISSN 0101-8841

1. Ciências - Periódicos. 2. Universidade Estadual dle Feira de Santana

CCD 001(05)CDU 001(05)

Associação Brasileir deEditoras Universitárias

Associação Brasileir deEditores Científicos

ABEC

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Sumário/Contents

APRESENTAÇÃO/PRESENTATION ....................................................................................................................... 7

REPENSANDO A ATUAL “FORMAESCOLA”: ENTRE O REAL E O POSSÍVELRETHINKING THE CURRENT "FORMMASCOLA": BETWEEN THE REAL AND THE POSSIBLE Ana Lídia Santana Batista ............................................................................. 15

FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UM OLHAR SOBRE A DOCêNCIA NO ENSINO SUPERIORTEACHERS FORMATION: A LOOK AT TEACHING IN HIGHER EDUCATION Aritana Lima de Almeida, Diego Bruno Souza Pires ..................................... 31

A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DE PIERRE CLASTRESSOCIETY AGAINST THE STATE: THOUGHTS ON PIERRE CLASTRES’ THEORY Gabriela Barbosa Souza ............................................................................... 49

ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO: A EDUCAÇÃO DO CAMPO COMO REAÇÃO AO CAPITALSTATE AND SOCIAL MOVEMENTS FIELD: EDUCATION OF THE FIELD AS REACTION TO CAPITAL Rodolfo Santos de Miranda ........................................................................... 67

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO NO BRASIL E A INFLUêNCIA DOS ACORDOS INTERNACIONAIS DE EDUCAÇÃOPUBLIC POLICIES FOR ERADICATION OF ILLITERACY IN BRAZIL AND THE INFLUENCE OF INTERNATIONAL AGREEMENTS OF EDUCATION Selma Mendes Souza Mascarenhas .............................................................. 85

CAUSAS DA EFICáCIA DO SUCESSO ESCOLAR NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM EM UMA ESCOLA DE ÉVORA - PORTUGALCAUSES THE EFFECTIVENESS OF EDUCATIONAL ATTAINMENT IN THE LEARNING

ARTIGOS / ARTICLES

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PROCESS AT A SCHOOL IN ÉVORA - PORTUGAL Elvira Maria Portugal Pimentel Ribeiro, Solange Mary Moreira Santos ........ 107

ESTADO, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO: ALGUMAS INDAGAÇÕES E REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A JUVENTUDE NO BRASILSTATE, SOCIETY AND EDUCATION: SOME INQUIRIES AND REFLECTIONS ON PUBLIC POLICIES FOR THE YOUTH IN BRAZIL Vanessa Batista Mascarenhas ...................................................................... 133

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A P R E S E N T A Ç Ã O

Os artigos aqui reunidos centrados na temática da Educação têm uma importância singular na medida em que resultam de um esforço coletivo de editores, revisores, organizadores e autores/autoras para agregar sobretudo as produções de mestrandos e mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEFS. Trata-se de uma edição inaugural visando incentivar a publicização de trabalhos acadêmicos realizados ao longo do curso e seminários em distintas disciplinas. Com isso, atende-se demandas institucionais, a exemplo da CAPES e regulamentos próprios do Mestrado em Educação. Quicá uma semente a ger-minar e disseminar de maneira mais sistemática as reflexões de estudantes e as parcerias com orientadores. A coordenação da presente publicação conta com a participação significativa das professoras Ana Maria Fontes e Solange Mary Santos.

Abrindo esse número da revista temos o trabalho de Ana Lídia, intitulado REPENSANDO A ATUAL “FORMAESCOLA”: ENTRE O REAL E O POSSÍVEL. A autora partindo das con-tribuições teóricas de Gramsci e Bourdieu discute o papel da escola, cotejando sua reflexão junto a outros autores, a exemplo de Luis Carlos Freitas e Dermeval Saviani. Retoma conceitos caros e atuais daqueles intelectuais clássicos, na perspectiva gramsciana de uma escola unitária que viria superar a »forma escola» instituída nos moldes reprodutores das desigualdades de toda ordem, economica, política e cultural.

No artigo Formação de Professores: um olhar sobre a docência no ensino superior, Aritana Lima e Diego Bruno, desenvolvem o texto tomando como base uma investigação realizada com professores universitários de uma instituição pública e outra particular em Feira de Santana. Com atualidade para esse momento histórico que ora atravessamos, afirmam a necessidade do Estado ocupar um lugar preponderante enquanto » provedor das universidades e da formação dos profissionais». A questão central que os move é Como os professores vêem o seu processo formativo e sua prática. Observam a origem conservadora e elitista da instituição universitária no Brasil que embora atravessando séculos, nos últimos anos, se reconfigurou sob o ponto de vista etnicoracial, de gênero e de classe social,

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graças às lutas pelos direitos á educação protagonizadas pelos diversos movimentos sociais. No entanto, como demonstram os autores a essa maior democratização do acesso, não houve correspondência nos processos de ensino e aprendizagem, que permanecem conservadores e elitistas nos cursos de licenciatura e na pós-graduação. As contradições entre discurso progres-sista e prática arcaica, ainda estariam presentes nos cursos de formação docente. Processos mais dialógicos a irem ao encontro das experiências dos/das estudantes, seus desejos e necessidades como concluem, favoreceriam práticas de ensino reflexivas e dialéticas, contemplando teoria e prática, refletindo positivamente no ensino básico e universitário.

Gabriela Barbosa, apresenta o artigo A SOCIEDADE CON-TRA O ESTADO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DE PIERRE CLASTRES. Interessante vir a publico uma aborda-gem antropologica e politica sobre a natureza do Estado pouco contemplada na academia. A autora empreendeu um exaustivo levantamento na base Scielo para aproximar se das produçoes de intelectuais que dialogam sob distintas perspectivas com Pierre Clastres, e em particular enfocando as concepçoes de Estado. Fica claro no artigo a contribuiçao do antropologo que mergulhou etnograficamente nas sociedades indigenas, bem como a ultrapassagem do seu pensamento para as sociedades complexas. O debate a respeito das instituiçoes e formaçoes organizacionais atravessadas pelas relaçoes de poder no siste-ma capitalista de produçao material e simbolica, mostra ser atual e necessario. São sugestivas as reflexoes em torno das experiencias autogestionarias via incubadoras universitarias e as experiencias no interior do MST. Segundo a autora, referen-dada em Sztutman, Clastres nos alerta sobre a importancia de sairmos dos nossos pontos de vista adestrados, formatados e assujeitados que impossibilitam experiencias mais libertarias em diferentes campos da vida em sociedade, inclusive na educaçao.

A seguir, Rodolfo Miranda nos apresenta o artigo ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO: A EDUCAÇÃO DO CAMPO COMO REAÇÃO AO CAPITAL. Trata-se de uma reflexão crucial para um país que até hoje não efetivou uma verdadeira reforma agrária e por consequência dessa estrutura agrária arcaica refém

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do agronegócio, e portanto, do grande capital, exclui numerosa população de jovens e adultos do campo. Como diz o autor, em sua analise gramsciana, as políticas públicas necessárias e urgentes deparam-se com »grupos antagônicos» num cenário adverso e conflituoso. Os movimentos sociais do campo, em suas lutas por educação, e processos de resistencia, protag-onizam valores e perspectivas próprias, contra hegemonicas, que incluem para alem da reforma agrária, um lugar de direito nas políticas públicas, a transformaçao do Estado, enfim, um novo projeto de sociedade.

Selma Mascarenhas, no artigo POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO NO BRASIL E A INFLUÊN-CIA DOS ACORDOS INTERNACIONAIS DE EDUCAÇÃO, traça um quadro realista do tema secular do analfabetismo, ampara-da em um estudo bibliografico consistente. Infelizmente como revelado, há muito a ser feito em termos de politicas publicas multisetoriais, pois não se trata isoladamente das lacunas ed-ucacionais. Ao contrario, uma ordem estrutural mais profunda, a exemplo das enormes desigualdades sociais conformam a referida iniquidade. Ou seja a inserçao plena e digna de uma populaçao consideravel, pobre, na sociedade brasileira ainda e uma promessa. Sim, como dizia Anisio Teixeira educaçao não e privilegio, mas direito social e politico. Estar entre as economias desenvolvidas não significa substancialmente nada quando o acesso a cidadania, ao consumo não apenas material, mas sim-bolico, politico e cultural continua negado, como depreendido do texto. Visando compreender a permanencia do analfabetis-mo, Selma, retoma criticamente os acordos internacionais, dos quais o Brasil e signatario, bem como alguns dos principais programas sob diferentes governos, em tempos passados e mais recentes, relacionados ao tema em questao, mostrando ineficacia dos mesmos. Ao concluir o artigo, fica talvez um alerta para educadores e educadoras que em seu cotidiano escolar, não deveriam perder o sentido de compromisso com a profiss-ao, o que implica no senso critico e o desejo de superaçao do existente, algo implicado, mas não restrito ao espaço escolar.

O artigo Causas da eficácia do sucesso escolar no processo de aprendizagem em uma escola de Évora – Portugal, escrito

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por Elvira Ribeiro e Solange Mary Santos, resulta de um relato de uma pesquisa como diz o titulo realizada fora do pais. Sem a intençao de estabelecer comparaçao com estudos no Brasil, mas sinalizar boas praticas com as quais podemos aprender, as autoras analisam uma experiencia educativa bem sucedida do Programa “Mais Sucesso Escolar”, enquanto politica pu-blica, cujo objetivo é promover a inclusao de estudantes com dificuldades de aprendizagem nos distintos ciclos escolares, e assim, como afirmado no texto, diminuir os índices de retenção e abandono escolar. As distintas e convergentes concepões de sucesso e insucesso escolar contemplam entre outros Perre-noud e tanto esse autor como outros contribuem com a análise dos dados colhidos nas entrevistas com coordenadores e pro-fessores envolvidos no Programa. Alguns aspectos relevantes são observados pelas autoras ao conferirem a sua eficácia e em particular considerando uma das Turmas – Fênix, eleita para a investigação e muito sugestivamente associada ao nin-ho, pois almeja o voo daqueles que passam pela experiência de acolhimento e aprendizagem. São em síntese os seguintes aspectos a chamar a atençao das pesquisadoras: os principios de autonomia na gestão dos recursos, no plano organizacio-nal e pedagógico; a instituição de uma gestão democrática e do trabalho em equipe; a participação efetiva da comunidade escolar, incluindo as famílias; o apoio individualizado ao estu-dante, respeitando suas necessidades e ritmos; a articulação entre educadores que avaliam e planificam coletivamente as atividades, a centralidade no sucesso dos estudantes a frente dos indices auferidos pela escola, etc.

Vanessa Mascarenhas, atualiza de forma critica o debate em torno do lugar ocupado pelo jovem nos programas de gov-erno, em particular, abrangendo o periodo do governo Lula quando tardiamente e graças aos movimentos sociais entra em pauta as politicas destinadas a juventude. Qual o sentido real de protagonismo e onde a soberania desse ator nas nas politicas publica, talvez o mote do trabalho intitulado ESTA-DO, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO: ALGUMAS INDAGAÇÕES E REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A JU-VENTUDE NO BRASIL. Por meio de uma literatura rica a autora

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discorre sobre o significado das referidas politicas, reafirmando as injunçoes historicas implicadas nas relaçoes de poder e de classe, portanto, de luta movida por interesses antagonicos para sua implementaçao, refletindo na vida dos cidadãos. A autora desenvolve uma pesquisa documental com enfoque nos principais planos, politicas e resoluçoes fruto de Conferencias de Juventude no pais. Ao lado disso opta no plano teorico por reflexoes na linha gramsciana, que fundamentam consistente-mente a analise. Com conclui Vanessa, desmistificando o dito protagonismo, a perspectiva de melhoria na educação, na so-ciedade e no Estado, sob o discurso de protagonismo juvenil, colaboraçao e participaçao, em verdade, expressam estratégias de controle e consentimento, em ultima instancia, atendem aos interesses dominantes e a manutençao das desigualdades.

Nesta apresentaçao aproveitamos a oportunidade para agradecer o estimulo e apoio da professora Antonia Almeida Silva visando a concretizaçao da publicaçao que ora chega ao publico.

Feira de Santana, 30 de dezembro de 2013

Denise Helena P. LaranjeiraProfessora Titular do Departamento de Educação

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Artigos

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* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE. Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. E-Mail:[email protected].

REPENSANDO A ATUAL “FORMAESCOLA”: ENTRE O REAL E O POSSÍVEL

Ana Lídia Santana Batista

RESUMO — O presente artigo tem por objetivo refletir sobre o papel de-sempenhado pela escola na sociedade capitalista, tomando por base as con-tribuições do pensamento político de Bourdieu e Gramsci. Para tanto, será considerado como elemento fundante as possibilidades de compreensão da realidade escolar enquanto espaço de reprodução dos interesses dominantes na visão de Bourdieu (2007), uma vez que essa instituição trata todos os alunos como se possuíssem os mesmos bens culturais e assimilassem os conteúdos da mesma forma. Por outro lado, também é possível a compreensão de que a escola, alicerçada nos princípios de formação humana, pode ser espaço de transformação social conforme ideias desenvolvidas por Gramsci.

PalavRaS-chavE: Escola; reprodução social; transformação social.

INTRODUÇÃO

O campo da educação escolar suscitou muitos debates, exatamente por ser um campo de disputas políticas e ideológi-cas que influi de maneira determinante a vida na sociedade.

Neste sentido, autores como Bourdieu e Gramsci, ao longo de suas pesquisas, procuraram sistematizar um conjunto de ferramentas teórico-metodológicas que permitem compreen-deras relações que estruturam a sociedade, explicitando nesta, mecanismos de profunda dominação. Através de suas análises contribuíram para tornar mais transparente e compreensível a reprodução dos interesses dominantes no sistema escolar.

No que se refere às análises de Bourdieu sobre o sistema escolar, Saviani (2013b) afirma que elas revelam-se capazes

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de fazer a crítica do existente, de explicitar os mecanismos do existente, mas não tem proposta de intervenção prática. Em outras palavras, apesar das mesmas elucidarem os mecanismos de reprodução social, estas se constituem enquanto fatalistas, uma vez que não propõem caminhos e possibilidades de con-strução de uma escola para além da reprodução dos interesses dominantes. Nesta abordagem, a escola é apropriada pelo grupo dominante como instrumento de manutenção de uma ordem so-cial, impondo aos demais grupos um pensamento único, o que os coloca na condição de subordinados, fadados ao fracasso.

Antonio Gramsci avança em suas análises, pois não vê a escola apenas como espaço de subordinação, mas, sobretudo como espaço de possibilidades de transformação social, ou seja, a escola pode trazer um esclarecimento que contribua para a elevação cultural das massas, que passarão a conhecer a sua história, de onde vieram, onde estão e quais as possibilidades de transformação da realidade social em que estão inseridos.

Neste sentido, o objetivo deste artigo, é refletir sobre o papel desempenhado pela escola na sociedade, tomando por base as contribuições do pensamento político de Gramsci e Bourdieu. Para tanto, pretende-se discutir as contribuições destes autores, no tocante às possiblidades de compreensão da realidade escolar, identificando nas concepções de escola apresentadas por estes autores, elementos que a caracterizam como espaço de reprodução e como espaço de superação.

Este artigo está dividido em duas partes. Na primeira, discute-se a escola enquanto espaço real, de reprodução dos interesses dominantes, utilizando para tal, a visão de Pierre Bourdieu. Na segunda, parte discute-se a escola como espaço de possibilidades de transformação social, conforme ideias desenvolvidas por Antonio Gramsci.

1 A ESCOLA COMO ESPAÇO DE REPRODUÇÃO DAS IDEOLOGIAS DOMINANTES

Tomando por base as ideias de Passos e Gomes (2012) a escola é tradicionalmente vista como um fator de mobilidade

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social. Ainda na perspectiva destes autores, “quem não estuda não é ninguém na vida”. Na concepção da mobilidade social, os indivíduos competiriam em igualdade dentro do sistema de ensino, e aqueles que se destacam é porque possuem dons individuais e, consequentemente, avançam na carreira escolar para galgarem posições superiores na hierarquia social. Bourdieu (2007) discordada concepção de escola como espaço de mobili-dade social. Ao contrário, a escola sob o discurso de equidade, trata todos os educandos como se fossem iguais, reforçando as desigualdades sociais. E neste sentido afirma que:

Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de aval-iação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Em outras palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura (BOURDIEU, 2007, p. 53).

Neste sentido a escola, forja um discurso, aparentemente bem intencionado, e através de suas práticas de ensino, das práticas de gestão, do currículo, “separa os detentores de capi-tal cultural herdado, daqueles que não o possuem”(BOURDIEU, 1996, p.37). Desta forma, a escola reproduz a ideologia domi-nante, uma vez que trata todos os alunos como se possuíssem os mesmos bens culturais e assimilassem os conhecimentos da mesma forma. Assim, a escola desconsidera não apenas as diferenças em torno das propriedades culturais, como também que a assimilação do capital escolar requer a posse prévia de condições que nem todos possuem.

O educando, conforme Bourdieu (1998 apud PASSOS; GOMES, 2012), ao ingressar na escola, depara-se com um código específico do universo escolar cujo entendimento exige uma competência cultural, pois sua apropriação depende da

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posse prévia dos instrumentos de decifração e esta deve ser transmitida pela educação familiar. Como nem todos no universo escolar possuem o mesmo arcabouço cultural, os alunos das classes sociais desfavorecidas são penalizados, “seja porque a prática pedagógica supõe pré-requisitos que não possuem, seja porque não promovem sua aquisição por aqueles que não trazem” (PASSOS e GOMES, 2012, p. 351).

Desta forma a escola realiza a “violência simbólica” (BOUR-DIEU, 2007), um trabalho de inculcação, desenvolvida por diferentes práticas escolares e diferentes agentes sociais. De forma camuflada, os dominantes legitimam e asseguram a repro-dução sobre as classes sociais desfavorecidas. Isto acontece, porque na sociedade capitalista, caracterizada pela divisão de classes sociais, os bens culturais não são distribuídos de for-ma igualitária, ao contrário, são apropriados pelo grupo domi-nante. Para Bourdieu (2007), o capital cultural1 transmitido pela família, segundo as diferentes classes sociais, é responsável pela diferença inicial das crianças diante da experiência esco-lar e consequentemente pelas taxas de êxito. Desta forma, os educandos que tem maior acesso ao “capital cultural” investido pela família, possuem melhor rendimento escolar.

Neste caso, a escola é um espaço de reprodução de es-truturas sociais e de transferência de capitais de uma geração para outra. É nela que o legado econômico da família transfor-ma-se em capital cultural. E este, segundo Bourdieu, influencia diretamente o desempenho dos estudantes, os quais tendem a ser julgados pela quantidade e pela qualidade do conhecimen-to que já trazem de casa. Os próprios estudantes das classes sociais desfavorecidas acabam encarando a trajetória dos bem-sucedidos como resultante de um esforço recompensado. Uma mostra dos mecanismos de perpetuação da desigualdade está no fato, facilmente verificável, de que a frustração com o fra-casso escolar leva muitos estudantes e suas famílias a investir menos esforços no aprendizado formal, desenhando um círculo que se auto alimenta.

Nestes termos a escola é uma forma produzida intencional-mente, para reproduzir as relações sociais. Enquanto forma, a escola não se constitui sozinha, ela é explicada pelo contexto

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histórico, político e econômico, isto é pelo seu conteúdo social. Conforme Cheptulin (2004), a forma é a expressão exterior do conteúdo, enquanto este é um processo no qual todos os elementos e aspectos que constituem a forma encontram-se constantemente em interação, em movimento, mudam-se um no outro e manifestam as suas propriedades. Na sociedade capita-lista, a forma escola é a expressão exterior, a materialização do processo histórico, fruto das relações capitalistas de produção e das relações políticas, numa dada época.

A forma escola e o seu conteúdo, o processo histórico, são categorias filosóficas, que para Cheptulin (2004) são in-dissociáveis, (grifos da autora). Ainda buscando o pensamento deste autor, cabe destacar:

Na realidade toda forma está organicamente ligada ao conteúdo, é uma forma de ligação dos processos que o constituem. A forma e o conteúdo estando em correlação orgânica, dependem um do outro, e essa dependência não é equivalente. O papel determinante nas relações conteúdo-forma é desempenhado pelo conteúdo.Ele determina a forma e suas mudanças acarretam mudanças correspondentes da forma. Por sua vez, a forma reage sobre o conteúdo, contribui para seu desenvolvimento ou o refreia (CHEPTULIN, 2004, p. 268).

Dessa forma, a escola está intimamente ligada aos processos históricos: as relações capitalistas de produção e as relações políticas. Estes de forma sutil e camuflada determinam as práti-cas escolares, o que, para que, como ensinar e avaliar e como administrar, para garantir a reprodução dos seus interesses.

Esta realidade pode ser também ilustrada, a partir das teorias educacionais desenvolvidas no Brasil, para atender as exigências do sistema capitalista, a exemplo da Pedagogia Tecnicista, conforme explicita Saviani (2013a), a qual vai se desenvolver entre os anos de 1969 a 1980, a partir do pressu-posto da neutralidade científica e dos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade. Esta pedagogia advoga a reordenação

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do processo educativo de maneira a torna-lo objetivo e opera-cional. De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a objetivação do trabalho pedagógico. Buscou-se planejar a educação dotando-a de uma organização racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem por em risco sua eficiência. Ao transpor para a escola a forma de funcionamento da fábrica, perdeu-se de vista a especifici-dade da educação.

Neste sentido, entende-se que a escola, enquanto realidade social, é espaço de reprodução das ideias dominantes. Contudo, pela sua natureza dinâmica e processos sociais e históricos que conformam a escola, esta pode ser também entendida como espaço de transformação social.

2 ESCOLA COMO ESPAÇO DE POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Conforme (CHEPTULIN, 2004), a possibilidade é o que pode produzir-se quando as condições são propícias. Não se pode distinguir realidade de possibilidade, pois esta última tem efetivamente, uma existência real, mas somente como proprie-dade, capacidade da matéria de transformar-se em condições correspondentes, de um estado qualitativo em outro. Como capacidade de transformar-se de um estado em outro a possi-bilidade é um momento da realidade.

Sendo assim, a escola constitui-se como espaço de pos-sibilidade de transformação social e, por conseguinte, possui existência real, mas somente como propriedade. Diante da sua natureza dinâmica, histórica, social e política, tem a capacidade de dar um salto qualitativo, saindo da condição de reproduto-ra da ideologia dominante e criando as possibilidades para a transformação da realidade social.

Neste sentido, dialogamos com Gramsci (1995), que ao tratar da escola e da sua função diz que:

A escola unitária ou de formação humanista (enten-dido em termo, “humanismo”, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional) ou de cultura

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geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa (GRAMSCI, p.121, 1995).

Acredita-se que a escola, constitui uma dimensão estratégi-ca na luta pela transformação social. A escola aqui defendida, com base nos escritos de Gramsci (1995), é a escola unitária2. Esta deveria ser transformadora de uma sociedade à medida que proporcione às classes subalternas3, depois de um longo caminho de luta e tomada de consciência e esclarecimento que contribui para a elevação cultural das massas.

Para Cheptulin (2004, p. 340), “a possibilidade transfor-ma-se em realidade não em qualquer momento, mas somente nas condições determinadas, que são um conjunto de fatores necessários à realização da possibilidade”. Desta forma, para que a escola se transforme em espaço de possibilidade de transformação social, é necessário que se crie um conjunto de condições políticas, econômicas e sociais para efetivar este ob-jetivo. Pois enquanto forma, a escola não existe sozinha, são os processos históricos que lhes dão sentido. Assim, questiona-se: Quais as condições necessárias, para que a escola enquanto espaço de educação formal se constitua como possibilidade de transformação da realidade social?

A transformação social pode ocorrer na medida em que houver a formação da consciência, crescimento do nível cultural através da formação moral e intelectual das classes subalter-nas. Este processo pode ocorrer dentro das organizações civis (sindicatos, partidos políticos, escolas, etc.) que tanto podem ser organismos de reprodução das ideologias hegemônicas, como podem atuar na formulação de ideias contra hegemônicas.

Neste sentido Mochovitch (1992), destaca dentre outros agentes o papel da escola unitária como espaço de formação intelectual e moral igual para todos. Deste modo, Mochovitch (1992, p. 63), alerta que é missão da escola:

Proporcionar às classes subalternas uma visão do mundo natural e do mundo social que as ajude a se

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inserir nas relações sociais, políticas e culturais de uma sociedade “moderna”, isto é, uma sociedade em que as relações capitalistas estão se expandindo. É preciso conhecer as leis civis e estatais em sua evolução histórica para saber, inclusive, que elas podem se transformar. A aquisição desses elementos da cultura pelas massas das classes subalternas deve ter lugar na escola unitária que é possível e pela qual se deve lutar na sociedade capitalista.

A escola como uma das instituições sociais que educa, uma vez que existem outros espaços educativos, tem a função de contribuir para que as classes subalternas tenham acesso ao conhecimento de seus direitos e deveres, para se situarem na sociedade e diante do Estado. Este se refere a “todo o con-junto de atividades teóricas e práticas com as quais a classe dirigente justifica e mantém não somente a sua dominação, mas também consegue obter o consenso ativo dos governados” (BUCI- GLUCKSMANI, p. 129, 1980).

É importante destacar que o Estado não se apresenta apenas como um aparato político-militar (o exército, a polícia, etc.), pelo qual a classe dominante organiza a coerção sobre o conjunto dos indivíduos, mas também como instrumento ampliado de dominação de classes, que além de deter o monopólio da repressão e da violência, é capaz de fazer valer os interesses dominantes através do convencimento, da persuasão, do con-sentimento por parte dos dominados. Neste sentido, os orga-nismos da sociedade civil4 (as escolas, igrejas, os sindicatos, etc.), tem um papel importantíssimo na elaboração e difusão da ideologia dominante.

Conforme Magrone (2006), a sociedade civil é o domínio privilegiado da ideologia, é aí que a classe dominante deve assegurar o consenso socialmente necessário ao exercício do seu poder econômico e político. Entretanto, ao mesmo tempo em que podem ser instrumentos de difusão da ideologia domi-nante, podem ser também instrumentos de luta para as classes subalternas. É nesse âmbito, que se constitui a possibilidade da escola, também de usufruir da sua condição de organismo

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primaz de educação formal da sociedade civil, contribuindo para a formação humana das classes subalternas.

Mas que tipo de escola é capaz de promover a formação humana?Para buscar um possível caminho, recorre-se ao pen-samento de Gramsci, quando ao tratar desta escola, diz:

Uma escola em que seja dada à criança a possibili-dade de formar-se de tornar-se um homem, de adquirir os critérios gerais que sirvam ao desenvolvimento do caráter. (...) Uma escola que não hipoteque o futuro da criança e constranja a sua vontade, sua inteligência, sua consciência em formação a mover-se dentro de uma bitola. (...) Uma escola de liberdade e de livre inciativa e não uma escola de escravidão e mecanicidade (GRAMSCI, 1958, p. 59, apud MO-CHOVITCH, 1992, p.57).

Nesses termos, Gramsci, critica a escola profissionalizante, pois esta apenas dá a formação técnica ao educando, adequa-da às transformações das indústrias, contribuindo assim para a conservação das diferenças sociais. Ao contrário, ele propõe uma escola única inicial de cultura geral e formativa, ou seja, sem a separação entre a formação humanística e formação profissional. Uma escola, que contribua para o desenvolvimento do indivíduo,sobretudo para vida, como ser que pensa e reflete sobre a realidade à qual está inserido.

Nesta perspectiva, segundo Freitas (2010), é necessário criticizar o conhecimento historicamente acumulado pela huma-nidade e garantir o acesso às classes trabalhadoras, mas fora dos parâmetros da subordinação previstos na escola capitalista para os filhos dos trabalhadores, pois, afinal, queremos formar sujeitos históricos, portanto com capacidade de lutar por uma nova sociedade e construí-la com base nas contradições sociais existentes.

Segundo Orso (2011), a escola precisa cumprir o papel de socializar a cultura científica historicamente acumulada, passar os conhecimentos que tornem possível conhecer a história, o homem, a sociedade, permitir que o homem se conheça, encon-tre sua identidade de classe, encontre uma direção para suas

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vidas e assuma a direção do seu destino.Para tanto, é necessário rever os objetivos da escola, com

o intuito de elaborar outro projeto de sociedade e consequente-mente de escola, comprometidos com os interesses das classes subalternas. Assim, é necessário pensar uma nova forma es-cola articulada com a vida, com seu entorno, com o meio. Uma escola que educa e ensina pelas contradições que contém em si mesma e nas lutas sociais. Desta forma, estaria formando seres críticos e pensantes, capazes de transformar a realidade que os subordina, os explora, os exclui.

Ainda refletindo sobre a escola voltada à formação humana, é fundamental destacar o papel do intelectual orgânico, enquanto agente articulado aos interesses das classes subalternas.

De acordo comas ideias de Gramsci, Mochovitch (1992), mostra que os intelectuais orgânicos são aqueles que difundem a concepção de mundo revolucionária entre as classes subal-ternas. São eles que imiscuem na vida prática das massas e trabalham sobre o bom senso, procurando elevar a consciência dispersa da classe e fragmentária das massas ao nível de uma concepção de mundo coerente e homogênea.

O intelectual orgânico é aquele que luta junto, que está a serviço da classe que pertence seja dominante ou dominada. É aquele que formula a ideologia da classe que representa e difunde para que se torne hegemônica5.

Diferentemente dos intelectuais orgânicos à bur-guesia, os intelectuais orgânicos ao proletariado deveriam organizar as classes subalternas para o processo de luta pela libertação das condições de exploradas economicamente e dirigidas ético-politi-camente, o que exigiria a construção de um novo bloco histórico, orientado pelos interesses e pelas necessidades das classes dominadas e dirigidas (MARTINS, 2011, p. 139).

Assim, o mencionado intelectual, trabalha em conjunto, relaciona-se com aqueles a que representa, em específico, os das classes subalternas. Além de elaborar novas ideias articuladas aos interesses dessas classes, é o porta-voz, que

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compartilha dos problemas enfrentados pela sociedade e tenta interpretá-lo, difundindo sua ideologia para que se torne cada vez mais hegemônica.

Como se dá a formação do intelectual orgânico articulado aos interesses do proletariado? Desse modo, cabe destacar que:

O proletariado pode assim produzir os intelectu-ais ao nível hegemônico, dado que é uma classe que, pelo lugar que ocupa no modo de produção capitalista, pode aspirar, de maneira realista, à direção da sociedade. Por intermédio do Partido, das escolas que cria dos meios de difusão que emprega e pelo papel de educador de seus mili-tantes, o proletariado ergue-se como adversário da hegemonia que exerce a burguesia e tende a derrubá-la (grifo meu) (GRAMSCI, 1975, p. 18,19, apud MOCHOVITCH, 1992, p. 20).

Nessa perspectiva, além de outras instituições educativas, a escola tem um papel fundamental na formação do intelectual. Esta se bem utilizada, pode proporcionar as classes subalternas uma visão de mundo que as ajude a se inserir nas relações sociais, políticas e culturais da sociedade, contribuindo para uma possível transformação da estrutura social.

CONCLUSÃO

A atual “forma escola” (FREITAS, 2010), é uma criação da sociedade burguesa, para perpetuar a reprodução dos seus interesses. Ela não foi criada para atender os interesses das classes trabalhadoras. Daí não se pode esperar que esta escola burguesa, seja capaz de assegurar a formação humana por meio da apropriação dos conteúdos historicamente produzidos, para que os indivíduos das classes subalternas possam lutar contra a dominação, subordinação e exploração a que são submetidos.

A realidade da escola burguesa é caracterizada por práticas (pedagógicas, administrativas, etc.) que reproduzem e legitimam os interesses dominantes. É uma escola esvaziada de conteúdos científicos. Deste modo, o que é trabalhado, não

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serve para a emancipação da classe trabalhadora. Não contribui para esta classe conhecer a sua história, compreender a sua identidade, a sua condição social, não lhe permite olhar para trás, para que possa avançar. Este esvaziamento de conteúdo é uma arma burguesa contra as camadas populares, para que não tenham acesso ao saber científico construído historicamente, que lhe permita transformar a sua realidade. Ao contrário, a atual organização escolar contribui para manter as estruturas de dominação.

A escola tal como é constituída, é isolada da vida, do meio social, e opera no intuito de negar as contradições. Entendendo-a sob uma perspectiva histórica e concreta, esta escola passa a operar a partir de uma base de formação política tendo como horizonte a transformação social. E isto é um risco para a so-ciedade dominante.

Diante desta realidade, é possível pensar e lutar por outro projeto de sociedade e consequentemente de escola, pois esta não existe sozinha, isolada da conjuntura social. O que impli-ca em que as camadas subalternas acessem o conhecimento historicamente produzido pela humanidade. A democratização do conhecimento é condição para transformação social. Mas este processo de luta e resistência deve partir das classes que desejam a mudança, leiam-se, as classes subalternas.

Com base em Orso (2011), é preciso fazer algo diferente, se de fato queremos transformar esta realidade, se queremos emancipar a humanidade. E uma condição indispensável para isso é a apropriação do conhecimento efetivo deste mundo.

Sendo assim, é necessário criar as condições para que a escola que se apresenta enquanto espaço de possibilidades, em potencial, se transforme em espaço de concreta e efetiva transformação social. Um dos caminhos possíveis é repensar os objetivos dos organismos da sociedade civil, onde se dá a difusão das ideologias dominantes, em específico a escola. Com base nas ideias de Gramsci, esta nova escola deve ser unitária, reorganizada não somente a partir dos conteúdos específicos de cada disciplina, pelos métodos de ensino, mas, sobretudo preocupada e alicerçada em princípios da formação humana, que permitam a elevação da consciência da classe trabalhadora,

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rumo a um projeto revolucionário, dimensão negligenciada pela atual forma escola.

REThINkING ThE CURRENT "FORMMASCOLA": BETwEEN ThE REAL AND ThE POSSIBLE

aBSTRacT — This article aims to reflect on the importance of schools in capitalist society, based on the contributions of political thought of Bourdieu and Gramsci. To do so will be considered as the fundamental element the pos-sibilities of understanding of school reality while playing space of dominant interests in Bourdieu’s view (2007), since this institution treats all students as if they had the same cultural goods and assimilate the contents of similarly. On the other hand, it is also possible to understand that the school, rooted in the principles of human development can be social transformation space as ideas developed by Gramsci.

KEy wORdS: School; social reproduction; social transformation

REFERÊNCIAS

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BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campi-nas, SP, Papirus, 1996.

BUCI- GLUCKSMANN, Cristine. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CHEPTULIN, Alexandre. A Dialética Materialista Categoria e leis da dialética. São Paulo. Alfa-Ômega, 2004.

FREITAS, Luiz Carlos de. Avaliação: para além da ‘forma escola’. Educação: Teoria e Prática-v.20, p.89-99, n.35, jul.-dez., 2010. Dis-ponível em: <htt: //www.Educa, fcc. org.br /scielo. php? Script= sci_art-tex&pid=S1981-81062010000200007& Ing= pt&nm=isso>. Acesso em julho de 2014.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura.4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

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MAGRONE, Eduardo. Gramsci e a Educação: a renovação de uma agenda esquecida. Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 70, p. 353-373, set./dez., 2006. Disponível em: <htt://www. Scielo.br/shp?pid=01-3262200600030005&script=Sci_arttext>. Acesso em julho de 2014.

MARTINS, Marcos Francisco. Gramsci, os intelectuais e suas fun-ções científico-filosófica educativo-cultural e política. Pro-Posições, Campinas, v. 22, n. 3 (66), p. 131-148, set../dez., 2011. Disponível em:<htt:// www.scielo.br/pdf/ pp/ v 22 n 3/10.pdf> . Acesso em julho de 2014.

MOCHOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a Escola. São Paulo, Ática, 1992.

ORSO, Paulino José. Por uma educação para além do capital e por uma educação para além da escola. In ______ et al. Educação, Estado e Contradições Sociais. São Paulo: Outras Expressões, 2011.

PASSOS, Guiomar de Oliveira e GOMES, Marcelo Batista. Nossas escolas não são as vossas: as diferenças de classe. Educação em Revista, Belo Horizonte, v.28, p.347-366, jun. 2012. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttextpid=S0102-4698201200020 0016. Acesso em julho de 2014.

SAVIANI, Dermeval. histórias das Ideias Pedagógicas no Brasil. Campinas, Autores Associados, 2013a.

_____. Pedagogia histórico-Crítica. Campinas, Autores Associados, 2013b.

NOTAS

1 Bourdieu (2007) considera capital cultural, o conjunto de bens intelectuais produzidos pelo sistema escolar ou transmitidos pela família.

2 Escola comprometida com a formação humana e que integre um projeto político em direção à promoção da igualdade social.

3 Expressão de que Gramsci se vale a maior parte das vezes, para designar as classes sociais, que são objeto da dominação econômica, política e ideológica: o proletariado, os trabalhadores rurais, o campesinato pobre, etc.

4 A sociedade civil corresponde ao “conjunto dos organismos vulgarmente ditos

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privados e corresponde à função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre a sociedade” (GRAMSCI, 2000, p. 225-226).

5 Com base nas ideias de Gramsci, Mochovitch (1992), a hegemonia é o conjunto das funções de domínio de direção exercido por uma classe social dominante, no decurso de um período histórico, sobre outra classe social e até sobre o conjunto da sociedade.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UM OLhAR SOBRE A DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR

Aritana Lima de Almeida*

Diego Bruno Souza Pires**

RESUMO — O presente trabalho busca compreender o papel da formação docente para a efetivação do processo de ensino-aprendizagem. Atualmente, ainda é notável a presença de métodos de ensino conservadores nas univer-sidades, orientados por práticas tradicionais, pautadas na transmissão de conhecimentos do professor para o aluno. Tais práticas constituem um con-hecimento efêmero, incapaz de proporcionar aos sujeitos autonomia de pens-amento e transformação do seu meio social. A metodologia expositiva ainda é muito comum, entre aqueles professores que desejam inovar suas práticas de ensino, mesmo nos cursos de licenciatura. A isso se deve um processo de formação docente, cujos currículos eram pautados no conteúdo e não tinham como pressuposto uma base teórica que orientasse a prática dos futuros do-centes. Além disso, grande parte dos professores foi formada por docentes cujas práticas eram autoritárias e pouco inspiradoras, e as instituições de ensino onde atuam não propiciam a formação continuada.

PalavRaS-chavE: Formação de professores. Docência no ensino superior. Práticas de ensino.

INTRODUÇÃO

Há algum tempo as discussões acerca de diferentes questões ligadas à educação no Brasil trazem como tema central a uni-versidade e o ensino superior. Qual o papel dessa instituição

* Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação na mesma universidade. E-Mail: [email protected].

** Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana. E-Mail: [email protected].

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na sociedade? A que público ela atende? A universidade se transforma junto com a sociedade? Estas são questões que per-meiam grande número de trabalhos e levantam discussões sobre a formação dos profissionais que atuam no ensino superior, as práticas docentes, inovações e uso de tecnologias na sala de aula e até mesmo a ética no ensino universitário. Entre esses temas há de se considerar que a formação dos docentes que atuam no ensino superior é a base para uma boa qualidade de ensino, com ética, inovações pedagógicas, ensino com pesquisa e outros elementos essenciais.

Desde quando foi instituída no Brasil, no início do século XIX, a universidade buscou formar profissionais que pudessem atender às demandas de alguns serviços, em áreas específicas, como serviços médicos. A universidade surgiu com caráter elit-ista e seletivo e assim permaneceu, em grande medida, até o final do século passado. Entretanto, a sociedade brasileira se transformou a partir das conquistas históricas de alguns grupos – negros, indígenas, mulheres e população de baixa renda – que lutaram por seus direitos, sobretudo o direito à educação. O ingresso à universidade passou, então, por um processo de popularização, mas o caráter do ensino permaneceu, por sua vez, elitista e tradicional.

O papel da universidade atual, diante da sociedade, está ligado à profissionalização e é entendido por Soares como “um processo coletivo de desenvolvimento de capacidades e de for-malização dos saberes implementados na prática profissional” 1, que busca atender às novas demandas da sociedade brasileira e às expectativas do novo público ingressante. Nesse sentido, as universidades brasileiras tendem a mudar sua concepção de ensino, partindo do modelo de universidade de pesquisa para a universidade de serviço. Para tanto, inicia-se um processo conflituoso, no qual muitos professores não conseguem situar-se quanto às bases epistemológicas de suas práticas de ensino.

O presente artigo busca compreender como se deu o pro-cesso de formação dos professores universitários que atuam em algumas universidades públicas e faculdades privadas, formando novos professores universitários e professores da educação básica. Como eles vêem o seu processo formativo?

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Como seus cursos de formação lhes prepararam, ou não, para a docência? Quais os modelos de prática docente que orientam sua didática? Reproduzem aqueles que lhe formaram como professor ou buscam renovar/inovar constantemente? Estas são algumas questões norteadoras.

Para desenvolver este trabalho foram aplicados 20 ques-tionários com professores que compõem o curso de graduação de Licenciatura em História de uma universidade pública baiana, e o curso de graduação em Direito (bacharelado) numa faculdade privada, por amostragem em Feira de Santana. O objetivo dos questionários é elucidar a visão dos docentes quanto ao seu processo formativo, atentando para os reflexos do mesmo em suas práticas docentes.

O PROCESSO DE FORMAÇÃO DOS PROFESSORES NAS INSTITUIÇõES DE ENSINO SUPERIOR

A discussão acerca dos temas relativos à formação dos docentes do ensino superior, sua profissionalização e práticas ainda é algo recente, que vem conquistando mais espaço a partir da segunda metade do século XX, sobretudo, na década de 1990. O surgimento de novas instituições de ensino supe-rior, públicas e privadas, o crescimento das já existentes e a ampliação da oferta de vagas popularizaram o acesso a essas instituições, tornando urgentes os estudos sobre a profissão e profissionalização dos professores universitários, cujas práticas já não atendiam às necessidades dos novos estudantes.

A lógica capitalista neoliberal fortalecida no final do sécu-lo XX impôs às universidades o desafio de lidar com algumas demandas, como os avanços das tecnologias da informação e comunicação que, em certa medida, parecem dar conta das informações e sem se preocupar com a transformação destas em conhecimento. Nesse sentido, coube à universidade repen-sar a sua função social e buscar a formação de profissionais mais reflexivos. Entretanto, cada vez mais o Estado abdica do seu papel de provedor das universidades e da formação dos profissionais que nela atuam em prol de um controle, delegando

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a diferentes órgãos, públicos e privados, a responsabilidade pelo incentivo à pesquisa e avaliações.

Essa omissão do Estado com relação à educação superior precariza ainda mais as instituições, sobretudo no que diz respeito ao ensino, gerando um ciclo de má formação dos profissionais de educação. Nesse sentido, os professores têm apresentado uma grave crise de identidade docente, gerada, entre outros fatores, por uma formação inicial e continuada (quando há), que não condiz com a realidade vivenciada por cada um deles.

Tomando como base os professores que participaram dessa pesquisa, podemos afirmar que existe uma grande contradição no que diz respeito à formação dos profissionais quanto às atividades desempenhadas por eles nas instituições de ensino superior. Cerca de 70% dos professores que responderam a nossos questionários afirmaram que o ensino é a atividade a que dedicam a maior parte do seu tempo na instituição onde atuam. Entretanto, 50% desses professores afirmaram não ter produzido estudos e ou trabalhos relacionados à docência no ensino superior durante seus cursos de formação.

Tal contradição no processo formativo caracteriza uma deficiência dos cursos de graduação e pós-graduação que refletem, diretamente e de modo negativo, na didática desses professores e daqueles que serão formados por eles. Ao serem questionados acerca do estímulo à reflexão sobre suas práticas docentes nos cursos de pós-graduação, os professores da uni-versidade responderam:

Sim [fui estimulada]. A partir das demandas que eu mesma levantei como fruto da minha experiên-cia de ensino e tentei relacionar com o que me era apresentado, porém, o estímulo não partiu do programa, veio das lacunas existentes tanto nos programas apresentados pelos professores quanto do material indicado para leitura e discussão. (Professora E)Durante os cursos de pós-graduação não houve es-tímulos para pensar esta prática, inclusive na época que fiz Mestrado não existia ainda Estágio Docência, como hoje já existe. Além disso, minha graduação

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em Licenciatura era o antigo Três mais Um, ou seja, fazíamos três anos de conteúdos e apenas um de teorias e práticas de educação. Tive que aprender na prática. (Professora D).De modo geral, o estímulo foi tímido. Talvez, uma exceção tenha sido as práticas do Tirocínio Docen-te. No caso do doutorado era obrigatório, mas no mestrado não. E mesmo assim, optei por participar da experiência a partir das reflexões que fazíamos sobre a prática docente. Mas, infelizmente, não há essa preocupação no campo da formação de pós-graduação no país. A não ser em casos isolados. (Professor O).

As falas dos professores demonstram o descaso dos pro-gramas de pós-graduação quanto à reflexão sobre a docência no ensino superior, que ocorre por iniciativa pessoal dos pro-fessores em formação. À ausência dessa reflexão é possível atribuir, entre outros elementos, uma supervalorização da pes-quisa em detrimento do ensino, tendo em vista que à pesquisa são destinados maiores status e incentivo financeiro. Diante do questionamento anterior, e sobre o papel da universidade na formação dos professores, na atualidade, professores da mesma universidade afirmaram que:

Na maioria dos cursos de licenciatura ocorre uma dissociação e uma hierarquização entre ensino e pesquisa. O resultado tem sido uma valorização do pesquisador em detrimento do professor, como se esses dois itens pudessem ser dissociados. [...] Nesse sentido, acredito que nossos cursos têm instrumen-talizado muito pouco no sentido de cumprir o que acredito seja o objetivo de um curso de licenciatura/formação de professores. (Professora E)Na pós-graduação, a reflexão sobre a prática do-cente ocorreu em raríssimas oportunidades, em iniciativas individualizadas de professores, mas não como preocupação fundamental dos programas de pós-graduação, centrados basicamente na pesqui-sa. Houve disciplinas de estágio docente, mas

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insuficientes para pensar o ensino-aprendizagem. (Professor T).

A supervalorização da pesquisa com relação ao ensino nos cursos de licenciatura não é algo que ocorre somente na univer-sidade pesquisada ou no curso de Licenciatura em História. É algo que permeia muitos cursos de licenciatura no Brasil e que prejudica, de modo considerável, a formação para a docência, uma vez que grande parte dos professores não vê a docência como um objeto de estudo ou não costumam refletir sobre ela em seu cotidiano. Nesse contexto, aos conteúdos específicos é atribuído maior valor e importância, como se todos os alunos inseridos no processo de ensino-aprendizagem fossem ser apenas pesquisadores e jamais professores. Além disso, é importante ressaltar as dificuldades para que a formação continuada ocorra, tanto no ensino público quanto na rede privada.

A FORMAÇÃO CONTINUADA

Na visão tradicionalista, o bom professor é o sujeito que, respaldado nas suas experiências profissionais e nas suas constantes atualizações científicas, reproduzem aos alunos as informações “necessárias”, sempre utilizando de um bom discurso e capaz de transmitir adequadamente os conteúdos ofertados. Tanto é assim que, por muitos anos, a formação básica exigida para a docência no ensino superior se dava pela escolha de “profissionais daquela área considerados competentes, atual-izados e com experiência profissional de sucesso”2.

Acontece que o tradicionalismo educacional deixava claro que os professores eram agentes do conhecimento, sujeitos prontos e acabados, com experiências e informações, verda-deiros detentores do conhecer, sem imaginá-los como agentes também em processo de formação, uma formação continuada. Os alunos, por conseguinte, adquiriam uma posição de seres vazios de conhecimento, somente tendo acesso a ele por um sistema de revelação legitimado pelos professores.

Dentro dessa concepção tradicionalista, para ser profes-sor não precisava de formação docente. Bastava ser alguém

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que “se apresenta ao aluno como um expert em determinada matéria, assunto ou área de conhecimento e, a partir daí, inicia a comunicação de suas informações e experiências”3, relegando aos agentes do ensino o título de profissional. Diante disso “é revelador o fato de muitos docentes se definirem como profis-sionais dos campos científicos específicos de sua formação e, secundariamente, como professores universitários, mesmo quando exercem prioritariamente a docência”4, demonstrando pouca ou nenhuma identidade com a profissão docente.

Em face dos distanciamentos em relação ao positivismo, dos avanços tecnológicos e de movimentos dos profissionais da educação, a concepção de professor vem mudando grada-tivamente, ao mesmo tempo em que se muda o modelo pos-itivista/conservador de ensino. “Além do aspecto relacionado com o conhecimento, outro fato emergente e contundente é a revisão das carreiras profissionais e de seus perfis”, que segue um saber que ultrapassa os limites da especificidade. Isso faz com que o professor seja antes de tudo um aprendiz, agente integrado ao diálogo, entrosado politicamente com o que “está acontecendo no mundo e com a humanidade e seus fenômenos com múltipla causalidade”5.

O professor precisa ser alguém capaz de trabalhar em equipe, mesmo que com profissionais de outras áreas, inclusive se portando como um sujeito que narra seus feitos através da interdisciplinaridade, que participa de congressos, apresentando suas ideias científicas, frutos de trabalhos de pesquisa. Cabe ao professor estar sempre atento aos avanços da tecnologia e aos modernos instrumentos, desenvolvendo sua gerência em diversas circunstâncias, abrindo-se para novas áreas e formas de conhecimento.

Acontece que nos últimos dez anos vem acontecendo uma proliferação de instituições de ensino superior no Brasil, com o propósito de atender à demanda educacional impulsionada por ações políticas de democratização do ensino superior. Todavia, professores pautados em antigas concepções de ensino ainda estão muito presentes nas instituições, sem considerar que a docência é uma prática muito complexa, principalmente com a chegada de estudantes de diferentes culturas e com diferentes

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metas e expectativas, o que requer a profissionalização dos professores. Sobre isso, a professora P diz que:

O perfil dos estudantes universitários tem se mod-ificado bastante e a educação, como horizonte de trabalho para estes intelectuais, tem se tornado cada vez mais complexa, diante de ataques. Não há mercado de trabalho. Temos estudantes que passam cada vez mais por dificuldades de aprendizado, dadas as reais condições de realização do curso, dificul-dades materiais, inserção de novas tecnologias que invadem o tradicional espaço de leitura e produção de conhecimento próprio. (Professora P)

O depoimento da professora traduz um desafio vivenciado por muitos docentes do ensino superior cotidianamente. Lidar com as múltiplas diferenças presentes nos cursos de graduação tem se tornado cada vez mais difícil, visto que os professores não foram formados para enfrentar essa realidade. A sociedade brasileira, em consonância com os movimentos de globalização, tem se transformado de maneira mais rápida e há maior ve-locidade na circulação dos mais diversos tipos de informação. Enquanto isso, as instituições de ensino superior continuam tradicionais e não investem suficientemente na formação con-tinuada de seus professores.

Conforme observado na análise dos questionários respondi-dos pelos professores da Faculdade Particular, percebeu-se que somente 25% dos entrevistados têm formação docente para o ensino superior. Os outros 75% disseram que não foram prepa-rados para o exercício da docência, mas exercem a função de professor pela sua experiência profissional (advogados, juízes, delegados e promotores) ou em face de um título de especial-ista (exigência mínima para lecionar em algumas faculdades).

Dentro da carência de profissionais preparados para o ex-ercício da docência, era de se esperar que essas instituições privadas de ensino se preocupassem em desenvolver uma formação continuada em serviço desses professores. Contudo, não é o que percebemos na análise dos questionários.

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Indagados quanto aos interesses da faculdade no aper-feiçoamento dessas capacidades para o ensino-aprendizagem, com a promoção ou o incentivo de uma formação continuada dos professores, 100% dos entrevistados disseram que a faculdade não desempenha práticas contundentes para o desenvolvimen-to da formação profissional, promovendo tão somente simples eventos com a finalidade informativa, sem muito respaldo na prática do ensino.

Não vejo muita preocupação com a formação con-tinuada na faculdade. Tanto é assim que a direção não dá um suporte para aqueles professores que querem fazer doutorado. Não há um incentivo, o que existe é uma cobrança para atender aos interesses da instituição perante o MEC, elevando o conceito da faculdade. A Faculdade até quer o professor com títulos acadêmicos, mas não incentiva. O professor deve ser um guerreiro para se atualizar. Só isso! (Professor 03)Não há um suporte de formação continuada. O que existe são eventuais encontros com profissionais da educação que orientam algumas posturas a serem seguidas pelos professores quando sujeito conflita-do internamente na instituição. Quanto a um apoio financeiro de desenvolvimento, de aperfeiçoamento das qualidades profissionais (aperfeiçoamento, es-pecialização, mestrado e doutorado), principalmente com o direcionamento de verbas para participar de congressos, incentivos na escrita de livros e artigos, participação em bancas, esse inexiste. (Professor 04)O grande interesse de muitas Faculdades particu-lares, de regra, é tão somente com o ensino, porque é um produto ofertado a um consumidor que está mais exigente, ou seja, a venda de um serviço. As-sim, o professor deve ter um mínimo de qualidade na apresentação da sua matéria, no trato da matéria em sala de aula, com muito domínio. Meu processo de formação se resume a estudar muito a matéria e ser o mais claro para os alunos. (Professor 02)

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Na universidade pública não houve também respostas positi-vas com relação à formação continuada. 100% dos entrevistados responderam que a universidade não oferece suporte para que a formação continuada ocorra e esta parte de seus interesses pessoais. Ao serem questionados sobre o suporte dado pela universidade, responderam que:

Nenhum. Se há, desconheço. (professor A).Esse é um aspecto em que a universidade deixa a desejar, ou melhor, e para os que atuam na área de formação de professores isso é algo natural, todavia, para os professores de outras áreas do conhecimento e que têm carência na formação pedagógica, desconheço qualquer programa que os apoie no processo de formação continuada. (professor C)No período de minha atuação como professora, tive poucas oportunidades de refletir sobre o assunto apenas no âmbito do colegiado do curso. Houve um momento muito produtivo no qual recebemos orientação do setor de acompanhamento psico-pedagógico da instituição, junto à UNDEC para ensino de um estudante que possui uma síndrome [...]. (Professora P)

Nesse contexto, analisando a formação continuada dess-es agentes que atuam no ensino superior, de um modo geral, passamos a nos indagar qual realmente tem sido o papel social desenvolvido por estas instituições na formação dos discentes, que necessitam estar preparados para uma nova realidade mercadológica, que cada vez mais tem exigido do recém-for-mado uma liderança com práticas desafiadoras no trato social, imbuído de dinâmicas coletivas e visão interdisciplinar das matérias tratadas.

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E SEUS REFLExOS NAS INSTITUIÇõES DE ENSINO SUPERIOR hOjE

Discutir o ensino universitário, a formação dos profission-

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ais que nele atuam e suas práticas, ainda é uma tarefa difícil, principalmente porque professores-pesquisadores das mais diversas áreas consideram que o ensino é um objeto de estudo que cabe somente à pedagogia. Desse modo, as práticas de ensino pautadas num modelo tradicional ainda são fortemente utilizadas dentro dos cursos de graduação e pós-graduação. O ensino nas universidades é uma atividade que busca a formação de profissionais e a transformação social, e ocorre a partir da interação entre educador e educando. Mas, para que este en-sino se efetive, os professores devem ter consciência de sua atuação no processo de ensino aprendizagem e clareza das bases epistemológicas que orientam sua prática.

Alguns estudos apontam que ainda hoje muitos docentes orientam suas práticas de ensino a partir de um modelo diretivo e conservador, com bases epistemológicas empiristas. Ou seja, possuem métodos de ensino reprodutivistas, cujo centro do processo é o ensino, o professor e o seu conhecimento. Nesse modelo há uma grande dificuldade na aprendizagem dos alunos, uma vez que são tratados como meros coadjuvantes, como seres passivos e vazios que devem absorver todo o conteúdo transmitido pelo professor, que assume uma postura, muitas vezes, autoritária e incontestável.

Uma das práticas mais comuns nesse modelo de ensino são as aulas expositivas que, segundo Vasconcellos, apresen-tam alto risco de não aprendizagem devido ao baixo nível de interação entre sujeito e objeto de conhecimento6. A metodologia expositiva não considera as representações sociais trazidas pelos sujeitos aprendentes, nem leva em conta quais seriam as práticas de ensino mais adequadas para a aprendizagem destes, entendendo o conteúdo como algo superior aos sujeitos e aos métodos. É importante compreender, porém, que para a efetivação da aprendizagem é imprescindível que haja uma in-teração entre o aprendente e suas representações, as práticas de ensino, o objeto do conhecimento e a avaliação.

A presença do modelo conservador no ensino universitário é um dos grandes entraves para a concepção de novos caminhos metodológicos, sobretudo para aqueles estudantes que atuarão na docência, tanto no ensino básico quanto no superior. Vas-

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concellos afirma que “apesar de no discurso haver rejeição a essa postura, no cotidiano da escola verifica-se que é a mais presente…, talvez nem tanto pela vontade dos educadores, mas por não se saber como efetivar uma prática diferente”7. Em um dos questionários aplicados com professores do curso de Licenciatura em História, a professora D afirmou que:

[...] Não existia no meu currículo [de formação] o ensino das práticas de ensino na universidade.No geral, os professores que tive representavam um modelo a ser questionado. Alguns professores incluíam práticas alternativas nas suas aulas, como discutir literatura etc, mas a maioria ainda estava ligada a aulas expositivas e “conteudistas”. Acredito que as aulas poderiam ser mais práticas e menos teóricas. Esta inclusive é uma autocrítica que faço, sempre planejo inclusão de práticas, mas durante o semestre nunca consigo desenvolvê-las. (Pro-fessora D)

A partir dessa afirmação, é possível compreender que a ausência de reflexões teóricas acerca das metodologias de ensino na universidade, bem como a escassez de experiências com diferentes estratégias didáticas no processo formativo dos professores dificultam suas ações rumo à ruptura do modelo tradicional de ensino. Não necessariamente por falta de von-tade, mas por falta de subsídios teórico-metodológicos que os orientem para uma prática de ensino dialética, que efetive uma aprendizagem de fato significativa.

Uma outra professora, ao ser questionada acerca de suas práticas docentes, afirmou que não costuma utilizar estratégias inovadoras em suas aulas e que acredita que a utilização de vídeos, leitura de textos e a escrita de ensaios temáticos ainda seja algo muito básico (professora P). Sobre o modo como avalia o seu processo formativo, a mesma disse que:

[...] durante minha graduação tive poucas oportuni-dades de dialogar sobre o tema [didática e formação de professores], como também na pós-graduação. Foram alguns professores e professoras que me

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ensinaram a pensar o lugar docente e na importân-cia da didática, como a própria experiência de ensino, juntamente com os alunos. (Professora P)

A fala da professora demonstra que no currículo do cur-so de Licenciatura em História, bem como nos programas de pós-graduação, que são responsáveis por uma parte importante do processo de formação dos professores, as discussões acerca da didática e as reflexões sobre a própria formação docente ainda estão ausentes ou não são satisfatórias. Esses espaços acadêmicos ainda não conseguem promover uma formação que possibilite ao professor uma construção de conhecimentos capaz de efetivar um processo de ensino-aprendizagem diversificado e de fato significativo.

Para que ocorra a aprendizagem significativa é preciso considerar que o conhecimento não é algo que está pronto, aca-bado, e sim em constante construção, segundo o que propõe a epistemologia construtivista. Nessa perspectiva, segundo Ribeiro:

[...] a fim de propiciar que o aluno seja ativo e pro-tagonista na construção do conhecimento, surge a necessidade de o professor exercer um papel igual-mente ativo, pois é ele quem dispõe das condições para que o aluno acione seus conhecimentos prévios favorecendo sua atividade mental que passa pelos processos de equilíbrio, desequilíbrio e re-equilíbrio, processos esses que não têm efeitos apenas cogni-tivos, mas incidem no autoconceito e na maneira de o aluno perceber a universidade, o professor, seus colegas e a maneira de se relacionar com eles.8

O construtivismo propõe uma ruptura nos modelos de en-sino tradicionais, centrando-se na aprendizagem e apontando diferentes caminhos para que a construção do conhecimento ocorra de modo dialético, considerando as representações so-ciais dos alunos e os conhecimentos prévios que estes trazem. Nesse sentido, o conhecimento não é algo apenas transferido de maneira linear para os alunos, é construído por todos os sujeitos envolvidos no processo.

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Pozo sugere que a aprendizagem é um processo de cons-trução de conhecimentos a partir de estratégias metodológicas em que o professor seja mediador, resgatando os conhecimentos prévios e rompendo com a ideia de uma verdade absoluta e de um ensino positivista. Segundo Pozo, quando a aprendizagem significativa se efetiva, os sujeitos tornam-se capazes de resol-ver problemas com maior autonomia e atuar na transformação social de modo mais consciente9.

Uma prática capaz de efetivar o processo de construção do conhecimento e o desenvolvimento da razão crítica é o ensino com pesquisa, estudado por Libâneo. O autor afirma que para atingir esses objetivos, o professor não mais deverá utilizar métodos de transmissão de conhecimentos. Ele deverá mediar o processo de aprendizagem, ajudando seus alunos a se apropriarem dos conceitos e métodos da ciência que ensinam, tornando-os mais autônomos10.

Entretanto, há entre os professores grande distanciamento entre saber científico e saber pedagógico ou mesmo o desconhecimento com relação aos saberes pedagógicos, o que constitui a continuidade de grande parte dos problemas da docência no ensino superior, na atualidade.

CONSIDERAÇõES FINAIS

A partir da realização da pesquisa foi possível observar que existe por parte de muitos professores o interesse de transfor-mação de suas práticas de ensino. Muitos deles afirmaram inserir novos recursos e estratégias didáticas, outros reconhecem a necessidade de rever suas práticas, mas encontram dificuldades. Essa análise representa, para nós, um momento de transição de conceitos de educação e ensino ou mesmo uma crise de par-adigmas, que se localiza entre um modelo tradicional, pautado em práticas empiristas/reprodutivistas e um modelo emergente, voltado para práticas mais reflexivas e dialéticas.

A participação dos professores nesse trabalho foi de ex-trema importância para elucidar a necessidade de uma formação docente que prepare de fato os profissionais para o exercício

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da docência, sobretudo nos cursos de pós-graduação, que têm como público-alvo futuros professores do ensino superior. Os currículos dos cursos de formação ainda priorizam os saberes específicos de cada disciplina e a pesquisa acadêmica, deixan-do de lado a reflexão sobre a prática de ensino e suas bases epistemológicas.

Para que o professor seja capaz de mediar o processo de ensino-aprendizagem e efetivá-lo de modo a alcançar a apren-dizagem significativa é preciso que os professores não só de-tenham os saberes específicos de sua área de conhecimento. É preciso também que sejam dotados dos saberes docentes de caráter pedagógico e conheçam as representações sociais dos sujeitos aprendentes, seus desejos e necessidades.

Os professores atuantes no ensino superior encontram, porém, grande dificuldade de efetivar uma prática de ensino diversificada e que corresponda às expectativas dos alunos, sobretudo por serem oriundos de um processo formativo que não lhes ofereceram as competências necessárias para tal. Além disso, não contam com apoio das instituições onde atuam para desenvolver o processo de formação continuada, uma vez que as instituições, de maneira geral, não oferecem suporte e/ou espaços para que isto ocorra. As deficiências formativas levam, então, os professores a reproduzirem modelos pedagógicos e práticas de ensino improdutivas, rompendo-os a partir de um grande esforço individual e de suas necessidades cotidianas impostas pelo exercício da docência.

TEAChERS’ FORMATION: A LOOk AT TEAChING IN hIGhER EDUCATION

aBSTRacT — This study aims to understand the role of teacher training for the effectiveness of the teaching-learning process. Currently, it is still remarkable the presence of conservative teaching methods in universities, guided by traditional practices, conductedby the transmission of knowledge from teacher to student. Such practices constitute an ephemeral knowledge, unable to provide subject autonomy of thought and transformation of the social environment. The methodology exhibition is still very common among

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those teachers who want to innovate their teaching practices, even in degree courses. To this must be a teacher training process, whose curricula were guided by the content and did not presuppose a theoretical basis to orient the practice of future teachers. In addition, most of the teachers were trained by teachers whose practices were authoritarian and uninspiring, and the ed-ucational institutions where they work do not provide continuing education.

KEy wORdS: teacher training; teaching in higher education; teaching practices.

REFERÊNCIAS

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PIMENTA, Selma Garrido. A Profissão Professor Universitário: proces-so de construção da identidade docente. In: CUNHA, Maria Isabel da; SOARES, Sandra Regina; RIBEIRO, Marinalva Lopes (Orgs.). Docên-cia Universitária: profissionalização e práticas educativas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.

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______ & CRUZ, Antonio Roberto Seixas. O papel do professor no ensino superior: representações sociais construídas a partir de estudantes de cursos de licenciatura. In: RIBEIRO, Marinalva Lopes; MARTINS, Édiva Sousa; CRUZ, Antonio Roberto Seixas (orgs.). Docência no Ensino Superior: desafios da prática educativa. Salvador: EDUFBA, 2011.

SÁ, Maria Roseli Brito de. Que Experiência nos fazem professores?: Desafios à docência universitária no acompanhamento de percursos formativos de professores em exercício. In: RIBEIRO, Marinalva Lopes; MARTINS, Édiva Sousa; CRUZ, Antonio Roberto Seixas (orgs.). Do-cência no Ensino Superior: desafios da prática educativa. Salvador: EDUFBA, 2011.

SOARES, Sandra Regina. A profissão Professor Universitário: Refle-xões acerca de sua formação. In: CUNHA, Maria Isabel da; SOARES, Sandra Regina; RIBEIRO, Marinalva Lopes (Orgs.). Docência Univer-sitária: profissionalização e práticas educativas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.

SOUZA JÚNIOR, Arlindo José de. SILVA, Rejane Maria G. Formação de docentes universitários e tecnologias da informação e comunicação: análise de uma experiência. In: RIBEIRO, Marinalva Lopes; MARTINS, Édiva Sousa; CRUZ, Antonio Roberto Seixas (orgs.). Docência no En-sino Superior: desafios da prática educativa. Salvador: EDUFBA, 2011.

TARDIF, Jacques. Se o professorado fosse uma profissão... In: CUNHA, Maria Isabel da; SOARES, Sandra Regina; RIBEIRO, Marinalva Lopes (Orgs.). Docência Universitária: profissionalização e práticas educa-tivas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.

VASCONCELLOS, Celso dos S. Metodologia Dialética em Sala de Aula. In: Revista de Educação AEC. Brasília: abril de 1992.

NOTAS

1 SOARES, Sandra Regina. A profissão Professor Universitário: Reflex-ões acerca de sua formação. In: CUNHA, Maria Isabel da; SOARES, Sandra Regina; RIBEIRO, Marinalva Lopes (Orgs.). Docência Univer-sitária: profissionalização e práticas educativas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2009, p.77.

2 MASETTO, Marcos Tarciso. Formação Continuada de Docentes no Ensino Superior Numa sociedade do Conhecimento. In: CUNHA, Maria

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Isabel da; SOARES, Sandra Regina; RIBEIRO, Marinalva Lopes (Orgs.). Docência Universitária: profissionalização e práticas educativas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.p. 99-116.

3 Idem, p. 100.

4 SOARES, op. Cit., p.84.

5 MASETTO, op. Cit., p. 103.

6 VASCONCELLOS, Celso dos S. Metodologia Dialética em Sala de Aula. In: Revista de Educação AEC. Brasília: abril de 1992.

7 Idem. 1992, p.1.

8 RIBEIRO, Marinalva Lopes. Representações sociais de estudantes de licenciatura sobre o ensino universitário. In: Revista FAEEBA, 2009.

9 POZO, Juan Ignacio& ECHEVERRIA, M. Del Puy. Psicologia del-aprendizage universitário: La formacíon em competências. Madrid: Morata, 2009.

10 LIBÂNEO, José Carlos. Conteúdos, formação de competências cognitivas e ensino com pesquisa. Unindo ensino e modos de inves-tigação. In: PIMENTA e ALMEIDA. Pedagogia Universitária. São Paulo: Cortez, 2011.

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* Mestranda em Educação – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Membro do Grupo de Pesquisa Desen-volvimento Humano e Processos Educativos (DEHPE). E-Mail: [email protected].

A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO: CONSIDERAÇõES SOBRE A TEORIA DE PIERRE CLASTRES

Gabriela Barbosa Souza*

RESUMO — Há distintas concepções acerca da constituição e papel do Estado. O enfoque deste estudo é a teoria antropológica de Pierre Clastres. Objetiva-se discutir acerca da concepção de Estado de Pierre Clastres, pau-tada em estudos que tratam de especificidades da teoria do referido autor. O presente estudo constitui-se em uma revisão bibliográfica, de natureza qual-itativa, a partir de levantamento na base de dados digital scielo.br. Tomando como pressuposto as leituras e discussões, foi possível perceber que Clastres compreende Estado enquanto poder político coercitivo, considerando que as sociedades primitivas possuem seus mecanismos para prevenir-se contra a emergência de um poder político autoritário e que, são, portanto, sociedades contra o Estado. O estudo da teoria de Clastres possibilita conhecer projetos de sociedade, que muitas vezes são silenciados, e dialogar a partir da dif-erença de organizaçãopolítica.

PalavRaS-chavE: Estado; Sociedade; teoria de Clastres.

INTRODUÇÃO

Há distintas concepções acerca da constituição e papel do Estado. A existência de tais concepções não ocorre de forma linear, visto que a constituição de uma concepção não anula outras já existentes, e sim convivem em constantes conflitos na defesa de seus distintos projetos de sociedade e de educação.

Nessa perspectiva, estudiosos têm discutido o papel do Estado, face ao advento da modernidade, segundo suas matrizes

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teóricas, a exemplo de Chaves (2007) com base na abordagem liberal; Gramsci (1968) a partir da abordagem marxista; Bourdieu (1996) utilizando da abordagem social; Clastres (2003) com um olhar etnográfico anarquista; Ball (2011) tendo em vista uma perspectiva pós-moderna.

Diante de distintas concepções de Estado, o enfoque deste estudo é a Teoria antropológica de Pierre Clastres. De acordo com a apresentação do autor, pela Editora Cosacnaify (2013),Pierre Clastres nasceu em Paris em 1934. Realizou seus estudos de Filosofia na Sorbonne, onde começou a se interes-sar pelos estudos etnológicos, seguindo os cursos de Claude Lévi-Strauss no Collége de France a partir de 1960. Em 1963, viveu sua primeira experiência de campo entre os Guayaki, a qual resultou em sua tese de doutorado sobre a vida social dos Guayaki, na Sorbonne. Clastres lecionou no antigo Departamento de Ciências Sociais da USP, em São Paulo.

Nos anos seguintes, Clastres voltou à América do Sul pararealização de pesquisas com outros povos ameríndios, tais como: os Guarani, em 1965 e 1966, e entre os Chulupi, em 1966 e 1968, experiências que resultaram na maior parte dos escritos reunidos em sua obra “A sociedade contra o Estado” e nos livros “A fala sagrada” e “Mythologie des Indiens Chulupi”. Nos anos 70, Clastres viajou à Amazônia venezuelana, de 1970 a 1971, entre os Yanomami, e visitou os Guarani do Estado de São Paulo, em 1974, estudos estes que foram posteriormente publicados no livro Arqueologia da violência – pesquisas em Antropologia Política. Em 1977, Clastres morreu em um aci-dente de carro.

Suas experiências etnográficas com povos ameríndios, conduziu Clastres a construir sua concepção de Estado, en-quanto o exercício do poder político coercitivo. O autorcritica a concepção evolucionista de que a história tem um sentido único e que todas as sociedades estão condenadas a percorrer suas etapas, da selvageria até a civilização e a construção do Estado.

Desta forma, Clastres (2003, p.201) considera que “socie-dades primitivas são sociedades sem Estado”, e não por serem incompletas e a estas faltarem algo, mas sim por considerar que estas sociedades possuem mecanismos para prevenir-se

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contra a emergência de um poder político coercitivo, sendo este o Estado. De acordo com Clastres, as sociedades primitivas por serem sociedades de recusa do Estado, são sociedades contra o Estado.

Este estudo objetiva discutir acerca da concepção de Estado de Pierre Clastres por meio de estudos que tratam de especificidades da teoria do referido autor.O presente estudo constitui-se em uma revisão bibliográfica, de natureza qualitativa, uma vez que foi construído pautado em material já publicado, constituído principalmente de livro, artigos de periódicos e ma-teriais disponíveis na internet, como assim classifica Gil (1991).

A revisão bibliográfica foi realizada mediante levantamento na base de dados digital www.scielo.br, utilizando do descritor “Clastres”. Foram encontrados oito artigos referentes ao autor, sendo eles: Barbosa (2004); Lanna (2005); Lechat e Barcelos (2008); Leirner e Toledo (2003); Miranda (2013); Perrone-Moisés e Sztutman (2010);Sztutman (2009a) e Sztutman (2009b).Além disso, utilizou-se do estudo de Pierre Clastres (2013) intitulado “A sociedade contra o Estado”.

Nesta perspectiva, o presente estudo encontra-se dividido nas seguintes seções: discussões sobre a teoria de Clastres, na qual apresenta-secomo estudiosos tem tratado a teoria de Clastres. Posteriormente, enfatiza-se as diversas considerações de estudiosos feitas a teoria de Pierre Clastres no que se refere a sua concepção sobre as sociedades contra o Estado. Final-mente, encontram-se as conclusões da realização deste estudo, bem como as referências bibliográficas utilizadas.

DISCUSSõES SOBRE A TEORIA DE CLASTRES

Por influenciar nas áreas de Antropologia e Filosofia, dentre outras áreas, a teoria de Clastres tem sido debatida por estu-diosos (BARBOSA, 2004; LANNA, 2005; LECHAT e BARCELOS, 2008; LEIRNER e TOLEDO, 2003; MIRANDA e CUNHA, 2013; PERRONE-MOISÉS e SZTUTMAN, 2010; SZTUTMAN, 2009a; SZTUTMAN, 2009b) no que se refere a sua concepção de Es-tado enquanto poder coercitivo.

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Barbosa (2004) explorou a maneira como Clastres encara a “sociedade”, o “Estado” e o “contra”. O autor considera que com o auxílio da etnografia de Clastres, é possível encontrar indicações de como enfrentar alguns dos impasses da Antropo-logia: como o de abandonar o individualismo metodológico sem cair num holismo transcendental e vice-versa; o de construir modelos de intencionalidade sem sujeitos; o de pensar a relação social sem necessariamente a existência da “sociedade”, além de mostrar como a “objetividade” da socialidade pode operar por meio da “subjetividade” das pessoas-em-interação.

Lanna (2005) avaliou criticamente a contribuição de Pierre Clastres para o entendimento do poder, enfatizando sua noção de “sociedade contra o Estado” e buscou mostrar que a reflexão do autor depende de uma concepção da reciprocidade. Lanna (2005) consideraque a noção de “sociedade contra o Estado” não deixa de se fundamentar na proposição de um modo específico de relação de troca entre os termos “sociedade” e “Estado”, que mesmo negada por Clastres, é implícita e inconscientemente afirmada.

Lechat e Barcelos (2008) questionam a capacidade de os homens se autogerirem e a premissa de que sem chefe não há sociedade viável. Recorre a Clastres para mostrar que o poder político não precisa ser hierárquico e coercitivo. Os autores apresentam ainda uma reflexão sobre a metodologia autogestio-nária praticada pelos membros de uma incubadora universitária de economia solidária.

Leirner e Toledo (2003) apresentam uma entrevista realizada com Bento Prado Júnior em julho de 2003, na qual objetivaram um testemunho sobre Clastres, e mostrar de maneira mais sis-temática algumas opiniões sobre seu entendimento da relação entre Filosofia e Antropologia.

Miranda e Cunha (2013) buscaram compreender as relações entre a base do Movimento dos Trabalhadores Rural Sem Terra (MST) e suas lideranças e os processos de tomada de decisão em assentamentos rurais mediados pela nova estrutura organi-zacional. Para tanto, os autores utilizaram Clastres como uma de suas chaves analíticas, para explorar a ideia de estrutura separada do corpo social.

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Os referidos autores consideram, portanto, que embora Clastres tenha focalizado as sociedades primitivas, ele discute questões importantes para os vínculos existentes entre estru-turas formais de organização para a tomada de decisões e o exercício de poder. Tratando do MST, Miranda e Cunha (2013) consideram esta questão relevante, visto que sua organicidade se fundamenta no pressuposto de um poder indiviso, o qual é patrimônio de todas as famílias ligadas ao movimento. No entan-to, na prática, o exercício da liderança no MST se dá associado ao exercício de poder por indivíduos ou grupos de indivíduos, não se tratando, portanto, de uma “liderança que se exerce unicamente pelo prestígio ou pelo dom retórico”.

Perrone-Moisés e Sztutman (2010) tratam da coalização de diferentes coletivos tupi da costa quinhentista que pôs em risco a colonização portuguesa, tendo como pano de fundo, a disputa entre franceses e portugueses pela região da Guanaba-ra, hoje Rio de Janeiro, a chamada “confederação dos Tamoio”. Os autores consideram este um aspecto muito comentado da historiografia brasileira, mas que permanece à espera de uma análise propriamente etnológica. Os autores discutem como a Confederação dos Tamoios poderia eventualmente conduzir a uma virada em direção à centralização política utilizando de fontes primárias e secundárias, sendo um dos fundamentos a discussão sobre Sociedade contra o Estado de Clastres.

Sztutman (2009a) pretendeu extrair das Mitológicas de Claude Lévi-Strauss uma ética e uma Filosofia Política, buscan-do responder e estender a provocação de Pierre Clastres, para quem a análise estrutural não teria se ocupado de tamanhas questões. Para realização de tais discussões, o foco foi dado em duas obras de Lévi-Strauss: As origens dos modos à mesa e História de Lince. O autor considera que as referidas obras devem estar na base do que a literatura etnológica recente reconheceu como movimentos proféticos.

Sztutman (2009b) analisou como a irrupção de focos de poder político entre os antigos Tupi da Costa brasílica foi tra-tada por Pierre Clastres e por Hélène Clastres, traçando tanto as convergências como os afastamentos entre os autores, de modo a propor novas direções para o debate por eles iniciado.

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O autor conclui, portanto, que as reflexões de Pierre Clastres e de Hélène Clastres nos ensinam que para experimentar outro pensamento e outra prática é preciso abandonar certas imagís-ticas carregadas pelo universo de sentido no qual fomos ades-trados. Considera-se que a realidade do outro não é entendida tão facilmente pelas nossas filosofias e práticas políticas.

Nota-se que a Teoria de Pierre Clastres vem sendo discutida a partir de distintos enfoques, destacando-se: estudiosos (BAR-BOSA, 2004; LANNA, 2005; PERRONI-MOISÉS E SZTUTMAN, 2010) que discutem a teoria de Clastres; estudiosos (LEIRNER e TOLEDO, 2003; SZTUTMAN, 2009a e SZTUTMAN, 2009b) que discutem a relação de sua teoria com outros autores e, estudiosos que trazem a teoria para realidades diferenciadas daquelas em que o autor desenvolveu seu trabalho, tais como MST (MIRANDA e CUNHA, 2013) e Incubadora autogestionária (LECHAT e BARCELOS, 2008).

O mapeamento dos estudos selecionados na base de da-dos scielo apresenta a teoria de Clastres que tem suscitado discussões relevantes no que se referem ao papel do Estado, as relações de poder e ao processo de tomadas de decisões em diferentes contextos.

Percebe-se também, que os estudos de Clastres per-mitem uma reflexão aprofundada quanto à relação sociedade e Estado, a política, bem como, a natureza do poder. Além disso, destaca-se que sua teoria proporciona pensar no papel da etnografia, e na relação que os antropólogos constroem em meio a pesquisas, visto à importância de imersão em campo para compreensão de realidades distintas á que convivemos.

No entanto, Barbosa (2004) destaca que apesar da im-portância da teoria de Clastres, há certa tendência a banir a obra desse autor, no âmbito da ciência. Nesse contexto, faz-se pertinente destacar, que há um baixo número de estudos que discutem a teoria de Clastres, mesmo considerando que este estudo se restringe a uma única base de dados.

Considera-se também, que Renato Sztutman, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, é um expoente nas discussões acerca da Antropologia Política

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de Clastres, visto que dos oito estudos encontrados na base de dados scielo, três são de sua autoria.

Buscando contribuir para as discussões acerca da teoria de Clastres, dos estudos selecionados na base de dados scielo, a seguir são enfatizados aspectos estruturantes da teoria de Pierre Clastres, no que se refere à sua concepção de Estado e sociedade, tais como o papel do chefe e da guerra nas so-ciedades primitivas.

TEORIA DE PIERRE CLASTRES: DIVERSAS CONSIDERAÇõES

Nas décadas de 60 e 70, Clastres viveu experiências de campo entre distintos povos indígenas, sendo que ao invés de permanecer diante do mundo indígena, o referido autor buscou estar dentro dele e, foram estas vivências que nortearam seus trabalhos etnográficos.

Colaborando com esta perspectiva, Barbosa (2004) destaca que há um Clastres-sociológo, um Clastres-filosófo político, um Clastres em devir-etnógrafo. De acordo com o autor, a etnografia de Clastres abrange uma dimensão filosófica e política, visto que o conhecimento etnológico necessita de uma interrogação filosófica, na medida em que o conhecimento da vida de uma sociedade implica em questionamentos sobre a visão de homem e de mundo dos sujeitos que nela se encontram.

Nesta perspectiva, Barbosa (2004) nos faz refletir acerca da relação entre a Antropologia e a Filosofia, uma vez que para conhecer uma sociedade, faz-se pertinente imergir nesse grupo e perceber seu projeto de sociedade, aspecto este que necessita de um olhar filosófico.

Sztutman (2009b, p.131) destaca que:

Pierre Clastres debruçou-se especialmente sobre o campo da Filosofia Política, o que lhe possibilitou formular um projeto de Antropologia Política não mais centrado na ideia do Estado como fim de todo desenvolvimento social – tese evolucionista não de todo descartada pelos funcionalistas britânicos -, mas sim nos mecanismos capazes de manter a indivisão social que fundamenta toda sociedade primitiva.

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Percebe-se que a concepção de Estado de Clastres desen-volve-se por meio de um olhar contra o etnocentrismo, visto que o referido autor afirma a existência de sociedades sem Estado e capazes de buscar meios que impeçam que esta divisão política ocorra. Clastres (2013, p.202) enfatiza:

Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está conde-nada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria, conduzem à civilização. (...) Mas o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutri-na que, relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado, designa este último como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se então indagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.

Nesse contexto, compreende-se que Clastres (2013) exclui a ideia da formação estatal como algo evolutivo, pelo qual as sociedades que não o possuem são consideradas como atrasadas e inferiores, buscando assim entender os mecanismos utilizados pelas sociedades para se manterem sem o poder estatal.

Barbosa (2004) ao enfocar a maneira como Clastres encara a “sociedade”, o “Estado” e o “contra”, o autor defende que a sociedade e o Estado na teoria de Clastres não assumem o caráter de entidades abstratas, mas se configuram enquanto máquinas sociais fortemente engendradas pelas suas formas de subjetivação.

Nesse contexto, Barbosa (2004) traz a reflexão proposta por Clastres de que, o Estado não se faz presente nas sociedades ameríndias, devido às figuras subjetivas dessas sociedades recorrerem a estratégias próprias contra a possibilidade da emergência do Estado, enfatizando nesse cenário, a própria subjetivação de seus chefes, a guerra, a economia, a religião.

Então, questiona-se qual o papel do chefe nas sociedades primitivas?Clastres (2013, p.256) destaca que “somente o chefe tem obrigações: obrigação de ser bom orador, e não apenas de

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ter talento, mas de prová-lo constantemente, isto é, de presentear as pessoas com seus discursos, obrigação de ser generoso”.

Ao refletir sobre o papel do chefe nas sociedades primiti-vas na teoria de Clastres, Barbosa (2004) destaca que o chefe permanecerá na chefia na medida em que for capaz de perse-verar na dívida. Miranda e Cunha (2013) colaborando com a discussão, destacam que a figura que serviu de inspiração a Clastres foi a do chefe indígena que não detém poder algum, pois mesmo sendo beneficiado com alguns privilégios como a poliginia, o chefe estava submetido a uma série de obrigações que pressupõem certas habilidades, dentre as quais, as mais importantes são a generosidade e o dom da oratória.

Bento Prado Júnior ao ser entrevistado por Leirner e Toledo (2003) enfatiza que a chefia é um lugar particular e diferencial no sistema de trocas e de comunicações, visto que o chefe recebe bens e mulheres sem compromisso de reciprocidade, mas é obrigada a emitir um discurso sem poder.

Lechat e Barcelos (2008), por sua vez, criticam o modelo de chefia de Clastres no que se refere à ideia de que a aus-ência de uma força como potência de sujeição e com capaci-dade de coerção definiria a natureza das sociedades primitivas como contra o Estado. Além disso, os autores destacam que o estatuto da sociedade indígena seria para Clastres, essen-cialmente diferente daquele das “com Estado”, em função de as primeiras se caracterizarem pela troca e as segundas pela dívida. Neste sentido, Lechat e Barcelos (2008) considera que a descontinuidade entre chefia e Estado é obscurecida, pois se este tem a prerrogativa de receber tributos, a primeira não deixa de receber bens.

Corroborando com essa perspectiva, Lanna (2005) argumenta que a ausência de uma força como potência de sujeição e com capacidade de coerção, não define a natureza das sociedades primitivas como “contra o Estado”. Além disso, o autor defende que o chefe primitivo seria uma variante da figura do Estado e que este está presente na sociedade primitiva, ainda que sem o seu poder coercitivo.

Neste sentido, nota-se que para os autores (LANNA, 2005; LECHAT e BARCELOS, 2008) o fato de o chefe ter prestígios

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pode acarretar na construção de poderes, considerando o chefe como uma forma de poder nas sociedades primitivas.

Nota-se que há duas visões no que se refere ao papel do chefe nas sociedades primitivas, visto que estes têm a obrigação de ser generoso e ter oratória, mas possui também privilégios como a poliginia. Autores (LEIRNER e TOLEDO, 2003; MIRANDA e CUNHA, 2013) destacam a ausência do poder nas ações do chefe, já outros (LANNA, 2005; LECHAT e BARCELOS, 2008) enfatizam que a chefia é uma variante da figura do Estado nas sociedades primitivas.

Para Clastres (2013, p.219), “evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa (...) limitam-se ao uso da palavra. (...) a palavra do chefe não tem força de lei”. Clastres reconhece os privilégios do chefe, porém aponta que este não possui nenhum poder de coerção e autoridade e que, portanto, o aparelho estatal não poderia derivar da chefia ameríndia.

Clastres, portanto, positiva a ação política ameríndia por seus mecanismos de recusa do Estado, tais como o papel do chefe e o processo de fragmentação social movido pela guerra. De acordo com Barbosa (2004) Clastres nos faz pensar a guerra enquanto aspecto positivo, visto que esta possibilita o resguar-damento da totalidade das sociedades primitivas, mantendo-as como um todo homogêneo e evitando a distinção entre quem manda e quem obedece. Aspecto, este que pode ser notável, quando Clastres (2013, p. 251) destaca que:

Enquanto as comunidades estiverem, por meio da guerra, num estado de separação (...), não pode haver Estado. A guerra nas sociedades primitivas consiste antes de tudo em impedir o uno; o uno é primeiramente a unificação, ou seja, o Estado.

Percebe-se, portanto, que a guerra nas sociedades prim-itivas se constitui em um mecanismo na recusa do Estado. Nesse contexto, Sztutman (2009b) ressalta que é a guerra que garante a fragmentação contínua do espaço social, impedindo a formação de grandes aglomerados populacionais e extensas

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redes de troca que acabam propiciando movimentos de central-ização política, fazendo com que estas sociedades resistam à sedução da unidade.

Sztutman (2009b) enfatiza um aspecto relevante da teo-ria de Clastres que é a importância das sociedades primitivas serem organizadas com um número populacional baixo, visto que Clastres (2013, p.225) denota que “as coisas só podem funcionar segundo o modelo primitivo se a população é pouco numerosa”. Desta forma, a guerra se constitui em um mecanismo relevante, visto que não permite a aglomeração de pessoas e consequentemente, possibilite a inibição de poderes estáveis, o que acarretaria no surgimento do Estado.

Nota-se, portanto, que tratando do papel da guerra, Clas-tres (2013) vem trazer uma visão contrária à de Hobbes, visto que este considera a guerra como sintoma de estado associal e de caos. Já Clastres considera a guerra enquanto mecanismo na busca da preservação do múltiplo e contra o poder estatal unificado.

Outro mecanismo na recusa do Estado destacado por Clastres (2013, p.204) das sociedades primitivas é a economia de subsistência, considerando que “as sociedades primitivas repousam numa economia de subsistência, não é por lhes faltar uma habilidade técnica”, mas sim por recusarem um excesso inútil, o que os fazem restringir a atividade produtiva à satisfa-ção das necessidades.

No entanto, Clastres (2013) destaca que na palavra profética que chama os índios para o abandono da terra má, para alcan-çar a terra sem mal pode talvez haver um germe do discurso do poder e o começo do Estado no verbo. É neste aspecto, portanto, que Sztutman (2009a) considera que as interpretações de Pierre Clastres se diferem das de sua esposa Hélène Clas-tres. Diferente de Pierre Clastres, a referida autora não vê no profetismo tupi a fonte de irrupção do poder político, mas sim a vitalidade de uma religião nômade que se opõe frequentemente a ele, e que tende a se tornar mais aguda conforme ele ameaça emergir. Nesse contexto, nota-se que Clastres buscou a partir de sua etnografia, compreender as sociedades primitivas em seu funcionamento político, religioso e social.

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Estudiosos (BARBOSA, 2004; LANNA, 2005; SZTUTMAN, 2009b) tem destacado a relação da teoria de Pierre Clastres com Claude Lévi-Strauss. Lévi-Strauss foi um antropólogo que estudou o comportamento dos índios americanos, utilizando da abordagem estruturalista. O referido autor contribuiu principalmente para três grandes temas: a teoria das estruturas elementares do parentesco, os processos mentais do conhecimento humano e a estrutura dos mitos.

Tratando da abordagem estruturalista, Clastres (2013, p.232) dizque:

O estruturalismo aparentemente funciona, e Lévi-Strauss demonstrou isso claramente quando analisou as estruturas elementares do parentesco, ou as mi-tológicas. (...) Me ocupo em linhas gerais, digamos, de antropologia política, da questão da chefia e do poder, e aí tenho a impressão de que a coisa não funciona depende de um outro tipo de análise.

Percebe-se assim, que Clastres busca além da estrutura em suas análises, ao considerar que esta não daria conta da compreensão das relações entre as sociedades primitivas e suas chefias. De acordo com Lanna (2005), há uma tentativa de Clastres de transformar o modelo estruturalista de análise de parentesco e mitos de Lévi-Strauss, para pensar o político nas sociedades ameríndias. No entanto, o autor destaca que no início da década de 1970, Clastres, a partir do reconhecimento de Lévi-Strauss como mestre dos estudos dos mitos e das es-truturas elementares do parentesco, conclui que o estruturalismo se reduz a estes temas, e que, portanto, o estruturalismo omite a questão da sociedade, foco dos seus estudos.

Colaborando com essa discussão, Barbosa (2004) mostra que a preocupação de Lévi-Strauss é com a lógica que permite o funcionamento da sociedade e neste sentido se difere de Clas-tres, visto que este busca compreender a lógica da sociedade em funcionamento. Desta forma, Barbosa (2004) corrobora com Lanna (2005), ao considerar que o estruturalismo centra-se nos sistemas de parentesco quanto na das mitologias, mas que re-nuncia ao estudo da sociedade enquanto lugar de produção dos

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parentes e dos mitos, bem como seu modo de funcionamento, sua dinâmica interna, sua economia e sua política.

No entanto, Sztutman (2009a, p. 295), considera que as expectativas clastreanas quanto ao estudo da sociedade pelo estruturalismo, podem ser encontradas nas Mitológicas de Lévi-Strauss. Além disso, o autor aponta que respondendo a muitos de seus críticos, Lévi-Strauss destaca no “Finale de L’ Homme nu” (1971) que “(...) Os mitos dizem muito sobre a sociedade de onde provêm, e o fazem na mesma medida em que revelam as operações mais fundamentais do intelecto humano (...)”.

Percebe-se que Barbosa (2004) e Lanna (2005) estão em consenso ao destacar que o estruturalismo desenvolvido por Lévi-Strauss renuncia o estudo da sociedade e seu modo de funcionamento, o que se constitui o foco dos estudos de Clastres. No entanto, Sztutman (2009a) ao analisar algumas passagens das Mitológicas de Lévi-Strauss, discorda de que o estruturalismo não considera o lugar de produção dos parentes e dos mitos, e fundamentado em Lévi-Strauss defende que os mitos dizem muito sobre a sociedade de que provêm, e que uma de suas propriedades fundamentais é a transformação de suas mensagens e códigos, o que possibilita, portanto, o conhecimento do contexto de sua produção.

Ao considerar que o estruturalismo não daria conta da com-preensão da sociedade em sua dinâmica interna, sua economia e sua política, na década de 1970, Clastres desiste de uma análise estruturalista da política, e se ocupa de desenvolver uma Antropologia Política.

Ao refletirem sobre a Antropologia Política desenvolvida por Clastres, Leirner e Toledo (2003) consideram que estase faz relevante para pensarmos a relação entre Filosofia e An-tropologia, mas também para pensar à política, à natureza do poder, os cânones da etnografia, bem como a relação que os antropólogos travam com os nativos, apreendendo assim os sentidos mais gerais que norteiam a própria Antropologia.

Sztutman (2009a) dá relevo às reflexões que Clastres nos ensinam, como já dito anteriormente, que para experimentar outro pensamento e outra prática é preciso abandonar certas imagísticas carregadas pelo universo de sentido no qual fomos

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adestrados. Aspecto este, que considero de extrema relevância no que se refere à compreensão de outras realidades, tendo em vista o quanto é complexo nos desprover de nossas concepções de mundo para pensar e compreender a realidade de outrem.

Miranda e Cunha (2013) enfatizam que embora Clastres tenha focalizado as sociedades primitivas, traz questões impor-tantes para refletir sobre os vínculos existentes entre estruturas formais de organização para a tomada de decisões e o exercício de poder em outros âmbitos.

Nesse contexto, nota-se que Clastres buscou através de sua etnografia nos mostrar sociedades em funcionamento, que a partir de formas específicas de subjetivação e de um projeto de sociedade, buscaram impedir a emergência de exploradores e explorados, dominantes e dominados, agindo, portanto, contra o Estado. Além disso, Clastres nos mostra o potencial da dife-rença, visto que em sua obra há a busca de mostrar o pensa-mento e visão de mundo do “outro” sem estereotipar, mas sim para reconhecer outras realidades.

CONSIDERAÇõES FINAIS

A partir das leituras e discussões para construção do pre-sente estudo, foi possível perceber que Clastres compreende Estado enquanto poder político coercitivo, considerando que as sociedades primitivas possuem seus mecanismos para pre-venir-se contra a emergência de um poder político autoritário e que são, portanto, sociedades contra o Estado. No entanto, me questiono: será que o Estado necessariamente tem uma natureza coercitiva? O Estado não pode ser construído com outra natureza? Sabe-se que esta é a concepção etnográfica anarquista de Clastres.

Assim, há diversas outras concepções de Estado baseado em suas matrizes teóricas. Chaves (2007) ao defender uma abordagem liberal, considera que o Estado deve garantir a existência e inviolabilidade da liberdade dos indivíduos, garan-tindo a estes, a preservação do espaço privado, inviolável, que não possa ser transgredido pelos nossos semelhantes.

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Ribeiro (1995) ao discutir sobre a teoria contratualista de Hobbes, considera quepara Hobbes, o Estado deve se constituir enquanto pacto social constituído de uma longa experiência da vida em sociedade. Assim, para Hobbes, o Estado deverá contro-lar e reprimir o estado de guerra que pode se generalizar entre os homens. Nesse contexto, apresenta-se além de uma visão diferenciada de Estado, também um outro olhar diversificado para a guerra, visto que para Hobbes, esta se configura em sintoma de um estadode selvageria humano, enquanto que para Clastres, ela é algo positivo e se constitui enquanto mecanismo das sociedades indígenas na busca da preservação contra o poder estatal unificado. Desta forma, nota-se que há distintas concepções de Estado convivendo em constante disputa na defesa por projetos de sociedade e de educação.

A teoria de Clastres influenciou nas áreas de Antropologia e Filosofia, e, portanto, esta vem sendo discutida a partir de diferenciados enfoques, tanto para discutir sua teoria quanto para discutir a relação de sua teoria com outros autores. Foi notável, também, a importância da teoria de Clastres para pen-sar as relações de poder e de tomada de decisão em outros âmbitos distintos das sociedades primitivas.

O estudo da teoria de Clastres possibilita pensar em um projeto de sociedade que muitas vezes é silenciado, ao con-siderar que as sociedades indígenas conviveram durante muito tempo com políticas que só proporcionavam a assimilação da cultura considerada dominante e que só a partir de lutas e conflitos, que estas vêm conseguindo mudar a situação política e educacional que lhe eram impostas. Nesse contexto, faz-se pertinente dialogar e pensar a partir da diferença de organização e de projeto de sociedade. Ressalta-se que para ver o outro em suas especificidades, faz-se necessário despir-nos de um olhar estereotipado criado por nossas filosofias e práticas política, na busca de dialogar com outras culturas, outras visões de mundo, outros projetos de sociedade e educação.

SOCIETY AGAINST ThE STATE:ThOUGhTS ON PIERRE CLASTRES’ ThEORY

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aBSTRacT — There are distinct conceptions about the constitution and role of the State. This study will focus on Pierre Clastres’ anthropological theory. The aim is to discuss about Clastres’ notion of State by means of a review of background readings which address the core aspects of the theory proposed by the aforementioned scholar. A bibliographical review qualitative in nature is provided from digital database to be found on scielo.br. On the basis of readings and discussions it is possible to argue that Clastres conceives the State as coercive political power. Given that primitive societies possess their own mechanisms as to prevent the emergence of an authoritarian political power, they are as a result societies against the State. A close study into Clastres’ theory ultimately enables the interplay through the difference in organization political.

KEy wORdS: State; Society; Clastres’ Theory.

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ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO: A EDUCAÇÃO DO CAMPO COMO REAÇÃO AO CAPITAL

Rodolfo Santos de Miranda*

RESUMO — A sociedade brasileira atual é marcada por conflitos e tensões, em que os sujeitos coletivos com interesses antagônicos disputam junto ao governo a implementação e desenvolvimento de diferentes projetos de socie-dade. Assim, numa perspectiva gramsciana, esse trabalho analisa a relação conflituosa entre Estado e movimentos sociais do campo no Brasil, apontando a proposta de educação do campo como uma reação às forças do capital. A partir de análise bibliográfica, percebeu-se como o governo tem se colocado em defesa da expansão do agronegócio no Brasil e que os movimentos sociais do campo criam a concepção de educação do campo como um instrumento de fortalecimento da luta pela reforma agrária, questionando a expansão do capital no campo, buscando efetivar suas propostas por meio de políticas públicas.

PalavRaS-chavE: Estado, movimentos sociais do campo, educação do campo.

1 - INTRODUÇÃO

Na disputa por poder hegemônico em nossa sociedade, grupos sociais antagônicos lutam por espaços buscando le-gitimar e consolidar seus interesses. Nesse contexto, existe o grupo social que detém o poder de forma hegemônica e os demais grupos que se dividem entre os que legitimam o poder dominante e os que o questionam.

Lugar privilegiado de disputas e embates, o Estado, por meio de suas instituições, cria políticas públicas no intuito de se pôr em ação (AZEVEDO, 1997). Além disso, as agências gover-namentais também são grandes responsáveis por implementar e desenvolver as políticas criadas pelo Estado.

* Mestrando em Educação. PPGE – Mestrado Acadêmico. Universidade Estadual de Feira de Santana. [email protected].

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Palumbo (1989, p. 41) afirma que o estudo de políticas públicas auxilia a compreensão “do governo como um processo de interações complexas entre uma variedade de organizações, tanto públicas quanto privadas”. Assim, a criação de políticas públicas não ocorre de forma harmoniosa, existindo um jogo de interesses que permeia todo o processo, desde as propostas que fundam determinada política, até a forma como ela vai ser ou não implementada. Esses interesses nem sempre são con-ciliáveis, gerando conflitos e disputas.

Dessa maneira, inúmeros sujeitos coletivos da sociedade civil são os protagonistas dessas tensões, buscando no Estado o meio de implementar propostas específicas, que se relacionam com determinada concepção de sociedade defendida por eles. Segundo Fontes (2006), numa perspectiva gramsciana,

(..) sociedade civil é duplo espaço de luta de classes, intra e entre as classes, por meio de or-ganizações nas quais se formulam e moldam as vontades e a partir das quais as formas de dominação se irradiam também como convencimento (FONTES, 2006, p. 212).

Dessa forma, entre esses sujeitos coletivos da sociedade civil, destacamos os movimentos sociais do campo no Brasil, que apresentam um projeto específico para o campo, de edu-cação e de sociedade, buscando efetivá-lo através de políticas públicas. Essas propostas encontram opositores que analisam o campo como um meio de reprodução do capital, buscando ampliar os lucros de grandes empresas rurais.

Assim, um cenário de conflito é montado por grupos an-tagônicos em que as políticas públicas tornam-se uma das metas, tendo o Estado como palco dessa querela. Nesse sentido, a educação tornou-se uma das grandes bandeiras dos movimentos sociais do campo nas últimas décadas, tendo as políticas como alvo, no intuito de se apropriarem “dos instrumentos públicos como condição de elevação de sua capacidade de intervenção na sociedade” (SANTOS, 2010, p. 325). Essa bandeira está fincada na luta pela reforma agrária popular no Brasil, analisada

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como meio de fortalecer a disputa pela terra. Dessa maneira, os movimentos sociais do campo criam uma concepção própria de educação – a educação do campo –, que, relacionada à de-manda da reforma agrária, se opõe às forças do capital, que, hegemonicamente, é desenvolvida e defendida pelo governo.

Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo anal-isar a relação conflituosa entre Estado e movimentos sociais do campo, percebendo a concepção de educação do campo como reação às forças do capital. Nesse percurso, será apresentada a concepção de “Estado Ampliado” gramsciana, no intuito de definir o cenário onde o conflito aqui analisado é encenado. Em seguida, serão caracterizados os movimentos sociais do campo e sua concepção de educação, que se contrapõe ao que he-gemonicamente é proposto para o camponês. Por fim, a partir da tensão entre Estado e movimentos sociais do campo, serão apontadas possíveis relações entre esses sujeitos coletivos e a noção de partido político em Gramsci. Para essa discussão serão utilizados autores como Grasmci (1989, 2007), Coutinho (2006), Ribeiro (2010), Gohn (2005, 2013), Munarim (2008), Caldart (2004), dentre outros.

2 - A NOÇÃO DE ESTADO AMPLIADO: LÓCUS DE DISPUTA POR hEGEMONIA

Na perspectiva gramsciana, a hegemonia é a supremacia de uma concepção de mundo sobre as demais. Essa supre- macia é muito mais do que a dominação de uma classe sobre a outra, é o resultado articulatório entre força e consenso. É a dirigência de uma classe, pautada na primazia do consenso e não na coerção. Sobre o exercício da hegemonia, Gramsci faz a seguinte afirmação:

O exercício “normal” da hegemonia [...] caracter-iza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expressos pelos

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chamados órgãos de opinião pública – jornais e associações [...] (GRAMSCI, 1989, p. 116).

Conforme o excerto acima, a hegemonia integra toda a vida das pessoas, envolvendo instituições como associações, igreja, escola, família, movimentos sociais etc. Assim, buscando legitimar-se combinando consenso e coerção, a ideologia da classe dominante se impõe de forma hegemônica para as ou-tras classes sociais, tendo o Estado como principal instrumento.

No pensamento gramsciano, segundo Silva (2010), a ideo- logia, como um conjunto de ideias que explica e projeta uma realidade, não é única ou universal numa sociedade. No entanto, a ideologia da classe dominante se torna hegemônica, pois foi capaz de fazer indivíduos das classes dominadas internalizarem para si ideias que surgiram e pertencem a outra classe.

O Estado, ainda na perspectiva de Gramsci (2007), tem papel importante na manutenção da hegemonia. Marcado pela relação entre sociedade política – governo – e a sociedade civil – qualquer outro tipo de organização entre os homens que não tenha relação com governo jurídico –, o Estado, em seu sentido ampliado, pode ser instrumento de legitimação da hegemonia ou de contestação dessa mesma ordem. Nesse sentido, podemos afirmar que essa relação também é marcada por conflitos e tensões, nos quais ocorre a disputa pelo poder hegemônico em uma determinada sociedade, disputa essa que parte dos aparelhos privados de hegemonia.

Dentre os grupos que formam os aparelhos privados de hegemonia questionadores do poder hegemônico na atual reali- dade brasileira, estão muitos movimentos sociais do campo, com destaque para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Isso ocorre porque, segundo Gohn (2013), analisando os movimentos sociais na atualidade:

(...) eles representam forças sociais organizadas que aglutinam as pessoas não como força-tarefa, de ordem numérica, mas como campo de atividades e de experimentação social, e essas atividades são fontes geradores de criatividade e inovações socioculturais (GOHN, 2013, p.13-14).

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Dessa maneira, os movimentos sociais que questionam a ordem estabelecida possuem em seu bojo uma concepção de sociedade diferente daquela que hegemonicamente é concebida. Afinal, “eles expressam energias de resistência ao velho que os oprime, e fontes revitalizadas para a construção do novo” (GOHN, 2013, p.14).

Ribeiro (2010), analisando o movimento camponês no Brasil, nos permite compreender o caráter contra-hegemônico dessas organizações. Segundo a autora, a luta de classe está no centro dos movimentos sociais populares, sendo portadores de um novo projeto de sociedade e de educação, que vai de encontro ao modelo social e econômico proposto pelo poder hegemônico e defendido pelo governo.

Segundo Coutinho (2006), analisando a gênese, crise e alternativas do Estado Brasileiro, com o fim da ditadura militar na década de 1980 – contexto de surgimento do MST –, o Brasil tornou-se uma sociedade que Gramsci definiu como ocidental, em que existe uma justa relação entre Estado e sociedade civil. Assim, coexistem um Estado forte e uma sociedade civil orga-nizada, que equilibra e controla a ação desse Estado. Dentro das sociedades ocidentais, segundo o mesmo autor pautado em Gramsci, existem dois modelos:

No caso do modelo ‘norte-americano’, constata-se que são poucos os trabalhadores que se sindicali-zam; [...] Trata-se, portanto, de um padrão sindical por vezes eficiente, mas estreitamente corporativo. [...]. Esse modelo ‘norte-americano’ é, sem dúvida, o mais adequado a conservação do capitalismo. [...]No caso do ‘modelo europeu’ [...], as bases sociais de apoio desses partidos eram diferentes, daí que eles representam interesses sociais conflitantes [...] No ‘modelo europeu’ havia uma salutar disputa entre propostas hegemônicas alternativas (COUTINHO, 2006, p.189-190).

Dessa forma, dentro do modelo europeu, faz-se impor-tante perceber os movimentos sociais do campo como grupos da sociedade civil que disputam junto à sociedade política a

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construção de um projeto hegemônico alternativo1. Com isso, é possível afirmar que existem no Brasil grupos que se propõem a fazer a ‘grande política’. Para Gramsci (2007, p. 21), “a grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais”, cons- tituindo objetivos a serem alcançados pelos movimentos sociais do campo.

Assim, esses sujeitos coletivos fazem oposição à forma como o capitalismo tem gerido o campo. Mais especificamente, se contrapõem às grandes empresas rurais, que, através do agronegócio2 têm encontrado no campo um meio de ampliação dos lucros e de expansão das forças do capital, em que o cam-ponês é visto como mão de obra à serviço desse propósito e seus modos de vida são negligenciados (RIBEIRO, 2010, p. 197). Desse modo, o campo e o camponês são meros instrumentos de implementação desse projeto para o campo no Brasil.

Nesse sentido, a sociedade política torna-se cenário dessa disputa, em que grupos antagônicos da sociedade civil – empre-sas rurais e movimentos sociais do campo – buscam concretizar suas propostas, interferindo nas decisões do governo, condi-cionando o perfil das políticas públicas criadas para o campo, sua implementação e grau de eficácia das mesmas. Então, o governo, que na atualidade tem expandido as ações de cunho neoliberal, passa a ser questionado e pressionado no sentido de rever a forma como tem governado o país.

Infelizmente, a chegada do PT ao governo federal em 2003, longe de contribuir para minar a hegemonia neo-liberal, como todos esperavam, reforçou-a de modo significativo. A adoção pelo governo petista de uma política macroeconômica abertamente neoliberal – e a cooptação para esta política de importantes mov-imentos sociais ou, pelo menos, a neutralização da maioria deles – desarmou as resistências ao modelo liberal-corporativo e abriu assim caminho para uma maior e mais estável consolidação da hegemonia neoliberal entre nós (COUTINHO, 2006, p. 193).

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Esse novo contexto apontado por Coutinho revela como a expansão do neoliberalismo dentro da sociedade política torna importante a permanência, a expansão e a resistência de grupos da sociedade civil capazes de questionar a ordem estabelecida pelo capital. Nesse sentido, os movimentos sociais do campo e sua concepção de educação assumem papéis contestatórios fundamentais.

3 - MOVIMENTOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO DO CAMPO: CONSTRUINDO UM NOVO PROjETO DE SOCIEDADE

Segundo Ribeiro (2010), os movimentos sociais populares, em particular os do campo, ganharam força a partir da década de 1950 no Brasil. Porém, é a partir de fins da década de 1970 que esses movimentos sociais ganham mais ímpeto, especial-mente com o surgimento do MST na década de 1980. Para a autora, esses movimentos sociais se configuram enquanto sujeitos políticos coletivos, portadores de um novo projeto de sociedade e de educação, estando imersos o contexto de de-safios colocados pelo capitalismo, que concebe o campo como meio de reprodução e ampliação do capital. No que se refere às problemáticas do campo, os movimentos sociais populares vão questionar

(...) a presença do agronegócio instalado no campo, induzindo o Estado a propor política públicas que defendem a fixação do homem do campo, segundo a perspectiva de atendimento ao padrão atual do capital, negando o campo como espaço de vida e reprodução como propõe a Educação do Campo (MARIALVA, 2011, p.31).

Assim, os movimentos sociais do campo visam superar a condição de subalternidade imposta pelo capital, buscando nas políticas públicas o meio de se fortalecerem na busca desse objetivo. Para Simionatto (2009, p. 42), o conceito de subalterni-dade tem sido usado “na análise de fenômenos sociopolíticos e culturais, normalmente para descrever as condições de vida

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de grupos e camadas de classe em situações de exploração ou destituídos dos meios suficientes para uma vida digna”, buscan-do também “recuperar os processos de dominação presentes na sociedade”.

Esses processos de dominação envolvem resistência por grupos da sociedade civil, principalmente porque o Estado, en-quanto sociedade política gramsciana, é “um todo complexo de atividades práticas e teóricas com as quais as classes dirigentes não só justifica e mantém o seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos seus governados” (GRAMSCI, 2007, p. 331). Dentro do contexto do campo brasileiro, o governo tem se posicionado a favor da expansão do agronegócio, negando os modos de vida dos homens e mulheres do campo.

Dessa maneira, o desenvolvimento do agronegócio limita ou anula o desenvolvimento da agricultura familiar, e o campo deixa de ser o meio do camponês se realizar enquanto homem do campo e passa a ser instrumento de reprodução do capital. Fernandes (2006), definindo espaço e território como categorias essenciais para a pesquisa em educação do campo, evidencia a diferença da concepção do campo na perspectiva do capitalismo e do modo de vida camponês:

(...) enquanto o agronegócio organiza o seu território para a produção de mercadorias, dando ênfase a esta dimensão territorial, o campesinato organiza o seu território para real-ização de sua existência, necessitando desen-volver todas as dimensões territoriais (FERNANDES, 2006, p. 29).

Essas outras dimensões territoriais apontadas por Fernandes, como educação, cultura, produção, trabalho, organização políti-ca, relações sociais, etc., essenciais para o desenvolvimento dos modos de vida camponês, estão intrinsicamente ligadas à concepção de educação do campo. Logo, pode-se afirmar que o conceito de campo é indissociável de uma perspectiva multidimensional, na qual a economia, única dimensão territo-rial valorizada pelo agronegócio, não forma a totalidade desse conceito. Portanto, essas diferentes perspectivas tornam-se um

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dos principais pontos de tensão entre os movimentos sociais do campo, as empresas rurais e o governo.

Assim, na busca pela reforma agrária, dentro da perspectiva dos movimentos sociais do campo, onde a terra é vista como meio de realização do homem enquanto trabalhador do campo, esses grupos criam estratégias para o fortalecimento de sua luta. Uma dessas estratégias é a construção de uma concepção própria de educação, buscando nas políticas públicas o meio de efetivar concretamente essa proposta, disputando junto a sociedade política a implementação da mesma.

Ribeiro (2010, p. 39), diferenciando educação rural de edu-cação do campo, enfatiza que a primeira foi “historicamente oferecida aos filhos dos agricultores” aparecendo “como apêndice da legislação educacional pelo menos até os anos 1990”. O segundo conceito, construído pelos movimentos sociais, traz de forma inseparável um projeto histórico de sociedade e edu-cação forjado na luta pela terra. A autora afirma que a própria dinâmica desses movimentos educa e forma uma concepção de educação do campo de caráter popular:

A dimensão educativa, formadora das classes populares, pode ser captada no processo histórico de organização dos movimentos sociais populares. (...) Portanto, o movimento social popular é edu-cador, enquanto capaz de forjar uma identidade de classe (RIBEIRO, 2010, p. 46).

Corroborando com essa análise e trabalhando com um con-ceito ampliado de educação, Gohn (2005) afirma que o próprio processo de organização política dos movimentos sociais edu-ca, já que os indivíduos envolvidos, percebendo seus direitos negados, criam estratégias para atender as demandas criadas a partir de um contexto específico. A concepção de educação do campo é uma dessas estratégias, sendo criada no âmbito de resistências desses sujeitos coletivos.

Antônio Munarim (2008), discutindo educação do campo como um processo ainda em construção – observando-o como um movimento sócio-político e de renovação pedagógica –,

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afirma que os movimentos sociais do campo buscam acabar com a visão urbanocêntrica, a partir da qual o rural é colocado como atraso e os modos de vida camponês são desqualificados. Dessa maneira, negam a educação rural, pois “historicamente e em consonância com a ideologia dominante, a educação oficial rural, quando não relegada, tem sido usada como instrumento de subordinação estrutural dos povos que vivem no campo” (MUNARIM, 2008, p. 01).

Para uma melhor compreensão das ideias que permeiam o conceito de educação do campo, Caldart (2004), discutindo os elementos para a construção do projeto político e pedagógico da educação do campo, cita as principais características que compõem a identidade dessa nova abordagem. Entre elas des-tacam-se: projeto de educação dos e não para os camponeses, feitas através de políticas públicas, mas com os sujeitos que a reivindicam; movimentos sociais como sujeitos da educação do campo, onde esses grupos assumem o protagonismo em todo o processo; vínculo com a matriz pedagógica do trabalho e da cultura, valorizando o trabalho e a cultura como princípios educativos.

Dessa maneira, a concepção de educação do campo co-loca-se como alternativa contra-hegemônica, questionando a expansão do liberalismo no campo. Nessa perspectiva, o que vem sendo discutido até aqui corrobora com o contexto traça-do por Coutinho (2006) para o Estado brasileiro na atualidade. Segundo o autor,

Infelizmente, em face do transformismo que con-verteu o PT e seu governo em eficazes agentes do neoliberalismo, a esquerda se enfraqueceu na correlação de forças que vigora no Brasil depois da transição, uma correlação que ainda permitiu, em 1988, a conquista de uma Constituição na qual estavam inscritos importantes direitos sociais, e que impediu, nos anos seguintes, a consolidação definitiva do novo modelo neoliberal de Estado. Isso não significa que tenham desaparecido do cenário político partidos e movimentos de esquerda,

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ligados às classes subalternas, que se opõem ao neoliberalismo. (COUTINHO, 2006, p. 194).

Com isso, apesar do avanço dos ideais liberais no Es-tado brasileiro, ainda existem grupos da sociedade civil que se contrapõem ao hegemonicamente proposto. Esses grupos das classes subalternas buscam estratégias de se inserir na sociedade política, suscitando políticas públicas com o intuito de democratiza-lo. Nesse contexto, a educação do campo des- ponta como instrumento de fortalecimento na luta pela reforma agrária popular e da transformação do Estado e da sociedade como um todo.

Nesse sentido, o conceito de educação do campo visa fortalecer e explicitar o modelo de desenvolvimento do campo defendido pelo campesinato. Esse modelo, conhecido como paradigma da questão agrária, evidencia as propostas para o campo pelos movimentos sociais, no qual o camponês supera a condição de subalternidade, não aceitando o modelo hege-mônico do agronegócio, partindo da compreensão de que “as desigualdades geradas pelas relações capitalistas diferenciam, destroem e recriam o campesinato” (FERNANDES, 2012, p.17). Logo, se contrapõe ao paradigma do capitalismo agrário, que explica as desigualdades do campo como um problema con-juntural, sendo superadas pela integração do camponês ao agronegócio, ratificando a condição de subalternidade.

Assim, a concepção de educação do campo trazida pelos movimentos sociais, correlato ao paradigma da questão agrária, se relaciona com um novo modelo societário, questionando não só o de desenvolvimento do campo na perspectiva do agro-negócio, mas também as propostas de educação dos governos brasileiros nas décadas de 1990 e 2000, especialmente os governos FHC e Lula3.

Frigotto (2011), fazendo um balanço da educação no Bra-sil na primeira década do século XXI, evidencia a concepção mercantil da educação proposta pelos governos que vai da edu-cação básica à pós-graduação, relacionando-se a um projeto de sociedade em moldes liberais e consolidando a histórica dualidade estrutural na educação brasileira:

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No plano das políticas educacionais, da educação básica à pós-graduação, resulta, paradoxalmente, que as concepções e práticas educacionais vigentes na década de 1990 definem dominantemente a primei-ra década do século XXI, afirmando as parcerias do público e privado, ampliando a dualidade estrutural da educação e penetrando, de forma ampla, mormente nas instituições educativas públicas, mas não só, e na educação básica, abrangendo desde o conteúdo do conhecimento até os métodos de sua produção ou socialização (FRIGOTTO, 2011, p. 242).

Assim, diante do que foi exposto, surgiu e vem se construindo a concepção de educação do campo criada pelos movimentos sociais, trazendo em seus princípios uma dimensão educativa na qual a luta de classes está intrinsicamente presente, já que foi construída no próprio cotidiano de luta e organização desses movimentos. Desse modo, as classes oprimidas acabam criando alternativas de sociedade e de educação as quais pressupõem um processo de emancipação social, ligadas diretamente a questão agrária e, em última instância, a uma transformação radical do Estado.

4 – MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO E O CONCEITO DE PARTIDO POLÍTICO GRAMSCIANO: POSSÍVEIS RELAÇõES

Como foi anteriormente apresentado, os movimentos sociais do campo e sua proposta de educação negam o que hegemoni-camente é proposto para o campo, criando embates junto a sociedade política. No entanto, a expansão do neoliberalismo no Brasil após 2003, sinalizada por Coutinho (2006), não pode ser analisada como uma estrutura harmonicamente construída, mas num contexto em que projetos de sociedade são apresentados e disputas são travadas no intuito de concretizá-los.

Dessa maneira, os movimentos sociais do campo, constru-indo a concepção de educação da campo na luta pela terra, se constituem enquanto grupos da sociedade civil que buscam construir um projeto contra-hegemônico para a sociedade bra-

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sileira atual, com forte resistência à forma como o governo hegemonicamente tem conduzido as políticas para o campo. Para Gramsci (1989), essa construção

(...) não pode ser feita por uma pessoa real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo; um elemento complexo da sociedade no qual já tenha se iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação. Esse organismo já é determinado pelo reconhecimen-to histórico, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais (GRAMSCI, 1989, p. 06).

Assim, pode-se fazer uma relação entre os movimentos sociais do campo, que buscam implementar um projeto de desen-volvimento para o campo que se contrapõe ao hegemonicamente imposto, com o que Gramsci denominou de partido político das massas. Nesse sentido, esses sujeitos coletivos, oriundos da sociedade civil, disputam um novo projeto para o campo e para a sociedade em geral, discutindo e propondo ações com o intuito de implementar suas propostas, de tornar suas visões de mundo hegemônicas. Entre essas ações estão a construção da concepção de educação do campo e as estratégias de impor a implementação dessa nova abordagem por meio de políticas públicas.

Para Gramsci (1989, p. 26), para que um partido político exista, é necessária a presença de três elementos principais: um elemento difuso, outro de coesão principal e um elemento médio. O primeiro seria a presença de homens comuns, “cuja participação é oferecida pela disciplina e pela fidelidade”. O segundo tornaria eficiente e poderoso um conjunto de forças, sendo “dotado de uma força altamente coercitiva, centralizadora e disciplinadora”. O último seria responsável pela articulação do “primeiro com o segundo elemento, colocando-os em contato não só físico, mas moral e intelectual”.

Logo, a partir das características apresentadas acima, se firma a provável relação entre a noção de partido político apre-

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sentado por Gramsci e a natureza dos movimentos sociais do campo no Brasil atualmente, no sentido de que os movimentos sociais do campo, como o MST, aglutinam forças capazes de motivar uma transformação da sociedade como um todo, como bem sinalizou Ribeiro (2010), negando a lógica do capital. Assim, suas propostas para o desenvolvimento do campo e de educação, não se limitam apenas à zona rural ou à escola, mas à transformação de toda a sociedade. Para tal, aglutina pessoas e sujeitos coletivos que se articulam nesse intuito (el-emento difuso), difunde valores morais e culturais diferentes do hegemonicamente proposto pela sociedade capitalista (elemento médio) e possuem estratégias de lutas específicas, no sentindo de alcançar suas demandas (coesão principal). Afinal,

É por isso que uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de refor-ma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral (GRAMSCI, 2007, p. 19).

Além disso, vale ressaltar que, na busca por novo projeto de sociedade, os movimentos sociais do campo formam parce-rias, reforçando a relação com a concepção de partido político gramsciano. Nesse sentido, destacamos o MST, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento das Mulheres Camponesas e Comissão Pastoral da Terra (CPT); a Confederação dos Tra-balhadores na Agricultura (CONTAG) e a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF) (FERNADES, 2012, p. 18).

Nesse contexto é que grupos da sociedade civil questionam a expansão e hegemonia das forças capitalistas, apresentando propostas alternativas não só para o desenvolvimento do agro-negócio, mas para o Estado e toda a sociedade. É nessa disputa que se forma a concepção contra-hegemônica de sociedade por parte dos movimentos sociais do campo, fortalecida pela edu-cação do campo, se contrapondo a atual hegemonia do capital.

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5 - CONSIDERAÇõES FINAIS

Numa perspectiva gramsciana, a sociedade é marcada por relações conflituosas entre diferentes grupos da sociedade civil, que disputam junto à sociedade política diferentes projetos de sociedade. No que se refere ao desenvolvimento do campo no Brasil, o governo tem se colocado em defesa do agronegócio, em detrimento dos modos de vida do campesinato. Nesse em-bate, este trabalho buscou analisar os conflitos entre o Estado e os movimentos sociais do campo, apontando a concepção de educação do campo como reação às forças do capital.

O campo, segundo o paradigma do capitalismo agrário, é visto como um meio de reprodução do capital, encontrando resistência no paradigma da questão agrária, onde o campo é local de realização do homem camponês. Assim, forma-se uma relação conflituosa entre os movimentos sociais do campo e o Estado, pois, segundo Fernandes (2012, p. 13):

As políticas públicas elaboradas foram direcionadas pelo paradigma do capitalismo agrário, subordinando e enfraquecendo o campesinato. No enfrentamento a este modelo, os movimentos camponeses (principal-mente o MST) construíram uma política de conflitu-alidade, não aceitando a condição de subalternos, persistindo para se manter um movimento camponês.

Na disputa por diferentes projetos de sociedade, os movi- mentos sociais do campo criam a concepção de educação do campo, como instrumento de fortalecimento de luta pela terra, buscando nas políticas públicas um dos meios de efetivarem suas propostas. Para tal, formam resistência à maneira como o Estado tem encaminhado hegemonicamente as questões para o campo no Brasil, gerando um contexto de forte embate, além de se colocarem como “capazes de conduzir o país no sentido do aprofundamento das relações substancialmente democráticas” (COUTINHO, 2006, p. 190).

Nessa perspectiva, buscou-se relacionar os movimentos so-ciais do campo como o conceito de partido político em Gramsci,

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apontando alguns elementos que constituem um partido. Assim, esses sujeitos coletivos podem se configurar em partido político das massas, pois se organizam e propõem modelo contra-hege-mônico de sociedade, negando a lógica do capital, questionan-do o governo e tensionando o Estado, afinal “a história de um partido não poderá deixar de ser a história de um determinado grupo social. Mas esse grupo não é isolado; tem amigos, afins, adversários, inimigos” (GRAMSCI, 1989, p.24).

STATE AND SOCIAL MOVEMENTS FIELD: EDUCATION OF ThE FIELD AS REACTION TO CAPITAL

aBSTRacT — The current Brazilian society is marked by conflicts and ten-sions, in which the subject interests antagonistic collective dispute with the Government the development and implementation of different projects of soci-ety. Thus, in a Gramscian perspective, this work analyzes the conflicted relation-ship between the State and social movements of the field in Brazil, pointing to the proposal of the education field as a reaction to the forces of the capital. From bibliographical analysis, it was noticed as the Government has placed in defense of agribusiness expansion in Brazil and the social movements of the field create the conception of field education as an instrument for strength-ening the struggle for agrarian reform, questioning capital expansion in the field, seeking to implement its proposals through public policies.

KEy wORdS: State, social movements of the field, field education.

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(Endnotes)

1 Essa afirmação não busca negar ou negligenciar as contradições que permeiam as ações dos próprios movimentos sociais do campo. No entanto, a presença de contradições não anula o caráter de re-sistência desses sujeitos coletivos apontado por Ribeiro (2010), Fer-nandes (2012), dentre outros. Para melhor compreensão de como se configuram algumas dessas contradições ver Silva (2014).

2 Segundo Fernandes (2012), o agronegócio é um complexo de siste-mas, criado a partir das demandas do capitalismo, tendo como base a agropecuária.

3 Governos FHC: 1995-1998 e 1999-2002. Governos Lula: 2003-2006 e 2007-2010.

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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO NO BRASIL E A INFLUÊNCIA DOS ACORDOS INTERNACIONAIS DE EDUCAÇÃO

Selma Mendes Souza Mascarenhas*

RESUMO — O objetivo geral deste trabalho se constitui em analisar as políticas públicas adotadas no Brasil no âmbito da educação básica visando à erradicação do analfabetismo, influenciadas pelos acordos internacionais dos quais o nosso país é signatário, em especial a declaração Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das Necessidades Básicas de aprendiza-gem, de 1990. A metodologia adotada foi a pesquisa qualitativa com enfoque bibliográfico, fundamentada nos seguintes teóricos: Soares (2013), Ferreiro (2012), Libâneo (2012), Severino (2007), Freire (2001) e Mortatti (2013). Conclui-se com este trabalho que as diversas políticas públicas adotadas no Brasil em consonância com os acordos internacionais de educação estão imbuídas de interesses políticos e econômicos não declarados e se mostram ineficazes especialmente quanto a tão propagada formação plena do cidadão.

PalavRaS-chavE: Acordos Internacionais de Educação, Alfabetização, Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

Ler e escrever são competências cada vez mais requis-itadas na sociedade atual, especialmente com o avanço acel-erado das tecnologias digitais. Exige-se crescentemente dos indivíduos o domínio pleno da leitura e da escrita em todos os âmbitos da sociedade e, embora de um modo geral os índices de analfabetismo no mundo e no Brasil venham caindo ao lon-go das últimas décadas, percebe-se que este problema ainda persistirá por muito tempo, apesar dos esforços empreendidos

* Mestre em Educação e Cultura pelo Programa de Pós Gra-duação em Educação – PPGE, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) – BA. E-Mail: [email protected].

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pelos países para a sua erradicação. (não há necessidade de aspas, esforços, mesmo que mínimos estão em curso.

Em janeiro de 2014 a UNESCO divulgou o 11º Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, intitulado Ensinar e Aprender: alcançar a qualidade para todos que faz uma atualização “sobre o progresso que os países estão realizando rumo aos objetivos globais de educação acordados em 2000” em Dakar (Senegal), onde foram estabelecidas seis metas até 2015, dentre elas, reduzir o analfabetismo em 50%. Neste relatório o Brasil figura entre os dez países que apre-sentam o maior número de analfabetos no mundo, alcançando o 8º lugar. Este ranking do analfabetismo é liderado pela Índia, seguida da China, Paquistão, Bangladesh, Nigéria, Etiópia, Egito, Brasil, Indonésia e República Dominicana do Congo. Jun-tos, esses países são “responsáveis por quase três quartos no número de adultos analfabetos no mundo”, aponta o relatório, que ainda indica também que (retirar esses queísmos), “Jovens de famílias mais pobres têm uma probabilidade muito maior de serem analfabetos. Em 32 países analisados, mais de 80% dos jovens de famílias ricas conseguem ler uma frase, enquanto 80% dos jovens mais pobres conseguem fazer isso em apenas 4 países” (UNESCO, 2014, p. 34).

Segundo o Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos (UNESCO, 2013/4, p. 35), “As desvantagens na aquisição de habilidades básicas são aprofundadas por uma combinação de pobreza, localização e grupo étnico”. Esse dado parece encontrar eco aqui no Brasil onde os mais altos índices de analfabetismo são encontrados nas regiões menos desenvolvidas, especialmente no Nordeste que concentra 54% do total de analfabetos do país, de acordo com o PNAD 2012.

Como membro da ONU, o Brasil é signatário de vários acordos internacionais que têm, dentre outros objetivos, a erra- dicação do analfabetismo como meta. Esses acordos influenciam diretamente a concepção de políticas públicas criadas para este fim, pois os países signatários têm a obrigação de cumprir as metas estabelecidas desenvolvendo políticas para tal. O Bra-sil, bem como diversos outros países, vem, ao longo das duas últimas décadas, implementando diversas políticas públicas no

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campo da alfabetização, tendo como foco tanto as crianças, quanto os adultos. Contudo, o problema do analfabetismo no país persiste, parecendo se constituir num problema de difícil solução, especialmente nas regiões mais pobres.

Assim, visando contribuir para o debate sobre a questão do analfabetismo no Brasil, o presente artigo traz como questão para reflexão: como o analfabetismo se apresenta politicamente na atual conjuntura brasileira? Como objetivo geral propõe-se analisar as políticas públicas adotadas no país no âmbito da educação básica visando à erradicação do analfabetismo, influenciadas pelos acordos internacionais dos quais o nosso país é signatário, em especial a Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, acordo assinado pelo Brasil na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien – Tailândia, realizada no período de 5 a 9 março de 1990, bem como, pelos demais acordos que o sucederam, mas que têm neste sua base de sustentação. Como objetivos específicos, o texto propõe: mapear as políticas públicas adotadas no Brasil relacionadas à alfabetização em cumprimento aos acordos internacionais; traçar um panorama do atual quadro de analfabetismo do país; e realizar uma reflexão sobre a relação entre alfabetização e cidadania.

Visando alcançar os objetivos propostos foi utilizada como metodologia a pesquisa qualitativa com enfoque bibliográfico. Sendo assim, este texto fundamentou-se nos seguintes teóricos: Soares (2013), Ferreiro (2012), Libâneo (2012), Freire (2001), Severino (2007) e Mortatti (2013).

O presente artigo está dividido em quatro seções. Na pri-meira seção foi feita uma breve contextualização do tema, a justificativa, o problema que este estudo buscou responder, os objetivos propostos, os teóricos que fundamentam esta pesquisa e a metodologia utilizada. A segunda seção procura identificar as políticas públicas nascidas e/ou influenciadas pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos de Jomtien (1990) bem como pelos demais acordos que o sucederam, tendo como foco o problema da alfabetização no Brasil, analisando seus impactos a partir de dados estatísticos produzidos nos últimos

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anos. A terceira seção propõe uma reflexão sobre a relação entre alfabetização e cidadania. Na quarta e última seção são apresentadas as considerações finais.

A DECLARAÇÃO MUNDIAL SOBRE EDUCAÇÃO PARA TODOS E SEUS DESDOBRAMENTOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL

Apesar de se constituir como anseio das sociedades letradas, principalmente a partir da Idade Moderna, a univer-salização da educação só é considerada direito humano que deve ser garantido a todos, por meio de iniciativas mundiais (alavancadas por lutas e reivindicações diversas, como a Revo- lução Francesa, por exemplo) no início do século XX. Nesse contexto, a alfabetização é declarada como “base da educação e da aprendizagem ao longo da vida” e “pré-requisito para a paz mundial” (MORTATTI, 2013, p. 18).

Assim, visando reafirmar e assegurar a efetivação desses direitos humanos, diversos países, membros de organismos multilaterais, firmaram ao longo da segunda metade do século XX e início do século XXI, diversos compromissos (a exemplo do Ano Internacional da Alfabetização em 1990, Declaração de Jomtien (1990), Declaração de Dakar (2000), Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) (2000), Década das Nações Unidas para a Alfabetização (2003-2012), entre outros), esta-belecendo metas globais e, implementando para tanto, diver-sas ações. Segundo Mortatti, “Esse movimento assumiu nova configuração com as transformações sociais e reorganização da ordem mundial no contexto político e econômico pós Guerra Fria, acompanhada da expansão do processo de globalização e das políticas neoliberais.” (MORTATTI, 2013, p. 18).

A Declaração de Jomtien (1990) é, certamente, dentre outros acordos internacionais bastante propagados, um dos mais emblemáticos desse movimento mundial. Nesta seção, são apresentadas algumas das principais ações e programas de políticas públicas adotadas no Brasil em consonância com esse documento, observando-se os impactos das mesmas a

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partir da análise de dados estatísticos que traçam um panorama do analfabetismo no Brasil na atualidade, bem como uma dis-cussão sobre os interesses políticos e econômicos subjacentes aos acordos, a partir de teóricos como Libâneo (2012), Mortatti (2013) e Severino (2006).

À Conferência que produziu a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (EPT) em Jomtien, documento histórico que vem norteando políticas públicas em todo o mundo, suce- deram outras conferências nos anos posteriores, como a de Nova Delhi (1993), Salamanca (1994) e Dakar (2000), dentre outras, todas buscando reafirmar os compromissos já assumidos na primeira Conferência Mundial, bem como ampliar as discussões para outros aspectos da educação, como a Educação Inclusiva (Salamanca), além de também avaliar as ações realizadas para o seu cumprimento, como em Dakar (2000).

A partir da EPT (1990) e dos acordos assinados poste-riormente nas demais conferências, os países signatários têm, teoricamente, o dever de efetivar os compromissos assumidos por meio de adoção de políticas públicas para este fim. O anal-fabetismo nos países industrializados ou em desenvolvimento é um dos principais problemas apontados pela Declaração Mun-dial sobre Educação para Todos (1990), que traz como objetivo primeiro “satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem”, sendo a aprendizagem da leitura essenciais nesse processo:

1. Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as oportuni-dades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver ple-namente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desen-volvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar

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decisões fundamentadas e continuar aprendendo. (UNESCO, 1990,p.?)

Cabe a cada país e a cada cultura, porém, definir a ampli-tude das necessidades básicas de aprendizagem e a maneira de satisfazê-las no decorrer do tempo. Contudo, fica evidente neste objetivo que ler e escrever são instrumentos indispensáveis para uma vida digna e de qualidade.

Na Conferência de Dakar (2000), ao se depararem com os inócuos resultados atingidos após dez anos da Conferência de Jomtien, 164 países (dentre eles o Brasil) assinaram um novo acordo, estipulando o ano de 2015 como prazo para o alcance de seis metas, sendo duas dessas estreitamente relacionadas ao problema do analfabetismo:

Atingir, em 2015, 50% de melhora nos níveis de alfabetização de adultos, especialmente para as mulheres, e igualdade de acesso à educação funda-mental e permanente para todos os adultos. [...]Melhorar todos os aspectos da qualidade da educação e assegurar a excelência de todos, de modo que resultados de aprendizagem reconhecidos e men-suráveis sejam alcançados por todos, especialmente em alfabetização, cálculo e habilidades essenciais para a vida. (UNESCO, 2000, p. 19 e 20)

A redução do analfabetismo e a melhoria da qualidade da educação ainda precisarão ser perseguidas por muito tempo, pois o ano de 2015 já chegou e, como veremos mais adiante, muito ainda há por ser feito, principalmente pelo Brasil.

O Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003) foi o primeiro documento oficial brasileiro resultante da Declaração de Jomtien, elaborado no governo de Itamar Franco. Em sua introdução, o Plano Decenal de Educação para Todos (1993) destaca a participação do Brasil na conferência, ressaltando que da mesma resultaram posições consensuais, sintetizadas na Declaração de Jomtien, que devem constituir as bases dos planos decenais de educação, principalmente dos países de

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maior população no mundo, signatários desse documento. Ressalta ainda que, “Integrando este grupo, cabe ao Brasil uma responsabilidade expressiva nos esforços mundiais para assegurar à sua população o direito à educação — compromis-so, aliás, reafirmado e ampliado em sua Constituição de 1988” (BRASIL, 1993, p.11).

O documento observa que, embora o país já venha ado- tando iniciativas no âmbito do Ensino Fundamental, faltava a integração das três esferas do Poder Público (Federal, Estadual e Municipal) numa política de educação para todos. Porém, muitas ações de caráter inovador se espalhavam pelo país, visando à universalização com qualidade da educação bási-ca. Assim, o compromisso de Jomtien encontrava favoráveis condições para a concretização de suas metas na elaboração de um plano (BRASIL, 1993, p.11). O Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003) praticamente reproduz a Declaração de Jomtien (1990).

De acordo com Libâneo (2012), o conteúdo da Conferência de Jomtien se fez presente em diversas políticas e diretrizes para a educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1999-2002), assim como no Governo Lula (2003-2006; 2007-2010), como os Parâmetros Curriculares Nacionais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96, políticas do livro didático, etc.

Especificamente no campo da alfabetização, podemos de-stacar como políticas públicas influenciadas e/ou concebidas a partir desses acordos, no âmbito da educação de jovens e adultos, o Programa Alfabetização Solidária, criado em 1997 visando reduzir os índices de analfabetismo prioritariamente entre os jovens de 12 a 18 anos, ou seja, entre os adolescentes, especialmente em territórios com menor IDH e maior número de analfabetos; o Programa Brasil Alfabetizado implantado em 2003 e ainda em vigor, que tem como um de seus objetivos “criar oportunidade de alfabetização a todos os jovens, adultos e idosos que não tiveram acesso ou permanência no ensino fundamental” (BRASIL, 2011, p. 8); e o Programa Nacional do Livro Didático para Educação de Jovens e Adultos – PNLD EJA cri-ado em 2009, objetivando a disponibilização de livros didáticos

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aos alfabetizandos e estudantes da EJA das escolas públicas com turmas de alfabetização e de ensino fundamental e médio, participantes do Programa Brasil Alfabetizado.

No âmbito da formação continuada de professores, podemos destacar o Programa de Formação de Professores Alfabetiza-dores (PROFA), concebido no governo de Fernando Henrique Cardoso no ano de 2001, amplamente difundido no país, en-volvendo professores da Educação Infantil às séries iniciais do Ensino Fundamental, mas abandonado pelo Governo Lula que implantou, no ano de 2008, o Pró-Letramento. Este programa de formação continuada para professores das séries iniciais do Ensino Fundamental, que, além da leitura e da escrita con-templava também a área da matemática, foi desenvolvido até 2013 quando teve o seu final antecipado para ser substituído por mais um programa, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) implantado em 2013, na atual gestão (Dilma Roussef), e que, assim como o programa antecessor, também contempla leitura, escrita e matemática.

Outra política adotada pelo Governo Lula que podemos destacar foi a ampliação do Ensino Fundamental de oito para nove anos, tendo como um dos seus principais objetivos, se-gundo documento oficial do MEC (BRASIL, 2009), estender os anos de estudo das classes populares, visando “assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de ensino, as crianças tenham um tempo mais longo para as aprendizagens da alfabe- tização e do letramento” (BRASIL, 2009, p. 5). Esta ampliação começou a se efetivar na maioria das redes de ensino do país a partir de 2007 e teve como prazo final o ano de 2010, apesar de já se constituir meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001, regulamentada com as Leis 11.114 de 16 de maio de 2005 e 11.274 de 6 de fevereiro de 2006, que definiram, então, a obrigatoriedade da matrícula da criança no ensino fundamental aos seis anos de idade e os termos da ampliação.

Em relação à avaliação da alfabetização, foi implantada pelo MEC, em 2008, a Provinha Brasil em consonância com o PNE (2001-2010), que expressa em uma de suas diretrizes a necessidade de alfabetizar as crianças até, no máximo, aos oito anos de idade, aferindo os resultados de desempenho por

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exame periódico específico. A partir de então, todas as crianças cursando o 2º ano de escolarização vêm sendo submetidas a esse exame duas vezes ao ano (no início do primeiro semestre e ao fim do segundo semestre), que tem por objetivo:

avaliar o nível de alfabetização dos educandos nos anos iniciais do ensino fundamental; oferecer às redes de ensino um resultado da quali-dade do ensino, prevenindo o diagnóstico tardio das dificuldades de aprendizagem; e concorrer para a melhoria da qualidade de ensino e redução das desigualdades, em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas diretrizes da educação nacional. 1

Com essa avaliação, o MEC pretende oferecer às escolas e às redes de ensino uma ferramenta de diagnóstico do processo de aprendizagem da leitura e da escrita das crianças no meio do ciclo de alfabetização, visando, assim, o redirecionamento do trabalho pedagógico em tempo hábil, procurando favorecer a alfabetização no “tempo certo”, ou seja, até os oito anos de idade.

E, bem recentemente, em 2013, mais uma avaliação foi implantada pelo MEC, a Avaliação Nacional da Alfabetização – ANA, que, vinculada ao PNAIC, envolve os alunos do 3º ano do Ensino Fundamental das escolas públicas (compondo também o Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB), sendo realizada a partir de então anualmente, tendo como objetivos principais:

i) Avaliar o nível de alfabetização dos educandos no 3º ano do ensino fundamental.ii) Produzir indicadores sobre as condições de oferta de ensino.iii) Concorrer para a melhoria da qualidade do ensino e redução das desigualdades, em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas diretrizes da educação nacional. (BRASIL, 2013, p. 7)

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À primeira vista parece que são muitas as ações e políti-cas implementadas no Brasil com a finalidade de erradicar o analfabetismo, e que os governantes das últimas décadas vêm efetivamente se empenhando para tal. Contudo, os dados estatísticos (Tabela 1) revelam que, embora o índice de anal-fabetismo no Brasil tenha caído, muito ainda há por ser feito.

TABELA 1: Taxa de analfabetismo de pessoas de 10 anos ou mais de idade

De 1992 a 2011, ou seja, num espaço temporal de 19 anos

houve uma queda do analfabetismo no Brasil de 8,54 pontos percentuais (um pouco mais de 50%) considerando a população de 10 anos ou mais de idade, o que corresponde a uma média inferior a 0,5% ao ano. Nesse passo, levaremos, teoricamente, ainda cerca de 16 anos para erradicar o analfabetismo no Brasil (descontando os dois anos que já se passaram após o último dado disponibilizado). Estamos, vergonhosamente, atrás da maioria de nossos vizinhos latino-americanos, pois, de acordo com o Anuário Estatístico de 2010 da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), agência da ONU, o índice de analfabetismo entre pessoas com mais de 15 anos no Uruguai foi de apenas 1,7%, na Argentina de 2,4%, no Chile de 2,9%, no Paraguai de 4,7%, na Venezuela de 4,8, na Colômbia de 5,9% e no Peru de 7,0, enquanto que no Brasil o índice foi de 9,6%, superando o índice da América Latina, que foi de 8,3%, alcançando a 7ª maior taxa de analfabetismo entre os 28 países da região.

Considerando a população de 15 anos ou mais, o índice de analfabetismo em 2012 voltou a crescer, segundo dados do IBGE. Enquanto em 2011 o percentual era de 8,6% da popu-lação total, correspondendo a 12,9 milhões de analfabetos, em 2012 esse número subiu para 13,2 milhões, o que corresponde a 8,7% da população.

Com relação ao analfabeto funcional, ou seja, pessoas que, embora saibam ler e escrever um enunciado simples, como um bilhete, por exemplo, não possuem habilidades de leitura e escrita (e também de cálculo) indispensáveis para garantir a sua participação na vida social em seus diversos âmbitos,

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como o trabalho, o lazer e a política, a situação é ainda mais preocupante, como podemos observar na tabela 2.

TABELA 2: TAxA DE ANALFABETISMO FUNCIONAL - BRASIL

Se, por um lado, os índices de analfabetismo absoluto (ou seja, de quem não desenvolveu as habilidades mínimas de leitura e escrita) de pessoas com 10 anos ou mais, apesar de inaceitáveis para um país como o Brasil, se encontrem menor que 10% desde 2006, a taxa de analfabetismo funcional vem se mantendo bastante alta, acima de 20% até 2009.

De acordo com Mortatti (2013), em 2012, segundo dados do Indicador de Analfabetismo Funcional (INAF), apenas um brasileiro em cada quatro domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática, mantendo-se praticamente inalterado esse índice nos últimos 10 anos.

Os dados apresentados acima apontam que ainda estamos produzindo muitos analfabetos nos dias de hoje e que a escola continua a oferecer uma educação de baixa qualidade às classes populares. Esses indicadores revelam a ineficácia das políticas públicas adotadas até aqui, que, visivelmente, vêm contribuindo para a manutenção do status quo, pois,

[...] enquanto a posse e o uso plenos da leitura e da escrita sejam privilégios de determinadas classes e categorias sociais – como têm sido – elas assumem papel de arma para o exercício do pod-er, para a legitimação da dominação econômica, social, cultural, instrumentos de discriminação e de exclusão. (SOARES, 2013, p. 58)

Ao que tudo indica os diversos programas e ações citados acima, elementos de políticas públicas elaboradas em cumprimento aos acordos internacionais que o país é signatário, não foram capazes de mudar efetivamente o panorama de analfabetismo nos últimos anos. Ainda temos um longo caminho pela frente.

Para Libâneo (2012), as políticas públicas adotadas pelo

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Brasil em consonância com os acordos internacionais em torno do movimento Educação para Todos, só “agravou a dualidade da escola pública brasileira atual, caracterizada como uma escola do conhecimento para os ricos e como uma escola do acolhi-mento social para os pobres” (p.13). Destaca o autor, que, “[...] a associação entre as políticas educacionais do Banco Mundial para os países em desenvolvimento e os traços da escola dua- lista representa substantivas explicações para o incessante declínio da escola pública brasileira nos últimos trinta anos” (LIBÂNEO, 2012, p. 13).

A origem do que o autor denomina de “escola para o aco- lhimento social” tem sua gênese na Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990) e nos demais documentos pro-duzidos sob o patrocínio do Banco Mundial, sendo recorrente, nos mesmos, o diagnóstico de que a escola tradicional, estando restrita a tempos e espaços precisos, seria incapaz de respon- der às novas exigências da contemporaneidade, oferecendo um conhecimento prático e operacional válido para toda a vida. O fracasso escolar seria também fruto do modo de funcionamento da escola tradicional (exames, provas, autoritarismo, conteúdos livrescos, reprovação), sendo, dessa maneira, necessário buscar uma escola mais flexível, que considerasse as diferenças psi-cológicas de ritmo de aprendizagem, bem como as diferenças sociais e culturais, novas práticas de avaliação escolar e melhor clima de convivência. Desse modo, a escola antes fundamen-tada no domínio do conhecimento, passa a ser encarada como escola de integração social, que valoriza o compartilhamento de diferentes culturas, o encontro e a solidariedade entre as pessoas (LIBÂNEO, 2012).

Libâneo (2012) nos chama a atenção para a aparente boa intenção das estratégias definidas na Declaração de Jomtien visando uma educação para todos, contudo, essas boas intenções precisam ser examinadas, atentando para as políticas globais defendidas pelos organismos internacionais para os países po-bres, como BIRD, UNESCO, BID, PNUD, UNICEF, destacando que muitos estudos relacionados ao tema já foram realizados por diversos teóricos, apontando que é possível afirmar que a Declaração de Jomtiem foi “encolhida” ao longo das diversas

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avaliações e revisões sofridas pela mesma em conferências e reuniões realizadas para esse fim, adequando-a a visão eco-nomicista do Banco Mundial (patrocinador das conferências), bem como de políticas neoliberais, sendo essa versão “encol-hida” a que acabou prevalecendo nos países signatários que a adotaram na formulação de suas políticas educacionais. Assim, com esse “encolhimento”, segundo Torres (2001) apud Libâneo (2012), passa-se:

a) de educação para todos, para educação dos mais pobres; b) de necessidades básicas, para necessidades mínimas; c) da atenção à apren-dizagem, para a melhoria e a avaliação dos resultados do rendimento escolar; d) da melhoria das condições de aprendizagem, para a melho-ria das condições internas da instituição escolar (organização escolar) (p.29).

Dessa forma, as necessidades básicas acabaram se trans-formando num conjunto primário e limitado de habilidades úteis para a sobrevivência e para as necessidades imediatas e mais rudimentares dos indivíduos.

De acordo com Severino (2006), o Brasil assim como todo o Terceiro Mundo é, a partir dos anos 1980, impelido a ingressar no novo processo de desenvolvimento econômico e social capitalista em franca expansão. A liberação das forças do mercado é o carro chefe das transformações exigidas, critican-do-se severamente o Estado de Bem-Estar Social, propondo, em contrapartida, um estado mínimo. E, ainda segundo o autor, para justificar o modelo imposto, faz-se necessário desencadear um processo ideológico, “apresentando-o como o único capaz de realizar os objetivos emancipatórios da sociedade e, nesse sentido, superando os anteriores” (SEVERINO, 2006, p. 302). Contudo, são valores proclamados, mas nunca realizados. Se-gundo Severino (2006),

[...] por meio da legislação e das medidas pro-gramáticas, o governo passa a aplicar políti-cas públicas que vão efetivando as diretrizes

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neoliberais, mais uma vez adiando e talvez invia-bilizando uma educação que possa ser mediação da libertação, da emancipação e da construção da cidadania. (p. 303)

Em virtude disso, prevalecem nas conclusões de estudio-sos da educação brasileira, segundo o autor, sentimentos de ceticismo e desesperança, uma vez que fica evidente que a escola, longe de produzir as transformações sociais necessárias, consolida e maximiza as transformações neoliberais em curso.

Coraggio (1996) apud Libâneo (2012) destaca que as políti-cas sociais do Banco Mundial têm por objetivo,

.[...] o investimento no desenvolvimento das pes-soas, ‘garantindo que todos tenham acesso a um mínimo de educação, saúde, alimentação, san-eamento’ (p. 77), de modo a assegurar políticas de ajuste estrutural que vão liberar as forças do mercado e acabar com a cultura de direitos uni-versais a bens e serviços básicos garantidos pelo Estado. Ou seja, as políticas sociais são elaboradas para instrumentalizar a política econômica, ‘em contradição com os objetivos declarados’. (p. 79).

A realidade nos mostra que, de fato, o objetivo desses investimentos é, antes de tudo, a ampliação do modo capitalista de produção, que apenas amplia os benefícios dos já abastados em detrimento dos menos favorecidos. Antes de cidadãos, o que se pretende formar é mão de obra barata e consumidores ativos.

CIDADANIA E ALFABETIZAÇÃO

Como Paulo Freire (2001, p.45) acredito que, “cidadão significa indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado e que cidadania tem que ver com a condição de cidadão, quer dizer, com o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão.”. Ou seja, para ser efetivamente um cidadão é preciso gozar dos direitos civis e políticos e mais do que isso, é ter o

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direito a ter deveres. Mas, qual a relação que podemos esta-belecer entre cidadania e alfabetização? Seria a alfabetização uma prática capaz de elevar os indivíduos à condição de cidadãos? Nesta seção, pretende-se fazer uma reflexão sobre a relação entre alfabetização e cidadania, seus limites e possibilidades.

Há muito se discute no Brasil sobre a importância do domínio da leitura e da escrita para o pleno exercício da cidadania. Essa preocupação, inclusive, se expressa nos principais preceitos legais do nosso país, a exemplo da Constituição Federal de 1988, que reza, em seu artigo 205 “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvi-mento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”.

Mais explicitamente, o artigo 214 do referido documento, ao tratar do estabelecimento do plano nacional de educação de duração decenal, que deve ter como objetivo “articular o siste-ma nacional de educação em regime de colaboração, definindo diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação” que assegurem a “manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades”, determina como sua primeira meta a “erradicação do analfabetismo” (BRASIL, 1988).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9.394/96, por sua vez, reafirma a importância do domínio da leitura e da escrita em seu artigo 32:

O ensino fundamental obrigatório, com duração de nove anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos seis anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. (grifo meu)[...]

É evidente que o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho perpassam pelo domínio da leitura e da escrita. Importante destacar, contudo, que seria reducionismo atribuir apenas ao analfabetismo a causa pela

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exclusão da cidadania, que tem fundamentos muito mais profun-dos a começar pela absurda desigualdade econômica que leva muitos sujeitos a viverem em condições materiais desumanas, sendo-lhes negados diversos direitos sociais, políticos e civis, constituindo a educação apenas um desses direitos. Coaduno com Soares (2013) quando afirma que,

Na verdade, a exclusão do agir e do participar politi-camente, longe de ser produto de uma “ignorância” causada pelo analfabetismo, pelo não acesso à leitura e à escrita, é produto das iniquidades so-ciais que, elas sim, impõem estreitos limites ao exercício dos direitos sociais, civis, políticos que constituem a cidadania. (p.56)

Não é por acaso, portanto, que ao lado das altas taxas de analfabetismo, repetência e evasão escolar se encontrem também altos índices de subnutrição, mortalidade infantil e baixas faixas salariais. Não é de se espantar, dessa forma, que, entre frequentar a escola e trabalhar para sobreviver, muitos fazem a opção mais lógica, relegando a escola para segundo plano (ou talvez último) e caindo num círculo vicioso do qual é difícil escapar, perpetuando uma vida de dificuldades e limites de toda natureza.

Segundo Paulo Freire (2001),

Que a alfabetização tem que ver com a identidade individual e de classe, que ela tem que ver com a formação da cidadania, tem. É preciso, porém, sa-bermos, primeiro, que ela não é a alavanca de uma tal formação – ler e escrever não são suficientes para perfilar a plenitude da cidadania –, segundo, é necessário que a tornemos e a façamos como um ato político, jamais como um que fazer neutro. (p.30)

Ou seja, saber ler e escrever não atribui a ninguém o status de cidadão. Dominar a língua escrita é importante sim, mas é preciso também participação política, econômica e cultural dos sujeitos. Nesse sentido, alfabetizar é também um processo políti-

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co, pois muito mais do que ensinar a “técnica” de ler e escrever, é possibilitar ao sujeito o acesso a condições de participação social, cultural e econômica na sociedade. É dar acesso a um bem simbólico que se constitui num capital indispensável na conquista de direitos e privilégios, “na luta pela participação no poder e nas instâncias culturais de lazer e de prazer; enfim, na luta pela transformação social” (SOARES, 2013, p. 59).

Assim, especialmente na contemporaneidade, não podemos negar o papel da alfabetização para construção da cidadania, onde o uso social da leitura e da escrita é cada vez mais exi- gido em praticamente todos os aspectos da vida cotidiana, se constituindo mesmo em instrumentos indispensáveis tanto para o trabalho como para o lazer.

Ferreiro (2012) nos lembra que,

Nas primeiras décadas do século XX parecia que “entender instruções simples e saber assinar” era suficiente. Mas no final do século XX e princípio do XXI esses requisitos são insustentáveis. Hoje em dia os requisitos sociais e de trabalho são muito mais elevados e exigentes. Os navegantes da In-ternet são barcos à deriva se não souberem tomar decisões rápidas e selecionar informação. (p. 18)

E cada vez mais a evolução da tecnologia exige sujeitos com níveis de compreensão mais elaborados e complexos. É um caminho sem volta e quem não tiver a possibilidade de acom-panhar essa evolução inevitavelmente será penalizado. Nesse sentido, aos analfabetos é tirado o direito de voz, de participação efetiva que garante a cidadania e uma vida social digna.

As políticas públicas adotadas até aqui, tanto no âmbito da escola regular quanto na alfabetização de adultos não têm contribuído efetivamente para a formação de cidadãos, como pregam os preceitos legais e os discursos dos governantes. No máximo, estão permitindo que se aprenda a “técnica” de ler e a escrever, mas não garantem a apropriação efetiva da leitura e da escrita como bem simbólico de uso político, social e cul-tural. Para Soares (2012) a introdução da criança e do adulto no mundo da escrita tem sido feita não para liberar o exercício

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da cidadania, mas, ao contrário, para controlá-lo, regulá-lo, não levando os indivíduos (das classes trabalhadoras) além dos limites de seu mundo. Desse modo, a alfabetização tem como objetivo, tornar o indivíduo mais produtivo ao sistema e não torná-lo cidadão que usa todo o potencial desse conhecimento para a transformação de sua realidade.

Compreender esse panorama, identificando o viés ideológico e político que subjazem às políticas públicas de alfabetização é o desafio de todos os profissionais envolvidos direta ou indire-tamente com a alfabetização de crianças, jovens e adultos no Brasil. Tarefa difícil, mas necessária se desejamos efetivamente fazer da alfabetização um caminho para o exercício pleno da cidadania.

CONSIDERAÇõES FINAIS

A partir do exposto, os dados evidenciam que o Brasil, apesar de se constituir, atualmente, como a 6ª potência (já é a 7) econômica mundial, segundo o ranking do Banco Mundial, se encontra entre os últimos países em nível de escolaridade, onde os alunos, das classes populares em especial, demonstram um desempenho extremamente insatisfatório nas competências leitora e escritora e altos índices de analfabetismo. Países mais pobres que o nosso apresentam um desempenho bem supe- rior, o que pode significar que, muito mais do que ausência de recursos econômicos, o que falta mesmo ao Brasil é vontade política para alteração deste quadro.

Embora se apresente como um preceito legal definido em duas importantes leis brasileiras, Constituição Federal de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9.394/96, e supostamente perseguida pelos projetos de governo de 1990 até hoje, em consonância com diversos acordos internacionais assinados, a alfabetização plena de todos os brasileiros continua longe de ser alcançada. Por trás das supostas boas intenções desses acordos constata-se que acabam prevalecendo in- teresses econômicos que, ao contrário do que se prega, não é a cidadania que se busca alcançar com a garantia da alfabetização

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a todos, mas alimentar o atual sistema de produção capitalista para o qual não interessa indivíduos dependentes do Estado e muito menos sujeitos críticos, cientes de seus direitos e das injustas desigualdades sociais, culturais e políticas.

Nesse contexto, compete à educação, especialmente a todos os educadores e educadoras comprometidos com a efe-tiva formação de sujeitos capazes de exercer plenamente sua cidadania, um papel fundamental na alteração deste panorama. Contudo, sabemos que esta é uma tarefa difícil, pois,

Coagida pela pressão das determinações objeti-vas, de um lado, e pelas interferências subjetivas, de outro, a educação é presa fácil do enviesamento ideológico, que manipula as intenções e obscurece os caminhos, confundindo objetivos com interes- ses. (SEVEREINO, 2006, p. 305-306)

Compreender os interesses diversos que perpassam as políticas públicas é, de fato, um desafio, especialmente para quem está mergulhado nos inúmeros dilemas do cotidiano esco-lar. Mas não podemos perder de vista que, se cabe à educação inserir os indivíduos na cultura de sua sociedade, cabe também, e contraditoriamente, municiá-los para criticá-la e superá-la.

PUBLIC POLICIES FOR ERADICATION OF ILLITERACY IN BRAZIL AND ThE INFLUENCE OF INTERNATIONAL AGREEMENTS OF EDUCATION

aBSTRacT — The general objective of this study is constituted in analyzing the public policies adopted in Brazil in the context of basic education aiming at eradicating illiteracy, influenced by international agreements in which our country is a signatory, in particular the World Declaration on Education for All: the satisfaction of the Basic Learning Needs, of 1990. the methodology was qualitative research with bibliographic approach, based on the following theorists: Soares (2013), Ferreiro (2012), Libâneo (2012), Severino (2007), Freire (2001) and Mortatti (2013). With this work concludes that the various public policies adopted in Brazil in line with the international education agreements are imbued with political and economic interests not declared

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and shows itself ineffective especially as much diffused are the full formation of the citizen.

KEy wORdS: International Agreements of Education, Literacy, Public Policy.

REFERÊNCIAS

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MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Um balanço crítico da “Década da alfabetização” no Brasil. Caderno CEDES. Alfabetização: dimensões políticas, pedagógicas e práticas. V. 33, n. 89, p. 15-34, jan.-abr. 2013.

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SEVERINO, Antonio Joaquim. Fundamentos ético-políticos da educação no Brasil de hoje. In: LIMA, Júlio César F.; NEVES, Lúcia Maria W. (Org.). Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâ-neo. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006.

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(Endnotes)

1 Informações disponíveis no site do INEP < http://portal.inep.gov.br/web/provinha-brasil/objetivos > acessado em 03 de janeiro de 2014.

Atualizar o acesso e ver o que mudou, se mudou.

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CAUSAS DA EFICÁCIA DO SUCESSO ESCOLAR NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM EM UMA ESCOLA DE ÉVORA - PORTUGAL

Elvira Maria Portugal Pimentel Ribeiro*Solange Mary Moreira Santos**

RESUMO — O presente estudo tem como objetivo principal analisar as causas de eficácia do Programa Mais Sucesso Escolar (PMSE), tipologia Fênix em uma escola da cidade de Évora, Portugal. Para isso, buscou o apoio teórico das discussões sobre políticas públicas e insucesso. A partir do referencial teórico foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa utilizando observação par-ticipante, entrevista e análise documental. A análise dos dados apontou para o surgimento de quatro categorias: autonomia concedida à escola pelo PMSE, o trabalho de equipe em busca de um objetivo comum, a individualização do ensino fornecida pela “Turma Fênix” e os conceitos de sucesso atribuídos ao programa. Os dados permitiram perceber a importância da autonomia e do trabalho de equipe para um bom desenvolvimento das políticas públicas na instituição, bem como a relevância da estrutura organizacional da Turma Fênix e do conceito de sucesso atribuído ao programa, para melhoria na qualidade das aprendizagens.

PalavRaS-chavE: (In)sucesso Escolar; Políticas educativas; Autonomia.

As transformações educacionais voltadas para os princípios como os da obrigatoriedade, igualdade e equidade (PORTUGAL, 1986) são apontadas como desencadeadoras indiretas do in-sucesso escolar. É curioso pensar como que esses princípios que objetivam a melhoria da educação podem ser responsáveis, mesmo que indiretamente, pelo insucesso escolar. Isso se dá principalmente porque com a expansão do sistema educativo e

* Pedagoga da Universidade Estadual de Feira de Santana. E-Mail: [email protected]

** Doutora em Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana. E-Mail: [email protected]

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maior demanda de alunos, a escola continuou acreditando que todos teriam as mesmas condições de acesso, de acompanha-mento e de permanência. Porém esqueceu-se de levar em conta as diferenças sociais, culturais e pessoais, renegando por bom tempo essa diversidade, não desenvolvendo políticas públicas de inclusão no sistema educacional de forma igualitária.

Com o passar dos anos “os objectivos da educação mu-daram muito e com isso mudaram também os desafios que a escola enfrenta” (RODRIGUES, 2011, p.12). Por isso, a ideia de que alunos aprendem e se desenvolvem homogeneamente fez com que grande parte deles ficasse para trás, gerando um processo de repetência contínua e evasão escolar.1

A inquietação quanto à qualidade da educação no Brasil despertou nas pesquisadoras o desejo de conhecer melhor o programa português “Mais Sucesso Escolar”, implementado em Portugal, no ano de 2009. O referido programa é fruto de uma política pública do país que tem como propósito combater os crescentes índices de retenção escolar. Tem como principais ideias matriciais: “o ciclo de estudos como unidade de análise; a melhoria das condições das organizações escolares de en-sino e aprendizagem; a melhoria de resultados escolares; e o desenvolvimento de mecanismos de coordenação e regulação inter-escolas” (VERDASCA, 2010, p.119).

O Programa Mais Sucesso Escolar (PMSE) foi então es-colhido como objeto deste estudo por apresentar um fator dife- rencial no seu princípio metodológico. Esse princípio se baseia na reorganização das turmas e na criação de turmas de apoio, que funcionam no mesmo horário das aulas, com a finalidade de fazer o acompanhamento mais individualizado dos alunos. A partir dessa configuração metodológica, o programa objetiva: a melhoria da qualidade do ensino na turma; diminuição da taxa de reprovação e de abandono escolar; o crédito, a confiação e fidelidade de pais e alunos (VERDASCA, 2010).

O PMSE se caracteriza como uma medida de promoção do sucesso escolar. Para tanto, o governo fez um contrato de quatro anos com as escolas, disponibiliza um apoio financeiro denominado crédito horário, para que o projeto seja desenvolvido em uma turma que a instituição julgue mais necessitada. Em

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contrapartida, a escola se compromete em elevar em um terço o nível de sucesso nas turmas em que são desenvolvidos os projetos, bem como, apresentar e divulgar seus resultados e suas boas práticas integrando a rede de escolas Mais Sucesso. As escolas que não cumprem a meta estabelecida ao final de um ano, não recebem mais o apoio financeiro do governo para realizar o projeto na turma selecionada.

O PMSE é subdividido em três grandes projetos: Turma Mais, Turma Fênix e Turmas Híbridas. Esses projetos consistem na criação de turmas de apoio que funcionam simultaneamente com as turmas regulares dos alunos que necessitam de um apoio mais especializado e se diferenciam, principalmente, pelo esquema de organização dessas turmas.

O projeto Turma Mais abrange todos os alunos da sala, que passam pelo menos uma vez no ano letivo por esta turma, já na turma Fênix só são contempladas as crianças que apresentam dificuldades de acompanhamento da matéria e notas abaixo da média da sala. O modelo Híbrido é, por conseguinte uma terceira modalidade em que, ainda que não sejam executadas as práticas dos outros dois projetos em sua totalidade, são utilizados os ideais e os princípios de ambos para referenciar e sustentar esse terceiro modelo, não definido como nenhum dos anteriores.

A instituição tem autonomia para escolher a turma, a ti-pologia, bem como o modo de aplicação do crédito recebido, podendo, por exemplo, contratar outro professor para o projeto, ou ainda distribuir a referida carga horária entre os professores das turmas ou eleger um funcionário da própria escola para ser o professor do projeto. As instituições também podem modificar esses projetos adequando-os às necessidades.

A Turma Fênix, que será estudada nesta pesquisa, também chamada de ninho, por ser o espaço em que o aluno é prepa-rado para alçar voos sozinho, consiste de pequenos grupos de 5 a 7 alunos, que em algumas disciplinas, em regra Português e Matemática. Os alunos saem da turma no respectivo horário para trabalharem as dificuldades em alcançar determinadas competências estabelecidas para essas matérias. Os discentes recebem uma atenção mais individualizada “que dificilmente

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conseguiriam se se mantivessem na turma de base” (ALVES, 2011, p.80). No entanto, uma vez por semana permanecem em sua sala, para que haja um acompanhamento da professora regente sobre o desenvolvimento do mesmo e as possibilidades de reiteração a turma em todos os horários. Este projeto apre-senta melhor adequação ao primeiro ciclo.

A Turma Fênix é, portanto, transitória, os alunos permanecem nela até serem avaliados pelos professores e coordenadores como aptos a alçarem sozinhos seus vôos. A avaliação acontece geralmente de três em três meses. Nesse procedimento, são analisadas as evoluções e a capacidade dos alunos de acom-panhar o desenvolvimento da disciplina na sala de aula regular. Considera-se ainda, para a saída do aluno da turma Fênix, a autoavaliação da criança acerca do seu próprio desenvolvimen-to nas atividades escolares. A criança pode voltar a integrar o ninho no decorrer do ano, em qualquer momento do trimestre, pois assim como saem alunos, outros podem também entrar desde que apresentem dificuldades,

Nesse sentido, esta pesquisa se desenvolveu objetivando principalmente analisar as causas da eficácia do programa “Mais Sucesso Escolar – Tipologia Fênix” em uma escola da cidade de Évora, Portugal. Esse estudo foi realizado no período de 2011-2012. Buscou-se também refletir sobre as políticas públi-cas na educação, bem como sobre os conceitos das expressões sucesso e insucesso escolar, procurou-se ainda conhecer o processo de implementação e funcionamento do projeto Fênix, refletindo acerca das opiniões dos docentes e coordenadores sobre o conceito de sucesso que atribuem ao projeto.

Os sujeitos da pesquisa foram: o coordenador (CO), as professoras do 4º ano2 “A” e “B” (P1 e P2 respectivamente), a professora da “Turma Fênix” (PF), a coordenadora do projeto na instituição (CF) e um ex-diretor regional do PMSE de Portugal (DR). Alguns alunos participaram tanto da Turma Fênix de Língua Portuguesa quanto da de Matemática. Assim, os alunos B, C, D, E e F frequentam a turma Fênix de Matemática e os alunos A, B e F a de Língua Portuguesa. Dentre eles quatro já tiveram experiência na turma Fênix em outros anos (A, C, E e F) e dois estão frequentando pela primeira vez (B e D).

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De acordo com o horário fornecido pela instituição, existem 10 aulas semanais de Português, das quais, seis os alunos assistem na turma Fênix. Nas outras quatro aulas, as crianças permanecem na sala de aula regular, para que as professoras percebam os seus avanços. Na disciplina de Matemática, das nove aulas semanais, seis são realizadas na turma Fênix e três na turma regular.

Nesta pesquisa foram utilizadas as observações sistemáti-cas, as entrevistas semiestruturadas e a análise documental como técnicas de coletas de dados. Ao final desse período de coleta e análise simultâneas, os dados foram agrupados em categorias através da “verificação sistemática dos temas que se repetem com vistas ao estabelecimento de relações entre os fatos e possíveis explicações” (GIL, 2010, p.123). Assim, os dados obtidos convergiram para o surgimento de quatro grandes categorias de análise, as quais indicam as possíveis causas da eficácia do programa na escola são elas: A autonomia conce-dida à escola pelo PMSE, o trabalho de equipe em busca de um objetivo comum, a individualização do ensino fornecida pela “Turma Fênix” e os conceitos de sucesso atribuídos ao programa.

Estas categorias serão discutidas com base nos dados ob-servadas e referenciais relacionados às questões do insucesso escola. Para tanto, se faz necessário anteriormente uma fun-damentação teórica acerca dos conceitos de sucesso levados em consideração durante este estudo.

POLÍTICA EDUCACIONAL DE COMBATE AO INSUCESSO: DE qUE POLÍTICA E SUCESSO SE ESTÁ FALANDO?

As políticas públicas se configuram como um conjunto de decisões e ações do governo com o objetivo de solucionar os problemas da sociedade e promover o bem-estar social. Filho (1976) explica o conceito de política a partir de duas palavras em inglês politics e policy, isto porque em português utilizamos apenas a palavra política para designar ambos os termos. Para o autor,

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[…] se a politics define rumos imperativos, de tudo abrangentes, as policies se graduam nos vários graus da ação política e da administração, propriamente dita, segundo níveis de responsabilidade na ação de dirigir ou coordenar os serviços públicos (FILHO, 1976, p. 93).

Assim, o autor reflete que “a política, num sentido geral, estabelece propósitos e tendências gerais de ação, ou as bases programáticas a desenvolver, em diretrizes e normas gerais, normalmente expedidas por certo poder político, o legislativo” (FILHO, 1976, p.95).

No entanto, pensar uma política pública como diretriz para alcançar uma finalidade remete a necessidade de uma reflexão acerca das origens e estruturação dessa política, pois nesses pontos estão presentes grandes conflitos que, por vezes, não permitem a sua eficácia nos contextos educativos.

Um primeiro aspecto que merece atenção, diz respeito ao ideário econômica a que uma política está atrelada, um segundo a constituição dessas políticas a partir do contexto macro, para então ser levada para o micro e um terceiro está ligado à forma de “execução” das políticas pelas pessoas que a “recebem”.

Ball (2011) vê na política uma oportunidade do contexto mi-cro (escolas e sujeitos) criar respostas aos problemas impostos por determinada política. “As políticas normalmente não dizem o que fazer, elas criam circunstâncias nas quais o espectro de opções disponíveis sobre o que fazer é reduzido ou modificado ou em que metas particulares ou efeitos são estabelecidos” (BALL, 2011, p. 45, 46).

Assim, a criação de políticas públicas que sejam efetivas na melhoria da qualidade escolar, deve perpassar pela pesquisa do contexto micro, realizada preferencialmente por profission-ais da educação (professores, coordenadore ou gestores) que conhecem as especificidades da escola e juntamente com a participação popular delineiam as necessidades e objetivos para que a escola garanta o direito de uma educação de qualidade para todos.

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Uma das necessidades da escola é a obtenção do sucesso escolar dos alunos. O conceito de sucesso normalmente está atrelado aos índices obtidos em exames de larga escala, porém essa não é a única dimensão em que se pode analisá-lo. Perre-noud (2003, p. 14) ressalta que “não existe nenhuma definição institucional de sucesso na vida”. No entanto, o autor afirma que “tudo muda quando se trata de sucesso escolar” (PERRENOUD, 2003, p. 14). Essa mudança se dá principalmente porque existe o ideal de excelência escolar constituído social e culturalmente “o sucesso ou fracasso escolares são devidamente estabeleci-dos e proclamados pelo sistema educacional” (PERRENOUD, 2003, p. 14).

Segundo Mota (1993, p. 113) “o insucesso como é defenido na lei, ou seja, o número de reprovações finais do ano lectivo, esconde outros insucessos ao longo do ano lectivo”. O autor afirma assim que o sucesso referente a não ficar retido, nem sempre representa que o ano letivo de total sucesso para os alunos. A aprovação no fim do ano, muitas vezes esconde as lacunas deixadas durante todo o ano letivo.

Azevedo (2011, p.07) refletindo no campo dos sucessos, afirma que existe também “uma multiplicidade de sucessos escolares”. Perrenoud (2003) corrobora a ideia de Azevedo (2011) quando diz que o sucesso escolar é compreendido em dois sentidos gerais: um associado ao desempenho dos alunos na obtenção de êxito, ao satisfazer as normas de excelência escolar; e outro que designa o sucesso de um estabelecimento ou sistema escolar, ligado ao alcance dos objetivos das institui-ções e as listas de classificação das escolas, que as comparam.

Conhecendo esses dois sentidos é perceptível que não se podem confundir os ideais de sucesso pessoais e aqueles que são estabelecidas pelas instituições escolares, já que “um aluno que a escola declara insatisfatório pode não se considerar assim de acordo com seus próprios critérios” (PERRENOUD, 2003, p.15). No entanto, a definição institucional é o que prevalecerá para o encaminhamento escolar do aluno, submetendo-o aos seus efeitos, mesmo que o aluno tenha consciência de seu sucesso pessoal. “Cada um, não importa qual seja sua convicção íntima, está “atrelado” à definição institucional quando se trata

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de progredir no curso, de ter acesso a carreira de formação exigente ou de obter um diploma” (PERRENOUD, 2003, p.15).

Apesar das taxas que rotulam os alunos serem provenientes de avaliações externas de grande escala, as quais não levam em consideração os mais variados contextos, nem as especifi-cidades dos alunos, elas são objeto de crítica e comparação na sociedade. Nesse sentido, a dimensão de insucesso atribuída principalmente aos índices obtidos através de exames padroni-zados, orienta às principais discussões teóricas e a criação de políticas públicas que visam à diminuição dos índices de reprovação e o alcance do almejado sucesso da instituição.

Nesse sentido, a classificação como finalidade principal da avaliação reduz, e muito, as possibilidades desse procedimen-to. A classificação pode existir, no entanto não deve ser o foco principal para definição de sucesso dos alunos. Na criação de medidas de combate ao insucesso, para além da classificação final devem ser considerados os caminhos percorridos pelos alunos individualmente, pois uma análise centrada no aluno permite a descoberta de medidas que possam ajudá-lo a superar dificuldades pessoais e a conquistar antes de qualquer coisa, o seu sucesso.

Dentre as medidas pensadas para combater o insucesso existem as que defendem a diminuição das turmas e/ou homo-geneização como fatores preponderantes para a melhoria da qualidade das aulas e consequente aumento dos índices de desenvolvimento dos alunos. Há ainda as que apontam para a criação de grupos com necessidades específicas, ou dis-positivos de individualização da aprendizagem como os meios mais eficazes para solucionar os baixos índices nas escalas de comparação em nível mundial, nacional, estadual e municipal (CRAHAY, 2007). Essas medidas apontam para a dimensão do sucesso que envolve a qualidade na educação, considerando, portanto os índices para desenvolver estratégias de melhoria do ensino e da aprendizagem dos alunos.

Nesse sentido, muitos são os estudos que corroboram e muitos os que se contrariam na tentativa de produzir metodologias que melhorem os índices e possibilitem aos alunos alcançarem o sucesso institucional e também pessoal. A partir destes estudos,

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o PMSE foi criado para traçar estratégias em função de buscar a melhoria da qualidade da educação portuguesa, para assim, alcançar a elevação dos índices de aprovação.

Os próximos tópicos consitem em quatro categorias apon-tadas como as possíveis causas da eficácia do programa “Mais Sucesso Escolar – Tipologia Fênix” em uma escola da cidade de Évora, Portugal. Vale ressaltar, que esta pesquisa não busca emitir comparações entre os países nem exprimir soluções para os problemas da qualidade do sistema educativo brasileiro. No entanto, busca analisar dados que evidenciam a eficácia de um programa em outro país. Dados esses, que podem contribuir também para a criação futura de políticas públicas no Brasil.

A AUTONOMIA CONCEDIDA à ESCOLA PELO PMSE

A autonomia da escola, no que diz respeito ao gerencia-mento de verbas e organização funcional e pedagógica é de fundamental importância para a construção identitária da ins-tiuição. No entanto, muitas vezes, as políticas governamentais interferem diretamente nesta autonomia, “ditando” as formas de execução dos projetos na escola, pensadas pelo governo. No que se refere ao PMSE isso não aconteceu, visto que:

[…] este programa quer partir de baixo para cima, ou seja, quer no fundo que sejam as escolas a projetar soluções e projetar respostas no quadro de sua autonomia curricular, no quadro de sua autonomia pedagógica, no quadro de alguma autonomia de gestão de recursos humanos e com algum estímulo que o Ministério (da Educação) depois também disponibiliza (CR).

O depoimento acima do ex-coordenador regional do pro-grama que foi também um dos fundadores do PMSE no âmbito nacional reflete sobre a importância da concessão de autonomia para que as instituições sintam-se livres para decidir a melhor forma de alcançar determinado objetivo. No caso do PMSE, a meta é a redução em 1/3 dos níveis de insucesso escolar, que

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pode ser alcançada de maneira autônoma pela escola. Sobre a elevação da referida redução do insucesso, o Ministério da Educação Português, “explica o que é que se pretende e como é que se pretende. No fundo se explicam os termos do contrato, mas nunca nenhuma intervenção do ponto de vista das propostas” (CR). São apresentados dois exemplos, o modelo Turma Mais e o Fênix e a escola a partir do que considera necessário ao seu contexto, pode organizar-se ou não em torno desses modelos, ou criar uma nova organização pedagógica, desde que alcance a meta proposta pelo governo.

Apesar da possibilidade de criação de projetos próprios, foi grande adesão pelos programas já estruturados Turma Mais e Fênix, isso se deu talvez pelo “facto de se reconhecer e apontar como exemplo inspirador, outras experiências organizacionais pedagógicas iniciadas e afirmadas em escolas” (VERDASCA, 2011, p.35). Isto porque, os projetos apresentados são frutos de uma criação em micro-contexto, ou seja, não surgiram das imposições do governo, mas da realidade educacional portuguesa e foram apresentados a todo o país após revelarem resultados significativos. Libâneo (2008, p.77) faz uma reflexão acerca das construções das políticas públicas dizendo que:

[…]arrisco afirmar que, em boa parte, as políticas educacionais vêm fracassando porque elas não partem da realidade escolar, de políticas voltadas diretamente às escolas, à aprendizagem dos alunos, vigorando, ao contrário, um modo de ver o ensino ora burocrático, ora “sociologizado”, ora “politiza-do”, tal como atualmente reincide um modo de ver “economicizado.

Na tentativa de alcançar as metas através da melhoria da qualidade da educação, a escola decidiu pela contratação de uma professora para desempenhar as atividades da turma Fênix. O projeto Fênix foi escolhido na escola, por apresentar melhor adequação ao primeiro ciclo. As respostas no primeiro ano de implementação foram tão positivas no agrupamento, que as escolas decidiram estender o Fênix a outras turmas.

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Assim, na referida escola, desde o período letivo de 2010/2011, o projeto abarca todas as turmas do segundo até o quarto ano do primeiro ciclo, sendo apenas um desses anos contratualizado pelo governo. A escola recebe verba extra apenas para a efetivação do projeto em um ano de escolaridade, nos demais, a coordenadora do projeto Fênix e o coordenador da instituição que tinham horário de apoio livre, transformaram-se em professores Fênix, flexibilizando a sua carga-horária para atender aos demais anos de escolaridade.

Este envolvimento e o trabalho de equipe realizado na instituição se configuram como o segundo ponto de discussão dessa análise, já que apareceu em muitas falas da entrevista como fator primordial para que as atividades do PMSE fossem desenvolvidas de maneira eficaz.

O TRABALhO DE EqUIPE EM BUSCA DE UM OBjETIVO COMUM

A autonomia discutida no tópico anterior está estritamente ligada com a autonomia interna da instituição e, por conseguinte, com a gestão ali praticada. Somente uma instituição com gestão democrática é capaz de alicerçar tão bem a autonomia de seus trabalhadores, pois os gestores continuam assumindo seu papel. Contudo, a comunidade escolar é convidada participar deste processo, sentindo assim parte importante e essencial nas construções realizadas na instituição (MELO, 2001).

Durante todo o período que compreendeu a pesquisa era notório o grande envolvimento dos docentes, coordenadores e alunos no projeto, tendo em vista que a escola mostrou-se engajada na busca da melhoria da qualidade da educação. Durante a entrevista CF apontou como um ponto positivo “a cooperação entre os docentes e partilha do trabalho. Eu acho que o trabalho de grupo enriquece qualquer um, são debatidas as idéias, há articulação, há partilha de materiais, há partilha de idéias, tudo isso”. Pimenta (2002, p. 73) reflete sobre esse a importância do referido trabalho em grupo afirmando que:

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Trabalho coletivo significa tomar a problemática da escola coletivamente com base na individualidade de cada um, em direção a objetivos comuns, consensua-dos e contratados, entre professores e professores, estes e os alunos, estes entre si, todos e a direção, e os pais. É nesse coletivo que se constrói a identidade e exercita a autonomia da escola.

O PMSE requer essa união e consequente partilha de responsabilidades, como constatado na fala dos docentes ao explicarem os mecanismos de entrada e saída das crianças no Ninho. Todos os entrevistados declararam que no início do ano era feito um diagnóstico da turma e, em equipe, se decid-ia quais alunos precisavam de um apoio mais individualizado. A permanência do aluno no ninho exigia um grande trabalho de equipe, pois os conteúdos das duas turmas deveriam estar equiparados para facilitar o desenvolvimento da turma Fênix . Portanto, o planejamento era feito em reunião pelas três profes-soras. Sobre o desenvolvimento desse trabalho as professoras P1 e PF afirmaram que:

[…]nós procuramos sempre que o trabalho desen-volvido na turma ninho esteja de acordo com o que está se desenvolvendo no grupo turma. E depois, junto com a professora da turma ninho, procuramos planificar os exercícios que estão a ser feitos e as atividades que estão a ser feitas em comum […] (P1).[…] Nos reunimos com regularidade […][…] Há sempre articulação no final da aula eu falo com os meus colegas como é que decorreu e eles também a mesma coisa […] (PF).

Os discursos demonstram que há um trabalho de equipe muito bem estruturado e uma preocupação em realizar o projeto de forma articulada. No entanto, esta articulação nem sempre aconteceu e foi citada pela CF como uma dificuldade no início do projeto, dificuldade esta que foi sanada “[…] com reuniões e com trabalho...Foram feitas muitas reuniões e, nesse momento, as pessoas já sabem como organizar, como escolherem os ins-

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trumentos de trabalhos adequados e sabem que isto tem que ser feito realmente em grupo[…]”.

Outro ponto também citado pelos sujeitos da pesquisa como primordial para o bom desenvolvimento do PMSE na escola foi à relação com a família. Sobre este aspecto Pimenta (2002, p. 39) afirma que “a relação entre escola e comunidade e escola e alunos é outro ponto nevrálgico para as mudanças que se pretendem”.

Segundo CR, essa relação é valorizada no PMSE, pois ele afirma que programa exige uma boa comunicação da escola com a família:

[…] estes programas não tem nenhuma possibilidade de se organizar sequer se não houver nenhuma possibilidade de comunicação com as famílias, quer para explicar os novos horários, as mudanças dos meses, as mudanças dos grupos, as mudanças dos colegas, etc.

Nesse sentido, fica evidente que a família é uma instân-cia que deve estar em contato direto com a escola, integrada aos princípios e acontecimentos do programa para dar o apoio necessário aos alunos. A família torna-se assim, também res- ponsável pelo bom desenvolvimento do projeto na escola.

A aceitação inicial pode ter sido desconfiada, como afirma CR “havia sempre muita desconfiança”. No entanto, ao final de um ano de projeto, como explicado pelo coordenador, os resultados alcançados, não só os índices3, mas a melhoria dos alunos demonstrou que a organização pedagógica da turma Fênix surtia efeitos positivos na aprendizagem dos alunos e, portanto, permitiram uma maior credibilidade ao projeto.

A partir dessas considerações é perceptível que o tra-balho de equipe desenvolvido na instituição é baseado em uma relação de confiança mútua, o governo confia nas escolas; as escolas confiam em seus professores, nos pais e nos alunos para a efetivação do projeto e cumprimento de metas. Estes últimos, por sua vez, confiam na instituição e no governo para dar-lhes suporte e retorno do trabalho desenvolvido através da

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concessão dos créditos e na gestão democrática. Sobre esta relação entre o governo e a comunidade escolar CR alerta que “se se perder a confiança volta tudo ao ponto zero”.

Um terceiro grupo de sujeitos, aquele para quem a escola é pensada, também revelou boa aceitação em relação ao projeto. Segundo as professoras entrevistadas, os alunos também tiverem receios no início, no entanto com o desenvolvimento do progra-ma, eles foram aceitando e confiando na metodologia. Segundo P1, no início se pensava. “Ah ir pra Fênix, é porque tais com dificuldades ou porque tu não sabes. Agora eles já preceberam que de fato ir pra Fênix só os ajuda”. P2 corrobora o que diz P1, quando afirma que hoje em dia “eles sabem que precisam, penso que eles já conseguem autoavaliar a si próprios”.

A partir das observações das aulas Fênix e de perguntas informais realizadas também foi possível constatar que os alunos reconhecem o apoio individualizado que tem na turma Fênix e, por isso, consideram-na importante e gostam de frequentar. Apenas uma aluna (C) demonstrou não gostar de participar do projeto, embora assumisse que na Turma Fênix aprendia mais.

Em contrapartida CF afirmou que “temos tido crianças que por vezes, até quando tem que partir do ninho, voar quando já concretizaram as suas aprendizagens e atingiram os objetivos que foram propostos, que por vezes nem querem ir embora”.

Sobre a relação da escola com os alunos, Pimenta (2002, p. 74) assevera que “é preciso que eles se sintam participantes, sintam que são efetivamente a razão de a escola existir”. O programa Fênix apesar de ser um veículo para o aumento dos índices tem centrado nos alunos o seu objetivo de melhoria da qualidade das aprendizagens. Para isso prevê um apoio em turno regular, através de aulas desenvolvidas em um grupo pequeno, no qual são respeitados os ritmos e as individualidades do su-jeito. Essa característica fundamental e diferencial do projeto foi citada pela maioria dos entrevistados como ponto positivo do PMSE e, portanto, é o objeto de análise da próxima categoria.

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A INDIVIDUALIZAÇÃO DO ENSINO FORNECIDA PELA “TURMA FÊNIx”

No discurso de todos os entrevistados foi percebida uma atribuição da eficácia do programa ao apoio individualizado fornecido na turma Fênix. Esse apoio foi citado por eles como ponto positivo do programa, sendo remetido a ele o sucesso dos alunos. Segundo CR, o principal diferencial do projeto Fênix está no apoio realizado em horário regular, para ele

[…]O que se faz é reorganizar os grupos de alunos em função de suas situações e tentar trabalhar com eles de forma a respeitar mais o ritmo de trabalho que eles têm, adaptando alguns instrumentos e alguns materiais, mas sempre no intuito de fazê-los reingressar no grupo normal e, portanto, está sempre em causa a tal estrutura regular.

Essa estrutura desenvolvida em horário regular permite que o aluno que tem alguma dificuldade em sala de aula tenha um apoio mais individualizado na turma Fênix, sobre aquele mesmo conteúdo que está sendo trabalhado na sala simultaneamente.

Segundo Dockrell; McShane (2000), o fracasso escolar é evidente quando são apresentadas novas tarefas ou novas atividades em um processo contínuo às crianças com alguma dificuldade. Isso se dá porque a criança “tenta dominar uma tarefa em particular e não consegue” (DOCKRELL; MCSHANE 2000, p.163). Ainda segundo esses autores “uma tarefa completa como falar ou ler, é decomposta em sub-tarefas” (DOCKRELL; MCSHANE 2000, p.164). Desse modo, uma dificuldade pontual pode transformar todo o percurso de um aluno, pois quando não há a compreensão de uma sub-tarefa que é suporte para a aprendizagem contínua das demais tarefas, pode ocorrer a não compreensão também dessas tarefas posteriores.

Nessa perspectiva, foi perceptível que o projeto Fênix tenta agir apoiando os alunos que apresentem alguma dificuldade para prosseguir com determinada tarefa. Sobre este apoio P1 afirma que o projeto “pretende que os alunos que sintam mais

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dificuldades possam ter um apoio mais individualizado num gru-po mais restrito que não poderiam ter se estivessem integrados numa turma com mais alunos” (P1).

CO também emite a mesma opinião

[…] quando a turma é grande como é o caso de algumas turmas que tem 26 alunos, não é possível o professor dedicar tempo a esses alunos. E os pe-quenos obstáculos não são superados. O programa Fênix permite superar devido ao ensino mais indivi-dualizado, esses obstáculos (CO).

A professora e o coordenador trazem como ponto de aná-lise a influência que o tamanho e constituição de uma turma têm na aprendizagem dos sujeitos. Nesse sentido é possível refletir que a distribuição dos alunos por turma, pode ser feita para além da simples divisão numérica dos alunos. Devem ser consideradas as características de aprendizagem dos alunos para que seja realizada uma distribuição deles por turma, não tendo, portanto como prioridade, a igualdade da quantidade de crianças por turma.

No entanto, reconhecendo a diversidade dos sujeitos, será raro ter em uma turma todos os alunos em um mesmo nível de aprendizagem, que respondam uniformemente as estratégias utilizadas pela professora. Outro ponto que também deve ser considerado é que a aprendizagem advém do conflito, o qual é normalmente gerado pela diversidade de estratégias e opiniões acerca de uma tarefa no contexto da sala de aula.

Considerando esses aspectos, um dos questionamentos desta pesquisa estava voltado para compreender e perceber se a saída dos alunos da sala de aula para a turma Fênix, não os prejudicava de alguma forma. Como pode ser visto a seguir, as professoras entrevistadas afirmaram: “Não, de forma alguma, os meus alunos não se sentem em nada prejudicados” (P2); “Eu acho que não, nós procuramos sempre que o trabalho de-senvolvido na turma ninho esteja de acordo com o que está se desenvolvendo no grupo turma” (P1); “Não, Não, Não. Eu acho que em nada são prejudicados e que os alunos, ao menos é o

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que me dizem, gostam de vir para aqui” (PF).Durante as observações foi também perceptível que estes

alunos não se sentem prejudicados, uma vez que reconhecem a necessidade de estar naquela turma e acreditam que ali aprendem mais do que se estivessem naquele momento na sala. Apenas duas alunas se mostraram acomodadas com a situa-ção de estar no ninho, os demais aceitavam participar dessa turma, mas tinham a expectativa de alcançar as suas metas e objetivos naquele espaço para voltarem para a sala de aula em tempo integral.

Sobre a retirada dos alunos da sala para a turma Fênix, Moreira (2011, p. 26) afirma que a escola matriz do projeto se preocupa em “sensibilizar os directores, os professores, e os encarregados de educação no sentido de desmistificar a ideia de que retirar os alunos da sala de aula era uma medida de margi-nalização”. Isto porque, o real objetivo era “agrupar e reagrupar para incluir” e consequentemente, recuperar as aprendizagens (ALVES, 2010 apud MOREIRA, 2011, p.26).

Segundo as professoras, o fato do trabalho da Fênix ser desenvolvido em consonância com o trabalho da sala, auxiliou a aceitação do aluno, pois “quando ele chega à turma, ele sabe perfeitamente o que é que esteve a ser feito na turma” (P1). Segundo Moreira (2011, p.22) “trata-se de um mesmo período de tempo, mas com outra qualidade”.

Essa maior individualização evita que os alunos fiquem em sala desatentos, ou provocando a desatenção dos demais. Segundo Dockrell; Mcshane (2000, p.170), “é possível que a falta de atenção e de esforço seja resultado e não a causa de uma dificuldade de aprendizagem”.

Nesse sentido, CR apontou como um dos grandes ganhos desta metodologia é que

[…] podemos observar a diminuição do volume de incidentes críticos e de algumas questões de pertur-bação de serviço social, que as escolas tinham como estatística. Há também sinais de comportamento para muito melhor, aliás, seria difícil conseguir melhores resultados e não conseguir mais a civilidade,

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mais comportamento, mais empenhamento e mais envolvimento.

A partir desses dados é observável que a individualização do ensino proporcionada pelo projeto Fênix é também um forte indício do sucesso do programa articulado ao trabalho de equipe realizado e a autonomia concedida à escola. Foi percebido ainda outro fator primordial para o bom desenvolvimento do projeto na escola: O reconhecimento do tipo de sucesso que estava sendo almejado com a turma Fênix.

OS CONCEITOS DE SUCESSO ATRIBUÍDOS AO PROGRAMA

Por considerar que a opinião dos sujeitos da instituição acerca das várias concepções de sucesso influenciou na dinâmica de implementação e de execução do projeto, foi questionado como estes sujeitos compreendiam a dimensão do sucesso atribuída ao PMSE.

Esta discussão foi iniciada com a análise da opinião de CR, membro idealizador do PMSE, que representa então, os ideais previstos pelo Ministério em âmbito nacional. Segundo CR quando falamos de sucesso no PMSE,

[…] estamos a falar de melhores taxas de progressão, melhores taxas de transição, mas também de melhor qualidade de resultados. Portanto uma maior quali-dade das aprendizagens, uma maior qualidade do sucesso e uma maior taxa de progressão dos alunos.

A opinião do coordenador regional reflete os dois sentidos de sucesso discutidos por Azevedo (2011, p. 07) quando aponta que as idéias de sucesso estão ligadas a dois eixos principais “o sucesso que corresponde a uma política que se engalana com quadros e gráficos” (AZEVEDO, 2011, p. 07) e o sucesso voltado para a “acção que faz com que todos aprendam, ainda que em ambientes pedagógicos diferenciados” (AZEVEDO, 2011, p. 07). CR aponta ainda outras dimensões de sucesso que são resultados das ações dos programas. Segundo ele há:

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[…] também um sucesso na dimensão social, na di-mensão da auto-estima, na dimensão do sentimento de inclusão e de pertença ao grupo. Isso gera uma melhor auto-estima, gera um estado de espírito mais satisfeito com a vida escolar e menos propenso a turbulência, ou a violência, ou a vingança de alguma coisa (CR).

O coordenador da instituição por sua vez compreendeu o conceito de dimensão a partir da extensão dos índices e afirmou que “se falarmos em termos de dimensão, estamos a falar da dimensão do sucesso em ordem dos 90%, perto dos 100%. Só na nossa escola tivemos 100% de sucesso escolar” (CO).

Essa atribuição apenas aos índices reflete em uma preocu-pação com o cumprimento das metas pela escola e é impor-tante na perspectiva de Azevedo (2011, p. 08) que “deixemos os números falar, porque eles também falam e a sua fala vale”. No entanto, o mesmo autor discute que se deve ter um cuidado à ênfase dada a este vetor. Esta ênfase está associada à con-cepção dos objetivos que estão sendo favorecidos na escola. “Estamos a favorecer objectivos de performance ou objectivos de domínio do saber?” (AZEVEDO, 2011, p.09).

Tanto CF, quanto P1, P2 e PF, atribuíram o sucesso do programa à extensão dos alunos e da melhoria de suas apren-dizagens. Como pode ser visualizado nas respostas a seguir:

[…] o sucesso é o do combate ao insucesso escolar, sem dúvida alguma. E realmente é um projeto que faz sempre que os alunos aprendam de forma mais minuciosa, com o tempo pra ele, o grupo é pequenino, os alunos ficam mais desinibidos (CF).[…] sobretudo o sucesso dos alunos, sem dúvida, a minha grande preocupação é que os meus alunos consigam todos atingir o sucesso pretendido para aquele ano de escolaridade e para o final de ciclo que é o caso este ano. Nunca pensei no projeto Fênix, como um projeto para o sucesso da escola, enfim acaba por ser também, mas eu penso que o projeto

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prevê primeiro o sucesso dos alunos e depois todo o resto virá por acréscimo (P1).[…] bem estamos a nos referir ao sucesso educativo , ao sucesso educativos das crianças dos alunos. Eu penso que é para esse fim que esse projeto existe (P2).[…] pra já, o sucesso das aprendizagens e acho ainda que o melhor de tudo do sucesso que se pode falar é da autonomia que os miúdos vão adquirindo a nível de trabalho, da confiança que eles ganham neles próprios (PF).

As perspectivas apontadas pelas quatro professoras estão diretamente ligadas ao sucesso das aprendizagens dos alunos. Isso mostra que elas atribuem ao programa a dimensão do sucesso para além dos índices e tabelas de comparação. Elas mostram que o foco principal está em elevar a qualidade das aprendizagens dos alunos que apresentam alguma dificuldade na aula e que o aumento dos índices é apenas uma conse-quência dessa melhoria na qualidade. A articulação das ideias de sucesso que a escola pretendeu alcançar com o programa podem ser apontados como princípio que também permitiu a eficácia do PMSE na instituição.

CONSIDERAÇõES FINAIS

A partir deste estudo é possível perceber a necessidade de se construir políticas públicas a partir das necessidades reais dos contextos escolares, tendo em vista que, as instituições reconhecem na política a possibilidade de resolução dos seus problemas e podem elaborar estratégias e táticas de implemen-tação adequadas aos seus contextos.

Outro ponto que deve ser levado em conta na construção da política pública no campo educacional é a autonomia que vai ser concedida às escolas, no sentido de permitir que elas tenham liberdade de adequação da política ao seu contexto, considerando que cada escola é uma instituição diferente, pois possui atores diferentes que pensam e exprimem suas identi-

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dades na construção de uma identidade coletiva. A riqueza dessa construção coletiva permite uma maior interação e participação dos sujeitos na escola.

A presença de uma gestão democrática dá abertura para a participação de todas as instâncias na construção dos ide-ais. O objetivo da instituição também foi percebido como um fator preponderante para o bom desenvolvimento da política do PMSE na escola “X”.

O sentimento de pertença à escola e de objetivo comum também fortaleceu o desenvolvimento do trabalho de equipe na escola, isto porque, o sucesso do projeto estava vinculado à necessidade de articulação entre professores, pais, alunos e coordenadores. Nesse sentido, os alunos também se sentiam motivados a participar do programa, pois percebiam que a tur-ma Fênix não era sinônimo de exclusão e sim de melhoria na própria aprendizagem.

O caráter organizacional do modelo Fênix possibilitou que as crianças fossem acompanhadas em tempo regular. Esse acompanhamento foi percebido como positivo na medida em que direcionava uma atenção mais individual que talvez não fosse permitida, se o aluno estivesse em sala. O tempo na turma Fênix foi, portanto otimizado, pois o aluno tinha a atenção direcionada para a sua dificuldade, sanando suas dúvidas e ultrapassando suas barreiras. Se esse aluno estivesse em sala, poderia não compreender o conteúdo e ficar desatento. Sendo assim, a estrutura do projeto também foi considerada como significante para a eficácia do PMSE na instituição.

O último fator eleito como primordial para o sucesso do programa foi justamente a compreensão da dimensão de sucesso que o PMSE buscou contemplar na escola. Foi percebido que quase todos os segmentos da instituição viam como prioridade o sucesso dos alunos, ou seja, a melhoria da qualidade das aprendizagens e apenas como consequência, o aumento dos índices. A consciência da necessidade da melhoria da qualidade da educação para que o programa viesse a alcançar as metas, era clara entre os sujeitos. Portanto, não eram primordialmente as notas que moviam o projeto na escola “X”, mas a vontade comum de que os alunos aprendessem melhor.

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A partir dessas considerações foi possível analisar que muitas são as causas que permitem a eficácia de uma política pública, desde a sua concepção, até a sua implementação e resultados. Por isso, essa pesquisa não desejou limitar as causas da eficácia do PMSE às elencadas nas quatro categorias acima discutidas. Buscou, no entanto elencar e analisar algumas delas que foram descobertas nessa escola. Entende-se que esta pesquisa, pode contribuir com os estudos acerca das políticas educacionais de sucesso escolar. Estudos esses que podem ser usados para se pensar à construção e a efetivação de políticas de melhoria da qualidade da educação também no Brasil.

CAUSES ThE EFFECTIVENESS OF EDUCATIONAL ATTAINMENT IN ThE LEARNING PROCESS AT A SChOOL IN ÉVORA - PORTUGAL

aBSTRacT — This study is meant to analyze the causes of efficiency for the More Educational Achievement Program (PMSE - Programa Mais Sucesso Escolar, in Portuguese), Phoenix typology in a school in the city of Evora, Por-tugal. For this, it was searched some theoretical support about the discussions on public policy and school failure. Starting from the theoretical framework, a qualitative research was carried out using participant observation, interviews and document analysis. The data analysis pointed to the appearance of four categories: Autonomy granted to school by the PMSE, teamwork in pursuit of a common goal, the individualization of education provided by “Phoenix Group” and the concepts about success assigned to the program. Therefore, the data allowed to realize the importance of autonomy and teamwork for a good development of public policies in the institution as well as the relevance of the organizational structure of the Phoenix Group and the concept of success assigned to the program in order to improve learning quality.

KEy wORdS: School failure; Educational policy; Autonomy.

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NOTAS

1 Segundo Vieira (2008), a participação do Brasil em avaliações internacionais como o Programa Internacional para Avaliação de Estudantes (Programme for international Student Assessmente - PISA) “confirmam que a qualidade da Educação Básica oferecida, encontra-se muito aquém dos indicadores obtidos pelo conjunto de países desenvolvidos ou em desenvolvimento” (VIEIRA, 2008, p. 113).

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2 O 4º ano tem duas turmas “A” e “B”, com 20 alunos cada; desse total, seis fazem parte da Turma Fênix, sendo quatro do 4º ano “A” (os alunos, A, B, C, D) e dois do 4º ano “B” (os alunos E e F).

3 O balanço geral do programa no ano letivo de 2009/2010 aponta para um crescimento de 7,46 nas taxas de sucesso escolar. A média de todas as escolas entre 2005 e 2009 era de 84,85% e em 2010 as taxas subiram para 92,11% ultrapassando os 89,71% previstos no início do programa (PORTUGAL, 2010, p.32).

No ano letivo seguinte de 2010/2011, o número de escolas partici-pante do PMSE reduziu de 123 para 114, devido ao não cumprimento do acordo contratualizado de elevar em 1/3 os índices de sucesso. O programa abrangeu assim 734 turmas e 13.667 alunos. O sucesso do programa continuou segundo o relatório final do referido ano que apresentou um ganho de cerca de 10 % da média histórica das es-colas participantes, pois subiu para cerca de 90% a taxa de sucesso (PORTUGAL, 2011).

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ESTADO, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO: ALGUMAS INDAGAÇõES E REFLExõES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A jUVENTUDE NO BRASIL

Vanessa Batista Mascarenhas*

RESUMO — As políticas públicas para a juventude no Brasil vêm se de-senvolvendo com maior destaque a partir do governo Lula, trazendo em seus documentos o discurso do jovem como o protagonista na constituição e desenvolvimento de uma política nacional. Entendendo a política pública como um campo em disputa que envolve diferentes atores com distintos inte-resses e que expressa, em muitos casos, a complexa relação Estado, Socie-dade e Educação. Ao longo da história, questiona-se o papel da juventude na construção dessa política: Será o jovem o real soberano nas políticas de juventude? A partir de análises bibliográficas e documentais inferiu-se que, se em meio a um discurso de democracia a soberania do povo é negada em prol dos interesses dos dominantes, a juventude, público alvo desta política – jovens pobres, com baixa escolaridade, com condições sociais precárias - fazendo parte das minorias sociais, não se constituem o soberano nas po-líticas públicas de juventude.

PalavRaS-chavE: Política Públicas, Juventude, Soberano

1 - INTRODUÇÃO

As Políticas Públicas são um campo em disputas que expressam em muitos casos a complexa relação Estado, So-ciedade e Educação ao longo da história. Seu estudo implica considerar os diferentes interesses que envolvem a sua criação e implementação e o papel dos diferentes agentes envolvidos nesse processo. Existem vários conceitos para políticas públi-

* Mestranda em Educação. PPGE – Mestrado Acadêmico na Universidade Estadual de Feira de Santana. E-Mail: [email protected].

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cas, Souza (2003) afirma que não existe uma única nem melhor definição para política pública, mas a sua essência gira em torno do embate de ideias, interesses e preferências. As políti-cas não representam o interesse apenas de uma classe social, mas também expressam a ação do governo que repercute na vida dos cidadãos.

Segundo Palumbo (1989, p.35) política é “o princípio orientador por trás de regulamentos, leis e programas, [...] é um processo, ou uma série histórica de intenções, ações e comportamentos de muitos participantes”. A política não é palpável, é invisível e está em constante movimento de reformulações, modificações e ações de diferentes sujeitos. A política se origina de diferentes lugares, é um processo realizado por muitos atores ao longo do tempo, que envolve intenções, decisões, ações, reinvindi-cações, leis e programas. E o programa é o meio específico para colocar uma política em prática, é a manifestação visível de uma política.

Logo, a política pública não é formulada por apenas um agente, representando apenas uma classe social, é um processo, uma série histórica de ações para um determinado fim. Contudo, deve-se pensar que na sociedade capitalista impera a desigual-dade social, dessa forma os interesses dos diferentes agentes que compõe uma política são abarcados de forma desigual na composição da mesma. Assim, aparentemente pode-se estar beneficiando o segmento mais precário da população, mas em sua essência disseminando interesses e privilégios do segmento dominante, aumentando a segregação entre as classes.

As políticas públicas para a juventude no Brasil vêm se de-senvolvendo com maior destaque a partir do primeiro mandado do presidente Luíz Inácio da Silva (Lula), em 2003. A relação entre Estado, Sociedade e Educação na implementação da polí-tica para a juventude é relatada em alguns documentos a partir de uma relação colaborativa. Observa-se que no documento do Plano Nacional de Juventude (2004), é relatado esse processo de colaboração para o desenvolvimento desta política.

Os Parlamentares, integrantes da Comissão Especial, ao longo do ano de 2003 e no 1º Semestre de 2004,

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ouviram, num total de 33 audiências públicas, espe-cialistas, gestores públicos e representantes da so-ciedade civil, notadamente os jovens. Nos encontros regionais, que somaram cerca de 5.200 participantes trataram de diferentes temas relacionados com a juventude, assim como nas audiências realizadas na Câmara Federal sobre: educação, nos diferentes níveis e modalidades [...] no intuito de tornar esse Plano a expressão da vontade plural da juventude brasileira [...] Apontar diretrizes e metas para que o jovem possa ser o ator principal em todas as etapas de elaboração das ações setoriais e intersetoriais [...] Em todas as audiências públicas, seminários e encontros regionais, a temática educação recebeu destaque especial (BRASIL, 2004, p.3-5).

Dessa forma, observa-se neste documento que à juventude é atribuída uma participação importante na formulação da política nacional de juventude, indicando o jovem como ator principal na elaboração dessa política. Ressalta ainda que o plano deve ter como referência a vontade plural da juventude brasileira e a temática educação deve ter atenção especial. Essa centralidade atribuída ao jovem nos documentos que regem essa política, está pautada num discurso de protagonismo juvenil, o qual “significa que o jovem tem que ser o ator principal em todas as etapas das propostas a serem construídas em seu favor” (BRASIL, 2004, p.22). Assim, este discurso de protagonismo implica uma ideia de poder dado ao jovem, como observado no próprio Plano Nacional de Juventude (2004):

Ser reconhecido como ator social estratégico implica a integração social, a participação, a capacitação e a transferência de poder para os jovens como indivíduos e para as organizações juvenis, de modo que tenham a oportunidade de tomar decisões que afetam as suas vidas e o seu bem-estar. Significa passar das tradicionais políticas destinadas à juventude, isto é, políticas concebidas pelos governos direcionadas ao jovem, para as políticas concebidas e elaboradas com a participação direta ou indireta dos jovens,

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por meio de estruturas jurídicas reconhecidas pelo Poder Público, como conselhos e coordenadorias da juventude (BRASIL, 2004, p.22).

Desse modo, entendendo a política pública como um cam-po em disputa que envolve diferentes atores com distintos in- teresses, questiona-se o papel da juventude na construção dessa política. Será o jovem o real soberano na Política Nacional de Juventude? Evidencia-se que o processo de implementação dessa política ocorreu a partir das demandas de muitos participantes, envolvendo ações da sociedade civil – conferências municipais, estaduais e nacionais - e do governo por meio de criação de secretarias, projetos, leis, atrelado a um pacto nacional entre os governantes municipais, estaduais e nacional, em meio a um contexto histórico nacional de mudanças ocorridas pelo alto1.

Para o desenvolvimento dessa análise buscou-se primei-ramente trazer algumas indagações e reflexões sobre o Estado Brasileiro e seus processos de mudança pelo alto. Em seguida contextualizar o desenvolvimento das políticas públicas para a juventude no Brasil. Posteriormente instigar reflexões sobre a suposta soberania da juventude na Política Nacional de Juventude a partir do discurso de protagonismo juvenil. E por fim estabelecer algumas reflexões sobre essa discussão. Para embasar essa análise bibliográfica e documental foram utilizados os conceitos de Gramsci: Estado, Sociedade Civil, Hegemonia e Revolução Passiva, e algumas reflexões de Neves (2005), Coutinho (2006), Fontes (2006) e Romano (2006). E como documentos: O Plano Nacional de Juventude (2004), Guia de Políticas Públicas para a Juventude (2006), Pacto pela Juventude (2012) e texto sobre as Conferências Nacionais de Juventude (2014).

2 - O ESTADO BRASILEIRO E SEUS PROCESSOS DE MUDANÇAS PELO ALTO

O Estado ampliado em Gramsci corresponde a relação entre sociedade civil e sociedade política. “Na sociedade civil, as classes procuram ganhar aliados para seus projetos através

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da direção e do consenso. Já na sociedade política as classes impõem uma ‘ditadura’, ou por outra, uma dominação fundada na coerção” (MORAES, 2002, p.98). Essa relação entre socie-dade civil e política ao longo da história brasileira, nos induz a reflexões e indagações sobre o atual Estado Brasileiro.

As transformações ocorridas no Estado Brasileiro ao lon-go da história, possuem algumas características semelhantes. Apesar das muitas lutas travadas pela população na busca de liberdade, independência e democracia, as mudanças estabele-cidas ocorreram pelo alto, na troca de um grupo dominante por outro grupo dominante, e em alguns casos dando continuidade ao projeto de dominação social.

Coutinho (2006) faz um panorama dessas lutas e enfatiza que os processos de transformação social no Brasil ocorreram por moldes não clássicos, ou seja, por meio de revolução passiva.

Conceito análogo aparece em Gramsci, ou seja, o conceito de ‘revolução passiva’ [...] o pensador italiano chama de ‘revolução passiva’ os processos de transformação em que ocorre uma conciliação entre as frações modernas e atrasadas das classes dominantes, com a explicita tentativa de excluir as camadas populares de uma participação mais ampla em tais processos. Gramsci diz que as revoluções passivas provocam mudanças na organização social, mas mudanças que também conservam elementos da velha ordem. Trata-se, essencialmente, de trans-formações – ou de revoluções, se quisermos – que se dão ‘pelo alto’ (COUTINHO, 2006, p.174).

Esse processo de revolução passiva, segundo o autor, é verificado no Brasil em alguns marcos históricos, como na inde-pendência brasileira que foi consolidada pelo segmento dominante da sociedade da época. A população mesmo promovendo lutas, reivindicações e revoluções, não possuiu o papel finalizador do processo de independência, que ocorreu por uma troca de poder, ou seja, houve um rearranjo da fração dominante da população, sem uma participação popular na finalização da mesma.

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Outro exemplo foi a “revolução” de 1930, que também ocor-reu pelo alto. A frase do governador mineiro Antônio Carlos de Andrada traduz bem esta realidade: “Façamos a revolução antes que o povo a faça” (COUTINHO, 2006, p.196), ou seja, buscava-se mudanças entre a própria elite sem a participação popular. Esta revolução tratou-se de um movimento das oligarquias que não estavam satisfeitos com a política café com leite e buscavam novos representantes de governo. Contudo esse processo foi interrompido pelo golpe de estado que instituiu Getúlio Vargas no poder, implantando a ditadura do Estado Novo.

A transição da ditadura militar (1964-1985) para um governo democrático também representou um momento de revolução passiva no Brasil. Apesar das várias lutas populares pela liber-dade e democracia que ocorreram nestes 20 anos de repressão política, não houve uma mudança significativa no governo com o fim da ditadura. Coutinho (2006, p.175) relata

que “o primeiro presidente civil após o ciclo militar inicia-do em 1964 foi o ex-presidente da Arena (Aliança Renovadora Nacional), isto é, do partido de sustentação da ditadura mili-tar”. Isso demonstra que apesar das transformações ocorridas permaneceram elementos da velha ordem no governo do país.

Ao longo desse processo histórico de revoluções passivas no Brasil destaca-se a mudança do processo de dominação sem hegemonia para dominação com hegemonia. Coutinho (2006) ressalta que período de 1930 a 1980 é marcado por um tipo de Estado burguês que se caracteriza, em sua maior parte, pela presença de uma dominação sem hegemonia. Não havia consentimento da maioria da população pelo projeto político da classe dominante, o que é verificado pela grande quantidade de lutas, protestos, reinvindicações, contestações da ordem vigente. A partir de então, devido a percepção por parte da burguesia de que era necessárias mudanças nas estratégias de dominação e para que houvesse um maior controle social era preciso exercer uma dominação com hegemonia. “(...) para Gramsci, hegemonia é um modo de obter o consenso ativo dos governados para uma proposta abrangente formulada pelos governantes” (COUTINHO, 2006, p.182), ou seja, era preciso mudar as estratégias para continuar a dominação.

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Seguindo essa perspectiva de dominação com hegemonia, Neves (2005) enfatiza que a partir da década de 1990 iniciou-se no Brasil um novo projeto de sociabilidade pautado numa radi- calização da democracia, com vistas a desenvolver uma nova cidadania pautada na responsabilidade social. Dessa forma, a sociedade civil passa a ser concebida como espaço onde diferentes parceiros contribuem para o bem-estar social com vistas a promover uma aceitação das desigualdades sociais, ou seja, há o estimulo uma conciliação de classes. A partir dessa reforma, o Estado se responsabiliza pela formação técnica e ético-política da classe trabalhadora por meio da educação básica e incentivo a um associativismo despolitizado, baseado na defesa de interesses particulares e locais.

Assim, cria-se uma política colaborativa, pautada numa dominação com hegemonia, como novo projeto de sociabilidade, perpassando pela ideia disseminada com destaque a partir do governo Lula de que não é só o governo responsável pelo desenvolvimento do país, mas também a nova sociedade civil, “concebida como uma esfera pública não-estatal de cidadania, como espaço de interação social que também homogeneamente aglutina esforços na direção do bem comum, do interesse público” (NEVES, 2005, p.97). Assim, as ideias de colaboração (Todos pela educação, Brasil um país de todos,...) também chegam a política de juventude. Os jovens devem colaborar para a sua inclusão social e para o desenvolvimento do país, exercendo seu protagonismo juvenil.

Assim, a partir desse contexto de dominação com hegemonia em meio a processos de históricos de revolução pelo alto é que vem se desenvolvendo as políticas públicas para a juventude no Brasil, sob a proposta de resolver os problemas de exclusão desse segmento da população. Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) nos últimos anos têm atribuído destaque a essas propostas de mudanças para a juventude brasileira. Já se passaram mais de dez anos da implementação e desenvol-vimento dessas políticas, logo, propõe-se refletir sobre os ca-minhos percorridos por essa proposta de transformação social.

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3 - CONTExTUALIZANDO AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE jUVENTUDE NO BRASIL

As políticas públicas para a juventude no Brasil se desen-volveram, segundo Sposito e Carrano (2003), a partir do conflito em torno do destino de recursos e bens públicos limitados, estes baseados em um amplo processo de negociações e de formação de consenso, mesmo que provisórios. Os jovens antes da década de 90 eram incluídos nessas políticas de uma forma generalizada, a partir de projetos direcionados para todas as faixas etárias. Contudo, a partir dessa década amplia-se os olhares voltados para essa fase da vida, seja pela necessidade de controle social, pela inserção laboral dos mesmos ou por serem considerados pessoas de direito.

A partir de então alguns projetos foram criados tendo o mesmo público alvo: jovens pobres, com baixa escolaridade, com “diferentes graus de vulnerabilidade, cujos efeitos culminam na recorrência de situações de entrada e saída nas redes de ensino, repetência, abandono precoce, desinteresse pelos estudos, etc.” (ANDRADE, 2009, p.86). Entretanto, foram projetos pontuais não tendo continuidade. Isso demonstra certa fragilidade nas políticas públicas, que estão sempre buscando soluções pon-tuais para o problema da juventude, cujas origens remontam à questão do acesso e permanência na educação básica.

Essas políticas ganham maior destaque na agenda gover-namental a partir do primeiro mandato de Lula, que “se elege tendo como uma das temáticas de sua plataforma eleitoral o jovem e sua luta pelo reconhecimento social e seus direitos e sua descriminalização” (BORELLI, et al, 2003, p.6). Secretarias, conselhos, comissões, leis e projetos foram criados para compor, formular e desenvolver essa política pautada principalmente na reinserção escolar dos jovens. Buscou-se a consolidação de uma política de Estado que permanecesse com as mudanças do governo (BRASIL, 2004).

Foi principalmente a partir do governo Lula que a juven-tude ganhou destaque na agenda governamental. Em 2003 foi criada uma comissão especial de juventude no intuito de traçar diretrizes para a política nacional de juventude. Esta comissão

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encaminhou três propostas: Plano Nacional de Juventude (PL 4530/2004), emenda constitucional (PEC 138-A/2005) e o esta-tuto de direitos da juventude (PL 27/2007). O Plano Nacional de Juventude de 2004 traçou metas a serem alcançadas ao longo da década seguinte, incluindo as metas educacionais para os jovens. Já a emenda constitucional só foi promulgada em 2010 (EC 65/2010) incluindo o do termo juventude a artigos da cons-tituição brasileira. E o Estatuto da Juventude, promulgado só em agosto de 2013 a partir da lei 12.852, tornou a realização de políticas especialmente dirigidas às pessoas entre 15 e 29 anos uma obrigação do Estado, independente da vontade de governos.

Em 2004, a Presidência da República constituiu um grupo composto por representantes de 19 ministérios, que realizou um diagnóstico sobre as condições sociais dos jovens brasileiros e mapeou as principais ações governamentais voltadas para a juventude (Brasil, 2006). A partir desse panorama, em 2005 foi lançada a Política Nacional de Juventude apoiada no tripé: Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) e Programa Nacional de Inclusão de Jovem (Projovem). E foi desenvolvida a seguinte ideia: “uma nova concepção de política pública, que considera a juventude como um segmento social portador de direitos e protagonista do desenvolvimento nacional” (BRASIL, 2006, p.6). Assim, segundo as diretrizes desse documento a juventude é o ator principal na formulação e desenvolvimento dessa política.

Algumas ações do governo na implementação dessa política, instiga reflexões sobre o discurso protagonista da juventude, como o “Pacto pela Juventude” lançado pelo CONJUVE com edições em 2008 e 2010. Esse pacto é uma proposta para que os governos federal, estadual e municipal se comprometam com políticas públicas para a juventude e para que os candidatos políticos incluam em seus Planos de Governo as demandas da juventude brasileira (BRASIL, 2012). Observa-se que o pacto pela juventude é um pacto entre governantes, o que torna ain-da mais emblemático o discurso de participação dos jovens na formulação dessa política.

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O governo propõe também a participação da população e principalmente da juventude para o desenvolvimento dessa polí-tica por meio das Conferências Nacionais de Políticas Públicas para a Juventude, que tiveram edições em 2008 e 2011. Essas conferências ocorreram em âmbito local, regional e nacional.

Entendendo que a participação social deve ser um método de governo e que o segmento juvenil é es-tratégico para o desenvolvimento nacional e para a construção de políticas públicas que assegurem a autonomia e o direito dos nossos jovens, em 2008 o Governo Federal organizou o primeiro grande processo de diálogo com a juventude brasileira por meio da 1ª Conferência Nacional de Juventude. Três anos depois, a 2ª Conferência Nacional reuniu jovens dos quatro cantos do Brasil, das mais variadas formas de expressão e realidades sociais, que parti-ciparam de espaços de discussões e diálogo sobre suas necessidades, o presente e o futuro do país. Estes espaços culminaram em encaminhamentos e pactuações que, desde então, orientam a Política Pública de Juventude e garantiram vários direitos para os jovens brasileiros, como a instituição do Estatuto da Juventude (BRASIL, 2014a, p.1).

Logo, evidencia-se nos documentos um discurso de par-ticipação da sociedade e em específico da juventude para o desenvolvimento do país e ainda de busca da autonomia e do direito dos jovens por meio das políticas públicas. Com isso, nota-se um intrigante discurso de mudança na participação so-cial dos jovens, que até pouco tempo eram excluídos de forma particular dos projetos sociais, educativos e das leis do país. Pois como afirmam Sposito e Carrano (2003), antes da década de 1990 os jovens eram abarcados nas políticas públicas de uma forma generalizada, pois não haviam ações especificas para este segmento da população.

Assim, o desenvolvimento de uma Política Nacional de Ju-ventude traz como propostas nos documentos que a regem, a promoção de ações especificas para esse segmento populacional,

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buscando melhorias para a vida dos jovens. E ainda que “(...) a prioridade conferida à juventude, estimulou o desenvolvimento de novas ações e a consolidação de práticas que buscam ga-rantir direitos e oferecer oportunidades aos jovens brasileiros” (BRASIL, 2006, p.5). Nessa perspectiva, essa política incorpora a juventude, de forma especifica na pauta dos governos e atribui ao jovem o papel de ator estratégico no seu desenvolvimento. Contudo, julga-se intrigante esse discurso de poder atribuído ao jovem, enquanto ator estratégico e protagonista, já que por muitos anos a juventude foi negligenciada enquanto categoria especifica nas ações do governo em meio a um contexto his-tórico brasileiro de mudanças pelo alto.

4 - SERÁ O jOVEM O REAL SOBERANO NAS POLÍTICAS DE jUVENTUDE?

O desenvolvimento da Política Nacional de Juventude (PNJ) no Brasil teve como objetivo a busca de soluções para os problemas da juventude (desemprego, evasão escolar, falta de formação profissional, mortes por homicídio e envolvimento com drogas) e também propor ações que insiram o jovem no debate da pauta nacional, permitindo-lhe assumir o papel de protagonista no processo de desenvolvimento do país (BRASIL, 2014b). Essa ideia de protagonismo presente nessa política traz a perspectiva de que o jovem é o ator principal, o soberano no desenvolvimento das políticas públicas para a juventude, atribuindo dessa forma, centralidade aos jovens pobres, com baixa escolaridade, com condições sociais precárias, público alvo desta política.

A proposta de mudança, de solução, para os problemas da juventude, para que os jovens possam contribuir para o desenvolvimento do Brasil, ganhou maior enfoque no país com o desenvolvimento da PNJ. Esse discurso de solução para o problema da juventude nos leva a refletir sobre os processos de mudanças ocorridas pelo alto ao longo da história brasileira por meio de uma dominação com hegemonia. Deve-se pensar que as propostas de mudanças, podem representar diversos

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interesses, envolvendo a sociedade política e a sociedade civil, incluindo dessa forma os interesses das classes dominantes, tornando emblemática essa proposta de mudança.

A sociedade civil em Gramsci é o “conjunto dos organismos designados vulgarmente como privados” (GRAMSCI 2001:20-21 apud FONTES, 2006, p.213), compreendendo o sistema escolar, partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação, etc, ou seja, instituições difusoras de valores e ideologias. Segundo Fontes (2006) esta sociedade é um espaço de lutas de classe onde as formas de dominação se irradiam também como convencimento.

A dominação de classes se fortalece com a ca-pacidade de dirigir e organizar o consentimento dos subalternos, de forma a interiorizar as relações sociais existentes como necessárias e legítimas. O vínculo entre sociedade civil e estado explica como a dominação poreja em todos os espaços sociais, educando o consenso, forjando um ser social ade- quado aos interesses (e valores) hegemônicos (FONTES, 2006, p.212).

Essa adesão dos subalternos por meio do convencimento torna-se uma tarefa constante e de extrema importância para a permanência dos dominantes no poder. Logo, a ideia de partici-pação, benefício e solução de problemas como o proposto pelas políticas de juventude torna-se importante para o consentimento da população ao que é proposto pela classe dominante: ma-nutenção da ordem desigual. O que torna intrigante o discurso de protagonismo juvenil na política de juventude, ou seja, uma suposta atribuição de poder ao jovem em meio a um contexto de mudanças pelo alto, de embate de classes, onde se desenvolve a dominação com hegemonia.

O termo protagonismo é formado por duas raízes gregas: proto, que significa “o primeiro, o principal” eagon, que significa “luta”. Agonistes, por sua vez, significa “lutador”. Protagonista quer dizer, então, lutador principal, personagem principal. Portanto protagonismo juvenil significa que o jovem tem que ser o ator principal em todas as etapas das propostas

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a serem construídas em seu favor. Ser reconhecido como ator social estratégico implica a integração social, a participação, a capacitação e a transferência de poder para os jovens como indivíduos e para as organizações juvenis, de modo que tenham a opor-tunidade de tomar decisões que afetam as suas vidas e o seu bem-estar (BRASIL, 2004, p.22).

Então, segundo essa percepção haveria uma transferência de poder para o jovem, tornando-o principal ator das políticas de juventude e sua ação exerceria mudanças sociais. Essa ideia de transferência de poder a população torna-se contradi-tória ao processo de dominação que impera no país desde sua independência até os dias atuais.

Com isso, deve-se refletir se essas demandas sociais de emprego, inserção escolar, diminuição da violência, drogas, representam os interesses dos jovens ou também atendem a um projeto de controle social dos dominantes. A história brasileira demonstra que há uma falsa democracia, que a soberania do povo é negada, mesmo em meio a um discurso de participação.

A vida política brasileira herdou, sem o saber, uma tradição repressiva que concentra nos governantes todas as políticas públicas, em especial a educação. E as retira da sociedade, dos grupos, dos movimen-tos, dos indivíduos. Trata-se de um velho problema jurídico e político: quem é o soberano? A democracia define-se como a forma de poder em que o povo é o soberano. No Brasil, fingimos seguir essa forma de mando, mas na realidade ao nosso povo a soberania é recusada, sempre em proveito de oligarquias e dos que ocupam os três poderes formais do Estado (ROMANO, 2006, p.133).

Logo, se em meio a um discurso sobre a democracia e a soberania do povo é negada em prol dos interesses dos dominantes, a juventude público alvo desta política – jovens pobres, com baixa escolaridade, com condições sociais precá-rias - fazendo parte do povo brasileiro, das minorias sociais, não se constituem, neste momento histórico de dominação com

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hegemonia, o soberano nas políticas públicas de juventude. Dessa forma, torna-se questionável o discurso de protagonismo juvenil presente na Política Nacional de Juventude, já que ao povo brasileiro a soberania é negada.

Dessa forma, Romano (2006) enfatiza que a soberania do povo, e ai pode-se incluir a dos jovens, é e sempre foi nega-da em favor dos que detém o poder. A constituição brasileira, representação do regime democrático do país, torna-se ‘papel amassado’ a partir do momento em que é negado o direito da soberania a população. Logo, se a soberania real, para além do discurso e dos documentos é historicamente negada ao povo, questiona-se o suposto poder dado aos jovens por meio do protagonismo juvenil. Isso nos remete a evidências de mais um processo de dominação com hegemonia, o convencimento das massas sob um duvidoso discurso de participação, colabo- ração, poder.

5 - PARA CONTINUAR REFLETINDO...

Os jovens brasileiros por muitos anos tiveram seus direi-tos negados. Eram incluídos nas políticas públicas de uma forma generalizada, pois não havia leis, diretrizes e programas específicos para este segmento da população. Com o desenvol-vimento das políticas públicas de juventude, evidencia-se um discurso de mudança para a condição do jovem, com solução para os problemas da juventude: evasão escolar, desemprego, violência, drogas, etc.

Destaca-se que o discurso de protagonismo juvenil e partici-pação dos jovens nas políticas públicas por meio de documentos e das conferências nacionais, não expressam a soberania dos jovens no desenvolvimento das políticas públicas de juventude. Isso é notado nas várias ações que os governos criaram para o desenvolvimento desta política: conselhos, secretaria, comissão, programas, leis, diretrizes, metas e pacto entre os governos municipais, estaduais e federal. Além disso, o contexto histórico de negação da soberania ao povo brasileiro e a negação dos direitos dos jovens por muito tempo, evidencia o não interesse

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dos dominantes na real transformação desse quadro.Esse contexto torna ainda mais emblemático esse discur-

so de mudança na condição juvenil por meio da participação dos jovens na melhoria do país, logo que o Brasil possui um histórico de mudanças pelo alto e encontra-se em um momen-to de dominação com hegemonia. Assim, essa perspectiva de melhoria na educação, na sociedade e no Estado por meio dos jovens, sob o discurso de protagonismo juvenil nos remete as estratégias de controle e consentimento da população para atender aos interesses dominantes. Interesses esse pautados na manutenção da soberana ordem desigual, sob o discurso de participação, colaboração e protagonismo juvenil.

STATE, SOCIETY AND EDUCATION: SOME INqUIRIES AND REFLECTIONS ON PUBLIC POLICIES FOR ThE YOUTh IN BRAZIL

aBSTRacT — The public policies for the youth in Brazil have been develo- ping most notably from Lula’s government, which brings in their documents the youth speech as a protagonist in the creation and development of a national policy. Acknowledging the public policies as a field in dispute that involves different actors with different interests and that expresses in many cases a complex relation between the State, Society and Education throughout the history. It questions the role of youth in building this policy. Will the young be the real “sovereign” on the youth policies? It was inferred from literature and document reviews that in the midst of a democracy speech, the sovereignty of the people is denied in favor of the dominant interests, the youth, target of this policy – poor young people with low education, with precarious social conditions- part of social minorities, they don’t constitute the sovereign in youth public policies.

KEy wORdS: Public policies, youth, Sovereign.

6 - REFERÊNCIAS

ANDRADE, Eliane Ribeiro. et al. Composição social e percursos escolares

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NOTAS

1 Termo utilizado por Carlos Nelson Coutinho (2006) para designar as mudanças ocorridas na história brasileira, as quais sob o discurso de transformação só implicou em troca de dominantes.