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ficha técnica Um dia com José António Gonçalves DIRECTORA: Teresa Brazão EDITORA: Maria Aurora Homem Coordenador deste número: António Fournier design gráfiCo: Emídia Loja arranjo da Capa: Helena Nunes fotoComposição: Helena Nunes imagem da Capa: Carlos Luz, “Ouvi alguém partir de mim”: José Antònio Gonçalves (tinta da china e aguarela s/papel) Colaboram neste número: João Carlos Abreu Francisco Freitas Abreu Onésimo Teotónio de Almeida Irene Lucília Andrade José Agostinho Baptista José Vito Barreto Margarida Watts Rodrigues Camacho Elisa Ciardi Elmano Correia João David Pinto Correia Octaviano Correia Fausto Bordalo Dias João Dionísio Joaquim Evónio Ana Margarida Falcão José Félix Carlos Alberto Fernandes Francisco Fernandes José Manuel Cabral Fernandes paginação revista margem JAG.ind1 1 28-04-2008 16:17:37

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ficha técnica

Um dia com José António Gonçalves

Directora: Teresa BrazãoeDitora: Maria Aurora HomemCoordenador deste número: António Fournierdesign gráfiCo: Emídia Lojaarranjo da Capa: Helena NunesfotoComposição: Helena Nunes

imagem da Capa: Carlos Luz, “Ouvi alguém partir de mim”: José Antònio Gonçalves (tinta dachina e aguarela s/papel)

Colaboram neste número:

João Carlos AbreuFrancisco Freitas AbreuOnésimo Teotónio de AlmeidaIrene Lucília AndradeJosé Agostinho BaptistaJosé Vito BarretoMargarida Watts Rodrigues CamachoElisa CiardiElmano CorreiaJoão David Pinto CorreiaOctaviano CorreiaFausto Bordalo DiasJoão DionísioJoaquim EvónioAna Margarida FalcãoJosé FélixCarlos Alberto FernandesFrancisco FernandesJosé Manuel Cabral Fernandes

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ficha técnicaAntónio Duarte Brito FigueirôaCarlos Nogueira FinoAntónio FournierHumberto FournierJosé Laurindo GóisJosé António GonçalvesMarco GonçalvesD. Maurílio de GouveiaMateus GouveiaBerta HelenaMaria Aurora HomemEdward Michael KassabCarlos LuzAlbano MartinsCarlos MartinsManuel Frias MartinsManuele MasiniJosé Manuel MendesLaura MonizJosé Viale MoutinhoEduardo Bettencourt PintoCissa de OliveiraJosé Alexandre RamosLuís RochaErnesto RodriguesGualdino RodriguesGonçalo Nuno dos SantosThierry Proença dos SantosAlessandro Granata Seixas de SousaEurico de SousaJoão Rui de SousaGiampaolo ToniniÂngela VarelaVergílio Alberto VieiraLuís Viveiros

margem 2nº? – maio 2008

impressão: graficamares, ltd.Uma edição da Câmara municipal do funchal – departamento de Cultura

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índice

nota de abertura:António Fourniera incurável febre luminosa de josé antónio gonçalves

Um dia com josé antónio gonçalves:01.00 José Manuel Mendesaté mais logo 02.00 José Agostinho Baptistale métèque 03.00 Maria Aurora Homemtravessa do descanso 04.00 Ernesto Rodriguespassos05.00 Vergílio Alberto VieiraQue a emoção em mim passe06.00 Onésimo Teotónio de Almeidanoites de insónia, ou directas com o jag07.00 Carlos Martinssete horas08.00 Marco GonçalvesUm presente invulgar09.00 João David Pinto CorreiaCerca das 9 horas da manhã10.00 Margarida FalcãoUm traço de memória11.00 José Laurindo Góis silêncio do poeta 12.00 Francisco Fernandesao meio-dia com o jag 13.00 Albano MartinsÀ hora do almoço14.00 D. Maurílio de Gouveia em memória de josé antónio gonçalves15.00 Margarida Watts Rodrigues Camachoontem16.00 Laura Moniz four o’clock whisky 17.00 João Carlos Abreua las cinco de la tarde18.00 José Manuel Cabral FernandesÀs 6 da tarde 19.00 João Rui de Sousaos livros caídos do céu…

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índice

20.00 Octaviano Correiatu nunca faltas a um encontro21.00 Irene Lucília Andradeo sobrescrito azul 22.00 José Gualdino RodriguesÀs portas da memória23.00 Edward Michael Kassabo senhor josé24.00 Gonçalo Nuno dos Santosda meia-noite à uma com o Zé

fora de horas:

Elisa Ciardipepitas nossasElmano Correiaa minha amizade com josé antónio gonçalvesFausto Bordalo Diasjag, meu amigoJoão Dionísiopara o josé antónio gonçalvesJoaquim EvónioHomenagem a Um grande Vulto da Cultura lusófonaJosé FélixCoração vulcânicoAntónio Duarte Brito Figueirôasobre o amigo josé antónio gonçalvesAntónio Fourniera fidelidade aérea às raízesHumberto FournierjagMateus Gouveiajag – o escritor e o dirigente desportivo Berta HelenaZé antónioCissa de OliveiraoK, ficarei no aguardoEduardo Bettencourt Pintorecado sem endereço e ao sabor da brisaLuís Rocha jag, polémico para sempreLuís Viveiroslembrança

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inquérito Ilha:

Francisco Freitas AbreuIrene Lucília AndradeJosé Vito BarretoAna Margarida FalcãoCarlos Alberto FernandesAntónio Duarte Brito FigueirôaCarlos Nogueira FinoJosé Laurindo GóisLaura MonizJosé Viale MoutinhoEurico de SousaÂngela Varela

Crítica literária:

José Laurindo Góisrosto da poesiaManuel Frias Martinslugares do amora propósito da poesia de josé antónio gonçalvesManuele Masiniacerca de esquivas são as aves: um escrito periféricoThierry Proença dos Santosem torno de algumas crónicas de josé antónio gonçalvesAlessandro Granata Seixas de SousaÀ espera dos deuses... talvez dos homensÂngela Varelao canto apaixonado da ilha em josé antónio gonçalves

jag na primeira pessoa:

A bruxa da rochaSede de aprender A poesia na primeira pessoaEntrevista, por Cissa de OliveiraEntrevista, por José Alexandre Ramos

post scriptum

resenha crítica por António Fournierpara uma biografia de jag por Marco Gonçalvesbibliografia de jag por Marco Gonçalves

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a incurável febre luminosa de josé antónio gonçalves

António Fournier

havia um bar lembro-me mas tão distante do balcão ondese pedia de novo um nenúfar com gelo ou seriauma estrelícia feliz e laranja com azul à mistura no lugarde um desgosto

José António Gonçalves, “Ode ao Bar Cheirando a Rosas”

Esta homenagem não é nem um panegírico nem uma hagiografia: é um tributo a um homem que nos marcou. A última coisa que José António Gonçalves haveria de querer, era ser recordado como um santo. Mas pode-se falar se calhar, em sentido laico, de milagre, esse momento raro em que alguém consegue interpretar, como protagonista, o seu próprio tempo histórico e ter a intuição de o estar a fazer. Há que reconhecer a José António esse mérito: conseguiu colher os impulsos do seu tempo, vivendo a aventura da sua vida na primeira pessoa, dando-lhe, àquele, um indelével cunho pessoal. A sua geração, nascida literariamente nos revolucionários anos 70, estava pronta e ele soube ser muitas vezes, quase sempre, o porta-voz. Agora que estamos mais conscientes da suprema inutilidade de tudo, da relatividade de todos os gestos, da validade limitada de todas as existências, estamos aqui reunidos simplesmente para dizer que lhe estamos gratos por ele ter enriquecido as nossas vidas.

Em 2005, quando vim ao Funchal apresentar a antologia Nostalgia dei Giorni Atlantici, fui ver o lugar que ele descrevera no conto “A bruxa da rocha” escrito de propósito para esse livro, e que de resto se publica integralmente aqui, pela primeira vez em português. Queria conhecer o lugar onde tudo começara e a que ele já se referira com tanta densidade poética em Memórias da Casa de Pedra e voltara a falar com a mesma força evocativa em As Sombras no Arvoredo, seu último livro. Fui à procura não da “bruxa da rocha”, mas do lugar desse menino do conto autobiográfico. E vi a casa, supostamente a sua, sem tecto, em ruínas. Imaginei ali o seu quarto e de seus irmãos, onde ao entardecer se projectava, como ele disse num verso soberbo, a sua televisão de sombras. Fiz questão de levar comigo os meus alunos italianos que traduziram a antologia, e ali, rente aos olhos, diante dessa microgeografia literária, com o campanário da igreja do S. Martinho ao fundo, sob aquele céu muito azul, caso raro, lemos algumas passagens desse conto. Como esta:

«O breu era dono do rochedo, com lua ou sem ela, abafando os seus contornos e escondendo a trilha nele aberta por seculares viandantes, como se engolisse a sua própria memória. Era preciso tirar os olhos do chão, esquecer o espírito do caminho e

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fixar a distância, onde era visível a silhueta das coisas, como estacas de bananeiras, postes de electricidade, telhados de palheiros, o campanário da igreja, chaminés ainda fumegantes, casarios com janelas abertas e iluminadas, umas árvores quietas e vergadas pelo tempo, o risco do horizonte do mar, com as luzinhas brilhantes das lanternas dos pescadores a bailarem como escaravelhos; era preciso tudo isso para esquecer o resto e realizar a alucinante viagem, no meio de rezas e do bater acelerado do coração. O fundamental, todavia, era não parar e, principalmente, não olhar para a casa escura de quem vivia ao lado: a “bruxa da rocha”(...). “Foi a bruxa da rocha, acredite-me!”, repetia o rapaz, desculpando-se desesperadamente por ter partido os dois garrafões de petróleo que o pai lhe mandara comprar à mercearia do sítio. “Vai e volta depressa [- tinha-lhe dito -] não tenhas medo e usa a vereda da rocha. Já é tempo de seres homem”».

Nada resta do futuro dessa infância, a não ser todos nós, testemunhas da sua vida e orfãos dos dias em que ele foi homem. E temos tido dificuldade em lidar com a necessidade de encerrá-los definitivamente. Aqui somos muitos, mais de 50, a testemunhá-lo. Somos todos, de certo modo, invenções de José António, invenções do futuro daquela criança. Foi pois dentro deste espírito que esta homenagem foi pensada: 24 horas da vida de José António Gonçalves, non stop, dia e noite, todas diferentes e extraordinárias, prova do homem solitário e gregário, íntimo e público que ele foi. Depois, eram já tantos os testemunhos que não couberam num dia, como não bastaria uma vida inteira para contar o que foi José António Gonçalves. Foram por isso reunidos Fora de horas, mas perfeitamente sintonizados com o mesmo horário do coração.

Afigurou-se também importante deixar um filtro colectivo de leitura desse fenómeno único e aglutinador da poesia insular, que foi as colectâneas Ilha organizadas por JAG, pelo que um breve questionário circular foi submetido a todos os seus intervenientes. Solicitou-se ainda novas leituras críticas da sua obra, porque o maior tributo que se pode prestar a um autor, mais do que o afecto que é espontâneo e nasce do coração, vem da inteligência que é construída como acto de generosidade da mente. Reservou-se para o fim uma secção para onde confluiram textos dispersos de José António Gonçalves que ajudam a delinear melhor o seu perfil de escritor, bem como duas entrevistas recolhidas na net e o conto inédito “A bruxa da rocha” a que já se aludiu. Finalmente repercorreu-se a recepção crítica dos seus livros desde a pequena nota no jornal onde o seu primeiro livro foi composto, até à última recensão numa importante revista internacional a propósito da recente antologia italiana Rasente gli occhi. Por último, Marco Gonçalves ensaia alguns passos para uma futura biografia do escritor. Contudo, esta homenagem é ainda um último post-scriptum de José António, a três anos do seu desaparecimento. Depois virá - tem de vir - o tempo da frequentação assídua da sua obra e a integração da mesma dentro do tempo literário português. Este tributo pretende ser um apontamento para esse tempo futuro.

José António Gonçalves participou activa e apaixonadamente, com outros intelectuais da sua geração, na construção da paisagem literária madeirense no último

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quartel do século XX e nos primeiros anos deste século, determinando o clima cultural do Funchal, delineando a sua geografia de estímulos indeléveis e nexos significativos. Fê-lo porém - e nisso se distingue claramente dos seus pares - da única maneira que sabia: na primeira pessoa, protagonizando intervenções de relevo, dinamizando iniciativas memoráveis, incendiando paixões e motivando acesas polémicas em torno da questão literária. É, por isso, figura incontornável nos últimos trinta anos da história mental do Funchal, numa época de pioneirismo cultural, de entusiasmo e voluntarismo, que ele, com o seu optimismo da vontade, a sua generosidade de espírito, pôs ao serviço do seu tempo.

Hoje sabe-se, esse tempo era um tempo de transição. Era um tempo que saía do analfabetismo, era um tempo que vivia ainda de uma sabedoria popular e de uma memória gerontocrática, ao ritmo lento de atrasos endémicos, numa vivência rigidamente estratificada e marcada, em tempos de extrema penúria, pelo cultivo do valor moral da poupança. Nascer na ilha nesse tempo, nos anos 50 quando JAG nasceu, e pertencer a uma classe média como era o seu caso, representava ter um horizonte curto e limitado à sua frente. Faziam-se 4 anos de escolaridade e eventualmente apertava-se o cinto para concluir o liceu. Ir estudar para Lisboa ou para Coimbra era uma utopia, ou quanto muito, e só para as famílias mais desafogadas, um sacrifício que tinha de ser muito bem ponderado. Porém, na esmagadora maioria dos casos, mal houvesse oportunidade, os adolescentes começavam a trabalhar para contribuir para a economia familiar. Aquele sorriso ingénuo de menino a trabalhar, por motivos de força maior, na Papelaria do Colégio (p.74), subtraído à educação que ele depois, autodidacta como era, viria a completar superando-se ao seu tempo, vale mais do que mil palavras.

Neste contexto, como era fazer literatura no Funchal? Um caso sintomático de que José António se envergonhava - certamente da sua cidade, não dele próprio - foi o que lhe aconteceu quando lançou o seu primeiro livro em 1973. Depois da apresentação de Réstea de Qualquer Coisa, no Cine Jardim, um caixote com vários exemplares ficou esquecido naquelas instalações. Quando, dias depois, José António foi buscá-lo, os seus livros estavam na casa de banho, a servir de papel higiénico! Era esse o seu tempo, o tempo mental da ilha então, e foi esse o seu e o nosso ponto de partida para chegar onde estamos hoje. Esse era também o tempo de iniciativas filantrópicas, jogos florais e florilégios de salão, privilégio, em qualquer caso, de poucos instruídos e iluminados. A geração de Arquipélago tinha ficado para trás, dispersa nos anos 50, quando Helder abandonara a cidade; a geração do suplemento “Pedra” do Eco do Funchal e depois do Comércio do Funchal implodira, minada internamente pelos extremismos da revolução democrática que ela contribuíra a preparar. Não havia pois quem abalasse a cidade, quem a poeticizasse.

A actividade cultural de José António Gonçalves coincide com o início desse tempo novo. A. J. Vieira de Freitas, ligado a JAG por laços familiares, e pioneiro cultural desses anos, viria a morrer prematuramente, trilhando porém um caminho poético e deixando uma herança de utopia que JAG, participante de primeira hora, saberia

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continuar, desemvolver e frutificar. Juntamente com outros jovens poetas reunidos em torno da “Página Poesia 2000” que ele próprio dinamizava, José António trouxe a poesia para a rua, transpôs para a linguagem poética uma cidade que mudava, um tempo que floria, um sentimento que não tinha ainda nome em poesia. Hoje é o tempo da universidade, da pesquisa sistemática, de uma sociedade mais evoluída e mais consciente de si própria. Mas ele contribuiu como ninguém para nos trazer ao tempo mental em que hoje vivemos. Crescemos todos culturalmente, mas também humanamente com JAG. Com a coragem daquela criança em ultrapassar os seus próprios medos e derrotar os seus próprios fantasmas, com as suas dúvidas e os seus tropeções, com as veredas que trilhou no escuro e as tempestades que ultrapassou para encontrar o seu caminho, para fazer a “alucinante viagem” que foi a sua vida. O Funchal, este Funchal que comemora 500 anos como cidade, cresceu literariamente com ele. Deve-lhe muito. Deve-lhe, entre outras coisas, uma espécie de consciência de si próprio como topografia literária, como cidade de poetas e escritores.

E José António – há que dizê-lo - fê-lo crescer, praticando sistematicamente uma forma inteligente, moderna, subversiva, de mediação cultural. Porque pior do que chegar atrasado (como algum livro seu para uma apresentação fantasma), é chegar antes do tempo (como fez ele em relação ao seu próprio tempo histórico). Considero José António um raro, raríssimo, mediador cultural, tão importante no contexto madeirense como o serviço de bibliotecas itinerantes da Gulbenkian: só que a biblioteca era ele próprio que criava, transportava e dava a ler. José António Gonçalves tinha um entendimento lato da palavra cultura, da educação cultural. Educava os nossos corações ao diálogo. Anulava os compartimentos estanques. Havia e há nesta cidade uma certa aristocracia da inteligência, um certo snobismo do intelecto, uma certa tibieza ou pusilanimidade endémica, um certo pudor provinciano do escândalo. Havia e há nesta cidade uma forma de covardia intelectual. Não era decididamente o caso de José António Gonçalves. Independentemente dos erros e defeitos que tão vitorianamente lhe foram apontados por esta sociedade de vícios privados e públicas virtudes, nunca faltou a JAG a coragem civil de participar.

Ainda vai vir o tempo de caracterizar o clima cultural em que ele viveu e condicionou os outros a viver, com um fervilhar de ideias arrojadas e iniciativas inovadoras, a par do tempo histórico que mudava, na utopia de construir do nada uma tradição e uma voz poética que se colava à ilusão de uma identidade cultural. José António contribuiu como ninguém para fazer a transição de um tempo para o outro, catalizou esforços, sempre passional, intenso e arrebatado no entusiasmo e sobretudo sempre consciente da responsabilidade que ele próprio quis assumir. Depois da sua morte, se calhar esta cidade também se tornou mais cínica, ciente de que o voluntarismo de todas as utopias tem um custo. Um facto inegável é que se tornou de repente mais melancólica.

Uma vez, em 1999 ou 2000, acompanhei-o numa volta à ilha em bicicleta, que ele organizava como presidente da associação de desportos da Madeira. Vinha connosco um poeta continental, de que nunca tinha ouvido falar, nem sei por intermédio de quem

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José António o conhecera. Mas nessa altura era tudo novo para mim, não questionava o que me era dado ver: José António assegurava a normalidade de todos os actos e eu, convidado dele, estava ali para aprender. Tive então oportunidade de seguir uma etapa na carrinha com José António. Não me lembro do que falámos durante esse memorável percurso pelas estradas do interior da ilha, assistindo ao esforço daqueles atletas na subida, parando perante algum precalço, acelerando nas descidas para lhes acompanhar o ritmo. No final, José Antonio, até aí muito profissional no seu papel de agente desportivo, pediu-me que apresentasse o livro do amigo. Não o conhecia, li o livro à pressa, preparei uma apresentação em cima do joelho, perante a perspectiva de falar para uma plateia preparada e exigente. Qual não foi a minha surpresa quando verifiquei que o público na sala de uma delegação regional qualquer, no fim desse dia, eram aquelas mesmas pessoas relacionadas com o ciclismo, meia-dúzia de ouvintes que provavelmente estariam ali para ouvir falar de tudo menos de poesia. Todos nós, o público, José António, o poeta continental e eu, demos o melhor de nós próprios, tentando agir normalmente numa situação que nada tinha de convencional.

Esta capacidade de sobrepôr os planos, de aproximar a literatura da gente comum e a gente comum do círculo rarefeito da poesia sempre foi apanágio de José António. Essa habilidade em pedalar sempre e em todas as circunstâncias, para atingir os difíceis, impossíveis, píncaros espirituais da ilha, ou nas descidas a contra-relógio, para ter um livro pronto, fora de horas, sempre foi imagem de marca de José António. Ninguém lhe tira nem tirará a camisola amarela. Essa a capacidade de síntese de dois tempos. O tempo da fome, das dificuldades económicas, da emigração, e o tempo da melhoria das condições de vida, do conforto moral e do bem-estar. Mas também o tempo interior da ilha e o tempo exterior de quem não conhece a ilha. Foi ele que os pôs em contacto. Essa vontade de subverter protocolos, de perder as chaves das portas e entrar pelas janelas, fê-lo anular distâncias, interpretar anseios, pôr em contacto realidades inconciliáveis, dignificar vivências, delinear um mapa literário do lugar onde poesia e vida eram a mesma e única coisa. Havia nele uma genuinidade febril, uma febre luminosa como diria Pavese, que radicava na sua natureza rebelde, na sua irredutível incapacidade de estar parado, no seu talento inato para movimentar-se à vontade entre planos diversos. Esse o tempo de transição de que José António fez de ponte.

José António Gonçalves foi um levadeiro da literatura na Madeira, abriu as comportas mentais desta cidade, levou a água aos moinhos da cultura e devolveu a todos o pão. Pôs em contacto os de fora com os de dentro, os de muito de dentro com os da cidade que os marginalizava, da mesma forma que outros de fora a isolavam, aproximou os artistas dos poetas, os professores universitários dos faroleiros, os escritores dos donos das tascas, sem solução de continuidade. 70 livros são muitos, e 40 livros, fora as antologias colectivas, feitos para dar voz a outros são um caudal impressionante para uma vida só, e são por si só testemunho incontornável do que ele fez por esta cidade e da energia e intensidade mental que colocou nos seus livros. Fomos todos contagiados por essa incrível febre luminosa de JAG, como de

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resto pretendem testemunhar estes depoimentos, também eles, sem solução de continuidade.

Agradeço a todos os participantes neste abraço colectivo a JAG, e em particular àqueles que não só o fizeram como permitiram o contacto com outros, todos importantes para reforçar a intensidade deste tributo a um homem que nos marcou. É meu dever agradecer de modo especial ao Marco Gonçalves, pelo brio com que cuida a herança paterna, facultando-me o acesso ao espólio do escritor, e novamente à Maria Aurora Homem por ter colocado uma vez mais à minha disposição um espaço nobre para repor por outros a justiça literária que faltava, que nos faltava. Enquanto ainda a repressão da memória nos domina, antes que seja difícil recordar um gesto de JAG sem amargura e só com saudade, antes de olharmos com remorso para uma ocasião perdida, quisemos partilhar um dia da vida de José António, para o trazer por uma última vez, um só milímetro mais perto de todos nós.

Ilhas Selvagens era uma revista que José António projectava nos últimos anos da sua vida, forma de metabolizar a mágoa de uma outra que, relançada, se vira privada – dizia ele - de quem primeiro o incentivara. Esta homenagem, num regresso simbólico a uma ideia que ele acalentou, é por isso, para todos, o fechar de um círculo. Na crónica “Para uma recordação” incluída naquele seu primeiro livro que alguém cuja ignorância ele quis combater, reduziu a papel higiénico, José António dizia: «Havia, nessa altura, em cada varanda, um sinal de vitória. Nunca interessava saber o que se tinha vencido. O que importava era termos ganho alguma coisa. Então nascia em cada janela um olhar lânguido, ou uma criança rosada, uns cabelos sedosos, uma boca carnuda, natural, sem pinturas, que se não movia, ou uma mão que acenava ligeiramente, numa sinfonia transparente de cortinados azuis. Nesses acenos ficava a razão da nossa liberdade. A intuição de ambicionar. E víamos que outra época se nos metia nos bolsos. Chegava o tempo de comprar flores e de mandar cartões de visita. Chegava o tempo de andar com o estojo de barbear na mala empoeirada das viagens – muitas vezes sem regresso – e tudo o que sonháramos, incredulamente, nos parecia possível. (...) Agora que somos mortos, os mortos têm mais necessidade de regalias, dos beijos dos anjos, de carícias com penas de asas». Para ti José António, esta carícia possível, feita com penas terrenas, demasiado terrenas.

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até mais logoJosé Manuel Mendes

Bebemos outro uísque?Com duas pedras de gelo. Pena que a música ambiente seja esta catástrofe.Isso resolve-se. Vem daí. Sinatra, gostas?Estamos de pé junto ao balcão. Dizes ao barman Mudem o disco, ninguém

quer agora dançar. Tem aí o Frank, the old Frank? Ou o Bennett, também faz uma boa companhia. Qual preferes?

E é o Sinatra a recobrir as vozes na sala, exaustão saboreada, o nosso diálogo outra vez à mesa. Tínhamos tirado os casacos, há muito que se aguçara o teu humor evocando episódios do passado nas mil paisagens do acontecer, esse fio em que nos movíamos como quem perdeu a bússola no alto mar.

And I did it my way. Canta, presságio do sul.Volta a ler-me tu os poemas que escreveste para acrescentar ao novo livro.Um dueto com ele, insistes.Trauteio enquanto, num golpe de asa, recitas João Rui de Sousa, Albano

Martins, Natália Correia. Abro então o dactiloscrito dos teus inéditos, que nessa tarde quisera premiar. E digo as aves da ilha numa fulgência de sal, barcos à deriva, ruas obscurecendo sob o vento, a mulher amada, os amigos ardendo na flor do instante. Ficas de olhos marejados, fumando, e eu como castanhas de caju.

Recordo a tarde. A jornada cultural no Teatro. Chegaste com um dos livrinhos de cordel. Na cadeira a meu lado, cabelo comprido, traços daquela angústia que amiúde sofreias para que seja sorriso, busca do outro, doação, Sabes quem me pus ontem a reencontrar?

Soares de Passos ou o espinafre que falta ao Popeye?Bingo! Ainda hás-de acertar no corno de oiro da felicidade. Mesmo baldando-me aos treinos?Breton, imagina. André Breton. Que gajo. E a seguir o comunista do Céline.A Teresa fez-nos calar. Já a sessão principiava. Árvores da Avenida, o seu

odor arroxeado.Mas agora a noite avança, navio indolente através da névoa. Tony Bennett

coloca-se por minutos à frente da orquestra, espreito o relógio, estou alojado num hotel a oito, dez quilómetros do Funchal, de súbito desce a tristeza, a tristeza desce, cinza cálida ao recordarmos o Dórdio Guimarães na Lapa, broa de mel, vinho da Madeira, cigarros, finda a Assembleia Geral da APE em que pela primeira vez foste eleito membro dos corpos gerentes. Farrapos de poemas, as línguas mesclando-se, Wallace Setevens e Roberto Juarroz, Herberto e Jacques Réda, les ruines de Paris, novamente Natália, e tu, deitando uísque nos copos A poalha de mica que voleja quando / os amigos partem

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Sem dizer ai. Conheço o autor. Zé António, não serão horas de recolher? Ronda salitrosa dos ponteiros por detrás do fumo. Uma hora, madrugada menina,

tão na margem de qualquer urgência.Vai indo. A menos que te apeteça um meiple na Rua Sidónio Pais, estupendo

para a cervical e restantes porcarias do corpo.Vou indo, sim. A insónia espera-me. Jet-leg, percebes?Ok. Aguardo aqui uns tipos com quem vou fazer a revolução que tu não

sonhas.Ó elevador, um abraço feliz.Até mais logo, meu velho.Até mais logo.

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Le métèqueJosé Agostinho Baptista

Canta-me le métèque, josé antónio, dizia-lhe eu, nesses já longínquos anos setenta, entre as duas e as três da manhã, no restaurante são pedro, na cidade adormecida. Então, ainda havia as buganvílias sobre as ribeiras, a genebra e as tangerinas no mercado, gladíolos e orquídeas, frutos de uma inesperada doçura. Às vezes, uma estrela parava no cais. Ou era a pequena luz dos nossos olhos que ardiam? E ele cantava. Ele cantava sempre. Nesse tempo, éramos jovens, quase loucos, quase felizes. Depois, afastaram-nos os anos e a geografia, o pensamento ou o vento, a ideia do homem e das coisas, a distância que vai de uma ilha a um continente em ruínas. Fomos caminhando pela vida, e os caminhos já eram diferentes, os portos, os barcos que não víamos juntos, as palavras de escrevermos em verso o reverso dos dias. Divergimos, desencontrámo-nos. Mas ainda bebíamos. E sempre que os nossos passos, por mero acaso ou talvez não, nos conduziam a um qualquer lugar da noite, ele ainda era a festa, a mesma excessiva voz vulnerável, tantas vezes devorada pela impiedade do mundo. Ele continuava generoso, incendiando as cidades, inquieto, amigo.

Quis o destino – porque é sempre o destino que quer ou não quer – que nos encontrássemos num porto do norte, num bar, numa noite próxima da poesia. E voltei a dizer-lhe: canta-me le métèque, josé antónio. Mas ele cantou as bordadeiras, essa canção de encantamento, essa bela canção tão desconhecida de MAXimiano de Sousa. E foi como se tivéssemos regressado a um litoral mágico, à pequena luz dos nossos olhos que ardiam, à genebra e às tangerinas, quando éramos jovens, quase loucos, quase felizes. O pássaro morreu, mas eu sei que nos ramos de uma árvore secreta, num céu mais alto e de outro azul, ele pousa e vê esta mão que escreve o último adeus.

Canta-me le métèque, josé antónio.

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travessa do descansoMaria Aurora Homem

José António já bebeu bem. Aliás estamos todos bem bebidos e bem dispostos. A noite estende-se em acalorada discussão sobre poetas, escritores, publicações.

Há alturas em que damos todos “em cima” do José António. Que facilita demais, que não tem critérios selectivos que é o “Regional porreirismo”... Ele ouve, ouve e nem responde.

É sempre assim. Discutimos: a Margarida, o Sainz Trueva, a Irene, o Fino e eu. O José António nunca discute. Sorri. Ele sabe que fará o que melhor entender. A deitar água na fervura a Gilda. Sempre a Gilda ao lado do José António.

A vizinha do lado chama a polícia: há demasiado barulho em minha casa.Não tarda a brigada bate á porta.Eu na janela:– Tenham paciência! Há reclamações da vizinhança. Já é tarde, diz um jovem

polícia de mão na campainha.O José António na janela:– He pá está tudo bem? Quem está contigo?O jovem polícia fala no chefe X.– Arrumem o carro e subam, convida o José António.Na minha sala senta-se o chefe e o jovem polícia da brigada com um Walky

talk ligado a intermitências. O José António serve. Bebidas. Várias.Olhamo-nos todos e a noite prossegue.Os convidados do José António falam por vezes com a Central.– Está tudo bem! Não há novidades.A certa altura o chefe entusiasma-se. E ergue a voz cantando ao desafio com

o José António.– Oh chefe, diz o jovem polícia, olhe a vizinhança.– Que se lixem os vizinhos.E a noite aí está em animada confraternização estendida até às 06:00 horas

da madrugada.O carro da brigada, estacionado na frente da minha porta vai levar o José António

e a Gilda a casa deles, ali acima, na Sidónio Pais

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passosErnesto Rodrigues

São quatro da manhã, quando desbancamos da cidade velha. José António vai na sétima estação – que jovem, ainda, crinado de ilusões sobre os ombros! – e, ajudado pelo muito gelo, não vacila, nem requer verónica. Por mim, gostaria que alguma lavasse este rosto desencantado, já sorrindo, desde a Muralha, aos sonhos literários que ele evoca, talvez por se saber mais próximo do calvário. Respondo com a posteridade, essoutra noite, noite de que poucos se libertam, em que nos encontraremos, acredito.

Dois irmãos, como uísque e gim tónico, vão ao longo da prata agarrada ao mar, que se desprenderam – prata e mar – da baía penumbrosa. Ali, na marina, reatámos, com sargo grelhado, mais de uma década sem nos vermos. Almoço demorado, como pedia a vontade de prolongar amizade, que lança derradeira vai abismar. Não sabíamos, então, que algo nos organiza, que, tantas vezes sem contar connosco, exige a moldura em que nos façamos espelho, ou seja, obra toda num só rosto de papel, volume-balanço de que lhe falo, e projecta, mas logo ultrapassa. Há uma sede que nem a noite acalma – quando se tem coração grande, se vive em frenesi, não há hora para pesar os dias.

Paulatinamente, vemo-nos como de outro tempo, nas luas fáceis de hoje, mesmo se não podemos queixar-nos, tanta glória breve tirámos de O Poeta Faz-se aos Dez Anos (1973), comigo disfarçado. Em cada passo desta cruz incerta, revê-se o caminho de cada um, a voz anima-se, boceja acolá, mas o percurso de amanhã (de mais logo, de facto, quando já nos toca um calafrio) é outra insatisfação, a dúvida sobre sermos capazes de olhar o lugar como ele merece, a ideia de Ilha, por exemplo: como a vê ele? eu, como posso resolvê-la?

É uma conversa de meia vida, digo eu, que não saberia, nesse voltar para trás do passeio, dividi-la tão cruelmente. Sinto que José António tem um impedimento: afastar-se por largo espaço desta espuma, do céu de pirilampos ao redor. Viaja pela dissolução de outras pegadas: as minhas, nada exemplares, as de Dórdio Guimarães (igual sedentário, e não menos bebedor nocturno), de João Rui de Sousa, que celebrou a poncha em haustos líricos, ou vozes de Fausto e Carlos Martins. Defende os seus e receia o salto, uma ausência prolongada, como essa fumaça que vai, bem tirada, diluir-se na maresia. É um sensitivo. Como não somos moralistas, tudo nos sabe; alguma provação é só uma experiência, mera passagem para o optimismo.

Dealbámos nos anos 70 e, mais do que eu, ele permaneceu aí demasiado tempo. É outra forma de agasalho. Fico com a impressão de que os seus riscos nunca foram rupturas, como se observa nas dissensões com certas pessoas, sem cortes definitivos. É o mal da ilha, quiçá; ou o seu bem? Porque não ser-se Ovídio em exílio no café do Teatro?

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Sugiro eu, quando já marginamos o Baltazar Dias, com a paragem de táxis feita longa minhoca apagada. Mas ainda nos sentamos no jardim. E sei que, se parto à tarde, a despedida tem de ser um pouco mais longa.

De súbito, cai um silêncio nos olhos subindo para a cinza: ele consulta a realidade. Aguarda, porém, num adormecimento fugaz, como se o sono tivesse batido e, sem resposta, passasse a mim. Ao longe, um ardina; o quiosque próximo, entretanto, parece desconjuntar-se, mas é a moleza que nos levanta, e engana. São seis e meia.

Vamos, afinal, ao encontro da voz que apregoa o Diário, e, na lentidão da felicidade, ele folheia como quem chega à companhia de amigo desembarcado no aeroporto. Na página de opinião, recriando deambular, com espírito cordato (diz ele, mas, céus, nomeia-me!), ao longo da cidade velha e baía, e meio sono ajardinado, José António Gonçalves debate o verso da ilha, e seu, prosseguindo conversa que o torpor matinal não me deixa contestar, nem resumir.

Tenho esse artigo muito bem guardado. Há um domínio madeirense no meu dicionário de afectos. A ordem dos nomes não é alfabética, seja por apelido ou pelo primeiro, como numa época da livraria Esperança.

Peço aos deuses um sono sereno. Em que passo irei, quando, mais logo, também eu voar?

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Que a emoção em mim passe Vergílio Alberto Vieira

E é como a aragem que nasceDe ouvir música e sentir…Ah, que a emoção em mim passeComo se a estivesse a ouvir!

Fernando PessoaCancioneiro

O que mais me dói verdadeiramente não é o sentimento de perda (esse insufragável sentimento de perda que os anos que o luto cura com os anos), mas o desamparo sentido no aeroporto de Santa Catarina onde, tempos depois, fiz escala a caminho de Porto Santo, para mais um desses encontros inesquecíveis em que tínhamos estado juntos, rodeados de gente jovem por todos os lados.

O que mais me doeu verdadeiramente, passados tempos, foi a orfandade do desencontro no aeroporto de Santa Catarina: «Eu [tive] o sentimento de estar de pé, ao crepúsculo, num campo de tiro abandonado.»

Anos antes, numa das sortidas que me levara ao Funchal, o poeta João Rui de Sousa (à data promovido ao posto de almirante) quis a deriva que fôssemos parar, já com a madrugada em avançado estado de liquefacção, ao Banana’s, para uma acostagem de recurso, sem a restante tripulação, porque à ondulação intensa das noites do Funchal nem todos resistem: «Leva-lhes o vento a voz, /que ao vento deita», diria Camões aos poetas em trânsito.

Dessa vez, andança cultural funchalense quebrara o ânimo aos convivas que, de manhã à noite pelas ladeiras íngremes da jornada não tinham tido descanso, e depois das quatro já só o José António Gonçalves e eu tínhamos voltado as costas ao sono como o opiómano De Campos que se considerava «um convalescente do momento».

Com a madrugada a despontar nos mastros balouçantes da marina, um verso meu, trazido à mesa como puxão de anzol lembrou ao poeta madeirense o que viria a ser a flor da aurora daquele amanhecer atlântico:

«Absynto! É o que falta à mesa de quem escreveu – Entre colinas/corre//o deleitável absynto. Absynto!»

«Absynto muito!, mas a esta hora ….»E porque já Fitzgerald tinha voltado à mesa para um brinde que só anos depois

me deixaria sozinho frente: «(…)ao crepúsculo, num campo de tiro abandonado», não pude dizer não, não poderia nunca dizer não ao poeta que por nós passou: (…) como aragem que nasce/De ouvir música e sentir» para que a emoção em mim passe.

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Noites de Insónia, ou directas com o josé antónio gonçalves

Onésimo Teotónio de Almeida

Se me pedissem para falar do José António Gonçalves às quatro da tarde, creio que não saberia dizer nada porque não tenho a mais vaga ideia de conversar com ele assim tão cedo. Desconheço-lhe a vida particular, mas calculo-o a dormir por essas diurnas horas recuperando das noitadas que seguravam a cidade viva até ao dealbar da manhã, sua hora de recolha. Nunca ninguém no Funchal terá visto mais vezes a alvorada. Desafio os críticos a encontrarem outros poetas que falem tanto em amanhecer e madrugar. Pego num poema à sorte onde a cidade acorda nos murmúrios suaves das ribeiras, e depois noutro com o dia a rasgar as sombras, ou ainda em mais um Eis o dia a luz a visão desesperada / O ventre quente ainda abominavelmente / revolto / da madrugada. O JAG adorava encher a noite de convívios e conversas porque o importante é a noite interminável / o sol que se esconde na lua escura. E quando já não havia quem lhe acompanhasse a pedalada, ou resistisse bastante para ouvir mais uma das intermináveis estórias que envolviam o rol dos poetas e escritores portugueses seus conhecidos, a quem mostrou a noite do Funchal e massajou com estórias de outros poetas e escritores, de permeio recitando-lhes poemas seus, quando até a adoring e paciente Gilda se recolhia a casa, quantas vezes nessas noites lhe restavam só os gatos e os vagabundos capazes de com ele dar pelo nascer da manhã inevitável. Eu próprio algumas vezes o deixei noitada dentro algures num barulhento bar do Funchal conjugando-se com satisfação, e hoje lamento esse cruel abandono em convívio com a melancolia dos vagabundos ocasionais depois de horas ininterruptas a experimentar a autenticidade daquele verso A porta do bar é a janela da noite. Ele bem chamava Venham todos para a mesa / Companheiros, e havia quem fosse, sobretudo os forasteiros porque não era assim todos os dias que tínhamos um monte de generosidade, de afecto e de companhia sabedora de tanta res literaria e de verbo compulsivo. Muitos locais eram mais prudentes por já saberem de cor que com ele a noite só desaguaria em madrugada de sol a nascer sobre a cidade e o sono adiado vingar-se-ia carregando-lhes o sobrolho numa sala de colóquio em sessão mais morna impondo-lhes um irresistível retempero.

O José António era uma torrente de camaradagem, um frequentemente chato sempre generoso que não tinha culpa do incontrolável turbilhão de palavras rebolando-lhe no cérebro, nem das recordações que lhe enchiam a alma de versos, de imagens e evocações de encontros que pululavam a conversa anónima pintada com a cor da loucura. Aos açorianos falava das suas ligações com todos os poetas açorianos e aos de Lisboa idem, e do Porto, do Algarve e do Alentejo e por aí fora toda a lusa geografia. Era a Natália, o João Rui de Sousa, o José Manuel Mendes, de novo a Natália, o Vergílio Alberto Vieira, o Ramos Rosa, o Eugénio de Andrade, o

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David-Mourão Ferreira, outra vez a Natália e agora o Dórdio mais o Botequim, o Ary dos Santos, o Vitorino Nemésio, e mais os estrangeiros a quem ele queria transmitir um Funchal literato, sabido e cosmopolita, boémio e vivo, banhado em poemas e não apenas decorado de esterelícias e orquídeas e outra flora para deslumbre dos turistas alemães de terceira idade. Eles cansados, a quererem a cama cedo à nórdicos e o JAG por entre o amargo da cerveja fresca o aperto do tabaco, sem dar tréguas. De verbo fluente, uma enciclopédia em peças de legos saltando profusa e só aos distraídos aparentemente desconexa. Mas isso tudo, essa exuberância loquaz, verborreica, facunda, esse torrencial excesso não raro teve o efeito pouco justo de se lhe ignorar os versos de poeta de gosto sabedor do ofício da palavra e dela jongleur e mestre. A sua familiaridade com a poesia era afinal a verdadeira raiz quadrada do [s]eu ser e fazia-lhe acreditar que as insónias conquistam o direito a ter asas / e voam pelos telhados / na desenvoltura perturbada dos poemas / e frementes de paixão espalham-se geométricas como casas / distribuídas pelas calçadas onde o amanhecer é certeza / de que o sangue é quem não dorme disfarçado / de sentinela ou de fortaleza impenetrável.

O José António deixou um buraco negro nas noites do Funchal. A generosidade ambulante e convivente, que fazia da ilha um universo de versos e poetas e os sentava à sua volta num banco perdido do jardim ou num bar enjoando a tabaco e a bafo etilizado, partiu e deixou-a mais silenciosa, sem conseguir esconder a nota triste da sua ausência. Tanto que, quando os visitantes habituados à companhia do poeta o recordam, na sua memória sopram ventos de melancolia porque já ninguém se senta no jardim cantando / a lua prateada.

Pois é, José António, partimos aos poucos como partem os vagabundos as aves / os soldados os poetas ou apenas os amigos / e acordamos amanhã devagar com o cheiro de outra loucura. Não sei deveras se às quatro da tarde ainda dormias, porém sei que às seis da manhã ainda falavas. Mas garanto que na minha próxima ida à tua cidade vou sentar-me no café do Teatro diante de uma cerveja a escutar lentamente a tua lengalenga e preencher assim o silêncio aberto que um dia deixaste na tua amada cidade pregando-lhe a inesperada partida de desapareceres na recusa do [t]eu amanhecer.

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sete HorasCarlos Martins

… e quando entrámos no meu velho “Barra Oito”, uma relíquia de mil novecentos e setenta e quatro cheia de cromados (eu, a Mariana e o Zé António. Não foi fácil convencê-lo a deixar o local onde, porque o ambiente estava excepcionalmente de feição, me excedi no horário previamente acordado, e toquei e cantei até que o relógio ultrapassou as três e trinta da madrugada. Depois disso, num ritmo mais que dolente, a casa foi-se tornando cada vez mais ampla até que, da turba que oscilava entre a emoção do saudosismo da época das canções que tinham ouvido e os efeitos da incrível quantidade de álcool já ingerida, apenas dois dos bêbados habituais mais resistentes, o proprietário e o empregado, ambos em semelhante transe, e nós os três, justificávamos a manutenção das luzes acesas e do som da aparelhagem que nos presenteava com o “Livro” do Caetano Veloso. O Zé António, loquaz, ia deliciando os interlocutores com a acérrima defesa de certas tomadas de posição do amigo Alberto João Jardim, demonstrando de forma inquestionável que as argumentações do proprietário do estabelecimento comercial eram infundadas e, enquanto isso, os dois bêbados habituais mais resistentes iam tentando debalde provocá-lo, motejando até, à notória falta de capacidade para mais, da sua peculiar pronúncia de madeirense de que dizia orgulhar-se. Mas lá consegui, depois de interminável insistência. Várias vezes ameacei ir-me embora e deixá-lo ali sozinho – ou com os bêbados, o que era consideravelmente pior – mas o seu olhar, um misto de acusador, suplicante, trocista e magoado, castigava-me implacável e impedia-me de dar corpo a tais ameaças. Lá consegui.) que liguei de forma mecânica, com o entendimento semi-nublado, o rádio Blaupunkt topo de gama que automaticamente se accionava deixou-nos ouvir o sinal horário das sete horas da manhã que a T.S.F. parecia ter mantido em banho-maria especialmente para aquela ocasião.

Barafustei pelo adiantado da hora, culpando o Zé António pelo meu cansaço extremo. Porém, no retrovisor, brilhava intenso o mesmo olhar que antes me mantivera ao seu lado. Ao meu, virada para trás, sentava-se a Mariana, com quem ele encetara entretanto, sem que os meus sentidos embotados disso me tivessem permitido dar conta, uma conversa entre o científico e o erótico na qual, com veemência, apelava para que a sua atenção (e também para a minha, com a força daquele olhar intenso com que periodicamente me fitava através do retrovisor do velho “Barra Oito” por si tão apreciado, e que já se movimentava em direcção ao hotel onde ia pernoitar, a sete minutos de distância àquela hora, para depois, às dez em ponto, ser presente à importante reunião que era a principal razão da sua visita à capital) se concentrasse na extrema importância que os pés (sim: os pés!...) deveriam desempenhar para que uma relação sexual pudesse ser considerada ímpar. Exacerbava a sensualidade do pé, explicava-lhe (à Mariana) cada contorno e como o percorrer para que tal viagem

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fosse, tanto para o dono do mesmo como para quem o explorasse, se assim se pode dizer, um dos mais excitantes períodos que o encontro, no seu todo, encerraria. Ia dando uma interminável descrição que, de milímetro em milímetro, de linha em linha, de curva em curva, ia construíndo o pé obra-prima e protagonista desta história que o meu cérebro esgotado já tinha dificuldade em seguir, dado que, entretanto, tínhamos chegado, encontrando-nos estacionados à porta do hotel.

A sonolência em que já me encontrava continuava a ganhar corpo em mim e o meu ia-se adaptando aos contornos do banco, da porta, do vidro, do guiador, procurando instintivamente uma posição que lhe permitisse abstrair-se daquela realidade absurda e deixar que Morfeu dele se ocupasse um pouco.

Pelo olhar semi-cerrado ainda me dei conta que as luzes dos candeeiros se apagaram, mal sincronizados com a luz do dia que ainda não tinha chegado. A escuridão envolveu-me.

Quando os meus olhos se adaptaram melhor a esta alteração de intensidade de luz, dei-me conta que a Isabel estava a estacionar o carro numa rua estreita muito íngreme e escura. Tinha-nos ido buscar perto da meia-noite ao hotel “Tuela”, tinha-nos levado a uma casa chamada “Capa Negra II” para que pudéssemos experimentar aquela que, na sua óptica, era a melhor “francesinha” de Portugal (onde o Zé António, sem que se pudesse adivinhar as suas intenções, se tinha levantado da mesa, tinha puxado pela sua bela voz colocada e, a plenos pulmões, entoara “La donna è mobile”, para gáudio dos demais utentes daquele simpático espaço, e estupefacção da Isabel – à semelhança daquela vez em que, num restaurante com o Dórdio Guimarães, tomara a iniciativa de se levantar e, ambos muito solenemente, se puseram a cantar o Hino Nacional, o que teve como consequência o imediato silenciar de todas as outras vozes que, com menor ou maior intensidade, se faziam ouvir na sala e, de seguida, que todos os clientes se fossem também levantando e começassem a cantar com eles, ainda que sem compreender o que se estava a passar…) e, naquele momento e a pedido do Zé António, ia fazer-nos conhecer um pouco mais do que a noite portuense mais profunda tinha para oferecer a quem nela se quisesse aventurar. O lugar escolhido (não me lembro por quem mas, provavelmente, pela Isabel, já que nós dois praticamente não conhecíamos o Porto) foi um bar escondido num lugar ainda mais escondido mas, pelos vistos, conhecido, onde havia um importante concurso de “karaoke”.

Batemos à porta e, quando o empregado a abriu, o Zé António cumprimentou-o efusivamente, apresentando-lhe a Isabel como sua esposa e, a mim (imagine-se!...), como filho adoptivo de ambos (eu, que tenho apenas menos cinco anos do que ele!...). Explicou de modo grave, como a situação certamente exigia, que a sua esposa, não podendo ter filhos, mas desejando-o ardentemente, havia insistido para levarem a cabo a referida adopção. E, como outro dos desejos não concretizados da esposa era uma grande viagem à África “negra”, decidira que haveriam de adoptar uma criança de raça negra. Um pretinho, nas palavras sérias da explicação do Zé António. Porém dada a falta de disponibilidade de um exemplar que pudesse dar corpo a tal desejo, haviam optado por mim entre algumas das alternativas, dado que era o único com ligações ao continente africano: era (e sou) “retornado” de Angola.

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O empregado ouvia tudo com atenção, ostentando nos lábios a intenção de um sorriso de compreensão, quase de cumplicidade, e ia-nos conduzindo por um longo corredor mal iluminado até uma mesa estrategicamente colocada para quem quisesse apreciar devidamente os aventureiros que desejassem colocar à consideração do público já bastante numeroso as suas capacidades vocais.

A Isabel tinha uma expressão indefinível, como se ali não estivesse, ou como se procurasse em vão localizar-se, como se tudo não passasse de um sonho do qual esperava a todo o instante acordar.

Eu, entretanto, tratara de inscrever o Zé António no concurso (que começava precisamente naquele instante) com três canções, sabendo que adoraria ir cantar mas que se faria interminavelmente rogado: “Sitting on the dock of the bay”, com que, de forma admirável, venceu o primeiro “round”; a segunda (não me lembro já qual foi) fê-lo ganhar novamente, e de forma incontestável, catapultando-o para a fase final do concurso daquela noite (era, por sinal, o último concurso de uma série de dez) que, a seguir, venceu magistralmente com uma interpretação única de “I’ve been lovin’you”.

A Isabel, ainda não cabendo em si pela forma como havia sido introduzida ao empregado do bar (que afinal não era outro senão o proprietário do mesmo), confusa, deslumbrava-se pela inacreditável capacidade interpretativa do Zé António, quer a nível vocal, quer no concernente ao sentimento patente nas suas “performances”.

Pouco se havia conversado até então, dado que as vozes dos candidatos eram donas e senhoras do espaço que nos circundava. Terminado porém o concurso (a hora já ia adiantada), o proprietário do estabelecimento, extasiado com a qualidade interpretativa evidenciada pelo Zé António, veio para a nossa mesa e convidou-o formal e insistentemente para participar na finalíssima do referido concurso de “karaoke” que teria lugar daí a três dias, tendo como concorrentes os finalistas das dez sessões, convite esse que o Zé António teve que declinar, explicando pormenorizadamente num tom que era praticamente um pedido de desculpa, os porquês de tal atitude. E, apesar da tentação dos cem mil escudos que o proprietário lhe ofereceu para o compensar de algum modo pela sua permanência no Porto por mais esses três dias, manteve-se fiel às obrigações profissionais e familiares agendadas na Madeira.

A estupefacção da Isabel mantinha-se e eu, usando da peculiar forma de entendimento que mantinha com o Zé António em certas ocasiões, ia brincando com a situação, adjectivando-o carinhosamente como detentor de algumas características menos abonatórias, o que ele retribuia no mesmo tom.

Era o primeiro momento de sossego após a conturbada chegada àquele local e ao subsequente concurso e, assim, resolvi aproveitá-lo para deixar a Isabel ainda mais boquiaberta do que já estava perante a incrível experiência que era para si este primeiro contacto com o Zé António, e contei-lhe a história da sua ida aos Açores com o objectivo de entrevistar o então Presidente do Governo Regional, João Bosco da Mota Amaral, para o Diário de Notícias da Madeira.

Na véspera dessa entrevista, estava o Zé António com o Dórdio Guimarães e a Carmo Pólvora entre outros no bar do hotel onde se hospedava em animada cavaqueira,

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como era, aliás, habitual, quando o Dórdio a certa altura, esgotada a paciência por qualquer coisa com que ele o irritara, exclamou em voz mais alta:

– Cala-te!...Ao que o Zé António respondeu, mantendo o seu tom calmo de antes, e irritando

ainda mais o Dórdio:– Não me calo…– Então, vai à merda!... vociferou o Dórdio.Em silêncio o Zé António levantou-se e dirigiu-se ao balcão; pagou a conta

(ou assinou a factura) e, de seguida foi até à recepção do hotel. Percebeu-se depois que havia pedido um táxi cujo motorista, aliás, se fez de imediato presente no “hall”. O Zé António seguiu-o até à viatura e entrou para o banco traseiro da mesma. Com acentuada pronúncia micaelense, o motorista cumprimentou-o, perguntando-lhe em seguida qual o destino por ele pretendido. O Zé António respondeu simplesmente:

– Boa tarde!... Queria ir à merda… queria que me levasse à merda, se faz favor!...

O motorista, julgando não ter compreendido bem, virou-se para trás e perguntou:

– Como disse, senhor?...E o Zé António repetiu…O homem virou-se para a frente, fixou-o pelo espelho com um ar tremendamente

desconfiado, e disse:– Eu não sei onde é, não senhor!...– Não sabe onde é?... - respondeu o Zé António - Mas como é que pode ser?...

Então nunca o mandaram à merda?...O homem fitava-o, tentando adivinhar na sua expressão algum indicador de

como reagir a tal discurso… mas nada obteve. E respondeu:– Já me mandaram algumas vezes, mas nunca lá fui!...O Zé António riu-se, e pediu-lhe que, assim sendo, o levasse à pior espelunca

de toda a ilha, que seria mais ou menos a mesma coisa.O motorista murmurou mais consigo que com o inesperado cliente:– Bem… só se for a taberna do Manuel qualquer coisa… mas é muito mau…– Pois é para lá mesmo que eu quero ir!... – interrompeu o Zé António – Vamos

embora!...E lá foram. O motorista mantinha-se muito sério. De vez em quando abanava

a cabeça. Depois olhava para o Zé António pelo retrovisor e ia dizendo em voz baixa com a sua pronúncia cerrada:

– Deve ser louco… Sim… Deve ser louco… E não se podem contrariar os loucos…

Mais de uma hora depois lá chegaram. O motorista parou e disse:– É aqui!...O Zé António disse-lhe que desligasse o carro. E o motorista:– Mas para quê?...

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– Desligue o carro e venha daí comigo!... – disse o Zé António.Mas o homem não queria. E o Zé António, quase autoritário:Venha daí, já lhe disse!... Sim, que eu vou à merda, mas você vai comigo!...Um pouco contrafeito, o homem lá acedeu… e foram os dois para a taberna do

Manuel qualquer coisa. O espaço, minúsculo, era indescritível; as paredes, por onde uma ou outra barata iam passeando, não tinham cor; o cheiro era quase nauseabundo; alguns clientes com um aspecto perfeitamente consonante com o do lugar espalhavam-se ao longo do balcão imundo.

O Zé António, observado por todos com imensa atenção, dado o seu traje completamente surreal (fato e gravata), perguntou o que havia. Só cerveja à temperatura ambiente. E foi o que mandou vir. Para todos. Uma rodada para toda a gente. E assim, quebrado o gelo, ali se manteve por mais de duas horas conversando para a direita e para a esquerda, enquanto o motorista se deleitava a contar a história daquela estranha viagem.

Era já noite quando regressou ao hotel. Despediu-se do motorista chamando-lhe a atenção para o facto digno de agradecimento de lhe ter proporcionado a primeira ida à merda da sua vida.

Na manhã seguinte, já perto do meio-dia, enquanto aguardava no “hall” do hotel com outros jornalistas o momento que dera origem àquela viagem, abre-se a porta do hotel e um homem desata a chamar em voz sonante:

– Senhor!... Ó senhor!... Senhor!...As pessoas entreolhavam-se, já que ninguém sabia a quem ele se dirigia. E

ele insistia:– Senhor!... Ó senhor!... Está a ouvir?... Ó senhor!...O Zé António, também ele algo circunspecto, sentia que o homem olhava

para si. Olhava também ele em redor, mas resolveu apontar para si e arquear as sobrancelhas:

– Eu?... – significava.– Sim!... O senhor, o senhor!... Então hoje não quer ir à merda?...A Isabel rebentava de rir. Era cada gargalhada mais estridente do que a outra.

Já chorava.À mais estridente de todas eu abri os olhos. Estava tremendamente ensonado

e muito confuso. A Mariana ria-se com estridentes gargalhadas. Já chorava. Com um pé descalço, passado por entre os bancos da frente do carro, nas mãos do Zé António, via-o com uma esferográfica assinalar-lho em vários pontos com inúmeros símbolos, riscos, pontos, enfim uma complexa sinalética para mim completamente indecifrável.

E, na complexidade de tal momento, a T.S.F. chamou-me à razão com novo sinal horário:

Eram oito horas…

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Um presente invulgarMarco Gonçalves

Mano…Mano! Acorda! Marco! ACORDA! - insistiu a minha irmã mais velha, Arabela.Ainda algo desorientado, abri os olhos com algum esforço.O que é aquilo? – perguntou-me num misto de curiosidade e de medo, apontando

para a distância.Com o olhar ainda turvo pelo inesperado despertar às oito da matina (não era

dia de escola…), procurei focar o motivo de tanta agitação…À medida que as pupilas se dilataram, o quadro começou a se compor e parecia

ser um saco de plástico branco. Estava pendurado num dos puxadores do guarda-fato e… mexeu-se!!!

Primeiro um movimento suave… depois começou a agitar-se cada vez mais, até se balançar num frenesim irregular.

O que seria? Ambos ficámos algo receosos de tão invulgar achado, enquanto que a Natacha, ainda bebé, parecia alheia ao que sucedia.

Vai lá! – instigou a mana mais velha.A curiosidade era maior que o medo, de maneira que nos aproximámos

lentamente.Seria alguma surpresa que o papá nos reservou? Afinal ele trazia sempre

alguma coisa quando saía à noite: brinquedos, doces ou revistas de banda desenhada e ele sempre foi “amigo” de “pregar” partidas (Numa manhã anterior, pediu-me para lhe passar um cachimbo que se encontrava no interior do seu casaco e, para o meu espanto, era uma linda pistola de metal que me encantou de tal maneira, que até dormi com ela a tiracolo…).

Incentivados pela perspectiva de recompensa, acercámo-nos do saco que pareceu…piar?

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Rapidamente abrimos o saco e para o nosso gáudio, era um pintainho!Foi o delírio total! Corremos de imediato para a cama do papá para lhe agradecer,

por tão insólita oferta. Este perante o nosso entusiasmo apenas sorria, ainda cansado de uma noite que terminou no mercado para uma sandes de ovas de espada e um “bizalho”. Nestas ocasiões parecia ficar sem palavras…

A ave tornou-se num companheiro inseparável de brincadeiras e conquistou o seu espaço especial por entre os periquitos, cães e gatos que existiam no nosso lar. Desnecessário será dizer, que a nossa avó discordava da presença daquele animal tão despropositado para uma casa urbana, que cresceu livremente numa proporção inversa à dos canteiros e jardins (que minguaram), tornando-se assim numa bela galinha. Foi um grande transtorno, até porque os dejectos da galinha a enfureciam cada vez mais. Às vezes questiono o que teria causado mais prazer ao pai: a nossa alegria pelo galináceo ou a fúria da avó ao limpar os danos que este causou…

A cisão entre a galinha e a avó chegou a um ponto em que, uma das duas teria de sair. Por muito que apetecesse ao meu pai escolher a respectiva sogra, foi a galinha quem recebeu ordem de evicção, indo morar para o galinheiro da nossa tia Élia Teresina, que vivia então no Amparo, São Martinho.

Contudo, não nos separámos por completo, pois visitávamos a galinha (quase) todos os Domingos, que parecia feliz entre os seus semelhantes. Apesar de ser um bicho de estimação invulgar, era um dos nossos favoritos.

Um dia, o “bizalho” não se encontrava no local do costume…estaria escondido algures? Sem pensar muito mais no assunto, fomos apanhar as suculentas ameixas amarelas que pendiam sobre o galinheiro. Entretanto, a nossa tia já preparava o almoço, colocando no tacho o nosso amigo alado!

O papá não gostou muito da ideia, até porque previa a nossa evidente decepção, mas a natureza é mesmo assim, contrapôs a tia, que mais tarde arrependeu-se, quando certos eventos estranhos começaram a se suceder…

Durante a preparação da ave, como que do nada, várias panelas caíram em sucessão do cimo do armário. Em tom de brincadeira, a tia Élia disse: “Se for sinal de morto, que venha mais outro!”. Como que a responder a essa invocação, seguiu-se um grande estrondo: PUM! Algo fez-se sentir no telhado. Que susto!

A tia acercou-se da nossa mãe, como que a procurar protecção, mas prosseguiu a confecção do almoço com um certo sorriso amarelo nos lábios. Mas a galinha parecia sofrer invulgarmente, sangrando em abundância. Já na panela, a água da cozedura continuava tingida de escarlate e para tornar tudo ainda mais confrangedor, parecia nunca mais cozer.

Apesar de incomodada com o episódio, lá serviu o almoço e tudo prosseguiu normalmente, sem que nós crianças, nos apercebêssemos de que se tratava do “Bizalho”. Que triste sina!

Enfim, outros animais de estimação se seguiram, mas essas já são outras histórias e com o nosso papá há sempre muitas.

Funchal, 08 de Agosto de 2007(Obrigado mãe, pelo reavivar de memórias.)

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Cerca das 9 horas da manhãJoão David Pinto Correia

Todos os dias, cerca das nove horas da manhã, José António Gonçalves entrava na intimidade da minha casa, via Internet, através do e-mail: era a sua diária “Poesia do Calendário”. Conservo quase todos os ficheiros enviados, que espero vir finalmente a reunir em suporte condigno. E essa era a maneira amiga do José António se definir e expor aos outros, que sabia próximos, nas vivências, no afecto, no gosto. Assim, também ia difundindo as composições de que gostava – entre elas a constante produção de Albano Martins, dos muitos poetas e prosadores do mundo, de Portugal e da Madeira, e, no final, sempre revelava a sua quotidiana contribuição com um poema inédito. Por vezes, chegavam em conjuntos que guardava e que eu ia ler tempo mais tarde.

Tínhamo-nos conhecido havia anos, talvez nos fins da década de 70. Vivemos momentos de reflexão sobre projectos, e havia sempre a mágoa mútua de não termos colaborado em momentos maiores, como os da preparação e concretização dos quatro números da Ilha e de outras iniciativas. Apenas participei mais de perto na colecção dos “Livros de Cordel”. Mas algo ainda poderia ser feito em conjunto no futuro. Fica, portanto, a saudade, mas também, repito, a mágoa. E chego a censurar-me de não me ter disponibilizado como seria meu desejo e dever… O que também eu sabia que ele compreendia por ter a certeza de que eu andava comprometido com actividades de vida profissional, académica.

Momentos inesquecíveis, muitos: não só à volta das mesas de restaurantes e cafés, no Café do Teatro, no desaparecido Minas Gerais, na Marina, com a Gilda e a família, também a reunião preparatória da criação da Associação de Escritores da Madeira, os encontros com poetas e escritores (Ernesto, João Rui, João Dionísio, Ana Margarida, Irene Lucília, Maria Aurora, São Moniz, Baptista Fernandes, Thierry, Regina, Fournier, Francisco Fernandes e muitos outros), o passeio inesquecível com o editor continental, Fernando Mão-de-Ferro e seu sogro, e, de modo indelével, aquela noite, numa sessão de karaoke, em que nos dedicou, aos seus amigos presentes, algumas das belas intervenções (o José António tinha mesmo uma bela voz!), entusiasmando um público envolvente e que sempre lhe pedia mais uma actuação.

Havia sempre o novo livro com que chegava para eu ler e apreciar; e foram algumas as novidades para mim… Havia a oferta de alguma obra que ele tinha descoberto. Havia a evocação dos momentos vividos com amigos comuns (o David, o Casimiro, o Onésimo, o Laurindo).

Um dia, também pelas nove horas da manhã, chegou um poema do José António, um só, já conhecido, e que, com uma muito feliz fotografia, se intitulava: “O pássaro morreu”. No entanto, assinava a mensagem o seu filho Marco e toda a família. Não esperava aquela página negra, com a magnífica fotografia central a preceder o poema…

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Poema que nos legava, escrito tempos antes, prenúncio de um dia que tudo indicava ainda demoraria a chegar. Senti-me autorizado a enviá-lo a amigos e reproduzi-o por impressão, a fim de comunicar a notícia.

A tristeza e a saudade já tinham começado a partir do momento em que um familiar e amigo me deixara uma mensagem no gravador do telemóvel: a inesperada nova, duas horas ou nem sequer após o acontecimento. As minhas mensagens de resposta resistiram à fala, limitaram-se a deixar algumas palavras sentidas, mas talvez desajeitadas, aos seus familiares mais próximos e queridos, próximos e queridos também para mim.

A frustração de não estar, de não poder comparecer junto do poeta e amigo nas horas que precederam o funeral deixaram-me a sensação, direi egoísta, de nunca mais poder chegar ao Funchal, fazendo-me anunciar com antecedência ou no próprio momento, e ter a certeza da voz do outro lado do telefone, que logo me reconhecia e envolvia na sua imensa fraternidade e disponibilidade, acrescentando de seguida:”Onde ficas? Daqui a pouco, passo pelo hotel para conversarmos e tomarmos um copo”. Quase sempre havia a variante “passamos por aí”, anunciando que se faria acompanhar pela incomparável, dedicada companheira Gilda e também frequentemente pelo filho Marco e sua mulher, mas também algumas vezes por uma das filhas… Seguiam-se conversas sobre poesia, memórias (e evocavam-se David Mourão-Ferreira, Natália Correia, Dórdio de Guimarães, Ernesto Rodrigues, João Rui de Sousa, Albano Martins e muitos outros), histórias, piadas e novidades-crónicas, que, para mim, eram importantes para compreender o que se ia passando no universo cultural, literário e social da minha terra. Não raramente convocava-se o humor e a aberta crítica a todos nós, madeirenses, que, no Continente, bem poderíamos fazer mais pela tarefa que ele julgava necessária e decisiva de tornarmos mais conhecido “em Lisboa e no Continente” tudo quanto se ia fazendo de positivo na escrita dos madeirenses… E mais: o acento ia para o que de facto se fazia de bom na poesia e na prosa da Ilha e para os projectos individuais e colectivos…

Hoje, sei, repito-o, que não será igual a minha chegada e estada no Funchal: ele não estará fisicamente presente, com toda a sua forte e não propalada amizade, com aquela empatia que eu tinha a certeza de vir a encontrar na sua palavra, na sua presença, no seu gesto. Eram os livros e os papéis que o acompanhavam, a sua bolsa de documentos, a cigarrilha ou, lá de tempos a tempos, também o cachimbo, no que ainda mais nos acompanhávamos. E assim eu tinha a certeza, melhor o íntimo conforto, de que ia poder usufruir no Funchal raros e únicos momentos de plenitude na partilha de memórias, de entusiasmos, de perspectivas, de afectos, enfim de afinidades… Insubstituível, ficará como figura maior da minha razão de gostar de me deslocar, em trabalho ou em lazer, à minha Ilha.

Os últimos tempos já eram, de facto, diferentes. A doença isolava-o mais, já não estava tão presente fisicamente, não saboreávamos o nosso uísque, o fumo das cachimbadas. No entanto, sabia-se que a actividade poética e a criatividade para novos projectos prometiam novas iniciativas tão ou mais significativas que as anteriores.

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Tinha-lhe prometido o último livro de Vitorino Nemésio, o Caderno de Caligraphia, livro póstumo do meu ex-professor. Esqueci-me por várias vezes de o levar para o Funchal, até que ainda pude oferecer-lho num dos nossos derradeiros encontros.

Da última vez em que estive no Funchal, mais concretamente no Domingo, 6 de Março de 2005, almoçámos no restaurante O Arco. Chegaram o José António e a Gilda, e, mais tarde, o Marco e a Cláudia. Trazia-me alguns papéis, alguns livros. E, entre eles, a sua última obra de poesia que eu lhe tinha proposto fosse publicada na colecção que dirijo, nas Edições Colibri. Ela ali estava, com o título À Luz dos Olhos das Borboletas – que agora me acompanha e que tenho o dever e a grande honra de, com a devida autorização da família, vir a dar a conhecer ao público, para o que já conto com a anuência do editor. As “aves” (as tais, as tão “esquivas”), o “voo” (agora de “borboletas”) continuarão, com muitos textos que se encontram inéditos (alguns, mostrou-mos nesse almoço), e que deverão ser editados, a confirmar uma das mais originais vozes da poesia da Madeira, quiçá a mais intensa e completa em território ilhéu. A literatura, a cultura da Madeira exigem que continuemos a revelar o poeta José António, a conhecê-lo, a estudá-lo…

O José António ficará para sempre como o Amigo dos que ele sentia seus cúmplices na vivência da poesia, na especificidade da insularidade, na certeza da totalidade complexa e multifacetada do Poeta / Homem.

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Um traço de memóriaAna Margarida Falcão

2004. Moro a um oitavo de milha da beira-mar. Entre a velha casa que me foi berço e a marginal da minha infância, atravesso um jardim familiar de eternas plantas exóticas. Nesta manhã, sigo o fio luminoso que tece as ramagens e deixo o barco ainda sonolento que me povoa o olhar e a alma delizar um tanto à deriva, como se a lucidez do início de dia me pudesse indicar a rota das ruas que conduzem o corpo a enfrentar a visão do mar.

Pela cidade fresca vou cruzando sombras de cansaço mal refeito que se apressam a deslizar para nova e sempre contrariada repetição dos dias passados e repassados, vistos e revistos. Registo em adormecido eco as suas tentativas de corte com o sofrimento, plasmadas em gravação quotidianamente repetida de saudações que se escondem, doridas, em mentirosas aleluias matinais.

Perscruto atentamente os meus próprios movimentos que cada vez se aconchegam mais à nitidez da focalização do olhar, seja nos sentidos, seja na rota que conduz à aspiração já próxima das résteas de sal. Respiro, enfim, a margem que define a linha mais longínqua do mar, debruçada sobre o parapeito da imensa janela marginal com venezianas de frestas secas de palmeira. Posso sorrir, porque o sorriso, mesmo se demasiado amargo e demasiado íntimo, tem o poder de dissolver memórias na transparência da manhã, à beira do descansar das ondas.

Volto as costas, começo a afastar-me e sinto que o apelo do sal, contraditório, me persegue e empurra, invisível e implacável, escrevendo-me na pele da nuca a lembrança metamorfoseada em palavras:

Toquei-lhe na manga do casaco e senti que podia estar a deixar-lhe esboçado na alma o traço da minha inquietação.

Entre a proximidade de um dorso de mar e a visão longínqua de um horizonte de montanhas, subo a rampa que me leva ao encontro que ainda desconheço, no café que me é por demais familiar, junto ao teatro que ainda hoje representa a tragicomédia belíssima da sua fachada, repetindo-se, infatigável e neoclássico, desde que me lembro de mim.

Na esplanada quase solitária o vento leve ilumina as dez horas da manhã nas costas de um casaco de veludo azul marinho que reconheço debruçado sobre uma mesa. O esboço do colarinho da camisa, agora magro, continua a querer esconder-se sob a sempre farta cabeleira grisalha. Por sobre o ombro do casaco recorta-se agora, no enquadramento em close-up do meu olhar, o gesto da mão larga e aberta pousada sobre um esfrangalhado ramalhete de guardanapos de papel.

«Estás melhor?»

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Respondem-me o silêncio do sorriso desfeito pela noite insone e o esboço de um gesto de abraço que logo se baixa, impotente, desprendendo em nuvem que nos envolve o odor paralizante de uma angústia inconfessada, talvez já resignada.

Sento-me sem pedir licença à mesa daqueles restos de noite ou madrugada, espalhados por entre copos e chávenas de companhia ou de solidão, fragmentos de naufrágios íntimos ou alheios, não sei, não importa sequer.

«Novos poemas?»

O olhar ilumina-se-lhe com orvalho, destaca-se ainda mais das olheiras que reflectem o lilaz dos jacarandás, remetendo-as para outra dimensão, e a boca, de novo quase boémia, rasga-se no súbito entusiasmo que repele todos os espíritos que se não centrem naquelas folhas de árvore, feitas de fragmentos de guardanapos de papel, caídas dispersa e outonalmente sobre a mesa.

«Posso ler?»

Novo sorriso, desta vez quase tão escuro como o azul do casaco, um sorriso que quase apaga a noite branca que certamente ele acabara de povoar com feitiços de palavras coloridas ou com mágicos e ritmados esconjuros contra a morte.

«Vais retrabalhá-los?»

Ficamos de novo sem palavras, com o silêncio do sorriso dele a pairar-me com tristeza contida nos lábios e na alma, enquanto eu retiro uma a uma, cuidadosa e medrosamente, as folhas de árvore onde ele escrevera os seus poemas, cheia de medo de que se me desfizessem entre os dedos como as folhas secas que juncavam o chão daquele dia, como os guardanapos de papel que rodeavam a mesa e que eu pisara descuidadamente momentos antes, ao aproximar-me.

«Belos. Muito belos. Vais ao menos ordená-los?»

Toquei-lhe de novo na manga do casaco e senti que lhe deixava gravado o traço inquieto de uma queimadura na alma

A cabeleira cada vez mais grisalha esvoaça da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, repetidamente, repetidamente, progredindo de um primeiro ritmo enérgico e rápido para a lentidão de um gesto quase imperceptível, quase imóvel:

«Já me conheces. A resposta é... nunca.»

Não sei que demónio de asas de carvão me sobrevoa nesse momento que, roçando-me apenas, tem o condão de me empurrar pelas costas, forçando-me a debruçar-me sobre a mesa, quase em frente ao brilho agora sempre febril dos seus

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olhos, levando-me a estender as minhas mãos de garra agressiva que logo empunham brutalmente as folhas brancas onde flutuam, quase perdidas, as suas belas e sensíveis palavras. Não sei que golpe de ar maligno me abre a boca zangada e me faz pronunciar a frase para ele proibida e maldita:

«Valéry dizia inspiration c´est travail.»

Ele não se zanga, não se irrita, não argumenta como antigamente, apenas sorri de novo por cima do azul marinho do casaco de veludo, por cima do colarinho branco cada vez mais magro e, desta vez, o seu sorriso abre, desnudada, a noite branca povoada por dolorosos feitiços de palavras, pontuada de mágicos e trágicos esconjuros contra a morte, a mão larga pousada agora em punho fechado de desalento sobre o esfrangalhado e trágico ramalhete de guardanapos de papel.

Levanto-me medrosa, acossada, impotente, incapaz, quase paralisada em espanto por ele, em espanto pela imagem de mim própria no espelho do seu olhar assustadoramente já distante.

Toquei-lhe ainda uma vez na manga do casaco e senti que lhe deixava o traço inquieto de uma queimadura na alma, subtil como a incandescência das brasas quase mortas, grave como a linha mais distante do mar.

Levanto-me e afasto-me; pairo ou plano sobre a cidade das nossas infâncias e dos nossos sonhos, num pesadelo intermitente que perduraria até ao nosso último encontro quando, a propósito do seu livro de poemas Memórias da casa de pedra, lhe estendo as mãos e os braços e lhe digo:

«Desta vez o Valéry guiou-te a alma»

E sorrimos, com uma ternura imensa, intensa, de novo cúmplice e para sempre amiga.

São quase onze horas. A chávena solitária arrefece à minha frente, sobre o tampo da mesa que nos é demasiadamente familiar, no café junto ao teatro que, repetindo-se infatigavelmente, ainda nos representa a tragicomédia belíssima da sua fachada.

Provavelmente imaginei apenas ter-lhe tocado na manga do casaco e ter sentido que lhe deixava o traço inquieto de uma queimadura na alma, subtil como a incandescência das brasas quase mortas, grave como a linha mais distante do mar; uma queimadura que ainda hoje tanto dorme como grita no espaço mais fundo das lembranças do meu coração.

FunchalDezembro de 2007

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silêncio do poetaJosé Laurindo Góis

Batem, na torre da Sé, com monotonia e gravidade as onze horas. Aguardamos no azul da madrugada funchalense a presença de mais poetas. Aqui, (e o deítico espacial é nosso no registo do micro-espaço) no Café Funchal, juntar-se-ão a nós e todos, concretizaremos as nossas utopias. Pedira coisa rara, um amigo. Tu, num acto de característica rebeldia trazes um pedaço de nuvem, um cachecol, um cachimbo e jornais. Fizemos um pacto de silêncio. Ouvirás as minhas palavras matinais, como extenso monólogo.

Aqui, e noutros lugares da cidade lançámos, a tal pedrada no charco, lugar--comum usual no discurso oral de 70, subjacente ao discurso social de toda a tua poesia. Como sabes, José António, nós quisemos, apenas, e duma forma esteticamente moderada, trocar as voltas às horas melancólicas da velha torre. Não seria a nossa torre de Anto porque afinal não estávamos rigorosamente sós. Embora dissesses, um dia, que olhando à nossa volta não víramos ninguém. Éramos jovens. por necessidade de afirmação pessoal e colectiva, escrevendo, procurávamos outros ritmos. Como sabemos o grupo-ilha, com o entusiasmo das nossas ideias nasceu neste Café. Contudo, freqüentamos o Golden, raras vezes e a redacção do Jornal da Madeira, muitas vezes.

Onze e quinze… Os nossos amigos da ilha ainda não chegaram. Estão dispersos por outras galáxias. Não faz mal. Conversemos. Apreciemos em prolongados minutos de silêncio insular a cidade trespassada pelo filtro impressionista. Aqui, do podium, ou seja, desta mesa colocada num plano mais elevado, que nós habitámos durante os meados 70. Participantes que somos verdadeiramente de uma performance patética.

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Numa acção infinita na qual as categorias do espaço e do tempo recriam este real observado.

Repara neste pormenor curioso: a ausência, a dispersão, característica ironicamente dos nossos encontros. Faltava sempre alguém. Olhávamos para uma cadeira e lá não estava. Um dia, disseste tu, olhamos à nossa volta e não vimos ninguém. Era a nossa vez. Por isso, o substantivo grupo ou movimento como factor configurante de uma literatura, no nosso caso sempre funcionou com fluidez. No entanto, essas terríveis ausências pessoais enriqueceram o plano do imaterial de uma arte poética.

Há pouco, enquanto aguardava a tua chegada, recordei uma carta que enviei ao Carlos Alberto Fernandes. Lembro-me de ter colocado entre aspas a expressão grupo ilha, mas... não deixei de considerar toda a responsabilidade na cultura insular e na preservação do património ideológico que criou desde as mesas deste Café.

Foi necessário o teu empenho e engenho para publicarmos a Ilha, a 24 de Março de 1975, na reabertura do Pátio, Letras & Artes. Como muito bem te recordas a partir de dado momento tudo se processou com alguma rapidez: aí pelo verão de 74 coligimos os poemas dos 7 autores. Em Outubro algumas entidades subsidiaram a publicação, e em Dezembro, o livro estava na máquina. Tiraram-se provas, e, num Janeiro frio de 1975 estava impresso. Curiosamente, a única vez em que estivemos verdadeiramente reunidos foi naquela memorável manhã em que saímos desta esplanada e fomos recebidos no átrio da Junta Geral por António Loja. Este com argúcia e como homem de cultura que é, inteligentemente apreciou os nossos textos manuscritos e acreditou na mensagem e na vontade inovadora e reformadora dos jovens que estavam à sua frente. Tu sorris com a tua pálpebra e de olhos arregalados mas é verdade.

A Ilha fala por si. Como coordenador, tiveste uma função importantíssima, revelando-a na Comunicação Social. Já em Novembro de 74 a Ilha era referida no Jornal da Madeira e no programa radiofónico Contraponto ao qual concedeste uma entrevista de vinte minutos. O programa Arquipélago, e mais tarde o Expresso, pela pena de Pedro Tamen, comentam-na. No próprio dia da publicação, a EN e a RTP noticiaram o lançamento de Ilha. A voz segura e inconfundível de Maria Luísa anunciou, nessa noite, no telejornal, o lançamento de uma tímida antologia. Leu a nota introdutória e os nomes dos seus autores. A Ilha, como muito bem deves estar recordado, encontrava-se a 26.03.1975 nas livrarias.

Por outro lado, houve da tua parte um trabalho árduo. Toda uma dedicação plástica que eu apreciei vivamente. A selecção cuidada de paratextos: a fotografia da contra-capa de Ilha, apelando simbolicamente ao multiculturalismo, a síntese cultural que embebias nas mensagens escritas, aquilo a que chamavas os teus recados, a escolha de uma etiqueta... uma série infindável de pormenores. Os aspectos plásticos da publicação, pela sua fragilidade, entusiasmavam-te. Volvidos dois anos falavas entusiasticamente, da zincogravura de Ilha-2 que António Jorge Andrade solicitara ao pintor Danilo Gouveia. Simbolizava o espírito maternal. A Mãe-Ilha, protegendo os seus filhos. Eu li nesta gravura uma imagem de vorticismo telúrico. A idéia de maternidade

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está implícita em todas as culturas. Se nós pensarmos no espaço lusófono encontramo--la em quase todas as literaturas. Ela é muito forte. Noémia de Sousa mitifica a Mãe-Negra ou Mãe-África fundada-se na moçambicanidade e numa negritude antagónica a uma poesia exótica. Mas, há outras Mães que me deixam em sobressalto. É aquela que encontras nas Vinhas da Ira e incita corajosamente os acocorados...é aquela que te acorda e dá um livro há muito perdido nas résteas do tempo.

Quanto a Ilha-2 própriamente dita, nós decidimos avançar com a sua publicação depois de termos reunido a 1.04.1978. Como estás recordado nessa ocasião debateu-se se se deveria manter ou não o mesmo nome na publicação e quem prefaciaria a obra. É importante ponderarmos a esta distância temporal e até cultural sobre a natureza destas duas, para nós, prementes questões. Vacilamos, inicialmente, entre manter o nome Ilha ou seguir a opinião do Tranquada e do Vito, estudantes na altura em Lisboa, que indicavam o nome de Arquitecturas para a publicação, por entenderem que dava outra abertura mental ao movimento. Com idêntico propósito – o da abertura da colectânea a outras artes – incluímos sob a designação Dorso da Noite 4 linogravuras, da obra de Fernando Mota, que, pela simbologia, cor, tema e traço dominantes, interagem com as palavras dos poetas representados.

O debate do prefácio também foi muito interessante. Como dizíamos nós não precisávamos de muletas para andar. Contudo rconhecíamos a importância dum prefácio como texto sincero que melhor nos situaria a nível literariamente institucional. Daí entendermos que deveria ser entregue a alguém que conhecesse e dominasse profundamente as nossas expressões culturais ou como eu costumava dizer na altura, a nossa Circunstância. Idiossincrasia, pensariam outros. Inclinamo-nos, naturalmente, para Natália Correia, que se encontrava de visita aos EUA. Surgiram outros nomes, alguém se lembrou de Pedro Tamen. Tu próprio indicaste o nome de Dórdio de Guimarães. Lembramo-nos de convidar, também, David Mourão-Ferreira, cuja obra tu apreciavas. Convidamos a Natália.

São onze e trinta. Ninguém... podemos se assim o entenderes passear mentalmente pela cidade. Como quem constrói um jogo e descobre as peças literárias e o seu valor. Tornamos presente os tempos e as personagens. Assim, fruímos outra linguagem, em breves minutos. Entramos, por conseguinte, no Apolo de meados de 60. Durante a manhã calmíssima de um Domingo, quando o sol ilumina as primeiras mesas do café. Lá encontramos um patriarca dos jornais, o Malho, do Diário de Notícias, com seu enorme lenço ao peito, em animada conversa. Meio-dia, volvidos anos, as memórias encontrariam no patamar do mesmo café, fumando, mais silêncio que palavras, o poeta A. J. Vieira de Freitas. Perguntar-me-ia, certamente, para meu espanto, se eu alguma vez lera o Rilke...

Agora, pela tarde, traçando no terreno um enorme círculo veríamos numa esplanada da cidade, perto do mar, o Dr. Encarnação absorvido no xadrez infinito da sua ilha intelectual. Nesse Sunny Bar e pela mesma época encontraríamos, nas cálidas tardes da ilha física o padre Eduardo Pereira em confessional reflexão sobre as suas teses históricas sob a atenção não menos científica de Ruy de Albuquerque. Quem vês, neste momento, José António, à entrada do Cais da Cidade? Conheces

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aquele minúsculo chapéuzinho com uma peninha? É o poeta Rogério Correia que foi do Arquipélago, com Helder, Aragão e outros.

O disco do tempo roda. Na ilha sentimo-nos como no centro do mundo. Enquanto pensávamos abriu-se na nossa frente o pano da década de 70. Com ela dobramos a esquina do mundo. Aqui, à nossa beira, o Golden. Lá estão suas cadeiras de vime puído, as cadeiras dos tesos, ocupadas pelos estudantes. Dentro, no espaço de vidro ao qual chamávamos aquário, a figura respeitável de Ângelo Marques, eclético, lido, conhecedor de política internacional e admirador das paisagens marítimas de D. Carlos I. O grande teatro da juventude cobre já de ruidosas conversas a placa, ou seja, este espaço central que se estende até à Sé. No ângulo oposto ao Golden, outra esquina do mundo. Esta da AEG aonde nos chegam, por via aérea, notícias do mundo amarradas por um barbante. Que podemos ler de culturalmente relevante? O João Gaspar Simões, aos Domingos. A Vida Mundial, O Século Ilustrado, com a crónica do Nemésio em última página só para alguns. Para outros apenas o ar inteligente, sem ter nada de inteligente, como diria Roland Barthes. Alguma reportagem comovente sobre a Rosa Ramalho.

Quando o candeeiro de iluminação pública se acendia, apareciam jornalistas. Aqui, aonde estamos mentalmente e vamos permanecer em longa conversa até às doze, lembrando-nos destes vultos das horas de silêncio, como gostas de referir. Vinham da redacção do Notícias. Eram Catanho Fernandes, Tolentino de Nóbrega, Rui Dinis Alves, Luís Jardim, Maurício Fernandes. Compravam jornais, iam lê-los, para a esplanada do Café Funchal, para o Apolo. Uma noite estivemos, tu, eu, outros, naquela esquina, até às tantas, à conversa com Eleutério de Aguiar que na época fazia escola, com as suas crônicas e as suas entrevistas no rival Jornal da Madeira. Discorria energicamente sobre política. Falou entusiasticamente, nessa noite, de ensino especial, e do seu projecto de Reforma para o Ensino. Daqui a pouco quando entrarmos numa tarde qualquer, agitadíssima, no Apolo, lá estará certamente outra mão cheia de idéias novas, outras cores, outras realidades, Vicente Jorge Silva discursará entusiasticamente perante a observação científica e inteligente de Paquete de Oliveira.

Imagina, agora, o professor Castro, discursando debaixo de um candeeiro de iluminação pública. Invariavelmente, evocaria Garrett, a lírica, e a fluidez das idéias, as novidades formais propostas pelo romantismo. Se, de manhã, percorrêssemos a mesma Rua do Bom Jesus encontraríamos matematicamente Jaime Vieira dos Santos. Tem qualquer coisa de saudosista no olhar distante e no andar vago como se magoasse uma nuvem. Quando o vejo lembro-me sempre da pintura de António Carneiro. Mas... falando de saudosismo, evocamos outro amigo comum e teu colega da Redacção. Se aqui estivesse e é provável que apareça, falaria invariavelmente do Messias de Haendel e de Agustina Bessa-Luís. Nós recordaríamos o suplemento quinzenal A Ilha, que foi importante nos inícios dos anos 70, não só pela sua distribuição nacional – dizia-nos o António Jorge Andrade que o seu suplemento era falado à porta da Brasileira – mas sobretudo e acima de tudo pela reflexão que trazia através de José Marinho, Álvaro Ribeiro, Afonso Botelho, José Régio. Não é novidade para ti. Conviveste com ele no

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Jornal e sabias do seu carinho pela filosofia portuguesa tal como ensaiou o aristotélico Pinharanda Gomes no Letras & Artes do Jornal da Madeira. Foi em certa medida uma continuidade do suplemento inicial que abrira as suas páginas num início de década tão inquieto quanto aos critérios da Opinião, da Crítica e da “grande imprensa”.

A abrir o segundo lustre de 70 apareceu o grupo ilha (então grupo, só mais tarde movimento) que saíu da página literária 2000, integralmente dedicada à Poesia, única em Portugal na época e talvez na Europa. E o tempo cultural ? Bem, o tempo era um cadinho de contradições. Houvera a Semana de Cinema Livre, com o Sorriso Vertical. Iniciava-se, na rádio, uma nova geração com as suas experimentações, e questões sociais levantadas nos seus apontamentos. Gageiro expusera com êxito no Salão Nobre do Teatro, foi lá que vi o célebre beijo de luz. Mas, teatro a sério, nada. Estava tudo por começar. O Cine-forum inaugurara, de facto, nos primeiros anos da década, sob a orientação de Carlos Lélis, um teatro que creio se afirmava do absurdo, e se procurava com o sujeito. Lembro-me que na época, o pintor e historiador Rui Carita fez no átrio do Teatro uma importante exposição de Máscaras Africanas.

Estou em maré de memórias, caro poeta. São onze e cinqüenta, poderia agora percorrer a década de 80. Estaríamos a falar horas a fio. Eu com o meu discurso histórico. Tu com esse silêncio inopinado. Quero relembrar, apenas, neste meu exercício de virtuosismo memorialista quase infinito mais dois ou três nomes dos quais andamos esquecidos. Com uma perspectiva diferente do simbólico à entrada de 80 o arqueólogo Francisco de Freitas Branco pegou nas alfaias agrícolas da Madeira e Porto Santo e revelou-as, numa exposição patente em pavilhão insuflável no pelado do Campo Almirante Reis.

E quem se lembrará ainda dos programas do poeta Eurico de Sousa, na RDP--M, sobre as influências culturais na formação dos períodos literários e da origem do discurso Literário em geral. Chamou-lhe As faces de um espaço vazio. Palavras leva--as o vento... mas nem sempre. Nesta mesma década ia lendo, no Diário de Notícias, aos Domingos, uma série de crónicas sobre literatura espanhola. Eram da autoria do advogado e cinéfilo José Maria da Silva. Ensaiava sucinta e inteligentemente sobre cada elemento da geração de 27. E a década prosseguiu, entretanto, com a investigação histórica e científica através das revistas de cultura, tão necessárias, e que foram tomar fôlego aos modelos do início do século.

O grupo ilha, entretanto, dispersou-se. Eu preocupado com o ensaio nos jornais, e nas revistas históricas. Mas o poema nem sequer se ocultou por breves momentos. Ele é. Não dizem outros poetas que o poema tende para uma só palavra e finalmente para o espectro do silêncio? Resurgimos por necessidade estética em 91. lançamos o Ilha-3 na Biblioteca Nacional. Ilha-4, com um leque cada vez mais diferenciado de colaboradores, surge em 1994.

O relógio encaminha-se para as doze. Temos esta multidão de memórias, com elas convivemos ao ritmo das ondas. Constituem a Ilha-literária em sentido

lato e são conseqüentemente um texto sempre em aberto, no diálogo com as mais diversificadas opiniões estéticas, como ambicionamos, para o movimento.

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ao meio-dia com o jagFrancisco Fernandes

– Caríssimo! – exclamou. O José António adorava os superlativos.

Momentos antes tinham-me anunciado: – O Senhor José António, está chegando.

Ele já me entrava pelo gabinete com a familiaridade dos amigos, efusivo.

Ilustríssimo, amigo! – continuou a superlativar.

Tínhamos combinado ao meio-dia.

– Cá estou, com a missão cumprida! – disse, no meio do cumprimento.

Dias antes tinha-lhe pedido um poema especial.

– Tens algum poema sobre a Europa? – perguntara-lhe, então. – Sou esperado numa escola, no Dia da Europa, e queria levar-lhes algo especial, algo teu.

O José António não me dissera que não, acho mesmo que a palavra “não” não fazia parte do seu léxico (a menos que fosse para dizer, como outro poeta: - “Não vou por aí!”...).

Só naquele dia percebi que o JAG não tinha nenhum poema sobre a Europa.

– Acabei há pouco o que me pediste, escrevi-o durante a noite! – esclareceu.

Escrever pela noite era habitual no JAG.

– Andei à volta disto uns dias. Não tinha nada sobre a Europa. Esta noite, disse para mim: tem de ser. É agora ou nunca! Está aqui. – concluiu, estendendo-me umas folhas.

Estava explicado por que baptizara o poema de “Ou agora ou nunca!”. Juntou-lhe a emergência de cumprir o prazo, ao ultimato das Nações, para o progresso e para o desenvolvimento. E para as pessoas.

Era um poema com muito de José António Gonçalves.

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Falava de horizontes,

“Sentemo-nos um pouco, contemplando o mapa de todos os mapas, e abramos os olhos aos horizontes

das cores das nações”

de tolerância,

“E vamos lá sorrir para toda a gente”

falava em sair da “caverna”

“... nada obriga o homem a esconder-se numa gruta, a habitar a escuridão, a viver sozinho,

a escudar-se nas paredes com medo do breu da própria sombra!”

e na busca da união,

“O que importa é ir por aí, abrir os braços, dar as mãos,

procurar lealdades, esquecer diferenças, escavar oportunidades,

confiar nas madrugadas novas,esquecendo a cinza dos dias anteriores,

como fazem os apaixonados quando descobrem

novos amores.” na fuga à solidão,

“Ninguém sabe, mas o pior de tudo é estar só.Os desertos são enormes.”

e apontava o caminho,

“(...) os homens não devem deixar-se ficar isolados nas pradarias, presos na espera de outros dias,

as pátrias devem aprender com o exemplo das formigas e formar grupos de trabalho

muito unidos, fortes e mágicos,

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na certeza de que essa matéria incorpora o espírito de todas as eras.”

terminando...

“É esta, proclamo, a Europa

em que acredito!”

– Este poema, é “a tua cara”... – pensei, mas não o disse. As lealdades, as companhias, a entrega, o grupo, a visão, os horizontes, o optimismo, a aventura, o grito.

Olhava-me, enquanto lia. – É para ti – disse-me quando percebeu o fim da minha leitura silenciosa.

Mas eu já tinha começado a segunda leitura, agora para saborear.

No topo da primeira página tinha escrito: “Para o Francisco Fernandes, Cavaleiro da Távola Redonda”.

Depois deste poema, já sei explicar a Europa aos jovens, com quem exploro o tema em cada 9 de Maio. Sinto a presença do JAG na plateia, como na primeira vez, na Escola da APEL, enquanto o poema inédito foi lido por uma professora ao som de improvisadas notas de viola.

Deixou-me às treze horas.

– Caríssimo, um abraço! – rematou e saiu.

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À hora do almoçoAlbano Martins

Habituáramo-nos, eu e a Kay, àquelas águas mornas, àquele silêncio entorpecido e àquele céu sem manchas – sem nuvens e sem gaivotas.

Fora ele, o José António, que ali nos levara pela primeira vez (em 2000 ou em 2001?) e lá nos acompanhou todas as vezes que, em Agosto, rumámos à Ilha Dourada em busca de repouso e de sossego. A ele ficámos também devendo o régio acolhimento e a excelência dos aposentos do Hotel Torre-Praia, de cujo proprietário era conhecido ou amigo. Porque, é preciso dizê-lo, ele tinha esse condão : o de em cada um dos habitantes das ilhas – a da Madeira e a de Porto Santo – ter um amigo. O seu raro sentido de humanidade também aí se manifestava, impondo-se como um dos traços dominantes do seu carácter.

Naquele ano, os jornais do Funchal anunciaram, com a minha chegada à ilha, a realização duma sessão de apresentação da minha poesia na Biblioteca Pública de Vila Baleira. A iniciativa partira dele. Com a colaboração da Directora, também poeta, foram mobilizados os meios necessários à divulgação do evento, distribuídos cartazes, instalada a aparelhagem sonora apropriada à circunstância. A sala encheu-se, nela não couberam todos os interessados, que extravasaram para o largo fronteiro à Biblioteca. Lá dentro, o José António, no seu jeito peculiar, fez a minha apresentação, esboçou o meu perfil como poeta e amigo daquelas ilhas e falou da “poesia dos calendários”, programa que mantinha na Internet desde 1 de Janeiro e começava, invariavelmente, com um poema meu. ( Entre parênteses : nunca poderei agradecer-lhe o gesto, duma nobreza sem par, a ele que, além de um grande homem, duma alma grande, era também um grande poeta. Grande, sim, pelas dimensão humana e o sentido universal da sua poesia, que a mediocridade nacional reinante e o narcisismo da crítica ao rés do umbigo relega para o limbo do esquecimento.)

Agradeci, li alguns poemas. Depois, foi ele que, sem hesitações, leu alguns textos meus de Assim São as Algas, tecendo, a propósito, comentários sempre graciosos, inteligentes e oportunos. Pedi-lhe que lesse alguns poemas seus, o que fez sem relutância e com traço distintivo.

O tempo escoara-se. Por aquelas paredes vestidas de livros alastrava o som das vozes – as nossas e as de alguns dos ouvintes mais interessados que nos interpelaram. As cadeiras iriam, a breve trecho, ficar vazias. Restavam na sala os ecos do diálogo que o correr das horas apenas interrompera, que lá repercutem ainda e se prolongam pelo tempo fora .

Tudo isto lembrávamos no dia seguinte, à hora do almoço, lá na ponta da ilha, no restaurante da Calheta, com o Ilhéu de Baixo à ilharga e as águas, lá ao fundo, dialogando connosco – peixes em terra, como ele, José António, certamente diria. Conversa lenta, arrastada, entrecortada pelo fumo dos cigarros – das cigarrilhas, dos

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charutos -, polvilhada de referências à temperatura da água, à delicada formosura da cidade, à areia loira da praia e às suas propriedades terapêuticas. E risos. Risos na lembrança recente daquele episódio passado em Câmara de Lobos, aonde me levara para provar a poncha substantiva que honra o lugar e lhe dá fama. Risos porque, inesperadamente, em vez da magia prometida, sinónimo de bem-estar e alegria, me sobreveio um delíquio e caí, desmaiado, no chão. Susto, alarme, a chamada da ambulância, o internamento, por algumas horas, na Delegação de Saúde local. Risos, agora, passada a angústia do momento. E, enquanto o café não chegava, ou acompanhando-o, uma bebida quente, dessas que eram suas companheiras habituais e o levaram tão cedo da nossa companhia. Para desgosto nosso. Para nossa raiva e aflição.

Vila Nova de Gaia, 17 de Novembro de 2007

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em memória de josé antónio gonçalves

Maurílio de Gouveia, Arcebispo de Évora

Estamos entre as 14.00 e as 15.00 horas de um dia qualquer, nos inícios da década de 70 do século XX. Encontramo-nos na sala da redacção do “Jornal da Madeira”, agora com novas instalações na Rua Dr. Fernão de Ornelas.

O José António inicia o seu turno de serviço. É o jornalista mais novo daquele órgão de comunicação social. Entrara na sala, como sempre, alegre, descontraído, sorridente.

Antes de partir para mais uma reportagem, trocamos impressões, falamos do trabalho que lhe está confiado. Mas a conversa vai mais longe, porque o José António não se limita a um único centro de interesse, a um quadro determinado, a um tema fixo. É um espírito criativo, exuberante. É um poeta.

Este temperamento irrequieto contribui para torná-lo cativante e simpático. A irrequietude, aliada a um espírito curioso, sedento de conhecer e de saber, fá-lo percorrer os jornais, as revistas que pode encontrar na sala.

Depois parte para a missão jornalística daquele dia.

A presença do José António no “Jornal da Madeira” deve-se a um encontro ocasional, ocorrido poucos anos antes. Era eu então director daquele periódico da Diocese do Funchal. Devido às obras de construção do edifício destinado às suas novas instalações, a redacção funcionava transitoriamente no antigo Paço Episcopal, que dá para a bela Praça do Município.

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Tinham-lhe sido reservadas algumas salas, situadas na parte mais antiga, e que termina na capela de S. Luís. Este corpo do edifício ostenta uma artística varanda, que se debruça sobre a praça, e cujas colunas multisseculares oferecem um encantador cunho de antiguidade.

Num dos primeiros dias da Semana Santa batem à porta do meu gabinete. Era um jovenzito, mais parecendo um adolescente, que, com certa timidez, queria fazer-me um pedido.

Espontaneamente gerou-se entre nós uma natural empatia.– Tenho aqui dois sonetos e gostaria que fossem publicados no “Jornal da

Madeira”. Um dos sonetos era dedicado a Cristo Crucificado; o outro, a Nossa Senhora das Dores.

Li-os e optei pelo soneto dedicado a Nossa Senhora das Dores. O José António ficou radiante. Uma das suas primeiras produções literárias ia ser publicada. Milhares de pessoas poderiam lê-la.

Pensei logo que estávamos perante um jovem bastante dotado, um talento que importava apoiar. A minha impressão viria a ser confirmada, pouco tempo depois, por uma professora do Liceu que conhecia o José António e me fez dele os melhores elogios.

Sabendo que ele tinha dificuldades económicas e o seu emprego era modesto, propus-lhe vir trabalhar para o “Jornal da Madeira”, colaborando no escritório e na biblioteca. Mas, sobretudo, o que eu desejava era lançá-lo na reportagem, no jornalismo.

Apesar de muito jovem, o José António começou a revelar-se um jornalista nato, um dom a que se aliavam grandes dotes para a poesia. Os seus trabalhos tinham obviamente as deficiências de quem começa. Mas são daquelas deficiências que se curam com o tempo.

Os anos foram passando. Sucederam-se muitas 14.00 horas, o momento do recomeço, o início do turno da tarde.

A personalidade do jovem jornalista e poeta afirmava-se, ao mesmo tempo que se consolidava o seu carácter determinado e a sua capacidade de intervenção na vida social e política da sua terra.

Criava amigos, que se deixavam cativar pela sua alegria, boa disposição e inteligência.

Uma ou outra dificuldade, uma ou outra tensão haviam naturalmente de surgir, próprias da missão de jornalista e também devidas a um temperamento apaixonado.

Não durou muito tempo o meu contacto com o antigo jovem daquela manhã da Semana Santa, na Praça do Município. Volvidos poucos anos, deixei o Funchal por ter sido nomeado bispo auxiliar do patriarcado de Lisboa. Foi, porém, um período suficiente para alicerçar uma grande amizade. De tal maneira, que viria a ser convidado para presidir ao seu casamento e a ser padrinho de um dos seus filhos, o Marco António.

À distância e ao longo de vários anos, pude seguir com especial prazer o

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percurso do Amigo, com a publicação da sua obra poética, as suas iniciativas nesta área, a sua multifacetada actividade jornalística, cultural e política

O José António marcou o seu tempo. Fez crescer a sociedade a que pertenceu.

Partiu cedo. Alguns meses antes havíamos almoçado, na companhia de um amigo comum, o jornalista António Jorge Andrade, num restaurante que nos mostrava ali, em frente, a nossa encantadora baía, cheia de sol.

Também, pouco antes da sua partida, recebera, com a amável dedicatória “para o meu caríssimo amigo e tutor intelectual”, um exemplar do seu livro de poemas “As sombras no arvoredo” (2004). Do belo poema “Ainda não construí o barco”, recolho o seguinte excerto:

Não construí ainda o barco negroPara atravessar o mar dos peixes azuisQuando chegar a hora.

Confesso que vai para além do adro Da minha igreja preferidaO tamanho do cais em que prevejoPartir um dia.

Irei trazer as melhores madeirasAntigas, umas velas de tecido forteCom a cruz de Cristo pintada no centro (...).

Ainda não construi o barco.Apenas sei que partirei um dia Ao encontro do outro lado do mundoOnde acabam de vez os oceanos.

Espera-me o lugar onde descansam As almas(...).

Sejam estas palavras a minha sentida homenagem ao caro José António, “no outro lado do mundo”.

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ontemMargarida Watts Rodrigues Camacho

Liceu Jaime Moniz. Cidade do Funchal. 15 horas. Aula de Francês. Uma hora de amizade. Uma hora de partilha do conhecimento. Uma hora de alegria. Uma hora de sonho. Hora de todas as horas felizes. Uma sala de aula. Um sítio de felicidade.

Entrada na sala de aula. Sorrisos de acolhimento. Sorrisos de saudação. Aqueciam o coração e tornavam-nos mais fortes. Aqueles meninos traziam felicidade. Aprendíamos uns com os outros. Confiantes e amigos partilhávamos os saberes e até segredos bem nossos.

Ontem o José António esteve sempre connosco. Com o José António aprendemos a ter os nossos sonhos. A não desistir de sonhar. E a viver os sonhos. A viver a audácia da esperança. A ser fraternal e solidário. Aquele menino loiro trazia consigo os seus sonhos. Todos os dias carregava uma pasta de cabedal, enorme para a sua estatura e para a sua idade. Fascinada e curiosa, ousei perguntar-lhe o porquê daquela pasta tão grande:

José António. Pourquoi ce cartable, si joli, si grand, si lourd?

Muito contente e muito sério, respondeu:

Madame, dans ce cartable je porte mes livres, mes cahiers, mes crayons, mon stylo. Je porte mes rêves. Vous savez, Madame, j’ai beaucoup de rêves!

José António, menino atento, amigo leal. Feliz por ser quem era. Feliz por partilhar a sua alegria. Feliz por estar ali. Feliz por estar a aprender. Feliz por ter tantas sonhos.

Falava da Família. Com amor. Falava do que queria ser. Com esperança. Falava dos seus sonhos. Com entusiasmo. Por vezes uma nuvem – uma leve nuvem de

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melancolia – nos seus olhos. Mas… logo sorria. Não queria entristecer ninguém. Por isso sorria. José António era uma luz na sala de aula.

Um dia chegaram as férias. Recomeçaram as aulas. Regressaram os alunos. Onde estava o José António? Esperei em vão.

tempo passou

Cedo o José António deixou o Liceu. Era imperioso ter um trabalho. Calou os seus suspiros e foi trabalhar. Encontrei-o numa livraria – talvez tenha sido o fascínio dos livros que o atraiu para esse trabalho. Doía vê-lo longe da sua escola.

Mas não perdeu o sorriso e nos seus olhos continuavam os sonhos. Atravessou tempos difíceis. “Longos meses, longos sóis, longos dias” (Ilha 3). Atravessou solidão. Pelos sonhos cresceu. Pelos sonhos tomou decisões. Pelos sonhos se sacrificou.

tempo passou

Voltamos a encontrar-nos. O José António continuava a estudar. Continuava a ter esperança. Continuava a querer ser Poeta. “Tenho escrito poemas” – disse-me em confidência.

tempo passou

Estudou sozinho. Leu muito. E um dia apareceram os primeiros textos… e continuou a escrever. Deu os primeiros passos no jornalismo. E continuou. Fez-se jornalista. Mas outros sonhos estavam à espera. Continuou a escrever. Voltamos a encontrar-nos. O menino crescera. Agora era Poeta.

tempo passou

Com orgulho e fellicidade apresentou-me a sua Família. Uma honra. Ele – o Menino – crescera. Agora era Pai de Família. O Sonhador era Poeta. Homem de Cultura. O Aluno era Amigo para sempre.

Hoje – um dia em 2007- Cidade do Funchal 15 horas

Querido Amigo José António,Agradeço a Deus o privilégio de me ter colocado no caminho do José António

de Freitas Gonçalves – a Pessoa, o Amigo, o Poeta, o Sonhador, o Mensageiro.

Amizade. Gratidão. Saudade. Perdão por tudo o que me ficou por dizer. Abraço imenso.

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four o’clock whisky Laura Moniz

Eram quatro da tarde, anos 80, 1989, quando José António me telefonou. Era uma tarde fria. Da janela da antiga casa de chá do Santo da Serra, daquelas janelas com vidros que aos poucos se derretem, a paisagem constante era a eterna casa do inverno, sempre enevoada e húmida, árvores tiritando dentro do dia, chuva caindo sobre a gaze encharcada das horas. José António Gonçalves apresentou-se. Queria um poema de Natal que eu lhe prometi. Eram quatro da tarde e o nevoeiro entrava-me pelos ossos e esqueci o poema. Ao longo dos anos José António lamentou-se do meu atraso. Chegou a dizer que voltaria a editar O natal na voz dos poetas madeirenses para poder lá pôr o poema que mais tarde escrevi.

Eram quatro da tarde, depois do convite esquecido, e apanhei um autocarro para o Funchal, deixei o trabalho mais cedo, não sabia que ia finalmente conhecer José António. Há advérbios que só chegam mais tarde, no último avião, ou com o último carteiro.

Não sabia que hoje estaria aqui, e são quatro da tarde de um dia ignoto e triestino e José António não está. Eram quatro da tarde quando apanhei o autocarro. Quando finalmente cheguei ao lugar do lançamento do livro O natal na voz dos poetas madeirenses é que recuperei da amnésia. Tinha esquecido completamente. José António apresentou-se pessoalmente para me dar um raspanete público ‘tu podias estar aqui’. Aqui era o lugar do poema, o lugar do poema era o livro. Um locativo perene.

Eram quatro da tarde de outro dia. Não importa talvez o ano. O pano de fundo da minha memória tem a minha imagem que atravessa a rua João Tavira, desce ladeando a Sé do Funchal e dirige-se para a rua Fernão Ornelas. É um daqueles dias em que não existo. Por detrás da Sé está José António com um amigo. José António chama um dos meus não-nomes São Moniz Gouveia. E eu viro-me. Não o tinha visto. Mas ele ultrapassara a minha não existência de fantasma e nessa tarde, por me ter cumprimentado, calorosamente, com um beijo na mão, fiquei menos só. Era assim José António, às quatro da tarde, retirava às pazadas a solidão dos meus ombros.

Eram quatro da tarde de outro dia, José António dissera-me que fosse à Imprensa Regional. Nos dias feriados era preciso bater com uma moedinha na vidraça e ficar à espera. Descia-se até o seu gabinete e José António sentava-se e falava, ou então andava de um lado para o outro, a ver papéis, a telefonar, a procurar livros para mostrar, a abrir armários para mostrar uma pilha de poemas e dali pescar mais um livro. Eram quatro da tarde. Hora possível para mim. José António tinha uma barba ruiva e eu nunca lhe perguntei se a pintava. Eu achava que sim. E admirava o seu cabeleireiro. E a elegância daquela barba ruiva. E a voz que saía dos seus poemas. Que não saía por um atalho, mas no centro da estrada. E depois do movimento dentro da Imprensa Regional ele voltava a ensinar-me o atalho para o café no centro comercial. O café

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no rés-do-chão onde alongávamos as horas até ser noite e eu ter de ir embora. Foi numa dessa noites que conheci a Regina de Castro e Abreu, pois José António era também mestre na arte de partilhar amigos com amigos.

E foi noutro dia às quatro da tarde que, numa feira do livro do Funchal, entrou na minha vida a família do José António, as filhas, o filho, a Gilda, eternamente Gilda ao lado do José António.

Mais de uma década depois, eram quatro da tarde quando saí de casa com o Suzuki para ir ter a Machico. José António estava lá e eu era a boleia. Lembro-me de peixe no Caniçal e da Zita Cardoso e do José Viale Moutinho. José António falava dos seus problemas, sempre com aquele tom jocoso e peregrino, que levava os ouvintes a acharem que era coisa de pouca importância e que passaria. Porque tudo passaria, mãos dadas com as horas, nenhum de nós sabia que também José António passaria.

Eram quatro da tarde, de todos os dias, e eu ainda não tinha percebido as pseudo-invectivas de José António. Um dia dei-lhe uma bofetada. Agora mesmo quero ser cristã para poder classificar essa afronta como pecado mortal. Sou cristã para essa bofetada. Sei que há uma palavra que à minha frente José António nunca mais voltou a pronunciar. Tantas vezes, milhentas vezes, lhe pedi desculpa e expliquei que aquela palavra não. Que tinha sido assim porque eu achava que ele estava a ofender a Gilda. Mas sou cristã agora, para aquele irrepetível e atroz momento.

Eram quatro da tarde de um outro dia. Telefonei a José António e disse-lhe: vamos tomar um café? E José António disse que sim. Ia ter uma reunião na Associação de Desportos mas que sim que podia ser. Fui apanhá-lo e vi-o ligar à Gilda. Uma encenação perfeita para a infidelidade. Gilda, tenho uma reunião. E lá fomos nós tomar café na Ribeira Brava. José António tinha consigo um livro: Compreender a inteligência. Deve estar lá em casa, em São Gonçalo. Relembrou-me, estendendo-me o livro, da tarde em que eu lhe perguntara se ele me considerava muita parva, muito estúpida e pouco inteligente porque era isso que eu pensava de mim. Disse-me que andara a revistar os livros que tinha em casa e que me trouxera aquele para eu perceber que era inteligente.

Ficámos nessa tarde, na Ribeira Brava, algumas horas a conversar como dois amantes, escondidos dos consortes, eu com o meu eterno café-cigarro, José António com a cerveja sem álcool. Lembro-me do olhar de José António. Da sua inteligência. Da sua barriguinha gorducha e dos dois fatos que comprara porque precisava de estar bem apresentado para todas as coisas em que participava. Ninguém olhando para ele diria que vivia angustiado com as contas para pagar. Não. Ríamo-nos quando ele falava do cão, do gato, das galinhas, da sogra terrível e assustadora e dos sobrinhos.

Lembro-me doutro dia, José António que canta enquanto Gilda dança com o fabricante de salsichas, não há ‘nobreza’ que substitua um amor e José António ciumento pega no microfone para lutar contra a ‘nobre’ dança de Gilda. “I’ve been loving you too long... I don’t wanna stop now … please don’t make me stop now…” José António tem a voz de Ottis Redding. Canta e olha de soslaio o par, entre outros

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inocentes pares que dançam. E quando percebe que Gilda ainda dança dispara outra canção. E outra.

São quatro da tarde agora. Ontem, às quatro José António estaria em qualquer lugar a fumar cachimbo, a olhar a vida, a estender o coração para todos os seus amigos, copo de whisky na mão.

São quatro da tarde agora. José António prepara-se para ir ao Pátio. Parece que nos convidaram para um debate acerca da literatura madeirense. Não me lembro do ano. Mas já passaram as quatro e anoiteceu. Já nem sei que horas são. Podiam ser quatro da tarde, uma hora possível para em público falar de José António e do seu ego. E perante as câmaras é isso que acontece. O normal quando se acha que somos eternos. Éramos eternos nessa tarde-noite. Éramos eternos e sorríamos. Perante as câmaras José António não resiste. Eu de café, empunhando um cigarro. Ele de chávena de café transbordando de whisky. Os empregados que sorriem, o dono do café que pisca o olho. Eu que rio. Que giro! Vai toda a gente pensar que José António bebe um cházinho para aquecer. E todos pensam assim. Até as câmaras. Éramos eternos nesse dia.

São quatro da tarde. José António morreu ontem. Duas horas antes de morrer mandou-me um recado pela Natasha. Manda-me os poemas. Passei a noite toda a trabalhar n’as horas em redor. Pensava na Gilda e no José António quando corrigia o poema. Mandei o poema que veio devolvido. Soube às 10 da manhã que José António morreu. Mas não pode ser. Eu senti-o durante a noite. Ele estava vivo. Continua vivo aqui. Ouço Ottis Redding. Esta é uma tarde longa. É a tarde mais longa de todos os anos. Dizem todos que José António não está, mas às quatro da tarde pego no telefone para falar para lhe perguntar o que aconteceu, mas que distracção José António. Mas ele não atende. Deve estar ocupado. É isso, deve estar ocupado. Volto a tentar mais tarde. Agora mesmo pego na agenda. Volto a tentar. É isso. Deve estar ocupado. É isso. Está a falar com o mundo. Deve estar a dormir um bocadinho. É isso. O meu relógio não está certo. Tenho de acertar o relógio. Quero telefonar. Vamos falar José António. Lembras-te quando éramos eternos e fomos ao café do teatro? Lembras-te quando éramos eternos e eram quatro da tarde e tu abraçaste o teu afilhado e o deixaste devorar a tua sandes? E ainda por cima o sentaste no teu colo? Lembras-te José António quando éramos eternos e tu me telefonaste para me leres um poema novo? José António lembras-te quando eu estava triste e a morrer por dentro só o teu olhar bastava para dizer que não era bem assim. Que eu só estava triste e que tudo passaria? Mudaste de endereço? Manda-me o novo número. Quero que venhas a Duíno. Ontem sonhei contigo. Estamos no passeio de Rilke e tu estás lá com um guardanapo na mão. Escreveste mais um poema. E perante mim és verdadeiro. Uma vez vi-te uma lágrima e sei que és verdadeiro. Comprei uma garrafa de whisky. Tenho dois copos. Diz à Gilda que tens uma reunião. Four o’clock whisky para dois.

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a las cinco de la tardeJoão Carlos Abreu

O meu encontro com o José António era habitualmente entre as 17 e as 18 horas – aquela hora em que o céu azul da ilha começa a caminhar apressadamente para o fim e se deixa vencer pela cor alaranjada de um sol que acabará, mais tarde, por agonizar na noite das estrelas. É uma hora em que no meu gabinete me liberto do frenesim das palavras ditas e repetidas e dos papéis. Entrou o meu caro amigo José António. Conheci-o há muitos anos, quando na redacção do Jornal um rapazinho muito jovem, colocava já, com talento, a poesia nas coisas e nos textos, diferenciando-se dos demais. A sua irreverência constante e bendita caracterizava-o mantendo-se assim, felizmente, até ao fim da sua caminhada.

Ele chegava às cinco da tarde, com o seu cachimbo e aquela madeixa de cabelo caído sobre a testa, que lhe dava um ar de juventude. Apertava-me a mão fortemente, e com um sorriso franco, trazia-me da rua as notícias e os boatos abundantes: ríamo-nos a bandeiras despregadas. Libertávamo-nos assim, desta maneira, tão salutar, – “precisamente a las cinco de la tarde” – das maldicências de cidadãos que teimam em sufocar a mente da cidade e intoxicá-la com as verdades das suas mentiras.

Falávamos dos poetas e dos escritores contemporâneos, dos portugueses e estrangeiros. Ele estava mais actualizado do que eu, e por isso partia, com ele, à descoberta das palavras. A Natália Correia e o Dórdio, amigos comuns, aos quais ele se atracara por uma amizade participada, no sublime dos sentimentos que nos unem e nos fazem “heróis” dos caminhos da vida, surgiam muitas vezes, plantados com esse espírito indestrutível, nos nossos diálogos: ela como poeta da beleza, enraizada na mitologia dos deuses com as mãos feitas véus presas à ilha de São Miguel. Terra por ela exaltada e amada na loucura das paixões que só os poetas sentem e descrevem para que se saiba que entre as entranhas do homem e o ventre escaldante das terras existe uma espécie de cordão umbical que jamais se destruirá, sejam quais forem as circunstâncias. O Dórdio como amante sofredor, escravizado voluntariamente por um amor que as palavras jamais conseguiram definir – um amor que fez dela uma deusa entre as deusas e, igualmente uma mulher sempre apaixonada. O José António convivera muito com eles e depois do desaparecimento da Natália, foi o mais fiel dos amigos do Dórdio. Ouvia-o no mar em que naufragava na mais desencontrada das paixões, dando-lhe força possível, conservando-lhe aquele raio de luz que a amizade alimenta, quando já quase tudo se perdeu…

A tua voz, José António, com que cantavas os poetas e brincavas tão talentosamente, com os ritmos nas noites vagabundas da zona velha, deixei-a de

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ouvir naquele dia em que na Índia me disseram que tinhas partido para sempre. Estava em frente a essa maravilha do mundo que é o Taj Mahal, cuja grandeza e espectacularidade não cabem em quaisquer descrições, tal como a nobreza e grandeza da tua alma não se mediam.

Curvei-me respeitosamente perante a tua memória em frente ao Tashmahal e em silêncio percorri o tempo para encontrar-te na força da tua juventude onde todas as tuas razões perspectivavam já a tua vida de escritor – poeta de qualidade.

Um dia, a las cinco de la tarde, ele entrou no meu gabinete, sorridente, como sempre:

– João, tenho uma proposta a fazer.– Uma proposta, pergunto.– Sim, gostaria de ter uma conversa contigo: um pouco sobre a tua vida, o teu

percurso humano, as pessoas que encontraste, as tuas viagens, essa tua forma de olhares o mundo, essa tua forma de seres e estares na vida.

– Vamos a isso, disse-lhe: conversámos. Desbobinámos da memória factos e pessoas. Viajámos os dois no tempo aos dias do “Jornal da Madeira”; recordámos acontecimentos e notícias. Entre as cinco e as seis da tarde, vivemos intensamente um pouco do que sucedeu em nossas vidas. Deixámos no palco da vida presente, aquilo que ele julgou ser o melhor para levar ao público. Isto aconteceu num daqueles dias curtos de Inverno, em que a noite tão precipitadamente cai sobre nós. – Entre um gole de chá e uma “cachimbadela”, aquecíamos as mãos nas chávenas.

– João, tens cognac?- Não, mas prometo-te que na próxima vez oferecer-te-ei “Cognac”, não um,

mas uma garrafa.

Para meu espanto, passados poucos dias, o José António apresentou-me o relato da nossa conversa, num texto bem elaborado que testemunhava o seu talento extraordinário, espírito de observação e amizade. Comovi-me até às lágrimas. Abracei-o fortemente para celebrar a amizade e demonstrar-lhe o meu reconhecimento.

– Gostas do título: “Sol na Gaveta”?– Sim, é bastante sugestivo.– E o que me dizes desta capa que o meu filho Marco desenhou?– Excelente, respondi-lhe. Ele sabia da minha “mania” pelas gravatas, pelas

cores, e sendo um livro que reflectia o meu percurso humano, sugeriu ao Marco, que à laia de homenagem, abordasse o tema das gravatas. Guardo religiosamente este livro – é uma sua presença constante:

“Procuro a minha voz e não a encontroProcuro o meu silêncio e não o tenhoAo desencontro vem o desencontrodo maior ao menor é o meu tamanho”

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Meu caro José António, tive a sensação de que entravas, há pouco, neste meu gabinete de trabalho; tive a sensação de ouvir a tua voz e de ver o teu sorriso franco e leal. Senti o calor da tua mão amiga apertando a minha mão, selando por tantos anos esta amizade que só a morte arrebatou. Mas tu, meu Caro, estás comigo e tenho aqui o “Cognac” que te prometi. Estás comigo nesta saudade que alimenta a alma e não deixa que a memória atraiçoe aqueles que amamos, mesmo se partiram. Sabes, estive mal, mas regressei à vida, apaixonei-me loucamente, de novo, para não deixar morrer nos dias, a minha alma, e para que os meus olhos descubram sempre a beleza das cores e das pequenas coisas.

São cinco da tarde e vou repetir-te o poema:Ridiculamenteo importante é não parecerporque ser,todos somos, mais ou menos,qualquer coisa que escondemosdentro da própria ilha.

Assim acontece ainda, José António. Encontrar-te-ei um destes dias e levar-te-ei o “Cognac” prometido. Até lá um abraço.

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Às 6 da tardeJosé Manuel Cabral Fernandes

Encontrava-me no gabinete de trabalho do Dr. Baltazar Gonçalves com o José António, que havia sido contactado não sei por quem, para uma reunião, a qual visava convidá-lo para aderir ao projecto do lançamento do CDS, no período conturbado do Gonçalvismo.

Nunca antes tinha tido um encontro com ele, senão uma fugaz apresentação na Delegação do Trabalho, em que por breves segundos fiquei logo inteirado de que se tratava de uma personalidade jovial, irrequieta, bem disposta, numa palavra, um extrovertido no estado puro.

Depois disso e até às 6 da tarde da dita reunião não tivera qualquer outra oportunidade de aprofundar o meu conhecimento sobre a sua personalidade. Era para mim ainda um estranho.

O Dr. Baltazar liderou a reunião, desfilando argumentos sobre a necessidade da criação do CDS na Madeira: planos a desenvolver e acções a desencadear.

O José António seguia a explicação com atenção, mas com uma postura circunspecta e séria. Se não discordava também não mostrava particular entusiasmo.

Ouvia, pouco falava. Não se ajustava àquela personalidade extrovertida que imaginava encaixar-se nele.

Dei a minha ajudazinha, mas formei no meu íntimo a ideia de que o desfecho da reunião poderia ser um sim/mas, até culminar na declinação do convite, como acontecera com muitos outros.

Enganei-me. O José António aceitou colaborar.Seguiram-se as despedidas, mesmo assim, num tom formal ou pouco

descontraído e o José António lá foi descendo as escadas.Quando já havia descido o primeiro lanço de degraus deu meia volta e voltou

a subir e, no patamar, faz-me a pergunta: “Quando começamos?” Disse-lhe: Hoje mesmo, depois do jantar, e marcou-se a hora e o local.

A partir desse dia aconteceram inúmeras reuniões, encontros e ocasiões de convívio inesquecíveis e que perduraram na minha memória, como momentos bons e narráveis com imensa saudade.

Escolhi este, por ser o primeiro, o que antecedeu todos os outros, mas (também) porque a expressão “quando começamos?” traduz o José António, que aliava uma inteligência fulgurante, uma imaginação e criatividade invulgares, com a acção.

O pensamento e a acção, no Jag andavam sempre lado a lado e com a mesma força, o que é raro, muito raro. Tive a sorte de partilhar com ele essa raridade. Como gostaria de começar de novo!

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os livros caídos do céu…João Rui de Sousa

Talvez seja útil começar por dizer que o meu primeiro contacto com o José António Gonçalves se verificou há um bom par de anos, no contexto de uma assembleia geral da Associação Portuguesa de Escritores, ocorrida num dos primeiros anos 90. Deu-se até o caso de, no final dessa reunião, e num gesto com tanto de inesperado como de especial afabilidade, ele ter obsequiado com dois bolos de mel e duas ou três garrafas de Madeira os menos apressados em abandonarem as instalações da APE. Foi no decorrer desse agradável convívio, em que, entre outros assuntos de conversa, lhe revelei que o meu pai era madeirense, nascido no Porto da Cruz, que a nossa amizade nasceu e ficou selada, digamos assim. Desde aí, e com o correr dos tempos, tivemos numerosos encontros. Diversos deles concretizados na sua ilha natal. Na maior parte dos casos, porém, em Lisboa, onde ele vinha com certa frequência no quadro das suas obrigações profissionais ou a propósito de certos eventos de natureza cultural.

Um desses encontros ocorreu em certo fim de tarde, entre as 19 e as 20 horas, após o habitual e inevitável telefonema «convocatório», a anunciar-me a sua chegada à capital. Esse encontro verificou-se no hotel A. S. Lisboa, que se situa numa das esquinas da Alameda Afonso Henriques com a Avenida Almirante Reis, por sinal bem perto da rua onde resido. Foi nesse hotel, ou antes, no próprio quarto onde o José António se acabara de instalar e ia arrumando as suas coisas – quarto situado bem ao alto, penso que num oitavo ou nono andar -, que me foi dado assistir a um acontecimento verdadeiramente insólito protagonizado pelo autor de A Aventura na Casa dos Livros, uma personalidade que para ser imprevisível e insólita não precisava de gastar muito tempo ou de pedir licença…

Começando por me mostrar diversos exemplares de um livro seu acabado de sair (qual deles era, não me recordo) e tendo eu inquirido sobre as suas intenções quanto ao possível «lançamento» do mesmo no circuito comercial, obtive como resposta, num dos seus habituais rasgos de espontâneo e humorado non-sense, a sugestão de se proceder, ali mesmo, ao dito «lançamento». E se bem o pensou, melhor o fez. Abrindo a janela do quarto, de pronto começou a arremessar, de modo cadenciado e sem grandes pressas, diversos volumes, um de cada vez. Esses exemplares, largados só nos raros momentos em que não se viam transeuntes, caiam num dos passeios que marginam o hotel, precisamente o passeio que dá para a já referida Alameda. Após cada um desses arremessos (uns sete ou oito, no total), ficávamos a observar, ele e eu, o que acontecia. E o que observávamos, por entre estrondosas gargalhadas de ambos, é que nenhum livro era «rejeitado» pelos que passavam, tendo todos os exemplares sido recolhidos e guardados por outros tantos indivíduos, certamente intrigados com o achado. Mal sabiam esses possíveis leitores futuros da obra do José António Gonçalves – e, para já, na posse de um livro seu – que essa dádiva, tão inesperada e singular, era de facto «caída do céu»…

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tu nunca faltas a um encontroOctaviano Correia

Tenho, hoje, um encontro marcado com o José António. Às vinte horas. Na esplanada do Café do Teatro. São oito da noite. Em ponto. A esplanada está cheia. Como sempre a esta hora. Olho em volta. Na primeira mesa, a um canto, à direita de quem entra, lá está ele. O José António nunca falta a um encontro com um amigo. E ele está lá e estará sempre lá, como de todas as outras vezes. Ali, onde tantas vezes lhe fiz companhia. Bebi uma bica. Falei de um livro ou recebi um livro seu, autografado na primeira página.

ele está lá porque os poetas estão sempre onde é preciso. mesmo quando deixam de escrever e nos deixam apenas o prazer de saborear as palavras que a sua inspiração passou a letra de forma. Como quem voa. pousando aqui. ali. em qualquer lugar. em todos os lugares... onde o terá levado o voo final? aquele voo súbito, inesperado que ele ensaiou num início de noite? até nisso o josé antónio foi igual a si mesmo. É que ele não era como se pretende seja a maioria dos mortais. previsível, certinho, alinhado. o josé antónio era a antítese de tudo isso. a cada dia nos surpreendia com um novo poema, um novo projecto, um novo livro. a cada dia tirava, da sua inseparável pasta preta, a ideia de um encontro com um escritor, a vinda de um homem de letras à “sua” madeira, a ideia de uma nova colecção capaz de “falar” dos poetas da “sua” ilha. e quando as páginas dos livros se tornavam pequenas, ele abriu a madeira ao mundo através da internet. todos os dias o mundo das letras tinha, à sua disposição, uma pitada de inspiração madeirense. todos os dias o nome da “sua” ilha aparecia nos ecrãs dos computadores de quem, em qualquer parte do mundo folheasse o calendário da poesia. o josé antónio já não cabia entre as montanhas e o mar que nos limitam. para ele a madeira, a “sua” madeira, os seus poetas e prosadores tinham lugar no mundo. e foi isso mesmo que ele fez. a sua arte de voar, os voos intermináveis da sua imaginação, da sua capacidade de concretizar sonhos, levou as letras desta ilha pequenina, para aquela dimensão que não se pode medir.

Foi no Bananas, na Zona velha, onde, pela primeira vez privei de perto com ele. E estava a Maria Aurora e o João Carlos, também. Em que ano? Talvez 1989 ou 1990, estava eu na Madeira ainda de fresco e aquele encontro foi assim uma espécie de porta de abertura para a minha entrada nos meandros das letras da Ilha. Lembro-me que o José António quis saber tudo, bem, quase tudo sobre mim, em Angola.

Conversámos. Eu com um ar sério de quem fala de algo importante e ele assim a modos como quem diz… isso é lá terra onde se escreva! Pensava eu! Que ele, afinal,conhecia já muito do que em Angola se fazia em matéria de escrita, como, aliás, sabia quase tudo sobre qualquer outro lugar do mundo onde se imprimam páginas

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para se fazerem livros, tanto que, mesmo ali, me desafiou para levar a cabo uma mostra do livro Angolano. E ela fez-se. Pela mão de Rui Carita, no Teatro Municipal aquando da realização do Congresso do Pen Club na Madeira. E, pela mão do José António vi-me, também, sem mais estas nem aquelas, feito observador no referido Congresso. Era típico dele.

Depois, depois sei lá. Não havia livro dele que, com dedicatória especial me não viesse parar às mãos, quase invariavelmente numa mesa do Café do Teatro. Ele chegava, com aquele seu passo lento, dando, a espaços um toque na madeixa de cabelo que lhe caía para a testa, e antes ainda de se sentar, começava a abrir a sua inseparável pasta preta e dela tirava um exemplar. “Toma lá, agora diz que não te dei um! Queres dedicatória?”.

E para que não fosse só ele a “presentear-me” com as suas obras, e em mais um desafio, tudo fez para que um livro meu fosse dado à estampa: “Histórias com Gente Dentro” e, mais tarde “Coisasimplesmente”. E com que facilidade ele nos convencia a fazer o que quer que fosse desde que fossem livros! Quantos livros publicou? Seus e de outros? Quantas colecções, quantas antologias criou? Quantos autores madeirenses divulgou, deu a conhecer, descobriu?

José António tratava a Literatura por tu. Tratava dezenas de escritores conhecidos como seus pares que eram. Tratava por tu os livros, a poesia, a magia da palavra. Falar do José António! Um episódio, uma memória, um depoimento! Como se fosse fácil falar de quem ultrapassou fronteiras e, com a sua visão do valor dos outros, carregou, consigo, letras e escritos que outros pensavam ser apenas coisas menores do pensamento ilhéu. Um dia, sabe-se lá onde, talvez nos encontremos de novo, JAG, para falar de livros. Sei que vais lá estar. Tu nunca faltas ao encontro com um amigo.

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o sobrescrito azulIrene Lucília Andrade

Vinte e uma horas. A casa inquieta-se na sua hora mais iminente de anarquia e desarrumação. Empilham-se pequenas torres de saberes, alguns em ruínas, sobre mesas que já foram testemunhas de intimismos e reflexões e agora parecem ser alicerces frágeis de um espólio inerte onde o pó e o ocre do tempo têm seu lugar. Um dia, hei-de reservar um dia, para arrumar tudo isto, devolver alguma dignidade aos papéis antigos e lavar o rosto aos livros.

São vinte e uma horas, os ecos do mundo chegaram há pouco em fundo cinzento apesar da T.V. a cores, um digital perfeito reproduzindo a nitidez da barbárie. A preto e branco, porém, se revelam na película da alma o contraste mais atroz entre os que são e os que não são, os que têm e os que não têm, os que choram e os que riem, os que estridulam e os que cantam, os armados e os desarmados, elite e escória, deuses e demónios. Incomoda-me a incerteza de tanta verdade apregoada, o cansaço de tanta ficção. Arrasa-me o sucesso desta máquina ingente que tomou conta do mundo e de mim e me prende nas horas úteis a um fascínio de formas e ruídos poderosos. Acabou-se. Primo o dígito e apago o seu brilho nesta noite de lua quase nova que vejo sobre a varanda, a lua sim que é silenciosa e quieta e me olha como se eu realmente existisse, ela que me desperta a consciência e me recupera e refaz e torna inteira para sentir-me e perceber que esta casa é um espaço importante. Desde a mesa ao pó, ao ocre do tempo, aos livros envelhecidos, às pequenas memórias em ruínas, a vida está aqui há muitos anos e continua à espera.

Então é hoje que decido dar esta volta à casa, por causa dum certo olhar da lua que me desata da inércia e me remete para as gavetas do armário. A mesa e os livros ficarão para mais tarde. Os armários são habitações de vida íntima, a que devemos dar a amizade que convém. São lugares de quietude mas carregados de força psicológica. Alguém disse que não se pode abrir um armário sem se estremecer um pouco.

De verdade estremeço à vista dum sobrescrito de papel azul pardo duns que dantes se usavam a envolver os telegramas vindos pela Marconi. Guardavam-se também neles as primeiras fotos que uma máquina incipiente registava das nossas precárias vaidades. De dentro dele um facto e alguns vultos surgem, trazendo de uma hora irrepetível uma

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incisiva nostalgia. Um momento passado que de repente se reconstitui na presença de um rosto sobre folhas de papel riscadas de poemas e iluminações. Um rosto de uma ousadia adolescente de quem marca na vida a hora que deseja consagrar como sendo a primeira do seu destino, aquela de onde parte para a definitiva navegação dos seus íntimos roteiros: A dos sonhos, ilusões, libertações e mistérios só na escrita vislumbrados. Porque esse destino, tal como o conheci, foi a escrita, a poesia como conhecimento, tradução da sua realidade pessoal e projecção do seu mundo em invenção metafórica; a poesia que esperava por ele para que a ilha saísse do mar, onde nascera, e os poetas se aproximassem na uníssona voz que quer debater a “fronteira”, que procura entender o obstáculo das águas para destruir o seu mito.

Uma fotografia, quatro poetas em rosto e em forma de anelo, nascituros de palavra, tentando um gesto inquiridor sobre o mundo, ali estava entre eles José António, menino de dezasseis anos, assumido homem de letras e congregador de vontades sonhadoras e valores afins. Esse dia que a foto assinala foi então o primeiro de muitos em que José António Gonçalves reúne às mesas de cafés, de assembleias culturais, no palco de teatros, alguns daqueles que escolheu ou a vida fez chegar até ele, por seus atributos e cumplicidades na senda da escrita.

Dezasseis anos ousados de confirmada decisão e postura voluntariosa. Mais de uma hora à mesa duma Biblioteca JAG arrebanhou a atenção de uma plateia atenta entre professores e alunos da antiga Escola Industrial e Comercial do Funchal. Nesse painel até então inédito aos costumes do tempo, os poetas leram publicamente seus pequenos e tímidos trabalhos de introspecção em provocação à inércia dum meio fechado, onde a cultura se limitava a uma velha elite de culto privado e onde haver poetas era simplesmente inusitado e estulto. JAG continuou a reunir mais tarde jovens poetas e outros a quem facilitou, por interpostos patrocínios, a publicação de alguns livros. Mas não é de tal memória que esta hora de evocação precisa. É apenas dos seus dezasseis anos activos, decididos e precoces, corajosos de uma certa maneira de enfrentar o mundo e agarrar um sonho contra a dureza duma realidade invencível. Dezasseis anos adultos de uma certa forma de querer que a poesia e a arte pudessem constituir uma espécie de estrutura para a vida, se se tivesse a consciência de que a inquietação não é ingénua expressão duma infância medrosa, mas é testemunho veemente de procura, do direito de viver e construir um lugar que, não sendo estável nem seguro, será por isso mesmo dinâmico, propício a revelações e à abertura e evolução das culturas.

Este sonho não tem fim. JAG aceitou o jogo e entrou nele à defesa e ao ataque. Ganhou e perdeu. Mas não contam as derrotas se se podem somar os ganhos de alguns projectos felizes. Fiz parte deste jogo também. Estive com ele entre os quatro rostos dessa hora dos seus dezasseis anos à mesa duma Biblioteca. Foi a primeira vez que o vi. Estive com ele muitas vezes mais tarde. Hoje revejo nesta foto a vida como ela foi, em que eu tinha mais dezasseis anos sobre os dezasseis anos de JAG e ele me procurou entusiasticamente por um livro e um poema.

A noite acabou de afirmar, definitivamente, por entre pequenas e esparsas nuvens, a lua quase nova. O tempo é agora de diluições e extravios. Por isso conservo e estimo essa hora antiga que nos reúne ainda na habitação afável duma particular gaveta.

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Às portas da memóriaGualdino Rodrigues

São dez horas da noite, a hora em que nasci. No mês das uvas, com o mundo em paz. E assim cresci. Os primeiros anos, na Heliodoro Salgado, um jornalista do Porto, anarquista de todas as revoluções perdidas e que Salazar se esquecera de proibir o seu nome a uma travessa, ligando o Conde Carvalhal à Rua Nova da Alegria, na capital da sua colónia branca, “a fermosa ilha da Madeira”! Tenho algumas recordações desse tempo abençoado - caí de uma escada de pedra e só parei no fundo do jardim e ainda hoje carrego a prova dos factos ao alto da testa aflorando o cabelo que começara por ser castanho e agora se confunde com a pura neve que encontrei nos povos amigos do Norte da Europa... A morte da tia Maria que me guiava pela mão e enganava o diagnóstico do médico que nunca chegou a duvidar da minha miopia. O inseparável Bobby, branco e negro, como se fosse o filho dos dois que apareciam no rótulo das garrafas de uísque blackandwhite ...

José acompanhava a minha recordação em silêncio, descíamos a Calçada do Pico, vindos de uma visita a Aragão, o sobrevivente de uma longa espera às portas da memória, apoiado no braço amigo da Estela, a mulher. Era muito próximo dos dois. Conheci primeiro o poeta, o escritor e o pintor no fim de uma sessão do Cine-Forum no Teatro Municipal. A ditadura caminhava para o seu esperado fim. Quando parti para o meu exílio finlandês começava a descobrir o historiador. No meu acidental regresso à ilha, na flor da revolução, trabalhámos num projecto de cultura popular, recuperando canções e romanceiros perdidos, os mesmos que animaram o Conde Dom Henrique na sua longa viagem do centro para o noroeste da Europa...e ajudaram os companheiros de Zarco a aproximar uma ilha perdida no Atlântico, conhecida de piratas e náufragos...

Estela, recordo-me da sua angústia na casa da Lapa em busca de um médico salvador para controlar a derrapagem do cérebro inigualável de Aragão, uma rede de emoções, cores e odores, factos e lugares que o ajudavam a celebrar, através da arte, a esperança da coroação do homem na marcha acelerada do conhecimento... Quando recebi a notícia, encontrava-me no Palácio das Necessidades, mergulhado nalgum documento que me ajudava a compreender melhor a próxima viagem e compreendi que era preciso agir depressa para dominar o perigo que pairava nas palavras da incerteza...

O perigo maior é quebrar o silêncio. Apercebi-me desta verdade ainda muito jovem.Todos os anos, no Liceu do Funchal, havia um concurso literário aberto aos estudantes. O prémio era de 150 escudos. Dava para ir ao cinema trinta vezes, ir à bola dez vezes, comer 150 gelados, comprar 15 romances de Eça... Quando estava no 1º ano foi-me atribuído o prémio. O “Diário” publicou o conto. Meu pai chamou-me escritor.

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No ano seguinte, apresentei-me a concurso com “Labirinto”. E ganhei. Mas não cheguei a receber o prémio. Começara a guerra colonial e o país entrara num inextricável labirinto. Uma vez o graduado da Mocidade Portuguesa chamou-me comunista. Usou o mesmo tom de voz de quando me chamava “caixa dóculos”.

Um colega de escola levou-me à Estação Rádio da Madeira, no Pico dos Barcelos. A Rádio fascinou-me. Um programa de rádio era o meu sonho. Quando criei o “Antes e Depois”, exclusivamente de música anglo-americana, o censor fascista exigiu a tradução das canções dos Beatles - perguntei-lhe se a PIDE não tinha tradutor de inglês... Fui proibido de entrar na estação...

José decide-se por organizar o silêncio, compreendê-lo, purificá-lo. Talvez a poesia, a música... Por alturas do Convento de Santa Clara, ofereceu-me um livro que acabara de publicar - Aventura na casa dos Livros com uma dedicatória recordando o nosso trajecto literário “onde juntos percorremos os corredores ilhéus da memória”... Ah, sim... Era por aqui que minha mãe me recomendava silêncio - “ali dentro está o corpo de Zarco”, depois seguíamos por uma rua escura que desembocava na Cruz Vermelha, no Largo da confluência com a 5 de Outubro que dava para uma ponte às portas da Casa Hinton & Sons e eu soltava um suspiro de alívio pois deixara para trás uma curva mal iluminada por umas lamparinas baças guardadas por uma vidraça suja “em honra das almas”... O Natal de 2000 caminhava para o fim e eu preparava-me para regressar a África. Nunca mais nos encontrámos.

A 21 de Março, Dia da Poesia, bati às portas da Morte mas não fui recebido. Um avião-hospital levou-me para Joanesburgo e regressei ao mundo dos vivos, que falam de silêncio como se fosse música - “a pedra de cantaria despida pelo pudor das marteladas do tempo, apontava um calendário, incomum, desfolhado, onde se regista o amor no orvalho das madrugadas”.

Folheámos juntos um livro de Ferlinghetti que iludira os fiscais das Letras, juntos escrevemos na Página 2000 do JM, acreditámos na esperança do “Movimento” imaginado por Vieira de Freitas, tal como Cadernos da Ilha, de que José foi um continuador interessado desde a primeira reunião, em 1976, numa sala do Teatro Municipal de Baltazar Dias.

No meu regresso do exílio, o entusiasmo da Revolução levara-nos à Rua da Carreira - josé entrou pela porta do CDS e eu pela do PCP... Vieira de Freitas vai propor-me em 1979 para militante socialista depois da invasão soviética do Afeganistão me ter separado definitivamente do Partido... No Hospital dos Capuchos fiz a última visita a Vieira de Freitas. Já não me reconhecia, poucos dias depois de uma conversa de quatro horas num café da Trindade. José e VF eram da mesma família e traziam na alma a música da Poesia.

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o senhor joséEdward Michael Kassab

Não é importante saber quando e em que circunstâncias o conheci. O importante é tê-lo conhecido. Mais importante, ainda, é que depois de conhecê-lo, jamais alguém se esqueceu do José António Gonçalves.

Conviveu com os grandes da sua época; como jornalista, entrevistou-os, como escritor, desafiou-os, como poeta, encantou-os, como cantor, entreteve-os e, como pessoa, fascinou-os. Apesar de ser mais culto e profundo nas ideias do que deixava transparecer, foi sempre popular, a todos cativando. E, essa popularidade, aliada ao seu espírito revolto, temperava-lhe o ânimo e concentrava-lhe no punho o vigor de escrever, enfim, a força de viver. Corria-lhe nas veias a tradição e a genica de um povo sofrido, herança de um passado simples mas honrado, cuja simplicidade, inspirava-lhe a coragem de ser diferente. Se não gostássemos dos seus livros, da sua poesia, ou dos seus artigos, do José António Gonçalves gostávamos, com certeza.

A emoção era a razão da sua existência mas, também, a razão da sua fraqueza e, foi neste paradoxo, que o José António Gonçalves cresceu em talento e expandiu a sua alma. O mundo cabia, por inteiro, no seu coração mas, ao contrário, nem sempre era assim! Era solidário porque sentia a dor dos outros na sua própria carne e generoso, porque dava, sempre, mais do que possuía. Os bens materiais eram-lhe irrelevantes porque a sua riqueza não era deste mundo e o resto confiava à divina Providência. Os seus bens resumiam-se aos seus discos de vinil, aos seus livros e apontamentos. A sua maior fortuna era a sua Família que tanto amava e os amigos que tanto prezava.

Incompreendido por muitos, apenas procurava justo reconhecimento, o seu lugar ao sol e a oportunidade de se fazer ouvir. Pena é que as suas capacidades não tenham sido mais aproveitadas por esta sociedade que tantas vezes, por falta de cavalos, sela os cães. O José António não era hipócrita, pelo contrário, era, no seu todo, autêntico! Sem medos nem complexos, só o sofrimento o aterrorizava. Como qualquer artista, gostava de cativar as atenções. Não era humilde mas era sincero, não era vaidoso mas era orgulhoso.

Com ele aprendi, convivi, cresci, diverti-me…

Quantas vezes, debruçadas sobre o pano verde da machiqueira, de taco em riste, entre tacadas espantosas e falhadas, as histórias abundavam, as anedotas fluíam e os assuntos mais sérios também ali eram debatidos, como se de uma mesa de reuniões

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se tratasse. As gargalhadas do José António ecoavam pela sala misturando-se com os vapores do álcool e o rasto aromático da cachimbada ou a névoa suspensa do fumo de um bom charuto. Depois da jogatina desgastante de bilhar era a hora do giro pelas discotecas, o Karaoki e os Night Clubs. Uma espécie de romagem obrigatória… E o nosso maior inimigo, o Tempo, esse, passava sorrateiro. As noites terminavam quase sempre com uma sanduíche de espada fresca, numa tasca ali para os lados do mercado e o raiar da manhã decretava o findar do desvario. Eram assim, as noitadas com Sr. José, como eu, exclusivamente, lhe chamava.

Mas uma das qualidades que mais me impressionou no José António foi o seu humor e a sua boa disposição em qualquer que fosse a circunstância. E é precisamente um pequeno apontamento, bem ilustrativo desse predicado, que partilho e dele faço aqui registo:

Certa noite, sem qualquer combinação prévia, avistei o Sr. José na companhia de um casal de meia-idade, de bom e fino porte. Como não podia deixar de ser, aproximei-me dele e dei-lhe um apertado abraço como era hábito. Passou, de imediato, a apresentar-me ao dito casal, dizendo: “Apresento-te ao Sr. Dr. Fulano tal, presidente da Associação dos Cinemas de Portugal (?) e à sua esposa, a Sra. Da. Fulana de tal.” Cumprimentei o casal, cerimoniosamente, expressando o meu grande prazer em travar aquele conhecimento ao que eles retribuíram com igual delicadeza. De seguida, exclamou o José António, muito seriamente: “Ainda bem que vos apresento, porque o meu amigo, Eddie Kassab, é um grande apreciador da Sétima Arte! Tem em casa seiscentos filmes pornográficos e três policiais!”

Escusado será descrever o choque que sobreveio aos semblantes do distinto casal, o meu próprio embaraço, para logo depois, romper a gargalhada geral…

Com esta última graça, em testemunho do meu afecto, aparto-me do José António parecendo-me ouvir a canção que tantas vezes me dedicou, cuja letra, hoje, faz mais sentido do que nunca:

I am sailing, I am sailing,

Home again cross the sea. I am sailing, stormy waters, To be near you, to be free.

I am flying, I am flying,

Like a bird cross the sky. I am flying, passing high clouds,

To be with you, to be free.

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Can you hear me, can you hear me Thru the dark night, far away,

I am dying, forever trying, To be with you, who can say.

Can you hear me, can you hear me,

Thru the dark night far away. I am dying, forever trying,

To be with you, who can say.

We are sailing, we are sailing, Home again cross the sea.

We are sailing stormy waters, To be near you, to be free.

Oh lord, to be near you, to be free. Oh lord, to be near you, to be free,

Rod Stuart (Gavin Sutherland, 1972)

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da meia noite à uma com o ZéGonçalo Nuno dos Santos

Esperavámo-nos consentidamente. Não tínhamos propriamente uma agenda, dessas fumegantes, de linhas, de encontros, de reuniões, de tal e tal e de prazos de validade inconsequentes. Não marcávamos nada. Encontravámo-nos como a espuma os calhaus roliços ou, nas tardes, os namorados enlaçados. O Zé tinha relógio, nunca o tirava, não fosse o tempo parar sem o avisar. Pior do que ter relógio é tê-lo e nunca olhar para ele. Nem para ele nem para o anel que sobressaía ao movimento da mão e que eu sei que lhe fazia lembar o pai. Não funcionávamos portanto a cronómetro, abraçavámo-nos aos dias como trepadeiras às paredes e trepavámo-los sem urgência. Melhor dizendo, sem conquistas ou remorsos. Apenas os dias mornos, escorrendo, entre os dedos. Existiria um meio dia (talvez) quase horas de se levantar, o cheiro ao almoço da sogra ou da Gilda. Agora, meia-noite era hora que não existia para o Zé. Até acho que para ele não existia “meia” de nada. Ao entregar-se, dava-se despido e uno. Pequenas congeminações. Segredos de gaveta. Ligeiras maquiavelices não eram jogo para o Zé. Falava abundantemente só e apenas do que sabia. Falava de política e de literatura e também de canções. O José António cantava (muitos já não se lembram) mas na família dele todos cantam, pelo menos os que estão no Canadá. Mas, de literatura, caros amigos, o Zé sabia. Sabia mesmo. Sabia das sílabas, dos contornos, das faces de todos os poemas. E sabia dos poetas (Cristianos Ronaldos dele). O Zé dava cartas. Ouvia-o, até me fartar. Às vezes fartava-me cedo (e fugia). Outras, e foram tantas, ficava até os ponteiros dos relógios fervilharem, bêbados de andar à roda. O que é certo é que eu voltava sempre à mesma fonte. E, se escrevia, não acabava uma frase sem lhe perguntar, gostas disto? Aliás, escrevia só porque ele existia. Foi sempre assim. Só ele gostava do que eu escrevia e apresentava-me como poeta. Minha Nossa Senhora! Eu poeta! Que orgulho e que desgosto para os meus (e são todos aqueles que teimam em me dar títulos e me enjeitam este cheiro a ar) mas eu gostava, gostava mesmo disso. Um jornalista perguntou-me se eu iria continuar a escrever. Respondi-lhe, nunca mais. O Zé deixou-me sem alternativa. Agora que me desenrasque (bonito trabalho José António!). Penso que terá sido em Novembro, as noites frescas anunciavam a pressa do Natal quando o Zé e eu fomos bater com os costados para o norte da ilha. Acho que foi uma inauguração. O último orador falou tão bem que fez cair a cortina do palco, acordando tantos dos que já dormiam abundantemente. Saímos do recinto depois de três discursos e da declamação de três ou quatro poemas deixada a cargo de meia dúzia de meninos de tenra idade. Este poema é dedicado à minha avó que não sabe ler, dizia um deles, e lá vinha mais uma “charutada” de palavras desencontradas. O Zé ria-se até ao desmaio mas continha-se, vermelho como um pêro. Não me recordo, mas já passava da meia-noite quando saímos da sala. Na rua as pessoas fumegavam com as bocas escancaradas e o Zé

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ia-se juntando aos vários grupos que se iam criando e a todos contava mais isto e mais aquilo. Nunca vi ninguém assim. Tentei apressá-lo várias vezes, mas nada. Tínhamos sido convidados para jantar na casa de um senhor importante, desses que cumprimentam com as costas flectidas. Ora, o jantarzinho estaria na mesa desde as oito ou nove da noite. Mas o Zé era teimoso. Pela última vez disse-lhe: – ou vens ou vais a pé e apertei o passo. Se havia coisas que o José António não gostava era que o deixassem entregue ao vazio, sem ancoradouro (e a Gilda não estava nesse dia, muito excepcionalmente). O Zé sentia-se um pouco agoniado. Nós éramos amigos desde os treze ou catorze anos e mantínhamos, um sob o outro, uma hierarquização estável.

Quando finalmente chegámos – ainda pelo caminho parámos para cumprimentar um tasqueiro que tinha a porta entreaberta – os nossos ilustres anfitriões bocejavam, não tanto pela espera, penso eu, mas pelo tédio das suas próprias conversas armadilhadas. Ainda ouvimos: – ela podia ter evitado aquele médico, bem sei que não paga nada. O Anibal é que perdeu... Penso que era “peso” que iriam dizer. A conversa foi interrompida pela porta que se abriu à volumetria do Zé. Ele anunciava- -se com uma voz cavada e palavras bem soletradas. Todas as pessoas olharam para a porta. Ah! Este é o senhor José António que vai à televisão! Missão cumprida! A partir desse momento ele comandaria as espectativas, seria o dono da “jogada”. O engenheiro ainda tentou oferecer-lhe uma cadeira, apontando com o indicador mas o Zé já estava sentado – ao lado não me lembro de quem – discutindo política. Todos nós reconhecíamos nele uma memória invulgar. Tinha sido político, inclusive uma figura destacada no seu Partido e depois no meu. Todavia, um poeta na política é tão desajustado como uma gabardine na praia. Enfim... é nessa qualidade, de político, que se encontrou, quer em Portugal, quer fora, com respeitados líderes de centro/direita, alguns tratava por tu e tinha com outros uma relação institucional muito boa. Portanto, falar de política para ele não era difícil. Um indivíduo bem formado e informado. Um jornalista de eleição, personagem com uma longa carreira já realizada. Começou a trabalhar ainda não tinha uma dúzia de anos. Primeiro numa papelaria de onde foi posto a andar por pedir aumento salarial para os outros, depois numa associação comercial e, por volta dos dezasseis anos de idade, naquele que viria a ser o trabalho da sua paixão, o Jornal da Madeira. Na altura usava cabelo cumprido tipo beatle. Nada de confusões, se alguém o injuriava, aquele menino meigo “virava” tigre da Malásia. Como dizia, todos o ouviam e, curioso, já não pestanejavam. Uma senhora, dessas que riem de soslaio, revirando os olhos mal o marido se afasta, tentou argumentar mas de imediato o engenheiro convidou todos para a mesa sem dar chance ao contraditório. Ou seja, tentou poupar mais meia horita de debate. Na mesa, o Zé foi convidado a presidi-la, isto para estranheza minha que era amigo do casal. Sentado à cabeceira o Zé parecia o Henrique VIII dos lautos banquetes no intervalo das matanças, tanto de sedutor como de drástico. À frente os pratos frescos e os talheres afiados aguardavam as carnes cujo cheiro tresandava pela sala desde quando nos abriram a porta. E um saleiro e um pimenteiro em forma de pequenas pirâmides. A dona da casa ria-se muito

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(e a mim pareceu-me) que era um riso de prazer. Era sem dúvida uma noite diferente. O marido não se estatelaria em frente à televisão nem a filha se dependuraria no sofá, com os deveres da escola a caírem na alcatifa. E também porque era véspera de sábado. Ou sábado de madrugada. Quando saíssemos iriam todos dormir como fazem os anjos no infinito céu. Talvez o Herculano se aproximasse dela, cobrindo-a de lábios febris. Ou talvez não e cada qual caísse na cama como caem os soldados desmaiados na parada.

Na realidade o José António desenrascava-se bem em quase todas as situações. Lixou-se, ao que sei, apenas uma vez quando confundiu o buraco de um cano à vista para coisa e tal e afinal, o mesmo cano não era senão o respirador da máquina de lavar do hotel onde tocava. De resto, ninguém o “caçava”. Tinha uma velocidade de raciocínio tal que impressionava. O Zé era jornalista de profissão e escrever uma página inteira de um matutino nacional em tempo recorde, às vezes pela noite dentro, não era tarefa fácil. Não admira pois que deitasse por terra, sem argumentos, a maioria dos seus opositores.

O jantar corria tranquilamente e havia uma aparente paz na sala. Apenas a voz do Zé a zunir por entre os copos, os pratos quase vazios e o som acetinado dos guardanapos contra os lábios. Uma menina, acho que afilhada dos donos da casa, decidiu declamar um poema do Zé. O filho da Mariana baixou a intensidade da luz para aquela hora teatral. E, ainda bem que o fez, porque quando olho para o José António ele tem enfiado nos ouvidos, um de cada lado, o saleiro e o pimenteiro, parecendo verdadeiramente não querer ouvir o seu próprio poema. Aliás, dizia sempre que os poemas escritos perdiam a paternidade, eram de quem os encontrasse, como as crianças enjeitadas, deixadas às portas fidalgas, antigamente. Ninguém prestou muita atenção à leitura do poema embora todos tentassem ser os primeiros e encetar uma grande salva de palmas, e outros com a boca ainda cheia de pudim de maracujá quisessem expressar rapidamente, com uma voz pastosa: muito bem! E agora vamos cantar os parabéns, dizia de pé o engenheiro. A voz de tenor do Zé sobressaia. Meios apanhados de surpresa, não sabíamos que alguém fazia anos, levantámos as taças de champanhe para brindar. Já a custo nos íamos levantando para o solene brinde. Olhei para o Zé e disse-lhe: temos de ir, já passa da uma da manhã. É que eu tenho de entregar-te a outro (e pode ser a um que não tenha paciência de esperar) e saímos, depois dos abraços e dos beijos, sem culpa alguma como quando entrámos.

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pepitas, nossasElisa Ciardi

É preciso guardar as palavrase derramá-las quotidianamente

na paixão encantadade todas

as conversas1

Passaram-se 7 anos. Eu tinha a tese sobre Herberto Helder para fazer e foi nessa circunstância que aterrei pela primeira vez na Madeira. Uma viagem ansiada, desejada, aguardada com curiosidade; entre outras coisas iria visitar uma das casas onde vivera Helder, hoje “laboratório” de várias produções artísticas, com um esplêndido alpendre nas traseiras repleto de plantas e flores, iria subir nos tempos livres, por entre névoas e nevoeiros, até ao Pico Ruivo, iria irromper com o olhar sobre Câmara de Lobos, iria correr pelo planalto de Paúl da Serra até levantar voo para depois mergulhar imaginariamente no oceano imenso. Foi uma viagem cheia de vida, uma vida hoje repleta de recordações, de pensamentos, de paisagens que com o tempo se sedimentaram na minha alma, moldando o meu carácter, enriquecendo consequentemente o elo com as pessoas que conheci na ilha.

Entre estas – ou melhor, representando-as – destaca-se a figura de José António Gonçalves. Conheci-o graças a um encontro de literatura em Machico; o evento previa a apresentação de alguns textos para a Feira do Livro local e um jantar na feira gastronómica. Estávamos numa praça de árvores baixas, com o pavimento de calhau típico da ilha numa típica tarde estiva. António Fournier, o meu professor universitário em Itália, apresentou-me a diversas pessoas: “Esta é Elisa, a minha aluna de português, veio à Madeira porque está a fazer a tese sobre Herberto Helder”. Era geralmente assim que era apresentada; mas José António deu logo uma resposta inesperada, a primeira de muitas: “São todas assim tão bonitas as tuas alunas?” Lembro-me que fiquei muito embaraçada, embora soubesse que ele estava a brincar, talvez mais com o António do que propriamente comigo. Eles tinham uma relação especial que se notava imediatamente; às vezes eram como “pai e filho” invertendo pontualmente os papéis por entre gargalhadas, outras discutiam de literatura assumindo então os papéis sérios de intelectuais, entrando em intermináveis e complicadas discussões que se prolongam pela noite dentro, e de que recordo, daquela vez, a esplêndida cabeleira de Regina, de quem conservo uma viva e simpática lembrança, e a belíssima mulher de José António, Gilda. Notava-se que entre os dois Antónios havia um elo de cumplicidade, e eu, que

1 De “Atrás da cortina”, poema contido em Esquivas são as Aves (Cadernos Ilha nº11, Editorial Correio da Madeira, Funchal, Maio de 2001) livro que o próprio José António me ofereceu com a seguinte dedicatória: “Para Elisa Ciardi, em homenagem à sua beleza e à sua personalidade, com um beijo” (31.07.01).

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confiava no meu professor, confiei imediatamente no seu amigo José António. Era um contador de histórias, um adulador, um provocador, uma pessoa cheia de energia, de sentido crítico, de vontade de fazer, dar, partilhar, partilhar infatigavelmente (como todos os Gémeos, como eu, que conseguem ultrapassar a carapaça da sua própria timidez), uma pessoa de coração livre. Não creio que conhecendo-o, se pudesse permanecer imunes a um qualquer tipo de sentimento: fosse um sentimento de antipatia por aquele seu modo de fazer às vezes histriónico, fosse a mais desabusada admiração, qualquer sentimento ele haveria inevitavelmente de provocar, porque fazia parte do seu estar impetuosamente no mundo, esse contínuo estímulo ao relacionamento – com pessoas obviamente “predispostas” a entrar no jogo.

Também com uma “estrangeira” no fundo tímida como eu era, José António provocou pouco depois o enésimo embate. Naquela tarde em Machico iríamos participar num recital de poesia, e entre os poemas de José António havia um inspirado no poeta italiano Giacomo Leopardi2. Estava sentada na segunda fila, ainda atordoada com tantas novidades e tentando inserir-me naquela cultura fascinante e misteriosa, quando José António, tirando da pasta um livro de poemas de Leopardi, admitiu que ele não saberia dar graça ao texto e que precisava de uma melhor intérprete… E assim fui imediatamente convocada, com o coração aos saltos pelo embaraço, para ler um poema com quase dois séculos, escrito num italiano que porquanto fosse moderno, não era de maneira nenhuma simples, para mais sem preparação alguma, sobretudo emotiva! José António observava-me com ar de confiança bonária, enquanto eu, a contas com uma emoção forte e repentina, tentava prestar um bom serviço ao caro Leopardi. Enquanto lia, olhei para ele com ar zangado porque estava realmente sem jeito, mas aquele seu sorriso aberto, divertido, límpido, que lhe fazia balançar a barriga quando se transformava em riso mais forte, levou-me imediatamente a perdoá-lo. Como não perdoá-lo? Nas suas manifestações por vezes impetuosas, excessivas, apaixonadas, parecia-me ver um menino caprichoso com os olhos que diziam “queres brincar comigo”?

Lembro-me da poncha que me deu a conhecer, bem como, de entre os contos da ilha que mais tarde haveria de traduzir no nosso “círculo de tradutores”, o seu “A bruxa da rocha”3. Entretanto, no website que José António tinha criado, viríamos a trocar alguns emails mas, pouco depois, soube pelo António que ele tinha tido graves problemas de saúde. Depois, quando soube do seu falecimento, fiquei triste, porque José António era realmente uma daquelas raras pessoas que durante a vida se multiplicam na partilha, em detrimento de si próprios, sem poupar esforços, sempre disponíveis, disseminando lembranças nos corações daqueles que tiverem a sorte de se cruzar com elas. Quando voltei em 2005 à Madeira, para a apresentação do nosso livro, voltámos a percorrer, agora fisicamente, a vereda do seu conto sobre a bruxa; é uma zona do Funchal ainda intacta – no horizonte recortam-se como espectros as anónimas

2 José António Gonçalves, Giacomo Leopardi e o Suave Despreendimento do Infinito, Editorial Correio da Madeira, Funchal, 1999.

3 Conto autobiográfico que José António nos deu para traduzir, que faz hoje parte da antologia Nostalgia dei Giorni Atlantici, Scritturapura, Asti, 2005.

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construções modernas – feita de caminhos de terra repletos de flores coloridas, com pequenas casas baixas escondidas na sua pobreza essencial. Percorremos a vereda, imaginando o pequeno José António ao nosso lado, até ao canavial agora imaginário onde a presença lendária da bruxa o faz partir os garrafões empalhados e apanhar depois uma sova de um pai zangado. Também nós, capuchinhos vermelhos modernos, nos aproximámos circunspectos da casa em ruínas onde simbolicamente devia viver a bruxa da história… ao aproximarmo-nos apanhámos um susto… uma velhota cheia de rugas, curvada pela pobreza e vestida de negro tinha abusivamente ocupado uma parte da casa, exactamente como a bruxa! Depois daquela estranha aparição pusemo-nos a rir às gargalhadas, divertidos pelo susto que apanhámos. Era como se ouvíssemos o riso de José António que nos tinha pregado uma partida tão sugestiva, como se ele estivesse ali a nos fazer reviver aquela recordação de criança e a dizer-nos que existe ainda magia nas emoções que experimentamos, nas recordações, bastava continuar a ser um bocadinho curiosos em relação à vida. O enésimo inestimável presente de uma pessoa que com o seu generoso entusiasmo sabia conquistar o coração das pessoas, semeando as existências de viva memória.

Obrigado Jag. Já não ter ao lado uma pessoa com uma alma tão grande como a tua torna a vida mais pobre e monótona; mas também acredito que nos ensinaste tanto, disseminando o nosso caminho de pepitas de ouro que mesmo na escuridão saberão indicar a direcção a quem te bem quis.

Livorno, Janeiro de 2008

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a minha amizade com josé antónio gonçalves

Elmano Correia

A minha amizade com o José António Gonçalves remonta aos nossos 14/15 anos. Estávamos em 1968, quando fui trabalhar para a Papelaria do Colégio, à rua Câmara Pestana, no Funchal. Já lá trabalhava, então, desde os seus tenros doze anos, o José António.

Éramos adolescentes. Foram tempos vividos com a alegria, entusiasmo e disputas próprias dos nossos verdes anos. Mas já nesses contactos o José António se distinguia pelo seu entusiasmo e generosidade. Querelávamos um pouco para ir aos correios levantar encomendas ou ao banco depositar a caixa do dia anterior. Essas idas eram sempre aproveitadas por nós para um pequeno desvio: ver montras, ir ao café comer uma sandes, simplesmente vaguear pela baixa funchalense. Evasões que terminavam, por vezes, quando o sr. Correia, gerente da papelaria, mandava um de nós procurar o outro. Encobriamo-nos reciprocamente. A desculpa era sempre a mesma: “Estava lá uma bicha!”

Na papelaria travámos conhecimento com o sr. Laranja, encarregado das lanchas que efectuavam o trajecto entre o cais e a pontinha, que nos facilitava viagens à borla, aos sábados, depois da papelaria fechar à uma da tarde. Por vezes, efectuámos o regresso a pé, em longa e despreocupada cavaqueira.

A abertura do ano escolar, em Outubro, dava lugar a enormes “bichas” para aquisição dos livros de estudo obrigatórios. Tínhamos clientes “próprios”, que queriam apenas ser atendidos por uma determinada pessoa: o José Antório, eu, o gerente ou um outro empregado. Era um esquema complexo, mas característico dessa época, que evitava tempos de espera aos clientes e nos proporcionava uns tostões extras. O meu lote de clientes era engrossado pelos ex-colegas de liceu (eu abandonara os estudos para começar a trabalhar), que se aproveitavam do facto de me conhecerem.

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Este volume de trabalho extra era efectuado depois do fecho. O José António nunca se me negou a dar uma ajuda a despachar encomendas destes clientes especiais.

Foi graças ao José António que tomei conhecimento das actividades do Centro de Cultura Operária (CCO). Ambos frequentámos um curso nesta instituição. Estavamos especialmente interessados no inglês.O José António abria-se para a cultura, que seria determinante em toda a sua vida posterior. Mas também determinante foi o seu encontro, no mesmo CCO, com Hermenegilda, (a Gilda), que seria a companheira de toda a vida. Ainda graças ao CCO, participámos em diversas excursões à ilha, de que o José António foi um grande animador.

As nosssa relações foram duramente postas à prova quando o José António tomou a inicitiva de reclamar um aumento de vencimento para todos nós. Avançou de peito aberto para a reunião com um dos patrões. Os tempos eram duros e reclamações deste teor não eram toleradas. O José António foi despedido de imediato. Foram momentos dramáticos para ele e para nós. Pediu-nos ajuda, uma ajuda que nós não podíamos dar. Não temíamos o despedimento, temíamos as represálias. Nesses tempos as crianças eram duramente castigadas por actos de desobediência e nos nossos frágeis quinze anos ninguém teve a coragem de afrontar as iras paternas. Quem teria?

O José António viveu, então, dias de angústia. Saía de casa, como se fosse para o trabalho, mas ficava-se pelo Parque de Santa Catarina, a desenhar, dando curso a uma das suas múltiplas facetas artísticas. Já na papelaria, era objecto de reprimendas por andar a “estragar” papel de embrulho com os seus desenhos.

Mesmo após a saida de José António da papelaria, nunca perdemos o contacto. Uma amizade nascera que duraria toda uma vida. Nem o facto de eu ter emigrado para Noruega impediria o nosso contacto. Em todas a minhas idas à Madeira encontrei-me sempre com o José António. Era um ritual, de frequência com dois charutos e dois “whiskies”, em apoio a longas dissertações. O nosso contacto seria ampliado com a “internet”, que passou a permitir-nos trocar mensagens diárias.

Fui à Madeira, quando do falecimento de minha mãe. Encontrei o José António, como sempre. Combinámos um lanche. Fez-nos esperar cerca de uma hora, a mim e à Gilda, enquanto se arranjava. Por fim apareceu, com a sua proverbial boa disposição, embora se lhe denotassem traços de um estranho cansaço. Após o lanche, o José António sugeriu um passeio de automóvel. Questionámos um pouco sobre o destino. Decidimo-nos por Câmara de Lobos. Parámos por breves instantes, mas o José António preferiu não sair do carro.

No dia seguinte telefonei para saber notícias. É a Gilda que atende o seu telemóvel. O José António não se sentia bem, mas não queria ir ao médico. Gracejo. Prometo dar-lhe uma palmadas, se ele não se tratar.

No dia seguinte leio no “Noticias da Madeira” a notícia da sua morte.

Oslo, 29 de Março de 2008

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jag, meu amigoFausto Bordalo Dias

Foi sempre assim, ríamo-nos porque gostávamos de viver e conviver. No Funchal, aqui em Lisboa, onde calhasse. O Zé António tinha esse dom de surgir de repente, com aqueles cabelos caindo para os ombros, com aquele modo fraterno de despertar a cobra das palavras, e ficar connosco, sem fadiga, horas a fio. Sobretudo à noite. Havia entre ele e a noite um jogo do gato e o rato. Quem era o gato? E quem o rato? Era à noite que nos encontrávamos mais.

Às vezes, lembro-me bem, trazia broa de mel e vinho da Madeira, entre outras iguarias. E cigarros, muitos cigarros. Sentava-se e podia disparar, como quem não quer a coisa, num jeito provocativo que nos enchia de divertimento: eu sou um reaccionário, um fascista, mas o Fausto – perdoarão que conte como se passava comigo -, que é de esquerda e revolucionário, é meu irmão. De berço! Há amigos comuns, e até poderia dizer-lhes os nomes, que sabem que tudo isto tinha uma graça inexcedível porque o Zé António, embora ligado na ilha a organizações conservadoras, ao que julgo, conhecia e praticava a democracia. Sem qualquer esforço, com verdade e convicção.

Certa vez veio a Lisboa para tomar posse de um cargo na Associação de Escritores, convidado por um nosso amigo comum. (*) Disse-me assim: Fausto, logo que isto acabe, vamos para aí. Vamos ter festa enquanto for madrugada. E veio, transbordando de versos, humor e excesso. Havia nele uma generosidade e um companheirismo que quero sublinhar e recordo com saudade. Uma grandeza como ser humano. Escrevia um tipo de poesia que só quem leu muito consegue escrever, lírica ou não, culta e ousada, com um sentido da música que surpreende. Tenho cá em casa alguns livros dele, incluindo os de cordel. Gostava e gosto de o ler. Acho que ele, o poeta, não se levava tão a sério como seria justo. E era generoso, insisto. Alguém devia lembrar a todos a maneira exemplar como apoiou o Dórdio Guimarães, último marido e eterno enamorado da Natália Correia, nos tempos finais da sua vida.

Às vezes penso que toca a campainha e o é António vai entrar por ali, passaremos outro serão a acordar astros joviais, rindo, rindo imenso, de puro prazer e boa amizade. Se é facto que deus leva cedo aqueles que mais ama, então o Zé António foi um deles. E como nos faz falta! E se pedirmos aos deuses que no-lo devolvam?

(*) Esta estória, Fausto, é rigorosa. Fui eu quem o convidou. E ele ligou-te ao pé de mim. Tomou posse, eu fiquei a trabalhar no restolho da Assembleia Geral e ele disse-me logo que assinou o Livro de Termos: Não te chateias se eu arrancar agora para casa do nosso maior? Esta designação era comum de dois, dele e minha. Foi, com um abraço meu que te terá entregue.

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para o josé antónio gonçalvesJoao Dionísio

Quando me reuni com o José António Gonçalves, na Madeira, depois de ter vindo de Lisboa, isso vai para uns quinze anos, pensei logo que íamos cortar as nossas relações literárias e passarmos a ser amigos apenas, como há tanto tempo já éramos, mas não foi isso que aconteceu: passámos também a ser amigos literários.

Isto é, eu vinha do concretismo ou mais propriamente do experimentalismo, e apresentava-me como um pós-concretista, isto é, partia do resultado para o início, as palavras que ia distribuindo pelos textos apresentavam-se já finais, quanto muito com o pós-concretismo, ensaiava também introduzir as palavras pelo seu início. Nisto, José António era exímio, sonhava e escrevia as palavras do seu sonho, esperando um dia que o seu sonho se concretizasse e concretizava-se, acreditem!

Durante todo esse tempo, um inesquecível tempo, José António encontrou linhas, pontos de contacto para descrever a realidade que estava à sua frente, em constante mudança, em constante sobressalto, em constante ultrapassagem daquilo que era, para aquilo que estava a ser ou para aquilo que é hoje, foi este o seu legado, a procura de palavras para definir o futuro, vejam o seu livro póstumo, Arte do Voo.

Tínhamos dois pontos de vista diametralmente opostos para definir o que estava a acontecer na nossa terra depois da Autonomia. Recordo-me como definia o seu sonho, tão límpido, tão claro, tão futuro que as suas palavras iniciais, se assim se podem chamar, já eram finais, concretas, de resultado, e nisto me aproximava muito dele.

Entendi depois que o seu ponto de vista era de muita coragem, o seu sonho era um sonho corajoso, que apostava no certo, que retirava a dúvida, antes que os dados que pelo ar iam, caíssem, apenas uma hipótese era possível, que era aquela que fora definida pelas suas palavras iniciais, todos os inícios reflectiam essa hipótese, esse resultado, um concreto resultado, eu penso que isto é a essência da sua poesia, acreditar no sonho de fazedor motriz essencial do futuro.

José António Gonçalves é um poeta da Autonomia que soube defender uma tese que é a de que o sonho é início e resultado do facto de sermos homens à procura de um bem estar. Do amigo João Dionísio, Funchal, 7 de Março de 2008.

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Homenagem a um grande Vulto da Cultura lusófona

Joaquim Evónio

Amigo José António,É daqui, deste espaço para que tanto contribuíste – “Varanda das Estrelícias,

Uma ponte sobre o Atlântico” - que quero escrever-te em Clave de Saudade.Se bem te recordas, andámos muito tempo à procura um do outro, até que

a Prima Odete, que a ambos conhecia, estabeleceu o contacto prometedor de que tanto me orgulho.

Foste o principal motor e o maior incentivador da criação deste espaço lusófono e também o Padrinho que colocou com amizade o meu primeiro texto na Internet, depois de também me teres proposto e iniciado no diálogo poético através de vários Grupos literários a que ainda hoje pertenço.

Estabeleceste contactos e desbravaste caminhos para que este modesto conterrâneo iniciasse uma inolvidável viagem por quase todo o mundo lusófono.

Apresentaste-me pessoas lindas que de outro modo nunca seriam minhas interlocutoras nesta navegação pelos oceanos da Lusofonia e logo partilhaste comigo a alegria de ter havido alguns comentários favoráveis aos meus escritos.

Foste tu que formataste e atiraste para o éter aquele primeiro conto que se chama “Sercial & Malvasia” e de que os primeiros críticos bondosos foram os veteranos Belvedere Bruno, a partir do Rio de Janeiro, e José Felix, o mantenedor e owner do “Grupo Escritas”, um dos melhores espaços de diálogo literário que alguma vez encontrei.

Também foste o primeiro “Varandeiro” a cultivar o seu canteiro no “Espaço aberto”. Sempre à frente, amigo, só havia que seguir-te o exemplo.

Partilhámos as intermináveis noitadas que haviam de levar os companheiros a considerar-nos as mais persistentes figuras morcegais.

Nessa altura ainda não nos conhecíamos pessoalmente.Tal só viria a acontecer a 25 de Novembro desse mesmo 2004, aquando da tua deslocação a Lisboa para participares no programa televisivo “Clube dos Jornalistas”.

Logo ocorreu a reunião de alguns amigos que nos proporcionaram agradáveis momentos em ambiente tertuliar. Entre eles, figuras como João Rui de Sousa e Carlos Martins, que ainda hoje me honram com a sua amizade. “Os amigos dos meus amigos meus amigos são”…

Recordo também com muita saudade a tua presença em casa da minha família e guardo com veneração “As Sombras no Arvoredo” e a amiga dedicatória que ali exaraste.

Seria o Carlos a dar-me mais tarde, a partir de um telefonema de Londres, a notícia de que nos deixaras para voar pelo azul…

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No Setembro anterior ao nosso encontro pessoal, após o incêndio doméstico que me ia vitimando, foste o mentor e coordenador da corrente de poetas, escritores e artistas plásticos que, com o cimento dimanado da tua solidariedade, deram forma a uma homenagem que ainda hoje muito me comove.

Iniciaste-a com estas palavras:

“Meteste as mãos no fogo a meio da noitee acordaste o sono febril das labaredas.”

No Natal de 2004, respondi, a partir de Valência:

“Ao chegar à margem do Estígia, percebi que o reino de Hades não era o meu destino. Não o atravessei.

Mesmo assim valeu a pena bordejá-lo, mais que não fosse pelo afloramento de amizades que quiseram e conseguiram ser portadoras de grande solidariedade num momento que não foi fácil, embora facilmente ultrapassado dos pontos de vista físico e psicológico.

Ao JAG e ao Tigo, pela iniciativa e organização, um grande abraço.A “Varanda das Estrelícias”, afectada pelo fogo azul espacial, espera pela sua

regeneração física para que possa, através do “Espaço Aberto”, continuar a acolher tantas, tão belas e amigas colaborações. Janeiro assistirá ao seu regresso em pleno.”

Sobre a tua pertinácia e espírito de missão, basta recordar a “Poesia do Calendário” que criaste para deleite diário de tanta gente.

E assim terminavas, com o inédito do costume, a 1.ª edição dessa continuada e portentosa obra de divulgação cultural:

rente aos olhos

rente aos olhos a lágrima a manhã o orvalho a mão

sobre o arado e o sol nascendo (...)

rente ao homem os dedos cansados o sono infinito os canteiros vazios

dois palmos de novo dia e um poema branco... sem palavras

José António Gonçalves

Sem menosprezo para ninguém, o vazio do teu verbo diário, amigo e valioso, não encontra contrapartida nas centenas de textos que perpassam por esta janela virada ao mar.

Diziam os românticos que o pior que nos pode acontecer é desaparecer da memória daqueles que nos são queridos. Estou certo de que, na mente e no coração

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de todos quantos tiveram a alegria intelectual de conviver contigo, a tua presença será uma realidade cada vez mais recorrente.

Não estou à altura de elaborar uma apreciação crítica da tua obra literária, pois para mim sempre foste o Mestre que se admira mas que não se consegue imitar.

Sem soltar as amarras da nossa Madeira, a tua obra transpôs as fronteiras nacionais, tornando-se universal e ecuménica. Que mais poderia desejar um cultor e divulgador das nossas Letras e Cultura?

Quanto às tuas qualidades pessoais, pela generosidade, disponibilidade e solidariedade, só posso considerar-te um extraordinário Ser Humano.

A tua iniciativa foi sempre magnífica e magnânima em todos os campos em que a aplicaste.

No dealbar das tuas actividades jornalísticas, conheceste o meu Pai, o então já veterano Mota de Vasconcelos, cujas Memórias sempre me incentivaste a divulgar, como foi acontecendo ao longo da vigência da minha Página Pessoal.

Nasceste no mesmo dia de Fernando Pessoa. Tal como ele, deixas uma obra inacabada, clamando por seguidores que parecem não existir. E não são porventura tão belas as “Capelas Imperfeitas”?

À Intelectualidade madeirense e a todos os Amigos unidos pelas auto-estradas da comunicação, que não faltem a vocação e o tempo para continuar o diálogo iniciado.

Tudo fizeste. Foste o coração e a alma dinâmica dos mais valiosos empreendimentos.

Poucos poderão dizer, como tu, “Missão cumprida!”Mesmo que alguns contemporâneos, como é costume entre nós, queiram

inadvertidamente colocar qualquer eventual reticência à dimensão da tua Obra, a Posteridade aí vem com a sua indelével consagração.

ecuménico

nasceste no mar

podias ter sido concha

mas abriste em vento

prò universo inteiro

ecuménico ficaste

je

Para ti, caríssimo José António, todas as Estrelícias desta humilde Varanda. Lisboa, Varanda das Estrelícias, 28 de Fevereiro de 2008

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Coração vulcânico4

José Félix

Eu moro na casa Escritas. Está localizada no bairro global do Yahoo. Um dia, JAG entrou pela porta adentro e foi como que a força da pedra vulcânica se instalasse ali para mostrar aos habitantes a beleza e a força das arestas. Logo no primeiro dia de estadia – corria o mês de Março do ano de 2003, dia 29 – deu a conhecer-se com esta apresentação:

“Vivendo numa das ilhas afortunadas, a primeira que abriu as suas janelas ao mistério das descobertas, ajudando a Europa a expandir-se por novos mundos, não podemos deixar de dirigir uma palavra de saudação a todos os que participam no elo universal da Escrita, transportando sempre para mais além o testemunho da criatividade e cimentando em todos os horizontes possíveis o papel que a Literatura detém na aproximação dos povos e no registo da sua História. Aqui, na Madeira, fazemos da atlanticidade uma auto-estrada para o futuro; através da Cultura (em todas as suas vertentes e componentes artísticas e sociais) procuramos construir uma sociedade melhor”.

A minha convivência com o JAG, era assim conhecido no mundo global da Rede, foi desde o início, cordial, aberta, e de uma empatia tão grande que nos considerámos amigos sem nos conhecermos pessoalmente.

Aconteceu, em Outubro de 2003, por ocasião das “Jornadas de Escritas / 2003”, promovidas – com o apoio da Secretaria Regional de Educação, da Secretaria Regional de Turismo e Cultura, Instituto da Juventude e Hotel Savoy – pelo Sindicato Democrático de Professores e Associação dos Escritores da Madeira, tendo acedido ao convite que, então, me fora feito para estar presente.

A amabilidade do JAG, a arte de bem receber os convidados, a conversa franca colheu, logo, de mim, a reciprocidade em simpatia. Éramos dois exilados numa ilha de mar e rochas.

Durante o tempo em que esteve na Escritas, a sua presença activa, literária, traduziu-se na crítica franca e, nomeadamente, na divulgação de poetas portugueses, particularmente os poetas da ilha da Madeira, diariamente, com um grupo de poetas onde assinava, sempre, com um poema inédito ou com um poema dos mais de uma vintena de livros publicados.

A poesia dos “Calendários” ´, publicada diariamente na Escritas durante o ano de 2004 é a prova de que se podem divulgar, ao lado de poetas conhecidos, os menos conhecidos e, até, desconhecidos, com a qualidade que só JAG poderia ter feito, pelo saber, conhecimento, e gosto em que todos partilhassem da sua leitura.

A “Arte de Delfos” foi uma continuação dos “Calendários”, incompleta. No dia 29 de Março de 2005, o poeta que já não cabia na ilha, abriu asas e alçou outro voo.

4 Título de um poema de José António Gonçalves de 2003

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Lembro-o, sempre, com saudade e uma certa nostalgia. Quando visito a ilha da Madeira vou a Porto Moniz olhar o mar, as pedras

vulcânicas, tentar ver com os olhar do JAG. No restaurante colado às rochas lembro-o a escrever um poema com aquele olhar de menino, a voar, a voar.

O último poema de JAG escrito no dia 28 de Março de 2005, um dia antes do falecimento.

o pássaro morreU

O pássaro morreu. Finou-se em pleno voo. Foi um mal que lhe deu. E foi-se. As asas não caíram primeiro. Pois primeiro caiu o silêncio nos olhos da tarde. Derradeiro foi o seu esgar. O Sol, afinal, desconhecedor, apenas arde. Uma profunda tristeza tomou conta do vasto azul celestial. Não deu para distinguir a sua cor. Estonteado pelo dia, viu a lua nos seus ímpetos espertos de pardal. E depois o seu corpo de penas assomou o verde da terra e amalgamou-se. Ninguém escreveu a notícia. Ninguém se importou. Mas a verdade é que neste fim de tarde um pássaro morreu. Finou-se. E o Sol, desconhecedor, apenas arde.

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sobre o amigo josé antónio gonçalves

António Duarte C. B. Figueirôa

José António Gonçalves era, fundamentalmente, um homem apaixonado pela vida que vivia as coisas e o mundo com uma grande intensidade. Aliás, eu penso que a paixão e a poesia estavam-lhe na “pele e no sangue” e a escrita foi a forma que a sua alma inquieta encontrou para ultrapassar a finitude da ilha e projectar o seu olhar sobre ela mas também sobre o próprio mundo. Considero mesmo que, do chamado “grupo ilha”, José António Gonçalves foi aquele que mais marcas deixa no panorama literário madeirense, o que atesta bem a sua grandeza intelectual.

Quem com ele conviveu, e eu tive esse privilégio, pôde apreciar a sua argúcia e perspicácia salpicadas de uma fina ironia que soube projectar, quer na escrita quer na própria convivência diária. Era um comunicador por excelência que amava as cumplicidades da noite, preservava as amizades e esse era outro traço marcante do seu carácter e da sua personalidade.

Tinha um coração grande, do tamanho do mundo, que o haveria de trair, interrompendo-lhe o mais sagrado de todos os percursos – o da sua própria vida. Foi-se o Homem, ficou a Obra. Para ler e reler, para evocar e amar. “Obrigado, José António! Até sempre!”

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a fidelidade aérea às raízesAntónio Fournier

Hoje, 13 de Junho, se fosse vivo, o José António Gonçalves faria 51 anos. Esta antologia é pois uma prenda de aniversário tardia, irremediavelmente tardia, mas é como se ele estivesse aqui a recebê-la. É como se ele entrasse por aquela porta dentro, com a sua bolsa debaixo do braço, aparando a madeixa de cabelo rebelde, e com a sua calma aparente dissesse: “estou aqui, cheguei tarde mas cheguei”. Afinal fomos nós que chegámos tarde. Antes havia o poeta e ninguém lhe fez a devida homenagem pública, hoje temos a homenagem pública mas já não temos o poeta. Estavam condenados a não se encontrarem.

Temos porém a sua poesia. Quisemos que este fosse um dia de anos especial para ele. E ele de facto continua aqui entre nós, agora que as lágrimas começam a deslizar para o canto do olho, os olhos a ficar menos obnubilados, e a amargura a dar lugar à serenidade. Tivemos que nos habituar à sua ausência, e essa ausência exige agora que vivamos um tempo de maturidade e reflexão. Tempo também de colheita da imensa seara que ele nos deixou. A sua poesia vai pouco a pouco tomar o lugar que já devia ser o seu há muito tempo: um lugar no nosso coração. E um lugar nesta cidade que ele cartografou poeticamente como ninguém e que depois dele não será a mesma, e finalmente um lugar para a sua voz, um lugar condigno na cidade das letras portuguesas.

Estamos aqui hoje a apresentar um livro que é um balanço da sua obra poética desde que em 1974 publicou “É madrugada e sinto”, o seu primeiro livro de poesia. Esta antologia deveria ser uma surpresa para ele mas por vicissitudes várias – de que nunca me perdoarei - não chegou a ser publicada em vida. Mas antes de falar na génese deste projecto, seja-me permitida uma digressão de carácter pessoal sobre os extraordinários acontecimentos que se passaram debaixo do céu desta ilha, a que eu assisti desde o dia em que eu o conheci.

Conheci o José António há dez anos, em 1995, mais dia menos dia, por esta altura. Era Primavera e o perfume dos jacarandás misturava-se, por entre o ar húmido e o chão pegajoso, com aquela atmosfera febril e nevrótica tão característica do Funchal em Maio. Por entre os dias agitados e as esquinas apressadas, fora do horário de trabalho, alguém numa oficina subterrânea preparava um livro, dava corpo a um conjunto de textos inéditos para tornar visível um poeta desconhecido. Fazia esse acto de alquimia literária que é transformar o ouro privado em bem público. Isso para mim era misterioso. O barulho das rotativas, um livro do subsolo e “uma solidão demasiado barulhenta” como era a de José António Gonçalves. Ao contrário do personagem de Bohumil Hrabal que trabalha na prensa de um depósito de livros velhos, salvando livros preciosos da destruição, José António usava a tipografia do lugar onde trabalhava, a Imprensa Regional, para salvar um livro do limbo, da sua condição meramente virtual.

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Conheci-o por intermédio da São Moniz (que então ainda não se chamava Laura Moniz) de quem ele iria publicar Cartas para umTenente, o seu primeiro livro, como de resto aconteceu com tantos outros poetas desta terra. Tê-lo-ei conhecido no Golden, mas a memória que tenho do primeiro encontro organiza-se em torno doutra recordação. Era um fim de tarde quando a São e eu chegámos à Imprensa Regional, na rua da Conceição, onde ele tinha uma espécie de gabinete improvisado que eu haveria muitas vezes de voltar. Batia-se no vidro da porta com uma moeda e pouco depois aparecia o José António com um maço de chaves na mão. Abria, esperava que entrássemos, fechava de novo a porta à chave e voltava a desaparecer na semi-escuridão. Seguíamos a sua voz que ecoava no corredor. Era menos efusivo do que o costume, não dizia a piada habitual, percebia-se que estava ocupado, pensava noutras coisas. Depois da escuridão, a luz acesa. O seu gabinete, como a sua cabeça, fervilhava de projectos. Havia uma ordem e um caos aparentes. Muitos jornais, pilhas de livros, uma ou outra foto, um galhardete – parece-me – do Nacional do Canadá, clube que ele adorava. Numa estante havia livros seus que ele invariavelmente oferecia como seu cartão de visita a quem o procurasse ali naquele seu antro de feiticeiro das letras madeirenses. Oferecia e depois perguntava sem pré-aviso, como se estivesse inseguro do seu valor, o que é que se pensava do livro.

Foi assim que entrei no seu gabinete numa tarde de Maio de 1995, a medo, como acompanhante da São Moniz. Devo dizer que a perspectiva desse encontro intimidava-me, conhecia-o de ouvir a São falar dele e, tímido como eu era, o seu àvontade tornava-me ainda mais acanhado. Julgo que ele começou por gracejar, quando lhe fui apresentado, “Ah, então és tu o tenente!” disse. Depois, no decurso desse encontro, perguntou na brincadeira: “Tó, mas que raio de nome é esse?” Ri, é claro, como ri outras vezes nesse fim de tarde, mas aquela pergunta acabou por determinar a impressão de fundo com que fiquei desse encontro: um complexo de inferioridade enorme perante a exuberância afável daquela figura. Escusado será dizer que saí de lá muito mal impressionado, com a sensação de que tinha sido alvo de troça.

O José António tinha esse hábito: a curiosidade intelectual, a empatia perante um desconhecido que ele queria imediatamente absorver, integrar no seu círculo afectivo. Queria saber tudo, fazia perguntas, interrogava, insistia. Eu, como bom madeirense, confundira a curiosidade com a troça. Senti-me mal ao ser o alvo da atenção, um clássico funchalense. O que, diga-se, ele fazia com a mais absoluta naturalidade. Saí de lá tão ofendido que resolvi mandar-lhe um livro – o único onde aparecia o meu nome – uma colectânea publicada em Lisboa que reunia os trabalhos do mestrado de Literatura Portuguesa Medieval. Ele ia ver, pensava eu, a fazer troça de mim como se eu fosse um miúdo! Eu, que era assistente da Universidade da Madeira e tudo! E diga-se, éramos de facto miúdos, na altura, a fazer de conta que éramos professores, que sabíamos muito da vida para poder ensinar a vida que está na literatura, como ele tão bem fazia. Como defesa, fiz como se faz cá: antepõe-se o título, como se o título fosse um substituto da pessoa, como se o seu valor intrínseco estivesse no rótulo e não na pessoa que tem a vida inteira para se conhecer, para (re)conhecer os seus limites, e assim encontrar-se consigo própria.

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Aqui, nesta ilha, deixem-me dizer, confunde-se muitas vezes as duas coisas, como se o “Senhor Doutor” desse por si só uma aura especial à pessoa que o usa, uma aura e um carisma que essa pessoa, por si só, não consegue criar. Julgo aliás que é por isso que muitos se protegem debaixo do guarda-chuva das instituições, ou vivem angustiados com a perspectiva de se verem abandonados por elas: acontecendo, sentir-se-ão orfãos de si próprios, confundindo o rótulo com a qualidade do vinho que como se sabe melhora com a idade. Devo dizer que José António estava muito avançado nessa procura de si próprio. E nunca se sentiu orfão de si mesmo, porque José António era sempre e simplesmente o José António e não se escondia por detrás de nenhum título. O seu gabinete era os sapatos que usava, a sua casa a poesia, a amizade a sua verdadeira militância.

E também julgo que muita gente o detestava justamente por isso, por esse complexo de inferioridade que tem o madeirense, a quem ensinaram a ser ciscunspecto e a medir em tímidos centímetros a amplitude dos seus gestos públicos, perante uma pessoa que não pediu autorização a ninguém para ser tão diferente de todos nós. Uma pessoa que sobretudo teve sempre a coragem de ser protagonista, de acreditar no que fazia, de ser coerente consigo próprio e com as suas contradições intímas, por mais paradoxais que elas fossem. Mas isso só descobri mais tarde, isso e o facto de o convívio com ele ser sempre pautado pela boa disposição e que sem ele simplesmente não haveria espírito de grupo. Era ele que mantinha em pé qualquer tertúlia. Era ele a cola para as nossas frágeis tentativas de socialização literária.

Bem, de maneira que lhe ofereci um livro acompanhado de um auto-questionário que escrevi nessa mesma noite, associando as perguntas que ele me tinha feito com as respostas – em tom sarcástico – que eu lhe devia ter dado e não dera. Assim me apresentava, vingando-me da afronta. Deixei-o no dia seguinte na Imprensa regional, acompanhado da tal colectânea que se chamava significativamente A guerra. E ele, que era cultor supremo da amizade, deve ter achado muita piada, engraçou comigo. De facto, depois dessa declaração inicial e imatura de “guerra”, tive oportunidade de fumar várias vezes o cachimbo da paz com esse índio, guerreiro extraordinário que foi José António Gonçalves. Aos poucos fui-me aproximando do estatuto de companheiro que ele, tratando-me tão coloquialmente, esperava que eu atingisse. Mas nem sempre consegui estar à altura da amizade de que ele tão desinteressadamente me fazia credor. E devo-lhe muito.

Com ele aprendi a reequacionar a minha relação com a Madeira, aprendi a conviver com o universo da cultura local, que é no fundo o meu, e aprendi a valorizar a ilha no que genuinamente tem de bom, a não desprezá-la só porque vivendo fora dela, provincianamente alguém se acha cidadão do mundo e despreza a sua terra, afirmando como tantos madeirenses exilados, que ali já não há nada a fazer, eles que se entendam. O José António alimentava-se da ilha e devolvia a sua poesia à ilha. Calcorreava-a de ponta a ponta, de porta a porta, falando com alunos das escolas ou com gente simples, tratando os grandes por tu e respeitando a simplicidade dos pequenos. A poesia era para ele uma forma de estar na vida. Passava o tempo a

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insularizar poeticamente a existência e simultaneamente, ao fazê-lo, a contribuir para que fôssemos menos ilhéus connosco e com os outros.. Tal como o poeta-pássaro de Station Island do irlandês Seamus Heaney, José António Gonçalves demonstrava na sua poesia uma forma peculiar de fidelidade aérea às suas raízes. Por um lado um desejo de ascensão, de liberdade e purificação da poeira dos dias insulares, por outra a consciência de não poder voar sem ter esse solo por baixo.

Acompanhei-o nalguns desses encontros memoráveis com os habitantes do interior da ilha, visitas às aldeias de índios insulares como lhes chamou Ferreira de Castro, trocámos peles valiosas, caçámos búfalos no inverno e nadámos muitas vezes no rio da amizade. Muitas luas passaram e tantas memórias ficaram. Hoje o lugar dele está vazio, mas esta tribo aquece-se e aquecer-se-á sempre à sombra dos tótens que ele nos deixou e onde está escrita uma parte importante da história poética da ilha do último quarto de século XX. Foi através dele que aprendi sobretudo a não precisar de selar os cavalos, que eles são puro-sangues e que não necessitam de rédeas para correrem livremente pela planície, para longe das caravanas organizadas pelos cowboys da cultura.

Devo confessar por isso que foi muito difícil este regresso à ilha, a primeira vez em que ele não está. Cada esquina da cidade, cada lugar onde estive com ele guarda a sua silenciosa recordação, está ali à espera de ser lembrado. Escrevi tantas palavras sobre a sua poesia, que trocaria de bom grado por uma, uma só, dele. Foi um longo e penoso adeus, fui-me despedindo aos poucos das coisas extraordinárias que tive a felicidade de assistir debaixo deste céu, o céu da ilha, enquanto durou a sua curta existência. Esse tempo acabou. Vivemos hoje, como inevitavelmente acontece à medida que envelhecemos, num outono perene, com a memória dos dias de sol. Essa memória está intacta na sua poesia. Ela convida-nos a voltar a percorrer os trilhos da ilha reencontrando-nos com as pegadas de uma existência singular, que ele foi deixando para quem quisesse percorrer as veredas que ele abriu em direcção ao coração de uma ilha poética. Foi o que tentamos fazer com este livro que estamos aqui hoje a apresentar

A Arte do Voo não era para ser uma antologia póstuma de José António Gonçalves, porque dele se esperava ainda tanto para bem da literatura produzida numa ilha tão avessa à cultura e paradoxalmente tão fértil em vozes poéticas originais, das mais altas do cânone literário português. Era simplesmente uma antologia, uma das tantas possíveis, preocupada em perseguir um rasto bem preciso que atravessa de uma ponta a outra a poesia deste autor: a persistência do elemento alado, uma linha de força rigorosamente presente, com maior ou menor incidência, em todos os seus livros ou conjuntos poéticos, e como tal suficientemente representativa para poder funcionar como perspectiva de onde partir para considerar outras temáticas nela existentes.

Um percurso de leitura que procurasse pela primeira vez interpretar globalmente todos os vestígios de pássaros e outros seres voláteis disseminados pelas “árvores da noite” que são as composições desta autêntica floresta encantada, densa e

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misteriosa como é a sua poesia, parecia-me assim o mais feliz e frutuoso como balanço e comemoração da obra de um poeta que, sendo referência incontornável no panorama cultural madeirense e tendo atingido com Memórias da Casa de Pedra a plena maturidade expressiva, comemorara recentemente 30 anos desde que publicou o seu primeiro livro.

Dinamizador cultural incansável, organizador de antologias e coordenador de inúmeras colecções, figura activa e interveniente a vários níveis, os inúmeros anos de constante exposição pública, para além de um inevitável desgaste pessoal - que acaba aliás por aflorar num ou noutro verso (recorde-se por exemplo «Eis-me, finalmente, cansado» em Memórias da casa de pedra) - arriscavam a fazê-lo cair na conhecida cilada da excessiva proximidade, criando no meio local uma ingrata sobreposição entre o compromisso gregário a que José António Gonçalves se entregava com rara paixão e o eremita que regressava todas as noites à solidão do verso, à procura da sua exclusiva e singular voz poética.

Com esta antologia preparada juntamente com o Marco Gonçalves para ser uma surpresa para o pai, fazendo finalmente por ele o que ele sempre fez pelos outros, quisemos reafirmar o valor absoluto da palavra poética desse extraordinário funâmbulo do verso que era José António, restituindo-a intacta e sobretudo despida de qualquer contingência aleatória que pudesse obscurecer o seu brilho. Na reconfortante certeza porém, e agora mais do que nunca, de que por mais que se tente interpretar a sua obra, isso só nos fará afastar ainda mais do núcleo incandescente desse objecto “esquivo como as aves” que é a poesia e que só a alguns, raros, como decididamente foi o caso de José António Gonçalves, foi dado tocar.

lido a 13 de Junho de 2005 no Salão Nobre do teatro Municipal Baltazar Dias, na apresentação da antologia Arte do Voo

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jagHumberto Fournier

De JAG guardo na memória o seu sorrir levemente ausente, e um ar cuidadosamente descuidado que ele no tempo cultivava, e que junto do elenco feminino da escola vendia ele muito bem.

Chegámos à fala por causa de um questionário denominado “Inquérito” posto a circular pelas alunas da escola. Tinha já JAG respondido quando eu o fiz; as respostas dadas por ele suscitaram a curiosidade de conhecer o autor, e as minhas provocaram nele o mesmo efeito.

“- És tu que és o José António?”“- E tu és o Humberto?”Ficámos logo amigos. Se bem me lembro, nesse dia não fomos mais às aulas,

e deambulando pela cidade lá fomos partilhando ideais, idéias e sonhos.Dávamos nesse tempo os primeiros passos naquilo que seria o mote das nossas

vidas; lembro-me das primeiras aparições de JAG como cantor - grupos da escola, e dos seus primeiros trabalhos como jornalista, no “Jornal da Madeira”.

Nesta qualidade, JAG desde logo esteve predisposto a dar cobertura a tudo o que de novo musicalmente se fazia. Foi preciosa a sua acção na divulgação dos novos grupos do tempo, nomeadamente aquele que eu integrava, os “Mud Revolution”.

Foram tempos de partilha, até que o serviço militar nos separou.Depois, do reencontro guardo com carinho os exemplares por ele a mim

oferecidos das suas primeiras publicações.Acompanhámo-nos sempre.Até sempre.

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jag – o escritor e o dirigente desportivo

Mateus Gouveia

Tive o privilégio de acompanhar alguns anos o Poeta José António de Freitas Gonçalves tanto na vertente de escritor e simultaneamente como dirigente desportivo. Devo confessar que o entusiasmo com que se dedicava tanto a um, quanto a outro, era sempre o mesmo, ou seja, difícil de estabelecer onde começava a fronteira de escritor e acabava a de dirigente desportivo, embora no exercício do dirigismo e como presidente da Direcção da Associação de Desportos da Madeira a que também fui seu vice-presidente, o seu comportamento era de um profissionalismo impecável nas soluções que sempre colocava nos mais diversos problemas que se apresentava nas diversas modalidades desportivas, dentro das regras evidentemente impostas pelas Federações de modalidade que na altura sobre a sua égide abarcava as seguintes modalidades, a saber: Ginástica, Natação, Ciclismo e Atletismo. Participava em todos os eventos com o mesmo entusiasmo com que escrevia uma estrofe dum dos seus poemas. Mas o que o poeta valorizava mesmo não era só as provas desportivas em si mas, o convívio social, porque o poeta era fundamentalmente um humanista e, portanto valorizava rodear-se de pessoas e do calor humano a que isso propiciava.

Falar-se do Poeta José António de Freitas Gonçalves é o mesmo que descrever um humanista plurivalente, talentoso, autodidacta, culto e sempre aberto aos amigos e a quem por ele procurasse e precisasse. Para mim, que fui seu amigo desde a infância, mais propriamente desde os 14 anos de idade e, depois seu colega de trabalho numa fase posterior no Jornal da Madeira é sempre com redobrada saudade que o faço. O Poeta sempre soube conciliar a sua actividade de dirigente desportivo com a de escritor reconhecido pelos seus pares. Era um homem que amava a vida e as pessoas e também depois dos seus afazeres profissionais adorava o convívio nocturno, portanto um indefectível noctívago. Pois como ele dizia, era de noite que as pessoas eram mais transparentes e mais sinceras e puras.

Vezes sem conta acompanhei-o a um dos seus passatempos preferidos, ali para os lados da Estrada Monumental mais precisamente no Hotel do Mar, junto ao Clube Naval, onde existia um Karaoke e onde o Poeta podia dar vazão ao seu talento de cantor nomeadamente cantando canções de Otis Redding e outros do género. A tonalidade e colocação da voz do poeta a interpretar essas canções arrancavam dos presentes aplausos intensos.

Quando participava num dos muitos eventos de modalidade organizada pela Associação a que dirigia, era uma espécie de “pau para toda a obra” em todas as circunstâncias passava a ser um elemento da organização sem pelouro, quer da presidência, quer de árbitro quer mesmo de trabalhador para colocação de cartazes dos eventos e não deixava os seus créditos por mãos alheias não se furtando a nada para que a mesma não deixasse de ter êxito.

Não podemos quantificar o esforço hercúleo dispensado pelo Poeta JAG como dirigente desportivo ao Desporto. O Desporto na Madeira deve-lhe muito e o seu nome ficará indelevelmente ligado aos anais desportivos madeirenses pela sua participação desinteressada mas, tão-somente como meio de encontro de um homem de cultura com a cultura desportiva, complementando-a.

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Zé antónioBerta Helena

Não tornei a vê-lo. Nem a ouvi-lo falar dos projectos que sempre fervilhavam na sua cabeça. Tão pouco voltei a apreciar a boa disposição que dele se desprendia.

Nessa tarde tinha enchido uma sala. Ou quase. As iniciativas culturais multiplicavam-se por toda a cidade. Era um dia catalogado, um dia especial. E com tanto por onde escolher algumas conferências não reuniam na plateia o número desejável de pessoas. Na sala onde me encontrava, ansiosa por ouvir, como quem me rodeava, dissertar sobre Natália, fazia-se um compasso de espera. Sim, porque iria a conferencista, pessoa apreciada e conhecedora do mundo de Natália, como de outros, dirigir-se a um número reduzido de pessoas se tinha assunto bem interessante e enriquecedor que poderia ser absorvido por tantos?

Mas o tempo de espera ia cansando os que ali estavam, aproveitando uma brecha na correria do dia a dia. E corria-se o risco de fazê-los dispersar. Lembrou-se alguém de fazer um telefonema. Um simples e rápido telefonema.

E pouco mais tardou a espera. Uns minutos e naquela sala já de si notável na sua simplicidade foram-se ajustando as pessoas. De repente ia chegando gente, grupos que se acomodavam nas cadeiras vindos não se sabia bem de onde. E vi-o então rodeado por amigos. Claro que era obra sua. Como podia não me ter lembrado! Foi levado para a mesa de honra, o lugar ao lado da conferencista. Um olhar sorridente à sala já notável também pelo número de interessados que reunira, a apresentação da oradora e começou uma verdadeira aula. Com a sua colaboração sempre útil. Uma conversa rica em novos conhecimentos. A mesma que, por pouco, não era apenas para um reduzido grupo.

No fim conversámos ainda uns minutos. Mas não aceitei o seu convite para um café. Um convite insistente. Com outros amigos, com a família. E eu não pude acompanhá-lo. Fazia-se tarde, tinha compromissos assumidos. E ele insistia. Sei que havia alguma coisa de que me queria falar. Ficou para outra altura, na semana seguinte, talvez. Mas não houve outra altura. Nem outra semana. Não tornei a vê-lo, não voltei a ouvir o riso com que afastava as amarguras, as suas e as dos com ele conviviam, não soube dos projectos que preparava por aqueles dias. Não mais ouvi falar de Sophia como só ele falava. De Sophia que lhe tinha iluminado a infância e o fizera partir para a escrita, para a poesia. E nunca fiquei a saber do que me queria falar. Nunca. Lamentei tanto quando me deram a notícia. Acendeu-se dentro de mim uma luz negra. Às vezes ainda a vejo. Escura, baça. Lamento hoje como naquele dia.

Comigo ficou a sua grande generosidade, a amizade, o brilho que punha em pequenas coisas. Ficou também um enorme vazio.

Funchal, Fevereiro 2008

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oK, ficarei no aguardoCissa de Oliveira

Relendo as mensagens de José António Gonçalves, o nosso querido JAG, a propósito de prestar-lhe esta homenagem, reafirmo primeiro em mim a alegria de ter conhecido o escritor admirável e a pessoa tão bonita que ele era, e depois, a alegria em poder escrever esse quase testemunho.

Foi admiração à primeira leitura. Sabe-se que JAG era um autor experiente, que o diga não apenas a considerável bibliografia, mas também e principalmente o fato dele escrever poesia até enquanto conversava. Como eu sabia disso sem ao menos conhecê-lo pessoalmente? É simples, a poesia tem ocupado cada vez mais espaço na Internet, e assim eu tive a sorte de dividir com ele, dois desses espaços, na verdade grupos de poesia de muita qualidade: o grupo Escritas e o grupo Pax_Poesis Encantada.

E foi relendo essa conversa toda, já que tive a sorte de preservar algumas das mensagens que trocámos, algumas em particular e outras através dos grupos, que agora eu fiquei aqui com os meus botões, pensando no quanto de positivo foi ter o privilégio de interagir com ele. Demais, pensando bem – Deus! Como ele era paciente... - não, mais do que isso, era educado e cavalheiro, características cada vez mais em extinção tanto no mundo real quanto no virtual.

Então, admiração que foi à primeira leitura, passei imediatamente a escrever poemas utilizando citações dos poemas de JAG. Surgia assim o que passei a intitular de “Série JAG”, poemas que eu ia construindo entre uma crônica e outra, gênero que também me dedico juntamente com a poesia. Não tardou e a “série” logo se transformou num livro (inédito) e sobre o qual ele disse na sinopse que deixou pronta: “... É um livro de evidente originalidade, porquanto proposta singular de estudo e reelaboração poética, muito próxima da inter-textualização, mas com as suas fronteiras bem definidas, entre a criação literária de um e a sua assimilação e eco pelo lado de quem o observa e sobre ele discursa, José António Gonçalves e Cissa de Oliveira...”

Só isto e já me sentiria gratificada nas coisas da literatura. Eis que JAG, a despeito da vasta cultura, carisma e qualidade literária que possuía, era surpreendentemente simples e naturalmente leve como a poesia com que nos presenteava a cada dia através de “A Poesia dos Calendários”. Estou certa de que ele dispensou grande parte do seu tempo em ler os meus poemas, retribuindo sempre com críticas construtivas. Verdadeiro, às vezes era direto, noutras, sugestivo, como nas duas mensagens abaixo:

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from: jag to: CISSA/NOVO sent: Wednesday, August 18, 2004 10:13 AMsubject: JAG/CISSA/Res: o Poema n° 27 da série “JAG” – Essas flores de papel –Cissa de Oliveira

Cissa,a tua escrita não depende de ninguém:nem de mim, nem de quem quer que sejana lista. Tens é de perguntar a ti própria sete está a satisfazer o grau de novas experiênciasque andas a tentar realizar. Não te preocupes(muito) com as opiniões dos outros; será queCamões, Pessoa, Vinícius ou Drummond de Andradeandavam com uma pasta de originais debaixodo braço a interrogar os outros sobre o que pensavamda sua literatura? Desenvolve, sim, a tua capacidadeautocrítica e acredita no teu instinto; obedece aambos.

JAG

assunto: JAG/CISSA: «Ao Som do Adágio» de: “jag” <[email protected]> data: Qui, Outubro 7, 2004 7:00 pm para: [email protected] Cissa,

a partir de agora, que iniciaste um novo rumo de escrita, tens de cuidar da selecção do teu anterior material, de modo a que não sintas, no teu íntimo, qualquer grau de insatisfação. Se achares que alguns dos teus textos já nada têm a ver contigo,é melhor começares a pensar em não os utilizares. Digo-o por experiência própria. Há quem goste muito de alguns dos meus primeiros trabalhos literários divulgados pela imprensa, mas eu sinto-me desconfortável ao lê-los.

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Assim, deixo-os agora na gaveta. Não vale a pena andar com um fardo às costas, quando tantas coisas há, novas, por fazer. Não sei se será o teu caso (isso é contigo), mas deves reflectir muito sobre isso.

beijos, JAG

Antes de outros depoimentos meus sobre JAG, eu quero falar de dois, em especial. Um é o espaço que eu abri para ele na internet, onde já constam vários poemas dele e que recebeu mais de 18.000 visitas. Muitos amigos meus, poetas, mereceriam também, mas JAG mais do quem ninguém, posto que era um divulgador persistente da poesia de todas as épocas e de diversos e reconhecidos bons autores, antigos ou mais novos. O link é este:http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=1405 . O meu segundo depoimento vai em forma de poesia, com o poema “Os navios que ele desenhava”.

OS NAVIOS QUE ELE DESENHAVApara o José António Gonçalves As cartas. Era quando chegavam, misturadas, as notícias sobre flores que cresciam de uma hora para outra, dos entardeceres que se davam quando bem entendiam, da impaciência das pessoas que o esperavam enquanto ele ainda tentava selar à saliva alguma missiva, de como eram as caixas dos serviços de correio na sua cidade, dos cinco ou seis livros lidos concomitantemente, e de outros, muito interessantes, distribuídos pelas mesas, estantes e até ao lado da cama, e quase sempre ele repetia sobre as pestanas dele que pouco se encontravam, nas madrugadas. E ele desfiava tantas cores, tantas letras, quemesmo agora seria impossível não sentir a sua respiração, o tato, os pensamentos, e mais se encantar, quando lá pelas tantas ele ainda estampava na carta uma figura qualquer: um coração alado, uma flor num laço, um gato trajando fraldas, um castelo, uma praia, uma boca rindo como se risse alto,

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um pássaro no azul claro, coisas que eu fui colecionando dentro das cartas e da memória perfumada com a maresia das palavras. “– A vida é breve. Numa hora dessas eu me vou. A verdade, não te esqueças, aparece mais no que não é falado”. Escrevia tudo isso como se fosse a crônica do dia para o jornal local, vez por outra deixando claro que possuía uma pobre vida: era ele o próprio Charles Chaplin, num filme. Era então que eu exagerava pedindo fotografias onde ele aparecesse com cartolas, bengalas, alguma flor na boca, mas bem poderia ser um cachimbo, um olhar de mil palavras, um bigode mesquinho, um andar característico. Comigo eu me ria, séria, entre as metáforas, imaginando-o noutros mundos, na leitura de Pessoa, Leopardi, Oscar Wilde, Vinícius, Allan Poe, Rimbaud, Baudelaire e até Ezra Pound. Fazem bem pra alma. Só temia que voltasse a Hermann Hesse, nunca se sabe. E se ele resolvesse incorporar O Lobo da Estepe e, proposital, partisse para outras esferas deixando os leitores a contar os navios que ele desenhava nas cartas?

Mas quase nada dessas coisas eu lhe falava, que também eu tenho as minhas verdades. Em vão. Ele as intuía e intuía mais pois prometia sem mesmo que eu lhe pedisse, usando letras frescas a tinteiros coloridos: não ia se esfumaçar como pássaro no ar, não ia.

Cissa de Oliveira19/07/05

Agora eu quero falar do poeta que amava os pássaros. E foi por isso que eu o chamei de Passer jaguitus. Ele os amava, e isso era evidente na poesia dele e também no seguinte comentário, enquanto mencionava sobre uma fotografia de pássaro (uma aquarela) que eu acabara de lhe enviar:

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Olá Cissa,adorei a tua «Alma de Gato». Ospássaros azuis sempre andarampor dentro dos meus poemas edo meu imaginário. Curioso ofacto de a fêmea ser verde (outroítem da minha escrita); só faltavaum filhote lilás para ter a panópliacompleta das minhas cores favoritas.Beijinhos,JAG

Mas as citações de pássaros e de vôos, sempre presentes nos poemas dele, fizeram com que eu escrevesse a prosa a seguir, e lhe dedicasse, logo depois que partiu. É, também uma forma de depoimento.

“Passer jaguitus”Para o José António Gonçalves

Eu sempre adorei os pássaros. Na ciência e na poesia. Quase me doutorei em Ornitologia, mas outras oportunidades por ocasião da minha mudança para Campinas me levaram para a área da Genética e Biologia Molecular.

Lembro-me de que costumava enviar para o nosso poeta JAG umas aquarelas de pássaros feitas pela minha irmã Salette, artista plástica, resultado de um levantamento de avifauna que realizei no Centro Campestre do SESC, em São Paulo, já que é notório nos poemas dele o seu amor pelos pássaros.

Um dia, numa brincadeira, eu resolvi inventar um pássaro até então não encontrado por mim em nenhum livro. E não havendo aquarela, nem foto, nem nada, eu o descrevi por conta própria. Não tenho nesse momento a descrição exata porque está guardada em alguma dessas “cartas” cibernéticas. Sei apenas que fui generosa nos vários tons de azul e de verde salpicados nas asas, no branco misturado a um tanto de amarelo no peito, e até um pouco de ferrugem, nos pés. Delineei em sua cabeça uma espécie de “coroa” que, segundo determinei, só apareceria na época da reprodução. Era por causa do tal do dimorfismo sexual, tão comum aos pássaros e onde o macho geralmente é o mais bonito. Conferi-lhe uma classificação inteira, que de taxonomia eu também gosto. Aqui, apenas o gênero e a espécie do pássaro: Passer jaguitus. Foi um presente meu pra ele. O Passer jaguitus se foi, voou para outras paragens e, para a tristeza nossa, não é este apenas um vôo migratório, até porque o seu território por livre escolha, ele dizia nos poemas, era a sua amada ilha e tudo o que ali havia. Espero sinceramente que ele esteja bem entre os muitos azuis e luzes, como convém aos pássaros e aos poetas. JAG, aceita também as flores, entre elas uns preferidos de Van Gogh, flor que eu adoro.

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Os girassóis são mesmo todos teus. Que eles troquem muita luz contigo, sempre. Demais, é a poesia que por aí, e por aqui, vai.

Cissa de Oliveira01.04.05

Não é difícil se deter na poética de JAG, não apenas nos poemas mas nas várias mensagens, sejam as poéticas ou aquelas repletas de conteúdo construtivo, com as quais ele se comunicava com os parceiros das listas de literatura. Além disto, JAG gostava de nos surpreender com os seus textos. Entre os mais queridos recebidos dele, eu guardo este.

O APELO DE JAMES BROWN– SHORT STORY PARA A CISSA DE OLIVEIRA

O despertador era dotado de um rádio. O seu toque correspondia ao abrir da estação escolhida. Seis da manhã, indicava o relógio. Ainda ensonada estremeceu com o som que, de repente, tomou posse da casa: era James Brown a gritar «I Feel Good». Esfregou os olhos e esticou os dedos dos pés. Uma onda de electricidade tomou-lhe conta do corpo. O lençol parecia-lhe uma prisão, manietando-lhe os movimentos. Saltou da cama para o tapete num ápice e deixou-se levar pelo ritmo, um funky dos anos sessenta que apontava para as nuvens, mas como ali só tinha um tecto creme, enquanto balançava os braços e as pernas, com o tronco em rotação proporcionada, foi lá mesmo que fixou os olhos. Não sabia, inexplicavelmente, se era o quarto que girava à sua volta, ou se era a vontade de dançar que a conduzia nos passos.

Apesar de ter muita coisa para fazer, começou pelo duche, ajeitou o pensamento, tomou o pequeno almoço e completou a sua «toilete», surpreendida pela velocidade com que completava as coisas que, antes, demoravam uma eternidade. «I feel good, so good...», continuava o James Brown a trovoar-lhe na cabeça, sentindo-se já desperta para enfrentar o dia. A vida agitava-se-lhe, involuntariamente, pela força da voz do cantor, pela sua junção aos saxofones, às guitarras, ao órgão «hammond», ou tão somente porque precisava de um pretexto para alterar o significado do seu «modus vivendi», a partir de um apelo.

Relaxou então, sentou-se no sofá confortável da sala e, correspondendo ao desimporte que tomava conta de si, antes de voltar a adormecer, estendeu-se, agarrada a uma almofada, e desejou não raciocinar sobre o que quer que fosse, em ser apenas jovem, não ter a obrigação de cumprir com os seus deveres de bióloga, de mãe, de professora, de pesquisadora, de mulher, de pau para toda a obra. Até de bom grado abandonava a sua condição de poeta para entrar noutro universo irreal. Via-se correndo por uma praia de areia fina, branca, molhando os pés na água azul do mar, como se não tivesse um passado, um presente, um futuro. Um destino. O seu imaginário divagava pelo usufruto das paixões, pelo prazer e deleite na feitura de um

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suco de manga para refrescar o seu amor, retornando aos desejos simples de uma existência que se foi complicando só porque optara pela disciplina, pelo trabalho, pelo ram-ram da cidadania, pela recusa do sonho, pela sombra de um quotidiano interdito ao sol e à magia do romantismo.

Voltou a acordar, desconhecendo a que contas andava, com o toque impertinente do telefone. Do outro lado perguntavam-lhe porque estava atrasada aos seus compromissos. «Estava doente, sentia-se mal?», inquiria alguém, do outro lado da linha. Ia - algo fantástico se entretinha com os seus neurónios – arranjar uma desculpa. Mas escutou-se dizendo a verdade, traduzindo os versos entoados por James Brown : «eu sinto-me bem, muito bem... Por isso hoje não posso estar aí!». E decidiu não sair de casa. Optara por ocupar-se com um caderninho cor-de-rosa, onde se habituara a agrupar uns poemas. E escreveu, sorrindo no usufruto da sua liberdade de pessoa resoluta e madura, na página em branco: «série JAG – 50».

JAG10/2005

PS: Quando o JAG escreveu isso eu estava por volta do poema no. 29 da “Série JAG”. Quando ele morreu eu tinha escrito o poema de n°. 58 pois, contrariando a previsão dele, eu não escrevi 50, mas mais de 60 poemas para a “Série JAG”. Todos fazem parte do livro a ser lançado “O Reflexo do Espelho”.

Por fim, eu agradeço a Deus ter conhecido JAG, mesmo não tendo sido pessoalmente. Depois, nesse mundo da literatura, até o “pessoalmente” se inventa, como se pode ver nesse meu texto depoimento sobre JAG, a seguir:

O HOMEM QUE TINHA UMA PLANTAÇÃO DE BEIJOS

Para o José António Gonçalves

Faz tanto tempo que já nem me lembro ao certo quando foi. Sei apenas que eu andava bastante afastada das letras. Não pensava mais em escrever o que quer que fosse. Depois, na época do acontecido, tínhamos já bastante amizade, mas confesso que quando ele me disse “aquilo”, eu imediatamente pensei no quão pouco o conhecia. Estávamos no amplo espaço existente no último andar do prédio do Museu de Artes de São Paulo, e talvez por isso tantas vezes eu tenha me perguntado depois, se não teria sido a exaustiva caminhada pelas galerias, somada à sua rápida estadia pela cidade, o que teria feito “aquilo” com ele. Ficaria na cidade por dois dias apenas, e no primeiro fizemos alguns passeios pelos principais pontos turísticos, e poderia ele ter conhecido muito mais, não tivesse falado meio “de passagem”: - Amanhã, ficamos o dia todo por conta do MASP? Gosto de ler também cores e formas, ele dizia. Que espécie de anfitriã seria eu, indo contra a vontade do meu amigo? Então, assim aconteceu.

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Saber mais sobre ele entre uma tela e outra foi importante. Assim como entre um estilo e outro, entre uma cor e outra, entre um corredor e outro. Entre um passo e outro. Entre uma escultura e outra. Entre uma escada e outra. Entre um cafezinho e outro. Entre um riso e outro. Enfim, entre tantas coisas e outras, e eu logo comecei a sentir que ele tivesse que partir ainda naquela noite.

Estávamos justamente no terraço, conversando sobre a força das palavras e o milagre das letras quando ele disse “aquilo”, como se dissesse: - Penso que hoje vai chover... mas o que eu ouvi foi: - Tenho uma plantação de beijos. Primeiro eu ri, achei que fazia piada, afinal, somado às muitas conversas à distância, havia aqueles dois últimos dias de “olho no olho”, fluindo junto com as palavras. Não foi difícil perceber que era de ótimo humor, e disponível a qualquer tipo de conversa. Mas como ele dissesse seguidamente - “é verdade!” – eu não pude deixar de pensar em cansaço, metáfora, e, por fim, em loucura. E como loucura pouca é bobagem, em seguida foi a minha vez de perguntar como quem pergunta sobre as horas: - Onde fica essa tua plantação? Sem responder palavra, e sempre olhando muito diretamente, ele se aproximou, e tanto, que eu percebi ali, dentro dos olhos dele, um filme.

Lembrou-me coisa de ficção Científica. E como eu não conseguisse dizer mais

nada, fui tragada para dentro do filme, ou melhor dizendo, para a plantação de beijos do meu amigo. Curiosamente, as flores da plantação eram letras. Cada uma com alguma particularidade, é verdade, mas todas tinham algo em comum: brilhavam como pedras sextavadas ao sol. Algumas calmas, feito as esmeraldas transparentes e ao alcance das mãos, sob translúcido riacho. Outras, sedutoras como os rubis no ouro cravado. Havia ainda as muito delicadas, como pedras de água marinha, quando no dedo das mocinhas; ou as de leveza extrema, como se fosse a pedra de vidro do anel de doce, no dedo das meninas. Isso para não dizer das orvalhadas, como se ali estivessem pousados minúsculos pingos de estrelas recém diluídas. E as cores? Nem se eu escrevesse com a visão dos profetas, ou respirasse cores como Van Gogh, Renoir ou Monet, poderia descrevê-las.

Só saí do filme quando ele disse: - Escolhe umas flores, se te agradam! Mas eu não teria coragem de tocar naquele paraíso e disse não, não posso. - Como mexer numa única flor, sem alterar todo o jardim? E ele disse: - Se acreditas nos sonhos, tens também uma plantação de beijos. Não é privilégio meu, é de quem sonha e vela.

E agora eu sei: por causa do homem que tinha uma plantação de beijos, eu voltei aos filmes, digo, à poesia, e a acreditar: todo poeta tem uma plantação de beijos.

Cissa de Oliveira22/09/04

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Enfim, é tão fácil falar sobre JAG que se torna difícil. No mais, era modesto quando se tratava de falar da própria obra. Às vezes eu o tratava por Fernandinho, clara alusão ao Fernando Pessoa. Também não foi apenas uma nem duas vezes que conversamos sobre o seu “Giácomo Leopardi e o Suave Desprendimento do Infinito”. Era então que eu exagerava e o chamava de Giacomo. Isso o deixava feliz, estou certa, pelas respostas que logo vinham – assinadas como Leopardi! –, numa ensaiada linguagem dirigida à Silvia, vingança onde eu só enxergava graça. Por isso, se eu pudesse ter imaginado uma última mensagem, ela talvez fosse essa:

“assim, cá estamos Leopardi, noutro areal, despido de barcos,traçando rotas em mapas escondendo a morte, a loucura,a alegria, o vácuo das manhãs, a juventude e o seu suave desprendimento,como se um lençol cobrisse o que não é preciso ser ditoe mostrasse o teu rosto espelhado nas sombras do infinito.”

in: JAG, Giacomo Leopardi e o Suave Desprendimento do Infinito

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recado sem endereço e ao sabor da brisa

Eduardo Bettencourt Pinto

Ao José António Gonçalves

Meu Kamba José

Quantos deuses de sombra caem para o lado mal se apagam as luzes do palco? Não sei, José. Basta ligar a televisão, abrir o jornal, uma revista. São rostos que nos lembram o deserto, a ferrugem, a madeira podre das cancelas. Não estavas aí, porém, mas na tua própria dimensão, com os teus fumos nocturnos de boémio, o teu humor, a tua Gilda, os poemas que escrevias para que nada se perdesse dos secretos telegramas do coração. Por isso é que nunca serás esquecido, com os teus defeitos e virtudes. Preservo o diadema da tua bondade, os excessos de bardo oceânico, a pêra de pintor sem amos, as tuas mãos pequenas de carpinteiro de sonhos.

Da mesma maneira que um poeta nasce ao olhar os primeiros jardins da sensibilidade, assim te foste, como uma luz que tomba nos cabelos revoltos de uma criança, como uma porta transcendental fechando-se ao rumor do mar. Deixaste as roupas, os sapatos, os livros, os genes, a saudade, esse sentimento tão vasto que tanto dói quanto inebria. O certo, meu kamba, é que tudo isto se tornou demasiado pequeno para ti.

Pensava em ti, quando me lembrei do céu do Funchal. Esta recordação terá uns 4, 5 anos. Já não sei.

Flanava pelo passeio defronte do Teatro e parei, maravilhado, sob um jacarandá. Olhei para cima. Foi quando notei, entre as flores e os ramos, um azul voraz que resplandecia. Quero dizer, caía mansamente no lilás da flor. Tudo: um pedaço do céu e a inexplicável luz da manhã. Exultei. Estes pequenos milagres foram sempre uma espécie de moeda de troca entre mim e a poesia.

Um pouco mais adiante divisei o voo circular de pombas, setas de ossos e penas que nos recordam um alvoroço ou uma lágrima. Talvez porque as aves, de simbólicas, sejam, no fundo, o espelho e a água onde a solidão do homem se reflecte na sua batalha de emoções com a vida e a cidade. A sua liberdade e prisão. Talvez nem isso, mas uma ruga de nostalgia entre as mais íntimas páginas da memória. São tristes, as pombas. Despertam-me inexplicáveis sentimentos de perda.

A beleza tem um estranho lado trágico. Possivelmente por ser tão efémera e no seu dorso navegarem as mais labirínticas evocações. Dura tudo muito pouco, é certo. A brevidade das coisas tem a celeridade de uma linha de água sobre as ondas, de um olhar repentino que nos leva ao mar da música. Por ele ficamos gratos até à eternidade. Sobretudo hoje, que ninguém olha. As muralhas dos tabus erguem-se para

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defender o egocentrismo e a indiferença. Um elogio a uma mulher não é uma rosa entre sílabas mas um insulto. Eu sei lá. São tempos fictícios, irreais. Não me convidem para fazer parte desta encenação.

Queria hoje falar contigo, beber um copo, dois, os que a carteira nos deixasse. Mas estamos entre fronteiras fragmentadas. As palavras são peixes de sombra. Nadam entre os meus dedos, frágeis como as flores dos teus jacarandás.

O belo, sim. Mas essa instância que transparece altera a superfície das coisas, torna-se uma intimidade, uma empatia. Talvez seja esse o ofício do poeta: absorver o intocável, moldá-lo com o barro da luz, transfigurá-lo.

Levaste a tua vida rodeado de água, amando o que era teu – a ilha das tuas veias, a família, os amigos, os poetas do Mundo. Não tinhas carros de luxo, uma conta secreta na Suiça. Não olhavas as estrelas de um pátio de mármore. Tinhas os teus versos. Saíam do rumor do teu pulso, estou certo, como uma pulseira de fragrâncias e medos.

Tenho pena de muita coisa, kamba José. De não ter sido mais teu amigo, de não nos termos encontrado no Rio de Janeiro no Bar 420 para uma caipirinha ou uma cuba libre, de não te ter escrito com mais frequência.

Mas eu ando em viagem desde que nasci. Tenho alma de estrangeiro. A minha única terra é aquela que vou buscar aos versos. Sei no entanto que viver não é apenas respirar e ir envelhecendo. Que tudo isto só faz sentido quando a Primavera não é apenas um símbolo mas um estado de graça, e que só a amizade e a empatia pelo Outro contornam os abismos, os passos mal dados, a hipocrisia, os vínculos amargos do Tempo.

Estarei sempre contigo e com os teus neste pequeno círculo onde me dissolvo.

Se um dia regressar ao Funchal, voltarei ao passeio dos jacarandás. Olharei com olhos de quem vê. Respirarei fundo para que luz e flor sejam para sempre a tua ilha dentro de mim.

Verei então a memória da tua bondade poisar com as pombas nos telhados mais próximos.

in Suplemento “Tribuna da Cultura”, p.7, Tribuna da Madeira, de sexta 22 de Abril de 2005

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jag, polémico para sempreLuís Rocha

Como cada um de nós, o José António Gonçalves (JAG) tinha virtudes e defeitos. Com alguns dos defeitos, tive oportunidade de confrontá-lo directamente em vida – quer ao nível da opinião pessoal, que me permitiu, quer jornalisticamente, quando o confrontava com a contestação de outros a algumas das suas acções, atitudes ou posicionamentos, que geravam críticas.

No capítulo das virtudes, porém, possuía algumas que não são menos dignas de realce.

Em primeiro lugar, o sentido de humor. Esta característica é sinal inequívoco de inteligência, e o José António possuía-o em abundância. Não falo da tendência para caçoar dos outros, para lhes explorar todos os aspectos da vida ou da personalidade susceptíveis de suscitar o sarcasmo dos invejosos, dos mal-intencionados ou dos falsos amigos, infelizmente tão comum entre os nossos conterrâneos. Refiro-me a uma graça natural, que o JAG possuía e que nos tocava repentinamente quando se saía com uma daquelas suas observações que acertavam na ‘mouche’, que nos atraíam a atenção e nos faziam rir. Refiro-me a uma boa disposição que o tornava sensível ao lado engraçado da vida, e que nos levava no mesmo sentido. José António tinha piada, e digo-o sem qualquer condescendência. Era uma figura castiça, que faz falta à cidade. O Funchal fica mais vazio e mais pobre sem pessoas assim.

Em segundo lugar, era um genuíno e dedicado divulgador de cultura. Também fazem falta indivíduos assim, que estabeleçam pontes entre a seriedade do saber académico e o grande público, que movimentem as coisas, que causem ‘frisson’, que façam mexer, mesmo sendo ocasionalmente contestados, que ajudem a promover publicações, debates, encontros, acções, que, enfim, existam e contribuam para que exista mais interesse pela literatura, pelas ideias, pelas artes. Não tenho dúvidas de que várias coisas positivas aconteceram nesta ilha graças ao JAG. Sem ele, talvez nunca tivessem acontecido.

Finalmente, a generosidade. Esta era, de facto, uma característica marcante do JAG, e que servia eficazmente de contrapeso a um certo egotismo. Se é certo que o JAG gostava de fazer as coisas à sua maneira, se é certo que muitas vezes não dava ouvidos a quem bem o procurava aconselhar e que tinha as suas verdades como inabaláveis, não é menos verdade que, dentro dele, existia a essência do homem bom, aquilo que nos faz preocuparmo-nos com os outros, estarmos atentos aos seus problemas, às suas necessidades, termos vontade de os ajudar, de lhes dar um empurrão no bom sentido.

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Infelizmente, houve quem não se coibisse de utilizar isto contra ele. Frequentemente contestado pelos seus pares na Associação de Escritores da Madeira (por razões que agora não vêm ao caso) JAG enfrentou o corte institucional de relações por parte de muitos dos nomes mais sonantes da Associação, descontentes com a sua liderança. Quando estas pessoas se afastaram da AEM, JAG ressentiu-se profundamente. Vi-o genuinamente magoado e triste.

Mas o JAG era gregário, gostava do convívio social, da companhia, do convívio nos cafés, da amizade. E imediatamente alguns oportunistas o cercaram, adulando-o, solicitando o seu apoio, oferecendo-lhe aquilo que ele pensava ser amizade, genuíno interesse pela cultura, talvez até talento. E ele, na sua generosidade, abriu-lhes os braços.

Houve quem tentasse adverti-lo, e eu fui um deles. Certa vez, numa conversa no Porto Santo, num convívio com escritores e académicos continentais, com quem JAG privava, disse-lhe o que pensava, avisei-o sobre os riscos. Sobre a necessidade de não se deixar manipular, sobre a premência de manter a cabeça clara, sobre a responsabilidade que lhe cabia de manter um crivo apertado e exigente, de defender um certo nível de qualidade reconhecida, de não dar o seu aval, o seu apoio, a sua protecção a candidatos a escritores que podiam ser donos de toda a boa vontade do mundo – mas aos quais faltava, e era por demais transparente, talento, ideias, personalidade, postura.

Ouviu-me algo contrariado, mas não se zangou com a minha franqueza. Na mesa do café onde falávamos, os outros escritores e académicos do ‘rectângulo’ apoiaram-me e acrescentaram peso à advertência. Mas era difícil convencer o JAG de que podia, em certas coisas, estar errado. A sua generosidade era real. Ofereceu-ma também a mim, quis publicar escritos meus que ficaram sempre na gaveta. Recusei, disse-lhe que não tinham qualidade, expliquei-lhe que eu tinha consciência disso, que não mereciam a dignidade da publicação. Insistiu por várias vezes. É por isso que estou certo da genuinidade da sua vocação para ajudar.

Eu recusei, anos atrás, essa ajuda naquele caso concreto. Não foi modéstia; foi simples bom senso. Não faltou, porém, quem rapidamente reconhecesse o terreno fértil às suas manias de grandeza, o chapéu-de-chuva debaixo do qual se podiam abrigar, bem colados à reputação do JAG, usando a generosidade dele para seu próprio benefício.

O resultado, lamentavelmente, foi infeliz. Com a morte do José António Gonçalves, a Associação de Escritores da Madeira (que, de resto, nunca funcionou bem) acabou definitivamente por descer a pique, caindo nas mãos de indivíduos que – mau grado quantos livros consigam publicar, servindo-se deste ou daquele expediente

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- nunca merecerão verdadeiramente o epíteto de ‘escritores’. Excepção feita a um ou dois mais sérios e bem intencionados, caiu no domínio de certos polichinelos que passaram a ufanar-se do seu suposto estatuto literário, usando-o para promoção pessoal e apregoando-o aos quatro ventos. O caricato é que mesmo os escritores medíocres acabam por se zangar entre si, e não faltaram brigas e dissidências que afundaram e desacreditaram ainda mais a pobre Associação.

Assim, o legado do José António é dúbio: é o de alguém que, indubitavelmente, marcou o quotidiano de uma época; de alguém que empreendeu meritórias acções culturais, que juntou valores, vontades, interesses para boas causas; mas é, simultaneamente, o de alguém cuja generosidade foi manipulada por alguns, o que contribuiu para que se abrisse uma ‘caixa de pandora’ cujos efeitos ainda se fazem sentir no já de si frágil tecido cultural desta terra, onde toda a gente se conhece, onde todos evitam criticar-se de forma séria e onde a existência de critérios de qualidade na cultura, assentes em cânones sólidos, no reconhecimento dos pares, nas referências histórico-culturais e no mais simples bom senso é uma pura miragem. Hoje, de facto, publica-se no nosso meio prosa, poesia e crónica de qualidade inenarrável, não havendo quem seja capaz de dissuadir os medíocres de publicar, aconselhando-os a amadurecer a sua escrita ou a dedicarem-se a outra coisa. Pelo contrário, há quem lhes abra as portas de par em par.

É tudo culpa do José António? Claro que não. Relembro-o com saudade. Era uma boa pessoa, um intelectual genuíno, feito por si próprio, e a sua produção literária foi séria, espontânea e cresceu naturalmente, desde tenra idade. Era a sua profunda sensibilidade e capacidade expressiva, bem clara em muitos dos seus escritos, que fez dele um escritor. Isso, o treino jornalístico e o domínio da língua portuguesa. Não direi que aprecio tudo o que escreveu, mas alguns dos seus escritos têm a inquestionável marca da verdadeira literatura.

Eu prefiro lembrar-me do José António não por causa daquilo de que discordei – e não foi pouco – mas por causa da pessoa que ele era, que eu vislumbrei e que percebi ser verdadeira. Polémico toda a vida, e mesmo depois de morto, o JAG foi uma figura especial, que marcou a vida cultural madeirense das últimas décadas. Muitos hão-de lembrar-se dele, de muitas maneiras, durante muitos anos. Estou convencido de que, no final, será por causa das coisas boas que fez.

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lembrançaLuís Viveiros

Foi já no fim da saudosa segunda metade dos anos 70 que eu comecei a conviver com o Zé António. Ainda militava no MRPP, e ele sabia disso, porque já me tinha visto a vender o «Luta Popular» na ponte ao lado do «Bazar do Povo». Como eu sabia que ele era dirigente do CDS, e por isso não estranhava certas «bocas», mais enigmáticas que ofensivas, que tinha o prazer de expressar quando passava por perto, às vezes com um charuto aceso, o corpo a conter alguma truculência, e os olhos mordazes a sorrir no desafio. «Uma figura castiça», dizia para mim, ciente das distâncias políticas que nos separavam.

No entanto, aos poucos mudava a minha «sede» para o Café do Teatro. Com gosto alargava o passo para aquele lugar que, na altura, tinha um encanto especial, tocado como estava pelo mistério de tantas coisas que ali começavam. E foi na esplanada, à mesa de amigos comuns, que o Zé António começou a falar comigo, com uma simpatia que me pareceu deslocada, quando teve conhecimento de um vago desejo meu a propósito de alguns poemas recentes.

Mas não foi difícil perceber que o seu carinho por poemas alheios, ainda por cima de um tipo do MRPP, era o carinho que dedicava à poesia, e o seu empenho tinha uma lógica, e a lógica uma beleza que se derramava pelos recantos do dia.

Como não foi difícil entrever naquele «reacça», naquela voz narcisista, naquela bondade que golfava, um amigo em potência. Um amigo militante, que fazia da amizade um ritual, uma aventura extenuante mas venturosa.

in Suplemento “Tribuna da Cultura”, p.5, Tribuna da Madeira, de sexta 22 de Abril de 2005

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inquérito Ilha 1. Qual é para si a relevância do Movimento “Ilha” no contexto da ilha e

do seu tempo?

francisco freitas abreu: Constituiu uma autêntica “pedrada no charco”, o atrevimento de 7 jovens, que na grande maioria, estudantes, e convictos de que se justificava “ampliar” a produção que vinham publicando no Jornal da Madeira, procuraram um primeiro reconhecimento pela sua criação artística. E foi num período complicado da História do país que a edição veio para a rua. Há uma marca geracional, de limitação geográfica, que os poemas em alguns casos mostraram. E há uma virtude que o projecto veio a demonstrar… é que não se esgotou numa edição e não se fechou no “grupo” fundador. Os livros que se seguiram e que vieram a justificar a designação de “Movimento Ilha” assim o comprovam.

irene lucília andrade: O “Movimento Ilha” não se caracteriza por qualquer intenção de agitar conceitos ou teorias literárias em relação às tendências da Poesia numa época, no país. Chamou-se assim por decisão do seu promotor, o poeta José António Gonçalves cuja intenção foi a de congregar poetas madeirenses da década de setenta do séc.XX, facilitando-lhes a inclusão em algumas colectâneas que intitulou de Ilha e foram sendo publicadas nos anos que se seguiram a 1975. Assim surgiram: Ilha 1, 1975; Ilha 2, 1979; Ilha 3, 1991; Ilha 4, 1994 e finalmente Ilha 5 que agora se apresenta e fecha o ciclo. Considero importantes estas publicações por revelarem a existência de poetas da ilha da Madeira, até então desconhecidos dentro e fora do território ilhéu, facto que tem atraído a atenção de estudiosos e críticos literários de várias proveniências que a elas se referem em artigos de jornais e obras analíticas, integrando esta produção no todo nacional. Ex: 10 Anos de Poesia em Portugal, 1974-1984 – Leitura de uma década – Manuel Frias Martins, ed. Caminho, 1986; Verso e Prosa de Novecentos – Ernesto Rodrigues, Instituto Piaget, col. Teoria das Artes e Literatura, 2000; Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera – Giampaolo Tonini, Centro Internazionale Della Grafica di Venezia, 2001. Nota: Em Ilha 2, com prefácio de Natália Correia, a poetisa refere: “… vinde à ilha…” “…Entendei que a poesia é a superação do continente. Conteúdo fervente. Como ilha, contida”… “E onde quer que vos conduzam seus dedos de flor de Jaracandá o mar permanentemente ablução da alma insular, vos lavará os olhos”.

josé Vito barreto: Quanto às questões que coloca, devo esclarecer que apenas me posso pronunciar sobre Ilha 1, único livro em que participei e que reuniu poemas de um grupo que, sob coordenação do José António Gonçalves, animava, desde 1973, uma página do Jornal da Madeira, intitulada “2000”. A ideia de se publicar um livro colectivo foi tomando forma ao longo de 1974, tendo finalmente sido dado à estampa

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em 1975. Foi uma “pedrada no charco” que, não obstante algum subsídio da Câmara do Funchal, ainda nos custou alguns cobres. Concretamente, em relação à primeira questão que põe, a relevância deste livro que ainda não constituía um “Movimento”, era apenas o de ser uma revolta de alguns jovens contra o imobilismo literário que existia na época. Foi claramente um grito de juventude e mudança, numa sociedade completamente adormecida e anquilosada.

ana margarida falcão: Por mais que reconheça o imenso e tão louvável esforço que o nosso querido JAG fez, durante tantos anos, para dar a conhecer a poesia de autores madeirenses, não posso deixar de, objectivamente, ter que admitir que os resultados foram mínimos, tanto a nível regional como a nível da poesia portuguesa. Não considero que tenha havido um “Movimento Ilha”, por mais que isso nos custe, e muito menos implicações ou dinâmicas a nível geracional, temático... ou outros. Basta consultar um qualquer livro de teoria para verificar que nenhum dos conceitos que acima referi se pode aplicar à tão bem intencionada publicação das antologias Ilha.

Carlos alberto fernandes: A importância do Movimento Ilha no contexto da ilha do meu tempo (já lá vão tantos anos!), foi o ter sido a mola que despoletou em mim a vontade de escrever e conhecer mais a nossa poesia. Não só a que se fazia na Ilha à data, mas a descoberta de outros poetas, outras escritas para lá da pequenez da nossa Ilha.

antónio duarte brito figueirôa: Antes de entrar directamente nas questões que me são postas, quero referir que não me é fácil separá-las, daí que preferisse encadeá-las já que de um todo se tratam, sem fronteiras bem definidas entre elas. Respondendo directamente à primeira questão penso, sinceramente, que o “Movimento Ilha” foi, naquela altura, uma verdadeira “pedrada no charco”. Havia algum marasmo intelectual que precisava de ser quebrado, de se romper com silêncios envolventes despertando mentes e consciências.

Carlos nogueira fino: Parece incontestável que o Movimento “Ilha” foi o movimento mais consistente do século XX no domínio da poesia que se faz(ia) na Madeira, com capacidade de integração de poetas de origem e formação diversificadas.

josé laurindo góis: Contestou as formas inautênticas e desvirtuadas da poesia de carácter convencional e arcaico. Apresentou uma escrita literária com modulações técnicas que promoviam o abandono de preconceitos na elaboração do poema, integrando, no plano estético, a problemática do indivíduo e da sociedade numa síntese expressiva. Convidou, assim, os madeirenses à reflexão perante as novas realidades literárias que emergiam. Obteve, contudo, na época, um impacto relativo atendendo ao desinteresse geral pelas coisas que constituíam os seus bens

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imateriais, sendo apenas comentado por uma restrita elite “intelectual”de funchalenses. Volvidos 30 anos começa a ser mais fácil reconhecer o rosto da Ilha. Há outras gerações envolvidas, entretanto, num movimento estético que sempre se quis aberto à reflexão sem ter atingido até à data esse propósito. São o caso dos poetas que aparecem na antologia Ilha 4. Com os instrumentos culturais do presente creio ser mais fácil manter o movimento e a Ilha literariamente vencer o mar da sua circunstância.

laura moniz: Quando, após várias experiências poéticas, todas elas ‘colectivas’, a maior parte delas organizada pelo JAG, vi surgir o projecto da Ilha 4, considerei o movimento ilha como mais um título-topónimo – daqueles que eu tanto evitei ao longo dos anos – e não como uma tomada de consciência ou como um elemento aglutinador de obra poética, consciência literária ou mesmo ‘movimento-em-si’. Porque na verdade eu achava que fazia parte do território criativo da língua portuguesa e que o mar que circundava a ilha era um grande relvado azul, como uma planície alentejana.. Apenas isso. Os principiantes acumulam experiências – era o meu projecto pessoal da altura. Assim, Ilha 4 ficou junto a outras experiências, equiparando-se a todas elas e com um único pormenor digno de curiosidade, mas exterior à construção do movimento. A estupefacção de José António Gonçalves quando lhe disse ‘mas eu não me chamo S. Moniz Pereira’ – que é um erro que figura na capa, pequena distracção entre o meu ‘moniz gouveia’ e um ilustre ‘moniz pereira’, á qual porém me habituei. A verdadeira importância do movimento Ilha surge pela voz do José António, quando este já preparava a Ilha 5 e falava de comemorar os 25 anos do seu início. Surge, de facto quando este me explica o que representava para ele em termos pessoais: era a peneira que não tapava o sol, proque ele não queria com a ‘ilha’ tapar o sol, mas sim transformar-se em seu árbitro. Era na ‘ilha’ que ele seleccionava, criticava, impunha o seu cunho pessoal e se permitia excluir e incluir. Era com a Ilha que José António ceifava e antecipava a colheita do tempo. O aparente ‘comunismo’ de José antónio quando se tratava de outros projectos desaparecia com a Ilha. Porque se José António achava que só o tempo podia validar um projecto artístico de um determinado autor, com a ilha perdia esse olhar englobante. E é assim, que anos depois, fico a saber que me incluíra no projecto da Ilha 4 por merecimento e julgamento e não por democracia. Julgo que o “Movimento Ilha” acabará por ser nos próximos anos o exemplo de um projecto de boa vontade cuja intenção era demarcar geograficamente a produção literária do arquipélago, tal como era por parte do seu ‘criador’ uma forma de, destilando, criar uma consciência, uma irmandade literária, único traço comum à acção dos autores intervenientes cujos percursos se separavam antes e depois da edição. Ilha insere-se na poética jaguiana de que a ilha não era impedimento à produção nem desculpa para exclusão. E já que a ilha não se chamava Lisboa, ou Porto, chamava-se pelo nome.

josé Viale moutinho: O chamado “Movimento Ilha” nasceu e morreu com o José António Gonçalves. Os cadernos só existiam pela dinâmica que lhe dava essa rara figura de intelectual lutando num meio adverso, o José António Gonçalves. Ele

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criou esta série antológica para fazer crer, inclusive aos próprios poetas publicados, que entre si tinham algo de comum. E, no entanto, quanto a mim, se havia algo de comum era o facto de sermos amigos dele e, a par disto, a logo sancionada ligação à Madeira. Ninguém dizia que não a uma insistente convocatória de quem sonhou a Ilha como intelectualmente latente. Porém, de um modo geral, ele é que latejava. Demasiado, é certo, homem de excessos que era, e isso foi-lhe fatal. A nível de literatura portuguesa, suponho que seremos nem meia dúzia a saber que parece ter existido o tal “Movimento Ilha”. Dentro de um par de anos, se não já agora, terá a importância arqueológica da Musa Insular do Luís Marino. É que não creio que tivesse sido um movimento na verdadeira acepção da palavra, antes uma dinâmica José António Gonçalves. Os poetas entre si pouco tinham que ver. Para alguns foi a oportunidade de publicar os primeiros poemas em suporte de livro, para outros um aceno à Madeira. A relevância é a memória histórica do dinamismo empreendedor do poeta José António Gonçalves no incipiente meio literário e editorial na região autónoma.

eurico de sousa: No meu ponto de vista pessoal assumo que é da maior relevância, porque, por razões de saúde, há já bastante tempo que não publico e esta é uma oportunidade de aparecer com poemas inéditos, dos muitos que ainda tenho. No contexto da ilha é mais relevante ainda dar a conhecer ao público gente que escreve aqui, porventura alguns com maior ou menor qualidade que outros mas que vale a pena apesar de tudo.

Ângela Varela: O livro colectivo Ilha, que em breve já irá na quinta publicação, com Ilha 5, vem contribuir para a identidade cultural da Madeira, pela voz dos seus poetas de agora, quer residam ou não na região. Por isso, a meu ver a notação das vivências pessoais dentro do contexto insular é o que melhor caracteriza o Movimento.

2. Que importância atribui ao “Movimento Ilha” no seu próprio percurso pessoal como poeta?

francisco freitas abreu: Foi a exteriorização de uma centelha de um percurso curtíssimo… estimulado, pelas mais diversas leituras, de José Gomes Ferreira a Baudelaire. Estimulado também por incentivos como o do Dr. A. J. Vieira de Freitas que encorajou a prosseguir, após conhecer alguns dos trabalhos publicados na Página literária do Jornal da Madeira.

irene lucília andrade: Antes do aparecimento destas colectâneas eu tinha publicado em Lisboa em 1986 o primeiro livro de poemas – Hora Imóvel à conta dum prémio que me fora atribuído pelo extinto S.N.I. Depois disso, recolhida ao habitual silêncio da ilha durante dez anos, foi com grata disposição que aceitei a oportunidade de ver trabalhos meus publicados nos vários exemplares da colecção “Ilha” integrando-

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me assim neste Movimento e partilhando dum interesse comum a todos os poetas: olhar a ilha e o mundo por dentro do mar.

josé Vito barreto: Quanto à sua segunda questão, relativamente ao meu próprio percurso pessoal, ele acabou antes do “Movimento Ilha” se formar. Foi apenas uma experiência de juventude que não continuei. Entendo, no entanto, que, para aqueles que continuaram a escrever e a colaborar neste Movimento, consubstanciou um espaço de crescimento literário e afirmação de novas vozes, bem como a consagração de um excelente poeta e dinamizador da causa literária, o meu saudoso e grande amigo e inspirador Zé António.

ana margarida falcão: Como poeta amador - que se serve do poema como registo provisório de sensações, ambientes, personagens ou imagens, a desenvolver posteriormente em narrativa - a publicação de alguns desses poemas proporcionou-me um distanciamento, como leitor, que me incentivou a melhorar essas pequenas «anotações líricas». Quem sabe, um dia...

Carlos alberto fernandes: Sem dúvida que, o facto de, a certa altura, inícios dos anos 70, chegar à fala e ao contacto com os poetas da Página 2000 do JM, foi algo que me motivou a escrever e acreditar que, embora a poesia não seja algo considerado prioritário pelas nossas entidades culturais, é algo que nos pode unir e fazer acreditar. Lembro com alguma nostalgia as reuniões tidas na redacção do JM antes da ida para impressão da Página 2000, e das saudáveis discussões tidas entre o núcleo inicial. Eramos sete, de início! Sobretudo, a experiência e o saber do JAG, a sua irrreverência e “teimosia”, levaram-nos a acreditar que, mais cedo ou mais tarde, as coisas iriam crescer. Da Página partimos para o Primeiro Ilha em 75, contra ventos e marés adversas. Seguiram-se outros números da Ilha, outras publicações e colaborações, outros caminhos, só possíveis pela abertura que o “Movimento Ilha” nos deu.

antónio duarte brito figueirôa: Recuando no tempo, e mesmo correndo o risco de a memória me atraiçoar, acredito que o aspecto mais importante, na minha opinião, se prendia com o facto de “todos nós” estarmos movidos pela necessidade de dizer coisas, muitas coisas, que, como jovens que éramos, nos atormentavam, aos mais diferentes níveis. Eram tempos de transformação social e política, sentíamos também essa envolvência que nos incentivava à produção escrita e poética. Era uma lufada de ar fresco e uma oportunidade de nos deliciarmos no encanto das palavras e no jogo das emoções.

Carlos nogueira fino: No meu caso, que fui “acolhido” pelo “Movimento Ilha” a partir da publicação de Ilha 3, esse acolhimento funcionou como uma espécie de reconhecimento, feito pelos (meus) pares, da minha condição de “poeta madeirense”, seja lá isso o que for, atenuando o facto de ter nascido fora da ilha, ainda que a habite desde os meus 9 anos.

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josé laurindo góis: Foi muito importante. A Ilha (1975) provocou-me e provou--me como poeta. Li as vanguardas, debati e confrontei ideias com os meus confrades apreciando as novas realidades literárias no seu conjunto criativo. Em resumo levou--me a pensar de um modo geral no discurso literário e nos sentidos possíveis para o texto colectivo.

laura moniz: Estas são porventura as perguntas mais difíceis que alguém alguma vez me colocou. Antes de mais, devo esclarecer o seguinte: desde os meus ‘primeiros passos’, primeiras tentativas de criar algo que fosse ou se aproximasse de uma ideia de literatura, sempre achei que me movia no terreno da literatura ocidental, não no da literatura nacional e muito menos no terreno da literatura regional. Queria fazer parte desse projecto maior, da língua portuguesa, consciente das minhas limitações, que são imensas, mas também lutando contra aqueles entraves que surgiam do exterior, não só dum ambiente familiar avesso à criatividade e pouco preparado para recusá-la com motivações racionais e que classificava como anomalia o meu interesse pela poesia, mas também do meio social em que me tentava inserir que classificava de atrevimento, no mínimo, os meus projectos literários – essa, talvez a grande limitação com que se depara um escritor num meio pequeno, seja este ilhéu, ou seja este ilhéu, periférico e continental. Outra grande limitação é o acesso à informação: quanto maior a consciência das motivações mais forte se torna também a exigência de reunir conhecimento para poder avançar. Outra limitação num meio pequeno e pouco favorável a rasgos de criatividade. O movimento Ilha na altura serviu acima de tudo para me ajudar a confirmar que às tantas até podia continuar a escrever, e que independentemente da luta contra a corrente, independentemente dos epítetos que alguém me pudesse atribuir, havia alguém, havia, apesar de tudo, algumas pessoas que acreditavam em mim, que acreditavam naquilo que eu poderia vir a fazer, e acreditavam de forma isenta, sem olhar a origens, sem preconceitos.

josé Viale moutinho: – Nenhuma. Ou uma mera oportunidade de publicar poemas meus a par de outros poetas da ilha onde nasci. Uma importância meramente sentimental, também de divulgação. Nunca soube quem eram os leitores dos cadernos. Há lá poetas de quem nem sequer conheço livro individual e gostaria de ler, e outros que só lá estão devido à entranhável generosidade do José António Gonçalves!

eurico de sousa: Considero-me inserido neste movimento porque é sempre mais reconfortante do que caminhar sozinho. E há quem afirme que em momentos de crise ou recessão económica a arte é sempre um refúgio.

Ângela Varela: Não tive influências do “Movimento Ilha”, que desconhecia quando escrevi a maior parte dos textos incluídos em Ilha 3 e Ilha 4, apesar de ter seleccionado para as respectivas colectâneas textos compostos na Madeira, quando ali me encontrava, principalmente no verão.

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3. Que afinidades - geracionais, temáticas, literárias e/ou outras - atribui ao leque de poetas participantes no Movimento “Ilha”?

francisco freitas abreu: Há desde logo uma característica comum… a geracional, com um intervalo de praticamente três anos de idade entre os participantes, as perspectivas de vida, ansiedades, preocupações, expectativas eram em muito semelhantes. Por exemplo, quando aconteceu a Revolução dos Cravos, o fim da guerra colonial terá constituído um enorme alívio para todos nós. Pelo sentido da guerra em si, e pelo sacrifício pessoal que cada um teria se a guerra continuasse…O “Movimento Ilha”, ele próprio, foi evoluindo, amadurecendo e na diversidade das participações abriu-se como de resto era o propósito inicial… e em sintonia com a marca de José António Gonçalves, um incentivador nato… do aparecimento de novos poetas.

irene lucília andrade: Não devo referir-me aos aspectos científico-literários que informam as Ilha, mas em relação aos aspectos temáticos parece-me ser comum a todos os poetas, ao longo dos textos, uma simbiose de liquefacções e telurismos que os identifica com uma origem ou uma vivência específica de um território insulado.

josé Vito barreto: No que respeita às afinidades entre os participantes no Ilha 1, elas eram efectivamente muito fortes, era a mesma geração, embora cada um com as suas temáticas muito próprias. Atrevo-me até a dizer, que de todos nós, que fizemos o Ilha 1, O António Figueirôa, o Duarte Tranquada, o Carlos Alberto Fernandes, o Francisco Freitas Abreu, o José Laurindo Goes, o José António Gonçalves e eu, há que destacar dois poetas verdadeiros e únicos, o José António que já o era, e entre todos os outros o José Laurindo, essa voz que eu não me canso de admirar.

ana margarida falcão: Já respondido, parcialmente, em 1. Poderia acrescentar que o conjunto de poetas que publicou na «Ilha», e que configurava uma espécie de tertúlia por vezes dispersa, poderia ter sido a raiz sólida de uma Associação de Escritores da Madeira que tivesse como missão a divulgação dos escritores que vivem um tanto isolados neste círculo no meio do mar e o incentivo à escrita dos mais jovens. Infelizmente as divergências pessoais provocaram uma cisão que impediu a plenitude e âmbito desejado dessa realização.

Carlos alberto fernandes: O núcleo inicial da Ilha era todo da geração de 50, o que significava as mesmas afinidades, os mesmos anseios, as mesmas dúvidas. Com o passar dos tempos, o grupo alargou-se a outras gerações, que trouxeram outras experiências, outras vivências e, de certa forma, enriqueceram o Movimento, tornando-o mais abrangente, menos selectivo, quiçá mais rico. Pena é que o JAG, mentor e grande impulsionador do grupo já não esteja entre nós. O seu entusiasmo, a sua força e determinação perante os obstáculos que sempre aparecem, são o motor que nos falta para que um Movimento como o Ilha pudesse continuar forte e aglutinador

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de vontades. Muitos de nós, distantes da Ilha, pelas mais variadas razões, sentimos a falta de um elo de ligação às raízes que, de alguma forma, nos são comuns.

antónio duarte brito figueirôa: Se há um aspecto que percorre o universo dos poetas da ilha ele traduz-se, sem sombra de dúvidas, na palavra “isolamento”. No entanto, a específica realidade geográfica em que estávamos mergulhados era superada pelos vínculos sólidos da amizade que a todos unia; isto, apesar das aparentes discrepâncias ou singularidades que cada um ia exprimindo ou revelando individualmente. Estou a referir-me, particularmente, àqueles que integraram as duas primeiras edições do “Movimento Ilha” e que haviam saído da então “Página 2000” do Jornal da Madeira. Vivíamos inebriados entre o sonho e o absurdo: o surrealismo era um desafio e a ponte que nos projectava para além do real. E não esquecíamos Herberto Hélder, “Deus”/Poeta que nos fazia deliciar e… sonhar.

Carlos nogueira fino: Penso que as afinidades entre os integrantes do “Movimento Ilha” se esgotam na simples cumplicidade da participação. Quem lê os quatro livros, desde A ilha que somos à Ilha 4, compreende como são díspares as temáticas e as vozes, bem como é grande o intervalo em que recaem as datas de nascimento dos poetas presentes. Se existe alguma coerência no Movimento, ela corresponde à presença do seu fundador e principal impulsionador, o José António Gonçalves, e é, como ele era, coerentemente contraditória, um tanto ou quanto rebelde, mas, sobretudo, muito generosa.

josé laurindo góis: Nascidos em meados de 50 no mesmo espaço geográfico partilhando as múltiplas questões existenciais, sociais e políticas, quer a nível local, nacional ou mundial, os “7 magníficos” constituem, de facto, a geração literária de 70, na Ilha da Madeira. A sua vitalidade e frescura vem principalmente ou quase exclusivamente de serem 7 vozes originalíssimas que disseram e escreveram, com estilos muito pessoais, a ilha no presente. São sete vozes que pela interiorização e egocentrismo evidenciam e actualizam a poesia lírica mais evidente em Carlos Alberto Fernandes com influências de Eugénio no subtexto. Afinidades com o simbolismo baudelairiano, pela expressão mórbida dos tableaux, encontramos em António Brito Figueirôa que cultivou o poema “em quadrado”. Filosófico foi também Duarte Tranquada Gomes ao desenvolver as temáticas da liberdade, do vazio existencial e do absurdo, lendo-se Sartre nas entrelinhas. José Vito Barreto radicaliza a poesia política dos poetas deste grupo. Cultiva a ironia em situações triviais e estabelece uma poesia dramática do absurdo à moda de Brecht. Francisco Freitas Abreu criou micropoemas herméticos e singulares. Lembra, pela ideia e intensidade, Carlos de Oliveira ou Herberto Helder nas temáticas do absurdo e do desconcerto do mundo. José António Gonçalves é um poeta plural: um certo exotismo surge na sua poesia com a mesma intensidade do real concreto. Os temas do vazio, do tédio, da solidão, da agonia, surgem numa determinada fase. Eliot, Pessoa, Helder, são algumas das suas referências.

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laura moniz: Não havia entre os autores da Ilha 4 e a Laura Moniz da altura um pacto geracional. Não havia sequer, a não ser com José Manuel de Sainz-Trueva, um canal de comunicação aberto para convívios ou salutares discussões autoreferenciais que informassem uns aos outros de motivações e da substãncia dessas motivações. Surpreendeu-me, por exemplo, a diversidade de registos e temáticas entre os diversos autores. Surpreendeu-me também os percursos, mais ou menos públicos, mais ou menos adivinhados, mais ou menos poéticos desses autores. Mas, estando lá, fazendo parte de mais um projecto, sendo este projecto concretizado na ‘ilha’ não havia razão para mais reflexões. Mas é verdade também, ao fim de mais de 10 anos, depois da minha inclusão na Ilha 4 – com textos escolhidos pelo Sainz-Trueva – que não podia fazer incursões nem iludir-me com conclusões acerca do movimento. Este fora criado na minha infância, por gente que não se podia identificar comigo, por não me conhecer, por não ter convivido comigo. Vejo-o agora que a minha idade naquelas páginas destoava. A única coisa que não destoava e permanecerá perene é o gesto do José António, iludindo a diferença entre os vários intervenientes. Afinidades? Conhecíamos todos José António Gonçalves.

josé Viale moutinho: Não disponho de elementos que me permitam responder a esta questão para além de achar que as afinidades se resumiam ao facto de quase todos terem nascido na Madeira, mas sem que isso se notasse por aí além…

eurico de sousa: Conheci o Herberto Hélder estava eu no 1º ano de Arquitectura – muito jovem, daí que as minhas influências geracionais se tenham voltado para as deste poeta. Ele acabava de publicar o manifesto contra a arte vigente – o neo-realismo. As afinidades mais notórias com os poetas da “Ilha 4” estão com a escrita de Sainz-Trueva e Viale Moutinho (que tecem múltiplas imagens). Não obstante admiro vários outros.

Ângela Varela: As afinidades que porventura existem entre os poetas do Movimento, quanto a mim consistem na pós modernidade da invenção da linguagem poética, seguindo na linha então inovadora da poesia portuguesa dos anos sessenta, e daí, apresentarem uma tendência, maior ou menor, para a obscuridade da expressão. Há ainda certa temática que naturalmente evoca a mundividência da ilha, se estes elementos são trabalhados diferentemente, consoante o estilo de cada um.

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rosto da poesiaJosé Laurindo Leal de Góis

“cheguei, depois de muito navegar,auma terra verde, bordada a pérolas no mar, abandonei a viageme passei a conviver com sereias e ninfassilenciosas, que perdiam o seu tempo plantandopalmeiras, cuidando de animais selvagens,

soltando aves em sorrisos lentos”

Para Falar de Mim

A poesia escrita por madeirenses na segunda metade do século XX conforma-se em quatro ou cinco momentos fundamentais a saber: o aparecimento da colectânea Arquipélago, em 1952; a página literária Pedra, inicialmente publicada no vespertino Eco do Funchal, e na década de 60, no Comércio do Funchal; O Colóquio Ao encontro da Poesia, realizado na Escola Industrial e Comercial do Funchal, em 1972; O Movimento, Cadernos de Poesia & Crítica, de Novembro de 1973; O lançamento de Ilha, em 1975. Coloco em evidência o colóquio pela razão pura e simples deste acto de cultura ser consciente, em época tão crítica, das novas estéticas do real, do tempo, e da necessidade de transformação da linguagem. Os recursos técnico-formais, o desenvolvimento do verso branco, a contemplação de novos ritmos, temáticas dominantes e imagens, a contaminação dos discursos, constituíam, evidentemente, uma nova face da lírica, e uma irónica contestação do ethos convencional.

Estas experiências contribuíram indubitavelmente para o amadurecimento de um poeta já desperto para a poesia e o jornalismo como é o caso de José António de Freitas Gonçalves. Comparando dois poemas de Movimento, que são simultaneamente dois belos momentos estéticos, ou de uma estética daquele momento em movimento, confirmamos pela coerência, pelo tema e pequenas variantes na forma estrófica, mais livres em JAG, a pura correspondência entre eles.

Se, em “rentes que aves são...” , A J Vieira de Freitas nos apresenta o retrato frio do tempo e do espaço das vivências, também da transitoriedade, na imagem da ave: “rentes que aves são o grito alucinado/deste inverno de carumas frias”. O José António, por seu lado, apresenta simbolicamente a manhã da esperança, e desenvolve o tema: “rente aos olhos a lágrima a/manhã o orvalho a mão/sobre o arado e o sol nascendo”. E o poema vai por aí fora. Inicia cada estrofe com a palavra rente e nos surpreende com a procura de novos ritmos e o uso da síncope no final dos versos. O sentido se transfere ou se religa na intensidade das proposições : “rente aos olhos a rosa o gume do”, numa aproximação cada vez maior ao real sensível.

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A tentativa de compreender e apreender a coisa poética e o espaço das realidades do social, manifesta-se gradativamente nos poemas que concebe. Vem desde os primeiros textos em prosa poética nos quais o eu conflitua com o social. Concentra-se, magnificamente, no citado poema de Movimento, para depois se expandir. Constrói em 1988, os “20 textos para falar de mim”. Poesia imediatamente política e emblemática por funcionar como um fórum de uma sua discutível consciência da época. “O que fazer da liberdade”, é um poema versificado no qual não está ausente a casualidade da rima. No plano do significante o uso das fricativas e das rutilantes (f,v,r) percorre, fricciona, todo o texto: fazer, travadas, velhas, vidro, flores, vazio, pedras. A vogal aberta nas palavras janelas, pedras e gestos dá intensidade espectral ao poema.

É um texto lógico quanto à sua estrutura estrófica. Divide-se em duas partes. Na segunda, iniciada pelo segmento e então, além de concluir, convoca outros modos, como o dramático, pelo cenário, ou o narrativo, sendo a pluridiscursividade uma constante na poesia deste autor. Leia-se, enfim, esta seqüência sob o tema da liberdade que é de sempre, de todas as sociedades, tempos, lugares, culturas e filosofias: “travadas, as portas abrem-se devagar/ travadas, as mãos caem no espaço/...travadas, as palavras destroem-se”. Com tais versos iniciam-se as três estrofes da primeira parte, interrogando-se, o poeta, afinal.

Quanto à problemática do social em JAG ocorre-me, para já, o nome de Anthony Giddens, pelas preocupações deste antropólogo na notação do espaço físico, do corpo humano e do social. Foi ele que “inventou” a ideia de locale como internally regionalised places where the routine activities of different individuals intersect. Concebemos dentro deste espírito, pelo seu traço dominante, textos exemplificativos do tipo de “Aqui é uma cidade” (Réstea de Qualquer Coisa, 1973). A intensidade neo-realista implica o poeta com o real social nas expressões: “fogueiras frias”, “cães vagabundos”, e em figuras de retórica, metáforas, mais propriamente, como “cesto de privilégios”, “cobertor das exportações” “ribeiro de gente”. Outras construções são mais expressionistas como uma “adorada mãe melancólica e pobre”, “flores de pétalas murchas e caules secos” que, na factualidade do texto e não só, ferem de desigualdades e de miséria um tempo que a memória felizmente apagou.

“Fogo medonho”, “cafés aos fins de tarde”, ”vagabundos solitários”, “anjos tristes”, são outras imagens que evocam no seu microcosmos uma cidade baudelairiana dos tableaux parisiens que influenciou as literaturas com os seus topos, incluindo a anglo-saxónica. É uma poética preocupada com temáticas literárias arquitextuais. Quer dizer, a dor, a solidão, a ausência, o vazio existencial, a morte e o amor revestem-se de convencionalismos. O sujeito poético enuncia-o: “não me perguntem porque amo as coisas velhas,/ as cidades ou os seres antigos. Eu digo-vos: amo-os porque neles nasce o átomo do nosso sofrimento”. É uma instância filosofante escrita na primeira pessoa, como é quase toda a sua poética. Pertence ao livro É Madrugada e Sinto (Funchal, 1974).

Numa fase posterior, JAG vem a celebrar a cidade com os seus símbolos históricos e os seus mitos utilizando sonoridades que me parecem barrocas e os recursos

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hiperbólicos que todos lhe reconhecemos. Nalgumas ocasiões o extravasamento sentimental opta nitidamente pelo hedonismo, como nas suas Noites de Insónia (Madeira, 1998), aonde se subentende o comportamento de noctívago: “o importante é a noite interminável/o sol que se esconde na lua escura/e as mulheres”.

Por outro lado, procura-se incessantemente pela interiorização, na experiência adquirida, ou em situações limite, como a solidão extrema, a consciência de ser poeta. O eu autoral progride ao encontro do outro. Na poesia de José António Gonçalves é inegável essa tensão. Entidades várias deixaram o seu rasto nos livrinhos de JAG: uma palavra, uma imagem, espírito. Pessoas da vida real, que o poeta conheceu de relance à mesa imaginária da poesia. Constituiu-se, assim, o conhecido “jogo das influências” e a “intertextualidade” de Kristeva.

Três escritores influenciaram o poeta: Stendhal dá-lhe o gás. A narrativa ilumina a relação com o objecto livro, ou com os livros em geral, de uma forma esplêndida, desde os poemas de afirmação, “descobri que quero a vida e não a vida que está em mim por empréstimo” (Réstea, 1973), até aos poemas em verso branco de Aventura na Casa dos Livros; outro é Robert Frost, um poeta do início do século XX, importantíssimo, incontornável, pelo abalo que produziu na convenção ao introduzir na literatura o impoético, uma poesia que surpreende pela colocação dos diálogos dramáticos, ao reclamar para o poema uma visão real da vida, Mr. Frost possesses a keen feeling for situation. And his fine, sure touch in clarifying our obscure instincts and clashing impulses, and crystallizing them in sharp, precise images. A sua poesia é, pois, uma metalinguagem. É dele o peritexto que se encontra na contra-capa de Ilha.

Frost vem numa linha cultural próxima daquele Eliot que depurou emoção e sensação, a personagem e o drama lírico, em síntese, a fragmentação do eu. Eliot, lido atentamente pela nossa geração, impressionou o poeta, quando escreveu “com amor doce e raiva”. É um texto “normal” na sua forma, sem sobressaltos, ao qual subjaz alguma teoria elitoliana quanto ao correlativo objectivo, na teoria da originalidade ou à split personality que se irá manifestar, até à exaustão, em textos posteriores, como poderemos ouvir nos ritmos destes três fragmentos que vos proponho:

“E eu ouvia-o cabisbaixo, e eu recordava no vento rasteiro cobrindo as palavras de frio, os meus olhos quebrados, o meu corpo esparso pelo de serto da fome.”... “Lembranças são factos materiais, presentes no próprio presente, objectosde uma actividade imprescindível ao espírito, de rever imagens interliga- das ao próprio facto presente, ao próprio passado” ...“Quem senão aqueles seres tão afastados da realidade e pintadosnela com tinta inalterável...(...) pássaros de ninhos de porcelanafina e quebradiça”(...) gente que brota do cimo das pragas, dasmaldições, da cidade ?”.

Com amor doce e raiva, Pedra Revolta, 1975

A consciência de uma crise do sujeito e da degradação são evidentes pelo reverso da cultura do mito do herói, do cowboy solitário e de uma certa Demanda. No

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caso, pelo culto de uma retórica da invasão lexical e da transgressão em segmentos semânticos, que constituem uma paródia. O culto do anti-herói que a fortuna crítica localizou num Allen Ginsberg, e numa outra América, transparece em unidades simbólicas do tipo “saloon podre”, “taberneiro inchado”, “cinturão sem balas”, “lombo encebado” , “corista madura”, que integram o poema : “um poema, mil oitocentos e tal, texas”. E, “New York City”, publicado em Movimento, é por sua vez, de grande liberdade formal pela irregularidade dos versos. A síncope na transferência de alguns, a plurissignificação, em vocábulos finais como amadure-/cimento, cons-/truir-se ou modas ortográficas, como o uso da diminutiva em nomes próprios, são outros atributos técnicos. É um texto, em suma, ecológico, que na sua crítica a um certo progresso, ao qual o homem se reduz, confirma a simpatia extensiva pela contra cultura, e seus valores.

Da crise do sujeito ao primeiro modernismo é um passo. A figura e a personalidade plurifacetada de Mário de Sá-Carneiro mereceu-lhe um poema “transferindo-se” o poeta para a cidade de Paris. Um desenho de Almada Negreiros inspira-lhe o poema “legenda para um desenho de Almada Negreiros” no qual se concedem cedências à rima. Há poucos anos o poeta afirmava que a sua geração era toda órfica. Somos todos órficos, andava a dizer por aí. Naturalmente no sentido de ruptura com o discurso linear e com o debate da questão com os nossos Dantas. Sem compromissos com teses experimentais ou visuais o seu crescimento como poeta deu-se pelo cultivo das metáforas, e na construção da sintaxe.

Com naturalidade alguns pequenos poemas seus relacionam-se com outras linguagens artísticas. O texto enriquece-se nas homenagens que presta aos seus deuses. A Cidade da Cultura presentifica-se em ano de grandes homenagens. Chamemos-lhe Funchal 5OO, Vieira 4OO Carlos 1OO, Karajan 1OO... sejam o sentimento do espaço, o burilar da palavra, a luz, a cor, o som. Na morte do Maestro, em 89, dedicou-lhe um poema no qual música e existência se confundem em ocorrências vocabulares, ao seu estilo, harmonizando os sentidos para as palavras. Não sendo, como já se percebeu, um defensor da espacialidade, ou seja, do uso dos recursos técnicos que fazem da sua engenharia um texto pictórico, JAG, “na morte de Karajan” usa fórmulas literárias afins do simbolismo.

É um poeta, também, do discurso fílmico, embora a afirmação pareça paradoxal. Sempre o li tendo bem presente a contaminação do discurso narrativo de uma história, com personagens e situações, volvidas em poesia... Aliás, veja-se a nomenclatura própria do modo narrativo e de subgéneros deste que o poeta usa para nomear muitos dos seus poemas: Oração, Conto Histórico, texto, excerto, diário, reportagem, esquema, retrato, legenda registo, crónica.

Avé Ava, não é um texto para cinema. É um poema que representa o Cinema em estado puro. Na escolha sonora dos pares de palavras o poema enriquece-se. Quanto ao significante há um jogo poético com as fricativas e outros fenómenos fónicos: erva/Eva, convexo/sexo, objecto/afecto. Este cântico para Ava Gardner, quanto a significados, reúne os representantes de três civilizações: a judaico-cristã na figura de

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Eva; a greco-romana representada pela ave; a modernidade ou Queda simbolizada por essa mulher belíssima, amada por todos nós, chamada Ava Gardner. Constrói-se num exercício de inteligência um poema erótico. Integram-se ou subvertem-se os símbolos das três culturas, e no cerne temos a questão da beleza mortal, como no Joyce do Retrato de Artista com o episódio fundamental da rapariga na praia,

és ava com cheiro a ervacom corpo de garçae memória de eva

Preocupou-se o poeta José António Gonçalves, como toda a geração de 70, com a busca de uma noção clara de poesia e de poeta. O poema, a sua forma e conteúdos foram objecto quase constante da sua observação. Neste caso podemos confirmar que a sua poesia é, de certo modo, também, uma metalinguagem. Vai desde as influências pela simpatia bárdica de uma renascença americana alicerçada num Walt Whitman, que o poeta referia frequentemente ser uma referência para Pessoa, até à entrega estética na leitura dos hispânicos, Neruda ou Lorca, “para que o mundo acordasse na sua vocação atlântica”. É aí, no espaço atlântico, com as ressonâncias de todas as culturas, nesse vaivém, como diria Natália, nessa osmose indecifrável de poeta e natureza. É aí que o poeta numa semi-consciência enredada de algas “adormecido numa gruta, adornada por búzios quietos”, no convívio “com sereias e ninfas silenciosas”, na utopia errante de localizar o possível rosto da poesia, e o seu próprio rosto, que necessita insistentemente de falar de si.

Oeiras, 17 de Fevereiro de 2008

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lugares do amor. a propósito da poesia de josé antónio gonçalves

Manuel Frias Martins

Para o António Fournier

Foi com a indocilidade de homem apaixonado pela vida que José António Gonçalves se perpetuou na ilha da Madeira, encenando com sofreguidão muitos dos mais irrequietos modos culturais de ser ilhéu que a região conheceu. Morreu no dia 29 de Março de 2005. Tinha 50 anos de idade, era poeta e o seu último livro intitula-se As Sombras do Arvoredo(1). Dele se fará uso a seguir.

Não há nada de mais natural que a morte. No entanto, estou convencido que os verdadeiros poetas nunca morrem de morte natural, pois neles sentimos sempre o sopro de uma espécie de doce veneno na apreensão poética da vida que os vai consumindo e continuamente desgastando para o mundo. Verdadeiros poetas são, para mim, todos quantos escrevem um poema como se respirassem naturalmente debaixo de água. Seres raros que se distinguem por conseguirem retirar de um ambiente hostil o próprio ar com que respiram, enviando depois até à superfície pequenas bolhas feitas de palavras encantadas. Por exemplo, as que se encontram num poema cujos três primeiros versos nos dizem o seguinte:

O areal alvo da praia parecia lava vulcânica no cair da tardee aquecia os pés dos meninos e dos velhos na cura dos corposenquanto as mães moldavam a espuma lunar de outras marés,(…) (As Sombras do Arvoredo: 42).

Como acontece com os verdadeiros poetas seus camaradas, também na poesia de José António Gonçalves as dores do mundo ecoam de um modo único e inigualável, fazendo de cada poema uma pequena morte simultaneamente bela e inútil. Na voragem do tempo que nos trouxe o fascínio moderno por afirmações vazias, só alguns poucos leitores possuem ainda a disponibilidade para tentar entender a profundidade e o alcance desse mistério eterno da melhor e mais verdadeira poesia. Por exemplo, a que está contida numa imagem tão simples e complexa quanto a que nos assegura que «o luar é um sol ao contrário»:

saberemos que o luar é um solao contrário quando nos conciliarmos

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com a luz dos nossos corpos(…)(p. 99)

Em José António Gonçalves a representação artística opera a partir de imagens estranhamente belas ou, melhor, a partir de imagens que partilham o sensível do mundo pela estranheza de algo supremamente belo na inutilidade das figurações poéticas por que o poeta interpela tudo, todos e a si mesmo. Neste contexto, não resisto a citar alguns magníficos versos de um poema longo onde a complexidade da escrita, da imaginação e da experiência se cruza com uma ironia extremamente controlada e com um sóbrio equilíbrio do pensamento:

São coisas incríveis as coisas que não escrevo.Andam pela cabeça, como um sopro de almaesvoaçando no silêncio de uma viagem,na despedida de um amigo, desses amigosque nos parecem para sempre invisíveis,maduros de vida como os figos, desaparecendopor detrás do casario. Ou desses amoresque esperam à porta para entrar e afinalestão de saída. São coisas incríveis estas, as que nunca escrevo. (…)(…)(id: 103)

Tenho ainda para mim que é só nos verdadeiros poetas que vão desaguando continuamente os pequenos lutos inarticulados de todos nós. Por isso, em José António Gonçalves as minúcias de segredos imaginados acabam sempre em formas poéticas de um sentimento humano rarefeito, e por onde se adivinha a contemplação de uma espécie de ocaso colectivo prévio a qualquer existência, mesmo a mais singela. Contudo, enquanto para outros poetas (não menos notáveis, aliás) esse processo poético se alimenta de atitudes negativas, sombrias ou desesperadas, José António Gonçalves como que afirma a questão do poema pela claridade de uma espécie de indisponibilidade para o mal, ou por uma percepção da realidade pela dinâmica afirmativa das suas harmonias mais belas e mais ocultas.

(…..)ficou, porém, apenas uma cicatriz de sombra,no lugar onde habitavas a mente e derramavas sorrisoscom a alegria dos anjos abençoando as manhãs.procurei colhê-la, guardá-la na alma, mas debalde.ela ficou na casa. lá está, entre laranjas e maçãs.(p.68)

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Seja por preconceito, ignorância ou, como parece mais provável, por simples incompetência (quase sempre disfarçada de arrogância), é indiscutível que a maior parte da crítica literária nacional tem sonegado o poeta José António Gonçalves. Mas como por aí não há grande novidade, o que interessa destacar é que ele é o autor de alguns dos mais belos poemas da literatura portuguesa das últimas décadas. Poemas belos porque neles se acaricia o tempo passado da experiência pessoal sem, contudo, se fustigar a busca da construção rítmica e imagística da linguagem propriamente poética. Poemas belos porque neles se prolonga a respiração do pensamento num registo cativante de tranquila emoção. Poemas belos porque neles se encena uma espécie de agora eterno do conhecimento poético, firmando com o leitor, através de uma linguagem quase cristalina na sua legibilidade, uma espécie de pacto estético ou, mais exactamente, um compromisso fundamental com o poema como um lugar habitável por todos os que o procurem. Poemas belos, finalmente, porque eles interrompem as correspondências banais da linguagem e da experiência, inaugurando um tipo de compreensão das coisas tão-só por envolvimentos da imaginação, e que, na força da sua indefinida natureza, clamam por uma irresistível cumplicidade por parte de quem lê. Evitando o exagero da citação completa, registe-se este fragmento do poema que dá o título ao livro:

(…) É hoje o dia de nos encantarmoscom as súbitas sombras no arvoredoe depois dormirmos, com as almas pegadas, na água invisível das suas raízes.(…)(p.7)

O impulso narrativo predomina na poesia de José António Gonçalves, indiciando por aí a presença não só de um autor-contador da singularidade dos acontecimentos humanos de que o poema se ocupa, mas sobretudo do comentador (psicológico, social, etc.) que vai conduzindo o poema aos mais diversos territórios da vida entretanto observada. Contudo, a valorização da verdade desses territórios opera-se quase sempre por algo semelhante a uma difracção para o amor. Seja a mulher que se ama, os filhos, um amigo, o simples facto de se existir, é no amor que culmina a atenção do comentador da vida. O amor torna-se caminho e razão, pois na imagem do poeta: «a palavra amor confunde-se com a seiva / das árvores febris na primavera e bebe / a sede dos pássaros no destroçar dos ninhos» (p.90). Arrisco afirmar que se há núcleo constitutivo da intencionalidade poética de José António Gonçalves ele estará neste impulso amoroso. Quer se trate das carícias do tempo que passa inexorável, quer da memória política, quer ainda dos insólitos enigmas que nos organizam a experiência, é na sábia simplicidade do amor que este poeta encontra a resposta para tudo quanto existe de mais irrepresentável e mais gloriosamente humano. Entre os muitos exemplos possíveis escolho estes versos:

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(…)O amor é uma linha branca pintada no cinzento da estradaunido e separando as viasem sentidos diferentes.(…)(p. 88)

Em 1986, num livro polémico e inconforme, adiantei-me ao tempo e assegurei que o então jovem José António de Freitas Gonçalves, autor de um livro intitulado Pedra Revolta, iria deixar as suas marcas na futura poesia portuguesa(2). Ainda é muito cedo para confirmar essa proclamação. É não só necessário deixar assentar o pó da vida e da morte, mas também esperar que amaine a turbulência causada pelos inúmeros talentos poéticos artificialmente nutridos pela crítica contemporânea (jornalística, académica ou uma coisa e outra) alinhada por interesses ideológicos e/ou identitários mais ou menos conhecidos. O que eu hoje sei é que José António Gonçalves é indiscutivelmente um poeta do mundo, da cultura e do futuro de uma língua portuguesa que só os verdadeiros poetas sabem amar e devolver em amor. E isso me basta para sabê-lo vivo sempre que houver alguém disposto a admirar alguma da melhor poesia escrita em português.

NOTAS

1) José António Gonçalves, As Sombras do Arvoredo. Pilar de Banger, Funchal: 2004.

2) Manuel Frias Martins, Dez Anos de Poesia em Portugal (1974-1984). Leitura de Uma Década. Editorial Caminho, Lisboa: 1986.

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acerca de esquivas sao as aves5: um escrito periférico

Manuele Masini*

ao António Fournier, que já escreveu o ensaio urgente e necessário

(O Ornitólogo Nocturno)

I

«Nesses momentos descubro comonão vale a pena explicar a poesia.

Nenhuma transparência esconde o tamanho do mistérioda repetição da noite ou o instante solar

do esculpir de um novo dia»

(JAG, A Arte do Voo, in Esquivas são as Aves)

Começar um discurso crítico sobre um objecto artístico, para quem não se queira esconder por trás de uma filologia fácil que agilmente mascara uma real incapacidade de se pôr em questão, gera de imediato um embaraço tamanho que a única solução possível parece ser a fuga do objecto (e sugeito dialogante, aliás). Assumir a impossibilidade, abraçar o respeito. Sobretudo se a contemplação muda, o silêncio (fim último e evidente, a bem ver, de qualquer palavra) seriam sem dúvida mais oportunos que um discurso «sobre» (de cariz hierárquico) ou «de» algo (até sintacticamente ambíguo); fico-me com um discurso periférico, um discurso em volta de, necessariamente fragmentário, aberto, mas espero que em diálogo. Parece-me também a única maneira de falar acerca de um autor e de uma obra que ainda não chegaram a ter aquela atenção «nacional» já invocada por muitos. Terá sido o ensaio de António Fournier que fecha a antologia Arte do Voo a primeira tentativa de sistematização e pontualização de alguns temas chaves da poética de JAG, de uma forma sempre sensível, lúcida, implicada, e alheia à máquina-come-tudo de certa crítica literária, não poucas vezes atenta apenas ao que lhe será de proveito. Ao António devo também, acho justo recordar, o conhecimento da obra de JAG.

II

«Um penedo é a sua própria força construtiva; 5 As citações no corpo do texto, se não diversamente especificado, são todas retiradas da edição original

de Esquivas são as Aves, Colecção Cadernos Ilha n. 11; Funchal: Editorial Correio da Madeira, 2001.

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uma ave é a sua própria acção orgânica.»

(Teixeira de Pascoaes,in Aforismos escolhidos por Mário Cesariny)

Acho singular, mas evidentemente não casual, que Pascoaes, poeta da comunhão com as coisas e da emoção da paisagem, poeta, ele também, ainda não completamente aceite pelo seu valor real por parte de uma crítica que se aconchega em categorias confortáveis, associe a força mineral (e maciça) do penedo à acção volátil da ave. Trata-se sempre de um andar vertical, de uma vertigem. Dois elementos em contraposição, em diálogo, em luta e em contínua manifestação (impassível e milenária uma, dançante e efêmera a outra) duma sua própria obstinação, de uma razão por vezes possível apenas na afirmação. A Madeira, esta ilha deslumbrante onde às vezes a paisagem parece mais forte do que qualquer outra coisa e mesmo do que a própria palavra (algo que Sophia de Mello Breyner Andresen notou), é o lugar ideal de uma geografia da poesia, mas uma geografia sempre animada, sempre habitada. JAG, em Esquivas são as Aves (tão cativante título), mas também ao longo de toda a sua vária e diferente obra poética, impõe-se mais pela força dessa geografia6 literária que pela adesão (que todavia existe) às poéticas que a história da poesia portuguesa do século XX pode em parte já ter encaminhado para os seus destinos fixos. Desde os primeiros poemas do livro, e desde o título e o seu fascínio portador de expectativas, deparamos com uma série de associações que são ao mesmo tempo imagéticas e simbólicas. As aves, movimento e canto, têm os seus lugares predilectos: os penedos, as escarpas, as falésias, as árvores. E o seu espaço de busca infinita e vertiginosa: o abismo. As falésias são um dos elementos mais caraterísticos da costa madeirense. Aquela que é uma mitologia já portuguesa e errada de considerar uma vocação espontânea do país a viagem por mar, quando é bem sabido que as costas desta terra longínqua e ocidental tudo favorecem menos a navegação, maior erro será quando aplicada à Madeira. O que empurrou os portugueses, moradores de um país-ilha, para a viagem nos mares desconhecidos, foi a necessidade. A fronteira entre terra e mar, na Madeira, ilha que já Boccaccio descreveu quase como o monte do Purgatório, é sempre um abismo vertical.

III

«No abismo mora o alentoo sereno lençol branco

6 No meio de tanta história da literatura, em Portugal como fora de Portugal, a geografia literária quase não existe. Até porque não raras vezes configura-se apenas como descrição de eventuais especificidades que se materializaram entorno a pólos propulsivos centrífugos: O Porto em vez de Lisboa, Salamanca em vez de Madrid, unidades nacionais em lugar do centralismo estatal. Para além da importância deste tipo de trabalho, que valoriza a periferia transformando-a no centro de uma razão alternativa, ao fim e ao cabo é fazer mais uma vez história (cultural), embora outra história. Mas se olharmos com atenção a alguns dos maiores escritores portugueses, a hipótese de outra geografia literária (da paisagem mineral, vegetal, animal, humana), com a maisvalia do seu grande impacto simbólico, e a vantagem (metodológica) de escapar às malhas estreitas do cânone, parece-nos atraente. Não é por acaso que uma enigmática obra de um português chamado Carlos de Oliveira tem este título: Finisterra. // Paisagem e Povoamento. Nessa geografia potencial da literatura portuguesa a Madeira poderia adquirir uma sua função específica, e exportar valores próprios (universais), sem cair no provincianismo.

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dos pássaros»

(JAG, No Abismo, in Esquivas são as Aves) Então aquele dilema bem insular do querer ficar e dever partir (e o seu duplo/

avesso querer partir e dever ficar, tão presente na literatura caboverdiana, entre outras), por si já marcado de existencialismo, aqui será mais do que isto, e, na negação da ideia em si de fuga além-mar («Não há nada para além do horizonte/ algures um pássaro em voo obstinado e triste»), transformar-se-á antes no desafio de abraçar uma aventura desmedida cujas respostas não são previsíveis, e/ou possíveis («morríamos inocentemente/ caindo nos nossos próprios abismos, na viagem/ das perguntas sem resposta, em voo desprotegido»), ou num objectivo sem objecto. Fala por si a dialéctica entre a visão horizontal (mas de um horizonte em que o mundo poderia acabar) e vertical, num poema como este:

Eis-nos chegados à beira do abismocom as mãos descarnadas de abandono.Sabemos que devemos seguir em frenteem busca de ventos novos e de sorrisosde um tempo sem compassos mortosnem esperas

Algo prende-nos ao silêncio dos sepulcrose devora devagar todas as esperançascomo se o mundo acabasse na linha do horizonteonde ninguém aprendeu a artede ver mais além.[...](JAG, À Beira do Abismo, in Esquivas são as Aves)

E a simbologia insular abrange muitos outros domínios. A ilha é, sempre, um lugar entre os lugares, espaço físico e espaço metafórico. A ilha, também neste livro, como veremos, é um espaço limite. Um limiar. Um anseio, uma busca, uma terra móvel. Tal qual a ilha «vista» pelo escritor e (pseudo)geógrafo arabe Ibn Wasíf Sah:

Há no Oceano uma ilha visível desde longe no mar; quando alguém quer aproximar-se, ela afasta-se e esconde-se, mas se esse alguém volta ao ponto de partida, de novo, pode vê-la.

(Ibn Wasíf Sah, in Compêndio das Maravilhas)

Mas talvez valha a pena percorrer de maneira linear alguns dos lugares desta paisagem jaguiana que, na verdade, vivem, na textura do poemário, em intersecções.

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Para o fazer não resisto a citar um poema dum outro livro do autor, mas tão próximo deste em tempo e emoção, e que foi, aliás, o primeiro que me aconteceu ler:

[...]2

Nas encostas da montanha o declivearrasta as aves para o voo nos abismose nada mais lhes resta senão a atracçãopelo vácuo dos ventos no branco das paredes.

3

É a paisagem quem traça a memóriae exerce o poder que das raízes emanapresa à luz descendo de todos os horizontesa rasar a terra onde afinal tudo acontece.

(JAG, A Vida in Memórias da casa de pedra)

autêntica síntese de alguns dos temas mais caros ao José António: a encosta (da montanha), as aves, o voo no abismo, a atracção pelo vácuo (meta da poesia?), a persitência da cor branca (no fundo outra ideia-limite), as paredes brancas. A paisagem que traça a sua própria memória. A paisagem como memória.

IV. Seres habitando a paisagem-memória.

IV.I La Pesanteur et la Grâce (Simone Weil, in memoriam)

«No princípio era a Ilha», diz um outro poeta madeirense, José Tolentino Mendonça, no primeiro poema do seu primeiro livro, editado na Madeira, numa linguagem evidentemente bíblica. A Ilha é certamente um dos centros sinergéticos da poesia jaguiana. A Ilha do não-tempo. A Ilha e a Montanha. A Ilha-Montanha que a Madeira é. No centro há sempre uma montanha, com a sua carga simbólica, tanto na tradição oriental como na nossa judaico-cristã. As raízes, a sua componente telúrica, os penedos, a sua vertigem de absoluto. O seu contacto com o divino. Mais um limiar, mais uma fronteira que se há-de ultrapassar. Quem conheça os picos da Madeira, e os nevoeiros que se agregam em volta deles, deixando geralmente o penedo descoberto, sabe como este símbolo ali se materializa. Mas a Ilha de JAG é também a Ilha daquela geografia humana de que falámos: «Tenho uma ilha dilacerada nas mãos/ disfeita em bocados de terra quente e viva/ explodindo o seu verde pelos meus dedos.// Cheira a suor nos gestos dos velhos/[...]». Espaço-limite incrivelmente aberto e ao mesmo tempo fechado, em que a solidão é a contrapartida do convívio, o silêncio a contrapartida da palavra, o desconhecido do abismo a contrapartida da solidez da montanha:

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É então que os homens ateiam silênciosfecham-se nos abismos das montanhase calam-se no vozeirão inesperadodas suas entranhas.

(JAG, A Voz é um espírito Alado, in Esquivas são as Aves)

a montanha, o abismo, o silêncio, estão intimamente ligados. A dilaceração leve desta dicotomia lemo-la em Dias Sebastiânicos, outra síntese de vários leit-motiv jaguianos, cujo incipit também tem um sabor bíblico: poema quase perfeitamente dividido em duas partes em contraste/diálogo, uma caraterizada por um tempo cíclico vivido por plantas e árvores, chuvadas e ventos, em que «a música comovida dos pássaros» também reaparece; e a outra parte, da distância, marcada pelo tempo implacável da passagem, pela impossibilidade do reencontro ou do regresso (eterno e cíclico regresso) dos fantasmas, em que as perguntas sem resposta mais uma vez lançam «nas encostas das montanhas um sereno cortante de cemitérios». Um poema em que ainda nos deparamos com a contradição e a cumplicidade entre leveza e solidez. E com um elemento novo, implícito no primeiro verso («Nesses dias escrevia...»), que se liga a uma rede de significados que compreende a leveza, o volátil, o pássaro-pluma, a criança: o passado, a infância, talvez uma infância mítica ou imaginada, um tempo não necessariamente real mas ao qual, afirmando-o como passado perdido, se confere uma possibilidade de existência. A convocação da infância no presente (tema de outros livros de José António: já em É madrugada e Sinto: «[...] trago sabor amargo/ nos meus dedos. quem mos devolve iguais aos da minha/ infância? Quem mos torna pequenos? [...]», ou nos poemas editados em Ilha2: «Aprendi a suportar a criança/ dos dias antigos [...]») liga-se, creio, a uma visão auroral das coisas, que nos remete outra vez para vários limiares, para um tempo cíclico, para uma visão edénica: «Havia um dia dedicado a todos os pássaros [...] Habitavam-no poucas aves, solstícios e tempestades, árevores, ninhos e pequenas paisagens». O tema auroral é aliás convocado também nos vários textos que nos colocam na passagem da noite (momento imóvel da angústia, lugar romanticamente próprio do desconhecido, ou das interrogações irracionais) que entra na madrugada, no dia: «As aves conquistam as fronteiras das manhãs/ no recôndito de todos os pensamentos». Na noite, quando tudo dorme, se realiza também uma pudica contemplação do desastre, na imobilidade humana e na esperança duma chuva salvífica:

Ninguém acordamas há um alarme de incêndiona cidade penumbrenta.Espera-se pelas chuvasno silenciar das invernias [...]

(JAG, O Alarme, in Esquivas são as Aves)

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Contemplação da angústia, sina comum de solidão que os homens partilham («E perguntamos: porque voam algúns pássaros/ sozinhos?[...]»), é a da ave esquiva do primeiro poema, ave desprovida de memória, do homem-pássaro fechado no abismo da montanha, mas ainda em busca. Em Atrás da Cortina, a descoberta da angústia no próprio eu-outro, dá-se no cruzamento (em idas e voltas) de outras tantas fronteiras: a noite e o pesadelo, o eu, o monstro «que por dentro/ me persegue», a cortina, a paisagem. E a salvação, única possível, é uma salvação pela palavra:

É preciso guardar as palavrase derramá-las quotidianamentena paixão encantadade todasas conversas. (JAG, Atrás da Cortina, in Esquivas são as Aves)

IV.II.

A imaginação é uma árvore. Tem as virtudes integradoras de uma árvore. É raízes e ramos. Vive entre céu e terra.

Vive na terra e no vento.

(Gaston Bachelard)

A árvore é de facto outra presença que habita a paisagem jaguiana, na sua vertente física e simbólica tão cativante. A árvore, como a montanha, é um dos símbolos que mais exemplifica o contacto da terra com o céu, o caminho (axial e vertical) da terra ao céu, do conhecido ao desconhecido, do humano ao divino. Raízes, contacto com a água e o mundo mineral, ramos, folhas, o vento nelas. E as ramos são de facto o lugar onde as aves fazem ninho, ou procuram abrigo. Com todo o que isto significa até ao nível da percepção visiva e acústica: árvores como forma visível da acção do vento, o rumor das folhas e das asas, o sopro dos pássaros na folhagem: « [...] A norte sopra o rumor dos pássaros/ fazendo ninho nas árvores. [...]». O aleatório das folhas ao vento, assim como do próprio voo. O vento, a ave, a pétala, o movimento no e pelo vazio fazem parte de uma mesma ordem de imagens/ideias. Bastará neste sentido ler aquele texto exemplar que é A Arte do Voo. E o fugaz (o momento que se alcança só se se perde), talvez seja necessariamente alheio à memória, a não ser uma memória outra: o poeta, livre como pluma, que parte para outro universo, um universo traçado por ele mesmo (inventado, isto é: descoberto e recriado. Cfr. Um Instante Apenas). Mas não é pacífica nem fácil a escolha. É prova disto a ambivalência (e até a ambiguidade) de um poema como Aguardando o Milagre, aliás excelente exemplo do uso do verso longo e de enjambement seguidos: a pedra, a cristalização de signos do passado, a confissão da fragilidade, a necessidade de respostas, a mentira da salvação, onde, todavia, o esquecimento pode não ser obrigação:

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[...]Cuidemos então da pedraonde os antepassados cristalizavam os seus avisos intemporaisou confessemos toda a nossa fragilidade: precisamos de respostas,de um pouco de espaço, de um altar específico para o devastardo amor e, na fuga, desorientados pela mentira fantásticado fenómeno salvífico e lunar, de garantir aos mortais a mensagemcrepuscular da paixão infinita. [...]

(JAG, Aguardando o Milagre, in Esquivas são as Aves)

Existe a memória? Ou será apenas um simulacro? A poesia inscreve-se, ela também, na pedra, ou no ar, no voo? Na desolação do instante sempre em perda, de esperanças perdidas e desencontros, de tudo o que se perde e não regressa, e a que no fundo consagramos a nossa existência, à sombra das árvores (outra dimensão das árvores...) resta se calhar a aventura da palavra traçada no ar, a aventura do voo («esquecendo as águas que banharam tudo quanto é dito/ na preparação de uma viagem prevista em voo de ave»).

V. Como se isto pudesse acabar.

A aventura da palavra é a aventura de uma aproximação circular, ou melhor dito de uma aproximação em espiral. Apraz-nos retomar e reter (sem que isto seja de facto possível) algumas ideias, algumas imagens, antes de deixar, por enquanto, este livro a descansar num canto da memória racional, e a viver no canto da memória emocional.

Num livro marcado pelos limiares, em que a Ilha é a constatação física e a imagem ideal duma ideia-limite, de uma fronteira que sempre se há-de ultrapassar, a própria poesia de José António Gonçalves é uma ideia-limite, um gesto extremo, inscrevendo-se neste sentido nas (tão abrangentes) poéticas da modernidade. Limite geográfico e metafísico que nem o poeta/pássaro consegue sempre transcender, na vertigem do seu desejo, e em que mesmo o voo da ave pode ser condicionado, pode ser refém das rutas dos ventos, tão qual a pluma, tocado pelo aleatório. Este limite, esta angústia (da Ilha, das paredes, da noite, do eu) é que propriamente abre o espaço, dinâmico, das perguntas sem respostas, do desejo, da poesia, sempre em questão, sempre vertiginosa: «Isto porque em literatura não existe nada tão estimável/ como a apetência pelos gestos das aves que aprenderam/ o direito à fuga [...]». E não se trata de escolher uma ou outra das (po)éticas possíveis, das razões possíveis que Esquivas são as Aves abraça ou percorre. Trata-se de abraçá-las, percorrê-las, tão só. Nós a sós com o autor. O poeta, esse «agente atento em defesa da inocência do verso/ do vácuo e do silêncio das casas e da apatia».

Lisboa, Alfama, Fevereiro de 2008.

*Universidade Nova de Lisboa

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em torno de algumas crónicas de josé antónio gonçalves7

Thierry Proença dos Santos*

José António de Freitas Gonçalves recebeu o baptismo das letras na pia jornalística e transformou-se num dos bem sucedidos ascendentes da nova geração de escritores que despontou nos anos setenta na Madeira (nomeadamente com António José Vieira de Freitas, Irene Lucília, José de Sainz-Trueva e José Agostinho Baptista) para se consagrar à arte literária e à actividade editorial. Nessa altura, dirigia a página literária «Poesia 2000» no Jornal da Madeira e lançava o projecto antológico de poesia «Ilha», materializado sucessivamente em quatro volumes (Funchal, 1975, 1979, 1991 e 1994). Foi, todavia, na comunicação social que fez carreira, iniciada aos dezassete anos. E se este autodidacta revelou ser um “caso sério” de talento, contrariando a asserção de Arthur Rimbaud – “On n’est pas sérieux quand on a dix-sept ans” – não deixou de cultivar a provocação lúdica e a curiosidade pelo Diferente, a ironia condescendente e o orgulho sensível, certo egocentrismo e jubilosa truculência, o amor pelos livros e as amizades sinceras, as tertúlias e as noitadas.

Acerca do jornalista, observa Maria Aurora Carvalho Homem: “Fui leitora incondicional dos seus textos jornalísticos. Dum jornalista que fez da profissão uma espada contra moinhos de vento, contra marés imprevisíveis, contra mediocridades e malquerenças”8. Paralelamente às actividades jornalísticas, José António desdobrou-se em vários ofícios da escrita e da dinamização cultural: poeta, cronista, ghostwriter de discursos políticos, ficcionista, ensaísta, antologiador, editor, guionista, letrista, cantor, agente cultural, dirigente desportivo… Jag, como se tornou carinhosamente conhecido, era homem dos mil ofícios da palavra e da folha impressa, um autêntico “jornaleiro das letras”, polígrafo, formal no modo de se apresentar, informal no trato… Era, por isso, uma referência regional, o que não impediu obviamente que textos seus tivessem eco a nível nacional. A sua afinidade com personalidades do Governo da Madeira e o seu modo próprio de promover a acção cultural colocaram-no no centro de algumas polémicas que, vistas à distância, parecerão tempestades num copo de água. Uma das suas maiores qualidades, dirão alguns, terá sido também um dos seus maiores defeitos: o excesso de voluntarismo. Talvez seja a palavra “excesso”, como já averbou Viale Moutinho, que melhor define esse ser na sua ânsia de difundir versos, prosa, vozes, textos e livros – da ilha para o mundo e do mundo para a ilha.

Quando foi dada a José António a oportunidade de reunir algumas crónicas suas num opúsculo, a escrita desse género jornalístico ensaiava novas configurações na ilha: libertava-se do academismo conservador (o beletrismo) e passava a acompanhar

7 Agradecemos a Marco Gonçalves ter-nos facultado algumas das crónicas citadas neste trabalho.8 Maria Aurora Carvalho Homem, “«20 textos para falar de mim» - Breve olhar sobre o novo livro de José

António Gonçalves”, in Discurs(ilha)ndo, Funchal, editorial Calcamar 1999, p. 45

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a modernidade de um estilo corrido e nervoso. Entre 1950 e 1970, a crónica surge na imprensa madeirense com maior liberdade e originalidade, tanto a nível formal como a nível do conteúdo. A predominância da frase lapidar e espontânea, em texto que tem por trama repetições retóricas, paralelismos e inserção de diálogos, serve para representar o ritmo próprio da fala. Nisso não difere da crónica que se fazia lá fora. Em Verso e Prosa de Novecentos, Ernesto Rodrigues9 observa:

Nesta por vezes indiferenciação entre escrita e fala, a crónica institui a sua matéria-prima; é menos opinião que subjectividade; refaz em cada novo título (nunca despiciendo, aliás) as fronteiras do leitor; e, sempre, numa discreta elevação, onde fuzilam achados sintagmáticos que nos irmanam em euforia.

Além da actualização do estilo, a dimensão da crónica é também revista. Os jornalistas e escritores insulares da segunda metade do séc. XX confrontam-se com este exercício de economia de meios que é a crónica breve, porque oferece outra via para aceder ao conhecimento do outro e de si, atingindo com imediata pertinência, a atenção do leitor, do ouvinte. Registo de um tempo e de um lugar, a crónica continuou a reflectir (sobre) a idiossincrasia e quadros insulares, tais como a historiografia e as paisagens da ilha, o isolamento, a indiferença do Poder central, a pobreza, o analfabetismo, a armadilha da sensualidade, a imitação provinciana, a atracção por tudo o que vem de fora e o atraso com que chegavam as modas e as notícias, o culto da tradição e os novos usos que desvirtuam os chamados bons costumes.

Os anos sessenta-setenta vão, aliás, constituir um período de grande produção cronística, nomeadamente através do Jornal da Madeira (alcunhado então “o Jornal dos Padres”10), revelando certa esperança num espaço mais alargado de ideias e na abertura de espírito por parte do Regime então vigente. Mantém-se na imprensa regional a crónica de registo etnográfico ou histórico (M. F. Pio…), a crónica de memórias insulares (Horácio Bento de Gouveia…) e a crónica de crítica dos costumes (Pe. Alfredo Vieira de Freitas…). Prossegue a crónica humorística (Re-nhau-nhau, César João Nunes…), insinua-se a crónica como registo do quotidiano (Luís Jardim…) e a crónica de intervenção social, num anseio de liberdade e de consciência crítica (Comércio do Funchal, na sua fase dita cor-de-rosa). Perfila-se a crónica fragmentada com inserção de diálogos de terceiros em ambientes cosmopolitas, por contaminação ficcional (João Carlos Abreu…). E desponta, singularmente, a crónica-poema-em-prosa de José António Gonçalves, na rubrica “Réstia de qualquer coisa”, de que o autor fará

9 Ernesto Rodrigues, Verso e Prosa de Novecentos, Instituto Piaget, 2000, p. 275. (Col. “Teoria das Artes e Literatura”)

10 V. José Carvalho, “Jornal da Madeira”, em Tribuna da Madeira, 13-X-2006, p. 4: “O Jornal da Madeira é o segundo mais antigo órgão de informação da Região, também conhecido na minha juventude como: “Jornal dos Padres”. / Defendia então e com toda a legitimidade a doutrina da igreja e os interesses da diocese, a quem pertencia. / Era um jornal digno, pois defendia aquela doutrina que mais grata era ao povo e, legitimamente, porque o afirmava sem eufemismos e, também, defendia os interesses dos proprietários. Sinal da vivência de então era que, embora lido ou não lido, era assinado igualmente por quase todos os assinantes do Diário de Notícias [da Madeira] e até, nalgumas casas, era o único que tinha a honra de informar”.

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uma selecção para dar origem à plaquette epónima, em 1973. Numa entrevista11, o autor conta-nos como foi:

Nesse tempo (anos que antecederam o 25 de Abril) eu tinha várias secções no matutino onde trabalhava, incluindo a “Réstia de Qualquer Coisa”, a qual me foi suspensa então pelos Serviços de Censura que apenas actuavam a posteriori, com a desculpa de que o seu conteúdo poético e metafórico não era compreendido pelos leitores. O meu director era D. Maurílio de Gouveia (actual Arcebispo de Évora) e, com o seu apoio, reuni dezoito das crónicas em livro, com o mesmo título e publiquei-o em 1973. Uma dessas crónicas foi escolhida por Fernando Venâncio e seleccionada como uma das cem melhores para o volume Crónica Jornalística - Séc. XX, edição do “Círculo de Leitores”, 2004. Eu ainda nem tinha vinte anos quando o livro saiu a público, mas ninguém me incomodou. Ofereci um exemplar autografado aos senhores do “lápis azul” para ver a reacção, mas não houve nenhuma. (…). A liberdade que nos faltava politicamente, habitava o tabernáculo da palavra metafórica. A literatura, sobretudo a poesia, parecia um espaço de fuga (…).

Essa “réstia de qualquer coisa” – outro modo de evocar “a espuma dos dias” –, configura-se como espaço de liberdade, com um estilo surpreendente, que capta e transmite os sentimentos ambientes. Ao tirar partido de uma expressão original, limpa de qualquer mimetismo estilístico, combina o lugar de origem (a Madeira) com as ansiedades do momento, da sua juventude, das expectativas observadas na comunidade insular. Regista o gesto circunstancial do quotidiano e acrescenta, aqui e ali, fortes doses de crítica e de poesia. Com desenvoltura e emoção, Jag vai proporcionar ao leitor uma visão mais abrangente que mostra, a partir dos ângulos que a linguagem metafórica favorece, o sinal de vida que diariamente se desprende dos seres e das coisas. Assim inscreve, nos seus textos, l’air du temps. A concepção da capa e do opúsculo, materializada com meios modestos, revela também este espírito subversivo e inconformado que preside ao acto criativo:

11 “Entrevista de Março de 2004, sob o tema A Liberdade” por José Alexandre Ramos, texto colhido na Internet.

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O grafismo da capa da autoria de Jag assenta no efeito do contraste: preto no branco12. A mancha gráfica do título sugere um rectângulo em mise en abyme relativamente à área da própria capa. Repetido três vezes, ele ocupa o espaço de três linhas, consagrando um ritmo ternário. Apresenta, por assim dizer, palavras partidas a meio, que não respeitam a translineação normalizada. Tal processo causa estranheza, porque rejeita a convenção: é como se o autor procurasse adensar um enigma ou confundir a leitura do título, desafiando a capacidade de decifração do leitor. Somente os substantivos ficam intactos, “réstia” e “coisa”, a sugerir o rasto de uma vida banal, a luminosidade e a insignificância das coisas, que a arte poética resgata.

A consciência profunda que Jag tem da linguagem, da sua função, da sua plástica e da sua capacidade para transportar – ou não – conteúdos, revela-se no texto de apresentação dessa sua primeira brochura:

a minha linguagem é simples, quero prevenir-vos que não sei outra, às vezes não quero dizer nada. outras quero dizer muita coisa, outras ainda, tantas e tantas coisas que, até muito me custa não atrofiar-me. muito me custa não ultrapassar aquilo que queria dizer. que quero dizer. ou resumir tudo isso à brancura da imaginação. mas talvez essas situações sejam motivadas pela minha educação, pela minha idade ou pelo meu tempo. (in Réstia de alguma coisa, Funchal, 1973, p. 7)

É da tensão entre o imediato, base do texto cronístico, e o ideal de “actualidades eternas”, de que falava Max Jacob, que nasce este opúsculo. Não será por isso de estranhar que, ao reunir dezoito textos publicados no Jornal da Madeira, lhes tenha apagado a data, desvinculando-os da contingência do calendário e do discurso da imprensa: sublinha-lhes antes o carácter literário inscrito na atemporalidade. A titulação13 destas crónicas não se coaduna, aliás, com a pragmática do texto de imprensa. Corresponde antes ao encadeamento anafórico habitual no título literário, em especial no da poesia, que consiste na retoma de uma palavra/expressão-chave do texto: o início, um leitmotiv ou a palavra do fim.

Estes textos fundem o trivial no lirismo, o quotidiano na transfiguração, o material no espiritual, o momento no impulso de vida que flui. Neles se inscrevem as retóricas do fantástico, da loucura e do extravasamento. Desenvolvem-se numa linguagem, estruturada no recurso da anáfora e da elipse, pouco ornamentada mas cheia de imagens que sobrepõe os diversos planos da realidade humana (o uno e o

12 O título está em letra maiúscula e em negrito; o nome do autor, o lugar e o ano de edição aparecem em rodapé e em minúscula: “josé antónio de freitas gonçalves / Madeira . 1973”. Além disso, Toda a titulação, a do opúsculo e a dos textos, é feita uniformemente com maiúsculas, ao passo que o texto só usa a maiúscula em início de frase, negando a distinção semântica ou social no uso das palavras.

13 Regra geral, o título assina e designa o texto na sua unicidade. Trata-se de um texto a propósito de outro texto que tende a uma relação metatextual. O título só adquire a sua plena significação uma vez terminada a leitura do texto. A titulação dos textos de Jag pode resultar de uma técnica produtora de ficcionalidade, a exemplo de “com asas negras”; pode corresponder a um signo vazio que ganha sentido após leitura do texto mediante um processo de ficção ou de fingimento, como acontece com “porque é tempo”; pode, ainda, visar um efeito de logro (“podia ser uma hora qualquer”) ou um efeito de conivência cultural (“deixa passar…”).

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diverso, o normal e a fantasia, a imanência e o espiritual). Esse modo de expressão torna-se o lugar da interrogação do real, questionando-o e inscrevendo assim tanto a mudança do seu tempo como as mudanças que importa fazer. Na contracapa, lê-se a seguinte advertência, em jeito de manifesto que norteará a acção cultural (e coerente posicionamento ideológico) que promoveu ao longo da vida:

«E o perigo é não nos sabermos unificar em vez de apenas nos distinguirmos neste rincão tão minúsculo como o nosso, neste mundo tão pequeno como o nosso».

Este cronista é, acima de tudo, poeta; não se pode então impedir que expresse os seus sonhos pessoais ou até colectivos. Abordando temas variados, estes seus primeiros textos adquirem unidade no facto de serem consideradas crónicas poéticas. Nelas, o “eu” – que se revela, narra e descreve – reflecte liricamente sobre a sua experiência, a passagem do tempo e dos seres, os momentos mais densos que vive, viveu ou gostaria de viver. Dirige-se por vezes a um “tu”, nos moldes de um discurso epistolar (“espero-te”) ou ensaia uma narrativa na terceira pessoa (“o professor”) ou esboça um retrato (“o espantalho”). Não raro, fala em nome de um “nós”, plural generalizador, colectivo, universalizante (“momento crucial”).

Estas crónicas enquadram-se dentro de um simbolismo que atinge os mais puros movimentos do coração. Neste género José António Gonçalves escreveu páginas comoventes, fazendo, delicadamente, poesia do assunto mais banal e insignificante, como já fizera Herberto Helder e como fará, mais tarde, José Agostinho Baptista. Saindo da adolescência, José António fala, preferencialmente, dos desejos profundos que são os vertiginosos temas de sempre – e por isso íntimos e coincidentes com a sua obra poética –, como o amor, a morte, a arte, a liberdade, a angústia, o sentido da vida, a injustiça social, a condição humana, a ética de uma voz crítica, a vertigem da escrita, o saber e a ignorância, o sentimento e a revolta, com um à-vontade, uma convicção e uma mestria que tanto surpreende como convence o leitor.

Nestes textos, o universo de referências começa por ser, significativamente, como já sublinhou António Fournier, a Beat generation14: os Moody-blues, os Beatles, Bob Dylan, Joan Baez e Donovan; cabem nele também, embora não comungasse do mesmo ideário sociológico, a música de intervenção portuguesa, com Zeca Afonso, Adriano Correia, José Mário Branco ou Manuel Freire; romancistas como Henri Troyat, Stendhal ou Gorki, e, curiosamente, os poetas Herberto Helder e Aimé Césaire. Sem nunca renegar as primeiras, o seu universo abarcará várias constelações e criará espaço para outras estrelas: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, “José Agostinho Baptista, Sophia, Albano Martins, Ana Teresa Pereira, misturados com uns Keats, Whitman, Eliott, Neruda, Lorca”, “Vinícius de Moraes, Octávio Paz, António

14 António Fournier, “O ornitólogo nocturno”, in José António Gonçalves, A Arte do Voo, Antologia Poética, António Fournier (org.), V. N. de Gaia, Editora Ausência, 2005, p. 165.

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Ramos Rosa, (…), João Rui de Sousa, Natália Correia, David Mourão-Ferreira”15, entre outros.

Consoante o contexto e a evolução dos gostos dos leitores, o cronista, sem nunca perder a sua identidade, foi-se adaptando às novas funções, cargos e solicitações que abraçou ao longo da carreira e da História recente do país e da ilha. Se a poesia tinha espaço na imprensa em contexto de regime ditatorial, enquanto modo de aceder ao espírito de liberdade, ou nos tempos de renovação como o 25 de Abril e a conquista da Autonomia, enquanto modo de os celebrar, certo é que a linguagem poética foi, gradualmente, afastada das folhas dos periódicos para grande público16 e relegada para os livros e as revistas da especialidade na década de oitenta. Essa mudança de paradigma na comunicação social nunca demoveu o poeta e o agitador de consciência na sua militância incansável pela defesa da poesia. Todavia, José António Gonçalves abandona a crónica-poema-em-prosa, disciplina o tom de protesto e conforma-se à crónica mais contida e costumada na estrutura formal e funcional, quer na imprensa da ilha e do continente (com, por vezes, apoio de imagens fotográficas17), quer nas rádios locais (Rádio Girão ou RDP…).

Na crónica literária, a relação que Jag tem com os livros e seus autores sobre os quais escreve é, do nosso ponto de vista, mais afectiva do que analítica, embora as suas leituras fossem substancialmente pertinentes e informadas. É acima de tudo um agente mobilizador da causa literária que dificilmente se assume em crítico da obra alheia: se o livro não convence, elogiará o autor no seu esforço de colaborar na vida cultural; se não hostiliza nenhum dos autores, falará preferencialmente daqueles de quem aprecia a voz e o veio discursivo, daqueles que têm um valor artístico original.

De quando em vez, ensaia a crónica memorialística ou de divagação lírica e sentimental, como ilustra a abertura da crónica “Férias, celebro-as por dentro do coração”:

As minhas férias, celebro-as por dentro do coração. Em qualquer lugar. Levo comigo a sede de me encontrar com os lugares imprecisos do mundo, como se mais além, na curva da estrada, morasse o destino ideal e por ele tivesse esperado, em o conhecer, toda a vida. (in Diário de Notícias, Lisboa, 22-VII-2004, p. 28)

Sobressai deste excerto uma filosofia de vida que aponta para o desprendimento material, sublinhando a importância do estado de espírito para se adaptar a qualquer situação ou lugar. Neste sentido, o ideal depende sempre do modo como se encara (com) o real.

Contrariando a assunção de que a actividade política não é compatível com o exercício efectivo do jornalismo, José António de Freitas usa a liberdade do cronista

15 Autores citados em várias crónicas por nós consultadas.16 Na década de oitenta, as “páginas literárias” perderam espaço na imprensa madeirense. Nalguns

periódicos, foram supridas, a partir da década de noventa, pelo “suplemento cultural”. 17 As fotos que acompanham algumas matérias jornalísticas ou crónicas documentam sobretudo a

consideração ou a amizade que Jag sentia pelas pessoas retratadas e/ou entrevistadas por ele. São, quase sempre, individualidades que o jornalista prezava muito.

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(que imprime ao seu texto uma visão claramente pessoal, assumida e assinada) para fazer por vezes incursões pelo comentário doutrinário: são textos de intervenção que procuram convencer e agir sobre a inteligência do leitor no sentido de mobilizá-lo, na tradição da imprensa romântica do séc. XIX, em prol do bom senso, do bem comum, de uma causa ou da corrente política em que o autor se revê. Por exemplo, lê-se na crónica “Que fazer da apatia?”18:

Mas quem são as presas da apatia? § São aqueles que julgam que os deveres existem apenas para os outros, reivindicando caber-lhes somente os direitos. São os que se apartam do conteúdo, preferindo o rótulo. São os que se contentam com as migalhas porque se sentem impotentes por combater pelo pão inteiro. (…). § Mas não! Uma sociedade de homens livres deve ser, sim, composta por indivíduos conscientes das suas responsabilidades; voluntariosos prestáveis, na defesa do bem comum; firmes e resolutos no denunciar e actuar contras as injustiças; generosos e humildes na fraternidade e na solidariedade; honestos e dedicados às causas legítimas, sempre prontos a servir, mais do que a se servir. São os cidadãos que neutralizam o efeito da apatia – esse vírus negativo que consome e destrói a felicidade e o bem-estar – no seio de qualquer comunidade, seja na Madeira, seja na Cochinchina. § Por isso mesmo somos contra, somos contra os que usam e abusam da apatia. Somos contra a apatia.

Contrariamente à escrita mais contundente de Ricardo França Jardim19 ou de Carlos Nogueira Fino20, as suas crónicas de crítica social e política defendem a obra e a personalidade de Alberto João Jardim, Presidente do Governo Regional. Além disso, exaltam um regionalismo convicto, ironizam certas ilusões líricas em prol do vigente modelo político e social que considera eficaz, dão uma imagem negativa das sociedades de inspiração comunista, sustentam os valores do humanismo cristão, denunciam os desmandos da comunicação social. A este respeito, escreve acerca de “A liberdade de Informação”:

A Madeira precisa do contributo transparente e sincero de todos os cidadãos para atingir o seu desiderato de progresso e de justiça social. Uma informação livre, isenta e pluralista, assente em pilares de responsabilidade, constituirá, sem dúvida, o coração de todo esse processo. Façamos a pedagogia da Verdade, da Inteligência, do Amor. E estaremos a um passo da Liberdade. Merecendo – então sim – o futuro de bem-estar que está prometido ao povo desta terra. (folha solta manuscrita com data de 25-XI-1989)

18 Texto que pertence a uma série de textos que têm por mote “Crónica contra…”, a exemplo de “crónica contra todos os muros” ou “Crónica contra a violência no desporto”, publicados no Correio da Madeira, em 1989. Não foi possível consultar o texto impresso: reproduz-se o excerto a partir do manuscrito do escritor facultado pelo filho, Marco Gonçalves.

19 Ver, por exemplo, “O Cônsul Honorário”, in Tristes ilhas e outras conversas…, Coimbra, Quarteto, 2002. (Col. “Acasos”)

20 Ver Crónicas da Madeira Nova, Funchal, O Liberal, 2004.

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Assim defende o autor a partilha do conhecimento, incentivando o Madeirense a aderir à comunhão de valores, de forças de vontade e de projectos que a todos beneficie.

Quer parecer-nos que alguns dos temas mais recorrentes na sua cronística poderão ser aqueles que passamos a enunciar: a consciência social, a insularidade e a Autonomia, a injustiça e a liberdade, a amizade e a fraternidade, por último, as memórias.

Alguns textos de José António revelam o homem revoltado contra a situação de miséria crónica a que esteve votada parte da população madeirense, resultando do trabalho precário, dos baixos salários, da indigência e da injustiça social, empurrando milhares de famílias para os caminhos da emigração. A sua consciência sociopolítica transparece, por exemplo, na crónica “Devia ser Maio”21:

Hoje ainda devia ser Maio. (…). As caras seriam coloridas como os vermelhos dos ocasos. As escolas, sinónimo de fragor-exaustivo-para-exames, vestiriam cores como as dos olhos das crianças sorridentes. E os pescadores beijariam o luar fresco com os beiços húmidos de espera e paciência. Os operários realizariam a sua revolta esperançada e levariam avante os seus desejos. Não pintariam cartazes. Mostrariam sim a cesta parca do almoço e as mulheres grávidas e doentes. Os róis enormes de dívidas amontoados. E as pupilas inchadas e remelentas. Deitariam fora os lenços rotos e os recibos dos fracos ordenados. (in Réstia de qualquer coisa, p. 19)

Construídas sob a voz do condicional, estas imagens apelam, efectivamente, para uma outra sociedade que não aquela em que então se evoluía.

Ciente do condicionalismo geográfico, o autor não se conformará com o seu “fado” de ilhéu. Lutará, pois, contra as limitações física e mentais que o ambiente insular podia suscitar. Além do mais, com o advento da Autonomia, a região via engrandecida a imagem que tinha de si própria, traduzindo-se nas consciências individuais uma “ânsia de renovação” de que fala Giampaolo Tonini22 a respeito da poesia de José António. Veja-se, neste sentido, a abertura da crónica “Deixa passar”23:

De manhã cedo um madeirense levanta-se, desdobra o coração, abre os braços, fecha as pálpebras e respira autonomia. Esta rebenta-lhe com os pulmões e estilhaça-lhe os poros. Irradiando alegria pelas chispas ofuscantes que os seus olhos ensonados deixam cair pelo caminho, os seus filhos são abençoados pelo calmo e automático

21 Republicada em Crónica Jornalística, Século XX – Antologia, Fernando Venâncio (org.), Círculo de Leitores, 2004, pp.185-186.

22 A expressão original é: “la sua ansia di rinnovamento”. Ver Giampaolo Tonini, “Contributo allo studio della storia letteraria di Madeira: cultura, società e sentimento dell’insulartà nella poesia e nella narrativa degli ultimi vent’anni”, in Rosa dos Ventos, Atti del Convegno Trenta anni di culture di língua portoghese a Padova e a Venezia, a cura di Sílvio Castro e Manuel G. Simões, Università di Padova, pubblicazioni della sezione di portoghese dell’Istituto di lingue e letterature romanze, 7, 1994, p. 172.

23 Republicada em Crónica Madeirense (1900-2006), org. Fernando Figueiredo, Leonor Martins Coelho, Thierry Proença dos Santos, Porto, Campo das Letras, 2007.

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gesto que lhes traça um sinal da cruz na testa, e ele, feliz, a todos distribui um pouco da sua carne e do seu sangue. Em ambos se nota o sinal esfuziante da prosperidade e da bonança. Após se instalarem, de modo eficaz, nos seus estômagos bem tratados, eles explodem numa festa de emoção, vibrando por toda a casa solarenga e enorme os gritos de sã euforia: a autonomia faz, uma vez mais, parte dos seus corpos retalhados. (in A Semana, n.º 3, Lisboa, de 25-XI a 1-XII-1976)

Militante da palavra poética, da Autonomia e da convergência sociopolítica, Jag descreve um estilhaçar de uma situação disfórica para (con)formar uma nova era alicerçada na “prosperidade” e na “bonança”, que a imagem (quase) subliminar de um Cristo redentor no texto sugere. Nesta crónica revela uma consciência plural, quase histórica, marcada por um forte sentimento de partilha e de fraternidade, que traduz, assim, a vida, as impressões e os sentimentos desse homem insular anónimo com um passado de sofrimento e de penúria, do qual se deverá libertar para se afirmar como um homem novo.

Além disso, se Jag denuncia as falsas amizades é para melhor exaltar a amizade genuína, fundeada na solidariedade e na lealdade, a exemplo do seguinte excerto da crónica “podia ser uma hora qualquer”:

Tinha comigo poesia porque é ela quem melhor me acompanha. E pensei nos amigos amigos. Naqueles amigos que vêm até mim. Naqueles que não estão à espera que eu os vá procurar aos cafés. Pensei nos amigos e lembrei-me de tanta coisa, até deste aborrecimento de estar aqui. Neste cárcere. Nesta prisão da vida. Pensei nos amigos e andei à procura de palavras novas. (in Réstia de qualquer coisa, p. 39)

Com efeito, a amizade é um sentimento nobre que inspira o cronista. No texto “A amizade, a noite, a natureza”, publicado no semanário Areópago, escreve num rasgo de sabor bentiano:

O homem, na sua racionalidade, busca a companhia do seu semelhante para realizar-se no plano do seu cognitivo; ao contrário do que muitas vezes cita a literatura romântica, o seu ideal não é a solidão, mas antes o convívio, o compartilhar de alegrias e de tristezas, de sucessos e de derrotas. A sua natureza é a integração em grupo, a subdivisão de apetências, o anunciar e o congregar de experiências; na sua síntese psicológica, tudo acaba por resultar no cimento da amizade, a qual se compraz num melhor conhecimento mútuo e no fortalecimento de laços que se prolongam para além da própria vida, envolvendo familiares e outras bases sociais. (in Areópago, Funchal, 25 a 31-X-2003, p. 5)

Assim é natural que a escrita de Jag, como observou Giampaolo Tonini a respeito da sua obra poética, veicule o “sonho de fraternidade”24, uma fraternidade que encerra os princípios de altruísmo e de pertença à comunidade de origem, mas que também acolhe o Diferente e se relaciona com o Diverso.

24 A expressão original é: “el suo sogno di fratellanza”. Ver Giampaolo Tonini, “Contributo allo studio della storia letteraria di Madeira: cultura, società e sentimento dell’insularità nella poesia e nella narrativa degli ultimi vent’anni”, op. cit., p. 172.

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Finalmente, as memórias que Jag enuncia tendem a explorar o seu mundo dos afectos: a “casa-infância” (como diria Helder), o grupo juvenil ligado à Juventude Operária Católica, livros e autores, os entes queridos e os amigos do peito, viagens ao estrangeiro e passeios na sua “casa-ilha”. Alguns dos seus textos são reflexo de uma memória que lhe é grata, mas que se opõe ao presente, marcado já por uma experiência de vida que conhece a mágoa e a desilusão. Por isso, o tom dessas evocações tem quase sempre algo de agridoce. Na crónica “Para uma recordação”, já se podia ler:

Creio bem que aqueles dias foram dos tais que jamais voltam. Ou voltam, quando a madrugada abriga desenvolta, na sua humidade, os cartazes do amor. Ou quando as andorinhas deixam, libertas, a sua viuvez, para se cobrirem de branco, trocando beijos e murmúrios silenciosamente, comungando os mesmos gestos, o mesmo voo, partilhando do mesmo ar, do mesmo vento, da mesma serena coragem de atravessar os céus peremptoriamente, em repentes de ternura, em rasgos aflitos e vibrantes, como golpes de sabre em tempos de batalha. (in Réstia de qualquer coisa, p. 37)

Note-se as imagens admiráveis, associadas à ideia de partilha e de destino comum, que a repetição do adjectivo “mesmo” denota.

* * *

Ao intervir na sua época, ao dirigir-se ao Outro, Jag corresponde ao cronista que se inclui na massa de homens que assumem a sua participação no quotidiano do “seu” mundo, podendo, através da escrita, contribuir na construção do futuro.

As crónicas de José António Gonçalves são, portanto, o testemunho escrito de uma vivência consciencializada e de um dizer – muitas vezes poético – sobre as coisas em volta que revela, por um lado, com alguma nitidez e transparência, o seu trabalho de escrita e a sua postura intelectual; por outro, capta as palavras e os gestos soltos para os projectar em quadros vivos. São telas que moldam múltiplas configurações, que reverberam o olhar que um madeirense tem do mundo e do seu microcosmo insular: nelas se conta e se comenta a aparente superficialidade quotidiana, nelas se revisitam lugares de um tempo reconstruído, nelas se pretende aperfeiçoar um modelo de sociedade alicerçado nos valores que José António defende, um modelo em que o colectivo, na sua essência e na sua força mobilizadora, marque presença no presente para ter lugar no futuro. Parece ser este o sentido das palavras quando escreve:

E enquanto formos seremos alguma coisa.in Réstia de qualquer coisa

*Universidade da Madeira

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À espera dos deuses… se calhar dos homens

Alessandro Granata Seixas de Sousa*

Falar de José António Gonçalves não é nada fácil para quem, como eu, não o conheceu pessoalmente, e para mais vir traçar-lhe um perfil justamente em sua casa, na sua ilha natal. Antiga polémica dir-se-me-á, a de poder ou não ajuizar a obra a partir da vida. Octavio Paz dizia-nos a respeito do poetas dos heterónimos que a biografia de um autor são as suas obras, ao passo que Oscar Wilde assegura-nos que o objectivo é fazer da nossa vida uma obra de arte. A vida de JAG é o manifesto mais evidente da sua ars poética: antes mesmo e aquém do texto. Todos os que o conheceram confirmam com quanta dedicação e amor desenvolvia a sua espontânea e omnipresente força motriz de eventos culturais na sua amada ilha, desde novas edições pessoais às de novos autores, desde a sua actividade de divulgação como jornalista à de organizador de eventos como fundador da associação de escritores da Madeira. Quanta e qual fosse a sua paixão e alegria vital é patente nas infinitas páginas que prescrutam cantos, luzes e cores da ilha. Das pedras das antigas casas rurais às vísceras do mundo. A sua veia poética alimentou-se muitas, muitíssimas vezes na existente e essencial poética das coisas.

JAG foi um daqueles poetas que fez da sua vida uma guerra de posição. Do seu canto de observação privilegiado. Do seu gabinete bunker animou com energia a inteira vida cultural da ilha ocupando-se não só dos aspectos mais evidentes da organização de materiais, a começar das suas crónicas como jornalista, mas também e sobretudo a parte invisível e subterrânea do trabalho, os contactos com os autores, com os amigos, num subtil e contínuo fil rouge de projectação, para dar asas ao sonho de criar e religar um imaginário madeirense a um desígnio de mais vastas proporções.

JAG é um daqueles poetas para os quem a poesia é fortemente vinculada à materialidade e à fisicidade do seu mundo. Por conseguinte ao ambiente circundante quer seja doméstico, citadino ou rústico. A sua poesia oscila entre realidades urbanas que emergem das névoas atlânticas como frescos progressivamente preenchidos com cores, outras vezes volúveis como acordes de jazz, e a primitiva materialidade do mundo arcaico e rural da ilha, tudo permeado por um profundo tropicalismo patinado com toques e mimos experimentais que vão do bee boop às notas de “Juca no Jazz Clube”.

Circunscrever a arte de JAG a um ou mais géneros não é tarefa fácil. É a todos os títulos um pós-moderno, mas também em muitos aspectos um antigo. Um ânimo antigo moderno nas formas. Certamente que a sua poética não pode ser interpretada avulsamente quer em relação ao seu contexto quer em relação ao homem que a produziu. Porque justamente o ser cantor da materialidade o conduz a estar muito perto dos cenários que o circundam. Mas, simultaneamente os tópicos por ele perseguidos se alargam a valores mais universais. Da observação-lembrança de um enxoval bordado

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à mão passa-se a um plano abstracto universal, digno de Os Trabalhos e os Dias de um Hesíodo. Aquela pitada de transgressivo continuamente a ferver recorda-nos o primeiro dos malditos: Arquíloco. Um Arquíloco pós-moderno. O penúltimo dos traidores. Aquele que abandona o escudo. Para poder continuar a falar. Para fazer sobreviver o exorcismo da narração. Haverá sempre lugar para o último traidor, desde que um verso continue a reescrever a ordem do existente habitual, até que um contrabandista ultrapasse uma fronteira.

Em virtude do pouco escritor que talvez seja e do muito de escrevedor que certamente sou, confirmo a minha posição: a vida escreve a obra e a obra lê o homem. Ou pelo menos fornece uma chave de leitura privilegiada. Não existem escritores puramente de biblioteca. Parafraseando Herman Broch, o autor contrói o edifício da sua obra subtraindo os tijolos ao edifício da sua vida. Isto vale para todos mas vale sobretudo para escritores poliédricos e de vasta personalidade como é o caso de JAG. Um escritor que viveu com os nervos à flor da pele como os canários usados nas minas para revelar a presença de gás. E são os primeiros a cair mortos, como o poeta vidente, para dar a possibilidade de uma via de fuga aos mineiros. Assim o poeta. Assim JAG.

A sua escrita anda permanentemente à procura do significado profundo e conturbante do objecto pesquisado. Do objecto que novamente se revela ao olhar como se este visse aflorar imagens da impressão fotográfica revelando-se das névoas atlânticas. Procura o significado das coisas, dos objectos poéticos mas ao mesmo tempo dar a cada coisa uma sua construção, reinventando o seu significado.

Parafraseando um seu título diria antes que Esquivos são os olhares sobre a materialidade das coisas do mundo. Porque o olhar, mais do que a palavra, pode contaminar a visão enchendo-a de si e então é o objecto que deve falar, deve ser sobrevoado, visto do ponto de vista dos pássaros como numa panorâmica em movimento. E desenvolve-se num desenho rico de perspectiva e profundidade. O eu poético é mutável e versátil, movimenta-se, driblando continuamente o objecto observado para fazer com que possa ser visto a partir de várias perspectivas. Um pouco Arquíloco, um pouco Proust. Essencialmente um experimentador. Um delicado equilibrista da palavra mas não excessivamente funâmbulo. Antes inclinado à precisão e a nitidez do verso e da imagem.

Um todo salpicado de salsa atlântica (parecerá frívolo mas é assim). Essa vida saboreada lentamente, gole a gole. Sorvida lentamente, deglutida completamente, às vezes numa digestão difícil. Com a respiração entredentes e a alma aflorando os lábios. Entre as imagens, os sonhos e as arestas das veredas das pedras desconexas das calçadas por vezes íngremes, com à volta o calor dos seres e das coisas, responde o nihilismo do grande Pessoa que nos conduz aos caminhos do inepto manifestando a diferente sensibilidade do homem do segundo Novecento. Nem tudo o que faço pode estar errado, assim recita JAG em “Rimas”25. O desencanto está presente e talvez até lucidamente nostálgico, mas entrevêem-se recursos a novos expedientes, um

25 20 textos para Falar de Mim, Cadernos Ilha nº1, Funchal, 1988.

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desencanto e um despreendimento que se não nos levam a um puro formalismo ou ao cinismo, conduzem-nos seguramente a uma forma primitiva do existir.

JAG regressa com frequência à matriz atlântico-ibérica. Liga-se ao grande cenário-imaginário português. Dilui-se no grande mar oceano, é o mar que vence como nos lembra Fernão Mendes Pinto cantado por Fausto Bordalo Dias. Mas se o mar é que vence em volta da ilha, os ilhéus – não isolados – não perdem. Aprendem a arte da espera com a paciência de uma aranha. Aracnídeos prontos a desafiar os deuses na emulação das geometrias materiais e imateriais das espirais poéticas como anéis de fumo, fios que se desfiam, recortam-se e cortam como agulhas enfiadas na pele. A arte de tecer tramas e enredos.

JAG canta a terra do homem. A difícil luta de ser homens. Lembra-nos por vezes o difícil Ofício de Viver de um Pavese. A terra da ilha. A ilha amada ou ilha prisão com um muro de água à volta como que a impedir a fuga, e eis então, para além da paciência da aranha, surgir no horizonte a esperança da fuga vertical. Ascensão, sublimação ou voo.

Por vezes aparece entre as pregas das folhas, entre as linhas, um intelectual desesperado, sufocado pelo clima tropical à Henry Miller ou murado pelo céu no horizonte da sua ilha, as lembranças fecham-se como pétalas de flores exóticas ou explodem como inflorescências celestes no fim-de-ano madeirense.

A luz à Faulkner. O calor sufocante. Alterna-se às névoas, às brumas matutinas e atlânticas apagando as coisas e o homem perdido que não pode fazer outra coisa que não exercitar a primogénita função da língua. A função dominadora recriando os objectos a partir de um opaco nada. Reanimando as essências da realidade.

Transpiram dos poros do seu corpus poético as suas penas pessoais, os píncaros mas também os abismos e os infernos, os seus tiques: a memória afogada. Do calor e da névoa, surgem o isolamento, a nostalgia atlântica, a incessante obra dos dias do mar do homem e das estações. A cadência fascinante e monótona do suceder-se dos dias e das horas. Vontade de fuga, vontade de re-existência. Permanência do real e sua evanescência. Onirismo do mundo. Poucas amarras seguras.

À Espera dos Deuses. A chegar ao invés são os homens. Que chegam e que ficam no cais de embarque da nossa consciência. Esta é uma das suas últimas obras poéticas (1999) do milénio que se vai fechando. É uma antologia. Uma compilation. Mas com uma sua vontade de texto autónoma. Uma unidade significante em plena regra.

Os deuses virão ou não? Chegarão ou esperarão por nós? Finalmente nos reconfortaremos no seio da sua doce hospitalidade. Finalmente por entre os nossos caros entes, entre os nossos amigos, saudam-nos assomando a uma galeria de retratos todas os personagens que nos serviram de conforto durante a nossa vida. E ei-los que assomem às páginas de JAG, rostos e momentos particularmente simbólicos da sua vida. Os poemas aqui reunidos foram já publicadas na sua maioria em outros lugares.

Esta é uma colectânea um pouco peculiar no panorama da sua bibliografia. Os poemas são quase todos dedicados a personagens vivos ou vividos que representaram

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seguramente algo de importante no panorama cultural e no horizonte cognitivo de JAG. São como fotografias instantâneas que podemos encontrar num livro de hóspedes.

Os deuses tardam em chegar mas se calhar uma bem mais densa galeria de personagens assoma, presença humana que se debruça para as páginas dos eventos. Eis uma galeria de personagens. A moldura da composição é quase um pretexto de uma galeria de retratos-falantes, escamotage, para homenagear os presentes e as aparências todos ligados entre si por fios invisíveis: “De noite, as buganvíleas” derramam glamour sobre a carta patinada das revistas de avião, são as flores, são as luzes, são os perfumes de uma terra que frequentemente se pergunta a quem pertence, África ou Europa? Portugal ou Inglaterra? Vitoriana. Puritana. Provinciana. Debaixo da casca atlântica universal sonhadora. “Funchal, às vezes” com JAG escreve-se Funchal, Madeira e lê-se Trópico de Câncer. Quase vem à mente um Miller náufrago que nos fala de outros lugares ou un Tom Waits que reinterpreta a canção mais conhecida do Feiticeiro de Oz, um comovente Sometimes Somewhere. O tesouro por detrás do arco-íris. A esperança reproposta, cenário fantástico e sonhado envolvido nas névoas onde a consistência dos objectos e dos sinais continuamente se perde e renova. Zarco vela os sonhos dos habitantes e saúda marinheiros e turistas. “A viagem era a caravela” lembra-nos outras horas longínquas, naufrágios, e outras épocas, ecoam viagens épicas de marinharias antigas “quando às vezes ponho diante dos olhos de Mendes Pinto cantado por Fausto Bordalo Dias” como também nos lembra, sempre através do mesmo dueto autor-cantor, que “o mar leva tudo o que a vida me deu”. “É o mar quem vence”, o homem às vezes. Mas quando é o homem a vencer, quanto mais solene é o triunfo sobre os elementos. E depois da tempestade eis a bonança, prelúdio de outras tempestades: “O silêncio dos sexos”. Uma das milionésimas declinações do amor. Uma “Conversa de café” resume perfeitamente a natureza das coisas, estamos no sonho de um homem que sonha. Uma reflexão mais que lícita se o curso dos eventos não tivesse enlouquecido: “Timor podia ser apenas uma palavra”. Uma palavra escrita à máquina, harmonioso e tímido bissílabo tiquetado apenas. Mas eis assomar à galeria de personagens, quase evocado pela escansão mecânica das teclas, “Um retrato de Dórdio Guimarães”, guardião e cavaleiro do sacro recinto da arte, nauta vagamundo disperso, realizador e poeta, outra personagem poliédrica, e depois “Natália Correia” a polemista política, a batalheira, a literada, a mulher, em boa companhia com “Che Guevara”. Rosa da liberdade. E talvez uma outra revolução que nós não conhecemos. Mas que nos cantarão “Edith Piaf” e “Nina Simone”. Fecho perfeito para cantar odes “Na morte de Pablo Neruda”, o poeta que confessou ter vivido, “meu poeta sem fim” diz JAG. Da poesia regressa-se novamente à música para traçar in levare o epitáfio do grande maestro e compositor, “Na morte de Karajan”, uma breve pausa na respiração da existência. Enquanto o lugar à frente da orquestra permanece vazio à espera de outro poeta-compositor-cantor de voz agónica e estridente, “Paolo Conte” que encontra sempre as palavras que tocam as exactas melancolias do outro lado das palavras. Antes de se fazer de novo silêncio para ouvir as arquitecturas musicais de “Juca no Jazz Clube”. Assoma à cena o último araldo dos tempos antigos, “Sir Laurence Olivier”,

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para nos anunciar a fuga nas pontas dos dedos de uma “Natália Makarova” com um “Chaplin” ao fundo que disputa a Munch a outra versão metafórica deste Século Breve. Mas o seu em vez de ser um grito, é um sorriso melancólico e comovente. Em contrapartida, o “Edital para Anthony Quinn”, não é para Anthony Quinn mas sim para Zorba. O grego. Que por sua vez é a transfiguração do Homem: o Ubermensh. O homem que se ultrapassa a si próprio. O homem que toca o seu santouri e dança para saborear o vinho e o divino e amar Vénus. Os olhos semicerram-se, num bater de asas ou de ondas para abrandar na ressaca de um anticlimax e culminar in crescendo em “Ode em dois tempos para Fernando Nascimento”. E por fim “Jesus”. O espírito das coisas, amadas, talvez desvirtuadas, certamente pouco compreendidas e conhecidas. Humano demasiado humano. Talvez.

*Università di Pisa

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o canto apaixonado da ilha em josé antónio gonçalves

Ângela Varela*

Conheci o José António na altura do encontro Olhares Atlânticos, sobre poesia madeirense que teve lugar em Lisboa, na Biblioteca Nacional. Foi daí, à sua solicitação, na qualidade de organizador, que participei na Ilha 3 e mais tarde na Ilha 4, tendo-me convidado mais recentemente a participar na futura Ilha 5, que a sua súbita morte impediu de dar à luz. Lembro-me de ele ter ligado para Lisboa, a propósito desta última colectânea, e da longa e entusiasta conversa telefónica que tivemos, pouco antes do destino ter ceifado abruptamente, e antes do tempo, a sua vida tão radiosa de vivcr. Mas embora o José António fosse muito caloroso, não convivemos muito devido a várias circunstâncias, de que as principais seriam a distância geográfica, vivendo eu em Lisboa, e a falta de qualquer espécie de tertúlia que reunisse de vez em quando os poetas participantes nas Ilhas.

Assim, lembro melhor o José António através dos seus poemas publicados connosco nas duas colectãneas, que releio agora como se fosse a primeira vez.

Noto na sua escrita uma vibração apaixonada, que o leva ao canto do real e concreto mundo circundante, ao designar coisas e elementos da paisagem ilhoa, mas também de vultos literários e artísticos a que dedica todo um poema, como “No Último Suspiro de Salvador Dali” (Ilha 4), ou os nomeia sucessivamente em “Arte Mágica” (Ilha 3) e “Carpe Diem” (Ilha 4), e que transmuda, como profere em “Arte Mágica”, por “uma estranha alucinação” “hipnotizando as palavras”. Daí o predomínio de um ritmo caudaloso e do poema extenso de verso longo, se José António sabe manusear com destreza ritmos e grafismos variáveis, que nos seus extremos até oscilam entre o bloco compacto, de fôlego vertiginoso, do poema em prosa “Arte Mágica” (Ilha 3), e as estrofes breves, formando dísticos, de “Aves Estranhas Rumando a Norte” (Ilha 3), ou ainda “No Último Suspiro de Salvador Dali” (Ilha 4), onde, apesar da extensão, os versos se espaçam entre si e em trípticos numerados, como versículos. Em “Arte Mágica”, a propósito dos livros de uma biblioteca, as citações de poetas universais estabelecem elos de conexão sem quebras semânticas ou rítmicas, apesar de o autor não se socorrer da pontuação em toda a página onde o texto se distribui. Por sua vez o poema “Aves Estranhas” depura-se não só pelos espaços brancos que separam as estrofes regulares como pela construção cíclica da canção, sendo o início e o final semelhantes, à laia de estribilho, e apresenta certa transposição poética ao sugerir a identificação do voo ascendente das aves, desde a terra ao espaço cósmico das “constelações etéreas”, com o “hálito do infinito” do espírito humano.

A tendência da poesia de José António para o canto, mesmo se disseminado no verso discursivo que predomina, figura-se de forma exemplar em “Eis a Fonte” (Ilha 4),

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servido pelo refrão que dá nome ao título e lhe confere uma estrutura cíclica, colocado no início da primeira e da última estrofe, e isolado depois do final de outras duas. O refrão marca assim o ritmo que incide sobre a mítica sacralização da água da “fonte” natural ou originária, no seu curso descendente, desde a vertigem da montanha, entre “os abismos as falésias as escarpas”, até estender-se “aos pés do templo”, no “poder incorruptível” da sua imaculada “transparência”.

O poema “Carpe Diem” (Ilha 4), onde voltam as referências a génios da Literatura, ocupa toda a página em larga mancha gráfica, com versos longos e breves, e estrutura-se numa linguagem prosaica, linear, que invoca Whitman, à maneira modernista.

A “Ode ao Bar Cheirando a Rosas”, que dá nome à selecção apresentada em Ilha 4, é um texto de semelhante aspecto gráfico pela alternância de versos curtos e extensos, mas estende-se em três páginas, com a mesma linguagem discursiva, apesar da reiteração de “há um bar”/ “havia um bar”/ “o bar”, no início de cada longa estrofe em que o texto se dispõe. O género lírico da “ode”, como o poema se intitula, canto de exaltação que tende para o épico da tradição grega, é aqui bem escolhido. Entre o “passe de mágica”, ou a “visão romântica” da fantasia e a vigília noctívaga e “sonolenta” do bar até ao amanhecer, perpassa toda uma “floricultura”, além das “rosas” (“acácias vermelhas”, “um nenúfar”, “uma estrelícia”, “um sapatinho”, “manhãs de páscoa”, “os antúrios”, “mal-me-queres”, “um girassol”, o “ramo de orquídeas”, “papoulas” e “túlipas”) que devem decorar “o vaso”, “as jarras”, “álea dum canteiro”, “um copo sobre a mesa” do bar, ponto convergente, onde também se esboçam ou se evocam algumas personagens (“os jardineiros”, “as crianças”, “os vagabundos”, “os indígenas e as mulheres sofridas”, “os seres comuns”, “os infelizes”, “uma voz”, “alguém”, “os homens”). O ritmo dos versos, na sua linha sinuosa, acompanha a necessária extensão do poema através da deriva do tempo e do espaço, anímico e exterior, quer dizer, no seu decurso até ao apagar da “chama” da noite ao amanhecer, e da transmudação poética das coisas enunciadas.

Por fim fecho os livros, com a voz do poeta José António Gonçalves, no seu canto solar à ilha, mas também no murmúrio das sombras da existência, com o poder do sentimento e da arte que criam uma visão própria da modernidade, na qual os tópicos da tradição se reescrevem.

*escritora e crítica literária

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a bruxa da rocha“Foi a ‘bruxa da rocha’, foi a ‘bruxa da rocha’!”, acusava o rapaz, com dois

garrafões de vidro, cobertos a vime, nas mãos, chacoalhando-os para provar como estavam partidos. “Não fui eu. Eu disse que não queria ir por lá, o pai é que me obrigou. Foi a “bruxa da rocha”. Estou inocente!”, choramingava, enquanto o pai tirava o cinto de couro preto das calças e o vergastava sem dó nem piedade. “Foi a ‘bruxa da rocha’. Ainda estou a ouvi-la a rir-se, a rir-se como uma desalmada, quando voava por cima de mim e me empurrava para o abismo. Ela ria-se pai, como se o seu riso viesse direitinho do inferno. Foi ela, pai, foi ela!”, insistia quase sem tomar fôlego, com lágrimas grossas a lhe escorrerem pelas faces vermelhas. “Acredite-me, foi ela! Isso é tão verdade como eu estar aqui com o pai a bater-me!”, jurava, batendo incontrolavelmente com os dentes e respirando a custo, sem conseguir deixar de tremer.

A “rocha” não era um lugar qualquer. Na verdade não passava de uma pedra enorme, unindo uma vereda antiga, sendo necessário subi-la – ou descê-la – para se prosseguir jornada. Diziam os que sabiam que ali, não importava qual a estação do ano, um vento frio e seco fazia abanar persistentemente os canaviais, dobrando-os como se se tratassem de hastes indefesas de borracha espumosa. A sua folhagem soltava um murmúrio sofrido, provocando suados calafrios na espinha de quem o escutava. Poucos seriam aqueles que assumissem a coragem de usar o local como ponto de passagem, especialmente depois de o sol se pôr. Naquele pedregulho morava o medo e não se conhecia quem lhe fosse imune, desde o mais santo dos homens até ao bafejado da sorte que tivesse nascido com uma cruz de pêlo no peito. E mesmo durante o dia, apesar do amarelado das flores-azedas, do verde do silvado e do avermelhado das papoilas que cresciam por todo o lado, a paisagem não perdia o aspecto assustador oferecido pela noite, nem mesmo os sons estranhos que nela habitavam, como se viessem do centro da terra e rastejassem através dela até se apossar da alma de quem a pisasse. Era um mal, um eco de lamentos cavernosos, ressonâncias de suspiros sem princípio nem fim, cuja presença tenebrosa ia muito para além da compreensão dos simples mortais.

Porém a noite, ai a noite!, com seu rosário de sombras, com o seu poder sobre o imaginário dos crentes e supersticiosos, transfigurava-se numa porta aberta para a descoberta dos mais densos mistérios, guia maldito para os braços dos labirintos onde se acoitam os fantasmas e tomam impunes as maldades das feiticeiras e das bruxas. O breu era dono do rochedo, com lua ou sem ela, abafando os seus contornos e escondendo a trilha nele aberta por seculares viandantes, como se engolisse a sua própria memória. Era preciso tirar os olhos do chão, esquecer o espírito do caminho e fixar a distância, onde era visível a silhueta de outras coisas, como estacas de bananeiras, postes de electricidade, telhados de palheiros, o campanário da igreja, chaminés ainda fumegantes, casarios com janelas abertas e iluminadas, umas árvores quietas e vergadas pelo tempo, o risco do horizonte do mar, com as luzinhas brilhantes das lanternas dos pescadores a bailarem como escaravelhos; era preciso tudo isso para esquecer o resto e realizar a alucinante viagem, no meio de rezas e do

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de fuga de quem ficasse ao seu alcance. Dos seus olhos, um anónimo confessava que pareciam lagos azuis nas manhãs de Dezembro, cobertos por uma névoa límpida, branca como o algodão mais puro. Quem fixava o seu olhar, contavam os mais idosos, caía morto, petrificado, afogado nas suas hipnóticas águas e depois contemplava o céu e cantava, abrindo os braços em cruz, como se se preparasse para voar:

«Venho dar os bons conselhos para quem os quiser tomar;quem dever a honra alheia que a trate de pagar.Não se paga com dinheiro, não se paga com fazendas,paga-s ‘é corpo com corpo que a nossa alma não pena;que a nossa alma não pena com ‘a minha and’àpenar,qu ‘eu de noite apanho lenha p ‘rã de dia me queimar,qu ‘eu devia a honra a sete e tenho fé de me salvar.»

Curiosamente, o seu canto, ao contrário do seu linguajar, era cristalino. Havia quem o comparasse ao das sereias da ilha de Circe, no encantamento de Ulisses. As aves, nesses fugazes instantes, aproximavam-se dela, atraídas por uma harmonia desconcertante e indolente, como se a quisessem beijar, confortadas de espanto. Ao longe respondiam-lhe os cães em uivos prolongados e chorosos, criando um caudal encadeado de lamúrias que chegava a ecoar até ao final das madrugadas. Inexplicável era esse milagre; parecia que um anjo se erguia dos abismos infernais para ganhar o paraíso. A mensagem surgia codificada; não tinha visivelmente um destinatário, mas o cântico seduzia até o coração dos animais. Esse momento marcava singularmente o seu quotidiano, apartando-a do seu eremitismo e aproximando-a de uma certa condição humana. Quem não desconfiasse, jamais descortinaria o que estaria por destras dessa maviosa máscara. Depois calava-se, e ficava, desconsoladamente, a perscrutar a própria sombra, sentada na amurada do miradouro da velha casa onde morava, como se não se desse conta do tempo e isso em nada lhe interessasse. Ali ficava o seu castelo, a sua solidão embrulhada com disfarces de vida, a oculta entrada para o outro lado das coisas inomeáveis. “Um dia nomeá-las-ei”, parece que ameaçou uma vez a uma criança perdida, indicando-lhe a saída do seu desterro para estrada segura. “Sim, nomeá-las-ei”, sentenciou interminavelmente, coçando o nariz e vasculhando o orvalho fresco no meio do matagal, onde ainda havia lembrança de um belo jardim coberto de rosas, enquanto se esquecia para que precisaria duma gota de orvalho. Era quando substituía a clareza do seu cantar por uma murmuração ladainhenta, como se aspirasse a alma, limpando-a de estranhos pecados:

«Chamai-me carniceira das maiores camiçarias,porque eu matei duas almas que no céu s ‘ajuntariam.Cresceu uma e cresceu outra e foram ambos para o ar,qu ‘eram duas almas unidas, no céu se iriam s ‘ajuntar.»

Na sua boca as palavras desdobravam-se como um enxoval de noiva, sempre em crescendo, bordado com lágrimas e tecido com adornos preciosos. Se teriam ou não

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bater acelerado do coração. O fundamental, todavia, era não parar e, principalmente, não olhar para a casa escura de quem vivia na casa ao lado: a “bruxa da rocha55. Bastava um soslaio para provocar a loucura e a vertigem, com a chamada para o abismo e a inevitável queda sobre o canavial. Muitos foram os que na manhã seguinte lá acordaram, enfeitiçados e sem saberem explicar o que lhes acontecera, com os cabelos eriçados e a pele do corpo roxa de susto.

“Foi a ‘bruxa da rocha’, acredite-me! “, repetia o rapaz, desculpando-se desesperadamente por ter partido os dois garrafões de petróleo que o pai lhe mandara comprar à mercearia do sítio. “Vai e volta depressa, não tenhas medo e usa a vereda da ‘rocha’. Já é tempo de seres homem.”, vociferara. Sabia que o petróleo era importante para a matança do porco e que sem ele não se podia queimar a sua carcaça e raspar-lhe o pêlo. Por isso, cumpriu à risca a sua missão, com o coração aos saltos, as mãos húmidas, como se tivessem sido cobertas por uma camada de banha fina, a roupa colada como adesivo ao corpo e as pernas tremelicando, correndo como se tivessem vida própria. Até o vendeiro o prevenira: “Se regressares pela ‘rocha’, mantém os olhos bem abertos e tem muito cuidado contigo!”. Era inverno e chovia, quando retomou a casa. Trovejava e só o efeito do relampejar de vez em quando cedia uma nesga de luz à vereda. As folhas das canas-vieira cortavam-lhe o rosto como navalhas e as bátegas ensopavam-lhe a carne até aos ossos. Na sua mente confusa, a escuridão ganhava as cores do arco-íris e bamboleava-se como línguas de fogo na boca dantesca dos infernos, onde os anjos negros brincam com demónios vermelhos e não existe a palavra perdão. Escutava o assobiar do vento e agarrado às asas dos garrafões, fechou os olhos e acelerou a corrida; foi quando a tudo se sobrepôs uma estridente gargalhada e um vulto disforme cobriu o céu, suspenso do ar. “Foi assim, foi assim! Por isso cai. Não tenho culpa. Foi a ‘bruxa da rocha’! Juro!”, titubeava o rapaz. “Ora, a ‘bruxa da rocha’. Logo a ‘bruxa da rocha’, que raio de coisa!”, cismava o pai, entre uma vergastada e outra, fazendo uma pausa para recompor as forças. “O porco vai é viver mais um dia...”, ironizou.

Parecia uma louca. Desgrenhada e vestida de negro dos pés à cabeça, andava como quem baila fora de compasso, grunhia como se falasse, e gargalhava consigo própria ao ritmo das conversas ininteligíveis que lançava, sozinha, ao vento, especialmente no entrar das noites, quando os ocasos deixavam o seu rasto de sangue no horizonte. Ninguém conhecia a sua verdadeira idade e poucos guardaram memória do seu nome. Era algo misterioso só o simples facto de alguém aludir à sua pessoa, num esforço de busca para a definição de uma identidade, por força da ausência de referências concretas sobre a sua real existência. Não se sabia quem era, mas não se podia deixar de reconhecer a sua marca maléfica, na exacta medida de que ela estava alojada no subconsciente de cada um. Apesar de tudo, contavam-se, pêlos dedos de uma mão, quantos garantiam, de peito aberto e olhar confiante, que a tinham visto de perto e seriam capazes de a reconhecer no meio de uma multidão. Diziam que tinha umas mãos finas, muito brancas, com unhas compridas e tratadas, como se o mundo lhe pertencesse num simples gesto, disfarçadas de garras, fragilizando a capacidade

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significado, se com elas seria possível alicerçar um sentido qualquer para justificar nem que fosse um suspiro, isso que importava? Elas tomavam corpo no vazio e preenchiam o silêncio que sempre acompanha os seres especiais. Talvez por isso tomavam-na por bruxa, a “bruxa da rocha” e temiam-na. Arrepiantes calafrios costumavam incomodar as vísceras dos vizinhos somente por ouvir soletrar essa expressão apelativa, receando até toma-la por alcunha. O certo é que fenómenos bem complexos se manifestavam, por artes desconhecidas, sempre que ela dava um ar da sua graça, o que em decénios só se verificava muito raramente, sem que testemunhas houvesse para relatar tais acontecimentos. Mas houve quem revelasse, em reuniões secretas, que no rebentar dos temporais era ela quem lançava os raios, cuspindo fogo ao desbarato e cobrindo de sons trovejantes as suas frases desconexas, abrindo as portas e as janelas em simultâneo como se quisesse guardar os relâmpagos num armário, como se estes lhe pertencessem, exclusivamente. As nuvens tenebrosas serviam-lhe de almofada e a chuvada densa de espelho, onde se mirava tresloucadamente, como se houvesse um segredo por desvendar no seu rosto. Um segredo tão terrível como a descoberta da verdade; só que a verdade tem duas faces, a de quem a tem e a de quem a reivindica. Não há meio termo; e afinal ela toma-se em algo inútil, dado que não há quem a queira. Deitam-na fora a despropósito, desprezada como um dispensável tesouro. Eis porque se apossava dos temporais e acumulava-os debaixo da cama, guardando-os para os usar quando melhor lhe aprouvesse. E até constava que escondia um cavalo preto entre os ramos tortos da árvore – um carvalho decrépito – que assombrava o prédio, abraçando-o como uma mãe abraça o filho morto. Chegou a ter-se notícia de que o seu relinchar provocava insónias no lugarejo e assustava os gatos, pondo-os de pêlo encrespado em debandada. Também se comentou que coleccionava lagartixas de todos os tamanhos e feitios, desaparecendo o seu rasto em suculentos caldos que empestavam o ar nos fins das tardes, agonizando os estômagos de quem os cheirava e suscitando suspeitas sobre a sua real origem. Contudo, o que causava maior impacto junto do povoado era a circunstância de, junto à casa, nem erva daninha conseguir sobreviver; no lugar das flores crescia um silvado impenetrável, em mistura com umas heras entrelaçadas e já mortas, agarradas aos paredumes do casebre. Mas a “bruxa da rocha” ali gozava os seus dias como se este fosse o seu éden, parte do retraio que desenhara para o seu próprio destino:

«As fadas me fadaram por sete anos e um dia,finda hoje os sete anos e amanhã finda o dia.»

O medo que a “bruxa da rocha” inspirava no sítio era do seu total conhecimento. Sabia que toda a gente estremecia quando passava pêlos seus lados e ninguém se atrevia sequer a olhar, mesmo que a uma distância segura, para o seu reino amaldiçoado. O mais que por lá se permitia fazer era apontar o dedo para a direcção da casa, com a cara enviesada para o lado oposto, deixando escorrer uma gota de suor gelado pela testa e engolindo a custo uma saliva amarga, como se isso fosse a última coisa permitida pelo bom senso no mundo. Os mais pequenos eram os únicos

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que simulavam menor temor e chegavam, por vezes, a se esconder nos arbustos do quintal, decorando-lhe alguns dos constantes versos das suas cantilenas:

«Se choras ates irmãos, já os matei todos três;se choras a padre e madre, nunca mais los hás-de ver.-E na choro a mês irmãos que são vivos todos ires;ê na choro a padre e madre qu ‘hei-de vê-los outra vez.Só chor ‘a minha ventura qu ‘ê na sei qual há-de ser.»

Nos lares dos habitantes da localidade um veemente silêncio sobre a “bruxa da rocha” foi conquistando consistência, sem que ninguém se surpreendesse com isso. Não se tratava de um esquecimento propositado, pois à noitinha, no calor dos convívios das tascas, ainda se contavam as mais incríveis histórias sobre a “bruxa da rocha”, com especial relevância para páginas bizarras da sua vida, lembradas pêlos mais idosos e para os seus feitiços, tão incomuns e extraordinários como o mistério da sua natureza. Uns encontraram-na em encruzilhadas ao eclodir as badaladas da meia-noite e tiveram de carregá-la aos ombros até casa; outros viram-na transformar-se em gato preto que se lhes atravessava nas madrugadas frias a todo o comprimento do caminho, obrigando ao decifrar de homéricas charadas para conceder passagem; uns até presenciaram bailes organizados em noites de lua-cheia, onde ela e outras mulheres mascaradas, dentro de um círculo de velas acesas, praticavam rituais satânicos e oravam em língua ignota a deuses primitivos e pagãos; e alguns confessavam os ardis por ela usados para os consumir em orgíacas festanças - “era insaciável, ficávamos subjugados até ao último pingo de sangue, até ao mais ínfimo esgar de alento”, pormenorizavam - às quais regressavam involuntariamente, sempre que ela queria, como se respondessem a uma chamada obrigatória, sem fuga possível, encantados pela magia dos sentidos.

– “Eu vi-a transformar-se num mar de sombra - titubeou o levadeiro, homem habituado aos enigmas da noite - e cobrir todo o céu, abafando a lua e absorvendo toda a sua luz. Fiquei gago de terror. É melhor tomar mais um grogue, estou a ficar com a voz travada na garganta”.

– “Isso não é nada, comparado com aquilo a que assistiram os meus olhos. Estava um dia maravilhoso, com passarinhos e tudo a cantar por cima das nespereiras, quando apenas a sua figura se fez notar na varanda da casa. O dia deixou de ser dia para ser noite e ela, com um inesperado movimento, abriu os braços e ficou com asas de corvo. Desapareceu em voo lento em direcção ao nada. Esperei durante horas pelo seu regresso, mas dela nem rasto. A partir daí nunca mais consegui voltar a pentear- -me. O meu cabelo, com o susto, ficou duro como aço”, aduziu outro conviva, afiançado pela sua provecta idade. “Que eu morra a dormir, se isto for mentira”, jurou.

– “O que mais me trompicou foi escutá-la a cantar. Quem haveria de dizer... Ela não é mesmo deste mundo”, acrescentou o carteiro.”Já agora – complementou – também vou nessa do grogue”.

– “Mas que raio de conversa! E que cantava ela?”- intrometeu-se o taberneiro.

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– “Ainda me lembro destes versos:«Se eu te conhecer honra, a vida te guardaria,mas se eu não te conhecer honra, a vida te tiraria» “.– “Chiça! Acho que, mesmo proibido de beber pelo médico, também vou

experimentar o meu grogue. Por hoje acabaram-se as histórias. Deixem alguma para amanhã. Acho que já perdi o sono. O bar vai fechar, meus senhores!”.

– “Nem sequer tem curiosidade em escutar a da sua morte?”–” Ela já morreu?! Meu Deus!”.–“Foi já há um bom punhado de anos. Segundo ouvi de uma parente

afastada...”.– “Então vá lá, que Deus me perdoe...”

A “bruxa da rocha” começou a ter dificuldades no andar. As pernas, atrofiadas, impediam-na de se deslocar até ao miradouro da casa, a cozinha passou a ser um pesadelo e, sem dar por isso, afeiçoou-se a uma cadeira de baloiço, artisticamente confeccionada em vimes por artesãos camacheiros. Era uma antiga relíquia da família, agora convertida no seu aconchego preferido do lar. Era o seu reduto permanente, de onde praticamente nem se levantava. A casa, de repente, agigantou-se. Tinha quilómetros de comprimento e de largura. Ficou cada vez com menos claridade, envolta no negrume de todas as noites, prisioneira da escuridão dos confins de todas as eras. A poeira e as teias de aranha, de mãos dadas com a corrosão do tempo, foram-na decorando com a subtil indigência de uma capa rota de mendigo. Os ratos, as baratas, as formigas e as centopeias tomaram-se visitas habituais e escolheram espaço particular para procriar. As heras e o silvado, se antes eram uma praga, agravaram o triste cenário e expandiram-se até cobrirem portas e janelas, como se um lençol opaco atapetasse de verde o espectro da morte anunciada. Só que, contrariamente ao inevitável, ao que se supõe suceder a quem não come, não bebe, nem dorme, nada acontecia. As folhas do calendário iam caindo sucessivamente, as urzes petrificavam-se, o zénite, a ferrugem e o bolor invadiam todos os recantos do lúgubre pardieiro, a comida que um dia foi armazenada na dispensa apodreceu, mas tudo continuava igual: a “bruxa da rocha” sobrevivia, sem que uma explicação plausível fosse encontrada para esse inaudito acontecimento. As corujas depressa assentaram arraiais no telhado, ou no que dele foi restando, ajudando a compor o quadro macabro. Até que um som extravagante, uma espécie de grito de baleia, começou a ser emitido a partir da velha casa. Era um chamado, um apelo, uma convocatória. Uma a uma, compassadamente, como se previamente soubessem ao que vinham, mulheres vestidas de negro foram chegando silenciosamente ao casebre da “bruxa da rocha”. Aí detinham-se por instantes, inclinavam-se ligeiramente, fixavam-lhe os olhos, abanavam negativamente a cabeça e voltavam a partir. A última que apareceu foi uma menina, muito alva e de porte altivo. Aproximou-se da feiticeira, destemidamente. Com voz firme, perguntou-lhe:

– “Para que me chamaste?”– ‘Tu sabes porque te chamei.”

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– “Preciso que mo digas”.– “Está bem. Chamei-te para te entregar o poder. O poder. Todas as outras

recusaram-no e ainda bem, pois tu és a eleita. A eleita. Sempre se tratou de ti e de mais ninguém. Toma-o nas tuas mãos. Vem até mim. Pensa que eu sou o teu Jesus. Lembra-te de como ele gostava das criancinhas. Vem até mim. Aperta-me a mão e toma o poder. Não o rejeites. Tu és a eleita”.

– “Se aceitar o teu poder, o que é que eu faço depois com ele?”– “Serás a eleita. Conhecerás outras iguais a ti. Viverás para além das outras

vidas.”– “E se o meu sonho for o de viver apenas a minha vida de ser humano, a vida

banalde uma menina que crescerá, será mulher, casará, terá filhos e morrerá avó,

como todas as outras avós?”– “Não, não! És a eleita! Viverás mais do que a tua vida, viverás outras vidas. O

poder será teu! Pega, pega, aperta a minha mão e viajarás para além da imaginação, acima da fantasia, no centro do universo. Pega a minha mão! Liberta-me! Permite-me abandonar este mundo, oferece-me o descanso do sepulcro!”

–”Está bem...”Se soprava uma suave brisa nessa noitinha, tudo num breve estalar de dedos

mudou. Um autêntico vendaval, com chuvas torrenciais, ventos ciclónicos, relâmpagos e trovoada, invadiu o exclusivo perímetro da velha casa, especificamente direccionado para ela. Fora dele as estrelas iluminavam o firmamento, um calorzinho quase tropical afagava o vinhedo e as bananeiras, vergando o canavial e amadurecendo os figos. Ali estavam a conviver duas estações, com um inverno exigente a atacar as fundações de um telheiro medieval e uma espécie de verão a namoriscar toda a ilha, sem excepção que não fosse aquela. Se a cena tivesse sido cronometrada, dificilmente a sua duração seria superior à da mera fracção de segundo; mas o inverosímil ia mais longe. Pêlos buracos do tecto, com uma energia que daria para derreter as vigas e as telhas, chispavam mil e uma cores, numa imitada profusão de efeitos pirotécnicos idêntica à de uma S. Silvestre que se preze; o fogo de artifício enchia todo o interior do decrépito edifício, fazendo-o estremecer como geleia nas mãos de um esfomeado. Subitamente, da mesma maneira como se iniciou, a intempérie acabou e, co ela, esfumou-se a brasa festiva. Um silêncio, tão profundo como um calafrio, apoderou-se da natureza. Nem o piar de um mocho, nem o cair de uma folha do carvalho centenário.

Devagar, muito devagar, a menina afastou-se da casa. Atrás dela, moribunda, a “bruxa da rocha”, num fio de voz interrogava, como se o fizesse a si própria, “porquê, porquê?”, “o que me fizeste rapariga?”, “o que me deste rapariga?”. E a menina lá se foi desculpando, no seu andar curtinho, sem olhar para trás:

–“Dei-lhe uma vassoura. Não tenho culpa que ela fosse bruxa, velha e cegueta. Dei-lhe a vassoura. O poder é agora da vassoura. Espero que viva a sua vida. E muitas outras vidas. Não tenho culpa se, para além de velha, o diabo da mulher fosse cegueta. Antes assim. O que irá a vassoura fazer com o poder? Eu cá não tenho culpa...” Um cheiro a queimado empestava o ambiente. A “bruxa da rocha” não era mais do que um punhado de cinzas. A vassoura, em piruetas pelo ar, desprendia chispas douradas e

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prateadas, como se de repente agisse com uma miraculosa energia, como se tivesse vida própria. Nunca mais se tomaram audíveis as canções que romanceavam historietas sem sentido e os pássaros foram em busca de paragens mais puras. Apenas ficaram, nas madrugadas mais agrestes, uma gutural gargalhada enchendo o firmamento azulado e uns surdos e rasteiros murmúrios a incharem o corpo da terra, esfriando-a impiedosamente.

“Esta é a parte de que eu me recordo. Não sei de outra versão. Mas tenho a garganta seca. Qualquer coisinha molhada vinha a calhar...”, concluiu o ancião, enfiando o chapéu mais fundo, no cerne do cabelo duro que lhe encimava a meia-careca, na cabeça meneada lenta e distraidamente…

– “Bem, meus senhores, já que esta noite não vou mesmo conseguir dormir, aqui vai mais um grogue para todos, por conta da casa. Saúde!”

–”Saúde!!!!!”.!!!”.– “Agora todos para as suas casas!”– “Este grogue está muito bom! Não quer ouvir o resto da história? Será que a

‘bruxa da rocha’ morreu mesmo? E afinal quem era a menina da vassoura?”– “Andor, tudo para casa, ou amanhã não há grogue para ninguém!”– “Então até amanhã! Nada de sonhar com a ‘bruxa da rocha’!”– “Cos diabos! Tomem lá outra dose p’ro caminho!”

Funchal. 18/19/23/08/2000José António Gonçalves

Nota: Os versos incluídos no conto foram retirados do volume “Romances Tradicionais – Subsídios para o Folclore da Região Autónoma da Madeira”, de Pere Ferre, edição da Câmara Municipal do Funchal, 1982.

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sede de aprender A aventura da escrita começou muito cedo na minha vida. Meu irmão mais velho

estudava no Colégio Missionário - desejava ajudar os povos mais desfavorecidos de África - e trazia-me, nas suas visitas a casa, revistas e livros, sebentas manuscritas e almanaques, tentando despertar-me o gosto pela leitura. Nessas manhãs aprendi a descodificar o sentido das palavras e, depois, como um aprendiz de pedreiro constrói uma casa, lá me fui entregando, devagar, às artes da edificação dos textos. Na escola primária do sítio do Amparo cedi à tentação dos primeiros arremedos literários, nas redacções (quase sempre inventadas na ocasião), com histórias de pessoas, animais ou objectos desse vale da feguesia de São Martinho, ali mesmo, a quatro quilómetros de caminhos empedrados do Funchal. A localidade era rural, com os seus vinhedos e bananeiras, canaviais e árvores de fruto, desde as nespereiras às ameixeiras, fazendo do quotidiano das crianças um mundo mágico, com as odisseias de mergulhança no poço do Fiscal ou os jogos de bola junto ao adro da Igreja Nova. Ali pertinho ficava a minha segunda escola primária, onde uma vez vi, distraidamente, estacionado junto ao Largo do Cemitério, um carro acinzentado, parecido com uma dessas viaturas que procuravam pessoas para dar sangue; mas não, tratava-se de um armazém ambulante de livros, de uma biblioteca ao alcance de todos os que se interessassem por aumentar os seus conhecimentos através do contacto com esses tesouros, monumentos autênticos de saberes e de segredos. Quase a medo e desconfiado, recordo-me, lá entrei nesse universo, passando a adorar o cheiro do papel, as cores das capas, os sentidos das orações, a dança das coisas imaginárias. E logo de seguida passei a levar para casa, continuamente, sacolas bem pesadas, com os mais diversos volumes, ansiando por esse momento de solidão com os olhos presos às palavras; depois contava aos amigos e a todas as pessoas da minha vizinhança tudo quanto se escondia no seu interior, feliz por trazê-lo à luz do dia. Eram cavaleiros que então soltava por pradarias inventadas, dragões que sobrevoavam castelos com as suas línguas de fogo, donzelas que gritavam por socorro, navegadores que enfrentavam piratas e corsários, náufragos que sobreviviam em ilhas misteriosas, reis que perdiam reinos em torneios festivos, ao som de trombetas, florestas que escondiam libertadores, princesas que suspiravam pelo amor do plebeu, soldados que davam a vida por uma bandeira ou generais que acabavam vencidos, solitariamente, no meio dos campos de batalha, por adversários invisíveis.

Todas as manhãs, lá o carteiro deixava em casa um braçado de jornais. A mãe, costureira, era como um centro de distribuição de correspondência; competia-nos ajudá-la e entregá-la às pessoas suas amigas das redondezas. Aí aproveitávamos para ler as notícias: chegou um novo barco com algumas centenas de ingleses, morreu um estadista, o senhor governador vai a Lisboa, Portugal está a ser atacado nas províncias ultramarinas, o pão vai aumentar dois tostões; tudo servia para conversa, sob a latada de vinha e pimpinela, no convívio das vizinhas que lá iam bordar caseados,

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rechelieaus, ponto-atrás, em linhos e organdis. O centro do universo era essa panóplia de tartamudeação, verdadeiros campeonatos de bilhardice, quase sempre realizados pelas mulheres sem levantarem o olhar da agulha, do dedal e das linhas de cores vivas ou brancas, cremes, azuladas e lilases. Ali nasceu a raiz de muita da poesia que o tempo foi urdindo, sensitivamente, dentro de mim, para mais tarde transbordar em páginas brancas de caderninhos, toalhas e guardanapos de restaurantes e bares, laudas de imprensa ou blocos de notas. Os livros, assim, brotaram naturalmente dessa matéria viva, sombreada por recordações e reflexos de sol na água das chuvas; escreveram-se por si, com o seu próprio destino escrito nas capas. No somar dos seus índices sobrevive a memória; na metáfora dos seus conteúdos o garimpar dos minérios que a substancia e revivifica. Tem vida própria.

A primeira publicação ocorreu em meados dos anos sessenta no “Diário de Notícias”; era uma ingénua carta a Sophia de Mello Breyner Andresen que a minha professora do Liceu Jaime Moniz, Margarida Morna, indicou como merecedora da tinta de impressão. Nessa altura andavam os “Beatles” a desfrutar do êxito do álbum “Revolver”, o Elvis rebolava-se pelo mundo, a Amália, o Roberto Carlos e o Teixeirinha cantavam no velho rádio; e eu queria ouvir falar de Herberto Helder, de Horácio Bento Gouveia, de Fernando Pessoa, de Edmundo Bettencourt, de Cesário Verde. Depois, tudo aconteceu de repente. Como os milagres da guerra e da paz. A experiência ficou-me marcada na carne como uma tatuagem ou uma cicatriz. Os poemas de adolescência foram ganhando espaço no “Diário da Madeira”, “Diário do Norte” (“Suplemento Elefante”), na “União” (dos Açores) e no “Jornal da Madeira”, para cujos quadros redactoriais entrei, a convite do seu então director e hoje Arcebispo de Évora, D. Maurílio de Gouveia. Havia um furacão a me perseguir, transportando-me para o cerne de outras tempestades: o da realização individual como autor. O jornalismo forçou-me a uma consciência do social, trazida já, com algum impacto interiorizado, da Juventude Operária Católica, onde conquistara o meu primeiro prémio literário, subordinado ao tema “Todos os Homens São Meus Irmãos”, proposto pelo Papa Paulo VI. Deste modo, a criação da secção “Réstea de Qualquer Coisa” (publicada em livro em 1973), a promoção dos jovens valores intelectuais da ilha na “Página 2000” (de que sairam os primeiros poetas do movimento “Ilha”, reunidos em volume em 1975, seguindo-se outros em 1979, 1991 e 1994), a organização com A. J. Vieira de Freitas do colóquio “Ao Encontro da Poesia” (na Escola Industrial e Comercial do Funchal, hodiernamente baptizada de “Francisco Franco”), surgiram como uma coisa natural. Os escritores experimentados costumam usar a expressão “tão natural como respirar”, mas isso poderá ser considerado como um exagero. Mas do que gostávamos mesmo era de ler, de discutir ideias e livros, ansiando depois por dar forma aos nossos versos, gozando da satisfação de os vermos consolidar-se, eternizar-se, no seu limitado espaço de jornal. O coração pulsava mais depressa, o corpo aquecia subitamente, as mãos nervosas folheavam as edições procurando o nosso nome, os títulos dos poemas; havia uma vontade de tocar, de repossuir tudo, voltando à primeira imagem, como se urgisse reescrever cada verso. A cultura madeirense, historicamente, ficou a dever

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alguma coisa ao inconformismo dessa juventude, como o reconhecem os seus ainda raros investigadores (a universidade tem andado adormecida, mas os exemplos de fora estão-na despertando!). Estava ali uma nova geração de poetas, cujas obras os projectaram para além do tempo e do lugar.

É aqui que confesso: existem poetas que escrevem livros; no meu caso escrevo apenas poemas. Não os escrevo com o objectivo de os publicar, mas publico-os porque os escrevo. Recordo-me que esta era uma matéria muito cara aos debates que mantínhamos no grupo da “Página 2000”, com o Duarte Tranquada, o Laurindo Goes, o Carlos Alberto Fernandes, o António Brito Figueirôa, o Francisco Freitas e o José Vito Barreto, nos cafés da cidade. Ainda hoje mantenho-me fiel a esse espírito; os opúsculos que vou entregando à sorte das tipografias são, por consequência, o efeito do acto desinteressado e intuitivo da escrita; jamais escolho primeiro o título para elaborar tematicamente a obra. Há um fluir espontâneo dessa jornada, como se partisse para um passeio sem bornal nem mapa, nem a certeza de regressar nem de me propor a alcançar uma meta. Foi assim que, em 1974, “apresentou-se-me” a “plaquete” a que dei a identidade de “É Madrugada e Sinto” (é dos meus livrinhos preferidos); depois lá veio a “Pedra-Revolta” (1975) e por aí adiante. Nestes últimos anos ganharam lugar nos escaparates “Os Pássaros Breves” (1995), “Tem o Poder da Água” (1996), “Noites de Insónia” (1998), “À Espera dos Deuses” (1999), “Aventura na Casa dos Livros” (2000), “Esquivas São as Aves” (2001), e “Memórias da Casa de Pedra” (2002). É como uma ciranda, uma onda do mar que vai e volta. Nada pára. Umas vezes são as crónicas nas rádios, outras argumentos para programas de televisão e documentários de cinema; outras ainda contributos para o teatro. Porém, o mais importante de tudo, é poder prestar testemunho para que a literatura madeirense conquiste um patamar de honra nas letras portuguesas. É nesse sentido que os escritores da Região fundaram uma organização, a qual baptizaram de Associação de Escritores da Madeira, a qual, andando a trabalhar com essa missão, ainda tem muito caminho à sua frente para percorrer, enfrentando os mais inesperados desafios. Como seu presidente tenho-me empenhado, auxiliado por outros autores apostados no mesmo objectivo, mas precisamos da ajuda de todos, principalmente dos alunos e dos professores das escolas desta Região Autónoma, como é o caso da “Francisco Franco” - onde eventos muito interessantes, em diferentes ocasiões, já foram por nós levados a cabo, alguns deles com o apoio da professora Regina de Castro e Abreu e do professor Mário André, por exemplo - para um dia se declarar (sem receios de ecos contraditórios) como nos sentimos honrados com o mérito e a qualidade da Obra dos poetas e dos prosadores desta terra, no quadro da Literatura de Língua Portuguesa.

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a poesia na primeira pessoaA escrita da poesia tem constituído um elemento essencial da minha realização

como indivíduo, tanto no plano intelectual, como no emocional, mas principalmente sob o ponto de vista estético, literário e cultural, no que tudo isso possa interpretar uma profunda consciência reflexiva sobre a vida e o complexo anfiteatro em que ela desempenha a sua função existencial.

A ilha apresenta-se como o sujeito crucial que me enxameia os versos. Na sua dualidade, enquanto pedaço de terra completamente contornado pelo mar e surto mitológico de fantasiosas e extra-sensoriais motivações de apelo amoroso, paradoxalmente despido de sensualidade provocatória e muitas vezes preenchido pela rendição ao social e ao histórico.

Os poetas questionam-se frequentemente sobre o que os impele à composição do texto poético, apoquentados pelo drama das suas dúvidas, rebuscando temas, vivenciando estilos, repetindo as leituras memorizadas, provavelmente subjugados à imperiosa obrigação de se afirmarem pela diferença, face à poemática admirada nas páginas dos seus maiores.

Trata-se de um curioso caminho, indiscutivelmente muito utilizado um pouco por todo o lado onde a poesia ganhou a mercê do respeito pelo seu género literário, mas que no meu caso particular não surte qualquer efeito. Isto porque na materialização dos meus versos não é detectável uma objectiva intencionalidade comparativa com o que lhes é externo; ou seja, eles detêm voz unívoca e não encarreiram em disputas de solenização ou de distinções momentâneas, na sua justa relação com o trabalho dos outros. Daí que surjam em catadupa, em folhas de papel soltas, guardanapos usados, toalhas de mesa de restaurantes, contas de bares, cabeçalhos de jornais, costas de documentos ou em paredes mal caiadas de branco.

Antes de ser outra coisa, o poeta é um habitante de um lugar, seja a sua própria pessoa, uma casa, um barco, um cais, um banco de jardim. Dotado de uma capacidade de inquietação, é visto como um revolucionário, um desinstalado da hodiernidade, um (re)construtor de mundos desconexos e até mesmo como um (des)fazedor de magias. Algumas sociedades cuidam de o amar, erigindo-lhe estátuas, perpetuando-lhe o nome nas toponímicas históricas, endeusando-lhe a Obra e decorando-lhe os poemas mais felizes. Outras, descriminam-no, perseguem-no, prendem-no e, até, segundo é vulgo em sítios estimados por iluminadas figuras que se dizem amantes da liberdade, chegam a crucificar-lhe o corpo no incêndio dos seus livros. A maioria esquece-se de como foi importante o seu contributo para oferecer sentido à sua medíocre existência; não se vislumbram multidões a aplaudi-lo e apenas o tempo faz resistir e projectar para o futuro o conteúdo das suas metáforas, colorindo palavras que ecoarão secularmente nos cérebros de gerações.

A poesia não está eivada de uma especial missão salvífica. Não precisa de códigos que a desnudem, não se predestina para a resolução de assuntos militares

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ou de Estado, nem aspira aos cadeirames dos olimpos. Dentro dela remói-se, ri-se ou atormenta-se um autor. Passada ao papel, consolidada na tinta de impressão, vislumbra-se a si própria no espelho que é o alicerce em que foi erguida. No advento da sua publicação completa-se ao captar o interesse de um leitor. Não há mistério, nem bruxaria, nem fenómenos divinos. Tudo se resume à Língua e à gramática, à beleza ou fealdade – quem poderá asseverar que a boa poesia tem de ser exclusivamente bela? – da sua construção, à harmonia e ao equilíbrio da sua arquitectura, a qual, obviamente se deseja sempre inovadora, moderna, avançada no seio da sua contemporaneidade, interveniente no (des)conforto que provoca no espaço onde se assume, mas sempre comprometida, especialmente com o ímpeto criativo do poeta e, através dele, com o universo libertador das ideias e da metafísica, dos convencionalismos e das mais díspares estratificações sociais e culturais.

Dois (pre)conceitos são frequentes no assinalar de uma pretensa definição do fenómeno poético, a partir de uma equívoca noção do instante criativo. A insistência em classificá-lo como um mistério (tornando-o, por isso, indefinível) e o hábito de o inserir num jogo de inspiração, com a matéria lírica (ou não) a fluir com a maior das naturalidades para o poema, com um ritmo, uma pujança e uma completa autenticidade perfeitamente naturais. Neste entendimento quase não se perspectiva enquadramento para um rumo mais verdadeiro, o da oficinalização, em que a palavra é um instrumento que obedece, por decisão consciente e tácita do autor, a determinados pressupostos de abordagem poetizante, os quais são alvo objectivo de um processo previamente conceptualizado pelo seu criador, o qual protege o seu poema como um engenheiro o faz com o cumprimento do contrato da sua obra.

Entendemos, acerrimamente, que o poeta é um ser livre de todas as amarras. O seu dever principal é o de não se deixar sujeitar a outras escravizações que não sejam a elaboração do seu poema. A diversidade em poesia só se apura na individualidade do poeta. Todas as civilizações e culturas gotejam de itens idênticos, por consequência da condição humana do poeta, não existindo, por contraposição, por isso, uma literatura de corpus universal. O poeta desconhecido, morador num lugarejo ilhéu ou numa cabana africana, ao retratar o minúsculo e obscuro horizonte geográfico da sua realidade existencial, presta, indubitavelmente, maior serviço à poética cósmica do que o eminente e consagrado autor que na contínua ambição de escrever para uma humanidade sem rosto, insiste no transbordar de uma poesia que se expande e recolhe apenas no exíguo espaço do seu umbigo e nas aclamações críticas do seu núcleo de confrades.

Sou empurrado quotidianamente para a poesia, como as pequenas embarcações o são pelo vento da ilha em direcção à praia de calhau escuro. Não há angústia, nem desmesurada alegria; somente um prazer incaracterístico, ilimitado e expectante, suscitado pela escrita no exercício da sua particular execução. Ela alimenta-se de si própria e, por isso, não nasce, nem morre. Não destruo papéis; jamais os deito fora. Dou-os. Burilo-os. Transformo-os. Afinco-me no acto de conciliação de uma estética com a sua estrutura. É mais um acto de materialização de um lampejo instantâneo da

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observação e da interiorização das pequenas e das grandes coisas, acontecimentos, esgares ou alucinantes despertares, através de um gesto simbólico e sequencial de amontoar vocábulos que irão, depois de conjugados, encontrar um destino que só a eles diz respeito. Não recebem incumbências de superiores desígnios, não trespassam pontes com mensagens escondidas nas rimas ou na falta delas, nem sobem a púlpitos para espantarem povos com anúncios filosóficos de sabedoria profunda.

Apresentando-se a poesia como uma das mais vulgares expressões artísticas, algo assim como que inútil para responder às transcendentais preocupações dos homens, dela esperamos um choque de deslumbramento, uma punhalada funda que nos faça sangrar por dentro. Não a queremos como arma, mas no seu âmago já despoletou revoluções. Servirá mais uma oração por um deus anónimo do que a leitura de um poema, se acaso desejarmos acalmar as incomodidades do espírito? Deterá a poesia uma absurda capacidade de perturbar, de abalar, de acordar o homem, transportando-o para dimensões que nem os mais habilitados cientistas seriam capazes de catalogar em mapas estelares? Em que consistirá a sua necessidade? Cremos que no exacto preenchimento do vazio que avassala as entranhas de uma humanidade que se habituou a rever-se em facilismos e menoridades. Estas vacuidade faz doer, aflige, assombra, separa, planta a solidão entre indivíduos e sociedades. A poesia é o admirável líquido que sacia a sede de conhecimento, de sabedoria, de se poder ser mais, uns pós de curandeiros que preenchem almas de magníficas imagens coloridas, limpando o cinzentismo absorto que nelas antes tinha conquistado raízes.

O poeta é, assim, apenas ele, consigo próprio. Do outro lado do seu casulo, na distância inconclusiva de uma interpretação, habita um leitor. Ninguém lhe disse que o poeta não o é em função da Língua em que escreve. É tão somente o poeta da sua poesia, a poesia igual a todas as outras no variegado labirinto do mapa mundi. Ama a terra, o mar, o céu, o sol ou a lua, uma mão cheia de estrelas, talvez uma árvore ou uma flor, um lar onde cresceu, uma rua sem saída, provavelmente canta uma paixão, adora uma divindade, discorre sobre o tempo, rios, nuvens, cercas, vinhedos, noites quentes e dias frios, um abraço amigo, tece loas à paz e abomina a guerra, adoça tristezas e angustia alegrias, ou odeia tudo isso. Terá pátria? Traça fronteiras? Paira sobre os outros, evitando comungar da mesma hóstia de miséria dos seus semelhantes? A estrada é a poesia por onde caminha; o seu horizonte – o ponto final a encerrar o próximo poema.

in Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (trad. e cura di Giampaolo Tonini), Centro Internazionale della Grafica di Venezia, Veneza, 2001, pp. 27-29.

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entrevista de dezembro de 2004, sobre “a poesia dos Calendários”

por Cissa de Oliveira

Como ocorreu o primeiro contato do poeta jag com a internet?Sempre fui avesso a máquinas, à cibernética. A minha predilecção pelo acto

da escrita centrava-se, exclusivamente, no papel branco. Branco mesmo. Sem linhas ou quadradinhos. Ou então, na sua falta, em tudo o que me chegasse às mãos. Depois, tudo mudou repentinamente. Foi a pressão familiar que me conduziu até ao computador e, pela via deste, até à «net». A criação pelo meu filho, Marco António, da minha Página Pessoal consolidou-me a curiosidade e lá fui eu à aventura, na rede, em busca do mundo virtual.

até onde eu percebo, a edição diária e sistemática dos escritos de vários

poetas, é um projeto único na internet. Como surgiu a idéia e o porquê do “a poesia dos Calendários”? para quais países ele é distribuído?

A criação de um serviço diário como «A Poesia dos Calendários» surgiu-me, naturalmente, em consequência da constatação de que os usufrutuários da «net» não possuíam, de per si, um sistema organizado de leitura e de aquisição de conhecimentos, sobretudo radicado numa escolha de autores e de textos de origem diversificada e universal. Normalmente - salvo raras excepções - os participantes de listas de discussão usam-nas para colocar os seus textos, ansiando ultrapassar fronteiras e oferecer-lhes a maior divulgação possível. Por outro lado, sou natural e residente numa pequena ilha atlântica, a Madeira, por sua vez parcela de um não menos pequeno país, Portugal. Uso a Língua Portuguesa, a minha língua materna, como instrumento de comunicação e de trabalho. Então decidi alterar este estado de coisas e fundar uma «revista» quotidiana de literatura na «net», de modo a sintetisar os meus gostos e a compartilhá-los com o maior número alcançável de leitores interessados. Na verdade existem «blogues» na «net», mas este não é o caso, por isso aceito o elogio de ser, de facto, «um projecto único na Internet». Sem esforço, em inúmeros países do mundo, milhares de pessoas recebem por «email», a cada dia, do Japão à Argentina, passando pela Itália e pelo Brasil, esta «cartinha poética» do «cantinho ibérico» de Camões e de Pessoa. Sempre com o mesmo espírito de transportar, o mais longe que puder, este amor que detenho pelos livros, pelos literatos e pela humanidade.

além das tuas outras ocupações, preparar o “Calendário” e incluir nele

um poema teu, inédito, por dia: isso é o quê? persistência? Questão de prática? disciplina? prioridade de objetivos?

O meu poema é a parte menos importante deste projecto. Inicialmente era para nem existir o espaço que lhe é dedicado, pois não é, em minha opinião, essencial

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no meu quadro de intenções. É claro que o «Calendário» é concebido com muito sacrifício, sujeitando-me a várias horas de esforço técnico e humano (desde a escolha dos autores, dos livros, dos textos, à busca das biobibliografias, das imagens, da composição e montagem, ininterruptamente) sete dias por semana. Mas o que é que temos sem trabalho? A alegria é maior quando, depois, me escrevem, a confessar que descobriram este ou aquele poeta por meu intermédio, ou que andavam há tantos anos procurando um determinado poema, o qual lhes trouxe de bandeja até casa, ou que desejavam organizar uma biblioteca com o maior número de obras agora identificadas, ou, até, que estão arquivando todo o material nele contido para, oportunamente, o lerem e relerem... Quanto ao meu poema, ele resulta de todas essas razões: persistência, prática, disciplina. A sua prioridade é intervir, com o meu quinhão, na «rotação do planeta», levar até ao leitor uma ideia, um estímulo, uma estrela que o ajude a iluminar a estrada, no percurso da revelação do que lhe vai na alma. Gostava de saber escrever melhor, para que a «página», assim, se fechasse com uma chave de ouro e não com uma de mero alumínio, como deve ser o caso.

a leitura efetuada direto da tela do computador, na tua opinião, é algo que

consegue prender o leitor com a mesma facilidade que um livro, ou as pessoas quando do uso da internet ou do computador não querem prender a atenção tal qual precisariam fazê-lo durante outras atividades, mesmo que culturais?

Nada substitui o livro. A emoção de o ter nas mãos. O especial e único efeito da palavra impressa. A luminosidade que se desprende página e nos toca o cognoscitivo. O livro é um fogo que se perpetuará no coração e na inteligência dos homens para todo o sempre. Nenhuma sociedade futurista o eliminará; se o tentar, criará, por contraste, um novo ícone, um objecto que, pela sua incrível raridade, poderá provocar convulsões sociais e culturais, para nem dizer políticas, em função do desejo da sua posse. Num mundo abjecto desses pertenceria (esgrimindo com versos - armas de apurado gume - e rimas), ao movimento da resistência. Desconfiemos de uma sociedade que não aprecia e não promove o livro; ela é inimiga da sabedoria. A leitura pela «tela do computador» - que em Portugal baptizámos de «écran» - é apenas subsidiária, parte do uso de um equipamento contemporâneo. E só. Basta experimentar imprimir um texto, nela já lido, para que haja uma sensação renovadora, de descoberta, do encontro com o princípio da felicidade absoluta. Da aproximação ao transcendental. Isto em termos civilizacionais, claro.

no decorrer desse ano de 2004 “a poesia dos Calendários” sofreu

diminuição na quantidade de poesias editadas a fim de que os poetas das listas de poesias pudessem acompanhá-lo na íntegra. eu participo de três listas onde ela é editada e os poetas dizem sentir a sua falta quando eventualmente o “Calendário” atrasa, mas raramente comentam os escritos do mesmo (fato que, dependendo da lista, também ocorre com relação aos escritos de outros poetas). acreditas que isso ocorra devido a alguma inibição? isso entristeceu ou surpreendeu o

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poeta jag? e agora que se finda o ano, como definirias a resposta dos poetas em relação ao Calendário de 2004? essa resposta variou nos diferentes países onde o “Calendário” foi distribuído?

«A Poesia dos Calendários» é um arremedo literário. Um projecto. Tão dispensável como todos os projectos que pertencem ao universo dos bens que não são de primeira necessidade. Aprendi que um poeta representa-se pela sua obra e, nos «suplementos culturais» que fundei e dirigi, ao longo dos anos, na imprensa escrita madeirense, sempre seleccionei pelo menos três dos trabalhos de cada um, independentemente da grandeza do seu nome, para o revelar no seio dos leitores. Experimentei o mesmo sistema neste meu espaço internético, mas pareceu-me que as pessoas preferem a celeridade do que o tempo bem aproveitado para o usufruir de conhecimentos e, assim, fui revendo as minhas próprias definições, no alicerçar da sua construção. Prefiro que leiam o que ponho na íntegra, do que laborar debalde, em cima de concepções que, depois, são ignoradas pelos seus eventuais destinatários. Sei que isso também entristeceu alguns deles, pois escreviam-me, não a pedir que reduzisse o material, mas que lhe aduzisse ainda mais algum, que o alargasse; há outros que já não conseguem sair de casa sem abrirem a página e consultarem uma secção em particular ou, até, o «devorarem» até à última linha. Mas componho-o para todos, não para alguém em particular. Logo, todas as reacções são-me indispensáveis para a compreensão deste fenómeno. Quanto aos comentários publicitados, ou não, nas listas, é curioso que muito do que ocorre psicologicamente com as pessoas, na sua vida normal, se projecta para a «net». Repare-se que, por maior amor que um casal devote, um ao outro, com o tempo, o «eu amo-te» mútuo deixa de ser pronunciado, porque amar tornou-se um hábito e até lhes pareceria ridículo propagandeá-lo, quotidianamente, na convicção de que o outro «sabe-o», por isso, para quê estar sempre a falar na mesma coisa? Estou a par da alegria que remeto diariamente para muitas casas; mas delas nada espero. O silêncio é uma coisa óptima, se for entendida. Mas também recebi mensagens a solicitar-me que deixasse de o enviar... Auto-excluíam-se da recepção da prenda, mesmo que gratuita. Não lhe deviam reconhecer mérito, ou tinham tarefas, mais importantes, com que se ocupar. O resultado das respostas (que foram muitas!) pode considerar-se como positivo e só agradeço a quem se me dirigiu com palavras de apreço, de estímulo e até de crítica, oferecendo-me sugestões. Os participantes das listas encantam-se - o que é salutar - com os elogios que recebem e eu, sinceramente, até pertenço a esse grupo. Mas também tive ambientes singulares negativos, surpreendentes, os quais, por terem sido ínfimos, poderiam aqui nem merecer referência. Mas se há inibição nalguns deles, noutros sobeja outro comportamento dveras condenável, como a soberba, a ingratidão, a maldade e, quiçá, um sentimento de inveja e de maledicência. Deixei um grupo por causa disso. Por lá estava um mau poeta, sem obra visível, que se julgava superior aos outros e até lhes dava, professoralmente, classificações. Todavia, esse foi um episódio que não ensombrou o sentimento global de muita simpatia e aprofundado respeito que os «Calendários» receberam, na generalidade, na internet. O que agradeço a todos os seus emissários.

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penso que para os poetas, o ato de escrever e principalmente o de ler, leva a um constante aperfeiçoamento da poesia, mas já li certa vez que a poesia é para ser sentida, e que colocá-la no papel seria matá-la um pouco. Haveria lógica nessa afirmação? o que pensas a esse respeito?

A poesia evola por aí, cantarola e boceja, abrilhanta e apenumbrece nos quatro cantos do mundo. Mas só é literatura, quando escrita. Não acredito que escrevê-la a mate; antes pelo contrário, as palavras servem-lhe de espelho. E quanto mais límpido ele estiver, melhor reflete a beleza ou a fealdade do que estiver à sua frente. Os pensadores que nos trazem reflexões dessas têm o cérebro ofuscado pela imponência do seu narcisismo; deveriam descer a escada da superioridade até ao jardim dos comuns mortais e, com eles, comungarem do pão da sabedoria universal e beberem da água cristalina da poesia infinita, tudo amalgamado num sentimento de humildade. Só lhes fazia bem. Não há poeta, sem a escrita da poesia. Nem há poesia, obviamente, sem poeta. Tudo nasce pela palavra e se realiza na e pela palavra. Logo, a afirmação de que o sentir da poesia é suficiente para que ela exista, não tem lógica nenhuma e constitui um atentado ao cerne da Literatura.

“a poesia dos Calendários” é subdividida em tópicos: albano martins,

pitada de sal, bloco poético de notas, Um poeta da madeira, poema inédito do jag, e, eventualmente, textos do “imaginário” e “poemário” com autores editados por assírio&alvim 2004. isso promoveu a divulgação de diversos autores (incluindo-se os novos) e possibilitou, na internet, a condensação de literatura de alta qualidade num mesmo espaço. excluindo-se o teu poema, percebeste se há por parte dos poetas, a preferência por algum desses tópicos, em especial?

Ao criar um naipe específico de secções em «A Poesia dos Calendários» preocupou-me, sobretudo, o seu carácter enciclopédico, especilégico. Pretendia entregar à curiosidade dos leitores um manancial de textos e de informações que os despertasse a um contacto mais acertado com os autores e as suas obras. A minha premissa era - é! - conduzir o leitor, numa viagem subtilmente guiada, pelo palácio global da poesia em Língua Portuguesa (única língua utilizada) e pela possibilidade de, através do seu conteúdo, se sugerir títulos e processos de escrita que despertem algo no seu cônscio sócio-cultural. Não foram poucos os que apuraram os seus métodos de produção criativa, depois de se tornarem «habitués» da página, escrevendo-me a, disso, me darem notícia. Trazer Albano Martins para o convívio internético foi um dos meus maiores prazeres. É um poeta de eleição, um autor maior da poesia universal (este ano recebeu o «Prémio Gabriela Mistral») que merecia ser a janela deste projecto. A «Pitada de Sal» objectiva-se como o «toque» que lhe daria paladar (e onde entrariam prosas e poemas com incidência «filosófica»). O «Bloco Poético de Notas» apontava para a projecção de autores consagrados, enquanto «Um Poeta da Madeira», como se depreende pelo título, perspectivava a difusão dos autores meus pares (é uma das secções, surpreendentemente – ou talvez não... – com maior êxito), reunindo-os

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junto de mim e, assim, não me abandonando à solidão do meu «poema inédito» (que nem sempre o é). As outras secções seguem visões que refuto fundamentais para o historiografar da poesia de todas as épocas. Creio que houve leitores para todas elas. A poesia, portanto, é humana e literariamente cósmica, como se vê.

em relação à poesia:a) ela habita todos os lugares e coisas, a questão é percebê-la.b) se quiseres me conhecer, lê a minha poesia.o que comentarias sobre essas afirmações?Sim, a poesia «habita todos os lugares e coisas», mas não é fundamental

percebê-la. É um acidente. E os acidentes não se explicam. Ela acontece. Envolta em mistério, passeia por aí. A escrita é a máquina fotográfica que lhe apanha um flagrante, um momento. Mas em qualquer outra parte da Terra estão milhares de poetas-«fotógrafos» a repetirem, em simultâneo, a operação. A melhor dela é a que nos obriga a entrar no poema (nem todos eles são poesia; prefiro a denominação de textos), a pensar nele até ao fim da vida. A pior, a supérflua, é a que esquecemos segundos depois de a termos lido. Nenhum poeta se conhece o suficiente para se revelar nos versos que escreve. Se o fizer, o «retrato» vai sair tremido e poderá ser mal interpretado. Se algo de mim se oculta na minha poética, isso é mais por consequência das muitas pegadas que definiram o meu percurso literário e menos por uma intencionalidade autobiográfica. Até porque é saudável amarmos a Obra de um Autor, pelo que ele escreveu e não pelo que foi a sua existência. Pela sua biografia. Uma pessoa miserável pode escrever um livro extraordinariamente maravilhoso; mas uma pessoa boa a escrever um livro miserável é uma circunstância que me faz sofrer. Muitos leitores já foram atingidos por desilusões incicatrizantes, pois criam o poeta à altura do Homem e da Obra, quando muitas vezes nada disso é conciliável. O óptimo seria que todos os grandes escritores fossem grandes homens, ilustres personalidades, cheias de qualidades e de excelentes sentimentos. Às vezes isso acontece. Mas tão raramente que, só de pensar nisso, já é um acontecimento literário.

poesia na internet: há discussões e mais discussões a respeito. formatação

e conteúdo. Qualidade. acessibilidade pelo público. direitos autorais. plágio. o que dizes disso depois de alguns anos nesse meio?

Todas as discussões são legítimas. Mas como acontece em relação ao livro, a maior parte delas são subjectivas e de nulo efeito. A formatação embeleza o texto e contribui para apresentá-lo de modo mais atractivo, como um produto que se quer vender nos centros comerciais (há quem não goste!). O conteúdo não melhora com a formatação. Um mau texto, mesmo que embrulhado em platina e diamantes, continua a ser um texto mau. Neste aspecto, o mesmo se diz sobre a qualidade. Há uma imensidade de teses a pesquisar o que é a qualidade em Literatura e ainda não encontrei nenhuma que tenha o efeito do ovo de Colombo. Mas quando temos um escrito perante os olhos, sabemos (com academismo ou não) se ele vale alguma

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coisa. Há um encantamento, uma beliscadura de originalidade, um toque de Midas, uma bênção de Delfos, naquilo que adjectivamos como um texto de qualidade. Depois, há um treino de leitor que nos faz tocar uma campainha, no cérebro, no nosso espírito crítico, a alertar-nos para uma série de factores, a indicar-nos, com uma certa precisão, qual o sentido do nosso bom gosto, da nossa exigência estética, de um dever intelectual que sublinha a escolha. Ora, um texto não tem que ser, obrigatoriamente, acessível a todos. Mas quando o é, preenchendo todos os quesitos (vejamos o exemplo de «O Principezinho», de Saint-Exupery) da simplicidade e do divino, o milagre acontece. Mas não devemos condicionar a nossa escrita a critérios de terceiros, pois o resultado final nem sempre é recomendável. Sou pela defesa dos direitos autorais e contra o plágio. O escritor é o criador da Obra, logo deve ver respeitados os proventos (de todo o género) dela consequentes. O plágio é um «monstro-de-sete-cabeças» que invadiu historicamente a literatura e não é, ao contrário do que se julga, uma prática exclusivamente moderna. Pegar num original de um autor e republicá-lo com outro nome, é um roubo. Refundi-lo, alterá-lo e divulgá-lo, mudada a identificação do autor, é plágio, para além de um inadmissível abuso. Mas estas matérias estão sujeitas a diferentes interpretações, em cada país, sendo urgente a sua uniformização. Pegar num texto que nos inspira à produção de um outro, conceptualmente independente do primeiro, guardadas as referências que têm as suas raízes na «glosa» é, por outro lado, consequência do próprio movimento cultural que se distribui pelos recantos da inteligência humana. Inspiração, sim; cópia não.

particularmente eu tenho mais curiosidade em conhecer pessoalmente a

tua biblioteca do que a ti... (risos) … o que poderias dizer sobre a tua biblioteca particular?

Costumo dizer que a minha biblioteca é a minha floresta particular. Está cheia de árvores frondosas que guardam histórias, como protegem ninhos de pássaros de invulgar plumagem. Sem ela eu morreria, agonizando de ignorância. Os meus livros contam-se pelas mãos... de um exército, porque fui-os coleccionando desde muito jovem, apesar de não ser propriamente um bibliófilo. Não sou um arquivador de obras literárias. Sou um leitor que as ama e lhes devota uma paixão (cheia de amor e de sofrimento) incomensurável. Lá está um pouco de tudo, desde Allan Poe, Kafka, Byron, Dyllan, Whitman, Shakespeare, Mallarmé, Artaud, Blake, Borges, Vinícius, Drummond, Lorca, até Camões, Sá de Miranda, Garrett, Pessanha, Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, Sena, Cabral do Nascimento, Edmundo de Bettencourt, Ramos Rosa, João Rui de Sousa, Herberto Helder, José Agostinho Baptista, Ernesto Rodrigues e Albano Martins, numa lista extensa que, se fosse a enumerá-la aqui, o espaço da entrevista ficaria curto. Na minha bilbioteca respiro; sobre ela revivo. Sem ela, morro.

a poesia dos Calendários continua em 2005?Veremos... Às vezes ama-se mais o que não se tem, do que aquilo que nos é

dado.

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Quais são os teus outros projetos literários para 2005?Sairão livros em Itália e em Portugal. Esses estão já programados. Uma selecta

bilingue dos meus poemas, patrocinada pelo Instituto Nacional de Cultura Italiana em Lisboa, com traduções de Carlos Martins e Silvana Urzini e prefácio de João Rui de Sousa (Grande Prémio Nacional de Poesia/APE/2003) e um volume de inéditos do «Calendário» para a editora «Colibri» (Lisboa), numa colecção dirigida pelo catedrático, escritor e poeta João David Pinto Correia. A organização da colectânea «Ilha 5» na Madeira e a edição de mais um ou dois livros meus, na colecção «Pilar de Banger» que fundei com «As Sombras no Arvoredo» (Funchal, 2004) e que actualmente dirijo. Por outro lado vou iniciar a publicação da «Biblioteca Essencial da Literatura Madeirense», num espólio que irá integrar cem títulos de autores de todas as épocas, desde o século XV até à actualidade. Irei continuar a dar voz crítica aos livros num programa aos microfones do Centro Regional da Radiodifusão Portuguesa e tenciono preparar um momento diário, antes dos noticiários, do género «Um Poema por Dia». O regresso à fundação e direcção de um «Suplemento Literário» na imprensa local não está, também, a ser descurada. Ando a pensar nisso. Muita coisa ficou ainda de fora, na resposta. Está guardada nos cofres do Olimpo. Falar nas coisas antes delas estarem concretizadas, às vezes trama-nos...

ao pé do ouvido: jag, disseste em mais de um poema sobre o fato das

palavras irem ao teu encontro, e eu acredito, e deixo um recado: quando elas fizerem muita algazarra por aí, mande-as bater aqui na porta da minha casa, eu não vou ficar nada zangada...

Está combinado. Sei que farás com elas uso apropriado, com a tua bela poesia ou deliciosa prosa. O Brasil precisa da tua capacidade voluntariosa e génio literários. Com o tempo, terás outras coisas a bater à tua porta. Como o êxito literário, por exemplo. Acompanhado de reconhecimento público.

obrigada jag, em meu nome e em nome de outros poetas da “rede”, pela

“a poesia dos Calendários”.Eu é que agradeço. Sou o viandante sedento. Obrigado por me entregares um

pouco do espaço do teu oásis. Nele, saciarei a minha sede. E deitar-me-ei ao sol, sobre a areia, pensando no mar.

em 28 de Dezembro de 2004.

© 2004 Cissa de Oliveira e José António Gonçalves

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entrevista de março de 2004, sob o tema A Liberdade

por José Alexandre Ramos

Como viveu o 25 de abril de 1974?De forma exuberante, mas ainda temerosa e sob o efeito da surpresa. Estava de

serviço na véspera na redacção do “Jornal da Madeira”, onde era jornalista profissional (hoje continuo a sê-lo, mas como “freelancer”) e ficara com o fecho da edição, era o chamado “redactor-da-noite”. Uns dias antes, no 16 de Março, a tentativa de golpe militar falhara os seus intentos e pouco se falara nisso publicamente, ainda receosos das escutas da polícia política. Todavia, ninguém se apercebeu na Madeira (a não ser os que estiveram em contacto com o Continente) de que a “revolução dos cravos” estava em marcha. O meu regresso ao local de trabalho ocorria só ao princípio da tarde, mas de manhã, bem cedo, fui acordado por um telefonema de um amigo que me dizia que o Governo de Marcelo Caetano havia caído. Eu, sinceramente, não acreditei imediatamente e fiquei à espera da resposta do Estado ao “movimento dos capitães”. Com o passar das horas tudo se consolidou e a festa da chegada da democracia implantou-se no coração dos portugueses. À noite tivemos de preparar o título da edição seguinte e, como o meu jornal estava ligado à Igreja (ainda hoje está), foi preciso ter muitas cautelas e resistir; houve tentativas de ocupação por grupos extremistas de esquerda, medo de represálias, mas depois tudo acabou em bem. O papel que desempenhámos foi fundamental para o esclarecimento do novo sistema e um baluarte na defesa da Autonomia na Madeira e também nos Açores, com a produção e divulgação de suplementos sobre a sua realidade (dos quais eu e o meu colega Luís Filipe Malheiro fomos os autores). É difícil esquecer a data e as suas consequências para o País. Não nos esqueçamos que até foi à Madeira que coube, durante alguns dias, o papel de cárcere do Presidente do Conselho de Ministros, do Presidente da República (Américo Thomaz) e dos ministros Silva Cunha, Moreira Baptista e de outras personalidades. No dia 1 de Maio o povo saiu à rua e ficou-nos a sensação de que a conquista da Liberdade era já irreversível, sendo porém necessária a lucidez para enfrentar as novas ameaças vindas de outra ditadura, da União Soviética e dos seus apaniguados, assim como da dúvida sobre o que aconteceria com os territórios ultramarinos, os quais acabaram por alcançar a independência. Portugal deixava de estar “orgulhosamente só” no mundo e tornara-se parte integrante da história da humanidade, escrevendo um brilhante capítulo sobre a aquisição de direitos, liberdades, deveres e garantias, entre os quais os que ficaram consagrado na Constituição de 76, o de reunião, manifestação, livre expressão, fundação de partidos e a instauração do voto popular e secreto. Parecia uma mentira, mas era uma verdade alva, pura e sem sangue - isso só chegou mais tarde - numa bandeira até então castigada pelos ventos do autoritarismo.

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Como era a sua actividade literária antes da revolução?Eu pertencia à JOC-Juventude Operária Católica e havia conquistado o primeiro

prémio de um concurso cujo tema era a célebre frase de Paulo VI, “Todos os Homens São Meus Irmãos” (1972). Estava incluído no volume de Maria Alberta Menéres “O Poeta Faz-se aos Dez Anos” (Assírio & Alvim, 1973), com direito a um capítulo “Uma Voz que Vem do Funchal” (recentemente a obra foi reeditada, mas incompleta, mutilada da segunda parte (não sei como a autora o permitiu, mas esta é a política das editoras) e no “Movimento - Cadernos de Poesia & Crítica” (nº. 1 e único, Funchal, org. A. J. Vieira de Freitas, Funchal, 1973), ao lado de António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Pedro Támen, José Bento, Vieira de Freitas, José Agostinho Baptista e Gualdino Avelino Rodrigues. No “Jornal da Madeira” dirigia a “Página 2000”, suplemento que foi responsável pelo aparecimento de muitos dos valores literários da Madeira actual e que eclodiu na criação da “ILHA”, uma espécie de epicentro de um pequeno terramoto cultural que veio alterar o estado de coisas nas letras locais. Saíram quatro volumes (Ilha, 1975; Ilha 2, prefácio de Natália Correia, 1979; Ilha 3, prefácio meu, 1991 e “Ilha 4”, prefácio de Ernesto Rodrigues, 1994) e abriu-se a porta à criação da colecção “Cadernos Ilha” de que saíram dezena e meia de títulos. Nesse tempo eu tinha várias secções no matutino onde trabalhava, incluindo a “Réstea de Qualquer Coisa”, a qual me foi suspensa então pelos Serviços de Censura que apenas actuavam à posteriori, com a desculpa de que o seu conteúdo poético e metafórico não era compreendido pelos leitores. O meu director era D. Maurílio de Gouveia (actual Arcebispo de Évora) e, com o seu apoio, reuni dezoito das crónica em livro, com o mesmo título e publiquei-o em 1973. Uma dessas crónicas foi escolhida por Fernando Venâncio e seleccionada como uma das cem melhores para o volume “Crónica Jornalística - Séc. XX”, edição do “Círculo de Leitores”, 2004. Eu ainda nem tinha vinte anos quando o livro saiu a público, mas ninguém me incomodou. Ofereci um exemplar autografado aos senhores do “lápis azul” para ver a reacção, mas não houve nenhuma. Ainda não vi a antologia de textos do “Círculo de Leitores”, mas Fernando Venâncio afirma que nela estão “os pensadores, os sonhadores, os indignados, os indulgentes, os reformadores da vida própria e da alheia”. Sinceramente, eu revejo-me em todas essas expressões. Apesar de muito jovem, conheci e assisti na ilha a conferências e a encontros com Ferreira de Castro, Assis Esperança, Natália Correia, António Aragão, Liberto Cruz, João Palma-Ferreira, Hernâni Cidade, entre outros, tendo até entrevistado alguns deles. A liberdade que nos faltava politicamente, habitava o tabernáculo da palavra metafórica. A literatura, sobretudo a poesia, parecia um espaço de fuga, para nós com sentido a dobrar, pois antes da busca de um caminho de libertação, éramos também os “prisioneiros da ilha”, os “Papillon” naturais de um degredo insular, onde as notícias chegavam tardiamente, não havia universidade, os livros e as bibliotecas escasseavam (honra seja feita a Calouste Gulbenkian pelo seu “milagre”) e a mentalidade do gentio com o chapéu-na-mão perante o Poder estava instalada. Com o 25 de Abril passou-se a respirar melhor na Madeira e no Porto Santo. E o processo autonómico finalmente trouxe o progresso, o desenvolvimento que fez esquecer as pedras gastas do calhau do passado.

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experimentou o peso da censura? Foi uma experiência esporádica com a minha secção “Réstea de Qualquer

Coisa”. Todos sabíamos dos métodos do regime para cercear a liberdade de expressão. Mas torneávamo-los com muita calma e até elegância. O “Jornal da Madeira”, pelo facto de pertencer à Diocese do Funchal, não era alvo de “censura prévia”, mas à do “post”, á excepção dos suplementos “A Ilha”, coordenados pelo colega António Jorge Calisto Andrade, que tinha entre os colaboradores figuras cimeiras do pensamento português, como Afonso Botelho, Pinharanda Gomes, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, entre outros, a escreverem sobre Leonardo Coimbra ou Agostinho Silva e a fundarem a “Escola Formal” (de que ainda guardo alguns números). Eram, nalguns casos, filósofos próximos até da Direita, mas da Direita inteligente, criativa, reformadora, incomodada e incómoda. Recordo-me dos seus belos textos, avidamente devorados quando chegavam, completos e amplos e, depois das tesouradas dos serviços censórios oficiais, tão enxutos, curtos, retalhados. Às vezes ficavam incompreensíveis. Só nos lembravam Kafka pelo seu círculo infindável de actividade persecutório até aos limites da razão, ou mesmo Edgar Allan Poe, pela sua faceta tétrica e misteriosa. No meio daquilo havia qualquer coisa de aventura, de um medo incaracterístico cheirando às histórias de Arthur Conan Doyle ou de Edgar Wallace, com os seus círculos secretos de finais insondáveis. Mas havia um certo ridículo, também, no meio daquilo tudo. O meu jornal chegou a deixar em branco os espaços das linhas cortadas, para que o leitor se apercebesse que a ideia estava incompleta e que algo tinha acontecido ao articulado. No caso do “Comércio do Funchal”, onde tínhamos o Liberato Fernandes, o Vicente Jorge Silva, o Artur Andrade, o José Manuel Barroso, então o drama era tão de “vaudeville” que os artigos eram, nalguns casos, totalmente amputados, ou ficando de fora uma palavras ininteligíveis e fora de todo o contexto. Do arrepio, passava-se à gargalhada e vice-versa. Outro periódico alvo de dentadas censórias era o “Diário da Madeira”, o qual pela pena de Cesário Nunes beliscava o sistema, mas com uma ingenuidade tal que hoje pareceria impensável que causasse algum mal político ou conjuntural. O caso mais falado foi, porém, o do romance “Canga”, do escritor meu amigo Horácio Bento de Gouveia (de quem organizei, prefaciei e publiquei, postumamente, o volume “Crónicas do Norte”, 1994), um confrade de Aquilino, Hernâni Cidade (que lhe prefaciaram obras), Ferreira de Castro, entre outros. A Censura cortou-lhe o título da obra, que nas primeiras edições ficou como “Ilhéus” e retirou-lhe alguns dos seus capítulos. Apesar de ser um intelectual conservador, mas paradoxalmente progressista na abordagem dos temas que escolhia para as tramas dos seus livros (o trabalho das bordadeiras, a emigração, a lavoura, por exemplo), não o deixaram explanar o que pensava sobre o regime da colonia, um dos sistemas de exploração da terra, no estilo dos “meeiros”, dividindo o senhorio com os caseiros a produção agrícola, o qual terminou por iniciativa dos governos de Alberto João Jardim, através de diploma próprio aprovado na Assembleia Regional. Só depois do 25 de Abril, a “Coimbra Editora” repôs-lhe a edição completa do livro, cuja capa ostentava, finalmente, o título original de “Canga”. Lembro-me da emoção que senti e que compartilhei com o autor, já com

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certa idade (nasceu em 1901 em Ponta Delgada, S. Vicente, Madeira, e faleceu no Funchal em 1983), mas muito lúcido e feliz. Depois disso ainda o ajudámos na edição do seu romance “Margareta” (1980) e na de “Luiza Marta - Ficção e Memória”, tendo este já sido publicado, pelo Governo da Madeira (Secretaria Regional do turismo e Cultura), a título póstumo. Pode-se dizer que cheguei a experimentar parcelarmente o peso da Censura e ela não me deixou nenhuma saudade. A democracia também trouxe a verdade das gavetas vazias dos escritores que se diziam perseguidos, mas contribuiu para que a água criativa corresse no leito dos rios da Liberdade, sem as limitações das comportas. Esperemos que a auto-censura não venha a imperar no quotidiano nacional, não especialmente no âmbito da Literatura, mas principalmente no do Jornalismo, como principalmente se viu nos executivos de Mário Soares e de António Guterres. Tudo parecia que estava bem e, de repente, o céu desabou na cabeça dos “gauleses” lusitanos, com a sua realidade cruel, conduzindo a sacrifícios pesados e que seriam desnecessários, especialmente se estivéssemos a receber hoje os resultados dos investimentos europeus de ontem, em vez de tudo quase ter regressado às origens.

sendo madeirense, que mudanças profundas trouxe para o arquipélago da

madeira o 25 de abril, a todos os níveis: político, social, económico e cultural?Fundamentalmente o da conquista constitucional da Autonomia. Politicamente

os madeirenses têm um Parlamento e um Governo Próprios, podendo gizar e cuidar dos seus destinos. Os antigos Governadores Civis passaram à história, o que proximamente também irá acontecer com o seu resquício político que é o cargo de Ministro da República. Até tínhamos regedores em vez de Juntas de Freguesia. As eleições são livres e verdadeiramente populares. Porém, o mais importante foi uma certa evolução de mentalidades, a qual acompanhou a “revolução tranquila” que trouxe um presente de bem-estar e melhor qualidade de vida à população local. É claro que o impedimento na Lei Fundamental de criação de partidos regionais obriga a que os que cá estão representados sejam uma extensão das siglas sediadas em Lisboa, mas já com poderes e competências próprias. Tanto a Madeira como os Açores dispõem, por outro lado, de Estatuto Político-Administrativo próprios, conferindo-lhe capacidades impensáveis mesmo aquando da Constituição de 76, entre as quais a regionalização de serviços como os da Saúde e da Justiça, por exemplo, para nem referir o da Educação e do Turismo. A criação do incompreendido Centro Internacional de Negócios, com o sistema “of shore” e o Registo Internacional de Navios, a proliferação de Centros Regionais de Saúde por todos os concelhos e freguesias, o mesmo ocorrendo com as escolas Básicas e Secundárias, o Centro Interncional de Congressos e a própria estrutura do Madeira Técnopolo, com a Universidade da Madeira em pleno funcionamento, a investigação científica nas pescas, actividades sub-aquáticas, na flora e na fauna animal, a Laurissilva (hoje património mundial declarado pela Unesco), o Parque Natural que ocupa dois terços da Região, os parques industriais descentralizados, a completa electrificação e a instalação global de fornecimento de

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água potável, a industrialização programada para combater o desemprego, a Escola Hoteleira, os Centros de Formação Profissional, o crescimento da oferta turística com a construção de hotéis de qualidade de quatro e cinco estrelas e a recuperação de antigas quintas e casas senhoriais para o turismo rural, a edificação por toda a Região de pavilhões desportivos, a construção de túneis que hoje atravessam toda a ilha, tornando próximas as localidades rurais das áreas urbanas, os centros de lazer para os idosos, a implementação de serviços de solidariedade social exemplares no país, a construção de cais em todas as zonas de acesso marítimo, a ampliação do aeroporto, conferindo-lhe capacidade intercontinental, a modernização de sectores produtivos, desde o agrícola até aos parques gráficos, tudo isso, para deixar aqui uma pequena síntese, tornou a Madeira e o Porto Santo ilhas europeias, desenvolvidas, a orgulhar Portugal no mundo. Quem duvidar que a visite e veja com os seus próprios olhos. As ilhas Desertas e as Selvagens são também um património da natureza devidamente protegido, como o testemunharam os últimos Presidentes da República e diversas e prestigiadas organizações internacionais. Culturalmente, à excepção dos comuns problemas de edição e de distribuição das obras dos seus autores, também nada é comparável com o passado. A Madeira vai, pois, no bom caminho nesse campo. E desde que se avive a memória dos portugueses, veja-se a qualidade literária de alguns madeirenses, muitos deles a viverem até no Continente. Nomes? Herberto Helder, José Agostinho Baptista, José Tolentino Mendonça, José Viale Moutinho, Helena Marques, Ana Teresa Mereira, Maria de Menezes, Isabel Aguiar Barcelos, entre outros, para nem recordar Cabral do Nascimento, Edmundo de Bettencourt, ou nas actividades plásticas, cinema, jornalismo, Lourdes de Castro, Martha Telles, Cunha Teles, Vicente Jorge Silva, Ângela Caires. Ou para nem referir o trabalho do Conservatório de Música da Madeira, os excelentes Coros e a Orquestra de Câmara, os grupos de música tradicional, “Xarabanda”, “Banda D’Além”, “Encontros da Eira”, os agrupamentos de teatro, com o TEF-Teatro Experimental do Funchal na vanguarda...

a visibilidade sobre os autores madeirenses cresceu, no panorama literário

nacional, depois da revolução?Cresceu na mesma proporção em que cresceu a inteligência nacional. Quem é

que se preocupa com a Literatura? Quem quer saber dos autores madeirenses? Acabei de entregar na Secretaria Regional da Educação o projecto “Biblioteca Essencial de Literatura Madeirense”, coligindo mais de uma centena de títulos, muitos deles ainda ao alcance dos leitores em bibliotecas e livrarias e outros com o alerta público para a necessidade de os reeditar, mas o que aconteceu? Sendo um projecto em aberto e esperando-se por contributos que o enriquecessem, soubemos de uma conferência-debate na Universidade do Minho, onde se contestava se haveria ou não uma Literatura Madeirense, assim como da reclamação surda de alguns autores vivos (os mortos se estivessem no lugar deles talvez ficassem contentes com a iniciativa) que queriam ter mais livros ou os livros seus de que mais gostam, sobretudo os premiados, no cerne da lista... Ora, perante isto, o que dizer? O Herberto Helder recusa prémios, como o

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“Pessoa” do “Expresso”, no valor de milhares de contos, não quer estátuas, nem no “Jardim dos Poetas” de Oeiras, nem em lado nenhum, mas autores que nem nasceram na Madeira, mas que são distinguidos com sete títulos numa relação de autores a ser divulgada nas escolas, não ficam suficientemente satisfeitos e a sua vaidade exige-lhes mais para satisfação das ambições do seu umbigo. Porém, por outro lado, acontecem coisas interessantes. Alguns de nós, vivendo na ilha, têm edições com chancelas nacionais, a Campo das Letras e a Assírio & Alvim até fazem parcerias com a Direcção Regional dos Assuntos Culturais e a Câmara Municipal do Funchal. Escritores de que não se falava como madeirenses antes, hoje são reconhecidos como tal. Já não está mau. Poderia ser pior...

actualmente o acto de escrever sobre tudo e todos, como suposta literatura,

está alargado a um maior leque de pessoas, para o que terá contribuído muito a internet. muita gente escreve e é lida neste meio. em termos literários podemos afirmar que há um abuso da arte de escrever? refiro-me essencialmente aos blogs onde há uma boa parte de pretensos escritores e poetas que debitam muitas palavras mas pouca arte. Que comentários faz?

Não me admira nada que isso tivesse acontecido. No meu caso eu estava já publicado em papel, mas interessei-me pelo virtual a partir do momento em que o meu filho, o pintor Marco António Gonçalves, me distinguiu com a criação de um “site” (ou “sítio” ou “home-page”, como quiserem). Parece que fiquei com a obrigação de “me” explicar perante os outros. Estava de repente na “internet” e desejava, sinceramente comunicar. Estar disponível para os dois sentidos, para dizer e para escutar. Tornou-se uma experiência tão interessante que me conduziu a conhecer pessoas apenas pelo conteúdo das suas mensagens e a estimar outras, somente pela revelação do seu interesse pela minha escrita. Estás tu, meu caro amigo José Alexandre, com a “Alternância” e o José Félix, com o “Encontro de Escritas”, o José Leon Machado, com o “Projecto Vercial”, o Manuel de Carvalho, do Canadá, com o “Satúrnia”, Maria Seixas com a “Gaiola Aberta”, a Cláudia Villela de Andrade com a “PAX - Poesia Encantada”, no Brasil, e por aí adiante, não podendo esquecer a “Garganta da Serpente”, “O Cisco Tronitruante”, do Maurício Limeira, a Fernanda Guimarães, a Isar Maria Silveira e a Rosa Pena, do “Ponto do Encontro”, o Joaquim Evónio da “Varanda das Estrelícias”, o João do Carmo com o seu “Poetas do IRC”, entre tantos outros que aqui seria fastidioso citar, mas estando grato a todos e a cada um. Pertenço a quase três dezenas de grupos de discussão e fui incluído em muitos “sites” e “blogs”, às vezes até sem o meu conhecimento. Mas é para isso que serve esta estrada de comunicação global. Agora acaba de sair a “Antologia Escritas nº.1”, organizada pelo José Félix, onde estou, com poetas de Portugal, Brasil e Angola. Tudo isto é muito estimulante e ainda vai por aqui. Diariamente confecciono desde 1 de Janeiro “a poesia dos CALENDÁRIOS”, onde coloco textos e autores de que gosto, divulgo poetas da Madeira e insiro um poema da minha autoria (quase sempre um inédito). É, na realidade, muito trabalho, mas vale a pena. Claro que nem tudo o que nos aparece na rede é literatura e que muitos

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debitam, como dizes, “muitas palavras e pouca Arte”. Mas esse fenómeno já vem do papel, dos suplementos literários, de algumas antologias rotineiras e até das rádios, com alguns programas quase caseiros, a satisfazer os pedidos dos compadres. Creio que o tempo – ainda estamos na idade da pedra cibernética (ou cibernauta, como também se diz) – irá servir de peneira, ensinar muito autor a polir os seus diamantes brutos e os seus utilizadores a serem mais exigentes. Mas do mesmo modo que sempre haverá pobres e ricos, quem diz sim e quem diz não, também haverá bons e maus escritores. O problema é o da bitola e de quem a comandará e com que critérios. É preciso que haja sempre tempestades culturais para, na recolha dos despojos náufragos, se saber o que é bom e o que é mau; se o que perdemos valia a pena e se o que recolhemos voltará a ter alguma utilidade. Deixemos então que a poeira assente.

Crê que, seja a nível literário ou jornalístico (uma vez que também é

jornalista), estamos hoje perante um abuso da liberdade de expressão? estou a lembrar-me do livro o meu pipi, blog que saiu em livro...

Não. Para haver abuso teria de haver um código ético, ou deontológico, com carácter universal, o que me parece muito difícil de conseguir impor já que a mais valia da internet é exactamente a ultrapassagem das barreiras na distribuição e aquisição de bens informativos. Todavia, julgo que a imperativa do bom-gosto deveria ser visível na produção destes meios. E isso é uma coisa que recebemos de berço. O “Meu pipi” não me interessa, nem na rede, nem como livro. O meu tempo é exíguo e preciso de aproveitá-lo ao máximo. Em obras úteis e em passos positivos.

o que representa para si, enquanto poeta e homem, a liberdade?O mesmo que o seu contrário, ou seja, a sua perda. Só damos por ela quando ficamos

despojados do seu usufruto. Ninguém imagina como é importante olharmo-la de frente, no respeito que uma palavra específica merece para identificar o bem maior da Humanidade. Lembro-me de se dizer logo após o 25 de Abril que a Liberdade era o direito que eu tinha para não ocupar o espaço de Liberdade dos outros. Ora, sendo inapalpável, é um dos valores mais concretos que conheço e com quem sempre convivi, desde que me lembro. Ou seja, é também um sentimento. E, por dentro, nas catacumbas da minha alma, sempre fui um homem livre. Um poeta que vive para respirar essa brisa, o vento da Liberdade. Só a sonoridade da palavra já me arrepia e suscita reverência. Teremos de aprender a viver com ela e as suas maleitas, pois sem ela é que é traumático e impossível sobreviver. A falta de liberdade ainda hoje, nalgumas nações beneficiadas por campanhas animadas de “marketing” para exportação – como Cuba, por exemplo - diminui o homem a uma condição de escravo, um escravo-novo, já no século XXI. Não se admirem que esses povos um dia façam soltar a tampa da panela em que são cozidos como prisioneiros, aplicando correctivos inesperados aos títeres. Basta olhar para as páginas da história...

tem utilizado o mailzine para divulgar a sua poesia ao mesmo tempo que

dá a conhecer também outros autores. o método tem funcionado, isto é, tem tido um feed-back positivo?

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Sim. Eu não gosto de me sentir sozinho. Sofro talvez da síndroma da solidão. Não era capaz de me divulgar singularmente na “net”, enquanto autor, sem lá, com as mesmas possibilidades, colocar os meus pares, muitos deles com obra mais valiosa e urgente do que a minha. É assim que os poetas da Madeira estão a ser promovidos pelo mundo em simultâneo com os consagrados, sempre em Língua Portuguesa, através do segmento que inventei “a poesia dos CALENDÁRIOS”. É curioso que recebo respostas de muito lado, fazendo perguntas, pedindo repetições de envio ou o remetimento de vários números, pois há muita gente a repassar e a coleccionar. Começou numa brincadeira, para ver o que acontecia. Hoje, tenho leitores que não conseguem começar o dia sem uma consulta a essa proposta de divulgação literária. Para permitir o facilitar desses desejos, tanto o “Encontro de Escritas” como o meu “site” possuem “links” de acesso às edições atrasadas. Há até quem imprima dia-a-dia os seus conteúdos, quase duas dezenas de páginas a cores, só para terem o prazer de lhes tocar, de sentirem a textura do papel no decurso das leituras. Espero ter força, anima e material para continuar, pois isto exige muito. “É obra!”, como me escreveu Albano Martins, esse grande poeta do amor.

Quando teremos o grande livro de poesia do poeta josé antónio

gonçalves? tem um projecto novo para o plano editorial?Já não lanço nada de novo depois de “Memórias da Casa de Pedra” e “O Sol

na Gaveta” - onde traço um percurso biográfico do escritor e governante madeirense João Carlos Abreu, meu velho colega do “Jornal da Madeira” -, obras saídas nos finais de 2002, princípios de 2003. Pelo meio ficaram os meus trinta anos de literatura, a entrega à “internet” e outros projectos que concretizei. Agora chegou a vez de “As Sombras no Arvoredo”, um livro que vou fazer em edição de autor, começando uma nova colecção, para depois dar lugar e voz a outros. A particularidade deste meu novo título é ser constituído por poemas escritos directamente para a “rede”, sem interferência do papel ou da caneta, coisa que para mim seria impensável há um ano. Mas tudo passa e a hora, agora, é outra. O opúsculo terá mais de cem páginas, com capa e projecto gráfico do meu filho Marco António. O lançamento será nos finais de Abril, na Feira do Livro e da Comunicação do Funchal. Quanto a um futuro “grande livro de poesia” da minha autoria, isso deverá acontecer dentro de algum tempo, com uma edição para o Brasil e outra para Portugal em forma de antologia. Entretanto sairá uma edição bilingue em Itália, tipo “Poesia Escolhida”, assim como integrarei uma antologia do Conto de autores madeirenses (com Herberto Helder, Ana Teresa Pereira, Ernesto Leal, Helena Marques, entre outros) a publicar nesse mesmo país. Nunca pensei verdadeiramente em ter “o” grande livro, pois parece que isso implica alguma divindade. E eu sou um plebeu, nestas lides.

Há alguma razão particular para que os autores madeirenses estejam tão

pouco divulgados?Desinteresse das editoras, panelinhas na comunicação social, ausência de

apoios fora da Madeira (os autores nacionais ainda lá vão em busca deles), menosprezo

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pelo que não é originário de Lisboa e Porto, preconceito intelectual pelo talento dos outros, especialmente se forem de muito longe e tiverem qualidade, a insularidades e as suas sequelas (de mais de quinhentos anos de colonização do Arquipélago), a falta de distribuidoras abertas à aceitação dos livros publicados na Região para a sua colocação nas livrarias do Continente e o cansaço. Os escritores madeirenses são humanos e cansam-se dessas coisas, como todos os outros se cansam de carregar rocha que não é aproveitada na construção e deitada à ribeira, para ser perdida no mar.

em quatro ou cinco versos, pode dar-nos uma poética definição de

liberdade?Com muito gosto. Então fica assim: PARA VENCER A CEGUEIRA No meu peito há um vento uma tochauma multidão gritando a meio da tarde.Empunha com mão firme a bandeirada razão, dura e bela como a rochaque segura a palavra livre, a Liberdade. obrigado pela entrevista.O prazer foi meu. Muitos parabéns pelo extraordinário trabalho levado a cabo

na rede com a “Alternância”. Desejo-vos a continuação dos maiores êxitos.

© 2004 alternância

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resenha crítica sobre josé antónio gonçalvesPor António Fournier

Um jovem madeirense, José António de Freitas Gonçalves, autor de uma poesia, onde, só por si, se ressuma o sentir e o pensar da uma identidade insular, credenciando-o, pelo rigor da sua construção e por nela se adivinhar o poeta empenhado sem reservas na procura dos caminhos da aventura poética, acaba de chegar aos Açores. E chega-nos através de um opúsculo onde reuniu crónicas por ele publicadas, sob a mesma epígrafe, no Jornal da Madeira. E valeu a pena. Merece-nos o maior respeito o pequeno volume, por se tratar de testemunho autêntico, de alguém que se debruça sobre o quotidiano para, aí, exercer a experiência humana que, transportada para o papel, se nos oferece como experiência singular. Réstea de Qualquer Coisa fornece dados muito preciosos sobre a juventude de hoje. Sendo o relato de uma sensibilidade individualizada, transcende o mero confessionalismo da adoslescência, para se afirmar como sinal de um tempo e de um modo, comuns a vários extractos da juventude.

José Henrique Santos Barros, “Nota sobre Réstea de Qualquer Coisa” in Jornal da Madeira, de 2/8/1973.

Poesia em prosa é todo este livro que José António de Freitas Gonçalves lança à publicidade e que constitui auspiciosa estreia de um expressivo valor, que há-de, certamente, firmar-se no futuro com obras de maior fôlego. Réstea de Qualquer Coisa é o seu título e, como por este se depreende, são excertos curtos, breves, mas nem por isso limitados, no plano e no desenvolvimento das ideias, aqui servidas por uma linguagem movimentada e clara. São reflexões, por vezes amargas, de uma alma que se debruça sobre o cotidiano e encontra, na superfície, a flor maravilhosa que o pântano imundo alimenta, na raiz. O paradoxo e o contraste servem assim para ironizar e descrer da aparência formalista que constitui o verniz do dia-a-dia e a glória de um mundo de títeres.

A.G., “Réstea de Qualquer Coisa, José António de Freitas Gonçalves”, in secção “Voz das Artes e das Letras”, Voz da Madeira, de 4/4/1973.

Estamos perante um opúsculo que insere algumas poesias de alguém que, bastante jovem, é já um “caso” no orbe na poesia portuguesa. Sob o título da primeira das poesias que constitui a obra vinda à luz, José António Gonçalves traz algo daquilo que constitui o seu belo estilo de versejar. Num meio como o nosso, fraquíssimo em iniciativas de tipo cultural, José António Gonçalves (e porque não citar também António José V. de Freitas Gonçalves ou Gualdino Rodrigues ou João da Silva, embora de

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géneros diferentes?) pertence àquela sólida estirpe dos que não cedem às intempéries dos medíocres. Os seus opúsculos que avaramente folheamos, no ritmo de publicação a que o poeta com ousadia se não furta, são na verdade uma “réstea de qualquer coisa”, parafraseando o autor. O elemento urbano, “ruas cinzentas”, “calçada”, “pedra-viva”, mantém-se uma constante na poesia de J.A.Gonçalves. Novamente nesta É Madrugada e Sinto se revela como que a obsessão de um espírito rebelmente apanhado nas teias do monstro que é a cidade.

“É Madrugada e Sinto – novo caderno de poesias de José António Gonçalves”, in Voz da Madeira, 4/9/1974.

É para mim uma grande, um saboroso, um fundo prazer (para não dizer uma honra, porque também!) abordar neste espaço o novo livro 20 textos para falar de mim, o primeiro dos «Cadernos da Ilha», como o anuncia o seu autor, José António Gonçalves. Conheço-o há muitos anos, de maneira que me parece conhecê-lo desde sempre. Há uns bons quinze anos fui chamada a apresentar no Pátio um livro dum grupo de jovens poetas madeirenses: acabara de chegar à Madeira, período conturbado, e o convite deu-me uma secreta alegria. Partiu do nosso José António Gonçalves. Poeta a nascer na ilha, a afirmar-se nela, a fazer força para que houvesse uma voz poética. Nunca permiti que me afastassem dum olhar atento ao trabalho do então jovem José António. Havia nele uma força, uma coragem, um prazer de aprender, um jeito próprio de estar nas coisas e na vida que prometiam da então semente, um fruto. Fiz dele um companheiro da noite, um interlocutor válido, um parceiro de poesia vagabunda (mas sempre poesia!). Tenho em casa guardanapos de papel que são os poemas vadios que o Zé António esqueceu por mesas de alegre convívio. Vi-o empenhado no movimento ilha. Assisti ao entusiasmo do conjunto poético da Ilha I, da Ilha II, num desafio às águas mornas da cultura, numa frontalidade peculiar de quem quer agarrar os pequenos nadas e dar-lhes a cor, o sabor e a forma.(...) Nestes 20 textos o poeta deambula dentro dele próprio no jeito peculiar de quem se procura nas coisas, descobrindo-as no acaso do passeio. Quase que me apetece comparar certos poemas, por exemplo, “Almirante reis”, com a poesia de Cesário Verde, na procura do interior das casas, no perfil das ruas, nos cheiros e nos sabores.

Maria Aurora Homem, “20 textos para falar de mim – Breve olhar sobre o novo livro de José António Gonçalves” in Diário de Notícias, Funchal, 12 Junho 1988, depois republicado em Discurs(ilha)ndo, Editorial Calcamar, Funchal,1999.

Entre os vários depoimentos que este livro regista, atestando a qualidade poética do seu autor, destaco o de José Viale Moutinho, o qual, na sua peculiar espontaneidade e transparência crítica, não podia ser mais incisivo e determinante: “… a tua poesia tem uma qualidade pela qual coloco as mãos em brasa”. Na verdade, raras vezes se apresenta a julgamento um balanço de produção poética como este, tão rico, profuso

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e coerente. É seu autor José António Gonçalves, um nome que, não duvido, possui créditos afirmados na Madeira, mas que, aqui, no continente, creio (erro meu?) é quase desconhecido. E isto, desde logo, nos remete para a peculiaridade do ser insular, condicionado que está à ignorância de outros sobre si, apesar de, em rigor, não colher destino diferente, nem estatuto menor, comparativamente a um transmontano ou alentejano, pois que as malhas da cultura que possuímos e celebramos a todos espartilha por igual, quando for a Lisboa. (...) De tudo se servindo, abre o poeta o secreto da sua consciência sócio-amorosa em superior expressão, compungindo-se em diatribes de homem revoltado pelas injustiças que, todavia, cedem ao estado poético que as condiciona. Nesta perspectiva, podemos dizer que, apesar de nestes poemas subsistir larga faixa de aspectos de convergência sócio-política e de condicionalismo geográfico, não são os mesmos corrompidos pelo espírito que os enforma, mercê da contenção estética que o autor soube exercer sobre o que produziu. Por outras palavras, direi que, em tais casos, a essência do discurso fica subvalorizada pela expressão do que determina, pela associação estilística das palavras, pela representação concreta do seu mais autêntico significado ou estado poético.

Ramiro Teixeira, “O salutar prazer de descobrir um poeta” in O primeiro de Janeiro, Quarta, 25 Mar 1992, p.21.

A poesia de José António Gonçalves poder-se-ia definir, sobretudo na sua primeira fase, como “poesia de cidade”, do homem em confronto quotidiano, pela atenção prestada prevalentemente ao ambiente urbano em virtude de uma escolha muito precisa: “farto da poesia imaculada voltei-me para o / cimento, para o laranja da telha, para o rumor / das máquinas, para o ódio que alimenta o / homem” (“Texto em três vozes”, in É Madrugada e Sinto). Esta avança por entre dois polos complementares: a preocupação ética e a consciência estética. Na linha de A.J.Vieira de Freitas, sem porém o seu tom elegíaco. J.A. Gonçalves, cuja palavra poética, ainda que não renegando experiências anteriores, em primeiro lugar a de Cesário Verde, soube nutrir-se dos resultados teóricos, técnicos e expressivos obtidos pela poesia portuguesa do século XX, uma das mais fascinantes e ricas pela pesquisa da linguagem e pelas soluções encontradas – leva a efeito uma indagação da própria linguagem poética e do discurso lógico que remonta com metáforas e um sofisticado sistema de símbolos para reconstruir uma realidade em que frequentemente se misturam lirismo e ironia, mostrando como foram bem assimiladas as lições de poetas como Herberto Helder, Ruy Belo, António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade. O seu sentido de angústia e de solidão não é tanto provocado pela “insularidade” da ilha, quanto da que se alberga no coração do homem, da consciência da função do poeta numa sociedade que não quer escutar: “as palavras destroem-se / iradas contra o silêncio das portas” daí sobrevindo o desejo de reagir isolando-se, logo reprimido: “Nas margens do silêncio habita o pássaro que me domina. / escapo-lhe entre um gesto mas as suas garras dilaceram-me / onde as palavras são mais profundas e um coração pulsa” Nas últimas

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composições sente-se a libertação de um certo subjetivismo inicial e a maior tensão interior que acompanha o prolongar-se da sua indagação poética a todo o real, a todos os objectos a que consegue conferir um valor emblemático capaz de ir além do espaço e além do tempo. A sua poesia viril é testemunho da contínua luta contra a tentação de abandonar-se, de ceder perante o cansaço e as lisonjas de uma vida descomprometida e sossegada; é corajosa rebelião contra a inércia e os limites de uma sociedade baseada no compromisso, contra um ambiente sufocante e claustrofóbico, contra tudo o que tenta apagar a ânsia de renovação e impedir a realização do seu sonho de fraternidade. Mas é também, e talvez mais ainda, testemunha do seu amor pelo fatigante ofício de poeta e pela sua ilha verde, fonte de sofrimento e de poesia, da sua identificação gradual com os elementos que a constituem, tão específicos e contudo tão universais; esses mesmos elementos com os quais é construída, com rara mestria, essencialidade, limpidez, autenticidade interior e força poética, umas das suas composições mais maduras: “Tem o Poder da Água”, que por si só, pela sua capacidade de persuasão, vale para definir J.A. Gonçalves como uma das vozes mais significativas da actual poesia português. (trad. António Fournier)

Giampaolo Tonini, “Contributo allo studio della storia letteraria di Madeira: cultura, società e sentimento dell’insularità nella poesia e nella narrativa degli ultimi vent’anni”, in Silvio Castro e Manuel G. Simões, Rosa dos Ventos, Atti del Convegno Trenta anni di culture di lingua portoghese a Padova e a Venezia, Università di Padova, 1994, pp.170-172.

Em 25 de Agosto de 1994, na celebração dos 250 anos da vila de S. Vicente, quis a autarquia, presidida por Gabriel Drummond, homenagear uma vez mais o artista da vizinha Ponta Delgada e cantor da costa norte da ilha, favorecendo, por interposto discípulo do professor funchalense, um mais perfeito conhecimento do também conferencista, ensaísta e, sobretudo, ficcionista – mas, agora, na faceta de cronista periódico. A ideia vinha sendo alimentada por José António Gonçalves, muito da casa do escritor, e de D. Maria Amélia e filho, homónimo daquele, com o que, juntando à capacidade de irradiação cultural, o sábio acesso às fontes que, jornalista, facilmente domina, pôde desenterrar, maioritariamente do Diário de Notícias ilhéu, 57 textos datados de 1935 e 1981, divididos em sete capítulos: “Vida e natureza”; “Ponta Delgada e a paisagem”, “Respingos de fonética”; “Do passado e do presente”; “Das festas e dos santos populares”, “Memórias da ilha”; “Roteiro sentimental”. A síntese introdutória culpa-me da ignorância do romancista, saudado por Hernâni Cidade e Aquilino, que lhe prefacia Ilhéus (1947; Canga, a partir da 3ª edição, 1975), onde, afinal, já se “abordava o drama da colonia”, como em Lágrimas Correndo Mundo (1959) e em Águas Mansas (1961) se alertava para os “problemas sociais dos engenhos de cana-de-açúcar e da manufacturação do bordado regional”, embora, trazido ao palco citadino, o autor doravante preferisse Margareta (1980), “a odisseia urbana dos amores entre uma turista e um jovem amante da noite madeirense”.

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Ernesto Rodrigues, “Crónicas do Norte” in JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1 Fev 1995, pp.24-25.

Em Os Pássaros Breves, José António Gonçalves fez reunir um conjunto de poemas que, não incluídos nos seus livros anteriores, foram sendo avulsamente publicados em jornais, em revistas (entre as quais O Escritor) e, de modo mais substancial, nos números 3 e 4, saídos respectivamente em 1991 e 1994, dos volumes colectivos Ilha, a cujo movimento de expressão poética o autor está, e a vários títulos, intimamente ligado. Pode acrescentar-se que esse livro carreia, por um lado, poemas de elaboração mais recente, já posteriores ao que, com inteira propriedade, era a sua última obra, 20 Textos para Falar de Mim (1988), e, por outro, uma significativa franja de dispersos, textos mais antigos que, não tendo encontrado lugar, por esta ou aquela razão, nos livros precedentes, sinalizam, também eles, um labor poético já a ultrapassar as duas décadas. (...) Diga-se, desde já, que um dos temas mais visíveis nesta poética é o da melancolia. Presente em numerosas páginas, não deixa de ser verdade que ele se intensifica, com diversificadas conotações, em três ou quatro poemas. (...) Tópico não menos evidente na poesia de José António Gonçalves é o da representação telúrica, da fidelidade do ser ao mais elementar do cosmos e à terra-mãe. (...). Essa menção de “homens” e de “casas” pode introduzir-nos num outro sector desta poética: o da presença do quotidiano. (...) E não queríamos dar por encerrado este abreviado acervo de polos temáticos sem mencionar o tópico do desejo amoroso. Trata-se de um tópico também a figurar-se de diversificada maneira: quer assumir toda a carga apelativa de um texto como “Vem”, discurso de chamamento destinado a um “anjo de transparências, de mãos brancas e suaves”; quer, como no caso de “Crónica do Náufrago Adormecido nos Braços de uma Sereia”, a recriar uma atmosfera luminosa e mítica onde, sugestivamente, todas as metamorfoses de felicidade amorosa são possíveis (...). O naipe de recursos, episódicos ou não, exibido por José António Gonçalves, enquadra-se bem num estilo de voz e num testemunho que, recusando ostensivamente qualquer forma de angelismo (“não voam anjos pelos cantos do salão”, pode ler-se na adensada composição intitulada “Royal”), qualquer idealização tendente a iludir a riqueza, o contraditório ou os embaraços da praxis existencial, tendem a perfazer-se numa amadurecida simbiose entre a necessária fidelidade ao real e a transfiguração metafórica com que se supera o excesso simplificante, o discurso apenas denotativo. Uma simbiose – vêmo-lo, exemplarmente, na notável sequência, de feição epigramática, intitulada “No Último Suspiro de Salvador Dali” – por vezes a conjugar-se com um despojamento onde convivem tensão e amplitude referencial, desenvoltura inventiva e palavra emocionada. Uma simbiose onde a nudez, o espectral ou a indigência do nada – esse nada que, por um curioso acaso, é o último vocábulo dos poemas inicial e final de Os Pássaros Breves – estabelece diálogo com a fremência e a imprevisibilidade de um tudo que, sempre pelas margens do sonho, é corpo de aventura e lugar de fidelidade, é ligação ao terrestre e sobrevoo através da aspiração e do risco, é sinalização da lucidez possível e multímoda itinerância de uma paixão não rasurável.

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João Rui de Sousa, “José António Gonçalves ou as margens do sonho” in Os Pássaros Breves, Átrio, Lisboa, 1995, pp. 37-43.

A feição mais consistente em José António Gonçalves é a de poeta-orador. Discursivo, socorre-se de descrição adjectiva, em verso tendencialmente longo, já contraponteado em palavra-verso ou nas síncopes interiores de ponto final. Assim, ritmado sem aconchego de metros, concatena-se segundo encavalgamentos que, nos anos 70, tanto apostavam em finais de artigo ou contracção preposicional como na cisão de vocábulos, deste modo comuns aos dois, com que se perseguia um sentido sempre esquivo. Jogava-se, do mesmo pé, num efeito-surpresa, também adequado à rebeldia de jovens criadores. A ausência de pontuação encadeava os discursos da vida e da arte, como se o nosso fosse mais um a engrenar, e com direito a ser ouvido, em tempos difíceis para a liberdade de expressão ou, tão-só, para o desejo de ter voz. As minúsculas iniciais, dominantes, simulavam-no solidário e intérmino, como provindo de uma linhagem que exigia outros ecos; se no meio dessa massa vocabular, e no contexto ante e imediatamente pós-abrilino, recusava-se, contra a regra gramatical, tratamento de privilégio. Um tom recto, nunca exaltado se bem que amiúde sensível e comovido, evola-se, entretanto, desta poesia, onde espaços entre palavras ou frases funcionam qual respiração do emissor, já partilhando dedicácias, glosando verso-mote em epígrafe – o que é outra forma de leitura e homenagem – ou revertendo à anaforização. (...) Quem tem, logo, o poder das águas, do vento e das nuvens? Já não a esposa, irmã, amante, ou a Mulher; nem mesmo a entidade ilha, com seus amigos e depredadores, ou eventuais profetas na sua terra. Tem esse poder, sobre ela discorrendo, e mais variamente na selecção de 1995 (...), quem empresta voz à que ainda não fala – falando, por seu turno, através do histórico silêncio – e a mil e um dedicatórios se entrega para, signicamente, se recontar. É o espectáculo, o “retrato breve”, com flagrantes emotivos dos homens e das coisas (...), de orador português à luz da História madeirense, o qual, via primeiro modernismo à Álvaro de Campos folgado nos que compõem a “arte mágica” final – intertextualização assumida desde 1975b -, reivindica um particular movimento da lírica nacional. (...) Optei, assim, por ver poemas a partir de cima, no tecto do título, embora crítica breve como os pássaros na copa das “árvores da noite”. Falece-me a coragem – e, felizmente, já não há espaço – para descer aos outros instantes de ofuscação que esta poesia, a espaços misteriosa, nos faculta. Se, na definição-título de Cesare Pavese, lavorare stanca – trabalhar cansa, e fazer crítica muito mais, valha-nos, num derradeiro olhar, a rebentação de beleza que salpica estas páginas.

Ernesto Rodrigues, “A oração do poeta” in José António Gonçalves, Tem o Poder da Água. Obra Poética (1973-1995), Editorial Éter, Lisboa, 1996, pp.7-11.

Tem o Poder da Água vem dar-nos de corpo inteiro e ao longo de mais de vinte anos de exercício um poeta que eu classificaria de sazonal, uma vez que ele escreve

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poesia quando lhe apetece, muito bem ou não e lhe dá na real ou plebeia gana, como se quiser. José António Gonçalves, madeirense dos sete costados, é um poeta de ímpetos e de hábitos frugais, um iconoclasta pagânico, com um soslaio atento e um auto-humor que por vezes roça a falsa modéstia, sequer aos menos prevenidos. Se presumido pudesse ser desprezo por si próprio, era o caso dele. Bom, mas não lhes quero apresentar o rosto loquaz mais que baste, mas o espírito que nele subjaz em câmara mais que lenta de poeta ao retardador, isto em linguagem cinematográfica.(...) Não estou a falar do conteúdo deste livro, intencionalmente o evito, estou a falar da substância desta poesia que é a de José António Gonçalves e logo dele. Poesia tantas vezes deambulatória e comovida, quase sempre bem urdida e bem urzida, inspirada ou estilhaçada, ascensional ou mergulhado, nunca parada, estagnada, asséptico. Poesia fibrada, recalcada de amor e de instintos, de súbitos entusiasmos, de instabilidade sofridas e de quanta generosidade, aquilo a que o grande poeta brasileiro Jorge de Lima apelidava de “poesia gorda”, que auto se nutre, que tudo absorve em si. (...) Para finalizar uma chamada de atenção, um roda-pé a este enigmático desarrozado de acerbos e outros verbos e quejandos e este com um acento muito sério: o poeta está sempre à frente da sua condição limitada de homem (humana), ultrapassa-o, excede-o. Fascina-o no que o perturba e não entende e se rejeita. O poeta em si alerta-o e o homem nele se assusta. Reticências… Recomendo, pois, que neste livro entre outros poemas talvez de maior peso e importância, avulte a leitura daquele que dá pelo nome de “Proposta de Encantamento para uma Definição de Arquitecto”.

Dórdio Guimarães, “Para José António Gonçalves (Apresentação de Tem o Poder da Água)”, 31/5/96 (inédito)

Porquê esta ligação a Pessoa num livro que homenageia Leopardi? Por três razões. Em primeiro lugar porque o diálogo poético é uma forma de celebrar a poesia e com ela a recordação, tão cara a Leopardi, das coisas boas e passadas. E este longo poema que compõe aquele que é, por sinal, o primeiro livro de poesia portuguesa dedicado ao poeta de Recanati, resulta de um espaço de convívio que aproximou o escritor italiano de um grupo de poetas madeirenses que com ele conversaram, homenageando a sua memória. O teu diálogo, José António Gonçalves, quiseste continuá-lo a sós com ele, prolongando-se talvez em privado, “no compasso íntimo das mais distintas estações”, como afirmas. Como fez Pessoa que foi beber em Leopardi a lição de que a poesia não fornece necessariamente um remédio, mas pelo menos a possibilidade extrema de questionar a existência. (...) Por isso se poderia dizer com propriedade que Leopardi voltou a derramar os seus versos na cabeça de mais um daqueles sábios viticultores de que falas, daqueles que, tal como o vinho, melhoram com a passagem do tempo. Em segundo lugar, porque é também a viagem que vos une. A viagem da imaginação. A fractura com o tempo. Todos três são solitários bebedores nocturnos, para usar a expressão referida a outro teu poeta de estimação. Trabalham de noite, sobrevoando esse espaço imenso e sonâmbulo chamado infinito,

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no teu caso aparentemente sem angústias, com renovado optimismo, ao ponto de estenderes fraternalmente a mão a Leopardi no convite epicurista ao despreendimento quieto e puro dos inocentes, que é como quem diz dos poetas. O que tu propões a Leopardi é um duplo percurso: de Recanati para o mundo, mas também o percurso de conhecimento que tu fazes ao ir ao seu encontro, da Madeira para Recanati, outra periferia poética, murada também ela, não pelo mar, mas por uma sebe que exclui do último horizonte o olhar, potenciando como no caso da tua ilha, a imaginação poética. (...) Convite para uma viagem à Madeira, e esta é a terceira razão para a aproximação a Pessoa que já aqui esteve em menino, e com quem aliás tu já te cruzaste algures no Chiado quando acompanhavas Sá-Carneiro num dos seus últimos dias terrenos. Porque tanto Leopardi como Pessoa haveriam de ter gostado de te conhecer.

António Fournier, “Leopardi, o infinito, José António Gonçalves”, in Giacomo Leopardi e o Suave Despreendimento do Infinito, Correio da Madeira, Funchal, 1999, pp.7-9.

Poeta e jornalista, José António Gonçalves (Funchal, 1954) dedica o melhor do seu tempo a organizar e a coordenar iniciativas que beneficiam outros, enquanto acaricia companheiro inseparável num copo alto, que dizem uísque. (…), certo é que, nesta Aventura na Casa dos Livros, ressoa aquela harmonia antiga, de quase trinta anos de ofício, mais cuidada nas rimas internas, e experimenta-se “a paz, trazida pela leitura” de quem, “com um poema”, ajuda “a construir / o mundo”. (...) Podia estar, nesta síntese – vibração íntima, construção, metaforismo -, o poeta de uma dezena de colectâneas individuais, em regressadas homenagens (...), cantos de amor e dedicatórias, peritexto que, mais significativo em momentos anteriores, estudámos aqui (...) e retomámos em prefácio ao antológico Tem o Poder da Água (1996). Ora, também neste dizíamos que “A feição mais consistente em José António Gonçalves [era] a de poeta-orador”, o que, quatro anos depois, é preciso reconsiderar. Com efeito, a par do discurso do ‘livro’ (índice, biblioteca, guia, lombada e outros vocábulos da respectiva semântica), que não deixa de ser o desenvolvimento de um “conceito predicável” – como se diria para o típico sermonário barroco – resumido ao Génesis de outro mundo, em que o sujeito também descansa ao sétimo dia (ver segundo poema), e pese, ainda, algum tom imperativo, a longa demora de velhos encavalgamentos vai-se reduzindo a inflexões menos sonorosas e, esbatido esse tropel, impõe-se o que já então designávamos por “retrato breve”, com, afinal, diluição metáforica. (...) Essa maneira antiga era ainda evidente no coetâneo Lembro-me desses Natais (...) e parece, assim, que os “flagrantes” do jornalista, na também memória vocabular madeirense, se contêm numa, agora, implosão discursiva. (...). Atenção, pois, a nome cujo percurso, todavia – sendo culposos autor, editores, distribuição e crítica -, não pôde, ainda, ser apreciado globalmente, mau-grado interpelações de João Rui de Sousa e outros.

Ernesto Rodigues, “Horas do Funchal” in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 4/10/2000, p.23.

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É notório que o tema do Natal se atravessa, generalizadamente, em todas as fases da literatura portuguesa. No teatro como no memorialismo, na crónica como no ensaio, na novelística como na poesia. Na verdade, de Gil Vicente a Aquilino Ribeiro, de Baltazar Dias a Vitorino Nemésio (quanto mais não fosse, para aqui juntar dois escritores de origem insular), de Almeida Garrett a Fernando Pessoa, de Raul Brandão a David Mourão-Ferreira, muitos e muitos autores tiveram o ensejo e a apetência de escrever acerca ou a propósito daquela festividade cristã. E fizeram-no, como se sabe ou se adivinha, ao sabor das mais diversificadas intenções e perspectivas. (...) O novo livro de José António Gonçalves, Lembro-me desses Natais, vem prolongar essa torrente referencial e acaba por repercutir quase todas essas facetas. Daí, até, uma boa parte de novidade deste volume em relação à restante obra do autor: a de se conformar numa mais que óbvia unidade temática. Oriundo de poemas produzidos em mais de um quarto de século de criação literária, este florilégio reporta-se, de facto, invariavelmente e como o título desde logo deixa supor, a reflexões ou motivos relacionados com o Natal. Recolhendo, em alguns casos textos já anteriormente inseridos em jornais, revistas e mesmo em volumes do poeta – basta lembrar, por exemplo, “Lapinha Madeirense”, incluído em Os Pássaros Breves (1995) e em Tem o Poder da Água (1996), e “De noite, as buganvílias”, incorporado em À Espera dos Deuses (1999), por sinal os três livros onde, quanto a nós, melhor e mais incisivamente se materializa a consistência estética do autor -, nesta conjunção poemática, dizíamos, explicitam-se os olhares que, ao longo dos anos, foram captando um mesmo e afinal tão múltiplo Natal. (...) Estes poucos exemplos sugerem-nos que, neste volume, não só a visão do poeta é diversificada como amiúde se apresenta discretamente irónica, contraditória ou mesmo paradoxal. (...) Estaremos ainda muito longe, por certo, daquele “contagioso infinito de planetas errantes” de que nos fala, magestaticamente, Vicente Huidobro num passo do seu Altazor. Assim como será grande a distância daquele “marulhar furioso da vagas” que vão assolando o Bateau ivre de Rimbaud. Mas já aqui se vislumbra a fremência de uma dada fusão entre o concreto e o imaginário, entre o real e um verbo a ele não submetido, isto é, sem algemas. Uma simbiose onde também se diz que, mesmo no coração da memória infeliz ou melancólica, o verdadeiro poeta nunca ficará bloqueado ou, talvez mais grave, nunca se deixará adormecer com os fogos-fátuos da alienação. Ele permanece, em lucidez, mas também em voo libérrimo, tão fiel à florescência inteira do que o envolve, como aos rumores, ainda que pungentes, da sua autenticidade.

João Rui de Sousa, “Entre invenção e memória” in Lembro-me desses Natais, Editorial Correio da Madeira, Funchal, 2000, pp.5-8.

Festividade evocativa do mistério que, realizando em Maria o tempo de ser mãe, veio a tornar-se pedra angular do cristianismo Ocidental, o Natal assegurou, na nossa tradição, tão particular singularidade que Pascoaes não hesitou em reconhecer-lhe certo carácter na “feição”, logo confirmada pela maior parte da lírica portuguesa, quer

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popular, quer erudita, do Cancioneiro aos nossos dias. O tema lançou raízes, deu flor, fez-se primícia na poesia de todos os tempos e lugares. Não medrou, na literatura, que se saiba, vestígio ou sentimento de uma poética do Natal. Houve foi graça divina, amor fraterno, saudade imensa dessa perdida infância que, afinal, de nada nos protege, a não ser de nós. Tornada oferenda a exaltação percorreu séculos. (...) Na linha dessa natural motivação que, em 1223, terá inspirado Francisco de Assis pelo cale de Rieti, a ideia de converter em presépio uma ilha atlântica e de, na suave rudeza dos seus encantos, recuperar a memória natalícia de outras épocas é, acima de tudo, original. Outros pretextos, no entanto, antecederam esta recolha antológica de José António Gonçalves, agora passada aos prelos com o título quase intimista de Lembro-me desses Natais. Feita luz, música, silêncio – prova de uma presença transcendente, segundo George Steiner, na fábrica do Universo – é que a memória desses dias é hoje: “(…) a voz presa/ em grito e nó de sisal”, Ladainha das Cores que a mãe balbuciou, um dia, ao pé do berço, e agora pelas vertentes da montanha, entre a terra e o mar, como quem reza, nestes versos cada Natal se repete com amor.

Vergílio Alberto Vieira, “Primeiras recordações” in Lembro-me desses Natais, Editorial Correio da Madeira, Funchal, 2000, pp.9-10.

Vieira de Freitas, aos jovens poetas da Madeira, abrira um caminho que a morte, talvez, o impediu de percorrer até ao fim. (…) Mas já houvera alguém que colhera a mensagem implícita de Movimento e, em Janeiro de 1975, foi estampado o pequeno volume Ilha, dirigido e coordenado por José António Gonçalves. Era, mais uma vez, uma publicação colectiva onde apareciam composições de jovens poetas que até então tinham colaborado no suplemento literário do Jornal da Madeira “Página Juvenil 2002”. A iniciativa surgira no interior do próprio grupo que suportou as despesas editoriais. (…) Na breve apresentação afirmava-se a necessidade e o desejo de participar, através da palavra, no processo cultural do país e nas mudanças e transformações. Declara-se que o objectivo era “afirmar às pessoas que os jovens de aqui estão acordados, conscientes e abertos, dispostos a ultrapassar a agudeza das distâncias, da sua inconsumptável insularidade, para ajudarem a levantar, a fender uma maneira nova de contar tudo o que nos flagela a pele, soçobra o espírito, ou nos eleva no amor e na alegria”. (…) José António Gonçalves fora também o coordenador de Ilha 2 e, a partir daquele momento, tornara-se o principal promotor do grupo e das suas sucessivas iniciativas. Para suprir as exigências dos autores operantes na Madeira de encontrar um espaço aberto à sua criatividade, J. A. Gonçalves fez-se editor; foi assim que em 1988 tomou vida a coleccção Cadernos Ilha. Nascida quase como um desafio pessoal face a uma sociedade culturalmente indiferente e a um ambiente editorial privado pouco disponível, a colecção iniciava com 20 textos para falar de mim mesmo do próprio J.A.Gonçalves. Polémico na advertência como no conteúdo, desde o vibrante e apaixonado poema de exórdio “Porque nasci”, aquele primeiro número, que recolhia versos escritos de 1970 a 1985 e que obteve o “Prémio Literatura Leacock – 88”, era um pequeno volume

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no qual a juvenil violência do protesto e da acusação se misturavam, temperando-se, com uma declaração de empenho poético, com o desejo de se revelar sem reservas e com o convite à sociedade de escutar a voz dos poetas, de não a ridicularizar ou marginalizar, de compreender a sua função artística e social, de se deixar envolver por ela. Em poucos anos, a colecção foi atenuando o tom polémico inicial e, pelo menos nos propósitos, já não se apresenta como privilegiado lugar de expressão para os autores ligados ao “espírito que presidiu aos alicerces do Movimento Ilha”, mas declara-se aberta, de facto, a todos os “autores naturais ou residentes na madeira, cuja obra incida sobre temática insular”. Os Cadernos Ilha afirmaram-se definitivamente como meio insubstituível para a divulgação de obras de temática insular.

Giampaolo Tonini, “A poesia contemporânea da Madeira” in Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera, Centro Internazionale della Grafica di Venezia, 2001, pp.22-25.

Devo começar por confessar a minha dificuldade. É que por um lado queria evitar a habitual retórica de dizer bem, de considerar este o melhor livro do poeta, de proferir algumas palavras de circunstância que devem ser sempre elogiosas, sem ter que entrar verdadeiramente no mérito literário desta obra, porque sendo JAG, um poeta excepcional, não se sabe bem o que dizer senão confirmar a sua qualidade, e em última instância nem é preciso na verdade ler o livro para saber isso. Neste sentido o que quer que eu diga aqui será sempre supérfluo. E por outro lado é sempre difícil falar de uma pessoa de que se gosta. (...) Também neste caso, não poderei acrescentar nada de novo ao que todos já sabem. Por isso, por não me poder furtar a essas duas limitações resolvi optar pela única solução possível: fazer de conta que não sou eu que apresento este livro, e imaginar-me como se conhecesse o José António há só dois dias. E como o meu amigo, Júlio César Martins, que devia fazer esta apresentação comigo, não pôde estar presente, porque está lá em casa a curar uma gripe, vou fazer eu de conta que sou ele, ou seja, vou fazer de conta que sou um escritor migrante, habitante de dois mundos, o italiano e o brasileiro, que se aproxima deste meio insular com uma certa dose de curiosidade, mas com um enorme desconhecimento. (...) Se eu fosse o Júlio e não conhecesse bem este homem, corajoso e fanfarrão, este mosqueteiro da literatura madeirense, este lutador incansável pela causa das letras, este Cyrano do Amparo, S. Martinho, capaz de derrotar com a sua verve e a sua espada, cem ladrões juntos, este boémio no ombro do qual todos os outros confessam as suas fraquezas, se eu fosse o Júlio, e só conhecesse brevemente o JAG, assustando-me com os seus modos festivos e o seu enorme ego, diga-se um tanto inibitório, leria este livro e descobriria nele um lirismo dorido, uma voz intimista. Pensaria que estes versos tinham sido escritos por outra pessoa, como Rossana que acreditava que os versos de amor que recebia tinham sido escritos pelo belo Cristiano. E sabe-se lá quantos versos de amor ou outros não terão sido assinados por outros mas na realidade escritos pela pena de JAG. É esta ambiguidade de fundo que eu gostaria de salientar aqui. Esta esquizofrenia entre a figura pública de JAG e a sua voz poética em surdina não é livre

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de implicações num meio como o nosso. Diria que a poesia de JAG é a expressão da luta de um homem para não perder a sua verdadeira voz, a que lhe vem de dentro, o tal percurso secreto da memória de que fala este livro, a faceta pela qual Gilda, a sua Rossana, se apaixonou, sem ter que esperar a vida inteira para descobrir a sua autoria. Esperemos que nós todos não tenhamos que esperar uma vida inteira para descobrir a outra faceta não tão secreta de JAG, a sua poesia.

António Fournier, “Cyrano do Funchal” (inédito) lido na galeria Clarabóia, a 21 de Dezembro de 2002 na apresentação de Memórias da Casa de Pedra.

É sempre difícil traçar uma linha evolutiva na poesia de JAG isto porque os seus livros de poesia não são orgânicos, como ele diz: escrevo poemas e não livros de poemas, e para mais costuma reunir composições de vários momentos, inclusive da fase mais precoce da sua produção poética. Isso põe entraves a qualquer leitura crítica que pretenda encontrar banalmente marcas de uma recém-adquirida maturidade poética. E contudo, a poesia de JAG surpreende-nos sempre. Essa surpresa pode levar um leitor superficial, confrontando-se de novo com ela, com a sua própria maturidade de leitor, a considerar que a poesia de JAG está mais madura. E ele é capaz de concordar convosco, sorrindo intimamente, sabendo que ao lado de um poema escrito ontem colocou outro guardado na gaveta há 20 anos. Assim será mais fácil encontrar linhas temáticas que ocorrem com persistência na produção deste autor. Tomei como objecto o seu último livro e não vou cair pois na banalidade de dizer que é o melhor. Chama-se As Sombras no arvoredo e (...) Vou antes seguir uma pista que me foi sugerida pelo próprio filho do autor, Marco Gonçalves (...): a dos quatro elementos presentes na poesia de JAG. (...) A água é de facto um tema recorrente em JAG, são as fontes, as cascatas, as ribeiras. É sobretudo água do interior da ilha, não é água do mar. É sobretudo as invernias. E se eu tivesse que nomear uma estação, para salientar este primeiro elemento, diria inverno. A poesia de JAG está muito ancorada nos lugares da memória que são os lugares da ilha, transfigurados numa geografia de afectos. Mas a dimensão metafórica da água é a que eu gostaria de salientar aqui: a da memória e a do testemunho. Memória e missão cívica como guardião do tempo da ilha: este sentimento do tempo é fundamental em JAG e não pode ser dissociado de um forte sentido de pertença a um espaço, uma ternura miudinha pelos frutos, pelas pedras, pelas árvores, pelos elementos configuradores de uma paisagem, de uma poética do lugar. O sentimento da natureza, em harmonia com a poeta, configura-se por sua vez num momento do dia. Se tivesse de dizer numa palavra seria a tarde (“a essência dos pêssegos frescos atormentando a tarde”) numa espécie de sonambulismo diurno, em que as páginas do calendário quotidiano aparecem transfiguradas pelo tempo e pela memória. Jag é o poeta da fuga ao tempo do compromisso gregário, ao não-tempo (não saber das horas) o dolce far niente, aquilo a que JAG chama “a contemplação do dia”, o “pachorrento aguardar pelo apagar das lanternas”. (...) Ar: Aqui se eu tivesse que nomear um animal seria obviamente o pássaro. Se eu tivesse que nomear uma

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cor, essa seria seguramente o branco. Noutros tempos, o estruturalismo contaria as ocorrências da palavra “pássaro” e “branco” na produção de JAG para verificar como é elevada a sua presença, senão mesmo obsessiva. Isso tem a ver seguramente com o sentimento do escapismo, característico das poéticas insulares. Na poesia de JAG há sempre um ponto de fuga e é claramente a própria poesia a fornecê-lo. Poesia como ofício encantatório, a palavra é alada porque se eleva acima das dores terrenas, é leve e demanda as montanhas. O centro da ilha é uma espécie de lugar sagrado e a fuga é feita nessa direcção, para o interior da ilha, portanto, não para fora, para o exterior. Isso pode ser lido como uma poética do eterno retorno: o regresso à infância e à inocência, como forma de reconciliação com o tempo e com a dor e o remorso, numa imperceptível oscilação, entre a fraternidade e a melancolia, entre o eu solitário e o eu solidário, o sentimento da vacuidade do tempo, entre a inocência do espanto e o tédio do excesso, a incapacidade de ordenar a existência de acordo com a vontade, e a ideia de espera de uma epifania, que surge na forma de uma poesia mais retraída, mais interior, mais sofrida, mas que oferece sempre a esperança de reconciliação com o tempo e com os homens.Terra: (...) Só pode ser telúrica uma poesia que fala da ilha. Só pode ser enraizada na terra uma poesia que não foge dela. Na sua poesia assiste-se ao lento transformar da ilha à dimensão de um espaço doméstico. Se eu tivesse que dizer um vegetal, diria as árvores, se eu tivesse que dizer uma profissão em vez de ofício de poesia, diria jardinagem poética. JAG é uma espécie de guardião da floresta, um jardineiro da ilha, que cuida com esmero do seu jardim, criando assim um locus amenus, envolto num sentimento de plenitude como os canteiros circulares, domésticos, protegidos. Fogo: Aqui se tivesse que nomear um lugar diria a casa; muito haveria a dizer sobre a presença das casas como coágulos na paisagem, mapa-mundo do tecido-corpo da ilha, o da infância e a poética do lugar, uma gramàtica obsessiva de uma solidão sufocada e um isolamento sem limites, partilhado no interiores dos lares da ilha. a casa como “o repetir das coisas. o ressuscitar dos dedos na penumbra, eternizando as horas”. Aqui entra o calor, o fogo, o elemento em falta. São as casas e dentro da casa a ternura, o desejo de estreitar os laços com a pessoa amada. Há de facto um intimismo na poesia se Jag conjugada num tom confessional. Aqui se eu tivesse que nomear um sentimento diria o amor e a sua metade, a morte que é o novidade neste livro de JAG. Recentemente fez erupção na sua poesia, o sentimento do tempo. Os poemas povoaram-se de sombras, os petroleiros são penumbrentos, os invernos friorentos, as estradas poeirentas, as manhãs crepusculares. Esse sentimento do tempo configura-se em símbolos premonitórios e poemas crepusculares. A solidão da hiper-consciência da morte (“do outro lado morro e temo o biombo da margem”). São temas compensados pelo excesso de afecto, e um transbordar de ternura, pelo romance familiar: aqui já destacamos a figura da mãe, mas também a pessoa amada.

António Fournier, “A essência dos pêssegos frescos atormentando a tarde” (inédito) lido na Fundação “Universo de Memórias” a 1 de Setembro de 2004, na sessão “O autor face à sua obra: José António Gonçalves”.

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Vai sendo tempo de explicar que os pássaros atravessam toda a poesia deste autor acompanhando as suas conquistas expressivas, a sua lenta rotação, a sua maturação, como de resto o seu rasto nesta antologia pretende dar conta: os poemas deste bosque harmonioso são árvores onde há sempre pássaros. Se para Lucrécio, o lago de Averno, onde na antiguidade se dizia localizado o inferno, era o pesadelo das aves, que sobrevoando-o, de repente perdiam sustentação e caiam inapelavelmente, a Madeira cartografada poeticamente por José António Gonçalves, será o seu paraíso, um paraíso, repita-se, que não tem nada a ver com cromatismos de postal ilustrado para turistas, mas sim com um espaço de recolhimento íntimo que corresponde em absoluto a uma ilha mental. O que importa aqui salientar, como o ilustra exemplarmente a poesia jaguiana, é que há uma nítida pulsão ascensional no imaginário literário madeirense. Esta percepção não é isolada e merecerá estudo cuidado. Se a poética do voo obviamente não é exclusiva da produção insular, sendo, como se disse, um dos mais poderosos universais poéticos e como tal sempre actual (pensamos por exemplo, no panorama contemporâneo italiano, num Fernando Bandini, e no lusófono, num Eduardo White), na poesia ambientada na Ilha, desde João Gouveia e Edmundo Bettencourt, a José Agostinho Baptista e a Tolentino Mendonça, mas não só (basta ler, por exemplo, alguns poemas dos autores recolhidos em Ilha 2), o imaginário do voo é um tema recorrente.

Em José António Gonçalves, claramente o poeta madeirense (quiçá português, juntamente com Eugénio de Andrade?) mais permeável a esta temática, a poética do voo é não só recorrente, mas perfeitamente consciencializada: subir, perder peso, libertar-se das penas do coração, libertar-se da condição de imobilismo da ilha não pelo mar, mas pelo elemento gasoso, para depois, e nisto reside o passo mais significativo dado pelo autor, abarcá-la por cima, na sua totalidade. Por outras palavras, transformar o microcosmos da ilha em macrocosmos da mente, este em síntese o seu projecto. Desde o início que na poesia jaguiana, a transposição do espaço insular em termos poéticos se faz graças/à custa dos elementos de transição que são os pássaros, ícones de um compromisso implícito entre a limitação insular e a pulsão de liberdade. Isso é visível por exemplo nos versos construídos a partir da perspectiva de uma ave em “Poema para uma viagem” de 1975: “és um pássaro, morres, voas e o teu corpo é a terra que vês passar por baixo/ velozmente como se fosses num comboio. como se partisses de/ verdade” (…). Sigamos então o rasto do seu voo, revendo, em rápida síntese, como as aves se moldaram às sucessivas oscilações que a poesia de José António Gonçalves foi descrevendo até deixar definitivamente de “sofrer a paisagem”.

“Lição de voo” é um poema fundamental para compreender este percurso. É um texto charneira que surgindo na colectânea Esquivas são as aves de 2001, recupera os sinais da noite característicos da produção jaguiana da década de noventa, e anuncia o tema da infância que se tornará, como se disse, omnipresente a partir de Memórias da casa de pedra de 2002. Nesta composição, a enunciação da experiência lírica sobrepõe-se à dimensão da memória cruzando-se ambas com o imaginário do voo.

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Na primeira estrofe, o microcosmos insular vai sendo nomeado à medida do voo das andorinhas. Na segunda, este é associado à infância, através daquela inconsciência feliz que acomuna pássaros e crianças como já víramos em Leopardi (...) Na terceira estrofe o tema oculto da tensão poética com o espaço ilha, de que a casa, é por antonomásia, a metáfora, assume finalmente a pulsão de liberdade (...). Este poema acrescenta assim uma peça fundamental ao mosaico poético jaguiano aqui desenhado. É que os pássaros não resultam de uma visão exterior, desarmada, não andam livres pelo céu. Para se ver os pássaros na poesia de José António Gonçalves, “aquelas estranhas aves rumando a norte”, é preciso atravessar uma câmara sonâmbula, simultaneamente saudosa “televisão de sombras” e helderiana “máquina de emaranhar paisagens insulares”, a casa. Há na poesia de José António Gonçalves uma relação directa entre as casas e os pássaros. É como se aquelas fossem gaiolas, gaiolas, entenda-se, apetecíveis, porque é só estando lá que a experiência de metempsicose acontece: é preciso soltar os canários da mente. Há uma série de indícios que apontam nesse sentido. (...) Resta acrescentar, para completar este percurso em torno da poética do voo, que é justamente pela linha da invisibilidade dos pássaros da mente que a poesia jaguiana, que aliás raramente é metafísica, só tardiamente, diga-se, descobriu a faceta angelical do voo. Curiosa experiência é, por exemplo, de 2000, “O menino de branco” inspirado naquela “assombrosa santidade” invisível que toca ao de leve o protagonista do poema “As asas” de Ezra Pound, composição que José António Gonçalves divulgará no seu blog o qual, de resto, permite um curioso acesso ao “alfabeto dos índices” da vastíssima cultura literária da genial “aventura na casa dos livros” que foi a vida deste autor. Aqui e ali nota-se também que a sua poesia não é imune à lição rilkeana (“Nunca se sabe, brinca um anjo”), juntando-se assim à poesia social de um Gualdino Avelino Rodrigues, onde os anjos são amargamente os colonos louros que desembarcam na ilha “para o grande leilão insular”, ou em Ana Teresa Pereira, onde todas as personagens são no fundo anjos exilados que vivem na terra, em atmoferas densamente psicológicas, simulacros de uma impossível perfeição, os dois autores madeirenses que mais trabalharam esta temática, antes do recente Anjos caídos de José Agostinho Baptista.

António Fournier, “O ornitólogo nocturno” in José António Gonçalves, Arte do Voo, Ausência, Vila nova de Gaia, 2005, pp.

Esta antologia bilingue de José António Gonçalves – empenhadamente organizada e traduzida por Silvana Urzini e Carlos Martins – é composta por meia centena de composições, distribuídas por duas secções: a dos quarenta e um poemas oriundos de livros que o autor fez sair entre 1988 (20 Textos para Falar de Mim) e 2004 (As Sombras no Arvoredo); e a formada por nove poemas inéditos, quase todos com datas que se reportam ao período compreendido entre 2002 e 2004. Quanto ao primeiro conjunto, pode verificar-se que os volumes aí representados são Aventura na Casa dos Livros, de 2000, e Esquivas São as Aves, de 2001. Por outro lado, compulsando

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as datas dos poemas, quer dos recolhidos nos livros quer do corpo dos inéditos, pode constatar-se que as escolhas dos obreiros desta selecta incidiram largamente, em cerca de três quartos, no último quinquénio (2000-2004) da produção poemática do autor. Feitas estas sumárias observações, que estão longe de ser insignificantes ou de somenos importância – até porque nos possibilitam observar, nos critérios de selecção, uma nítida e legítima preferência pela fase mais recente do poeta, correspondente, quanto a nós, a um tempo de notório amadurecimento formal e criativo -, afloremos agora, ainda que de modo sucinto, a matéria poética que a colectânea recolhe, o tecido discursivo que ela transporta. Poesia menos voltada para a reflexão, para o trato da realidade em termos conceptuais ou mais abstractizantes – mau grado os casos, entre alguns outros, de composições como «Rimas», dedicado a Fernando Pessoa, «A Morte», «A Vida» e «No Abismo», um dos mais límpidos textos da presente recolha -, esta poesia move-se, discorre e alarga-se sobretudo na assunção do visível e do concreto, no emergir dos seres e das coisas, na repercussão da realidade envolvente e até no fluir de um imaginário que, além do mais, nos remete para um processo de recomposição, em termos artísticos, de um universo tendencialmente dispersivo. Mesmo quando o intento transfigurador parece avançar pelo fragmentário ou por aquelas «margens do sonho» a que já tivemos ocasião de aludir (no posfácio ao livro Os Pássaros Breves, 1995), é ainda em torno do mundo concreto que, basicamente, a palavra poética desdobra, exercita e perfaz a sua aventura. (...) Ainda a propósito desse mesmos «pequenos nadas» - expressão que, curiosa e significativamente, também aparece referida nos poemas «Espanto» e «Sopram Ventos de Melancolia» -, não deixa de ser sintomática, por outro lado, a marcante presença, não raro reiterada, de certas palavras. Para além das que ficaram bem à vista no fragmento acabado de transcrever, poderíamos ainda recordar, ainda que sem a pretensão de sermos exaustivos, palavras como casas, lençol, porta, janela, cama, quarto, jarra, espelho, relógio, cobertor, muro, parede, telhado, mesa, banco, gaveta, toalha ou tecto. Sem dúvida que esse léxico projecta um claro sentido sinalizador: o do desfibrar de um quotidiano de que a poética de José António Gonçalves é medularmente ciosa. Uma paisagem que muito tem a ver com os dias e os passos desse «calendário quotidiano» aludido no já citado «O Caso Raro». É em torno desse calor das coisas, desse núcleo essencial onde o autor recolhe muito daquela «semente de sabedoria» aludida em «No Lado Certo de Cada Rua», que se colocam outras vertentes ou registos desta poesia. Está nesse caso, antes do mais, a temática do amor, bastante privilegiada nesta recolha. Tal tópico – entendido ora na sua dimensão mais conceptualizante, mais idealizada, ora no seu contorno mais sensualizado, mais carnalmente entrevisto ou imaginado – está presente quer na parte inventariada a partir dos livros do autor, quer no conjunto de inéditos. (...) Embora mais rarefeitas em relação ao contexto, outras facetas podem ser arroladas para uma mais abrangente percepção das direcções desta poesia. Talvez pelo contraste com o tom mais genérico dos poemas em torno do amor, começaremos por referir aquele veio em que prevalece o traço de um baixio psicológico, de um certo cansaço ou de um certo desencanto. Tal linha é visível, por exemplo, em «Sopram Ventos de

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Melancolia», já mencionado (...) Outro segmento que seria impossível omitir é o que tem a ver com o tópico da levitação, com o pendor – a atravessar transversalmente muitos destes versos – para o ascender acima das trevas, dos abismos e do peso (ou da demasiada espessura) da experiência vivencial. É veemente indício desse sentido de superação em relação à densidade excessiva da realidade a presença, tão obsessiva, de signos como aves ou pássaros. (...) Deve dizer-se, entretanto, que tal apelo de liberdade e de impulso ascensional não se patenteia apenas no recurso a imagens de animais de voo. É o caso, a título exemplificativo, do poema «Um Instante Apenas»: E levito absorto no espaço / escutando palavras de amor / e livre / parto para outro universo / que eu mesmo traço (...) Poeta avesso à estreiteza de certos «códigos (que amalgamam / os sentimentos dos homens)», como afirma em «A Morte da Lua», poeta sempre «em busca da alma liberta», como se diz em «É o Mar Quem Vence», poeta não raro envolvido pelos embates da contradição, por ásperos e dicotómicos «labirintos de anjos e demónios negros» (lê-se em «Eis o Dia»), poeta comprometido com um notório sentido de imanência, de fidelidade a essa terra comum «onde afinal tudo acontece» (confira-se «A Vida»), poeta, enfim, afincadamente religado às sombras e às claridades da condição humana, José António Gonçalves representa um daqueles casos em que, na extrema diversidade e no errático de motivos e formulações, como no ascensional da caminhada, se projecta uma permanente pesquisa da sua raiz, da sua verdade pessoal, da sua autenticidade.

João Rui de Sousa, “Em torno do calor das coisas” in José António Gonçalves, Rasente gli Occhi/ Rente aos Olhos (trad. e cura di Silvana Urzini e Carlos Martins), Liguori Editore, Napoli, 2006, pp. 1-15.

José António Gonçalves (1954-2005), que preparou esta antologia e ainda dialogou com os tradutores, tinha em Itália relações amigas e admiradores da sua lírica que poderiam significar a via real para um reconhecimento no Portugal aquém-Atlântico. Ele fora, já, a alma da antologia organizada por Giampaolo Tonini, Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (Centro Internazionale della Grafica di Venezia, 2001), e a sua inclusão em Crónica Jornalística. Século XX (Círculo de Leitores, 2004), de Fernando Venâncio, significava a aceitação, em Lisboa, de uma faceta de antigo jornalista e cronista continuado, qualidade em que se estreia (Réstea de qualquer coisa, Funchal, 1973), no mesmo ano em que também inaugura uma vintena de participações em colectivos de poesia, que maioritariamente organiza, tornando-se o principal recolector e divulgador de seus pares na ilha. Com mais proventos na filmografia que assinou (1978-1994) e na Imprensa escrita, ficará, todavia, o conjunto de 18 títulos de poemas (1974-2004) em nome próprio – incluindo Tem o Poder da Água. Obra Poética (1973-1995), 1996, que prefaciámos –, a que se acrescenta, doravante, esta segunda antologia, com, nos 41 éditos, a décima parte (ou menos) de produção infelizmente pouco conhecido.

Os nove inéditos (e outros ficaram de fora) denunciam dúvidas sobre um caminho tão disseminado e tenteios sobre o rumo a seguir, que, todavia, se percebia

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quase a fechar na curva fatal: ora retomam o discursivismo lido em Ruy Belo e na poesia underground, anterior a 1988 (quando se inaugura esta selecção), ora optam por uma rarefacção da palavra-verso, invulgar em quem discutia permanentemente o seu fazer e que, admirando embora a aforística de um Albano Martins, não pretenderia secundá-lo. Para lá do «Não sei» e da suspensão de rotinas que lhe davam assunto, punge-nos um tempo futuro de que o poeta se declara, serenamente, ausente.

João Rui de Sousa (...) era dos amigos e críticos mais próximos; e dá-nos, no Prefácio (p. 2-15), uma das melhores sínteses de J. A. Gonçalves: o respectivo título, «Em torno do calor das coisas», remete para uma paixão destas, de um nominalismo com que veio erguendo a sua ilha – e, das nossas conversas, resultava a necessidade, sentida pelo artista, de, após a enumeração e descrição do locus, historiar séculos da mesma ilha, como para reforçar uma identidade –, bem como para o alvoroço de que tudo se tingia na linguagem e empatia que do autor civil nasciam, com reflexos no verso (disso são bons exemplos os titulados por Natália Correia e Sophia ou os inúmeros relativos a membros da família, de que se dá pálida imagem). Nesse contexto, relevemos, dos tópicos lançados por João Rui de Sousa, os do quotidiano, do amor e da levitação; acrescentemos – sem repetir quanto, desde 1981, vimos escrevendo sobre o poeta, cuja reunião de apontamentos antecede o volume de Ilha 5 (no prelo), colectivo de poesia madeirense em que se empenhava desde 1975 e cujo quinto volume deixou incompleto, a ultimar pelo filho Marco Gonçalves –, quiçá derivação do primeiro, a deambulação nocturna, ou noctambulismo, pelo «empedrado dos meus pensamentos» (p. 24), «na calçada / de todas as madrugadas» (p. 32), em que entranhadamente sentíamos o que exprimiu na fórmula «E levito absorto no espaço» (p. 90), ou as tão produtivas “Noites de Insónia” (p. 44), num bar ou já em casa. Educado no livre associativismo metaforizante surrealista a que, em geral, concedia um fôlego oratório (faceta aqui pouco representada); argumentando muito do seu percurso na amizade, com efeitos no peritexto; em homenagens regulares a figuras de uma biblioteca imaginária (e, mesmo, a músicos e pintores), mais extensa do que sugerem os agora eleitos – para lá disso, seremos mais sensíveis aos «pequenos nadas» (pp. 32, 68, 92) com que se veio praticando a vigilância dos dias e do verbo.

Ernesto Rodrigues, recensão a Rente aos olhos / Rasente gli occhi in Estudos Italianos em Portugal, Italiano de Cultura de Lisboa, Nova Série n°2, 2007, pp.464-466.

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para uma biografia de josé antónio gonçalvesPor Marco Gonçalves

1954: Nasce no sítio do Amparo, freguesia de São Martinho, a 13 de Junho.

1960: Ingressa na Escola Primária do sítio do Amparo, São Martinho.

1965: Matricula-se no Liceu do Funchal. Nesse mesmo ano, José Gregório Gonçalves, seu pai, sofre um acidente de trabalho quando soldava uma secção da ponte “25 de Abril”.

1966: Por intermédio da sua professora do Liceu, Margarida Morna, vê o seu texto dedicado a Sophia de Mello Breyner Andresen,“Carta a uma escritora”, publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 21 de Junho, na secção “Torres Erguendo”.

1967: Interrompe os seus estudos, devido a dificuldades financeiras da família, sendo admitido na “Papelaria do colégio” como empregado de balcão.

1970: Reivindica melhores condições salariais para si e para os seus colegas de trabalho, atitude que resulta no seu despedimento. É admitido na Associação Comercial do Funchal, como ajudante de secretaria, pela mão do então Presidente, Alberto Araújo. Ingressa no conjunto musical “ A clave”, que tocava nos arraiais da Ilha. Conhece Gilda, a sua futura mulher, no Centro de Cultura Operária.

1971: Ingressa no conjunto musical regional “Os Sonnes”, como vocalista. Inicia a 15 de Junho, a sua actividade como jornalista profissional na redacção do Jornal da Madeira, na qualidade de repórter, a convite do então director, D. Maurílio de Gouveia (actual Arcebispo de Évora). Nesse mesmo matutino, coordena durante a década de setenta, a página literária “Poesia 2000” e “Réstea de Qualquer Coisa”, entre outras secções. Mais tarde, atinge a categoria de Redactor, tendo sido eleito por diversas vezes como membro do Conselho de Redacção e Delegado Sindical do Sindicato dos Jornalistas, organização que co-fundou na região, assim como a Associação dos Jornalistas da Madeira.

1972: Vence o “Prémio Nacional de Poesia”, organizado pela Juventude Operária Católica, sob o tema “Todos os Homens são Meus Irmãos”. A 12 de Maio, a sua poesia é comentada e publicada pela poetisa Maria Alberta Menéres, na sua secção do Diário Popular, “Iniciação Literária”. Nesse mesmo mês, no dia 20, participa no seu primeiro colóquio sob o tema “Ao Encontro da Poesia” na Escola Industrial e Comercial do Funchal, hoje Escola Secundária Francisco Franco, que contou com os poetas Tolentino Nóbrega, Irene Lucília e António José Vieira de Freitas, este último também organizador do evento. Contrai matrimónio a 25 de Setembro com Hermenegilda (Gilda) Silva Ferreira. A 29 de Novembro nasce a sua primogénita, Arabela Magna.

1973: revelou-se como autor em “O Poeta Faz-se aos Dez Anos”, de Maria Alberta Menéres (Assírio & Alvim) e no “Movimento – Cadernos de Poesia & Crítica”,

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com Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, Pedro Támen, José Bento, A. J. Vieira de Freitas, José Agostinho Baptista e Gualdino Avelino Rodrigues, publicando de seguida o seu primeiro livro, “Réstea de Qualquer Coisa” (Crónicas). Com os “Os Sonnes”, torna-se músico residente na unidade hoteleira “Savoy”.

1974: Edita o seu primeiro livro de poesia”É Madrugada e Sinto”. Nascimento do segundo filho, Marco António, a 10 de Janeiro. Cumpre serviço militar no GAG 3, onde desenvolveu vários projectos de índole social, entre as quais o “amparo de família” e outros subsídios para soldados necessitados. Termina a sua actividade profissional como músico.

1975: Lança o livro de poesia “Pedra-Revolta” e inicia o movimento Ilha, com a antologia poética do mesmo nome, que englobou poetas como António Brito Figueiroa, José Laurindo Goes, Duarte Tranquada Gomes, José Vito Barreto, Carlos Alberto Fernandes e Francisco Freitas Abreu. A colectânea foi lançada no “Pátio, Livros e Artes”, Funchal, pela poetisa Maria Aurora Homem.

1976: É convidado para dirigir o jornal sedeado nos EUA, First Portuguese, que declina por motivos familiares. Publica através do Jornal da Madeira, “Uma Entrevista com Adelino Amaro da Costa”. Adere ao Partido do Centro Democrático e Social (CDS) colaborando ocasionalmente na redacção de comunicações para a imprensa.

1978: Escreve o guião para o documentário “Açores Outono”, com produção de José Luís Cabrita e realização de Acácio Almeida.

1979: Nascimento do terceiro descendente, Andreia Natacha, a 19 de Julho. Coordena e edita a antologia de poetas madeirenses “Ilha 2”.

1980: Assume o cargo de Secretário-geral do CDS e concorre para a Assembleia Regional, ocupando o 5º lugar da lista pelo círculo do Funchal. Recebe convite para o cargo de Assessor de imprensa para o Grupo Democrata Cristão, no Parlamento Europeu, que declina por motivos familiares. Escreve o guião para o documentário “Madeira – Bordado de Sonho”, com produção do IBTAM e realização de António de Sousa. Organizou um recital de poesia no Teatro de São Luís (Lisboa).

1981: Assume a Vice-presidência do CDS, cargo que ocupou até 1989, tendo assento na Assembleia Municipal do Funchal pelo mesmo partido.

1983: É elemento co-fundador da Associação Amigos do Teatro. É candidato pelo círculo eleitoral da Madeira, para a Assembleia da República, ocupando o 3º lugar da lista do CDS.

1984: Torna a se candidatar pelo círculo eleitoral da Madeira, para a Assembleia da República, ocupando o 4º lugar da lista do CDS.

1986: Apoia a candidatura de Freitas do Amaral nas Presidenciais deste ano, pertencendo à comissão de honra, cujo mandatário foi Rebelo Quintal. É suspenso sem vencimento, de toda a actividade profissional no Jornal da Madeira, por pretensos impropérios, alegadamente dirigidos ao então director, o cónego Tomás Velosa. Esta

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matéria seguiu para tribunal. Aceita o desafio de gerir o estabelecimento comercial “Kitt Kat”, onde trabalhou com sucesso até 1989.

1988: Por decisão do Tribunal, é indemnizado pelo Jornal da Madeira, deixando contudo, de fazer parte dos quadros da empresa, em Fevereiro deste mesmo ano. O seu tele-dramático “Ora... O Mar”, realizado por Paulo Valente, conquistou, para a RTP-M, o Prémio «Açor de Bronze», no MAT-Festival Internacional de Televisão, Horta, Açores. Edita o seu livro de poesia “20 Textos para Falar de Mim” com o qual recebeu o Prémio Literatura Leacock/Secretaria Regional do Turismo e Cultura, iniciando deste modo a colecção Cadernos Ilha, onde se inserem mais tarde autores como A. J. Vieira de Freitas, Dalila Teles Veras, Irene Lucília, Jorge Freitas e Carlos Nogueira Fino, num total de doze volumes.

1989: Recebeu o Galardão de Mérito Cultural da Região Autónoma da Madeira, com a antologia de poesia editada neste ano “O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses”. Forma e preside a comissão instaladora da Associação de Escritores da Madeira. Ingressa na empresa de publicidade Limiar, onde desempenhou o cargo de director. Dirigiu o Boletim da Expomadeira. Cumpre uma especialização em Assuntos Europeus, em Bruxelas. Foi o guionista da série biográfica da RTP-Madeira “Retratos da Madeira” com produção de Hoffman & Jardim e realização de Eduardo Geada. No âmbito das comemorações do 101º aniversário do Teatro Municipal de Baltazar Dias, selecciona e anota textos para a “Noite de Poesia”. Colaborou no suplemento “Domingo” coordenado por Tolentino de Nóbrega, com entrevistas a escritores e artistas reconhecidos, tais como Fernando Dacosta, Alberto da Costa e Silva e Adão Rodrigues.

1990: Promove e organiza a exposição de poesia ilustrada “Poet’Arte 90” (Funchal), editando em simultâneo uma antologia com o mesmo nome. Integra a direcção da Cerne – Casa da Europa da Madeira, filiada da Associação Regional Europeia da Madeira.

1991: Ingressa na Imprensa Regional, onde escreve ininterruptamente por vários anos, uma página diária sobre a Madeira para “O Dia”, matutino sediado em território continental. Promove e organiza a exposição de poesia ilustrada “Vers’Arte 91” (Funchal) e a mostra de Artes e Letras da Madeira na Biblioteca Nacional, “Olhares Atlânticos” (com Maurício Fernandes). Lança o livro “Antologia Verde” e coordena a “Ilha 3”. A 12 de Dezembro toma posse da presidência da Associação de Desportos da Madeira, cumprindo sucessivos mandatos até o seu falecimento. É considerado o “Escritor/Poeta do Ano” pelo Diário de Notícias (Funchal) e o seu projecto “Natal em Timor” em co-autoria de Rui Lima, campanha nacional humanística e solidária com o povo timorense, que incluiu uma canção tema e videoclip – o primeiro produzido e realizado na Madeira, vence na categoria “Evento Cultural do ano”. A nível político, apoia nas Presidenciais deste ano a candidatura de Basílio Horta, pertencendo à sua Comissão de Honra na Madeira. Após alguns choques de ideias no CDS, apresenta a sua carta de demissão. Após convite, adere mais tarde a 4 de Dezembro, ao Partido Social Democrata, onde vem a ter assento no conselho regional.

1992: É empossado para a vice-presidência da Assembleia Geral da Sociedade Protectora dos Animais Domésticos do Funchal (SPAD), cargo que desempenhou até o seu falecimento.

1993: Coordena o «Suplemento Cultura» no Notícias da Madeira. Preside a direcção da Associação de Escritores da Madeira.

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1994: Volta a receber o Galardão de Mérito Cultural da Região Autónoma da Madeira, pela obra desenvolvida no arquipélago, tendo sido promotor e organizador de diversas iniciativas, desde espectáculos musicais, (trouxe à Madeira a Casa da Comédia, de Filipe Lá Féria, com «A Bela Portuguesa», de Agustina Bessa-Luís), recitais, conferências, Feiras do Livro (com autores como José Saramago, José Manuel Mendes e Fernando Campos, entre outros), exposições de poesia ilustrada, assim como acções de divulgação de obras e escritores em escolas e bibliotecas municipais e da Fundação Calouste Gulbenkian. Escreveu vários prefácios para livros de autores locais e desenvolveu diversa produção ensaística sobre obras e escritores da Madeira, assim como nacionais e estrangeiros. Assinou dezenas de letras para canções gravadas por artistas portugueses (entre os quais Mário Mata, Gabriel Cardoso e Rosa Madeira), folhetos e catálogos de artistas plásticos e de encartes em discos, tendo ainda produzido, realizado e apresentado variados tipos de programas de rádio de índole cultural nas diferentes estações públicas e privadas da Madeira. Coordena a “Ilha 4” e “Crónicas do Norte”, de Horácio Bento de Gouveia. A sua peça em 1 acto “O Morto”, sob direcção de Eduardo Luís, Teatro Experimental do Funchal, é televisionada pela RTP-Madeira.

1995: A editora Átrio (Lisboa) lança “Os Pássaros Breves”, com posfácio de João Rui de Sousa. Coordena a colecção “A Memória das Palavras”, saindo neste ano “Única”, de Dórdio de Guimarães e mais tarde em 1997 “A Ilha de Circe”, de Natália Correia.

1996: A Editorial Éter (Lisboa) lança “Tem o Poder da Água”, com prefácio de Ernesto Rodrigues. Apoiou a candidatura de Cavaco Silva, nas Presidenciais deste ano, pertencendo à Comissão de Honra cujo mandatário foi Castanheira da Costa, então reitor da Universidade da Madeira.

1997: O seu poema “Proposta de encantamento para uma definição de arquitecto” é traduzido para a língua Russa e integrado na antologia “ Paz Russa” (São Petersburgo, p.132-133).

1998: Lança o seu livro “Noites de Insónia”, iniciando desta forma a colecção livros de Cordel, sob a estampa da C.M.F. incluindo poetas da ilha e do Continente português, como Ernesto Rodrigues, Carlos Nogueira Fino, João Rui de Sousa, João Dionísio, Vergílio Alberto Vieira, David Pinto-Correia, José Viale Moutinho, António Ramos Rosa, São Moniz Gouveia (Laura Moniz) e Maria Aurora Homem. Publica um texto na antologia 100 Anos de Frederico Garcia Lorca – Homenagem dos Poetas Portugueses (Universitária Editora, 1998). Quatro canções com letras de sua autoria, figuram no álbum “Viva a expo 98” de Gabriel Cardoso, grande amigo e músico madeirense que esteve na ribalta com o título de “Rei da Rádio”. As canções são as seguintes: “aleluia para o sonho”; “Tu sabes”; “Algo de foi contigo, mãe”; “partem (e vão voltar)”. Para além destes temas, Gabriel gravou também, em anos anteriores, temas com letras de JAG, nomeadamente “Limão” e “já não se fala de amor”, este último incluso no álbum “Só sei falar de amor” (1995).

1999: Com Ivo Caldeira, seleccionou e concretizou o projecto «O Canto dos Poetas Madeirenses» que assinalou o primeiro aniversário da Rádio TSF na Madeira, reunindo uma dezena de poetas em registo de voz, com o apoio da DRAC-M, num CD amplamente divulgado dentro e fora da Região. Lança dois livros: “Giacomo Leopardi e o Suave Desprendimento do Infinito” (Prefácio de António Fournier) e “À Espera dos Deuses”. Produziu com Celso Caires o álbum poético e fotográfico “Raízes de Fernando Nascimento”,

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prefaciado por Maurício Fernandes (ainda inédito). Integra a Antologia de Poesia Erótica (Universitária Editora) e O Escritor (APE, nº. 13/14, Lisboa). Organiza, na qualidade de presidente da ADM, o campeonato do Mundo de ciclismo de sala, que ocorreu entre 19 e 21 de Novembro e que mereceu grande enfoque na imprensa nacional e estrangeira.

2000: Edita “Lembro-me desses Natais (Textos Introdutórios de João Rui de Sousa e Vergílio Alberto Vieira, ilustrações de Maurício Fernandes) e “Aventura na Casa dos Livros”. Textos seus são incluídos em Mealibra (nº. 6, Centro Cultural do Minho) e Lisboa com seus Poetas (Adosinda Torgal e Clotilde Correia Botelho, D. Quixote). Organiza a I semana cultural da madeira e porto santo (Fevereiro), que conta com a participação dos escritores João Rui de Sousa, Vergílio Alberto Vieira e Firmino Mendes

2001: Lança”Esquivas são as Aves” e textos seus são traduzidos para o italiano na edição “Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera”, de Giampaolo Tonini, numa edição de Centro Internazionale Della Grafica di Venezia. É finalmente constituída a 15 de Março, no primeiro cartório notarial do Funchal, a Associação de Escritores da Madeira, a qual José António Gonçalves preside. Acrescente-se que também pertenceu aos quadros directivos da Associação Portuguesa de Escritores (APE). Organiza, na qualidade de presidente da ADM, o “1º Triatlo Mundial do Funchal”, que ocorreu a 13 de Maio, evento que mereceu grande destaque na imprensa nacional e internacional, com emissões em directo de um grande canal desportivo estrangeiro (Eurosport).

2002: Vence o prémio o “Escritor do Ano” pela revista Turismoda (Lisboa). Edita”Memórias da Casa de Pedra” (nota de Albano Martins) e “O Sol na Gaveta” (registo biográfico de João Carlos Abreu), ambas inclusas na colecção Terra à Vista, que editou obras de São Moniz Gouveia (Laura Moniz), Lília Mata, Francisco Fernandes, Berta Helena e Maria Adelaide Valente. É nomeado Assessor para a comunicação Social do Secretário Regional dos Recursos Humanos, cargo que desempenhou até o seu falecimento.

2003: Recebe o prémio “melhor letra” no Festival Internacional do Faial – “Vozes do Atlântico”. É subitamente acometido de grave doença em Novembro, sendo internado no Centro Hospitalar do Funchal. A imobilização no seu domicílio coincide com o despertar para o mundo da internet, lançando uma página pessoal com conteúdos diversificados (http://members.netmadeira.com/jagoncalves). Inscreve-se em vários grupos de debate de escrita criativa, estabelecendo vários intercâmbios e colaborações com poetas de vários pontos do globo. Participa na 1ª edição de “Correntes d’Escritas” encontro que reúne escritores de expressão Portuguesa de vários países e que se realiza na Póvoa do Varzim, numa organização da Câmara Municipal dessa localidade.

2004: Lança “As Sombras no Arvoredo”, a sua última obra em vida. Prepara e organiza a quinta e última edição do movimento Ilha. Coordenou também “O Marcador” no semanário “Areópago”. É publicado nos seguintes volumes: Antologia Escritas (Direcção, edição e capa de José Félix, Lisboa); Crónica Jornalística do Século XX (Edição do Círculo de Leitores, organizada por Fernando Venâncio, Lisboa); NEO 4 (Literary magazine, editor John Starkey, Summer); A poesia é tudo - Antologia I (Edição da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, com coordenação de Francisco Guedes). Inicia o projecto “ A poesia dos calendários”, que visava divulgar a literatura portuguesa em geral e os autores madeirenses em particular, através da internet, publicando diariamente uma

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completíssima antologia de textos de autores variados, mantendo contudo a constante presença de Albano Martins e de textos inéditos do próprio JAG. Mário Mata grava a canção “Dupla Face” com letra de JAG, tema que dá o título ao álbum.

2005: Finaliza o projecto “A poesia dos calendários”, com 365 antologias electrónicas, optando, por razões de saúde, não lhe dar seguimento. Esta decisão causou uma reacção imediata dos seus apreciadores, localizados um pouco por todos os cantos do planeta, tendo o noticiário da «Antena 1», Centro Regional da RDP-Madeira dedicado-lhe, por exemplo, no horário nobre, grande relevo e o “Notícias da Madeira”, inclusive, publicou reportagem sobre o acontecimento. Devido aos sucessivos apelos para continuar esse projecto, surge uma segunda fase dessa iniciativa, sob o título “Arte de Delfos”, mas numa periodicidade não diária e irregular. Faleceu na sua residência, vítima de doença prolongada, a 29 de Março. Recebeu um voto de pesar do Governo Regional da Madeira e foi agraciado a título póstumo pelo Exmo Presidente da República Jorge Sampaio, com a comenda da Ordem do Infante Dom Henrique, a 10 de Junho. Note-se também que foi distinguido com a medalha de Mérito da Cruz Vermelha Portuguesa, em data que não conseguimos precisar. O seu nome foi atribuído a uma artéria da cidade, na sua freguesia natal, no sítio da Ajuda. A Editora Ausência edita na sua Colecção Ausência Quebrada, a antologia de textos poéticos “Arte do Voo”, com prefácio, selecção e notas de António Fournier e projecto gráfico de Marco Gonçalves, filho do poeta. É também publicado na Antologia Escritas 2 (Direcção, edição e capa de José Félix, Lisboa).

2006: A editora Napolitana Liguori Editore, edita a antologia de poemas bilingue Italiano/ Português “Rasente Gli Occhi/ Rente aos Olhos”, com tradução de Silvana Urzini e Carlos Martins, inserindo-se na colectânea “Lusitana Italica”, que engloba nomes como Eça de Queirós e Manuel Alegre. A 5 de Maio, é constituído sócio honorário da ADM, a título póstumo. Volta a integrar a Antologia Escritas, no seu terceiro volume.

2007: O Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, no âmbito de uma série de “Encontros com a poesia Contemporânea”, apresentou no Museu Casa da Luz, no dia 22 de Junho, o livro “Rasente Gli Occhi/ Rente aos olhos”. A apresentação que contou com o apoio da Secretaria Regional do Turismo e Cultura e da DRAC, teve como prelectores a directora da colecção, a Professora Maria Luísa Cusati, os tradutores da obra Drª Silvana Urzini e Carlos Martins, o Dr. João Rui de Sousa, poeta e ensaísta que prefaciou o livro, o Dr. António Fournier, professor de Língua Portuguesa na Universidade de Turim e ainda o filho do poeta, Marco.

2008: Algumas das suas várias obras inéditas encontram-se em vias de publicação, nomeadamente “Ausência” e “Escrito nas Pedras”, parte integrante da antologia poética “Ilha 5”.

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bibliografia de jagPor Marco Gonçalves

DO AUTOR

Réstea de Qualquer Coisa (Crónicas), ed. autor, 1973.Os Pássaros Breves, Átrio, Lisboa, 1995. Tem o Poder da Água, Editorial Éter, Lisboa, 1996. Lembro-me desses Natais, Ed. Editorial Correio da Madeira, 2000.

Colecção “Edição Poesia 2000”:É Madrugada e Sinto, ed. autor, 1974. Pedra Revolta, ed. autor, 1975.

Colecção “Pilar de Banger” (ed. autor):José António Gonçalves, As Sombras no Arvoredo, nº 1, 2004.

Colecção “Obras Completas de José António Gonçalves” (Editorial Correio da Madeira):Giacomo Leopardi e o Suave Desprendimento do Infinito, nº1, 1999.À Espera dos Deuses, nº2, 1999.

Edições póstumas: Arte do Voo, Editora Ausência, Colecção Ausência Quebrada, nº12, 2005.Rasente Gli Occhi/ Rente aos Olhos, Liguori Editore, antologia bilingue Italiano/ Português, tradução de Silvana Urzini e Carlos Martins, colecção “Lusitana Italica”, Nápoles, 2006.Ausência, Exodus, V.N. Gaia, 2008.

COORDENOU/ INTEGROU

Colecção “Cadernos de Cordel” (Edição CMF) :José António Gonçalves, Noites de Insónia, nº1, 1998.Ernesto Rodrigues, Ilhas Novas, nº2, 1998.Carlos Nogueira Fino, Maratona e Outros Poemas, nº3, 1999.João Rui de Sousa, Concisa Instrução aos Nautas, nº4, 1999.João Dionísio, Os Construtores da Memória, nº5, 2000.Vergílio Alberto Vieira, A Ilha de Jade, nº6, 2000.David Pinto Correia, Onze + um Poemas e Lugares, nº7, 2001.José Viale Moutinho, Poemas Tristes, nº8, 2001.António Ramos Rosa, Nascente Submersa, nº 9, 2002.São Moniz Gouveia, Lupus in Fabula, nº10, 2002.Maria Aurora Homem, 12 Textos de Desejo, nº 11, 2003.Eduardo Bettencourt Pinto, Águas de Soledade, (em vias de publicação).

Colecção “Cadernos Ilha” (Editorial Correio da Madeira):José António Gonçalves, Vinte Textos para Falar de Mim, n°1, 1988.J. Vieira de Freitas, 14 Poemas Inéditos, nº2, 1988.

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Dalila Teles Veras, Madeira, Do vinho à saudade, nº3, 1989.Irene Lucília Andrade, A Mão Que Amansa os Frutos, nº4, 1990.José António Gonçalves, Antologia Verde, nº5, 1991.Carlos Nogueira Fino, Contemplação do Olhar, nº 6, 1992.Jorge Freitas, Alguns Poemas Insulares e Outros Textos, nº 7, 1995.São Moniz Gouveia, Cartas para um Tenente, nº8, 1996.Teresa Souto, Um Olhar Além de Mim, nº9, 1998.José António Gonçalves, Aventura na Casa dos Livros, nº10, 2000.José António Gonçalves, Esquivas são as Aves, nº11, 2001.

Colecção “A Memória das Palavras”(Editorial Correio da Madeira):Dórdio de Guimarães, Única, 1995.Natália Correia, A Ilha de Circe, 1997.

Colecção “Terra à Vista” (Arguim):José António Gonçalves, Memórias da Casa de Pedra, nº1, 2002.São Moniz Gouveia, A Musa das Coisas Pequenas, nº2, 2002.Lília Mata, Contos de Embarcar, nº3, 2002.José António Gonçalves, O Sol na Gaveta, registo biográfico de João Carlos Abreu, nº4, 2002.Francisco Fernandes, Memórias com Mar, nº5, 2002.Berta Helena, Lenços Brancos, nº6, 2003.Maria Adelaide Valente, A Dor Leva Tempo a Consertar, nº7, 2003.

Colecção “Prosas da Ilha”(Editorial Correio da Madeira):João Luís Aguiar, Contos de Maré Cheia, 1995.Octaviano Correia, Coisas Simplesmente, 1996.

Antologias:ILHA, edição Poesia 2000, 1975. ILHA 2, CMF, 1979.ILHA 3, CMF, 1991. ILHA 4, CMF, 1994.ILHA 5, 7 dias 6 noites, Funchal 500 anos, 2008.O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses, SRTCE, Funchal, 1989.Congresso de Cultura Madeirense, Recital de Poesia, Funchal, 1990.Poet’arte 90, Antologia de Poesia Madeirense, Associação de Escritores da Madeira, Funchal, 1990.Olhares atlânticos, poesia da Ilha, Associação de Escritores da Madeira, Lisboa, 1991.Vers’arte 91, Associação de Escritores da Madeira, Funchal, 1991.

OUTROS TÍTULOS QUE COORDENOU:

Horácio Bento de Gouveia, Crónicas do Norte, Edição C.M.S.Vicente, 1994.José Félix, Geografia da Árvore (a reinvenção da memória), Muchia Publicações, Funchal, 2003.António Rodrigues, Memórias Vivas do Porto Santo, Muchia Publicações, Funchal, 2003.50 Anos a Servir a Floresta, edição da SRARN, Direcção Regional de Florestas, Funchal, 2003.Santa Maria Maior, Com Palavras Nascem Histórias, nº1, Funchal, 2004.

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