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A violência contra a mulher é um problema recorrente em todo o mundo. Em 1994, a Convenção de Belém do Pará definiu a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” 1 , abrangendo, assim, um amplo rol de agressões, que, além da violência doméstica e familiar, alcança outras esferas da vida social das mulheres – violência sexual, assédio sexual no trabalho, prosti- tuição forçada, tráfico de mulheres, etc. Em que pese o tratado internacional, e vários estudos apontarem essa tendência mais ampla de estudar as várias formas de violência contra as mulheres, a realidade brasi- leira tem se preocupado mais com a ocorrida no âmbito familiar e doméstico. O que se objetiva com este artigo é ressaltar a gravidade do caráter oculto do femicídio, termo utilizado para definir a forma mais extrema de violência de gênero exercida por homens contra as mulheres. O termo femicídio foi usado pela primeira vez por Diana Russel e Jill Radford, em seu livro “The Politics of Woman Killing”, publicado em 1992 em Nova York 2 . A expressão já tinha sido usada pelo Tribunal Internacional de crimes contra as mulheres em 1976 e foi retomada nos anos 90, para ressaltar a não acidentalidade da morte violenta de mulheres (ALMEIDA, 1998, p.1). A opção desse termo serve para demonstrar o caráter sexista presente nestes crimes, desmistificando a aparente neutralidade subjacente ao termo assassinato, evidenciando tratar-se de fenômeno inerente ao histórico processo de subordinação das mulheres (GOMES, 2010). A potencialidade lesiva inerente ao conflito doméstico é intensa, e a violência dentro de casa está refletida em todos os relatos das suas vítimas, em matérias jornalísticas, nos casos trazidos ao Judiciário e naqueles constantes dos registros e inquéritos policiais. O assassinato de mulheres não é algo novo nem diferente, sempre existiu e, talvez, seja essa a questão. A violência é resultado de um processo social, não é algo inevitável, não é algo genético que condene os homens a serem violentos e as mulheres, vítimas. Em termos estatísticos, o femicídio, talvez, seja o crime menos revelado nas ocorrências policiais e um dos crimes mais subnotificados. Não se registram adequadamente as circunstâncias do crime quando este ocorre no âmbito das relações afetivas entre companheiros/cônjuges. O homem, no entanto, na maioria dos casos, sofre a violência na rua, nos espaços públicos, na maioria dos casos, praticado por outro ho- mem, enquanto que a mulher sofre mais com a violência ocorrida no espaço privado, e os agressores são (ou foram) namorados ou maridos/companheiros. Sabe-se que um grande número de agressões contra as mulheres, no âmbito doméstico, ocorre justamente quando elas decidem pôr fim à relação ou quando ousam manifestar seus pontos de vista contrários aos de seus maridos ou companheiros. 1 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará” (1994) 2 Disponível em www.dianarussel.com/femicide. Acesso em 20 de outubro de 2011. Femicídio: uma realidade oculta Adriana Ramos de Mello* 10 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB

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Page 1: Femicídio: uma realidade oculta - corteidh.or.cr · A proposta deste artigo foi ressaltar a realidade oculta do femicídio, que nos permite (não) concluir, mas apontar algumas considerações:

A violência contra a mulher é um problema recorrente em todo o mundo. Em 1994, a Convenção de Belém do Pará definiu a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”1, abrangendo, assim, um amplo rol de agressões, que, além da violência doméstica e familiar, alcança outras esferas da vida social das mulheres – violência sexual, assédio sexual no trabalho, prosti-tuição forçada, tráfico de mulheres, etc. Em que pese o tratado internacional, e vários estudos apontarem essa tendência mais ampla de estudar as várias formas de violência contra as mulheres, a realidade brasi-leira tem se preocupado mais com a ocorrida no âmbito familiar e doméstico.

O que se objetiva com este artigo é ressaltar a gravidade do caráter oculto do femicídio, termo utilizado para definir a forma mais extrema de violência de gênero exercida por homens contra as mulheres. O termo femicídio foi usado pela primeira vez por Diana Russel e Jill Radford, em seu livro “The Politics of Woman Killing”, publicado em 1992 em Nova York2. A expressão já tinha sido usada pelo Tribunal Internacional de crimes contra as mulheres em 1976 e foi retomada nos anos 90, para ressaltar a não acidentalidade da morte violenta de mulheres (ALMEIDA, 1998, p.1). A opção desse termo serve para demonstrar o caráter sexista presente nestes crimes, desmistificando a aparente neutralidade subjacente ao termo assassinato, evidenciando tratar-se de fenômeno inerente ao histórico processo de subordinação das mulheres (GOMES, 2010).

A potencialidade lesiva inerente ao conflito doméstico é intensa, e a violência dentro de casa está refletida em todos os relatos das suas vítimas, em matérias jornalísticas, nos casos trazidos ao Judiciário e naqueles constantes dos registros e inquéritos policiais.

O assassinato de mulheres não é algo novo nem diferente, sempre existiu e, talvez, seja essa a questão. A violência é resultado de um processo social, não é algo inevitável, não é algo genético que condene os homens a serem violentos e as mulheres, vítimas.

Em termos estatísticos, o femicídio, talvez, seja o crime menos revelado nas ocorrências policiais e um dos crimes mais subnotificados. Não se registram adequadamente as circunstâncias do crime quando este ocorre no âmbito das relações afetivas entre companheiros/cônjuges. O homem, no entanto, na maioria dos casos, sofre a violência na rua, nos espaços públicos, na maioria dos casos, praticado por outro ho-mem, enquanto que a mulher sofre mais com a violência ocorrida no espaço privado, e os agressores são (ou foram) namorados ou maridos/companheiros. Sabe-se que um grande número de agressões contra as mulheres, no âmbito doméstico, ocorre justamente quando elas decidem pôr fim à relação ou quando ousam manifestar seus pontos de vista contrários aos de seus maridos ou companheiros.

1 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará” (1994)2 Disponível em www.dianarussel.com/femicide. Acesso em 20 de outubro de 2011.

Femicídio: uma realidade ocultaAdriana Ramos de Mello*

10 - REVISTA DE DIREITOS HUMANOS DA AMB

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De acordo com o estudo “Mapa da Violência 2011”, realizado pelo Instituto Sangari, entre 1998 e 2008, foram assassina-das, no País, 42 mil mulheres em um ritmo que acompanhou o crescimento da população feminina, de forma tal que as taxas anuais do período rondaram sempre os 4,25 homicídios para cada 100 mil mulheres3. Outro dado importante deste es-tudo é o local do incidente que originou as lesões causadoras das mortes. Entre os homens, apenas 17% dos incidentes aconteceram na residência ou habitação, já entre as mulheres, essa proporção se eleva para perto de 40%.

Nas últimas décadas, o índice de homicídios de mulheres aumentou bastante no País, sendo um dos maiores das Américas. O número de mulheres que foram mortas por seus companheiros/maridos gira em torno de 10% do total de mortalidade por agressão, fato que pode conferir importância secundária a esse evento, havendo poucos estudos nessa área. No entanto, mesmo com frequência menor, esse crime geralmente está relacionado à condição de gênero. O fato de um terço das mortes ter ocorrido no domicílio reforça a ideia de que se trata de femicídio ou mortes provocadas por parceiros íntimos, familiar ou conhecido das vítimas, ao contrário das masculinas, que, em sua maioria, ocorrem em espaços públicos.4

A fragilidade do sistema judicial não é um problema recente, e as varas espe-cializadas em crimes dolosos contra a vida contam com um déficit de recursos humanos em seus quadros. Os crimes de tentativa de homicídio, ou mesmo o homicídio contra as mulheres, não têm uma resposta rápida da justiça. A cultu-ra machista e patriarcal enraizada na estrutura do Poder Judiciário e as falhas nos serviços remetem à fragilidade na proteção às vítimas, acrescido ao fato de que os processos são julgados como mais um crime de homicídio comum e sem nenhuma perspectiva de gênero.

A questão remete às respostas dadas pelo sistema penal aos crimes de vio-lência contra as mulheres. Se, por um lado, é comum ouvir as mulheres que so-frem violência dizer que não desejam denunciar o seu agressor, ou mesmo de-sistirem dos processos em andamento, o que também deve ser investigado, por outro lado, observam-se casos em que houve negligência ou omissão frente às mulheres que denunciaram e demandaram auxílio diante da violência sofrida.

3 http://www.sangari.com/mapadaviolencia. Acesso em 18 de outubro de 2011.4 Femicídios: homicídios femininos no Brasil. Disponível em: www.scielo.br/rsp em 19 de outubro de 2011.

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Há que se atentar para a morosidade da justiça no julgamento desses crimes como um dos fatores que reforça a impunidade, à medida que deixa tempo suficiente de se escapar da punição; para, no caso de homicídio, dentre as quais, a fuga do acusado; a reelaboração contínua da versão dos fatos; reconstrução da vida familiar, convencendo o júri da falta de periculosidade e da acidentalidade do crime; e, nos casos de tentativa de homicídio, além das estratégias anteriores, verifica-se o convencimento da vítima para depor a favor do acusado (ALMEIDA, 1998:114). Além disso, a estratégia utilizada pela defesa é quase sempre a de desqualificar o comportamento da vítima e minimizar o quanto possível a conduta violenta do acusado.

A Lei Maria da Penha5 representou um grande avanço no combate à violência contra a mulher, mas é ape-nas um mecanismo no grande processo de enfrentamento às desigualdades de gênero. É certo que a lei representa uma resposta jurídica concreta às violências sofridas pelas mulheres, mas precisamos de outros mecanismos de prevenção, como, por exemplo, mais investimentos da educação de gênero nas escolas, uni-versidades, além da formação continuada dos operadores do direito, incluindo os Juízes que atuam na área.

Apesar de os homicídios contra as mulheres causarem uma grande comoção social, gerando aceitação à punição maior, tal violência tem raízes profundas na desigualdade de gênero. A importância da categoria gênero deve ser considerada ao analisar o assassinato de mulheres, representando uma mudança de para-digma, o que significa assumir uma posição política de desnaturalizar as mortes violentas, não as atribuindo a fatores de natureza pessoal, restando evidente que a subordinação das mulheres em relação aos homens ainda está muito presente na sociedade, como um dos fatores que expõe as mulheres a toda sorte de violên-cia, que tem no femicídio a sua forma mais extrema.

A proposta deste artigo foi ressaltar a realidade oculta do femicídio, que nos permite (não) concluir, mas apontar algumas considerações: 1) Os femicídios predominam entre os homicídios de mulheres, ou seja, a maior causa é a violência de gênero; 2) As relações afetivas também podem ser fatais; 3) Os inquéritos e processos judiciais por crimes de femicídio são demorados e não têm uma perspectiva de gênero; 4) Os ope-radores do direito, geralmente, não têm formação em gênero e direitos humanos; 5) Finalmente, o ambiente doméstico é o espaço privilegiado onde as desigualdades são produzidas, ou seja, a casa, onde deveria ser o local de afeto e harmonia, na verdade, é lugar de violência e opressão.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, S.S. Femicídio: algemas (in)visíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Revinter Ltda, 1998.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 5. Ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007.

FROTA, M. H. P. O femicídio no Ceará: machismo e impunidade? Uma pesquisa em andamento. Disponível em: http://www.fazendoge-nero.ufsc.br/8/sts/ST11/Frota-Santos_11.pdf.

GOMES, Izabel Solyszko. Femicídio: a (mal) anunciada morte de mulheres. R. Pol. Públi. São Luis, v. 14, n. 1, p. 17-27, jan/jun. 2010.

MENEGUEL, Stela Nazareth. Hirakata, Vânia Naomi. Femicídios : homicídios femininos no Brasil. Disponível em : http://www.scielo.br/rsp.

ROMIO, Jackeline. Femicídio na Cidade. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278205373_ARQUIVO_femicidionacidade_Romio.pdf.

5 Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

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(*) Adriana Ramos de Mello é Juíza de Direito, titular do I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Rio de Janeiro, Mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes, Mestre em Criminologia pela Universidade de Barcelona, na Espanha, e doutoranda pela Universidade Autônoma de Barcelona.

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