felicia maia - direito à memória

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MOVENDO Idéias - ARTIGOS 1 Movendo Idéias, Belém, v8, n.13, p.39-42, jun 2003 RESUMO: O presente artigo visa a enfocar o direito à memória que têm todos os grupos humanos, en- fatizando a importância da preservação do patri- mônio histórico, artístico e cultural, sendo este o testemunho da herança de gerações passadas, que exerce papel fundamental no momento presente e se projeta para o futuro, transmitindo às gera- ções por vir, as referências de um tempo e um espaço singulares que jamais serão revividos, mas revisitados, criando a consciência da intercomu- nicabilidade da história. Compreendendo nossa memória social, artís- tica e cultural, podemos perceber e controlar o processo de evolução a que está inevitavelmente exposto o saber e o saber fazer de um povo. 1. PATRIMÔNIO CULTURAL A Constituição Federal de 1988 define, um seu artigo 216, o que é o patrimônio cultural bra- sileiro, assim se expressando: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza ma- terial e imaterial, tomados indivi- dualmente ou em conjunto, por- tadores de referência à identida- de, à ação, à memória dos dife- rentes grupos formadores da soci- edade brasileira...” Pode-se conceituar cultura como as diferen- tes maneiras de viver de um povo, transmitidas de geração a geração recebidas por tradição. O DIREITO À MEMÓRIA: O PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARTÍSTICO E CULTURAL E O PODER ECONÔMICO Felícia Assmar Maia * modo de falar, as crenças, o saber e o artesanato representam a forma do homem se relacionar em sociedade. É essa identidade que possibilita cada grupo social reconhecer-se simultaneamente se- melhante e diferente de outro grupo, ao revelar as ações do homem para viver em sociedade no correr da história. A herança cultural, que é portada através dos séculos, envolve além dos bens naturais, os mo- numentos e as edificações que revelam as carac- terísticas das diferentes fases vividas pelos gru- pos sociais. 2. DIREITO À MEMÓRIA Preservar é a palavra-chave quando se pensa em memória, e remete à idéia de proteção, cui- dado, respeito. Preservar não é apenas guardar algo, mas também fazer levantamentos, cadastra- mentos, inventários, registros, etc. A preservação do patrimônio histórico, artís- tico e cultural é necessária pois esse patrimônio é o testemunho vivo da herança cultural de gera- ções passadas que exerce papel fundamental no momento presente e se projeta para o futuro, transmitindo às gerações por vir as referências de um tempo e de um espaço singulares, que jamais serão revividos, mas revisitados, criando a cons- ciência da intercomunicabilidade da história 1 . Compreendendo a memória social, artística e cultural é que se pode perceber e controlar o pro- cesso de evolução a que está inevitavelmente ex- posto o saber e o saber fazer de um povo. Preservar o patrimônio nacional é dever do Estado e direito da comunidade, que pretende ver conservada a memória de fatos e valores cultu- rais da nação brasileira. * Professora da UNAMA, Especialista em Direito Civil pela PUC- São Paulo e Mestranda em Direito do Estado pela UNAMA- Pará. AGRADECIMENTO Meu mais sincero agradecimento à Dulcília Maneschy Corrêa e à Valdéa Cunha da Silva, respectivamente diretora e bibliotecária do Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Estado do Pará, pelas informações que me foram prestadas, sem as quais este trabalho jamais ter-se-ia concretizado. 1 Carta de Burra, apresentada na Austrália em 1980, pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios/ICOMOS.

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Page 1: Felicia Maia - Direito à Memória

MOVENDO Idéias - ARTIGOS1

Movendo Idéias, Belém, v8, n.13, p.39-42, jun 2003

RESUMO:

O presente artigo visa a enfocar o direito àmemória que têm todos os grupos humanos, en-fatizando a importância da preservação do patri-mônio histórico, artístico e cultural, sendo este otestemunho da herança de gerações passadas, queexerce papel fundamental no momento presentee se projeta para o futuro, transmitindo às gera-ções por vir, as referências de um tempo e umespaço singulares que jamais serão revividos, masrevisitados, criando a consciência da intercomu-nicabilidade da história.

Compreendendo nossa memória social, artís-tica e cultural, podemos perceber e controlar oprocesso de evolução a que está inevitavelmenteexposto o saber e o saber fazer de um povo.

1. PATRIMÔNIO CULTURALA Constituição Federal de 1988 define, um

seu artigo 216, o que é o patrimônio cultural bra-sileiro, assim se expressando:

“Constituem patrimônio culturalbrasileiro os bens de natureza ma-terial e imaterial, tomados indivi-dualmente ou em conjunto, por-tadores de referência à identida-de, à ação, à memória dos dife-rentes grupos formadores da soci-edade brasileira...”

Pode-se conceituar cultura como as diferen-tes maneiras de viver de um povo, transmitidasde geração a geração recebidas por tradição. O

DIREITO À MEMÓRIA: O PATRIMÔNIO HISTÓRICO,ARTÍSTICO E CULTURAL E O PODER ECONÔMICO

Felícia Assmar Maia *

modo de falar, as crenças, o saber e o artesanatorepresentam a forma do homem se relacionar emsociedade. É essa identidade que possibilita cadagrupo social reconhecer-se simultaneamente se-melhante e diferente de outro grupo, ao revelar asações do homem para viver em sociedade nocorrer da história.

A herança cultural, que é portada através dosséculos, envolve além dos bens naturais, os mo-numentos e as edificações que revelam as carac-terísticas das diferentes fases vividas pelos gru-pos sociais.

2. DIREITO À MEMÓRIAPreservar é a palavra-chave quando se pensa

em memória, e remete à idéia de proteção, cui-dado, respeito. Preservar não é apenas guardaralgo, mas também fazer levantamentos, cadastra-mentos, inventários, registros, etc.

A preservação do patrimônio histórico, artís-tico e cultural é necessária pois esse patrimônio éo testemunho vivo da herança cultural de gera-ções passadas que exerce papel fundamental nomomento presente e se projeta para o futuro,transmitindo às gerações por vir as referências deum tempo e de um espaço singulares, que jamaisserão revividos, mas revisitados, criando a cons-ciência da intercomunicabilidade da história1 .

Compreendendo a memória social, artística ecultural é que se pode perceber e controlar o pro-cesso de evolução a que está inevitavelmente ex-posto o saber e o saber fazer de um povo.

Preservar o patrimônio nacional é dever doEstado e direito da comunidade, que pretende verconservada a memória de fatos e valores cultu-rais da nação brasileira.

* Professora da UNAMA, Especialista em Direito Civil pela PUC- São Paulo e Mestranda em Direito do Estado pelaUNAMA- Pará.AGRADECIMENTOMeu mais sincero agradecimento à Dulcília Maneschy Corrêa e à Valdéa Cunha da Silva, respectivamente diretorae bibliotecária do Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Estado do Pará, pelas informaçõesque me foram prestadas, sem as quais este trabalho jamais ter-se-ia concretizado.1 Carta de Burra, apresentada na Austrália em 1980, pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios/ICOMOS.

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Movendo Idéias, Belém, v8, n.13, p.39-42, jun 2003

A Constituição de 1988 define esse patrimôniofazendo expressa menção às edificações que tra-zem referência à identidade e à memória nacionais.

Ratificando e enfatizando essa posição da CartaMagna, o Estado do Pará sancionou a Lei no 5629,de 20 de dezembro de 1990, que em seu artigo6o resguarda o poder-dever do Estado de con-servar a memória nacional, poder que, aliás, exer-ce em colaboração com a comunidade, promo-vendo todos os atos necessários à preservaçãodo patrimônio histórico, artístico e cultural.

Não se entenda por preservação apenas o atodo tombamento. Preservar é conservar a memó-ria, portanto conceito genérico que dá ao PoderPúblico o direito de, conforme a legislação, exer-cer todas as atividades administrativas indispen-sáveis ao fomento de ações de preservação, semferir direitos individuais.

Tombar é inscrever em um livro – O Livro doTombo –, que determinada propriedade, sejapública ou privada, móvel ou imóvel, foi conside-rada de interesse social, submetida, a partir daí, aum regime peculiar que objetiva protegê-la con-tra a destruição, abandono ou utilização inade-quada, quer dizer, sobre o bem passa a incidir umregime especial de tutela pública2 .

No Brasil o tombamento foi instituído a partir de1937, pelo Decreto-Lei no 25. Trata-se, portanto, deinstituto relativamente recente no ordenamento jurídi-co pátrio. Sua importância na atualidade é enorme,exigindo a atenção não só dos juristas, bem como doPoder Público e de toda a sociedade. É preciso man-ter viva a história de um país, por isso, o tombamentose justifica para os bens cuja conservação seja deinteresse público, quer por seu excepcional valor ar-queológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico, querpor sua referência a fatos e valores históricos.

3. PRESERVAÇÃO E PODER ECONÔMICOO tombamento de uma edificação não pode e

não deve impedir a modernização da cidade, atéporque o uso original de um imóvel tombado podeser modificado, a não ser que a motivação do tom-bamento tenha sido exatamente seu uso. A preser-vação tem que acompanhar a idéia de renovação,

num equilíbrio de ações que valorizem o patrimô-nio histórico, artístico e cultural.

Ter um bem tombado não significa estar deledesapropriado, assim como se o bem é de interes-se à preservação ou localização em área de entor-no de bem imóvel tombado.

Não obstante a Constituição Brasileira garantao direito de propriedade, que segundo a legislaçãocível é o direito de usar, gozar e dispor de um de-terminado bem, tal manifestação de direito não podeser entendida de forma isolada, sem que se façauma interpretação sistemática e integrada do orde-namento jurídico brasileiro, que outrossim, prevê afunção social da propriedade.

Para Hely Lopes Meireles3 , a propriedade “éum direito individual por excelência, do qual resultaa prosperidade dos povos livres”. E segue citandoLéon Duguit, que enfatiza o fato de há muito ter eladeixado de ser exclusivamente o direito subjetivodo proprietário para se transformar na função socialdo detentor da riqueza. Trata-se de um direito indi-vidual condicionado ao bem-estar da comunidade.

Como direito constitucional garantido pelo ar-tigo 5o, o direito de propriedade é uma projeçãoda personalidade do homem, mas sem que issosignifique que ela é intocável4, ou seja, há limitespara o seu uso no sentido de garantir o bem dacoletividade.

Se assim o é, há duas faces do direito em tela: aface pública, que necessariamente o condicionaenquanto princípio e pressuposto de sua existênciasocial; e a face privada que se expressa pela apro-priação individual da coisa, por sua expressão eco-nômica e pelas relações privadas daí decorrentes.

A compatibilização desses dois aspectos é ma-téria controversa e põe em cheque o instituto dotombamento, que ainda causa inconformismo nosproprietários dos bens por se tratar de restrição aodireito de propriedade, sendo este um dos maiscaros ao homem depois da vida e da liberdade.

Não há o que temer, a compatibilização é pos-sível e necessária, e dela depende a preservaçãoda memória de um povo.

O processo de desenvolvimento deve primarpela valorização dos bens culturais e das constru-

2 Antonio A. Queiroz Telles, Tombamento e seu Regime Jurídico, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1992, pg. 13.3 Hely Lopes Meireles, Direito Administrativo Brasileiro, 23ª Edição, São Paulo, Malheiros Editores Ltda, 1992. pg. 482.4 Benjamin Villegas Basavilbaso, Derecho Administrativo, Buenos Aires, 1956, VI, pg. 11.

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ções históricas, integrando-os ao sistema de pla-nejamento que busca compatibilizar desenvolvimen-to urbano, patrimônio ambiental e edificado e tu-rismo. Indubitavelmente é preciso garantir o bem-estar das populações que habitam cidades e sítioshistóricos, suprindo-as das necessidades básicascomo saneamento, eletricidade, transporte, etc.

O proprietário de um bem imóvel tombado ouinserido em área de entorno de preservação de-verá solicitar uma consulta prévia ao órgão deproteção do patrimônio (em nível federal – oIPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-tístico Nacional, no Estado do Pará – o DPHAC– Departamento do Patrimônio Histórico, Artísti-co e Cultural, e em Belém – a FUMBEL – Fun-dação Cultural do Município de Belém), para re-ceber as informações necessárias para o desen-volvimento de um projeto ou serviço a ser execu-tado no imóvel, ou ainda para a aposição de anún-cio publicitário. Com as informações, deverá serdesenvolvido um projeto, submetido à nova aná-lise do órgão de proteção do patrimônio. Somentecom a autorização desse órgão é que o serviçopoderá ser iniciado, evitando-se assim, a aplica-ção das penalidades previstas na legislação, atépor configurar crime previsto no Código PenalBrasileiro, nos artigos 165 e 616.

A coletividade aufere vantagens com o tom-bamento, daí a necessidade da repartição doônus, devendo o Poder Público conceder aosparticulares, certos privilégios, para compensaras restrições à livre fruição de seu direito de pro-priedade.

Hodiernamente são poucas as vantagens con-cedidas aos proprietários de bens imóveis tom-bados ou de interesse à preservação. Para repa-rar essa omissão do legislador pátrio, ideal que sepudesse introduzir certas medidas, objetivando amelhor sistematização do instituto do tombamen-to, dentre elas a total isenção de tributos inciden-tes sobre o imóvel5; a concessão ou a ampliaçãode benefícios fiscais a toda pessoa física ou jurí-

dica que colabore com a preservação do patri-mônio cultural; e a associação do Poder Públicocom particulares, pessoas jurídicas nacionais, es-trangeiras e internacionais, para a obtenção derecursos destinados à constituição de um fundoespecial de administração e fiscalização dos benstombados.

4. EDUCAÇÃO PATRIMONIALA educação patrimonial é um processo que

conduz o homem ao entendimento do mundo emque está inserido, elevando sua auto-estima e àconseqüente valorização de sua cultura.

O importante hoje em dia é que se mobilize acomunidade para realizar a enorme e patrióticatarefa de preservação do patrimônio cultural,possibilitando a equânime repartição dos ônussociais entre a coletividade e o proprietário dobem tombado. Ao Poder Público compete, atra-vés dos meios de comunicação, de exposiçõese cursos, sensibilizar a população para a impor-tância do assunto.

O direito à memória é garantido quando acomunidade toma consciência do seu papelfundamental de guardiã do próprio patrimô-nio, passando então a impedir a degradaçãoe a destruição do meio ambiente, imóveis eobjetos culturais, numa ação de salvaguardapreventiva.

Uma eficiente política de preservação deve serintegrada à comunidade, atingindo a educação emtodos os níveis, conscientizando crianças, jovense adultos da necessidade de manter viva a heran-ça cultural que nossos antepassados nos legaramdesde as eras primevas.

“A melhor forma de preservar o patrimôniocultural é através do respeito e interesse do pró-prio povo em assegurar a proteção dos testemu-nhos de uma cultura, permitindo assim o exercí-cio pleno da cidadania”6.

5 Antonio A. Queiroz Telles, op. cit, pg. 101 e 102.6 Série Informar para Preservar, Volume 1, Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Estado doPará, pg. 30.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASAVILBASO, Benjamin Villegas. DerechoAdministrativo, Buenos Aires, 1956.

CASTRO, Sônia Rabelo de. O Estado na Pre-servação de Bens Culturais. Rio de Janeiro:Renovar, 1991.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administra-

tivo Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros,1992.

PARÁ. Departamento de Patrimônio Histórico,Artístico e Cultural. Belém, 2002.(Série Informarpara Preservar.)

TELLES, Antônio A. Queiroz. Tombamento eseu Regime Jurídico. São Paulo: Revista dosTribunais, 1992.