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CURSO DE DIREITO
“IMPUTAÇÃO OBJETIVA”
FÁBIO LUCIO PAIVAR.A.: 444.283/6TURMA: 3109-BFONE: 6991-3330E-MAIL: [email protected]
SÃO PAULO2004
FÁBIO LUCIO PAIVA
Monografia apresentada à bancaexaminadora do Centro Universitáriodas Faculdades MetropolitanasUnidas, como exigência parcial para aobtenção do título de Bacharel emDireito sob orientação do professorEnio Luiz Rossetto.
SÃO PAULO2004
BANCA EXAMINADORA
Professor Orientador: ____________________________
Professor Argüidor:______________________________
Professor Argüidor:______________________________
Aos meus pais pelo incentivoe apoio nas horas difíceis
Agradeço a todos aqueles quecontribuíram para a concretização
deste trabalho, em especial a orientaçãodo Professor Enio Luis Rossetto.
SINOPSE
A moderna teoria da imputação objetiva surgiu no século XX
como uma alternativa à causalidade.
Imputação objetiva significa atribuir a alguém a realização de
uma conduta criadora de um relevante risco juridicamente proibido e a
produção de um resultado jurídico.
Esta nova teoria permite uma solução mais “justa” para os crimes
culposos, já que o resultado não pode ser objetivamente imputável ao autor
quando o evento jurídico mais grave não se apresenta adequado ao risco
inicial.
Pelo princípio do incremento do risco, só é possível
responsabilizar o autor se a conduta criou ou aumentou um risco
juridicamente relevante.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................. 081. BREVE HISTÓRICO................................................................................. 092. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA................................................... 113. ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA................... 15 3.1. Requisitos de aplicação........................................................................ 174. PRINCÍPIO DO INCREMENTO DO RISCO............................................18 4.1. Criação ou não-criação do risco juridicamente relevante.................... 18 4.2. Diminuição do risco............................................................................. 225. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA ................................................................. 23 5.1. No tráfego de veículos automotores.....................................................24
5.2. Trabalho em equipe de profissionais................................................... 255.3. Realização de conduta dolosa ou culposa por parte de terceiro.......... 26
6. PROIBIÇÃO DE REGRESSO................................................................... 277. PREVISIBILIDADE OBJETIVA E SUBJETIVA..................................... 308. CONSENTIMENTO E PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA........................... 329. CRIMES CULPOS......................................................................................3610. CRIMES DOLOSOS................................................................................ 38 10.1. Dolo eventual e culpa consciente..................................................... 3911. MOMENTO CONSUMATIVO E TENTATIVA.....................................42 11.1. Crime impossível e imputação objetiva........................................... 43CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................44APÊNDICE..................................................................................................... 47BIBLIOGRAFIA.............................................................................................64
INTRODUÇÃO
A teoria da imputação objetiva é adotada pela maioria dos
autores alemães, bem como em outros países europeus. No Brasil, conta com
uma crescente adesão dos estudiosos do Direito Penal, sendo que várias
decisões dos Tribunais pátrios já se valeram de seus fundamentos.
O princípio geral da imputação objetiva é a criação pela ação
humana de um risco juridicamente proibido, consubstanciando um resultado
típico.
Toda atividade humana possui um risco, assim, através do
princípio do incremento do risco é estudado o comportamento incorreto
adotado pelo autor, verificando se houve ou não o aumento da possibilidade
de produção do resultado.
Para a imputação objetiva, o consentimento do ofendido adquire
uma maior importância com as considerações sobre a cooperação para que a
vítima se coloque em perigo e a produção de um perigo consentido
1. BREVE HISTÓRICO
As primeiras idéias sobre o tema podem ser encontradas na obra
“A República”, o termo imputabilidade significa em grego deon tina poiein,
ou seja, fazer recair sobre alguém. Para Platão, “o sujeito está ligado à sua
ação, bem como às conseqüências que dela decorrem”.1
Os princípios da imputação objetiva foram mais claramente
determinados por Aristóteles ao afirmar que “uma ação somente poderia ser
imputável se submetida ao âmbito de controle daquele que atua, de forma que
poderia ter agido de outro modo”.2
A moderna teoria da imputação objetiva surgiu somente no
século XX como uma alternativa à causalidade.
Atualmente, a Parte Geral do Código Penal Brasileiro, adota a
teoria finalista. Para essa teoria, não se pode dissociar a ação da vontade do
agente, já que “conduta é o comportamento humano, voluntário e consciente
(doloso ou culposo) dirigido a uma finalidade. Assim, o dolo e a culpa fazem
parte da conduta (que é o 1° requisito do fato típico) e, dessa forma, quando
ausentes, o fato é atípico” .3
Diante da insuficiência do finalismo, que não solucionou várias
questões, como a do crime culposo, há uma ampla discussão doutrinária e
jurisprudencial sobre a teoria da imputação objetiva, principalmente na
Alemanha e na Espanha.
Gimbernat Ordeig introduziu a imputação objetiva na Alemanha
após a Segunda Grande Guerra Mundial, foi ele quem deu os primeiros passos
nesse sentido, elaborando as pioneiras contribuições4.
No início da década de 70, Roxin deu inicio à formulação de uma
série de critérios normativos de imputação para os delitos de resultado
(dolosos e culposo), visando à construção de uma teoria geral de imputação
objetiva desvinculada do dogma causal5.
1 Luiz Regis Prado, Érica Mendes de Carvalho, Teorias da imputação objetiva do resultado, p. 18.2 Ibid., p. 19.3 Victor Eduardo Rios Gonçalves. Direito Penal: Parte Geral, p. 36.4 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 24.
2. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
Imputar significa “atribuir a alguém a responsabilidade de” .6
Para Damásio Evangelista de Jesus “imputação objetiva significa
atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um relevante
risco juridicamente proibido e a produção de um resultado jurídico” .7
Fernando Galvão, em seu livro Imputação Objetiva, ensina que a
expressão “significa atribuir a alguém a prática de conduta que satisfaz as
exigências objetivas necessárias à caracterização típica. A imputação
objetiva estabelece vinculação entre a conduta de determinado indivíduo e a
violação da norma jurídica, no plano estritamente objetivo” .8
Neste contexto, o resultado normativo só poderá ser atribuído ao
sujeito, quando a sua conduta criou ao bem, um relevante risco juridicamente
desaprovado e esse perigo determinou o resultado jurídico.
5 Luiz Regis Prado, Érica Mendes de Carvalho, Teorias da imputação objetiva do resultado, p. 64.6 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Minidicionário da língua portuguesa, p. 278.
Dessa forma, a responsabilidade do autor vai somente até os
limites de sua atuação. Na estrutura da imputação objetiva observa-se a
relação de causalidade material entre a conduta e o resultado, quando se tratar
de crimes materiais, e a relevância jurídica da produção desse resultado, sob a
ótica da realização de um risco juridicamente não autorizado.
A teoria da imputação objetiva não se restringe a estabelecer a
relação causal existente entre uma conduta natural e seu resultado.
A relação de causalidade é somente a primeira exigência, que se
completa com a constatação da relevância jurídica da relação existente entre a
conduta e o resultado produzido.
Figura, portanto, “como princípio geral de imputação objetiva a
criação pela ação humana de um risco juridicamente desvalorado,
consubstanciando em um resultado típico”. 9
Claus Roxin afirma que:
7 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 33.8 Fernando Galvão A. N. da Rocha, Imputação objetiva, p. 15.9 Luiz Regis Prado, Érica Mendes de Carvalho, Teorias da imputação objetiva do resultado, p. 64.
“(...) ‘un resultado causado por el agente sólo se puede imputar al tipo objetivo si la
conducta del autor ha creado un peligro para el bien jurídico no cubierto por un riesgo
permitido y esse peligro también se há realizado en el resultado concreto’” .10
Quanto à natureza jurídica, “a imputação objetiva constitui
elemento normativo do tipo, seja o crime doloso ou culposo” .11
Os elementos do tipo podem ser objetivos, subjetivos e
normativos.
Os objetivos são os que descrevem ou se referem a dados
objetivos do fato, como forma de execução, tempo, etc. Ex.: coisa móvel (art.
155 do Código Penal).
Os subjetivos são aqueles em que o tipo penal exige alguma
finalidade específica por parte do agente ao cometer o crime. Ex: raptar
mulher honesta para fim libidinoso (art. 219 do Código Penal).
Os normativos concernem a dados que requerem um juízo de
valoração, já que seu significado não se extrai da mera observação. Ex.:
mulher honesta (art. 219 CP).
A imputação objetiva “distingue-se da maioria dos outros
elementos normativos do tipo, que são expressos. Ela se encontra implícita
10 Claus Roxin, Derecho Penal Parte General. Madri: Civitas, 1997, p. 363, apud Alejandro J. RodríguezMorales. Ciencias penales y criminológicas, fev. 2004. Disponível em:http://www.geocities.com/cienciaspenales/guaruja1.html.11 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 37.
nas figuras típicas, assim como o dolo, que configura elemento subjetivo
implícito do tipo” .12
Neste contexto, nos delitos materiais, a conduta dolosa ou
culposa, o resultado e o nexo causal não são suficientes para compor o fato
típico. É preciso que o autor tenha realizado uma conduta criadora de um
risco juridicamente proibido a um objeto jurídico e, assim, produzido um
resultado (também jurídico) que corresponda à sua realização.
Nos delitos sem resultado, a existência do fato típico fica
condicionada à imputação objetiva da conduta criadora de risco juridicamente
reprovado e relevante a interesses jurídicos13.
12 Ibid., mesma página.13 Damásio Evangelista de Jesus, op. cit., p. 38.
3. ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
No nosso entendimento, a esfera de aplicação da teoria da
imputação objetiva não está restrita à relação entre a conduta e o resultado nos
crimes materiais, podendo ser utilizada em todas as espécies de crimes, no
entanto, a matéria ainda não é pacífica. Há duas teorias:
Na teoria extensiva ou ampliativa, os princípios da imputação
objetiva são aplicáveis a todos os tipos de crimes, sejam materiais ou não.
Para a restritiva “a imputação objetiva sistematiza princípios em
razão dos quais se pode considerar que um resultado é objetivamente
imputável a uma conduta, referindo-se a crimes materiais (de conduta e
resultado)” .14
Alguns doutrinadores sustentam, ainda, que a imputação objetiva
deve ser aplicada somente aos delitos culposos, já que o desenvolvimento da
noção de criação de risco juridicamente relevante em muito se assemelha à
observância ao dever objetivo de cuidado15.
Neste contexto, ainda há três orientações sobre a conduta e o
resultado.
A primeira corrente, segue a imputação objetiva da conduta
causadora do risco proibido, em que se incluem os conceitos e regras do risco
tolerado, da criação do risco proibido, o princípio de confiança e a proibição
de regresso 16.
Para a segunda corrente, imputação objetiva significa atribuição
de um resultado a quem realizou uma ação.
A terceira corrente entende que a imputação objetiva procura
resolver temas referentes à conduta e ao resultado. Essa posição apresenta-se
14 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 35.15 Fernando Galvão A. N. da Rocha, Imputação objetiva, p. 37.
coerente com o entendimento de que o juízo de imputação objetiva não é
somente aplicável a delitos de resultado17.
Segundo a doutrina alemã dominante, a imputação objetiva da
conduta e do resultado jurídico é examinada depois do nexo de causalidade
material, assim, o fato típico, nos delitos materiais, possui uma conduta
dolosa ou culposa, um resultado material, um nexo de causalidade objetiva e
uma imputação objetiva18.
3.1. Requisitos de aplicação
A teoria da imputação objetiva depende da apreciação de quatro
requisitos para a sua aplicação19:
O primeiro requisito, é a causalidade material entre a conduta e o
resultado (somente para os delitos materiais).
16 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 35.17 Ibid., p. 36.18 Ibid., p. 38.19 Damásio E. de Jesus, Imputação objetiva, p. 69.
O segundo, é a criação de um risco relevante e juridicamente não
autorizado a um bem protegido.
O terceiro, é o resultado jurídico produzido pelo risco.
Finalmente, o quarto, é a correspondência entre o resultado
jurídico e o perigo juridicamente de proibido.
No entanto, devemos ressaltar que a causalidade, nos delitos
materiais, é só uma condição mínima, devendo a ela agregar-se a relação
normativa entre o comportamento e a produção do resultado20.
4. PRINCÍPIO DO INCREMENTO DO RISCO
Segundo o princípio do incremento do risco é preciso comparar o
comportamento incorreto adotado pelo autor com a conduta correta e verificar
se houve ou não o aumento da possibilidade de produção do resultado, se a
20 Ibid., mesma página.
conduta incorreta do autor fizer aumentar a probabilidade da produção do
resultado, em comparação com o risco permitido, caracteriza-se o tipo
objetivo, caso contrário, não haverá tipicidade objetiva.
4.1. Criação ou não-criação de um risco juridicamente relevante
Toda atividade humana possui um risco, quando o legislador
permite e regula a construção de um edifício ou uma rodovia, por exemplo,
tem consciência que mesmo seguindo as regras regulamentares, atividades
como estas, trazem um risco a interesses que ele mesmo pretende proteger.
A permissão de um risco está baseada no benefício da respectiva
atividade, que apresenta uma fundamentação plausível para quem,
potencialmente, vai suportar este risco.
Quando alguém dirige um automóvel respeitando as normas
legais, oferece a si próprio e a terceiros um risco tolerado, trata-se de um risco
permitido. No entanto, se infringir as normas, dirigindo em estado de
embriaguez, realiza uma infração ao “dever objetivo de cuidado”, produzindo
um risco proibido. “A diferença entre o risco permitido e proibido não está na
gravidade do perigo e sim que às vezes é lícito e em outras não o é” .21
Ao desatender o cuidado devido, o motorista deu lugar a um
aumento da esfera do risco permitido, o que possibilita a imputação objetiva
do resultado e “independe do fato de que a observância do cuidado
produziria o resultado da mesma forma” .22
Dessa forma, o resultado morte, por exemplo, somente seria
imputável a uma pessoa quando sua ação criou ou aumentou um perigo não
permitido. Em todos os casos nos quais a ação não tenha criado um risco
juridicamente relevante de lesão para um bem jurídico não haverá, do ponto
de vista objetivo, ação típica. A falta ou a presença do dolo toma-se, portanto,
secundária.
Observe o seguinte exemplo:
21 Enrique Gimbernat Ordeig, Delitos cualificados por el resultado y causalidad, Madrid, Tecnos, 1999, p.230, apud Damásio E. de Jesus, Imputação objetiva, p. 40.22 Luiz Regis Prado, Érica Mendes de Carvalho, Teorias da imputação objetiva do resultado, p. 82.
“A”, filho e herdeiro de “B”, o envia a um passeio pelo bosque,
em uma noite de tempestade, com a esperança de que este seja atingido por
um raio e que em conseqüência venha a falecer, o que realmente ocorre23.
Segundo Claus Roxin:
“(...) ‘quem induz outrem a ir ao bosque com tempestade não cria com isso nenhum perigo
de morte relevante juridicamente, porque a possibilidade de ser alcançado pelo raio é
estatisticamente tão pequena que o Direito não a valora como um perigo proibido’” .24
Portanto, se o resultado, no entanto, se realiza, não é imputável
àquele que o originou. Há uma simples causa do resultado morte, mas não
uma ação típica de homicídio. Porém, se alteramos o exemplo proposto,
continua Roxin, de tal forma que, existindo um lugar exposto a freqüentes
raios a conseqüência de especiais circunstâncias físicas, e o sujeito, com
conhecimento desses fatos, envia a vítima a tal lugar perigoso para matá-la,
dessa forma, dar-se-á um homicídio consumado se o resultado se produz
posto que aqui o sujeito criou um risco de morte estatisticamente relevante e
esse risco se consubstanciou no resultado.
O princípio do incremento do risco também pode ser utilizado
para solucionar algumas lacunas do nosso atual sistema.
23 Luiz Regis Prado, Érica Mendes de Carvalho, Teorias da imputação objetiva do resultado, p. 70.24 Claus Roxin, La problemática de la imputación objetiva, Cuadernos de Política Criminal, 1989, n.39, p.750, apud Luiz Regis Prado, Érica Mendes de Carvalho, Teorias da imputação objetiva do resultado, p.72.
Vejamos um outro exemplo:
“A”, foi condenado à morte, frações de segundo antes do
carrasco ligar a cadeira elétrica, “B”, seu inimigo, desfecha um tiro em sua
cabeça, matando-o.
O Código Penal Brasileiro em seu art. 13, caput, considera causa
a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, assim, a conduta
do inimigo da vítima não poderia ser considerada a causa da morte, já que
sem ela o evento teria acontecido da mesma forma. Assim, teríamos uma
morte sem causa, o que não é correto25.
Segundo o nosso entendimento, “B” responderia pelo homicídio
porque há imputação objetiva quando o resultado é causado materialmente
por uma conduta produtora de um risco juridicamente proibido, ainda que o
evento fatalmente viesse a ocorrer em face de outro perigo preexistente.
O inimigo de “A”, realizou uma conduta perigosa juridicamente
proibida ao atirar na vítima, materializando-se o risco na morte do condenado,
ainda que, fatalmente, o evento ocorreria em face da ação do carrasco.
25 Nesse sentido, com exemplo similar: Damásio E. de Jesus, Imputação objetiva, p. 31.
4.2. Diminuição do risco
Claus Roxin entende que “uma imputação ao tipo deverá ser
excluída sempre que o sujeito não criar nem aumentar o perigo de resultado
típico, mas sim diminuí-lo ou retardá-lo” .26
Desta forma, propõe-se o seguinte exemplo: “A” dirigindo seu
automóvel percebe que o freio está danificado e decide empurrar “B” para
fora do veículo, evitando, assim, que sofresse o resultado mais gravoso de
uma colisão inevitável.
Não é possível falar em uma ação típica porque ela reduz a
probabilidade de uma lesão mais gravosa. O mesmo ocorre quando um
médico tenta impedir a morte de um paciente, mas só consegue adiá-la.
26 Claus Roxin, La problemática de la imputación objetiva, Cuadernos de Política Criminal, 1989, n.39, p.755, apud Luiz Regis Prado, Érica Mendes de Carvalho, Teorias da imputação objetiva do resultado, p. 67.
5. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
O princípio da confiança foi elaborado para melhor delimitar a
idéia da atuação nos limites do risco permitido, segundo este princípio,
presume-se que todas as pessoas são responsáveis e agem de acordo com as
regras da sociedade, no sentido de evitar danos a terceiros. Assim, não realiza
conduta típica quem, agindo de acordo com o direito, envolve-se em situação
em que terceiro, descumprindo seu dever de cuidado, permite a produção de
resultado danoso27.
O princípio fundamenta-se no fato de que os indivíduos, em
sociedade, podem organizar suas atividades sobre o pressuposto de que todos
atuam de maneira adequada e de que o comportamento praticado conforme as
expectativas sociais não pode ser considerado aumento de uma situação de
27 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 46.
risco proibida. A conseqüência de sua aplicação é a impossibilidade de
responsabilizar aquele que atua conforme o cuidado objetivamente exigido 28.
No entanto, não se exclui a imputação quando o dever de cuidado
se dirige ao controle e à fiscalização de condutas alheias, como nas hipóteses
de condutas especialmente arriscadas, comportamento de crianças ou doentes
mentais.
5.1. No tráfego de veículos automotores
Pelo princípio da confiança, aquele que se comporta no trânsito
de forma normal, conforme as regras, tem direito de esperar que os demais
também o façam, salvo quando existirem indícios concretos do contrário.
Desta forma, o condutor que possui a preferência para transpor o
cruzamento, segundo o disposto no art. 29, inciso II, do Código de Trânsito
Brasileiro, não precisa diminuir sua velocidade considerando a possibilidade
28 Fernando Galvão A. N. da Rocha, Imputação objetiva, p. 82.
da colisão com outros veículos, uma vez que pela regra geral pode acreditar
que sua preferência será respeitada29.
No entanto, este princípio não deverá ser aplicado quando a
situação fática indicar que a crença no respeito às regras é injustificado. No
exemplo acima, se o condutor da via preferencial percebe que o outro não vai
respeitar as regras de circulação é sua obrigação deter seu veículo e evitar a
colisão porque o fato de obedecer às normas não justifica a omissão dos
cuidados capazes de evitar o sinistro30.
5.2. Trabalho em equipe de profissionais
Segundo o princípio da confiança, quem trabalha em equipe com
distribuição de atividades pode confiar na atuação sem erros dos demais
participantes, salvo indícios do contrário.
Desta forma, a atuação devida e confiante na adequação das
demais contribuições não incrementa a situação de risco e, portanto, impede a
29 Fernando Galvão A. N. da Rocha, Imputação objetiva, p. 82.30 Fernando Galvão A. N. da Rocha, Imputação objetiva, p. 84.
imputação objetiva. O exemplo típico é a atuação da equipe médico-cirúrgica,
em que a divisão do trabalho é fundamental para o seu êxito31.
Neste contexto, o médico, em uma cirurgia, confia que seus
auxiliares adotaram os cuidados necessários.
5.3. Realização de conduta dolosa ou culposa por parte de terceiro
Quanto à realização de uma conduta dolosa ou culposa por parte
de terceiro, quem age culposamente não responde pelo comportamento
posterior doloso ou culposo de terceiro.
Vejamos um exemplo proposto por Claudia López Dias:
“Após sofrer uma lesão culposa no trânsito, a vítima é levada a um hospital, onde o
pessoal de plantão nega-se a atendê-la, alegando que não possui recursos financeiros,
vindo a falecer por falta de assistência”. 32
31 Ibid., p. 87.32 Claudia López Díaz, Introducción a la imputación objetiva, Bogotá, Centro de Investigaciones de DerechoPenal y Filosofía del Derecho, Universidad Externado de Colômbia, 1996, p. 122 e 123, apud DamásioEvangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 47.
Neste exemplo, o resultado morte recai sobre os omitentes do
hospital e não sobre o autor da lesão corporal.
Em caso de conduta dolosa por parte de terceiro, a imputação
objetiva somente ocorrerá quando a conduta do terceiro puder ser prevista,
caso contrário, pode-se confiar na conduta socialmente adequada do terceiro e
assim, excluir imputação33.
6. PROIBIÇÃO DE REGRESSO
A proibição de regresso da imputação objetiva não deve ser
confundida com a proibição do regressus ad infinitum, da doutrina
tradicional.
33 Fernando Galvão A. N. da Rocha, Imputação objetiva, p. 89.
Para a imputação objetiva, um comportamento anterior
considerado inócuo não pode ser considerado co-autoria ou participação em
conduta futura proibida, assim, o vendedor autorizado de armas de fogo não
responde pelos crimes com elas cometidos, uma vez que realizou uma
conduta estereotipada, normal e permitida pela ordem jurídica34.
Na doutrina tradicional, o vendedor autorizado de armas de fogo
não responde pelos crimes com elas cometidos porque não agiu com dolo ou
culpa na produção do resultado35.
Vejamos um exemplo do professor Damásio Evangelista de Jesus
em relação a esse aspecto:
“A esposa de um detento vai à padaria e pede uma ‘baguete’ (um tipo de pão). Suponha-se
que aja de duas maneiras:
1ª) confidencia ao padeiro que vai esconder um punhal no pão e entregar a seu marido na
próxima visita, com o qual ele fugirá da cadeia mediante ameaça ao carcereiro;
2ª) solicita ao padeiro que confeccione uma ‘baguete’ especial, maior do que as
costumeiramente vendidas, esclarecendo que é para abrigar um punhal de grandes
proporções, com o qual seu marido irá fugir da prisão.
O detento, usando a arma, foge da cadeia mediante ameaça de morte ao carcereiro. O
padeiro responde pela fuga criminosa?” 36
Na primeira hipótese, o padeiro não deve responder pela fuga
criminosa porque realizou uma conduta normal, estereotipada, se a
considerássemos típica, estaríamos punindo o seu conhecimento. Sob o
34 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 48.35 Nesse sentido: Victor Eduardo Rios Gonçalves. Direito Penal: Parte Geral, p. 42.36 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 51.
aspecto objetivo, não há diferença entre vender um pão sabendo que vai ser
utilizado em um crime e vendê-lo sem esse conhecimento.
Na segunda hipótese, entretanto, o padeiro deve responder pela
fuga criminosa porque confeccionou um tipo especial de produto que não
estava na praça e que só podia servir para ocultar a arma37.
A proibição de regresso há de ser admitida como uma fórmula
capaz de excluir do âmbito do Direito Penal o agir comunicativo no qual,
ainda que esteja presente um curso causal, no que diz respeito à teoria da
equivalência das condições, e um dissenso, com relevância jurídico-penal, não
apresenta um liame de exteriorização intencional com o resultado final38.
Jakobs desenvolveu fórmulas para a apreciação da imputação de
fatos ao autor mediato, concluindo que os efeitos causais mediatos devem ser
definidos com base num plano delitivo, quando se cria diretamente uma
situação onde é inevitável de fato ou de direito que se produza as
expectativas39.
O importante, dentro dos fins ambicionados pelo Direito Penal, é
que as fórmulas de imputação objetiva devem ser gerais, não implicando uma
37 Nesse sentido: Marcelo Ferrante, Una introducción a la teoria de la imputación objetiva, in Estudios sobrela teoria de la imputación objetiva, em co-autoria com Manuel Cancio Meliá e Marcelo A. Sancinetti,Buenos Aires, Ad-Hoc, 1998, p. 30, apud Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 51.38 Antonio Luís Chaves Camargo, Imputação objetiva e direito penal brasileiro, p. 154.
análise restrita, mas, ao contrário, possibilitando ao intérprete conduzir a
reprovação penal aos casos, efetivamente, reprováveis pelo instrumento da
pena, que é o controle mais rigoroso do sistema penal40.
7. PREVISIBILIDADE OBJETIVA E SUBJETIVA
39 Antonio Luís Chaves Camargo, Imputação objetiva e direito penal brasileiro, p. 15440 Ibid, mesma página.
Previsibilidade “é a possibilidade de ser antevisto o risco de um
comportamento ou o resultado dele advindo nas condições em que o sujeito
se encontrava” .41
Se uma pessoa dirige um veículo na contramão de direção,
existe a possibilidade de ser prevista a vinda de outro veículo em sentido
contrário, em sua mão de direção, e a ocorrência de um acidente com vítima.
O legislador exige que o sujeito preveja o que normalmente pode
acontecer, não que anteveja o extraordinário, assim, a previsibilidade deve ser
examinada em face das circunstâncias concretas em que o sujeito se
colocou42.
Segundo a doutrina, há dois critérios para a verificação da
previsibilidade: o objetivo e o subjetivo.
Nos termos do critério objetivo, a previsibilidade deve ser
apreciada não do ponto de vista do sujeito que realiza a conduta, mas em face
do homem comum colocado em determinada situação (perspectiva “ex
ante” )43.
Segundo o critério subjetivo, a previsibilidade deve ser
verificada tendo em vista as condições pessoais do sujeito, ou seja, se o
41 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 66.42 Ibid., mesma página.43 Ibid., mesma página.
resultado era ou não previsível de acordo com as circunstâncias antecedentes
à sua produção. Não se pergunta o que o ser humano abstrato deveria fazer
naquele momento, mas sim o que era exigível do sujeito na situação concreta.
Neste contexto, a imprevisibilidade objetiva exclui a imputação
objetiva e a imprevisibilidade subjetiva afasta a culpabilidade.
8. CONSENTIMENTO E PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA
Em alguns crimes é indispensável o dissenso, explícito ou
implícito, para a tipificação do caso concreto. Na doutrina tradicional, o
consentimento do ofendido pode atuar como causa excludente da tipicidade
ou causa supralegal excludente da antijuridicidade.
Atua como excludente da tipicidade, quando o dissenso da vítima
é uma elementar do tipo. Ex.: “Constranger mulher à conjunção carnal,
mediante violência ou grava ameaça” (art. 213, caput, do Código Penal).
A palavra “constranger” significa “obrigar”, “coagir alguém a
fazer algo contra a vontade”, portanto, o dissenso por parte da mulher é
pressuposto do crime, assim, o consentimento da vítima exclui a própria
tipicidade44.
Opera como causa supralegal excludente da antijuridicidade,
quando o dissenso do ofendido não aparece como elementar. Para a doutrina
44 Victor Eduardo Rios Gonçalves. Dos crimes contra os costumes aos crimes contra a administração,p. 02.
tradicional, se o bem for disponível e a vítima for capaz, o seu consentimento
justifica esta exclusão45.
A doutrina tradicional também admite que se o agente pensa
atuar com o consentimento, quando este não ocorre, fica caracterizado o erro
de tipo, com as conseqüências previstas no art. 20 do Código Penal Brasileiro.
Entretanto, se o agente desconhece o consentimento existente, caracteriza-se a
tentativa inidônea, ou seja, o crime impossível descrito no art. 17 do Código
Penal Brasileiro.
Na perspectiva da teoria da imputação objetiva, o consentimento
do ofendido, ganha uma maior importância com as considerações sobre a
cooperação para que a vítima se coloque em perigo e na produção de um
perigo consentido.
Tecnicamente, o induzimento, a facilitação e a participação em
condutas nas quais a própria vitima se coloque em situação de perigo não são
resolvidos pelas regras de consentimento da doutrina tradicional.
Vejamos alguns exemplos de Claudia López Dias em relação à
conduta da vítima que, com participação de terceiro, cria uma situação de
risco a seus próprios interesses jurídicos:
45 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 54.
“CASO N. 1: OVERDOSE. Um viciado entrega a seu amigo, também viciado, droga e
seringa. Ele aplica em si mesmo a substância tóxica, sofre uma overdose e morre”. 46
“CASO N. 2: MORTE NO ‘RACHA’ DE AUTOMÓVEIS OU MOTOCICLETAS. Dois
amigos embriagam-se e concordam em realizar um ‘racha’ com motocicletas (ou
automóveis), vindo um deles a morrer num acidente”. 47
Segundo a doutrina tradicional há duas soluções:
Na primeira, o viciado, o piloto e o motorista sobreviventes
respondem por homicídio culposo. Há nexo causal entre a sua conduta e a
morte da vítima e inobservância do cuidado objetivo necessário, tendo em
vista que emprestar a alguém uma seringa para que injete droga proibida em
si próprio ou participar de “racha” são condutas de participação no mínimo
imprudentes48.
Na segunda, respondem por homicídio doloso, já que ao
participar de uma situação de perigo para a vítima, fornecendo a seringa para
consumo de droga, o autor criou para si a obrigação de acompanhamento do
fato e de salvamento em caso de necessidade. Se, no instante em que o
viciado, por causa da overdose, começou a sentir-se mal, o sujeito não
procurou salvá-lo, por si ou pedindo ajuda a terceiro, como deveria, é
46 Claudia López Díaz, Introducción a la imputación objetiva, Bogotá, Centro de Investigaciones de DerechoPenal y Filosofía del Derecho, Universidad Externado de Colômbia, 1996, p. 142, apud Damásio Evangelistade Jesus, Imputação objetiva, p. 56.47 Claudia López Díaz, Introducción a la imputación objetiva, Bogotá, Centro de Investigaciones de DerechoPenal y Filosofía del Derecho, Universidad Externado de Colômbia, 1996, p. 142, apud Damásio Evangelistade Jesus, Imputação objetiva, p. 56.48 Damásio Evangelista de Jesus, op. cit., p. 57.
responsável pela morte a título de homicídio doloso (crime comissivo por
omissão). Além do nexo de causalidade objetiva, houve dolo eventual49.
A atual orientação da jurisprudência alemã, de acordo com a
imputação objetiva, entende que na hipótese da overdose, o provedor não
responde pelo resultado morte quer a título de dolo quer a título de culpa,
desde que a ingestão da droga seja ato próprio e responsável do viciado, no
entanto, permanece o eventual crime referente a tóxicos ou omissão de
socorro50.
No caso do “racha”, inexiste imputação objetiva, o motociclista
ou motorista sobrevivente não responde pelo resultado morte, mas apenas
pela “participação em competição não autorizada” (art. 308 da Lei n°
9.503/97).
Apesar de ser o entendimento dominante na Alemanha, e
também o nosso, o professor Fernando A. N. Galvão da Rocha, discorda:
“(...) contrariando o entendimento dos penalistas alemães, deve responder por homicídio
(doloso ou culposo) o motociclista que convida outro para participar com ele de corrida pelas vias públicas,
vindo a ocorrer queda e morte do convidado, ainda que por descuido deste, porque a situação de risco foi
criada e incrementada também por esse motociclista, que se torna garantidor da não-ocorrência do
resultado lesivo. A aceitação do desafio pelo motociclista que caiu não exclui a responsabilidade do outro
que o convidou para a atividade de risco não autorizada. Vale observar que não se trata de participação em
suicídio, pois mesmo que a intenção do motociclista que fez o convite fosse a de que o outro caísse e
49 Ibid., mesma página.50 Wolfgang Frish, Tipo penal e imputación objetiva, Madrid, Colex, 1995, p. 121, n.2, apud DamásioEvangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 57.
morresse, não há vontade de auto-extermínio por parte deste. Havendo o resultado morte, a
responsabilidade deve-se dar por homicídio”. 51
9. CRIMES CULPOSOS
Para a doutrina tradicional, “crime culposo é aquele resultante
da inobservância de um cuidado necessário, manifestada na conduta
produtora de um resultado objetivamente previsível, através de imprudência,
negligência ou imperícia”. 52
O crime culposo, para a imputação objetiva, depende da
consideração de um resultado realizado pela inobservância do cuidado
objetivo necessário, que corresponde à realização de uma conduta criadora de
risco juridicamente proibido53.
Desta forma, podemos dizer que para existir a imputação objetiva
nos crimes culposos, é imprescindível a criação ou aumento de um risco
juridicamente reprovado e que esse risco ou aumento do perigo converteu-se
em um resultado jurídico.
51 Fernando Galvão A. N. da Rocha, Imputação objetiva, p. 79-80.52 Victor Eduardo Rios Gonçalves. Direito Penal: Parte Geral, p. 51.53 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 122.
A importância dos critérios de imputação objetiva para os crimes
culposos pode ser evidenciada na distinção entre a causa e a determinação do
resultado.
A imputação objetiva de um resultado culposo exige que a
contribuição do agente determine o resultado e não apenas que lhe seja a
causa.
Observe o seguinte exemplo:
Uma senhora, em face de atropelamento culposo no trânsito,
sofreu fratura no membro inferior direito, sendo submetida a uma cirurgia
ortopédica reparadora, durante a qual veio a falecer devido a uma parada
cardiorrespiratória54.
Para a doutrina clássica, o autor do atropelamento culposo deve
ser considerado responsável e condenado pela morte da vítima, uma vez que a
causa superveniente, parada cardiorrespiratória, não provocou o evento, “por
si só”, como exigido pela atual legislação penal 55.
No nosso entendimento, a teoria da imputação objetiva permitiria
uma solução mais “justa”, já que o resultado morte não poderia ser
objetivamente imputável ao autor da lesão inicial culposa porque o evento
jurídico mais grave não se mostrava adequado ao risco inicial. “ Se o evento
54 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. XXIII.
jurídico foi causado por um risco diferente daquele produzido pela conduta
proibida, não pode ser atribuído a seu autor”. 56
10. CRIMES DOLOSOS
Para o atual Código Penal Brasileiro, há crime doloso quando o
agente quer o resultado (dolo direto) ou quando assume o risco de produzi-lo
(dolo eventual).
No entanto, para Claus Roxin, existem três formas de dolo: a
intenção ou propósito (dolus directus de primeiro grau), o dolo direto (dolus
directus de segundo grau) e o dolo eventual (dolus eventualis)57.
Na intenção ou propósito, verifica-se aquilo que o agente
persegue, não devendo, entretanto, representar o motivo, a finalidade última
do sujeito, mas a intenção típica, embora seja utilizada pelo agente para
subseqüentes fins ligados a sua índole. Neste contexto, os resultados
conscientemente causados e desejados são sempre intencionais, ainda que a
55 TACrimSP, 9ª Câm., ACrim 628.685, j. 10-4-1991, RJDTACrimSP,11:109.56 Damásio Evangelista de Jesus, op. cit., p. XXIII.57 Antonio Luís Chaves Camargo, Imputação objetiva e direito penal brasileiro, p. 163.
produção não seja segura ou não seja a finalidade última58. Ex.: “A”,
querendo matar “B”, saca uma arma e dá dois tiros no mesmo, ocasionando a
morte.
A segunda forma, denominada dolo direto de segundo grau,
também tem como elemento integrante a intenção, mas as conseqüências ou
circunstâncias não são específicas da intenção do agente, mesmo assim, a
produção do resultado ou sua ocorrência podem ser atribuídas ao agente, que
as ocasiona conscientemente59. Isto ocorre quando, por exemplo, “A”
querendo matar “B”, coloca uma bomba no avião em que ele vai viajar,
sabendo que quando a bomba explodir, causará a morte dos demais
passageiros.
O dolo de segundo grau representa uma intenção da realização do
tipo, ainda quando o resultado não seja agradável ao sujeito.
No dolo eventual, falta a intenção e o agente não está seguro se a
conduta produzirá uma conseqüência típica60.
58 Ibid, mesma página.59 Antonio Luís Chaves Camargo, Imputação objetiva e direito penal brasileiro, p. 163.60 Ibid., p. 68.
10.1. Dolo eventual e culpa consciente
O dolo eventual também não se confunde com culpa consciente.
No entanto, ainda não há consenso na doutrina sobre quais
elementos são relevantes para esta diferenciação.
Claus Roxin defende que caso o sujeito não realize qualquer
atividade dirigida a evitar o resultado, ou se há dúvida sobre as ações
praticadas, quanto a evitar o resultado, e mesmo assim continua sua ação,
estaremos diante de um dolo eventual. Entretanto, quando as medidas para
evitar o resultado são efetivas e ele está convencido do sucesso das mesmas,
não haverá uma ação contra o bem jurídico protegido, mas caso venha a
ocorrer o resultado, teremos a culpa consciente61.
Para Jakobs, deve ser adotado o risco como paradigma de
delimitação, assim, ocorre dolo eventual, no momento em que o autor julga
que a realização do tipo não é improvável como conseqüência desta ação.
Porém, não haverá dolo se falta o conhecimento das conseqüências que o
autor, por temeridade, pressa, indiferença ou medo, faz caso omisso do que
lhe impõe, não reparando nas conseqüências, assim, a diferenciação entre
dolo eventual e culpa consciente não é um problema de vontade, mas de
conhecimento por parte do autor62.
Esta teoria adotada por Jakobs não nos parece ser a mais
adequada tendo em vista o próprio significado da palavra “consciente”.
A palavra “consciente” é um sinônimo de “conhecimento” 63,
logo, como é possível definir culpa “consciente” como sendo aquela em que o
autor “não tem conhecimento”?
Segundo o nosso entendimento, a atual doutrina é a que melhor
define a diferença entre dolo eventual e culpa consciente.
No dolo eventual o agente prevê o resultado, mas não se importa
que ele ocorra. Para o agente que atua em dolo eventual, é indiferente que o
resultado ocorra ou não.
Na culpa consciente, o agente prevê o resultado, mas espera que
ele não ocorra. Neste caso, existe a previsão do resultado, mas ele acredita
que poderá evitá-lo com sua habilidade.
Pelo exposto, acreditamos que a teoria de Jakobs, na realidade,
serve para diferenciar o dolo eventual da culpa “inconsciente”, ou seja,
61 Antonio Luís Chaves Camargo, Imputação objetiva e direito penal brasileiro, p. 163.62 Ibid, p. 174-175.
quando o agente não prevê o resultado, que, entretanto, era objetiva e
subjetivamente previsível.
11. MOMENTO CONSUMATIVO E TENTATIVA
De acordo com a doutrina tradicional, o crime se consuma
quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal (o art. 14, I,
do Código Penal).
No entanto, para a teoria da imputação objetiva, não basta que o
fato concreto reúna todos os elementos da descrição legal. Existe a
necessidade de uma imputação objetiva, seja da conduta, nos crimes formais e
de mera conduta, ou do resultado, nos delitos materiais.
63 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Minidicionário da língua portuguesa, p. 132.
Nos temos do art. 14, II, do Código Penal, considera-se tentado o
crime quando o agente inicia a execução, mas não consegue consumá-lo por
circunstâncias alheias à sua vontade.
Diferente da teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro, na
imputação objetiva, “não se fala em imputação do resultado naturalístico,
que falta nos delitos materiais, mas em ação produtora de risco
juridicamente relevante e proibido a um bem protegido, cuja afetação não
ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente”. 64
11.1. Crime impossível e imputação objetiva
Nos termos do art. 17 do Código Penal, “não se pune a tentativa
quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do
objeto, é impossível consumar-se o crime”.
O princípio geral da imputação objetiva é a criação pela ação
humana de um risco juridicamente proibido, derivando um resultado típico.
64 Damásio Evangelista de Jesus, Imputação objetiva, p. 124.
Desta forma, no crime impossível pela ineficácia absoluta do
meio executório, embora o objeto jurídico exista, não há criação de risco,
assim, não há imputação objetiva da conduta.
No crime impossível por impropriedade absoluta do objeto
material, embora a conduta seja potencialmente lesiva, inexiste a coisa ou
pessoa a ser protegida. Em face disso, não havendo objeto material, inexiste
interesse jurídico a ser tutelado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de as primeiras idéias terem surgido há milênios, a
moderna teoria da imputação objetiva está longe de ser terminada. Ainda há
uma grande discussão doutrinária sobre o âmbito e os limites de sua
aplicação.
No entanto, é possível notar grandes avanços em relação à teoria
finalista, adotada atualmente, como o princípio do incremento do risco, o
princípio da confiança e a proibição de regresso.
Pelo princípio do incremento do risco, só é possível
responsabilizar o autor se a conduta criou ou aumentou um risco
juridicamente relevante.
A conseqüência da aplicação do princípio da confiança é a
impossibilidade de responsabilizar aquele que atua conforme o cuidado
objetivamente exigido.
Pela proibição de regresso, um comportamento anterior
considerado inócuo não pode ser considerado co-autoria ou participação em
conduta futura proibida, assim, um vendedor autorizado de armas de fogo não
responde pelos crimes com elas cometidos, uma vez que realizou uma
conduta estereotipada, normal e permitida pela ordem jurídica.
A relação de causalidade é somente a primeira exigência da
imputação objetiva que se completa com a constatação da relevância jurídica
da relação existente entre a conduta e o resultado produzido.
Através dos conceitos de previsibilidade objetiva e subjetiva
conseguimos verificar quando o sujeito tinha a possibilidade de prever o
resultado em face das circunstâncias concretas em que se colocou.
Na perspectiva da teoria da imputação objetiva, o consentimento
do ofendido ganhou uma maior importância com as considerações sobre a
cooperação para que a vítima se coloque em perigo e a produção de um perigo
consentido.
Esta nova teoria também permite uma solução mais “justa” para
os crimes culposos, já que o resultado não pode ser objetivamente imputável
ao autor quando o evento jurídico mais grave não se mostrava adequado ao
risco inicial.
Neste contexto, podemos dizer que para existir a imputação
objetiva nos crimes culposos é imprescindível a criação ou aumento de um
risco juridicamente reprovado e que esse risco ou incremento do perigo
converteu-se em um resultado jurídico.
No entanto, quanto ao dolo eventual e a culpa consciente, ainda
existe a necessidade de um maior desenvolvimento sobre esse tema pela
doutrina, pois, as soluções propostas pela imputação objetiva não
apresentaram resultado satisfatório.
Desta forma, acreditamos que a atual doutrina é a que melhor
define a diferença entre dolo eventual e culpa consciente.
Entendemos, também, que a teoria da imputação objetiva
proporciona uma melhor solução para a “tentativa”, sendo definida como uma
ação produtora de risco juridicamente relevante e proibido a um bem
protegido, cuja afetação não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do
agente.
Isto posto, defendemos a adoção da teoria da imputação objetiva
de forma complementar à teoria finalista, especialmente nos crimes culposos,
o que, sem dúvida, seria um enorme passo para que no futuro a palavra
“Direito”, seja, verdadeiramente, um sinônimo de “Justiça”.
APÊNDICE
PROCURADOR DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
APLICA A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
O Dr. Pedro Franco de Campos, Procurador de Justiça de São
Paulo, invocou, em parecer ofertado na Apelação Criminal n. 368.162, de
Sorocaba, referente a crime de guarda ilegal de arma de fogo, a teoria da
imputação objetiva. A seguir, transcrição de parte do parecer:
“Apel ação Criminal n. 368.162-3/4 Sorocaba.
Apelante: AFM.
Apelada: Justiça Pública.
Colenda Câmara.
AFM foi processada, perante o Juízo da 1.ª Vara Criminal da
Comarca de Sorocaba, por infração ao art. 12 da Lei n. 6.368/76, porque
trazia consigo, para fins de tráfico, considerável quantidade de cocaína,
devidamente acondicionada em 32 (trinta e duas) pedras de crack, e ao art. 10,
caput, da Lei n. 9.437/97, porque guardava, em sua casa, sem a devida
autorização legal, uma arma de fogo do tipo ‘garrucha’.
Depois de regular instrução criminal, veio a sentença de fls.
103/107, que a condenou a cumprir, pelo crime de tráfico, no regime fechado,
pena de 3 (três) anos de reclusão e ao pagamento de 50 (cinqüenta) dias-multa
e, pelo porte ilegal de arma, no regime aberto, pena de 1 (um) ano de detenção
e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa.
Inconformada, interpõe, de próprio punho (fls. 126) e por
intermédio de sua defesa (fls. 116), recurso de apelação, com razões às fls.
140/177, onde pede a reforma do decidido por ausência de provas a respeito
do tráfico e por ser obsoleta a arma apreendida em sua casa. De forma
alternativa, pondera a respeito da possibilidade de ser desclassificada sua
conduta de traficante para a de portadora de drogas para uso próprio.
A Promotoria de Justiça apresentou contra-razões às fls. 179/182,
onde pugna pelo não-provimento do recurso.
Este o relatório necessário do que consta nos autos do processo.
Entendo que recurso merece provimento parcial, para que a ré
seja absolvida da imputação relativa ao porte ilegal de arma de fogo. No mais,
a decisão não comporta alteração.
(...)
Por fim, como já foi dito, penso que não tem consistência a
acusação relativa ao porte ilegal de arma.
A ‘garrucha’ foi apreendida sem nenhuma munição e estava
guardada dentro da casa da ré.
Em primeiro lugar, o fato de estar descarregada, mesmo tendo
potencial ofensivo (laudo de fls. 54/55), já descaracteriza o delito. Assim,
como ensina o Prof. Fernando Capez, verifica-se a atipicidade da conduta do
réu pela ‘inexistência de objeto material, se considerarmos que, nessas
condições (descarregada ou desmontada), não existe engenho mecânico capaz
de lançar projéteis e, por conseguinte, arma de fogo’ (Arma de fogo, Ed.
Saraiva, 1997, pág. 29). (...)
Em segundo lugar, como ensina o sempre lembrado Damásio de
Jesus, sob a ótica da teoria da imputação objetiva e da ofensividade, a conduta
daquele que guarda, em casa, arma de fogo sem registro não configura crime
algum. Na verdade, conclui o festejado Professor: ‘O âmbito de proteção da
norma de conduta só é invadido quando o comportamento cria um risco,
relevante e juridicamente proibido, ao objeto jurídico. Na espécie – guardar
arma de fogo em casa sem registro – o fato é ineficaz de ofender a
incolumidade pública, tendo em vista que não causa nenhum perigo efetivo ou
potencial à segurança coletiva. É, pois, atípico’ ( Phoenix, dezembro de 2001,
n. 41, órgão informativo do Complexo Jurídico Damásio de Jesus).
Em face do que ficou exposto, o parecer é no sentido de ser dado
provimento parcial ao reclamo da ré, para que seja absolvida da imputação
relativa ao crime previsto no art. 10 da Lei n. 9.437/97, mantendo-se, no mais,
a fundamentada decisão de primeiro grau.
Pedro Franco de Campos
Procurador de Justiça.” 65
TRIBUNAL DE ALÇADA DE MINAS GERAIS APLICA
A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA A CRIME
CULPOSO
Apelação Criminal n. 356.212, Belo Horizonte
2.ª Câmara Criminal
Apelante: Ministério Público
Apelados: H.H.B. e H.P.A.H.
Data do julgado: 14 de maio de 2002
65 Procurador de Justiça de São Paulo aplica a teoria da imputação objetiva. São Paulo: Complexo JurídicoDamásio de Jesus, abr. 2003. Disponível em: http://www.damasio.com.br/novo/html/artigos/art_146.htm.
Relator: Juiz Antônio Armando dos Santos
2.º Vogal: Juiz Alexandre Victor de Carvalho
Unânime.
Excertos do acórdão.
“VOTOS – O Exmo. Sr. Juiz Antônio Armando dos Anjos:
Quanto aos fatos, narra a denúncia de f. 2-6 que os réus agiram de forma
negligente ao administrar a unidade industrial da M., situada no Barreiro,
local em que foram vítimas os menores D.S.V., M.J.F. L., e C.R.S.,
lesionados por queimaduras de 2.º e 3.º graus, sendo que o último, não
resistindo aos ferimentos, veio a falecer. Segundo a inicial acusatória, aos
26.7.1996, D.S.V., de dez anos, adentrou o terreno da empresa dos réus,
objetivando resgatar uma ‘pipa’, o mesmo ocorrendo com os menores
M.J.F.L. e C.R.S. em data de 31.7.1996. Não obstante o terreno ser de grande
perigo, já que formado por rescaldo (moinha) de carvão incandescente –
derivado do processamento de ferro gusa – o local não era devidamente
sinalizado ou vigiado, possibilitando a entrada de estranhos na empresa, como
ocorreu com os menores.
Adentrando o terreno, as vítimas menores se depararam com uma
camada de significativa espessura sobre o solo, mas em combustão
espontânea em seu interior, que foi a causa eficiente para as queimaduras
experimentadas.
(...)
Em suma, é o relatório.
(...)
O Exmo. Sr. Juiz Antônio Armando dos Anjos:
NO MÉRITO
(...)
A partir dos elementos fáticos destacados pelo Parquet, postos à
análise segundo um ponto de vista meramente lógico-formal das categorias
dogmáticas do Direito Penal, poder-se-ia sustentar a tese condenatória
pretendida. Todavia, o conjunto de elementos fáticos apurados, aliado a uma
visão problemática – e não sistemática – das categorias penais, conduz a
manutenção da decisão vergastada.
É de sabença comezinha que o crime culposo sempre ocupou
posição secundária na Teoria do Crime, restando, assim, nas palavras de
Fábio Roberto D’Ávila, ‘à margem da dogmática jurídico-penal’ . Entretanto,
a evolução das relações sociais, conduzidas pelo próprio avanço tecnológico
do homem, culminou no aumento de situações de perigo, reflexo de uma
sociedade mecanizada e em constante transformação. Neste contexto, a atual
visão do crime culposo, fruto da Teoria Finalista da Ação – mostra-se
inapropriada a reger inúmeras relações jurídicas do mundo cotidiano, pois
estando presa a um conceito puramente lógico, acaba por relegar a um
segundo plano o ideal de Justiça, fim último da Ciência Jurídica. Com efeito,
o estudo das teorias do crime anteriormente elaboradas (causalismo,
neokantismo, finalismo) apenas se preocuparam com a construção de um
sistema jurídico-penal lógico (fechado), de modo a fornecer aos operadores
do Direito um instrumento para aplicação da lei penal. Ora, na Teoria Causal
de Ação, a tipicidade era formal. Assim, a mera subsunção do fato praticado
ao modelo legal de crime implicaria na tipicidade da conduta, sem se avaliar
nenhum outro elemento. Isto porque, enquanto fruto de um Positivismo
Científico (ou empírico), o Causalismo tinha por finalidade garantir o máximo
de segurança jurídica, mediante a objetividade e o formalismo nos conceitos
das categorias dogmáticas do crime. Entretanto, esta visão estritamente formal
deixava de explicar satisfatoriamente inúmeras situações práticas,
conduzindo, em muitos casos – principalmente naqueles desprovidos de
previsibilidade do sinistro – a decisões injustas.
No atual sistema – Finalista – o rigor formal foi amenizado sem,
contudo, implicar em significativas mudanças. Isto porque a tipicidade exigia,
além da subsunção formal, a falta de adequação social da conduta praticada,
sendo este critério avaliado a partir do consenso comum do que seria certo –
ou errado – em um comportamento.
Reflexo desta visão lógico-formal das categorias penais consistiu
na adoção pelas legislações penais da chamada Teoria da Equivalência dos
Antecedentes Causais, ou teoria da conditio sine qua non, desenvolvida por
Julius Glaser, visando solucionar o processo de imputação nos crimes
materiais. Segundo esta teoria, o resultado lesivo só é imputado a quem lhe
deu causa, considerando-se esta toda ação ou omissão sem a qual o evento
final não teria ocorrido. Logo, a mera relação de causalidade naturalística
entre o fato e o resultado mostrar-se-ia suficiente ao processo de imputação e
conseqüente responsabilização penal.
Atualmente, vem tomando grande relevância na comunidade
jurídica os estudos desenvolvidos pelo penalista alemão Claus Roxin, em que
procurou dar às categorias do Direito Penal uma nova dimensão, sempre
preocupada com os ideais de justiça. Para tal, reestruturou a concepção
lógico-formal das categorias do Direito Penal tratadas nas anteriores teorias
do crime, que, repita-se, apenas se preocupavam no regular e bom
funcionamento do sistema penal, de modo que ele se desenvolvesse de forma
lógica, ainda que as soluções não fossem justas. Entende Roxin que, se a
justiça é o fim último do Direito, não há como prevalecer um raciocínio
meramente sistemático defendido pelos sistemas penais pretéritos. Ao
contrário, far-se-á justiça através de um raciocínio problemático – de análise
caso a caso das situações postas à apreciação dos operadores do Direito. Para
redefinir as categorias dogmáticas do Direito Penal (ação, tipicidade, ilicitude,
culpabilidade), valeu-se de elementos valorativos de Política Criminal como
critério reitor para a solução dos problemas vislumbrados. Neste norte, a
reestruturação do elemento tipicidade merece destaque, pois nela houve
considerável mudança na verificação do nexo de causalidade, sendo ali re-
introduzido o conceito de imputação. Assim, a chamada Teoria da Imputação
Objetiva fez superar o dogma causal, ao exigir para o tipo objetivo, além da
conexão naturalística ação-resultado (causalidade natural), a necessidade que
esta conexão, segundo valores de política criminal, sejam imputados ao autor
como obra jurídica sua (casualidade típica). Esta modificação introduzida no
âmbito da causalidade ajudou a acabar com o subjetivismo extremado do
finalismo, que dava muita ênfase ao tipo subjetivo (dolo/culpa), através de
uma maior valoração do tipo objetivo, notadamente incidente sobre o nexo de
causalidade. Vê-se, pois, que o nexo de causalidade físico não mais
implicaria, por si só, em nexo de causalidade jurídico.
Verificada a insuficiência, ou imperfeição, da causalidade natural
como determinante da imputação, passou-se a analisar o tipo objetivo à luz de
critérios teleológicos-normativos, complementares do tipo, e restritivos da
causalidade. Trabalhou-se o conceito de causa dado pela Teoria da Relevância
Típica (elaborada por Edmund Mezger), em que causa era concebida como ‘o
evento em que o nexo causal era relevante para o tipo’ .
Restou à Teoria da Imputação Objetiva, pois, definir quando o
nexo causal seria relevante para o tipo. Concluiu-se que a relevância surgiria
da análise do nexo de causalidade a partir de critérios valorativos
(normativos) do ordenamento jurídico. Este, por sua vez, foi definido pelo
Princípio do Incremento do Risco, aferido da ponderação entre os bens
jurídicos e os interesses individuais, a partir da análise do risco que o
segundo poderia causar ao primeiro.
Em síntese: para se falar em nexo de causalidade é necessário
que, após a verificação da causalidade física, seja constatado que o agente
criou um perigo relevante fora do âmbito do risco permitido.
A imputação objetiva, embora não prevista na codificação pátria,
não tem sua aplicação vedada pelo ordenamento. Emerge como objeto de
estudo em diversos países, sendo efetivamente aplicado. No Brasil, conta com
crescente adesão dos estudiosos do Direito Penal, sendo que várias decisões
dos Tribunais pátrios já se valeram de seus fundamentos, inclusive esta 2.ª
Câmara Criminal.
Extrai-se, pois, a finalidade da imputação objetiva: analisar o
sentido social de um comportamento, precisando se este se encontra, ou não,
socialmente proibido e se tal proibição se mostra relevante para o Direito
Penal. Portanto, para se ter a imputação objetiva será necessário, além da
causalidade natural, a verificação da criação de um risco jurídico penalmente
relevante, imputável no resultado e alcançado pelo fim de proteção do tipo
penal. Criou-se, então, diversos critérios valorativos de natureza negativa que,
uma vez verificados, excluiriam a imputação objetiva frente a não valoração
da conduta como juridicamente relevante para o resultado, culminando na
irrelevância jurídica do nexo causal para o tipo.
In casu, há a exclusão da imputação não só pela permissão do
ordenamento jurídico ao risco criado, como também pelo fato de o resultado
produzido não estar amparado pelo fim de proteção da norma de cuidado. Por
fim, rompe-se o nexo de causalidade pelo consentimento das vítimas em sua
autocolocação na situação de perigo.
DA INEXISTÊNCIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELA PERMISSÃO
DO ORDENAMENTO AO RISCO CRIADO
A questão dos autos cinge-se à aferição da responsabilidade dos
réus H.H.B. e H.P.A.H. pelas lesões causadas em D. e pelo óbito de C., pois
mantendo postura omissa e negligente, não realizando o efetivo
acondicionamento de material nocivo (moinha de carvão), tampouco o correto
isolamento da área industrial – mediante vigilância, sinalização e cercamento
do local – permitiram a entrada das vítimas em suas dependências e a
ocorrência dos sinistros. Em que pese a postura dos réus – não
acondicionamento do material nocivo – ter incrementado o risco para a
produção dos resultados lesivos, verifica-se que as medidas adotadas para a
destinação daquele material (moinha de carvão) encontrava-se em
consonância com as regras administrativas, contando mesmo com a tolerância
dos órgãos públicos quanto à solução traçada. É de se destacar que os
lamentáveis acidentes apurados nestes autos ocorreram dentro dos prazos
consignados no Termo de Compromisso para a acomodação dos indigitados
resíduos sólidos, revelando que a empresa dos réus comportava-se dentro dos
parâmetros estabelecidos pelos órgãos ambientais (itens 3.3 e 3.5, do quadro
de f. 144).
Do exposto, vê-se que a postura da empresa dos réus estava
amoldada às determinações dos órgãos competentes, que fiscalizando
constantemente suas atividades, entendia possível não só a prorrogação de
prazos para a destinação dos resíduos sólidos – em limites por ela
estabelecidos – como também a continuidade das atividades industriais,
mediante permissão provisória. Logo, embora se sustente que a postura da
empresa tenha gerado um incremento no risco para o resultado materializado
nos menores, certo é que as medidas então adotadas encontravam-se em
perfeita consonância como as determinações administrativas competentes.
Desta forma, surge o conflito, pois embora subsista a causalidade natural do
evento, tem-se por prejudicada sua causalidade típica, pois não há como
desvalorar uma conduta que se encontra em harmonia com as regras do
sistema jurídico.
DA INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELO FATO DE O
RESULTADO PRODUZIDO NÃO ESTAR AMPARADO PELO FIM DE
PROTEÇÃO DA NORMA DE CUIDADO
O dever objetivo de cuidado exigido dos réus consistia na correta
destinação ou armazenamento de resíduos sólidos derivados da produção de
ferro gusa (moinha de carvão), até porque a inobservância deste dever
permitiu a realização dos trágicos resultados apurados nas vítimas. Contudo,
muito embora se tenha demonstrado que este dever objetivo fora cumprido de
forma adequada e tolerável pelos órgãos competentes, vê-se que o destinatário
do cuidado objetivo não eram as vítimas menores, mas sim a qualidade do
meio ambiente como um todo. Pedindo vênia aos que entendem em contrário,
tenho que a orientação traçada pelas normas administrativas destinavam-se ao
resguardo do meio ambiente contra possíveis danos a serem causados à
coletividade, v.g., a poluição do lençol freático da região. Logo, se o resultado
fatídico apurado não se encontrava no fim imediato de proteção da norma de
cuidado, impossível se mostra à imputação, sob pena de se resgatar o temível
versari in re ilicita.
DA INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO OBJETIVA PELA
AUTOCOLOCAÇÃO DA VÍTIMA NA SITUAÇÃO DE PERIGO
Por fim, tenho que a imputação do resultado se mostra
prejudicada, pois patente no caso em tela que as tenras vítimas se
autocolocaram na situação de risco. Objetivando resgatar uma ‘pipa’, os
menores adentraram as instalações da empresa dos apelados, vindo a sofrer as
graves lesões (queimaduras e morte, respectivamente) em razão da existência
de moinha de carvão no terreno da empresa. Ora, o comportamento das
vítimas é que determinou a ocorrência do resultado lesivo, e não a suposta
conduta omissiva dos apelados, não havendo que se falar em criação de risco
por parte destes. Como verificado nas provas amealhadas, a empresa possui
um muro divisório de quase três (3) metros de altura, dotado de arame-
farpado em sua parte superior. Esta construção possui cerca de 1,5 Km de
extensão, objetivando isolar a área da empresa da entrada de estranhos.
Paralelamente à existência deste muro, o local possui placas de advertência,
alertando com dizeres de ‘Perigo’ e ‘Proibida a entrada de estranhos’,
contando com vigilância periódica de empresa terceirizada.
Neste ponto, oportunas se fazem em algumas considerações
acerca do denominado ‘Princípio da Confiança’. Os apelados agiram segundo
seu dever, procurando o isolamento da área do parque industrial, confiando
que as medidas adotadas fossem suficientes a afastar os estranhos dos limites
da empresa. Por sua vez, os menores infringiram o dever de respeitar a
propriedade privada, embora advertidos não só pela existência das barreiras
físicas (muros) e visuais (placas), como também pelas advertências verbais
feitas pelos seus genitores, conforme apurado à f. 468.
Por todo o exposto, e diante das inúmeras peculiaridades do caso
colocado à apreciação, entendo que a pretendida responsabilização dos
apelados, com base em uma causalidade meramente naturalística, não espelha
o ideal de Justiça perseguido pela sociedade e pelo Direito Penal.
Fiel a essas considerações e a tudo mais que dos autos consta,
julgo parcialmente procedente o presente apelo tão-somente para, acolhendo a
preliminar eriçada pelo Parquet, nos termos do art. 107, IV, do CP, declarar
extinta a punibilidade dos réus H.H.B. e H.P.A.H. pelo crime de lesões
corporais culposas, em tese, perpetrados contra a vítima M., por ausência de
condição específica de procedibilidade da ação penal. Entretanto, entendendo
que os lamentáveis acidentes somente ocorreram face dos comportamentos
imprudentes das vítimas, no mérito mantenho incólume a r. sentença
absolutória por seus próprios e jurídicos fundamentos. É como voto.” 66
66 Tribunal de Alçada de Minas Gerais aplica a teoria da imputação objetiva a crime culposo. São Paulo:Complexo Jurídico Damásio de Jesus, abr. 2003. Disponível em:http://www.damasio.com.br/novo/html/artigos/art_147.htm.
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