“fazer dos mortos gente de hoje”
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Carlos Jaca 1
“Fazer dos Mortos Gente de Hoje”
Antero de Quental na 1ª Pessoa...
por Carlos Jaca
DIÁRIO DO MINHO 28/01/04, 04/02/04 e 11/02/04
“...Legou à tradição, em alguns versos imortais, um exemplo de
vida sincera e o desengano da sua morte. Tanto basta para que ele se
nos imponha como sugestivo tema de estudo...”.
Prof. Lúcio Craveiro da Silva, in “Brotéria”, vol. 24, 1937.
Antero de Quental é, incontestavelmente, uma das maiores
figuras da nossa cultura. A par do poeta notável que foi, criador dos mais
belos sonetos da poesia portuguesa, Antero revelou-se um pensador
emérito e, essencialmente, uma consciência de rara lucidez perante os
problemas do seu tempo. Foi ele um dos grandes impulsionadores das
célebres Conferências do Casino e um dos nomes mais destacados da
brilhante Geração de 1870. Evidenciou na primeira fase da sua vida
qualidades de vigoroso polemista, através de vários manifestos, entre
eles a famosa carta “Bom Senso e Bom Gosto” dirigida a António
Feliciano de Castilho, em que reage contra o compadrio literário e a
estagnação da poesia ultra-romântica. Os últimos anos de Antero foram
repassados de amargor e sofrimento moral, que culminaram com o trágico
desenlace de 1891.
Sugeriu o meu querido amigo Alberto Sampaio, e ele já o fizera
há tempos, que me dispusesse a “falar” ao “Suplemento Cultural” do
“Diário do Minho”, a fim de divulgar algumas informações de carácter
biográfico e bibliográfico. Irrecusável!
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Assim, não deixará de ser também uma boa oportunidade para
expor pontos e situações que gostaria de ver melhor esclarecidos.
Embora, por motivos óbvios, não vá proceder a uma análise à minha
obra literária, seria impossível não ser objecto de algumas referências.
Para esta retrospectiva, além da minha memória recorri,
frequentemente, como é bom de ver, à “Carta Autobiográfica” que
acompanhou a edição alemã dos “Sonetos Completos”, dirigida ao
tradutor e lusófilo Prof. Wilhelm Stock, e que foi publicada pela
primeira vez em língua portuguesa no ”Diário dos Açores”, em 20 de
Novembro de 1887; ao “Antero de Quental – In Memoriam”,
publicação de 1896, que pretendia honrar
a minha memória com o testemunho de
variadíssimas individualidades, entre as
quais recordo: Alberto Sampaio, Oliveira
Martins, Eça de Queirós, Jaime Batalha
Reis, Guerra Junqueiro, os irmãos e meus
conterrâneos Faria e Maia, Salomão
Sáraga, Manuel de Arriaga, João de Deus,
Luís de Magalhães Lima, Sousa Martins,
Filomeno da Câmara, Carolina Michaelis,
Joaquim de Vasconcelos e outros; recordo
ainda que no Suplemento de Cultura do
“Diário do Minho”, de 10 de Setembro de 2003, o Alberto Sampaio
evocou aspectos muito significativos da minha vida, bem como alguns
estudiosos que, depois da minha morte, se interessaram por tudo
quanto me dizia respeito, nomeadamente, aqueles que poderei chamar
“anterianos”; recorri também a volumes de “Cartas”, salientando
neste caso as 29, entre muitas, dirigidas a Oliveira Martins e
publicadas em 1996 pelo Professor Lúcio Craveiro da Silva e sob o
título “Novas Cartas Inéditas de Antero de Quental”.
Independentemente do seu conteúdo seria interessante contar-vos, o
que aqui e agora não é possível, a trajectória, peripécias, desse conjunto
de “Cartas” desde que saiu das mãos de D. Vitória de Mascarenhas
Barbosa, esposa de Oliveira Martins, até ao seu actual paradeiro, o
Antero de Quental, por Columbano
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“Arquivo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus”. Remeto,
os eventuais interessados, para a referida obra.
Nascimento. Infância e Adolescência.
Conforme reza o “Livro de Baptizados”, n.º 35, a folhas 62, nasci
no dia 18 do mês de Abril de 1842 em Ponta Delgada, Ilha de S.
Miguel, e fui baptizado em 2 de Maio do mesmo ano na Matriz de S.
Sebastião pelo padre da referida freguesia António Francisco de
Rezende, sendo meus pais, Fernando de Quental, açoreano, e Ana
Guilhermina da Maia, natural de Setúbal.
Eu era o quarto de uma prole de sete filhos, dos quais vingariam
apenas cinco. Todos nascidos em Ponta Delgada, excepto o mais velho,
André, natural de Tomar. Este meu irmão veio a falecer de loucura, aos
52 anos, depois de um longo internamento no Hospital de Rilhafoles,
hoje Miguel Bombarda. Das minhas três irmãs, Maria Ermelinda,
Matilde e Ana Guilhermina, esta foi a única que mostrou interesse por
assuntos literários. Já depois da minha morte, veio a publicar na
imprensa de Lisboa e do Porto traduções do escritor Richard Garnett,
que foram reproduzidas na Revista “Nova Alvorada”, em Dezembro de
1896 e de Maio de 1897.
Filhos de aristocratas dos Açores, descendíamos de uma das mais
antigas famílias dos seus colonizadores, família de donatários,
nobilitada pela múltipla herança de místicos e poetas, professores
universitários, magistrados e militares.
Meu avô, André da Ponte Quental e Câmara, militar e poeta,
amigo de Bocage e seu companheiro na perigosa boémia de heterodoxas
audácias, foi signatário da Constituição de 1822 como deputado por
S. Miguel.
Meu pai, Fernando de Quental, foi um dos 7500 “bravos” que
vieram desembarcar no Mindelo (Julho de 1832) durante as
campanhas liberais, Levado pelos ideais revolucionários, mandou certo
dia picar a pedra de armas da sua casa, “ajudando com as próprias
mãos”.
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Foram também meus antepassados, o Padre Simão de Novais,
fundador na Ilha Terceira do Convento da Praia e o Venerável
Bartolomeu do Quental (1626-1698), fundador da Congregação do
Oratório e autor de vários Sermões e Meditações. Um retrato deste meu
antepassado foi casualmente encontrado por Camilo Castelo Branco
que mo ofereceu. Diz o Eça (“Antero – In Memoriam”) que esse retrato
podia passar pelo meu próprio entre as pessoas que mais me
conheciam, tão assombrosa era a parecença: as mesmas linhas do
rosto, a mesma carnação e cor dos cabelos, o mesmo olhar de quem não
vê as coisas triviais.
De uns e de outros me viria a alternância, ou conflito, entre as
místicas tendências de contemplativo e os impulsos ardentes de
doutrinador da cultura e apóstolo de reformas político-sociais.
Não existem muitos elementos para uma reconstituição de toda a
minha vida no período da infância, todavia retive na memória alguns
episódios de grande interesse e, também, familiares e amigos meus
poderão relembrar aspectos, situações, acontecimentos, relativos a esse
período.
Passei toda a infância no convívio estreito de minha mãe, que
carinhosamente me insuflava o ardor místico de que era possuidora. O
mar, o vento que me fustigava a pele macia e os fenómenos vulcânicos
que frequentemente me era dado presenciar, estarrecido, mais
contribuíam para me fazer meditar na omnipotência e no mistério de
Deus; e, ao mesmo tempo, a minha sensibilidade impressionava-se
profundamente, e tanto que numa ocasião, apenas tinha quatro anos,
fora encontrado no vão de uma porta a rezar, depois de um pequeno
tremor de terra.
De facto, fui orientado no sentido de uma educação católica e
tradicional. Outra não podia ter recebido de minha mãe. Todos os que
dela falam aludem aos seus sentimentos religiosos muito profundos,
submetendo os filhos à disciplina católica.
Teria os meus dez anos, quando pela primeira vez ouvi recitar a
ode “Deus” de Alexandre Herculano, a um padre que me ensinava
rudimentos de gramática latina. Não ouso dizer que tivesse entendido.
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E, entretanto, profunda foi a impressão que recebi, como a revelação
de um mundo novo e superior, a revelação do ideal religioso.
Escapava-me o sentido de muitos conceitos, a significação de muitas
palavras: mas pelo tom geral de sublimidade, pela tensão constante de
sentimento grande e simples, aqueles versos revolviam-me, traziam-me
as lágrimas aos olhos, como se me introduzissem, embalado numa onda
de poderosa harmonia, na região das coisas transcendentes. Daí por
diante, interrompia muitas vezes a repetição dos casos gramaticais para
pedir ao meu paciente mentor nova recitação daqueles versos. A minha
nascente intuição do ideal religioso achava uma expressão reveladora
na poesia grave e penetrante daquele hino sacro.
Não foi só para a poesia que a minha alma se abriu nesse
momento. É mais natural que se haja aberto para o próprio sentimento
religioso. Educado por uma mãe extremamente católica, adentro de
uma família em extremo zelosa das prerrogativas tradicionais, eu não
mais fizera até aí que aceitar a disciplina de um credo que se me
impunha mais como hábito do que como identificação com os mistérios
teológicos. É significativa a impressão que me causa a ode de
Herculano, não por ser poesia, mas por ser poesia impregnada de um
profundo sentimento da transcendência das coisas religiosas. E o
certo é que foi depois disso, e ainda sob a influência dessa ode, que eu
escrevi as minhas primeiras composições poéticas, umas quadras de
amor, de sabor popular, durante uma “alegre festa campesina”.
Por meados do século XIX era a nobre cidade de Ponta Delgada
precioso espécime das antigas povoações mais bisonhas do nosso
Reino. Apartada do Continente por duzentas e cinquenta léguas de
Oceano, espreguiçava-se à sombra das suas laranjeiras e ao
murmurinho do mar. Tinha esquecido o tempo e nada lho recordava.
A verdadeira e principal causa da apatia da cidade era a política…
O que essa ignóbil velha do soalheiro ali tinha conseguido era indizível.
Era um horror. “Setembristas” e “Cartistas”! Desunidas as famílias,
malquistados os antigos amigos, morta a convivência! Havia muitos que
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se retraíam e para quem a abstenção era costume; mas esse mesmo
retraimento aumentava o silêncio.
Esta apatia cessa em 1848-50, durante a minha infância, com os
fortes impulsos dados por António Feliciano de Castilho à vida de S.
Miguel, despertando em todas as classes um largo interesse pelas
letras, organizando sociedades literárias e de instrução, em volta da
qual se juntaram todos os melhores valores intelectuais da Ilha,
esquecidas as paixões políticas que os separavam.
Efectivamente, em 1847, Feliciano de Castilho, nesse tempo
considerado o valor máximo da poesia nacional e também dedicado a
questões de ensino, tinha-se acolhido, por motivos políticos, a S.
Miguel, onde se relacionou com muitas das principais famílias daqui,
sendo igualmente muito bem recebido pelos Quentais, de quem era um
grande amigo familiar.
Publicaram-se então muitos jornais e revistas literárias, com
poesias, romances, contos, etc., da mocidade da época.
Logo na infância, vivi sob o influxo deste movimento de interesse
literário criado por Castilho em S. Miguel e tanto mais fortemente o
devo ter sofrido quanto, morando em frente do poeta e sendo grande
amigo do filho, em casa dele vivia na maior intimidade.
Na mesma época assisti ainda a um grande movimento a favor da
instrução popular, dirigido por Castilho, que nesse sentido organizou
uma cruzada em que tomou parte toda a sociedade micaelense. Iniciado
com a fundação da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes, esse
movimento de que meu tio, Filipe de Quental, foi um dos maiores
propagandistas, provocou uma verdadeira revolução em S. Miguel.
Hoje não tenho dúvida em afirmar, ter sido deste meio social
micaelense que ressaltaram as três influências mais fortes que
marcaram para sempre a minha vida: o culto das Letras,
especialmente da poesia, no ambiente criado por Castilho; a paixão
política, muito viva em toda a sociedade micaelense; e o interesse pelas
classes populares, primeira semente da ideologia socialista que logo
na mocidade inspiraria muitos dos meus escritos.
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Dos cinco aos oito anos vivi em casa de Castilho e com o filho
Júlio, mais ou menos da minha idade; igualmente íntimas foram as
minhas relações, no período da infância, com Caetano de Andrade
Albuquerque e Mariano Machado de Faria e Maia, com os irmãos
Vicente, Francisco e João Machado de Faria e Maia, com José Bensaúde
e Augusto Bicudo Correia, com meus primos Sebastião de Arruda da
Costa e Augusto Arruda Quental.
Frequentei, também, uma escola particular, o Liceu Açoreano,
que Pedro Alcântara Leite, de Lisboa, estabeleceu em Ponta Delgada.
Ainda antes dos oito frequentei a aula de inglês de Mr. Rendall,
onde tive por condiscípulos o meu irmão André, Júlio de Castilho e os
Faria e Maia, depois meus companheiros de Coimbra.
No período em que residi na Ilha recebi as primeiras luzes de
latim, assistindo ao curso desta língua, segundo o sistema de Lemare,
que nessa época o poeta regia para os filhos.
Ali não se manuseavam somente os livros da Antiga Roma;
vinham trazidos, a propósito de qualquer coisa, muitos outros
conhecimentos curiosos, de literatura latina, de literatura portuguesa e
outras. Tudo servia de pretexto e ponto de partida.
Muito cedo abandonei a Ilha: tinha apenas dez anos, quando na
companhia de minha mãe, parti de S. Miguel para Lisboa, a frequentar
o Colégio do Pórtico, à Lapa.
Só durante o ano lectivo de 1852-53 frequentei o Colégio do
Pórtico, que foi encerrado em Abril de 1853.Durante os meses passados
no Colégio voltei a viver num ambiente em que predominavam
interesses literários, pois em casa de Castilho, “Pontifex Maximus”
das letras pátrias, realizavam-se saraus em que participavam oradores,
poetas e músicos da roda ultra-romântica.
Esta breve passagem contribuiu, no entanto, para reforçar as
minhas inclinações literárias.
De regresso a Ponta Delgada, em Junho de 1853, continuei os
meus estudos e no liceu desta cidade, a 7 de Julho de 1855, fiz o exame
de instrução primária.
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A 20 de Outubro desse mesmo ano embarcava para Lisboa, onde
fiquei a estudar no Colégio Escola Académica e só no ano seguinte,
depois de Fevereiro, segui para Coimbra.
Aqui frequentei durante dois anos, como aluno interno, o Colégio
de S.Bento dirigido pelo Padre António Xavier Pinto Homem,
completando os estudos liceais e escrevendo os primeiros versos, hoje
incorporados nos “Raios de Extinta Luz”. É datada de 1857 a minha
primeira composição em prosa, “A Pátria – Fragmento de um livro”.
Antes de terminar este ciclo da minha vida, não podia deixar de
referir e tentar esclarecer uma grave calúnia da responsabilidade, ou
irresponsabilidade, do seu autor.
Teófilo Braga diz que durante o meu período de internato no
Colégio de S. Bento, eu teria contraído o primeiro abalo nervoso, que
viria a tomar a intensidade de uma nevrose que me teria perturbado
toda a minha vida. E mais: acrescenta, ainda, que fechado no Colégio
durante as férias escolares com outros alunos de províncias distantes,
me entregava deploravelmente à perversão sexual.
Reparem! Só Teófilo Braga aludia a este abalo nervoso e a esta
perversão; nenhum dos meus outros contemporâneos lhes fez a mais
leve referência.
A notícia do abalo nervoso nesta época
não merece confiança, porque em outra
passagem do mesmo ensaio diz que “a
primeira crise de Antero se manifestou
em 1864, ao terminar a sua vida de
estudante”.
Quanto às perversões sexuais, a
afirmação deve ser considerada
gratuita e até mesmo de má fé. Num
assunto desta natureza, qualquer crédito
que devesse merecer, teria de
fundamentar-se numa convivência muito
íntima entre nós – convivência que nunca existiu. Durante os anos que
passei no Colégio de S. Bento (1856-1858), Teófilo vivia em S. Miguel,
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donde só em Março de 1861, partiu para Coimbra. Nada, por isso, pode
ter observado dos hábitos da minha vida naquela época.
Também não tem sentido a informação sobre o internato no
Colégio durante as férias escolares. Eu tinha em Coimbra o meu tio,
padrinho e grande amigo Filipe de Quental, e com ele passava fora do
Colégio os períodos de férias, em sua casa ou na Figueira da Foz.
Em 1872 dá-se na minha vida um facto doloroso: o rompimento
com Teófilo Braga. Não que entre nós tivesse havido uma identificação
profunda e uma grande amizade. Naturais da mesma terra, do nosso
encontro em Coimbra resultou um entendimento superficial.
Acontece que, em Maio de 1872, publiquei em folhetim do
“Primeiro de Janeiro” o meu mais importante texto de crítica histórico-
literária, “Considerações sobre a Filosofia da História Literária
Portuguesa”. Daí resulta o corte de relações com Teófilo Braga e uma
grande polémica que tornaria de então para o futuro, impossível
qualquer aproximação e que correspondia a um contraste
temperamental, social e doutrinário.
São bem conhecidas as insídias do autor das “Modernas Ideias”
em relação à minha pessoa.
Sobre esta polémica, julgo que deixei os elementos suficientes
para que cada qual formule o seu juízo.
“Na encantada e quase fantástica Coimbra”
Aos dezasseis anos deixei o Colégio de S. Bento, nos Arcos do
Jardim, e cruzei pela primeira vez a Porta Férrea (sem cadeados, nem
correntes) em 28 de Setembro de 1858 a fim de requerer a matrícula
no 1º ano de Direito.
Muito naturalmente, fui residir para a casa de meu tio Filipe que
concluía então o seu curso de Medicina e não tardaria a reger a cadeira.
De princípio instalei-me na Rua das Covas e em seguida no Largo da Sé
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Velha. Mais tarde, e já há tempos foi referido, pela amizade que nos
unia – éramos como irmãos – passei a residir em casa dos Sampaios, do
Zé e do Alberto, na Rua da Trindade.
Nos primeiros tempos só a minha figura de homem alto e magro,
de barba crespa e loira, revolta e farta cabeleira deixando apenas a
descoberto um dedo de testa, me torna conhecido entre os estudantes.
Na intimidade das ceias, no “Garrano” ou nas “Camelas”, boémia das
noitadas pelo Penedo da Saudade, Vale do Inferno, estrada de Condeixa
e pela Mata do Buçaco, os companheiros chamavam-me o “Marrafa”.
O facto importante da minha vida, durante os anos de Coimbra, e
provavelmente o mais decisivo dele, foi a espécie de revolução
intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança
arrancada ao viver quase patriarcal duma província remota e imersa no
seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação
intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as
encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda
a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e
incerteza, tanto mais pungente quanto, espírito naturalmente religioso,
tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma
regra conhecida. Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito
partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a
primeira em Portugal que saiu decididamente da velha estrada da
tradição.
Se a isto juntar a imaginação ardente com que em excesso me
dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas próprias da primeira
mocidade, a turbulência e a petulância, os fogachos e os abatimentos
de um temperamento meridional, muito boa fé e muito boa vontade,
mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das
qualidades e defeitos com que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo
do pensamento e da poesia.
Coimbra de meados do século passado era uma cidade quase
medieval, por dentro e por fora, onde imperava, com o peso austero da
sua tradição, a velha Universidade. Por aquela fieira foram passando,
durante séculos, as sucessivas gerações portuguesas, e sempre os
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alunos pareceram melhores que os mestres, sempre a mocidade deu
nela os primeiros gritos de alerta, a primeira palavra do moderno,
contra a inércia soturna das instituições anacrónicas. A Camões crê-se
que a Universidade lhe chamou o pior estudante do seu tempo, e eu não
passei, certamente, para o reitor Sousa Pinto, de um “mero burro”.
Que era de facto, a Coimbra de então?
Ora bem! Neste mesmo espaço de cultura, já o Sampaio
caracterizou, de forma exemplar a vida universitária do nosso tempo.
No entanto, não resisto, e por momentos dar a palavra ao Eça que, de
facto, é quem melhor “pinta” o “quadro”:
… “negra e dura como uma muralha, pesando, dando sobre as almas,
estava a Universidade.
Por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces ares, do Salgueiral
até Celas, se erguia ela, com as suas formas diferentes de comprimir,
escurecer as almas: o seu autoritarismo, anulando toda a liberdade e
resistência moral; o seu favoritismo, deprimindo, acostumando o
homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha; o seu literatismo,
representado na horrenda “sebenta”, na exigência do “ipsis verbis””,
para quem toda a criação intelectual é daninha; o seu foro tão
anacrónico …
A Universidade que em todas as nações é para os estudantes uma
“Alma Mater”, a mãe criadora, por quem sempre se conserva através
da vida um amor filial, era para nós uma madrasta amarga,
carrancuda, rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava
libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia,
pela empenhoca, pela sujeição à “sebenta”, esse grau que o Estado, seu
cúmplice, tornava a chave das carreiras.
No meio de tal Universidade, geração como a nossa só podia ter
uma atitude – a de permanente rebelião. Com efeito, em quatro anos,
fizemos, se bem me recordo, três revoluções, com todos os seus lances
clássicos, Manifestos ao País, pedradas e vozearias, uma pistola
ferrugenta debaixo de cada capa, e as imagens dos reitores queimadas
entre danças selváticas. A Universidade era com efeito uma grande
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escola de revolução: e pela experiência da sua tirania aprendíamos a
detestar todos os tiranos, a irmanar com todos os escravos.
De sorte que a Universidade, ultra-conservadora e ultra-católica,
era não só uma escola de revolução política, mas uma escola de
impiedade moral.”
Efectivamente, transposta a Porta Férrea, percorridos os Gerais,
abertas as portas das aulas, o que a mocidade encontrava não era o que
fogosamente se dava a procurar. Ali, inalterável, ensinava-se uma
ciência formal, escolástica, mnemónica, que tinha por detrás de si a
autoridade do lente e do foro académico.
Era esta a Coimbra para onde eu fui viver e na qual iria
desabrochar, por contradição a formosa luta pela conquista do
pensamento moderno.
Já agora, e ainda a este propósito, permitam-me revelar o
seguinte: anos depois de ter saído de Coimbra, numa carta dirigida ao
Oliveira Martins, datada de 2 de Julho de 1875, e incluída no lote
publicado nas já referidas “Novas Cartas Inéditas de Antero de
Quental”, escrevia ter assistido na Universidade a umas teses, coisa
que me tinha divertido bastante, e mais, “ainda um acto (exame) de
Direito, em que se argumentava sobre o poder moderador! Que tola
escolástica que é o tal direito público oficial! E que escola de
imbecilidade ilustrada é a tal Universidade! Cada vez me convenço mais
que é ela uma das novas pestes mais danosas, ninho de retóricos,
armazém de argúcias ocas, alambique de palavreado, onde por conta da
Nação se destila e falsifica a inteligência da mocidade. Dê V. (Oliveira
Martins) graças ao seu destino que o afastou daquele contágio” …
Estas afirmações mereceram um comentário do ilustre Professor
Lúcio Craveiro da Silva, e muito justamente, quando ajuíza que a
Universidade “cria igualmente um ambiente sugestivo e formador de
pesquisa e de diálogo e de horizontes inovadores. Esses horizontes que
se estendem ao plano filosófico, científico, literário, social e artístico
reflectiram-se fecundamente em Antero que nunca mais o abandonarão
e hão-de permanecer sempre presentes na sua vida … De facto, foi no
ambiente cultural da Universidade que ele encontrou a sua vocação de
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poeta e filósofo e o chefe da sua geração voltada para as novas correntes
europeias e preocupado em desencadear “uma revolução” que
transformasse e enriquecesse a nossa cultura. E conseguiu-o
largamente … Enfim, ali começou a ser Poeta e Pensador” …
Sem dúvida! De facto, foi nesse ambiente animado pelo espírito de
rebeldia, que nasceram o poeta, o polemista, o político e que me fiz
homem. Aí iria encontrar, nos meus companheiros de luta, grande parte
dos homens que seriam pela vida fora os meus amigos – entre outros,
Alberto Sampaio, Eça de Queirós, Germano Meireles, Luís de
Magalhães, Manuel de Arriaga, João de Deus, Santos Valente, José
Falcão, Guerra Junqueiro, Anselmo de Andrade. O meu querido
amigo Joaquim Pedro, o Oliveira Martins, vim a conhecê-lo anos
depois, em Lisboa, no “Cenáculo”.
Logo durante o meu
primeiro ano da
Universidade apareci
envolvido num incidente da
vida académica, origem de um processo em que fui condenado pelo
Conselho de Decanos.
Ao contrário do que relata o processo, não era “trupista”, não
pertencia à facção estudantil que aplicava a “praxe” espancando os
caloiros e rapando-lhes o cabelo.
Terei participado num ou noutro caso isolado, situações
meramente excepcionais. Rapaziadas!
O certo, é que o meu nome figura num processo académico,
instaurado pelo Reitor Basílio de Sousa Pinto, contra os estudantes
que tinham participado numa perseguição praxista, na Rua do
Loureiro, ao aluno de Preparatórios António Pereira Caldas – corte de
O grupo dos cinco . Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro
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cabelo à tesourada, mocadas, gritaria, etc. – que se rebelara contra o
corte de cabelo da “praxe”.
Conclusão: o Conselho de Decanos proferiu o seu acórdão dando
as acusações como provadas; e, considerando que “não deviam ficar
impunes tais factos, atentatórios da boa disciplina, e que revelam esta
degradação de costumes e menos respeito pela religião do país, por
serem praticados na ocasião da Semana Santa”, condenou o Zé
Sampaio a expulsão da Universidade por dois anos e o António
Berrance a expulsão por um ano; o Alberto Sampaio, eu, o Bernardo
Teixeira Cardoso e o Martinho José Raposo a oito dias de prisão e a
repreensão pelo Reitor na presença do Secretário da Universidade. O
que faria hoje o Reitor Sousa Pinto se há sombra das praxes se
praticassem alguns actos que, aqui, me recuso a explicitar, atentatórios
da dignidade do aluno, da sua integridade física e moral? Certamente
nada faria, pelo simples facto da impossibilidade de tais práticas. Um
ou outro desvio, uma ou outra irreverência nunca atingiram, nem de
perto nem de longe, os exageros e abusos que, embora sendo excepção,
não deixam de constituir uma realidade, triste realidade. Adiante.
Apenso ao processo registava-se que Antero Tarquínio do
Quental, estudante do 1º ano jurídico era “reputado muito inferior
pelos mestres”…
A reputação de “estudante inferior” mantive-a através de toda a
formatura, porque tudo fiz em Coimbra – excepto estudar para as aulas.
Pertencia à grande caravana dos cábulas, dos que não abrem
compêndio, apesar de terem talento; mostrava algum desprezo pelos
“ursos” ou estudantes premiados, nomeadamente os saídos da
categoria dos “capachos”, isto é, daqueles indivíduos cortejadores e
bajuladores dos lentes para lhes caírem nas boas graças. Cheguei ao
fim da formatura sem ter trocado nunca uma palavra com os meus
mestres. Apenas frequentava as aulas de Direito com a assiduidade
indispensável para não perder o ano.
De facto, os trabalhos universitários não me ocuparam muito o
espírito. A atenção e a inteligência trazia-as presas noutros interesses,
bem mais vivos e actuais.
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Recorrendo à já citada “Carta Autobiográfica” que acompanhou
a tradução dos “Sonetos Completos”
para alemão, dizia: “cursei entre 1858 e
1864 a Universidade de Coimbra, sendo
por ela bacharel em Direito. Confesso,
porém, que não foi o estudo do Direito
que me interessou e absorveu durante
aqueles anos, tendo sido e ficado um
insignificante legista”.
Era um “bicho” ágil e vivo demais
para me deixar prender nas malhas
daquela teia que a laboriosa ciência
oficial, havia séculos, vinha tecendo.
Animava-me uma independência rebelde
de espírito, e o amor do ar livre, da amplitude, levava-me a procurar
horizontes mais largos.
Metia-me a pé, arrastando amigos, em passeios longos que nos
levavam pelos arredores de Coimbra, Senhor da Serra, Lousã, Mata do
Buçaco, Figueira da Foz. Eu tinha os pés enormes de andarilho, de
papa-léguas. Manuel de Arriaga conta que, quando me retirei de
Coimbra, além duns livros, leguei-lhes as minhas botas ferradas. Para
as usarem, dizia ele, “metíamos-lhes dentro três e quatro folhas de
papel de embrulho e o pé ainda ficava folgado”.
Se, de facto, enquanto estudante, não consegui, nem procurei
nível escolar digno de registo, também não vivi a boémia de Coimbra a
tempo inteiro.
Por alguma razão o Eça me ergueu a chefe da nossa geração:
“Nesse tempo ele era em Coimbra, e nos domínios da inteligência,
o “Príncipe da Mocidade”. E com razão, porque ninguém resumia com
mais brilho os defeitos e as qualidades daquela geração rebelde, a todo
o ensino tradicional, e que penetrava no mundo do pensamento com
audácia, inventividade, fumegante imaginação amorosa, fé, impaciência
de todo o método e uma energia arquejante que a cada encruzilhada
cansava… Antero resumia com desusado brilho, o tipo do académico
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revolucionário e racionalista: e daí começou a sua popularidade – e a
sua lenda.
É certo que ele se afirmou sempre como o “Grã-Capitão” das
nossas revoltas … Já ele era, além da melhor ideia da Academia, o seu
melhor verbo … Antero não era só um chefe – mas um Messias. Tudo
nele o marcava para essa missão, com um relevo cativante: até a
bondade iniciadora do seu sorriso, até aquela grenha cor de ouro fulvo,
que flamejava por cima das multidões. E havia já, com efeito, hábitos
messiânicos nesse bando de discípulos que o acompanhavam através
de Coimbra, de capa solta, enlevados na sua palavra. Essa luminosa
palavra de Antero era uma das suas magníficas forças de atracção.
Ninguém jamais possuía um verbo de tanta solidez, harmonia, finura e
brilho”…
Falou o Eça, pois! Porém … se desta espécie de revolução fui eu o
porta-estandarte, com o que não me desvaneço sobremaneira, também
é facto que não me arrependo.
No ano lectivo de 1861-62 passei a ter quarto, cama e mesa na
casa onde morava José e Alberto da Cunha Sampaio, que nesse ano
residiam na Rua da Trindade.
Enquanto estudo, sem notoriedade escolar, sofro como outros
estudantes, uma profunda transformação
ideológica. As minhas poesias de 1859 - 1863,
nomeadamente as que destruí mas
subsistiram em cópias postumamente
reunidas em “Raios de Extinta Luz”,
testemunham uma evolução desde um
labirinto sentimental e crente até uma
posição deísta ou panteísta, anticatólica,
vibrando com as lutas de emancipação
nacional (Itália, Polónia) ou da resistência
antiautoritária. Publiquei numerosos folhetos
volantes e textos em prosa e verso em jornais académicos.
A minha mocidade foi o esquema profético do que iria ser uma
vida agitada e complexa, entre a serena paz do trabalho de criação
Carlos Jaca 17
poética, de meditação intelectual e a acção que me atraía aliciante e
viva, e para a qual, confesso, nem sempre me mostraria forte e
constante.
Neste ano lectivo de 1861 – 62 foi organizada em Coimbra a
famosa “Sociedade do Raio”, em que iniciei a minha vida de acção e
cujo fim era derrubar o Reitor Sousa Pinto, que pela sua rispidez se
incompatibilizara com a Academia, irritando-a com actos de extrema
severidade e com medidas que a época já não suportava.
A “Sociedade do Raio”, organização de estudantes revolucionários,
procurava, por todos os meios, criar na mocidade académica um estado
de rebelião contra as instituições universitárias e de oposição politica.
A situação agravara-se porque o odiado Reitor Basílio Sousa Pinto
tinha sido o autor do processo em virtude do qual dois companheiros
nossos, como já referi, foram suspensos da Universidade.
Em 1862 presidia à “Sociedade do Raio”, quando a 21 de Outubro
se deu a visita a Coimbra do príncipe Humberto, herdeiro do trono de
Itália. Saudei-o em nome da Academia de Coimbra, num discurso
ardente, em que falei da Itália liberta e redimida, e apontava o reitor da
Universidade como um “fantasma do passado”.Cumprimentei no
príncipe, não o herdeiro de um trono, mas o descendente de Victor
Manuel, do rei da liberdade, do amigo de Garibaldi.
Logo a seguir, 8 de Dezembro, dá-se o abandono em massa da
Sala dos Capelos, no momento em que se procedia à abertura solene do
ano escolar de 1862-63 e o Reitor se levantava para usar a palavra.
Devo dizer que fui um dos mentores da formidável conspiração que
levou o desfeiteado homem a abandonar o cargo.
Redigi, então “O Manifesto dos Estudantes da Universidade à
Opinião Ilustrada do País”, assinada por 314 estudantes. Aí se dizia
que a maciça debandada dos estudantes da Sala dos Capelos tinha
razão de ser: era a pública reprovação de uma “legislação iníqua”, por
velha e “ necessariamente injusta, porque é confusa”.
Carlos Jaca 18
O reitor foi demitido em
1863 e o incidente acabado.
Abandonei a direcção e os
trabalhos da “Sociedade do Raio”.
Assim, terminei rapidamente
a minha carreira revolucionária: as
ambições egoístas, ridículas e
miseráveis, que acompanhavam
sempre, mais ou menos, estes
movimentos, enojaram
profundamente o meu
temperamento desinteressado e as
minhas susceptibilidades de
artista e, daí por diante, conservei-
me, não só indiferente, mas até
hostil às manifestações mais ou menos colectivas da Academia,
troçando-as, até com alguma graça que me era peculiar.
Em Dezembro de 1861, tinha então 19 anos, publiquei o meu
primeiro livro, os “Sonetos de Antero” na chamada edição “Sténio”,
colecção de 21 sonetos, dedicada “Ad Amicos”, com um prefácio “A
João de Deus”.
No prefácio faço a apologia do Soneto – “a forma lírica por
excelência”, a “forma completa do lirismo puro”, “forma superior
do lirismo do coração”.
Nesta edição de 1861, destinada a subsidiar um estudante pobre,
os “Sonetos” são precedidos de um retrato meu, em verso, por “Sténio”,
pseudónimo de Alberto Teles. A empresa não constituiu um êxito de
repercussão, porque a tiragem foi pequena, quase só para distribuir
pelos amigos.
O ano de 1863 é um ano rico na minha vida de poeta.
Publiquei a segunda colecção de poesias, “Beatrice” e em
Outubro publiquei a minha terceira obra – o “Fiat Lux”, primeiro
harpejo, por assim dizer, dessa poesia transcendental que me dominou
Carlos Jaca 19
e que me absorveu por completo. Poucos dias depois de impresso
destruí todos os exemplares que consegui apanhar à mão, tornando-se
uma obra rara, até que mais tarde foi de novo editado por Teófilo Braga
nos “Raios de Extinta Luz”.
Mas o principal acontecimento deste ano foi a conclusão das
“Odes Modernas”, porventura o mais tempestuoso e revolucionário
livro de versos que se tinha publicado em Portugal e cuja
composição tinha começado no ano anterior.
Não sei bem como caracterizar este livro; não é certamente
medíocre; há nele paixão sincera e elevação de pensamento; mas além
de declamatória e abstracta, por vezes aquela poesia é indistinta, e não
define bem tipicamente o estado de espírito que a produziu.
Acima de tudo é, como dizem os franceses, “poesia de combate”:
o panfletário divisa-se muitas vezes por detrás do poeta, e a Igreja e a
Monarquia, os grandes do mundo são os alvos das minhas apóstrofes
de nivelador idealista. Noutras composições, é verdade, o tom é mais
calmo e patenteia-se nelas a intenção filosófica do livro, vaga sim,
mas humana e elevada.
Com o manuscrito da obra, corri a Lisboa no mês de Dezembro,
em busca de um editor. Sem apresentação procurei Alexandre
Herculano. Procurei também Castilho.
Que profunda diferença do acolhimento e da compreensão de
Herculano! Mas este era um grande homem vivo, uma alma de têmpera
forjada nas grandes batalhas da inteligência e da razão.
Bati Lisboa em busca de editor. Nenhum, porém, quis associar-se
a tal empresa. Parti para o Porto à procura do ansiado livreiro.
Encontrei a mesma recusa. Em vão corri, em vão me esforcei. Quem
queria editar tal poeta, tal livro em cujas estrofes ardiam mil Tróias?
Carlos Jaca 20
Das “Odes Modernas” à Carta “Bom Senso e Bom Gosto”.
“Questão Coimbrã”
A 8 de Julho de 1864 fiz acto de formatura sendo aprovado
“nimine discrepante” (por unanimidade), depois de ter reprovado no
quarto ano.
O Verão desse ano passei-o em S. Miguel, mas em Outubro voltei
à cidade do Mondego. As amarras que me prendiam à vida académica
não se tinham ainda quebrado. É ali que estão os meus amigos, foi ali
que o meu espírito amadureceu e se abriu às novas ideias e aos novos
princípios.
Continuei em Coimbra mais ano e meio, morando com o Zé
Sampaio e o Frederico Filémon no n.º 12 da Rua do Borralho. O Alberto
Sampaio já tinha concluído o curso no ano anterior.
Este período foi um dos mais belos da minha vida. Para sempre
liberto dos afazeres escolares, fechada, para nunca mais a abrir, a
hórrida sebenta, era livre como os pássaros, os poetas e os apóstolos,
livre para fruir e amar a liberdade.
Em Janeiro de 1865 dava à estampa o opúsculo “Defesa da
Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal”. É
um protesto contra a falta de lógica com que as folhas liberais atacavam
o “Syllabus” (encíclica), declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos.
Publicando o “Syllabus”, Pio IX dava uma lição de coerência. Incoerente
era a massa liberal da época.
Só no Verão de 1865 as “Odes Modernas”, obra que pretendia
ser a “voz da Revolução”, grandemente influenciada por Michelet,
Proudhon, Renan e Hegel, foram impressas em Coimbra, graças à
minha bolsa.
Esta 1ª edição iria desencadear uma das mais memoráveis
polémicas literárias portuguesas, conhecida pela “Questão Coimbrã”
ou “Questão do Bom Senso e Bom Gosto”.
As “Odes” causaram um verdadeiro clamor em todo o País;
eram estranhos aqueles versos; não se compreendia como um poeta
compunha estrofes de revolta em vez de lirismo piegas dos que eram
Carlos Jaca 21
habituais. O romantismo e o classicismo tão exagerados e tão
estropiados que abundavam na literatura da época, sentiam um golpe
fatal com a publicação daqueles versos ousados. Castilho, como chefe
dessa literatura, recebeu um grande choque.
Castilho, naquela época, era como um grande, um magnânimo
“padrinho” das letras portuguesas. Não havia “baptizado literário”
para que o velho poeta não fosse convidado e a prenda era sempre a
mesma, inevitável – um prefácio.
Criou desta maneira uma corte de afilhados que lhe ia
regularmente ao beija-mão e para quem o velho era pródigo em bênçãos
– os seus discípulos. A literatura assim concebida e realizada sob os
ensinamentos e a fiscalização vigilante do mestre, era a literatura
considerada oficial, aplaudida e aceite pelas gazetas e pelo público.
Castilho pontificava nesta escola, vulgarmente denominada
Romantismo.
Castilho, meu antigo professor, ao escrever em carta-posfácio ao
editor António Maria Pereira, enaltecendo as qualidades poéticas do
medíocre “Poema da Mocidade” de Pinheiro Chagas, ridicularizava as
“Odes Modernas” e as “Tempestades Sonoras” de Teófilo Braga,
confessando-se incapaz de enxergar para onde iam os seus autores
devido às alturas de “águia”em que voavam.
Sabendo que lançava um desafio, prevenia os que viessem a
discordar do seu ponto de vista que não lhes responderia (“Lá brigar
não brigo, que tenho mais que fazer”). Eu, que já no ano anterior me
insurgira contra aqueles que se arrogavam o direito de legislar para o
mundo da inteligência e da inspiração, ao escrever na “Revista
Literária” de Coimbra um artigo sobre João de Deus que tardava em
ser conhecido e devidamente admirado, respondi a Castilho com o
violento opúsculo “Bom Senso e Bom Gosto”- Carta ao Ex.mo Senhor
António Feliciano de Castilho”:
“Acabo de ler um escrito de V.ª Ex.ª onde, a propósito de faltas de
bom senso e de bom gosto se fala com áspera censura da escola de
Coimbra.
Carlos Jaca 22
Os versos de V.ª Ex.ª não têm ideal. As suas críticas não têm
ideias mas têm palavras quantas que bastem para um dicionário de
sinónimos.”
Concluía, afirmando, que aquilo que se atacava não eram as
opiniões atrevidas nem a admiração pelos novos autores alemães e
franceses, mas sim a independência que os novos escritores
demonstravam ao seguirem o seu caminho sem pedirem licença aos
velhos mestres.
Lamentava do fundo da alma não me poder confessar, como
desejaria. “De V.ª Ex.ª nem admirador nem respeitador”.
A “Questão Coimbrã” deu origem a mais de 44 intervenções,
embora Castilho, como aliás prometera, não tomasse em público
qualquer atitude. Particularmente, porém, referia-se a nós, aos
principais antagonistas, como “fadistas de Coimbra”, “os dois
bácoros que chafurdam por Coimbra”, “Teófilos bragantes e
Quentais imundos”.
Durante mais de seis meses, a guerra dos opúsculos, a favor e
contra a escola de Coimbra, continuou. Eu, ao verificar que a polémica
tomava proporções tais que a minha iniciativa poderia ser atribuída a
intuitos de glória pessoal, escrevi o folheto “Dignidade das Letras e as
Literaturas Oficiais”. Neste texto, desenvolvendo embora as ideias
expostas anteriormente, retirei-lhes o aspecto de pretensão irritada,
para as elevar a ponto de vista sério e fundamentado sobre a missão
moral e social do escritor, e num apêndice, apreciava serenamente a
obra de Castilho, como que um lenitivo para a minha desapiedada
agressividade.
Vinte anos depois, na “Carta Autobiográfica” resumi, assim, a
“Questão Coimbrã”: “o velho Castilho, o árcade póstumo, como então
lhe chamavam, viu a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura
anacrónica. Houve em tudo isto muita irreverência e muito excesso.
Mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído
de ideias não podia presidir como pretendia, a uma geração ardente que
surgia e que antes de tudo aspirava a nova direcção. Quando o fumo se
dissipou, o que se viu claramente foi que havia em Portugal um grupo
Carlos Jaca 23
de 16 a 20 rapazes que inspiravam talvez pouca confiança pela
petulância e irreverência, mas que inquestionavelmente tinham talento
e estavam de boa fé, e que em suma, havia a esperar deles alguma coisa
quando assentassem. Os factos confirmaram esta impressão. Dos dez,
ou doze, primeiros nomes da literatura daquele tempo saíram todos
(salvo dois ou três) da Escola de Coimbra ou da influência dela.
De Coimbra a Lisboa (“Cenáculo”), via Paris – A experiência
proletária.
Ao sair de Coimbra, depois da questão com Castilho, julgava já
ter pago o meu tributo, por assim dizer, a todos os sentimentos da
juventude: ao amor, à revolta, à acção, às ideias, à força moral, ao
entusiasmo humanístico, ao problema da existência, à inquietação
religiosa. Se é certo que não saí de Coimbra ateu, pelo menos saí de lá
anticatólico, mas nem por isso desaparecia o meu forte sentimento
religioso. É esse sentimento religioso, recalcado, que acabará por dar os
seus frutos quando chegar o momento de consagrar à metafísica as
malbaratadas energias intelectuais no campo da acção político-social.
Bacharel desde 1864, e tendo em conta que o estudo do Direito
nunca me interessara, abandonei a minha “encantada e quase
fantástica Coimbra”, sem um projecto de vida, ao contrário dos colegas
que, sem rendimentos próprios, iam a concursos… Aliás, possuindo nos
Açores bens de fortuna, embora modestos, tive sempre assegurada a
minha existência económica. Mas, mesmo assim, fui um homem de
hábitos mais que simples, bastava-me pouco para viver, e nesse pouco
vivi satisfeito. A alimentação era parca, o vestuário sóbrio, o quarto o de
um estudante…
Era tempo, pois, de regressar a S. Miguel. Para lá parti a 5 de
Março de 1866. Mas para, na pacatez da cidade insular, vegetar como
funcionário público – professor de Lógica no Liceu, como cheguei a
pensar -, como advogado ou proprietário? De modo nenhum. Já vereis!
Carlos Jaca 24
Logo no mês seguinte, abandonei os projectos de me demorar
alguns meses em S. Miguel e ir viver para o Ultramar, partindo para
Lisboa a 25 de Maio onde desembarquei a 1 de Junho.
De imediato, entrei para a Imprensa Nacional onde iria fazer um
estágio de aprendiz na escola tipográfica deste instituto gráfico.
No final do ano parti para Paris onde fui trabalhar como
compositor numa tipografia. Renunciara, embora temporariamente, à
situação social em que nascera, aos bens de fortuna, à minha classe. Ia
viver, junto da massa do operariado de uma grande cidade, as
mesmas lutas e amarguras, irmanar-me à gente explorada e oprimida.
Na véspera da partida para Paris escrevi ao Alberto Sampaio,
dizendo-lhe que, por mim ia mais com o ânimo sossegado de quem
cumpria um dever, do que com o coração alegre de quem seguia uma
esperança. Mas por tanto tempo desesperei sem fundamento e me
cansei sem ter trabalhado, que queria enfim comprar com estes
supremos esforços o direito formidável da desesperação com plena
consciência. Queria que os factos dessem razão ao cansaço do meu
coração ou que o fizessem ressurgir por uma vez.
O certo é que ia viver para uma grande cidade, só, sem amigos;
fazer a minha iniciação na vida duma classe que sofria as dores da
miséria e da exploração.
Ao segundo dia, logo a antinomia entre o mundo em que me
achava e o meu estado de espírito e a natureza mesma do meu ser me
apareceram cruelmente.
Esperava que o trabalho me fizesse bem e foi ele que me revelou
completamente o meu estado. Este trabalho era triste como todo o
trabalho moderno, forçado, pálido e dividido, desnatural e injusto.
Experiência dolorosa e decepcionante. Foi uma tentativa
malograda, mas honrosa porque foi sincera; mas não me queixo, porque
tirei outro moral, e esse grande, a estima de mim mesmo, ainda na
fraqueza de que me vejo não ter culpa.
E não exagero afirmando que cinco meses em Paris valem mais do
que os cinco anos de uma formatura em Coimbra, para a verdadeira
Carlos Jaca 25
instrução e iniciação na verdadeira e soberana “ciência da sociedade
humana”.
Era a primeira grande crise, o primeiro abalo violento que sofria.
A excitação nervosa abalara-me com impiedade.
Vim repousar três meses para a casa do meu amigo Sampaio, na
Quinta de Sant’Ana, perto de Guimarães. A paz reparadora daquela
paisagem, o silêncio e a tranquilidade da natureza que ali eram
extraordinariamente serenos, pacificaram-me os transtornados nervos.
Restabelecido, voltei à capital francesa, em Agosto de 1867, mas
desta vez sem veleidades proletárias. Visitei o grande Michelet sob o
nome de Bettencourt (um dos apelidos da minha família) incumbido
pelo autor das “Odes Modernas” de oferecer ao poeta francês um
exemplar da minha obra, para que este a pudesse julgar livremente,
sem se sentir obrigado a proferir alguns parcos elogios de cortesia.
Michelet, sensível ao encanto pessoal do meu pretenso amigo,
agradeceu a oferta em carta dirigida ao autor, não se esquecendo de
mencionar a simpatia que o “visitante” lhe merecera: “Votre charmant
ami que j’ai vu avec beaucoup de plaisir, m’a traduit plusieurs de
vos chants qui me semblent admirables”.
Antes do fim do Verão regressava, não desta vez ao Continente,
mas à Ilha de S. Miguel, apetecendo-me o isolamento, o trabalho de
meditação e de leitura.
A estadia nos Açores prolongou-se para além do que eu tinha
projectado. Em Novembro de 1868 estava de novo em Lisboa, na
incerteza do caminho a seguir, angustiado pelo vazio que me parecia o
futuro.
As circunstâncias, porém, vieram chamar-me, acordar-me do
torpor em que dir-se-ia apetecer-me cair. Tinha eclodido a revolução
em Espanha, chefiada pelo general Prim, contra Isabel II. Agentes
espanhóis vieram sondar os elementos políticos portugueses de
esquerda. É então que publico o folheto, “Portugal perante a
Revolução de Espanha – Considerações sobre o futuro da política
Carlos Jaca 26
portuguesa no ponto de vista da democracia ibérica”. Advogava aí a
União Ibérica por meio da República Federal, então representada em
Espanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Cortes
Constituintes. Era, ou foi, uma grande ilusão, da qual porém só desisti
(como muitas outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos
da experiência. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas
coisas da sociedade!
É por esta época que me encontro em Lisboa com antigos
companheiros de Coimbra: Eça de Queirós, Lobo de Moura, Faria e
Maia, Guerra Junqueiro, Santos Valente, Manuel de Arriaga, Teófilo
Braga. Ia nascer o “Cenáculo” na Travessa do Guarda-Mor. Ali, ao
Bairro Alto, no quarto do Batalha Reis, quartel da “Geração de 70”, fui
recebido em Agosto de 1868. Reagrupavam-se os membros da “Escola
de Coimbra”, agora, para todos os efeitos, “Escola de Lisboa”.
Em Julho de 1869 viajei para os Estados Unidos cuja
Constituição-Federalista me entusiasmara. Visitei Halifax e Nova
Iorque, estudando aí as grandes questões sociais ligadas ao operariado
e simultaneamente capitalistas.
No Inverno seguinte, já em Lisboa, é juntamente com Eça que
idealizo a figura de Carlos Fradique Mendes, vindo a escrever um
folhetim no “Primeiro de Janeiro”, do Porto, com uma nota assinada
A.Q. e alguns poemas que atribuía a essa figura de invenção que mais
tarde serviu a Eça para escrever a célebre “Correspondência de
Fradique Mendes”.
Foi por este tempo que travei relações com Oliveira Martins, em
cujo coração encontraria abrigo para as confidências dos meus males –
para as minhas grandes confissões.
Também Oliveira Martins e José Fontana (geria a Livraria
“Bertrand” de que era proprietário um tio) apareciam no “Cenáculo”,
embora mais raramente. Dada a natureza das suas preocupações e dos
seus interesses, seriam os meus dois grandes companheiros. José
Fontana era um agitador político e Oliveira Martins um escritor de
ideias – ambos preocupados pelas questões sociais. Neles encontrei
uma maior solidariedade de princípios e de aspirações do que na
Carlos Jaca 27
maioria dos outros, a quem me ligavam sobretudo os simples laços de
iguais tendências literárias e estéticas.
Por volta de 1870 inicio um período de grande actividade política
no movimento socialista. Fundei associações operárias, publiquei
folhetos de propaganda, e introduzi em Portugal a Associação
Internacional dos Trabalhadores, uma secção da Internacional que
recebeu a visita do genro de Marx, Paul Lafargue. Fui durante uns sete
ou oito meses uma espécie de pequeno Lassalle (um dos fundadores do
socialismo alemão), e tive a minha hora de vã popularidade. Consumi
muita actividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em
artigos de jornais, em folhetos, em proclamações, em conferências
revolucionárias. Queria reformar tudo, eu que nem sequer estava a
meio caminho da formação de mim mesmo.
Fui um dos fundadores da Associação da Fraternidade
Operária, da qual me afastei por não terem sido aprovadas as doutrinas
proudhonianas que defendia e que Fontana não aprovava.
Tomei, então, uma posição muito crítica em relação ao novo
Partido Republicano que não considerava capaz de levar a cabo uma
autêntica reforma social. Era necessário quebrar com os republicanos e
eu estava resolvido a fazê-lo … Falavam da Espanha com desdém, e
havia de quê. Mas eles, os briosos portugueses, estavam destinados a
dar ao mundo um espectáculo republicano ainda mais curioso; se a
república espanhola era de doidos, a nossa seria de garotos.
Fundei e dirigi a “República – Jornal da Democracia
Portuguesa”, juntamente com Oliveira Martins, Batalha Reis, Manuel
de Arriaga, António Enes e Eça de Queirós – o artigo-programa, as
questões de iberismo e de política internacional, são de minha autoria
embora não assinadas.
Em 1872 publiquei anonimamente o folheto “O que é a
Internacional” (O Socialismo Contemporâneo – o Programa da
Internacional – Conclusões) destinado a angariar fundos para o jornal
Carlos Jaca 28
“O Pensamento Social” que iria dirigir juntamente com Oliveira
Martins.
Alguns anos mais tarde, em 1875, é fundado o Partido dos
Operários Socialistas, tendo eu com Azedo Gneco e José Fontana
feito parte da comissão que elaborou o programa.
Em 1880, a comissão eleitoral do Partido Socialista iria
apresentar a minha candidatura pelo Círculo de Lisboa, publicando-se
então, o folheto “Aos Eleitores do Círculo 98 – Carta do Dr. Antero
de Quental à Comissão Eleitoral do Partido Socialista pelo referido
Círculo”.
Todavia, o período mais agitado da minha vida pública foi aquele
em que tiveram lugar as chamadas Conferências Democráticas ou do
Casino, que se inauguraram no dia 22 de Maio de 1871, no Casino
Lisbonense.
Das Conferências do Casino à “grande crise”
De facto, chegava a altura de o “Cenáculo”, e sob minha
inspiração, produzir uma manifestação verdadeiramente positiva. Quem
o diz é o Eça: “E do “Cenáculo”, de onde, antes da vinda de Antero (que
foi como a vinda do Rei Artur à confusa Terra de Gales), nada poderia
ter nascido, além da chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a
vinho de Torres, e farrapos de filosofia fácil nasceram, “mirabile dictu”
(admirável de dizer) as Conferências do Casino, aurora dum mundo
novo, mundo puro e novo que depois, oh dor! creio que envelheceu e
apodreceu”…
Com efeito, na “Revolução de Setembro”, de 29 de Abril de
1871, anunciava-se a próxima realização em Lisboa de uma série de
conferências sobre matérias políticas e sociais, no antigo Casino
Lisbonense do Largo da Abegoaria, hoje Rafael Bordalo Pinheiro.
Não tardaria, porém, que circulasse em Lisboa o programa das
mesmas, assinado por doze nomes. Era a proclamação dos direitos de
Carlos Jaca 29
uma geração que entrava na liça e afirmava as características de uma
mentalidade revelada seis anos antes.
Dos doze nomes que a subscreviam, alfabeticamente ordenados,
só o meu, do Eça, Germano de Meireles, Manuel de Arriaga e Teófilo
Braga procediam de Coimbra. Os restantes – Augusto Soromenho,
Augusto Fuschini, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis,
Oliveira Martins e Salomão Sáraga – eram de Lisboa, professores,
eruditos, estudiosos, nem todos universitários sequer, mas nem por
isso menos prestigiados.
No programa destas Conferências Democráticas, redigido por
mim, proclamava-se o seu objectivo:
“Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os trabalhos
que caracterizam este momento do século, preocupando-nos
sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;
ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo assim nutrir-se
dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar
adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar
na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência
Moderna; estudar as condições da transformação política,
económica e religiosa da sociedade portuguesa: - tal é o fim das
Conferências Democráticas”.
Os subscritores de um tal programa, sem dúvida nenhuma
alarmantemente revolucionário numa cidade tão conservadora como
Lisboa, concluíam solicitando o concurso de todos os partidos, de todas
as escolas, de todas aquelas pessoas que, ainda que não partilhem as
nossas opiniões, não recusam a sua atenção aos que pretendem ter
uma acção – embora mínima – nos destinos do seu país, expondo
pública mas serenamente as suas convicções, e o resultado dos seus
estudos e trabalhos.
A 22 de Maio realiza-se a palestra inaugural, constituindo uma
espécie de introdução sobre o espírito das conferências.
Encarreguei-me, eu próprio, desta apresentação.
Anunciada para o dia 29, foi antecipada para 27 a segunda
conferência que seria proferida igualmente por mim. E o certo é que, se
Carlos Jaca 30
a primeira já tivera um público numeroso, a segunda realizada no
andar nobre do edifício, e numa sala muito maior, foi ouvida por 400
pessoas, segundo o “Diário de Notícias”, por 250, segundo o “Jornal da
Noite”.
A concorrência às conferências era considerável, e, além de vultos
destacados nas letras e na política, distinguiam-se entre a assistência
pequenos núcleos de operários que lá iam atraídos pela propaganda de
José Fontana.
É pois no dia 27 de Maio, sábado, que proferi a minha segunda
conferência democrática intitulada “Causas da Decadência dos
Povos Peninsulares”, reconstituída em opúsculo neste mesmo ano. É o
meu primeiro trabalho de fôlego no domínio das ideias históricas e uma
análise profunda à situação de um povo – o povo peninsular. Tentei,
e julgo que o consegui, imprimir às Conferências do Casino um carácter
doutrinário elevado, sério e revolucionário.
As causas da decadência dos povos da Península analisei-as
uma por uma.
A primeira atribui-a ao Concílio de Trento. A Igreja depois deste
acto de política interna, tornou-se intolerante e dogmática. Não
contente com o poder espiritual, assenhoreia-se do poder temporal. A
autoridade do Papa tornou-se tentacular, fazendo dos próprios reis
instrumentos passivos da política católico-romana. O “jesuitismo”
absorve o ensino; a cultura entre os séculos XVII e XVIII entra em
eclipse.
A segunda, foi o absolutismo em política. Essencialmente
aristocrático na Península, leva à paralisia das outras classes,
especificamente da burguesia; a indústria, o comércio e a ciência
asfixiam neste mundo organizado para benefício dos privilegiados.
A terceira, foram as conquistas além-mar, causa maior da nossa
decadência. Propus-me fazer a análise desse espírito heróico, sem
lirismos nem sentimentalismos patrióticos. Não discuto o valor heróico
dessas empresas guerreiras; do ponto de vista económico, contudo,
considerei-as um desastre, prolongando-se este estado de coisas até à
actualidade.
Carlos Jaca 31
Mais três conferências se realizaram nas salas do Casino de
Lisboa: a do Augusto Soromenho, que a 6 de Junho fala sobre “A
Literatura Portuguesa”, a do Eça, que a 12 do mesmo mês, durante
duas horas, abordaria o tema “A Nova Literatura ou o Realismo como
Nova Expressão de Arte”, e a do Adolfo Coelho, que versou “A
Questão do Ensino”, no dia 19 de Junho. Mas quando, a 26 de
Junho, ia realizar-se a conferência de Salomão Sáraga intitulada “Os
Historiadores Críticos de Jesus”, as portas do Casino estavam
fechadas, e nelas afixada uma portaria do Marquês d’Ávila e Bolama,
Presidente do Ministério, datada desse mesmo dia, a impedir a sua
realização e a proibir as seguintes, por nelas se expor e procurar
“sustentar doutrinas e proposições que atacavam a religião e as
instituições políticas do Estado” e por tais factos “além de
constituírem um abuso do direito de reunião, ofenderem directa e
claramente as leis do Reino”.
Por sua vez, os jornais católicos tinham iniciado uma campanha
contra o desaforo das conferências, e insinuavam a velha acusação de
que os conferencistas obedeciam a “mandatos ocultos”, atribuindo-os
aos manejos dos “comunistas”…
O encerramento das conferências foi motivo de intensa
agitação, que por um instante perturbou as águas mansas da
sonolenta vida nacional. Os organizadores, presentes no acto do
encerramento, lavraram e assinaram protesto, tendo eu endereçado
uma “Carta ao Ex.mo Senhor António José d’Ávila, Marquês de Ávila
e Bolama, Presidente do Ministério, que ficaria como a peça mais
incisiva da questão.
Larga e múltipla foi a literatura protestativa que nasceu desta
medida infeliz. Se as Conferências tinham sido proibidas e uma rolha
introduzida na boca dos conferencistas, como chistosamente sugeria
Rafael Bordalo Pinheiro no seu jornal “A Berlinda”, a acção das
Conferências Democráticas, porém, não se perdia. “As Farpas”,
dirigidas por Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, continuaram-nas no
campo panfletário. Com as Conferências do Casino consagrava-se o
espírito da “Carta Bom Senso e Bom Gosto” e criava-se uma plataforma
Carlos Jaca 32
sólida para as ideias e princípios que estruturavam a “Geração de 70” –
finalmente consolidada, finalmente justificada, se não nas sua
realizações, pelo menos no seu ataque ao que mais importava reformar
no panorama mental de uma nação havia quase um século esquecida
do que era a verdadeira liberdade de espírito.
Paralelamente à acção
política e panfletária, não
abandonei a minha actividade
poética (a minha poesia foi
sempre para mim coisa sincera
e tirada cá de dentro) e
publiquei na “Folha” do João
Penha alguns sonetos, além de
excertos de uma tradução do
“Fausto” de Goethe e do artigo
“Tendências Novas da Poesia
Contemporânea”, uma crítica
às “Radiações da Noite”, de
Guilherme de Azevedo na
“Revolução de Setembro”.
Crítica a “Os Lusíadas –
Ensaio sobre Camões e a sua Obra em relação à Sociedade
Portuguesa e ao Movimento da Renascença”, de Oliveira Martins.
No começo de 1872, durante a estadia no Porto, publiquei as
“Primaveras Românticas”. Contém os meus “Juvenília”, versos dos
vinte anos, as poesias de amor e fantasia compostas na sua quase
totalidade entre 1860 e 65, que andavam dispersas por várias
publicações periódicas e que só em 1872 reuni em volume, juntamente
com mais alguma coisa posterior, do mesmo carácter e estilo.
Ainda neste ano escrevi o que considerei a minha melhor obra em
prosa: “Considerações sobre a Filosofia da História Literária
Portuguesa” e que, como já referi, esteve na origem da polémica e corte
de relações com Teófilo Braga.
Carlos Jaca 33
Esta polémica com Teófilo Braga surgiu quando vinha escrevendo
o livro a que chamei “Programa para os Trabalhos da Geração Nova”,
e que uma vez terminados causaram profunda impressão aos amigos
que dele foram tomando conhecimento, existindo numerosos
testemunhos em cartas que por essa época escrevi, principalmente, a
Oliveira Martins. Anunciando mesmo, no jornal “A República”, em Maio
de 1875, vim a destruir o manuscrito ao chegar o momento mais grave
da minha crise moral. Posso dizer que não era apenas um programa de
trabalhos de uma geração, mas, por assim dizer, a exposição de todo o
meu pensamento moral, político, social e filosófico: uma verdadeira
“soma” das minhas ideias.
Em 1874, um ano depois de falecer meu pai, adoeci gravemente
com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me
completamente. A forçada inacção, a perspectiva da morte vizinha, a
ruína de muitos projectos ambiciosos e uma certa acuidade de
sentimentos próprios da nevrose, puseram-me novamente e mais
imperiosamente do que nunca, em face do problema da existência. A
minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral
incompreensível.
A enfermidade não me deixava entregar a qualquer actividade (a
minha fraqueza era tal, que a menor aplicação me deixava prostrado do
cérebro) mas, ainda assim fundei, juntamente com o Batalha Reis, a
“Revista Ocidental” onde o Eça veio a publicar a primeira versão de
“O Crime do Padre Amaro”. São desta época “Os Cativos”, “Entre
Sombras”, “Os Vencidos”, a “Fada Negra” e o “Hino da Manhã” que
constituíam talvez os poemas típicos do pessimismo português e que,
por terem sido enviados em carta a Oliveira Martins, foram por ele
salvos da destruição a que eu posteriormente os condenara, e
publicados em apêndice aos “Sonetos Completos”.
Como a medicina nacional, Sousa Martins e Curry Cabral, não
conseguisse proporcionar-me qualquer alívio (começava a estar cansado
e era forçoso decidir isto – se morria ou vivia), decidi, depois de hesitar
entre Paris e Londres, ir a Paris, consultar a grande sumidade médica
daquele tempo, o Dr. Charcot, que receitou para o meu mal a
Carlos Jaca 34
hidroterapia declarando-me à queima-roupa, que a minha doença não
era nada na espinha, como se supunha; do que eu sofria era de
histeria – “uma doença de mulher transportada para um corpo de
homem”. Depois da minha morte outros diagnósticos se seguiriam.
Assim, instalei-me em Bellevue – uma vilória a quatro ou cinco
quilómetros de Paris – o que me proporcionou algumas digressões a
Sèvres, a Versalhes e à capital francesa, onde depois da época balnear
me demorei até Novembro de 1877.
O tratamento e a minha permanência em França proporcionaram-
me algum alívio. Escrevi alguns artigos para a revista “Dois Mundos”,
que Salomão Sáraga então publicava e dirigia em Paris.
Regressei a Lisboa confiado nas melhoras alcançadas mas, pouco
a pouco, voltei a ser vítima de insónias e a cair num estado de
abatimento, tanto mais que minha mãe tinha falecido em Lisboa, ainda
não decorrera um ano.
Voltei a Paris no Verão do ano seguinte, mas as melhoras que
então senti já não eram tão acentuadas. Além de hidroterapia em
Bellevue, tive de fazer aplicações eléctricas em Paris pelo que andei num
vai-vem maçador.
Quando em Outubro, regressei a Portugal, era bem reduzida a
minha confiança na cura.
Durante a minha estada em Bellevue conheci uma titular
francesa, a Baronesa de Saillière, minha companheira de tratamento
na casa de saúde, com quem mantive relações epistolares prolongadas,
chegando a certas promessas de casamento, cujo cumprimento estava
dependente de uma complicada acção de divórcio. Compreenda-se que é
para mim muito penoso abordar este caso, até pelas consequências
trágicas que estiveram eminentes. O Oliveira Martins e o Jaime
Batalha Reis estão bem por dentro deste assunto e, até a filha deste
último, Beatriz Cinati Batalha Reis, que entre os papéis de seu pai
encontrou o retrato da Baronesa.
Em todo o tempo que decorre desde o regresso de Paris até à
minha instalação em Vila do Conde, conheci tão pouco a perfeita saúde
do corpo, como a tranquilidade do espírito, mas aproveitava todas as
Carlos Jaca 35
breves melhoras que me aliviavam a doença para ler e meditar, discutir
e escrever.
Do refúgio de Vila do Conde – superação do pessimismo – à
publicação
dos “Sonetos Completos”
Em 1877 falecera no Porto Germano Vieira de Meireles, um dos
meus mais velhos amigos, redactor de “O Primeiro de Janeiro”. Com ele
costumava passar largas temporadas no Porto. Falecido
repentinamente, deixa sem recursos uma menina de pouco mais de um
ano e meio e outra que nasceu quatro meses depois.
Em Janeiro de 1880 resolvi fixar-me em Lisboa, instalando-me
com as duas órfãs e a mãe delas numa casa da Calçada de Sant’Ana,
vizinha do prédio onde morava minha irmã Ana.
Qualquer coisa estava a mudar na minha vida. A saúde, sempre
precária, é certo, melhorara, porém, graças às condições mais regulares
da minha vida doméstica. Aproximava-se o fim da “grande crise”.
Depois da edição dos “Sonetos” da Biblioteca da Renascença do
Porto, em 1881, uma colecção de 28 sonetos coligidos pelo meu velho
amigo Joaquim de Araújo, decidi sair de Lisboa, que para mim era uma
cidade que patusca, chatina, intriga, goza, explora, compra e é
comprada, vende e é vendida, e fixei residência em Vila do Conde
em companhia das minhas filhas adoptivas. Os cerca de dez anos
passados na pequena vila minhota iriam ser os mais calmos da minha
existência, e a proximidade de Oliveira Martins, no Porto, e de
Alberto Sampaio, em Famalicão, proporcionar-me-ia uma relativa
pacificação de espírito.
Instalar-me em Vila do Conde com a minha nova “família”, a
dois passos do Porto, era o que melhor quadrava ao desvanecimento
do meu negro pessimismo.
Qualquer coisa mudava no meu íntimo, em parte graças ao
remanso de uma vida que me permitia rever mais abertamente as
Carlos Jaca 36
minhas concepções de existência. A minha vida moral era agora
verdadeiramente a de um budista e isso se reflectia na minha poesia,
que entrava agora numa fase, mais serena e larga, ainda que de fôlego
curto, pois só produzia um ou outro raro soneto; mas esses, ao menos,
já não causavam pesadelo a quem os lia.
A minha ânsia de serenidade era intensa, e tanta, que antes de
me instalar em Vila do Conde já destruíra muitas poesias compostas
em períodos de depressão. Eram poesias lúgubres e tétricas, que não
podiam consolar ninguém e fariam mal a muita gente.
Agora, no ambiente de tranquilidade que me rodeava naquela vila
ribeirinha, debrucei-me sobre o que até aí compusera e conservara,
promovendo a publicação do que me parecia mais perdurável.
De 1883 é a edição do “Tesouro Poético da Infância”,
organizado e prefaciado por mim, uma espécie de “lira infantil”,
colhida nos Romanceiros e Cancioneiros e nos poetas brasileiros
como Castro Alves, Casimiro de Abreu e, sobretudo, Junqueira
Freire, cuja poesia me entusiasmou a ponto de o considerar um dos
primeiros poetas do século se não tivesse morrido aos 24 anos.
É neste “período de Vila do Conde” que escrevo os meus
últimos sonetos, aqueles que considerei serem os melhores, reflexo de
uma fase espiritual que representava as minhas concepções sobre a
vida e o mundo, e onde expunha as soluções intelectuais que
encontrava para ultrapassar o meu anterior estado pessimista:
“Evolução”, “Voz Interior”, “Luta”, “Redenção”, “Na Mão de Deus” e
sobretudo “Solemnia Verba”, todos eles eram para mim algo de novo –
a verdadeira poesia do futuro – fora das tendências da literatura
minha contemporânea, tendo sido compostos entre 1882 e 1885.
Precisamente neste último ano, em Março, morre a mãe das
minhas “pupilas”, obrigando-me a enviá-las para um asilo no Porto.
Grande falta me faziam as crianças, “um elemento poético e tocante
bem apreciável”.
Carlos Jaca 37
Exactamente um ano antes da publicação dos “Sonetos
Completos”, que Oliveira Martins iria dar à estampa em Agosto de
1886, interrompi de vez a minha lira sonetista.
Sentia esvair-se a minha inspiração poética, e por isso debruçava-
me sobre o que ficara da minha inspiração antiga. Eu entendia que o
artista e o poeta deviam cessar de produzir desde o momento em
que se sintam enfraquecidos ou perturbada a sua harmonia intima
e espontânea a faculdade criadora. Deixei-me, pois, de versejar, e
cuido ter feito bem.
Já em 1883, numa carta a Santos Valente, dizia, claramente:
“Quando se me esgotar este último veio poético e se fechar o meu ciclo,
conto reunir os meus Sonetos Completos. Afinal, é tudo quanto de mim
sobrenadará – se bem o julgo e bem me julgo”.
Também os amigos começaram a pressionar-me para que
publicasse uma colecção completa dos meus sonetos, cerca de uma
centena, da qual uma boa metade se encontrava inédita.
A edição definitiva dos “Sonetos”, publicada em 1886,
organizada e prefaciada por Oliveira Martins, obedeceu, como referi
em carta a Alberto Sampaio, ao propósito de “rever e tornar
impecáveis” muitos dos Sonetos já publicados nas edições “Sténio”
(1861) e da “Renascença” (1881), nas obras anteriores (“Primaveras
Românticas” e “Odes Modernas”) e em jornais; ou dispersos em
mãos de amigos; ao mesmo tempo tinha o propósito de formarem uma
espécie de “autobiografia de um pensamento”, “autobiografia poética”,
“memórias de uma consciência”, “memórias morais e psicológicas” –
foram expressões de que eu próprio me servi para caracterizar o meu
volume de versos.
Quando apareceu a edição dos “Sonetos Completos”, a
imprensa portuguesa manteve-se geralmente muda; os critérios
nacionais conservaram um discreto silêncio sobre a obra
“perturbadora”. Não me afligiu o silêncio da imprensa. Contava com
ele. Sabia bem quanto aquilo estava fora das tendências da literatura do
meu tempo. Uma Filosofia nova, versos obscuros, quem diabo podia
Carlos Jaca 38
entrar com ela? Achava, pois, que os dos jornais o melhor que tinham a
fazer era calarem-se.
Isso não obstou a que já no ano seguinte aparecesse uma edição
alemã, de cuja tradução se encarregara o Professor Wilhelm Storck,
consagrado lusófilo, que também traduzira Camões. Foi para a edição
alemã, e a pedido de Storck, que redigi a famosa “Carta
Autobiográfica”.
Ao enviar um exemplar a Wilhelm Storck, por intermédio de
Carolina Michaelis, recebi em troca uma das maiores alegrias de toda
a minha vida literária – a tradução alemã dos “Sonetos”.
Quando enviei a Storck um exemplar dos meus “Sonetos” foi
simplesmente como um testemunho daquela gratidão que todo o
escritor português devia ao admirável intérprete do nosso grande lírico.
Agora que o tradutor de Camões apreciasse os meus versos a ponto de
os julgar dignos de serem transcritos, com a mesma pena que
transcrevera os de Camões, confesso que me obrigou a invocar toda a
humildade de que era capaz para não me tornar em extremo orgulhoso.
Outras traduções foram feitas para italiano, espanhol e francês,
das quais foi incluída uma antologia na 2ª edição portuguesa dada à luz
em 1890.
Assim se encerra o meu ciclo poético, com a promessa de que as
ideias filosóficas nele expressas iriam ser desenvolvidas largamente e
em boa prosa.
De facto, foi nas “Tendências Gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX” que viria a expor, com carácter mais metódico
e definitivo, a minha filosofia, interpretando aí a minha evolução
intelectual mais como um diálogo com as mais representativas figuras
do pensamento contemporâneo, embora mantendo a minha autonomia
própria.
Este ensaio, escrito para mostrar o meu afecto ao amigo Eça de
Queirós, director da “Revista de Portugal”, começou a ser publicado
em Janeiro de 1890, prosseguindo em Fevereiro e Março, e eu, que em
princípio pensava escrever apenas uma coisa sumária, produzi um
estudo que, depois de devidamente ampliado, daria um livro.
Carlos Jaca 39
No ano de 1890, situa-se igualmente a minha última
intervenção pública, desta vez no campo político, na sequência do
“Ultimatum Inglês” de 11 de Janeiro, que obriga o governo português
a ceder o “hinterland” entre
Angola e Moçambique.
Com o governo
totalmente desautorizado,
respirava-se um clima de
quase revolução interna .
Surgiu então no Porto a
ideia de se constituir uma
Liga – A Liga Patriótica do
Norte – que erguesse uma
bandeira congregadora no
meio da desordem, e
aproveitasse o momento de
fervor patriótico para fazer
sair o País do marasmo em
que vivia.
Para liderar a Liga a comissão executiva foi a Vila do Conde
convidar-me. Diziam que não havia outro homem, e desde que me
provaram que eu era o “único possível”, entendi que não podia recusar-
me.
Ficou estabelecido que a Liga viveria fora da acção dos partidos
e seria um órgão da opinião pública pugnando por reformas
económicas, sociais e administrativas, pela moralização dos
poderes públicos, actuando como uma força moral e exigindo dos
governos, quaisquer que eles fossem, a realização dessas reformas.
O nosso maior inimigo não era o inglês; éramos nós mesmos. Declamar
contra a Inglaterra era fácil; mudarmos os defeitos gravíssimos da
nossa vida nacional seria mais difícil.
Carlos Jaca 40
Em torno da Liga começaram, quase desde o início, a moverem-se
intrigas políticas, logo que os vários líderes políticos pressentiram que
ela poderia chegar a ser uma força contrária aos seus próprios
interesses.
Não querendo desvirtuar o pensamento inicial que presidira à sua
fundação, nem torná-la instrumento de ambições pessoais, apresentei a
minha demissão de presidente da Liga em fins de Abril.
Eu que fora arrancado ao meu isolamento voluntário, por
entusiasmo patriótico que visava o ressurgimento nacional, regressei
a Vila do Conde decepcionado com aquilo que terá sido a minha
última ilusão.
A este propósito, permitam-me citar aqui algumas palavras dum
homem que, embora não tivesse sido meu contemporâneo, parece ter-
me conhecido bem – Jorge de Sena: “Se por vezes se sentia deprimido
ou desiludido, e se afastava da vida pública a que as suas qualidades e
a sua generosidade o levavam a envolver-se, isso terá sido porque lhe
faltavam o cinismo, a mesquinhês e a capacidade de mentir, que são
parte da vida política, e porque era evidentemente demasiado exigente,
moralmente e intelectualmente, para um país que saboreava a sua paz
liberal, após muitos anos de guerras civis, e a mantinha ao preço de
trair quaisquer ideais de democracia autêntica”.
O Suicídio
Após pedir a demissão da Liga regressei a Vila do Conde, de onde,
penso, não deveria ter saído nunca. Estava, porém, findo o retiro
vilacondense. Em Maio de 1891 desfazia a minha casa de Vila do
Conde e jantava no “Tavares” com os “Vencidos da Vida” – todos
vencedores, menos eu.
Surge então o projecto de me fixar definitivamente em S. Miguel,
juntamente com as minhas filhas adoptivas que, entretanto, internara
nas Doroteias do Porto.
Foi em 1887, durante a visita à minha ilha natal, que teria
resolvido mudar para aí a minha residência. Tive um certo prazer em
Carlos Jaca 41
tornar a ver a minha terra, ainda que não sei porquê, e talvez só por
instinto, pois deve haver uma relação profunda entre o homem e a
terra que o vira nascer. Ou seria talvez que este isolamento num canto
do mundo, que era já uma meia morte ou uma morte antecipada
conviria muito ao humor em que há muito me sentia.
Depois de abandonar o projecto de me fixar em Lisboa, parti para
S. Miguel a 5 de Junho de 1891.
Agora acrescia ao desejo que tinha de preparar um ambiente
social para as minhas “pupilas”, a náusea que me causara a última
experiência em Portugal. Também alimentava outra esperança: reduzir
a prosa a filosofia que incompletamente expusera na última parte
dos meus “Sonetos” e que apenas desenvolvera nas “Tendências
Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX”.
Mas, em meados de Agosto, o meu estado de saúde agravou-se
em parte devido à irregularidade do clima micaelense, mas muito
principalmente a desinteligências familiares motivadas pela presença
das filhas adoptivas que alguns membros da minha família pareciam Ia
vivendo mais exaltado do que nunca, chegando a dizer, sem rebuço,
para meu primo Sebastião Arruda: “Quando a vida não serve para
nada, nem para nós, nem para os outros, atira-se fora como um
fardo inútil”.
Carlos Jaca 42
Assim fiz. Era uma tentação antiga: duas vezes o Oliveira
Martins me desarmou, e uma no instante em que me ia matar. E então
havia um motivo de mulher.
A 11 de Setembro de 1891, vestido excepcionalmente de preto
entrei num estabelecimento e, pretextando que morava no campo e
precisava de um revólver para afugentar algum malfeitor, comprei um
revólver que o próprio caixeiro me ensinou a manejar.
Quanto às minhas filhas adoptivas procurei, antecipadamente,
preparar-lhes o futuro sem ter recorrido a familiares.
Ao anoitecer, sentado num banco do Campo de S. Francisco,
junto ao muro que fecha a cerca do Convento da Esperança,
precisamente no local onde em relevo se encontra uma âncora e a
palavra Esperança, suicidei-me com dois tiros, sendo sepultado no dia
seguinte no cemitério de S. Joaquim de Ponta Delgada.
“Só então, e não quando escreveu o soneto que o exprime, se teria
realizado o sonho daquele paradoxal espírito, que, aspirando a vida
inteira à serenidade dos místicos, toda a agitou num permanente esforço,
de que ela contribuísse para a felicidade dos seus semelhantes, na
justiça e na liberdade. Só então se encheram de verdade os versos
admiráveis”:
Carlos Jaca 43
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou, afinal, meu coração;
Do palácio encantado da ilusão
Desci, a passo e passo, a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo, vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração inquieto,
Dorme, nas mãos de Deus, eternamente!
Carlos Jaca 44
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