“fazer dos mortos gente de hoje”

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Carlos Jaca 1 “Fazer dos Mortos Gente de Hoje” Antero de Quental na 1ª Pessoa... por Carlos Jaca DIÁRIO DO MINHO 28/01/04, 04/02/04 e 11/02/04 “...Legou à tradição, em alguns versos imortais, um exemplo de vida sincera e o desengano da sua morte. Tanto basta para que ele se nos imponha como sugestivo tema de estudo...”. Prof. Lúcio Craveiro da Silva, in “Brotéria”, vol. 24, 1937. Antero de Quental é, incontestavelmente, uma das maiores figuras da nossa cultura. A par do poeta notável que foi, criador dos mais belos sonetos da poesia portuguesa, Antero revelou-se um pensador emérito e, essencialmente, uma consciência de rara lucidez perante os problemas do seu tempo. Foi ele um dos grandes impulsionadores das célebres Conferências do Casino e um dos nomes mais destacados da brilhante Geração de 1870. Evidenciou na primeira fase da sua vida qualidades de vigoroso polemista, através de vários manifestos, entre eles a famosa carta “Bom Senso e Bom Gosto” dirigida a António Feliciano de Castilho, em que reage contra o compadrio literário e a estagnação da poesia ultra-romântica. Os últimos anos de Antero foram repassados de amargor e sofrimento moral, que culminaram com o trágico desenlace de 1891. Sugeriu o meu querido amigo Alberto Sampaio, e ele já o fizera há tempos, que me dispusesse a “falar” ao “Suplemento Cultural” do “Diário do Minho”, a fim de divulgar algumas informações de carácter biográfico e bibliográfico. Irrecusável!

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Page 1: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 1

“Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Antero de Quental na 1ª Pessoa...

por Carlos Jaca

DIÁRIO DO MINHO 28/01/04, 04/02/04 e 11/02/04

“...Legou à tradição, em alguns versos imortais, um exemplo de

vida sincera e o desengano da sua morte. Tanto basta para que ele se

nos imponha como sugestivo tema de estudo...”.

Prof. Lúcio Craveiro da Silva, in “Brotéria”, vol. 24, 1937.

Antero de Quental é, incontestavelmente, uma das maiores

figuras da nossa cultura. A par do poeta notável que foi, criador dos mais

belos sonetos da poesia portuguesa, Antero revelou-se um pensador

emérito e, essencialmente, uma consciência de rara lucidez perante os

problemas do seu tempo. Foi ele um dos grandes impulsionadores das

célebres Conferências do Casino e um dos nomes mais destacados da

brilhante Geração de 1870. Evidenciou na primeira fase da sua vida

qualidades de vigoroso polemista, através de vários manifestos, entre

eles a famosa carta “Bom Senso e Bom Gosto” dirigida a António

Feliciano de Castilho, em que reage contra o compadrio literário e a

estagnação da poesia ultra-romântica. Os últimos anos de Antero foram

repassados de amargor e sofrimento moral, que culminaram com o trágico

desenlace de 1891.

Sugeriu o meu querido amigo Alberto Sampaio, e ele já o fizera

há tempos, que me dispusesse a “falar” ao “Suplemento Cultural” do

“Diário do Minho”, a fim de divulgar algumas informações de carácter

biográfico e bibliográfico. Irrecusável!

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Assim, não deixará de ser também uma boa oportunidade para

expor pontos e situações que gostaria de ver melhor esclarecidos.

Embora, por motivos óbvios, não vá proceder a uma análise à minha

obra literária, seria impossível não ser objecto de algumas referências.

Para esta retrospectiva, além da minha memória recorri,

frequentemente, como é bom de ver, à “Carta Autobiográfica” que

acompanhou a edição alemã dos “Sonetos Completos”, dirigida ao

tradutor e lusófilo Prof. Wilhelm Stock, e que foi publicada pela

primeira vez em língua portuguesa no ”Diário dos Açores”, em 20 de

Novembro de 1887; ao “Antero de Quental – In Memoriam”,

publicação de 1896, que pretendia honrar

a minha memória com o testemunho de

variadíssimas individualidades, entre as

quais recordo: Alberto Sampaio, Oliveira

Martins, Eça de Queirós, Jaime Batalha

Reis, Guerra Junqueiro, os irmãos e meus

conterrâneos Faria e Maia, Salomão

Sáraga, Manuel de Arriaga, João de Deus,

Luís de Magalhães Lima, Sousa Martins,

Filomeno da Câmara, Carolina Michaelis,

Joaquim de Vasconcelos e outros; recordo

ainda que no Suplemento de Cultura do

“Diário do Minho”, de 10 de Setembro de 2003, o Alberto Sampaio

evocou aspectos muito significativos da minha vida, bem como alguns

estudiosos que, depois da minha morte, se interessaram por tudo

quanto me dizia respeito, nomeadamente, aqueles que poderei chamar

“anterianos”; recorri também a volumes de “Cartas”, salientando

neste caso as 29, entre muitas, dirigidas a Oliveira Martins e

publicadas em 1996 pelo Professor Lúcio Craveiro da Silva e sob o

título “Novas Cartas Inéditas de Antero de Quental”.

Independentemente do seu conteúdo seria interessante contar-vos, o

que aqui e agora não é possível, a trajectória, peripécias, desse conjunto

de “Cartas” desde que saiu das mãos de D. Vitória de Mascarenhas

Barbosa, esposa de Oliveira Martins, até ao seu actual paradeiro, o

Antero de Quental, por Columbano

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Carlos Jaca 3

“Arquivo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus”. Remeto,

os eventuais interessados, para a referida obra.

Nascimento. Infância e Adolescência.

Conforme reza o “Livro de Baptizados”, n.º 35, a folhas 62, nasci

no dia 18 do mês de Abril de 1842 em Ponta Delgada, Ilha de S.

Miguel, e fui baptizado em 2 de Maio do mesmo ano na Matriz de S.

Sebastião pelo padre da referida freguesia António Francisco de

Rezende, sendo meus pais, Fernando de Quental, açoreano, e Ana

Guilhermina da Maia, natural de Setúbal.

Eu era o quarto de uma prole de sete filhos, dos quais vingariam

apenas cinco. Todos nascidos em Ponta Delgada, excepto o mais velho,

André, natural de Tomar. Este meu irmão veio a falecer de loucura, aos

52 anos, depois de um longo internamento no Hospital de Rilhafoles,

hoje Miguel Bombarda. Das minhas três irmãs, Maria Ermelinda,

Matilde e Ana Guilhermina, esta foi a única que mostrou interesse por

assuntos literários. Já depois da minha morte, veio a publicar na

imprensa de Lisboa e do Porto traduções do escritor Richard Garnett,

que foram reproduzidas na Revista “Nova Alvorada”, em Dezembro de

1896 e de Maio de 1897.

Filhos de aristocratas dos Açores, descendíamos de uma das mais

antigas famílias dos seus colonizadores, família de donatários,

nobilitada pela múltipla herança de místicos e poetas, professores

universitários, magistrados e militares.

Meu avô, André da Ponte Quental e Câmara, militar e poeta,

amigo de Bocage e seu companheiro na perigosa boémia de heterodoxas

audácias, foi signatário da Constituição de 1822 como deputado por

S. Miguel.

Meu pai, Fernando de Quental, foi um dos 7500 “bravos” que

vieram desembarcar no Mindelo (Julho de 1832) durante as

campanhas liberais, Levado pelos ideais revolucionários, mandou certo

dia picar a pedra de armas da sua casa, “ajudando com as próprias

mãos”.

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Carlos Jaca 4

Foram também meus antepassados, o Padre Simão de Novais,

fundador na Ilha Terceira do Convento da Praia e o Venerável

Bartolomeu do Quental (1626-1698), fundador da Congregação do

Oratório e autor de vários Sermões e Meditações. Um retrato deste meu

antepassado foi casualmente encontrado por Camilo Castelo Branco

que mo ofereceu. Diz o Eça (“Antero – In Memoriam”) que esse retrato

podia passar pelo meu próprio entre as pessoas que mais me

conheciam, tão assombrosa era a parecença: as mesmas linhas do

rosto, a mesma carnação e cor dos cabelos, o mesmo olhar de quem não

vê as coisas triviais.

De uns e de outros me viria a alternância, ou conflito, entre as

místicas tendências de contemplativo e os impulsos ardentes de

doutrinador da cultura e apóstolo de reformas político-sociais.

Não existem muitos elementos para uma reconstituição de toda a

minha vida no período da infância, todavia retive na memória alguns

episódios de grande interesse e, também, familiares e amigos meus

poderão relembrar aspectos, situações, acontecimentos, relativos a esse

período.

Passei toda a infância no convívio estreito de minha mãe, que

carinhosamente me insuflava o ardor místico de que era possuidora. O

mar, o vento que me fustigava a pele macia e os fenómenos vulcânicos

que frequentemente me era dado presenciar, estarrecido, mais

contribuíam para me fazer meditar na omnipotência e no mistério de

Deus; e, ao mesmo tempo, a minha sensibilidade impressionava-se

profundamente, e tanto que numa ocasião, apenas tinha quatro anos,

fora encontrado no vão de uma porta a rezar, depois de um pequeno

tremor de terra.

De facto, fui orientado no sentido de uma educação católica e

tradicional. Outra não podia ter recebido de minha mãe. Todos os que

dela falam aludem aos seus sentimentos religiosos muito profundos,

submetendo os filhos à disciplina católica.

Teria os meus dez anos, quando pela primeira vez ouvi recitar a

ode “Deus” de Alexandre Herculano, a um padre que me ensinava

rudimentos de gramática latina. Não ouso dizer que tivesse entendido.

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Carlos Jaca 5

E, entretanto, profunda foi a impressão que recebi, como a revelação

de um mundo novo e superior, a revelação do ideal religioso.

Escapava-me o sentido de muitos conceitos, a significação de muitas

palavras: mas pelo tom geral de sublimidade, pela tensão constante de

sentimento grande e simples, aqueles versos revolviam-me, traziam-me

as lágrimas aos olhos, como se me introduzissem, embalado numa onda

de poderosa harmonia, na região das coisas transcendentes. Daí por

diante, interrompia muitas vezes a repetição dos casos gramaticais para

pedir ao meu paciente mentor nova recitação daqueles versos. A minha

nascente intuição do ideal religioso achava uma expressão reveladora

na poesia grave e penetrante daquele hino sacro.

Não foi só para a poesia que a minha alma se abriu nesse

momento. É mais natural que se haja aberto para o próprio sentimento

religioso. Educado por uma mãe extremamente católica, adentro de

uma família em extremo zelosa das prerrogativas tradicionais, eu não

mais fizera até aí que aceitar a disciplina de um credo que se me

impunha mais como hábito do que como identificação com os mistérios

teológicos. É significativa a impressão que me causa a ode de

Herculano, não por ser poesia, mas por ser poesia impregnada de um

profundo sentimento da transcendência das coisas religiosas. E o

certo é que foi depois disso, e ainda sob a influência dessa ode, que eu

escrevi as minhas primeiras composições poéticas, umas quadras de

amor, de sabor popular, durante uma “alegre festa campesina”.

Por meados do século XIX era a nobre cidade de Ponta Delgada

precioso espécime das antigas povoações mais bisonhas do nosso

Reino. Apartada do Continente por duzentas e cinquenta léguas de

Oceano, espreguiçava-se à sombra das suas laranjeiras e ao

murmurinho do mar. Tinha esquecido o tempo e nada lho recordava.

A verdadeira e principal causa da apatia da cidade era a política…

O que essa ignóbil velha do soalheiro ali tinha conseguido era indizível.

Era um horror. “Setembristas” e “Cartistas”! Desunidas as famílias,

malquistados os antigos amigos, morta a convivência! Havia muitos que

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se retraíam e para quem a abstenção era costume; mas esse mesmo

retraimento aumentava o silêncio.

Esta apatia cessa em 1848-50, durante a minha infância, com os

fortes impulsos dados por António Feliciano de Castilho à vida de S.

Miguel, despertando em todas as classes um largo interesse pelas

letras, organizando sociedades literárias e de instrução, em volta da

qual se juntaram todos os melhores valores intelectuais da Ilha,

esquecidas as paixões políticas que os separavam.

Efectivamente, em 1847, Feliciano de Castilho, nesse tempo

considerado o valor máximo da poesia nacional e também dedicado a

questões de ensino, tinha-se acolhido, por motivos políticos, a S.

Miguel, onde se relacionou com muitas das principais famílias daqui,

sendo igualmente muito bem recebido pelos Quentais, de quem era um

grande amigo familiar.

Publicaram-se então muitos jornais e revistas literárias, com

poesias, romances, contos, etc., da mocidade da época.

Logo na infância, vivi sob o influxo deste movimento de interesse

literário criado por Castilho em S. Miguel e tanto mais fortemente o

devo ter sofrido quanto, morando em frente do poeta e sendo grande

amigo do filho, em casa dele vivia na maior intimidade.

Na mesma época assisti ainda a um grande movimento a favor da

instrução popular, dirigido por Castilho, que nesse sentido organizou

uma cruzada em que tomou parte toda a sociedade micaelense. Iniciado

com a fundação da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes, esse

movimento de que meu tio, Filipe de Quental, foi um dos maiores

propagandistas, provocou uma verdadeira revolução em S. Miguel.

Hoje não tenho dúvida em afirmar, ter sido deste meio social

micaelense que ressaltaram as três influências mais fortes que

marcaram para sempre a minha vida: o culto das Letras,

especialmente da poesia, no ambiente criado por Castilho; a paixão

política, muito viva em toda a sociedade micaelense; e o interesse pelas

classes populares, primeira semente da ideologia socialista que logo

na mocidade inspiraria muitos dos meus escritos.

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Dos cinco aos oito anos vivi em casa de Castilho e com o filho

Júlio, mais ou menos da minha idade; igualmente íntimas foram as

minhas relações, no período da infância, com Caetano de Andrade

Albuquerque e Mariano Machado de Faria e Maia, com os irmãos

Vicente, Francisco e João Machado de Faria e Maia, com José Bensaúde

e Augusto Bicudo Correia, com meus primos Sebastião de Arruda da

Costa e Augusto Arruda Quental.

Frequentei, também, uma escola particular, o Liceu Açoreano,

que Pedro Alcântara Leite, de Lisboa, estabeleceu em Ponta Delgada.

Ainda antes dos oito frequentei a aula de inglês de Mr. Rendall,

onde tive por condiscípulos o meu irmão André, Júlio de Castilho e os

Faria e Maia, depois meus companheiros de Coimbra.

No período em que residi na Ilha recebi as primeiras luzes de

latim, assistindo ao curso desta língua, segundo o sistema de Lemare,

que nessa época o poeta regia para os filhos.

Ali não se manuseavam somente os livros da Antiga Roma;

vinham trazidos, a propósito de qualquer coisa, muitos outros

conhecimentos curiosos, de literatura latina, de literatura portuguesa e

outras. Tudo servia de pretexto e ponto de partida.

Muito cedo abandonei a Ilha: tinha apenas dez anos, quando na

companhia de minha mãe, parti de S. Miguel para Lisboa, a frequentar

o Colégio do Pórtico, à Lapa.

Só durante o ano lectivo de 1852-53 frequentei o Colégio do

Pórtico, que foi encerrado em Abril de 1853.Durante os meses passados

no Colégio voltei a viver num ambiente em que predominavam

interesses literários, pois em casa de Castilho, “Pontifex Maximus”

das letras pátrias, realizavam-se saraus em que participavam oradores,

poetas e músicos da roda ultra-romântica.

Esta breve passagem contribuiu, no entanto, para reforçar as

minhas inclinações literárias.

De regresso a Ponta Delgada, em Junho de 1853, continuei os

meus estudos e no liceu desta cidade, a 7 de Julho de 1855, fiz o exame

de instrução primária.

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A 20 de Outubro desse mesmo ano embarcava para Lisboa, onde

fiquei a estudar no Colégio Escola Académica e só no ano seguinte,

depois de Fevereiro, segui para Coimbra.

Aqui frequentei durante dois anos, como aluno interno, o Colégio

de S.Bento dirigido pelo Padre António Xavier Pinto Homem,

completando os estudos liceais e escrevendo os primeiros versos, hoje

incorporados nos “Raios de Extinta Luz”. É datada de 1857 a minha

primeira composição em prosa, “A Pátria – Fragmento de um livro”.

Antes de terminar este ciclo da minha vida, não podia deixar de

referir e tentar esclarecer uma grave calúnia da responsabilidade, ou

irresponsabilidade, do seu autor.

Teófilo Braga diz que durante o meu período de internato no

Colégio de S. Bento, eu teria contraído o primeiro abalo nervoso, que

viria a tomar a intensidade de uma nevrose que me teria perturbado

toda a minha vida. E mais: acrescenta, ainda, que fechado no Colégio

durante as férias escolares com outros alunos de províncias distantes,

me entregava deploravelmente à perversão sexual.

Reparem! Só Teófilo Braga aludia a este abalo nervoso e a esta

perversão; nenhum dos meus outros contemporâneos lhes fez a mais

leve referência.

A notícia do abalo nervoso nesta época

não merece confiança, porque em outra

passagem do mesmo ensaio diz que “a

primeira crise de Antero se manifestou

em 1864, ao terminar a sua vida de

estudante”.

Quanto às perversões sexuais, a

afirmação deve ser considerada

gratuita e até mesmo de má fé. Num

assunto desta natureza, qualquer crédito

que devesse merecer, teria de

fundamentar-se numa convivência muito

íntima entre nós – convivência que nunca existiu. Durante os anos que

passei no Colégio de S. Bento (1856-1858), Teófilo vivia em S. Miguel,

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donde só em Março de 1861, partiu para Coimbra. Nada, por isso, pode

ter observado dos hábitos da minha vida naquela época.

Também não tem sentido a informação sobre o internato no

Colégio durante as férias escolares. Eu tinha em Coimbra o meu tio,

padrinho e grande amigo Filipe de Quental, e com ele passava fora do

Colégio os períodos de férias, em sua casa ou na Figueira da Foz.

Em 1872 dá-se na minha vida um facto doloroso: o rompimento

com Teófilo Braga. Não que entre nós tivesse havido uma identificação

profunda e uma grande amizade. Naturais da mesma terra, do nosso

encontro em Coimbra resultou um entendimento superficial.

Acontece que, em Maio de 1872, publiquei em folhetim do

“Primeiro de Janeiro” o meu mais importante texto de crítica histórico-

literária, “Considerações sobre a Filosofia da História Literária

Portuguesa”. Daí resulta o corte de relações com Teófilo Braga e uma

grande polémica que tornaria de então para o futuro, impossível

qualquer aproximação e que correspondia a um contraste

temperamental, social e doutrinário.

São bem conhecidas as insídias do autor das “Modernas Ideias”

em relação à minha pessoa.

Sobre esta polémica, julgo que deixei os elementos suficientes

para que cada qual formule o seu juízo.

“Na encantada e quase fantástica Coimbra”

Aos dezasseis anos deixei o Colégio de S. Bento, nos Arcos do

Jardim, e cruzei pela primeira vez a Porta Férrea (sem cadeados, nem

correntes) em 28 de Setembro de 1858 a fim de requerer a matrícula

no 1º ano de Direito.

Muito naturalmente, fui residir para a casa de meu tio Filipe que

concluía então o seu curso de Medicina e não tardaria a reger a cadeira.

De princípio instalei-me na Rua das Covas e em seguida no Largo da Sé

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Velha. Mais tarde, e já há tempos foi referido, pela amizade que nos

unia – éramos como irmãos – passei a residir em casa dos Sampaios, do

Zé e do Alberto, na Rua da Trindade.

Nos primeiros tempos só a minha figura de homem alto e magro,

de barba crespa e loira, revolta e farta cabeleira deixando apenas a

descoberto um dedo de testa, me torna conhecido entre os estudantes.

Na intimidade das ceias, no “Garrano” ou nas “Camelas”, boémia das

noitadas pelo Penedo da Saudade, Vale do Inferno, estrada de Condeixa

e pela Mata do Buçaco, os companheiros chamavam-me o “Marrafa”.

O facto importante da minha vida, durante os anos de Coimbra, e

provavelmente o mais decisivo dele, foi a espécie de revolução

intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança

arrancada ao viver quase patriarcal duma província remota e imersa no

seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação

intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as

encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda

a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e

incerteza, tanto mais pungente quanto, espírito naturalmente religioso,

tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma

regra conhecida. Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito

partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a

primeira em Portugal que saiu decididamente da velha estrada da

tradição.

Se a isto juntar a imaginação ardente com que em excesso me

dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas próprias da primeira

mocidade, a turbulência e a petulância, os fogachos e os abatimentos

de um temperamento meridional, muito boa fé e muito boa vontade,

mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das

qualidades e defeitos com que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo

do pensamento e da poesia.

Coimbra de meados do século passado era uma cidade quase

medieval, por dentro e por fora, onde imperava, com o peso austero da

sua tradição, a velha Universidade. Por aquela fieira foram passando,

durante séculos, as sucessivas gerações portuguesas, e sempre os

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alunos pareceram melhores que os mestres, sempre a mocidade deu

nela os primeiros gritos de alerta, a primeira palavra do moderno,

contra a inércia soturna das instituições anacrónicas. A Camões crê-se

que a Universidade lhe chamou o pior estudante do seu tempo, e eu não

passei, certamente, para o reitor Sousa Pinto, de um “mero burro”.

Que era de facto, a Coimbra de então?

Ora bem! Neste mesmo espaço de cultura, já o Sampaio

caracterizou, de forma exemplar a vida universitária do nosso tempo.

No entanto, não resisto, e por momentos dar a palavra ao Eça que, de

facto, é quem melhor “pinta” o “quadro”:

… “negra e dura como uma muralha, pesando, dando sobre as almas,

estava a Universidade.

Por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces ares, do Salgueiral

até Celas, se erguia ela, com as suas formas diferentes de comprimir,

escurecer as almas: o seu autoritarismo, anulando toda a liberdade e

resistência moral; o seu favoritismo, deprimindo, acostumando o

homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha; o seu literatismo,

representado na horrenda “sebenta”, na exigência do “ipsis verbis””,

para quem toda a criação intelectual é daninha; o seu foro tão

anacrónico …

A Universidade que em todas as nações é para os estudantes uma

“Alma Mater”, a mãe criadora, por quem sempre se conserva através

da vida um amor filial, era para nós uma madrasta amarga,

carrancuda, rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava

libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia,

pela empenhoca, pela sujeição à “sebenta”, esse grau que o Estado, seu

cúmplice, tornava a chave das carreiras.

No meio de tal Universidade, geração como a nossa só podia ter

uma atitude – a de permanente rebelião. Com efeito, em quatro anos,

fizemos, se bem me recordo, três revoluções, com todos os seus lances

clássicos, Manifestos ao País, pedradas e vozearias, uma pistola

ferrugenta debaixo de cada capa, e as imagens dos reitores queimadas

entre danças selváticas. A Universidade era com efeito uma grande

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escola de revolução: e pela experiência da sua tirania aprendíamos a

detestar todos os tiranos, a irmanar com todos os escravos.

De sorte que a Universidade, ultra-conservadora e ultra-católica,

era não só uma escola de revolução política, mas uma escola de

impiedade moral.”

Efectivamente, transposta a Porta Férrea, percorridos os Gerais,

abertas as portas das aulas, o que a mocidade encontrava não era o que

fogosamente se dava a procurar. Ali, inalterável, ensinava-se uma

ciência formal, escolástica, mnemónica, que tinha por detrás de si a

autoridade do lente e do foro académico.

Era esta a Coimbra para onde eu fui viver e na qual iria

desabrochar, por contradição a formosa luta pela conquista do

pensamento moderno.

Já agora, e ainda a este propósito, permitam-me revelar o

seguinte: anos depois de ter saído de Coimbra, numa carta dirigida ao

Oliveira Martins, datada de 2 de Julho de 1875, e incluída no lote

publicado nas já referidas “Novas Cartas Inéditas de Antero de

Quental”, escrevia ter assistido na Universidade a umas teses, coisa

que me tinha divertido bastante, e mais, “ainda um acto (exame) de

Direito, em que se argumentava sobre o poder moderador! Que tola

escolástica que é o tal direito público oficial! E que escola de

imbecilidade ilustrada é a tal Universidade! Cada vez me convenço mais

que é ela uma das novas pestes mais danosas, ninho de retóricos,

armazém de argúcias ocas, alambique de palavreado, onde por conta da

Nação se destila e falsifica a inteligência da mocidade. Dê V. (Oliveira

Martins) graças ao seu destino que o afastou daquele contágio” …

Estas afirmações mereceram um comentário do ilustre Professor

Lúcio Craveiro da Silva, e muito justamente, quando ajuíza que a

Universidade “cria igualmente um ambiente sugestivo e formador de

pesquisa e de diálogo e de horizontes inovadores. Esses horizontes que

se estendem ao plano filosófico, científico, literário, social e artístico

reflectiram-se fecundamente em Antero que nunca mais o abandonarão

e hão-de permanecer sempre presentes na sua vida … De facto, foi no

ambiente cultural da Universidade que ele encontrou a sua vocação de

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poeta e filósofo e o chefe da sua geração voltada para as novas correntes

europeias e preocupado em desencadear “uma revolução” que

transformasse e enriquecesse a nossa cultura. E conseguiu-o

largamente … Enfim, ali começou a ser Poeta e Pensador” …

Sem dúvida! De facto, foi nesse ambiente animado pelo espírito de

rebeldia, que nasceram o poeta, o polemista, o político e que me fiz

homem. Aí iria encontrar, nos meus companheiros de luta, grande parte

dos homens que seriam pela vida fora os meus amigos – entre outros,

Alberto Sampaio, Eça de Queirós, Germano Meireles, Luís de

Magalhães, Manuel de Arriaga, João de Deus, Santos Valente, José

Falcão, Guerra Junqueiro, Anselmo de Andrade. O meu querido

amigo Joaquim Pedro, o Oliveira Martins, vim a conhecê-lo anos

depois, em Lisboa, no “Cenáculo”.

Logo durante o meu

primeiro ano da

Universidade apareci

envolvido num incidente da

vida académica, origem de um processo em que fui condenado pelo

Conselho de Decanos.

Ao contrário do que relata o processo, não era “trupista”, não

pertencia à facção estudantil que aplicava a “praxe” espancando os

caloiros e rapando-lhes o cabelo.

Terei participado num ou noutro caso isolado, situações

meramente excepcionais. Rapaziadas!

O certo, é que o meu nome figura num processo académico,

instaurado pelo Reitor Basílio de Sousa Pinto, contra os estudantes

que tinham participado numa perseguição praxista, na Rua do

Loureiro, ao aluno de Preparatórios António Pereira Caldas – corte de

O grupo dos cinco . Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro

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cabelo à tesourada, mocadas, gritaria, etc. – que se rebelara contra o

corte de cabelo da “praxe”.

Conclusão: o Conselho de Decanos proferiu o seu acórdão dando

as acusações como provadas; e, considerando que “não deviam ficar

impunes tais factos, atentatórios da boa disciplina, e que revelam esta

degradação de costumes e menos respeito pela religião do país, por

serem praticados na ocasião da Semana Santa”, condenou o Zé

Sampaio a expulsão da Universidade por dois anos e o António

Berrance a expulsão por um ano; o Alberto Sampaio, eu, o Bernardo

Teixeira Cardoso e o Martinho José Raposo a oito dias de prisão e a

repreensão pelo Reitor na presença do Secretário da Universidade. O

que faria hoje o Reitor Sousa Pinto se há sombra das praxes se

praticassem alguns actos que, aqui, me recuso a explicitar, atentatórios

da dignidade do aluno, da sua integridade física e moral? Certamente

nada faria, pelo simples facto da impossibilidade de tais práticas. Um

ou outro desvio, uma ou outra irreverência nunca atingiram, nem de

perto nem de longe, os exageros e abusos que, embora sendo excepção,

não deixam de constituir uma realidade, triste realidade. Adiante.

Apenso ao processo registava-se que Antero Tarquínio do

Quental, estudante do 1º ano jurídico era “reputado muito inferior

pelos mestres”…

A reputação de “estudante inferior” mantive-a através de toda a

formatura, porque tudo fiz em Coimbra – excepto estudar para as aulas.

Pertencia à grande caravana dos cábulas, dos que não abrem

compêndio, apesar de terem talento; mostrava algum desprezo pelos

“ursos” ou estudantes premiados, nomeadamente os saídos da

categoria dos “capachos”, isto é, daqueles indivíduos cortejadores e

bajuladores dos lentes para lhes caírem nas boas graças. Cheguei ao

fim da formatura sem ter trocado nunca uma palavra com os meus

mestres. Apenas frequentava as aulas de Direito com a assiduidade

indispensável para não perder o ano.

De facto, os trabalhos universitários não me ocuparam muito o

espírito. A atenção e a inteligência trazia-as presas noutros interesses,

bem mais vivos e actuais.

Page 15: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 15

Recorrendo à já citada “Carta Autobiográfica” que acompanhou

a tradução dos “Sonetos Completos”

para alemão, dizia: “cursei entre 1858 e

1864 a Universidade de Coimbra, sendo

por ela bacharel em Direito. Confesso,

porém, que não foi o estudo do Direito

que me interessou e absorveu durante

aqueles anos, tendo sido e ficado um

insignificante legista”.

Era um “bicho” ágil e vivo demais

para me deixar prender nas malhas

daquela teia que a laboriosa ciência

oficial, havia séculos, vinha tecendo.

Animava-me uma independência rebelde

de espírito, e o amor do ar livre, da amplitude, levava-me a procurar

horizontes mais largos.

Metia-me a pé, arrastando amigos, em passeios longos que nos

levavam pelos arredores de Coimbra, Senhor da Serra, Lousã, Mata do

Buçaco, Figueira da Foz. Eu tinha os pés enormes de andarilho, de

papa-léguas. Manuel de Arriaga conta que, quando me retirei de

Coimbra, além duns livros, leguei-lhes as minhas botas ferradas. Para

as usarem, dizia ele, “metíamos-lhes dentro três e quatro folhas de

papel de embrulho e o pé ainda ficava folgado”.

Se, de facto, enquanto estudante, não consegui, nem procurei

nível escolar digno de registo, também não vivi a boémia de Coimbra a

tempo inteiro.

Por alguma razão o Eça me ergueu a chefe da nossa geração:

“Nesse tempo ele era em Coimbra, e nos domínios da inteligência,

o “Príncipe da Mocidade”. E com razão, porque ninguém resumia com

mais brilho os defeitos e as qualidades daquela geração rebelde, a todo

o ensino tradicional, e que penetrava no mundo do pensamento com

audácia, inventividade, fumegante imaginação amorosa, fé, impaciência

de todo o método e uma energia arquejante que a cada encruzilhada

cansava… Antero resumia com desusado brilho, o tipo do académico

Page 16: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 16

revolucionário e racionalista: e daí começou a sua popularidade – e a

sua lenda.

É certo que ele se afirmou sempre como o “Grã-Capitão” das

nossas revoltas … Já ele era, além da melhor ideia da Academia, o seu

melhor verbo … Antero não era só um chefe – mas um Messias. Tudo

nele o marcava para essa missão, com um relevo cativante: até a

bondade iniciadora do seu sorriso, até aquela grenha cor de ouro fulvo,

que flamejava por cima das multidões. E havia já, com efeito, hábitos

messiânicos nesse bando de discípulos que o acompanhavam através

de Coimbra, de capa solta, enlevados na sua palavra. Essa luminosa

palavra de Antero era uma das suas magníficas forças de atracção.

Ninguém jamais possuía um verbo de tanta solidez, harmonia, finura e

brilho”…

Falou o Eça, pois! Porém … se desta espécie de revolução fui eu o

porta-estandarte, com o que não me desvaneço sobremaneira, também

é facto que não me arrependo.

No ano lectivo de 1861-62 passei a ter quarto, cama e mesa na

casa onde morava José e Alberto da Cunha Sampaio, que nesse ano

residiam na Rua da Trindade.

Enquanto estudo, sem notoriedade escolar, sofro como outros

estudantes, uma profunda transformação

ideológica. As minhas poesias de 1859 - 1863,

nomeadamente as que destruí mas

subsistiram em cópias postumamente

reunidas em “Raios de Extinta Luz”,

testemunham uma evolução desde um

labirinto sentimental e crente até uma

posição deísta ou panteísta, anticatólica,

vibrando com as lutas de emancipação

nacional (Itália, Polónia) ou da resistência

antiautoritária. Publiquei numerosos folhetos

volantes e textos em prosa e verso em jornais académicos.

A minha mocidade foi o esquema profético do que iria ser uma

vida agitada e complexa, entre a serena paz do trabalho de criação

Page 17: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 17

poética, de meditação intelectual e a acção que me atraía aliciante e

viva, e para a qual, confesso, nem sempre me mostraria forte e

constante.

Neste ano lectivo de 1861 – 62 foi organizada em Coimbra a

famosa “Sociedade do Raio”, em que iniciei a minha vida de acção e

cujo fim era derrubar o Reitor Sousa Pinto, que pela sua rispidez se

incompatibilizara com a Academia, irritando-a com actos de extrema

severidade e com medidas que a época já não suportava.

A “Sociedade do Raio”, organização de estudantes revolucionários,

procurava, por todos os meios, criar na mocidade académica um estado

de rebelião contra as instituições universitárias e de oposição politica.

A situação agravara-se porque o odiado Reitor Basílio Sousa Pinto

tinha sido o autor do processo em virtude do qual dois companheiros

nossos, como já referi, foram suspensos da Universidade.

Em 1862 presidia à “Sociedade do Raio”, quando a 21 de Outubro

se deu a visita a Coimbra do príncipe Humberto, herdeiro do trono de

Itália. Saudei-o em nome da Academia de Coimbra, num discurso

ardente, em que falei da Itália liberta e redimida, e apontava o reitor da

Universidade como um “fantasma do passado”.Cumprimentei no

príncipe, não o herdeiro de um trono, mas o descendente de Victor

Manuel, do rei da liberdade, do amigo de Garibaldi.

Logo a seguir, 8 de Dezembro, dá-se o abandono em massa da

Sala dos Capelos, no momento em que se procedia à abertura solene do

ano escolar de 1862-63 e o Reitor se levantava para usar a palavra.

Devo dizer que fui um dos mentores da formidável conspiração que

levou o desfeiteado homem a abandonar o cargo.

Redigi, então “O Manifesto dos Estudantes da Universidade à

Opinião Ilustrada do País”, assinada por 314 estudantes. Aí se dizia

que a maciça debandada dos estudantes da Sala dos Capelos tinha

razão de ser: era a pública reprovação de uma “legislação iníqua”, por

velha e “ necessariamente injusta, porque é confusa”.

Page 18: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 18

O reitor foi demitido em

1863 e o incidente acabado.

Abandonei a direcção e os

trabalhos da “Sociedade do Raio”.

Assim, terminei rapidamente

a minha carreira revolucionária: as

ambições egoístas, ridículas e

miseráveis, que acompanhavam

sempre, mais ou menos, estes

movimentos, enojaram

profundamente o meu

temperamento desinteressado e as

minhas susceptibilidades de

artista e, daí por diante, conservei-

me, não só indiferente, mas até

hostil às manifestações mais ou menos colectivas da Academia,

troçando-as, até com alguma graça que me era peculiar.

Em Dezembro de 1861, tinha então 19 anos, publiquei o meu

primeiro livro, os “Sonetos de Antero” na chamada edição “Sténio”,

colecção de 21 sonetos, dedicada “Ad Amicos”, com um prefácio “A

João de Deus”.

No prefácio faço a apologia do Soneto – “a forma lírica por

excelência”, a “forma completa do lirismo puro”, “forma superior

do lirismo do coração”.

Nesta edição de 1861, destinada a subsidiar um estudante pobre,

os “Sonetos” são precedidos de um retrato meu, em verso, por “Sténio”,

pseudónimo de Alberto Teles. A empresa não constituiu um êxito de

repercussão, porque a tiragem foi pequena, quase só para distribuir

pelos amigos.

O ano de 1863 é um ano rico na minha vida de poeta.

Publiquei a segunda colecção de poesias, “Beatrice” e em

Outubro publiquei a minha terceira obra – o “Fiat Lux”, primeiro

harpejo, por assim dizer, dessa poesia transcendental que me dominou

Page 19: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 19

e que me absorveu por completo. Poucos dias depois de impresso

destruí todos os exemplares que consegui apanhar à mão, tornando-se

uma obra rara, até que mais tarde foi de novo editado por Teófilo Braga

nos “Raios de Extinta Luz”.

Mas o principal acontecimento deste ano foi a conclusão das

“Odes Modernas”, porventura o mais tempestuoso e revolucionário

livro de versos que se tinha publicado em Portugal e cuja

composição tinha começado no ano anterior.

Não sei bem como caracterizar este livro; não é certamente

medíocre; há nele paixão sincera e elevação de pensamento; mas além

de declamatória e abstracta, por vezes aquela poesia é indistinta, e não

define bem tipicamente o estado de espírito que a produziu.

Acima de tudo é, como dizem os franceses, “poesia de combate”:

o panfletário divisa-se muitas vezes por detrás do poeta, e a Igreja e a

Monarquia, os grandes do mundo são os alvos das minhas apóstrofes

de nivelador idealista. Noutras composições, é verdade, o tom é mais

calmo e patenteia-se nelas a intenção filosófica do livro, vaga sim,

mas humana e elevada.

Com o manuscrito da obra, corri a Lisboa no mês de Dezembro,

em busca de um editor. Sem apresentação procurei Alexandre

Herculano. Procurei também Castilho.

Que profunda diferença do acolhimento e da compreensão de

Herculano! Mas este era um grande homem vivo, uma alma de têmpera

forjada nas grandes batalhas da inteligência e da razão.

Bati Lisboa em busca de editor. Nenhum, porém, quis associar-se

a tal empresa. Parti para o Porto à procura do ansiado livreiro.

Encontrei a mesma recusa. Em vão corri, em vão me esforcei. Quem

queria editar tal poeta, tal livro em cujas estrofes ardiam mil Tróias?

Page 20: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 20

Das “Odes Modernas” à Carta “Bom Senso e Bom Gosto”.

“Questão Coimbrã”

A 8 de Julho de 1864 fiz acto de formatura sendo aprovado

“nimine discrepante” (por unanimidade), depois de ter reprovado no

quarto ano.

O Verão desse ano passei-o em S. Miguel, mas em Outubro voltei

à cidade do Mondego. As amarras que me prendiam à vida académica

não se tinham ainda quebrado. É ali que estão os meus amigos, foi ali

que o meu espírito amadureceu e se abriu às novas ideias e aos novos

princípios.

Continuei em Coimbra mais ano e meio, morando com o Zé

Sampaio e o Frederico Filémon no n.º 12 da Rua do Borralho. O Alberto

Sampaio já tinha concluído o curso no ano anterior.

Este período foi um dos mais belos da minha vida. Para sempre

liberto dos afazeres escolares, fechada, para nunca mais a abrir, a

hórrida sebenta, era livre como os pássaros, os poetas e os apóstolos,

livre para fruir e amar a liberdade.

Em Janeiro de 1865 dava à estampa o opúsculo “Defesa da

Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal”. É

um protesto contra a falta de lógica com que as folhas liberais atacavam

o “Syllabus” (encíclica), declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos.

Publicando o “Syllabus”, Pio IX dava uma lição de coerência. Incoerente

era a massa liberal da época.

Só no Verão de 1865 as “Odes Modernas”, obra que pretendia

ser a “voz da Revolução”, grandemente influenciada por Michelet,

Proudhon, Renan e Hegel, foram impressas em Coimbra, graças à

minha bolsa.

Esta 1ª edição iria desencadear uma das mais memoráveis

polémicas literárias portuguesas, conhecida pela “Questão Coimbrã”

ou “Questão do Bom Senso e Bom Gosto”.

As “Odes” causaram um verdadeiro clamor em todo o País;

eram estranhos aqueles versos; não se compreendia como um poeta

compunha estrofes de revolta em vez de lirismo piegas dos que eram

Page 21: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 21

habituais. O romantismo e o classicismo tão exagerados e tão

estropiados que abundavam na literatura da época, sentiam um golpe

fatal com a publicação daqueles versos ousados. Castilho, como chefe

dessa literatura, recebeu um grande choque.

Castilho, naquela época, era como um grande, um magnânimo

“padrinho” das letras portuguesas. Não havia “baptizado literário”

para que o velho poeta não fosse convidado e a prenda era sempre a

mesma, inevitável – um prefácio.

Criou desta maneira uma corte de afilhados que lhe ia

regularmente ao beija-mão e para quem o velho era pródigo em bênçãos

– os seus discípulos. A literatura assim concebida e realizada sob os

ensinamentos e a fiscalização vigilante do mestre, era a literatura

considerada oficial, aplaudida e aceite pelas gazetas e pelo público.

Castilho pontificava nesta escola, vulgarmente denominada

Romantismo.

Castilho, meu antigo professor, ao escrever em carta-posfácio ao

editor António Maria Pereira, enaltecendo as qualidades poéticas do

medíocre “Poema da Mocidade” de Pinheiro Chagas, ridicularizava as

“Odes Modernas” e as “Tempestades Sonoras” de Teófilo Braga,

confessando-se incapaz de enxergar para onde iam os seus autores

devido às alturas de “águia”em que voavam.

Sabendo que lançava um desafio, prevenia os que viessem a

discordar do seu ponto de vista que não lhes responderia (“Lá brigar

não brigo, que tenho mais que fazer”). Eu, que já no ano anterior me

insurgira contra aqueles que se arrogavam o direito de legislar para o

mundo da inteligência e da inspiração, ao escrever na “Revista

Literária” de Coimbra um artigo sobre João de Deus que tardava em

ser conhecido e devidamente admirado, respondi a Castilho com o

violento opúsculo “Bom Senso e Bom Gosto”- Carta ao Ex.mo Senhor

António Feliciano de Castilho”:

“Acabo de ler um escrito de V.ª Ex.ª onde, a propósito de faltas de

bom senso e de bom gosto se fala com áspera censura da escola de

Coimbra.

Page 22: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 22

Os versos de V.ª Ex.ª não têm ideal. As suas críticas não têm

ideias mas têm palavras quantas que bastem para um dicionário de

sinónimos.”

Concluía, afirmando, que aquilo que se atacava não eram as

opiniões atrevidas nem a admiração pelos novos autores alemães e

franceses, mas sim a independência que os novos escritores

demonstravam ao seguirem o seu caminho sem pedirem licença aos

velhos mestres.

Lamentava do fundo da alma não me poder confessar, como

desejaria. “De V.ª Ex.ª nem admirador nem respeitador”.

A “Questão Coimbrã” deu origem a mais de 44 intervenções,

embora Castilho, como aliás prometera, não tomasse em público

qualquer atitude. Particularmente, porém, referia-se a nós, aos

principais antagonistas, como “fadistas de Coimbra”, “os dois

bácoros que chafurdam por Coimbra”, “Teófilos bragantes e

Quentais imundos”.

Durante mais de seis meses, a guerra dos opúsculos, a favor e

contra a escola de Coimbra, continuou. Eu, ao verificar que a polémica

tomava proporções tais que a minha iniciativa poderia ser atribuída a

intuitos de glória pessoal, escrevi o folheto “Dignidade das Letras e as

Literaturas Oficiais”. Neste texto, desenvolvendo embora as ideias

expostas anteriormente, retirei-lhes o aspecto de pretensão irritada,

para as elevar a ponto de vista sério e fundamentado sobre a missão

moral e social do escritor, e num apêndice, apreciava serenamente a

obra de Castilho, como que um lenitivo para a minha desapiedada

agressividade.

Vinte anos depois, na “Carta Autobiográfica” resumi, assim, a

“Questão Coimbrã”: “o velho Castilho, o árcade póstumo, como então

lhe chamavam, viu a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura

anacrónica. Houve em tudo isto muita irreverência e muito excesso.

Mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído

de ideias não podia presidir como pretendia, a uma geração ardente que

surgia e que antes de tudo aspirava a nova direcção. Quando o fumo se

dissipou, o que se viu claramente foi que havia em Portugal um grupo

Page 23: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 23

de 16 a 20 rapazes que inspiravam talvez pouca confiança pela

petulância e irreverência, mas que inquestionavelmente tinham talento

e estavam de boa fé, e que em suma, havia a esperar deles alguma coisa

quando assentassem. Os factos confirmaram esta impressão. Dos dez,

ou doze, primeiros nomes da literatura daquele tempo saíram todos

(salvo dois ou três) da Escola de Coimbra ou da influência dela.

De Coimbra a Lisboa (“Cenáculo”), via Paris – A experiência

proletária.

Ao sair de Coimbra, depois da questão com Castilho, julgava já

ter pago o meu tributo, por assim dizer, a todos os sentimentos da

juventude: ao amor, à revolta, à acção, às ideias, à força moral, ao

entusiasmo humanístico, ao problema da existência, à inquietação

religiosa. Se é certo que não saí de Coimbra ateu, pelo menos saí de lá

anticatólico, mas nem por isso desaparecia o meu forte sentimento

religioso. É esse sentimento religioso, recalcado, que acabará por dar os

seus frutos quando chegar o momento de consagrar à metafísica as

malbaratadas energias intelectuais no campo da acção político-social.

Bacharel desde 1864, e tendo em conta que o estudo do Direito

nunca me interessara, abandonei a minha “encantada e quase

fantástica Coimbra”, sem um projecto de vida, ao contrário dos colegas

que, sem rendimentos próprios, iam a concursos… Aliás, possuindo nos

Açores bens de fortuna, embora modestos, tive sempre assegurada a

minha existência económica. Mas, mesmo assim, fui um homem de

hábitos mais que simples, bastava-me pouco para viver, e nesse pouco

vivi satisfeito. A alimentação era parca, o vestuário sóbrio, o quarto o de

um estudante…

Era tempo, pois, de regressar a S. Miguel. Para lá parti a 5 de

Março de 1866. Mas para, na pacatez da cidade insular, vegetar como

funcionário público – professor de Lógica no Liceu, como cheguei a

pensar -, como advogado ou proprietário? De modo nenhum. Já vereis!

Page 24: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 24

Logo no mês seguinte, abandonei os projectos de me demorar

alguns meses em S. Miguel e ir viver para o Ultramar, partindo para

Lisboa a 25 de Maio onde desembarquei a 1 de Junho.

De imediato, entrei para a Imprensa Nacional onde iria fazer um

estágio de aprendiz na escola tipográfica deste instituto gráfico.

No final do ano parti para Paris onde fui trabalhar como

compositor numa tipografia. Renunciara, embora temporariamente, à

situação social em que nascera, aos bens de fortuna, à minha classe. Ia

viver, junto da massa do operariado de uma grande cidade, as

mesmas lutas e amarguras, irmanar-me à gente explorada e oprimida.

Na véspera da partida para Paris escrevi ao Alberto Sampaio,

dizendo-lhe que, por mim ia mais com o ânimo sossegado de quem

cumpria um dever, do que com o coração alegre de quem seguia uma

esperança. Mas por tanto tempo desesperei sem fundamento e me

cansei sem ter trabalhado, que queria enfim comprar com estes

supremos esforços o direito formidável da desesperação com plena

consciência. Queria que os factos dessem razão ao cansaço do meu

coração ou que o fizessem ressurgir por uma vez.

O certo é que ia viver para uma grande cidade, só, sem amigos;

fazer a minha iniciação na vida duma classe que sofria as dores da

miséria e da exploração.

Ao segundo dia, logo a antinomia entre o mundo em que me

achava e o meu estado de espírito e a natureza mesma do meu ser me

apareceram cruelmente.

Esperava que o trabalho me fizesse bem e foi ele que me revelou

completamente o meu estado. Este trabalho era triste como todo o

trabalho moderno, forçado, pálido e dividido, desnatural e injusto.

Experiência dolorosa e decepcionante. Foi uma tentativa

malograda, mas honrosa porque foi sincera; mas não me queixo, porque

tirei outro moral, e esse grande, a estima de mim mesmo, ainda na

fraqueza de que me vejo não ter culpa.

E não exagero afirmando que cinco meses em Paris valem mais do

que os cinco anos de uma formatura em Coimbra, para a verdadeira

Page 25: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 25

instrução e iniciação na verdadeira e soberana “ciência da sociedade

humana”.

Era a primeira grande crise, o primeiro abalo violento que sofria.

A excitação nervosa abalara-me com impiedade.

Vim repousar três meses para a casa do meu amigo Sampaio, na

Quinta de Sant’Ana, perto de Guimarães. A paz reparadora daquela

paisagem, o silêncio e a tranquilidade da natureza que ali eram

extraordinariamente serenos, pacificaram-me os transtornados nervos.

Restabelecido, voltei à capital francesa, em Agosto de 1867, mas

desta vez sem veleidades proletárias. Visitei o grande Michelet sob o

nome de Bettencourt (um dos apelidos da minha família) incumbido

pelo autor das “Odes Modernas” de oferecer ao poeta francês um

exemplar da minha obra, para que este a pudesse julgar livremente,

sem se sentir obrigado a proferir alguns parcos elogios de cortesia.

Michelet, sensível ao encanto pessoal do meu pretenso amigo,

agradeceu a oferta em carta dirigida ao autor, não se esquecendo de

mencionar a simpatia que o “visitante” lhe merecera: “Votre charmant

ami que j’ai vu avec beaucoup de plaisir, m’a traduit plusieurs de

vos chants qui me semblent admirables”.

Antes do fim do Verão regressava, não desta vez ao Continente,

mas à Ilha de S. Miguel, apetecendo-me o isolamento, o trabalho de

meditação e de leitura.

A estadia nos Açores prolongou-se para além do que eu tinha

projectado. Em Novembro de 1868 estava de novo em Lisboa, na

incerteza do caminho a seguir, angustiado pelo vazio que me parecia o

futuro.

As circunstâncias, porém, vieram chamar-me, acordar-me do

torpor em que dir-se-ia apetecer-me cair. Tinha eclodido a revolução

em Espanha, chefiada pelo general Prim, contra Isabel II. Agentes

espanhóis vieram sondar os elementos políticos portugueses de

esquerda. É então que publico o folheto, “Portugal perante a

Revolução de Espanha – Considerações sobre o futuro da política

Page 26: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 26

portuguesa no ponto de vista da democracia ibérica”. Advogava aí a

União Ibérica por meio da República Federal, então representada em

Espanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Cortes

Constituintes. Era, ou foi, uma grande ilusão, da qual porém só desisti

(como muitas outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos

da experiência. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas

coisas da sociedade!

É por esta época que me encontro em Lisboa com antigos

companheiros de Coimbra: Eça de Queirós, Lobo de Moura, Faria e

Maia, Guerra Junqueiro, Santos Valente, Manuel de Arriaga, Teófilo

Braga. Ia nascer o “Cenáculo” na Travessa do Guarda-Mor. Ali, ao

Bairro Alto, no quarto do Batalha Reis, quartel da “Geração de 70”, fui

recebido em Agosto de 1868. Reagrupavam-se os membros da “Escola

de Coimbra”, agora, para todos os efeitos, “Escola de Lisboa”.

Em Julho de 1869 viajei para os Estados Unidos cuja

Constituição-Federalista me entusiasmara. Visitei Halifax e Nova

Iorque, estudando aí as grandes questões sociais ligadas ao operariado

e simultaneamente capitalistas.

No Inverno seguinte, já em Lisboa, é juntamente com Eça que

idealizo a figura de Carlos Fradique Mendes, vindo a escrever um

folhetim no “Primeiro de Janeiro”, do Porto, com uma nota assinada

A.Q. e alguns poemas que atribuía a essa figura de invenção que mais

tarde serviu a Eça para escrever a célebre “Correspondência de

Fradique Mendes”.

Foi por este tempo que travei relações com Oliveira Martins, em

cujo coração encontraria abrigo para as confidências dos meus males –

para as minhas grandes confissões.

Também Oliveira Martins e José Fontana (geria a Livraria

“Bertrand” de que era proprietário um tio) apareciam no “Cenáculo”,

embora mais raramente. Dada a natureza das suas preocupações e dos

seus interesses, seriam os meus dois grandes companheiros. José

Fontana era um agitador político e Oliveira Martins um escritor de

ideias – ambos preocupados pelas questões sociais. Neles encontrei

uma maior solidariedade de princípios e de aspirações do que na

Page 27: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 27

maioria dos outros, a quem me ligavam sobretudo os simples laços de

iguais tendências literárias e estéticas.

Por volta de 1870 inicio um período de grande actividade política

no movimento socialista. Fundei associações operárias, publiquei

folhetos de propaganda, e introduzi em Portugal a Associação

Internacional dos Trabalhadores, uma secção da Internacional que

recebeu a visita do genro de Marx, Paul Lafargue. Fui durante uns sete

ou oito meses uma espécie de pequeno Lassalle (um dos fundadores do

socialismo alemão), e tive a minha hora de vã popularidade. Consumi

muita actividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em

artigos de jornais, em folhetos, em proclamações, em conferências

revolucionárias. Queria reformar tudo, eu que nem sequer estava a

meio caminho da formação de mim mesmo.

Fui um dos fundadores da Associação da Fraternidade

Operária, da qual me afastei por não terem sido aprovadas as doutrinas

proudhonianas que defendia e que Fontana não aprovava.

Tomei, então, uma posição muito crítica em relação ao novo

Partido Republicano que não considerava capaz de levar a cabo uma

autêntica reforma social. Era necessário quebrar com os republicanos e

eu estava resolvido a fazê-lo … Falavam da Espanha com desdém, e

havia de quê. Mas eles, os briosos portugueses, estavam destinados a

dar ao mundo um espectáculo republicano ainda mais curioso; se a

república espanhola era de doidos, a nossa seria de garotos.

Fundei e dirigi a “República – Jornal da Democracia

Portuguesa”, juntamente com Oliveira Martins, Batalha Reis, Manuel

de Arriaga, António Enes e Eça de Queirós – o artigo-programa, as

questões de iberismo e de política internacional, são de minha autoria

embora não assinadas.

Em 1872 publiquei anonimamente o folheto “O que é a

Internacional” (O Socialismo Contemporâneo – o Programa da

Internacional – Conclusões) destinado a angariar fundos para o jornal

Page 28: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 28

“O Pensamento Social” que iria dirigir juntamente com Oliveira

Martins.

Alguns anos mais tarde, em 1875, é fundado o Partido dos

Operários Socialistas, tendo eu com Azedo Gneco e José Fontana

feito parte da comissão que elaborou o programa.

Em 1880, a comissão eleitoral do Partido Socialista iria

apresentar a minha candidatura pelo Círculo de Lisboa, publicando-se

então, o folheto “Aos Eleitores do Círculo 98 – Carta do Dr. Antero

de Quental à Comissão Eleitoral do Partido Socialista pelo referido

Círculo”.

Todavia, o período mais agitado da minha vida pública foi aquele

em que tiveram lugar as chamadas Conferências Democráticas ou do

Casino, que se inauguraram no dia 22 de Maio de 1871, no Casino

Lisbonense.

Das Conferências do Casino à “grande crise”

De facto, chegava a altura de o “Cenáculo”, e sob minha

inspiração, produzir uma manifestação verdadeiramente positiva. Quem

o diz é o Eça: “E do “Cenáculo”, de onde, antes da vinda de Antero (que

foi como a vinda do Rei Artur à confusa Terra de Gales), nada poderia

ter nascido, além da chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a

vinho de Torres, e farrapos de filosofia fácil nasceram, “mirabile dictu”

(admirável de dizer) as Conferências do Casino, aurora dum mundo

novo, mundo puro e novo que depois, oh dor! creio que envelheceu e

apodreceu”…

Com efeito, na “Revolução de Setembro”, de 29 de Abril de

1871, anunciava-se a próxima realização em Lisboa de uma série de

conferências sobre matérias políticas e sociais, no antigo Casino

Lisbonense do Largo da Abegoaria, hoje Rafael Bordalo Pinheiro.

Não tardaria, porém, que circulasse em Lisboa o programa das

mesmas, assinado por doze nomes. Era a proclamação dos direitos de

Page 29: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 29

uma geração que entrava na liça e afirmava as características de uma

mentalidade revelada seis anos antes.

Dos doze nomes que a subscreviam, alfabeticamente ordenados,

só o meu, do Eça, Germano de Meireles, Manuel de Arriaga e Teófilo

Braga procediam de Coimbra. Os restantes – Augusto Soromenho,

Augusto Fuschini, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis,

Oliveira Martins e Salomão Sáraga – eram de Lisboa, professores,

eruditos, estudiosos, nem todos universitários sequer, mas nem por

isso menos prestigiados.

No programa destas Conferências Democráticas, redigido por

mim, proclamava-se o seu objectivo:

“Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os trabalhos

que caracterizam este momento do século, preocupando-nos

sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;

ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo assim nutrir-se

dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar

adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar

na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência

Moderna; estudar as condições da transformação política,

económica e religiosa da sociedade portuguesa: - tal é o fim das

Conferências Democráticas”.

Os subscritores de um tal programa, sem dúvida nenhuma

alarmantemente revolucionário numa cidade tão conservadora como

Lisboa, concluíam solicitando o concurso de todos os partidos, de todas

as escolas, de todas aquelas pessoas que, ainda que não partilhem as

nossas opiniões, não recusam a sua atenção aos que pretendem ter

uma acção – embora mínima – nos destinos do seu país, expondo

pública mas serenamente as suas convicções, e o resultado dos seus

estudos e trabalhos.

A 22 de Maio realiza-se a palestra inaugural, constituindo uma

espécie de introdução sobre o espírito das conferências.

Encarreguei-me, eu próprio, desta apresentação.

Anunciada para o dia 29, foi antecipada para 27 a segunda

conferência que seria proferida igualmente por mim. E o certo é que, se

Page 30: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 30

a primeira já tivera um público numeroso, a segunda realizada no

andar nobre do edifício, e numa sala muito maior, foi ouvida por 400

pessoas, segundo o “Diário de Notícias”, por 250, segundo o “Jornal da

Noite”.

A concorrência às conferências era considerável, e, além de vultos

destacados nas letras e na política, distinguiam-se entre a assistência

pequenos núcleos de operários que lá iam atraídos pela propaganda de

José Fontana.

É pois no dia 27 de Maio, sábado, que proferi a minha segunda

conferência democrática intitulada “Causas da Decadência dos

Povos Peninsulares”, reconstituída em opúsculo neste mesmo ano. É o

meu primeiro trabalho de fôlego no domínio das ideias históricas e uma

análise profunda à situação de um povo – o povo peninsular. Tentei,

e julgo que o consegui, imprimir às Conferências do Casino um carácter

doutrinário elevado, sério e revolucionário.

As causas da decadência dos povos da Península analisei-as

uma por uma.

A primeira atribui-a ao Concílio de Trento. A Igreja depois deste

acto de política interna, tornou-se intolerante e dogmática. Não

contente com o poder espiritual, assenhoreia-se do poder temporal. A

autoridade do Papa tornou-se tentacular, fazendo dos próprios reis

instrumentos passivos da política católico-romana. O “jesuitismo”

absorve o ensino; a cultura entre os séculos XVII e XVIII entra em

eclipse.

A segunda, foi o absolutismo em política. Essencialmente

aristocrático na Península, leva à paralisia das outras classes,

especificamente da burguesia; a indústria, o comércio e a ciência

asfixiam neste mundo organizado para benefício dos privilegiados.

A terceira, foram as conquistas além-mar, causa maior da nossa

decadência. Propus-me fazer a análise desse espírito heróico, sem

lirismos nem sentimentalismos patrióticos. Não discuto o valor heróico

dessas empresas guerreiras; do ponto de vista económico, contudo,

considerei-as um desastre, prolongando-se este estado de coisas até à

actualidade.

Page 31: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 31

Mais três conferências se realizaram nas salas do Casino de

Lisboa: a do Augusto Soromenho, que a 6 de Junho fala sobre “A

Literatura Portuguesa”, a do Eça, que a 12 do mesmo mês, durante

duas horas, abordaria o tema “A Nova Literatura ou o Realismo como

Nova Expressão de Arte”, e a do Adolfo Coelho, que versou “A

Questão do Ensino”, no dia 19 de Junho. Mas quando, a 26 de

Junho, ia realizar-se a conferência de Salomão Sáraga intitulada “Os

Historiadores Críticos de Jesus”, as portas do Casino estavam

fechadas, e nelas afixada uma portaria do Marquês d’Ávila e Bolama,

Presidente do Ministério, datada desse mesmo dia, a impedir a sua

realização e a proibir as seguintes, por nelas se expor e procurar

“sustentar doutrinas e proposições que atacavam a religião e as

instituições políticas do Estado” e por tais factos “além de

constituírem um abuso do direito de reunião, ofenderem directa e

claramente as leis do Reino”.

Por sua vez, os jornais católicos tinham iniciado uma campanha

contra o desaforo das conferências, e insinuavam a velha acusação de

que os conferencistas obedeciam a “mandatos ocultos”, atribuindo-os

aos manejos dos “comunistas”…

O encerramento das conferências foi motivo de intensa

agitação, que por um instante perturbou as águas mansas da

sonolenta vida nacional. Os organizadores, presentes no acto do

encerramento, lavraram e assinaram protesto, tendo eu endereçado

uma “Carta ao Ex.mo Senhor António José d’Ávila, Marquês de Ávila

e Bolama, Presidente do Ministério, que ficaria como a peça mais

incisiva da questão.

Larga e múltipla foi a literatura protestativa que nasceu desta

medida infeliz. Se as Conferências tinham sido proibidas e uma rolha

introduzida na boca dos conferencistas, como chistosamente sugeria

Rafael Bordalo Pinheiro no seu jornal “A Berlinda”, a acção das

Conferências Democráticas, porém, não se perdia. “As Farpas”,

dirigidas por Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, continuaram-nas no

campo panfletário. Com as Conferências do Casino consagrava-se o

espírito da “Carta Bom Senso e Bom Gosto” e criava-se uma plataforma

Page 32: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 32

sólida para as ideias e princípios que estruturavam a “Geração de 70” –

finalmente consolidada, finalmente justificada, se não nas sua

realizações, pelo menos no seu ataque ao que mais importava reformar

no panorama mental de uma nação havia quase um século esquecida

do que era a verdadeira liberdade de espírito.

Paralelamente à acção

política e panfletária, não

abandonei a minha actividade

poética (a minha poesia foi

sempre para mim coisa sincera

e tirada cá de dentro) e

publiquei na “Folha” do João

Penha alguns sonetos, além de

excertos de uma tradução do

“Fausto” de Goethe e do artigo

“Tendências Novas da Poesia

Contemporânea”, uma crítica

às “Radiações da Noite”, de

Guilherme de Azevedo na

“Revolução de Setembro”.

Crítica a “Os Lusíadas –

Ensaio sobre Camões e a sua Obra em relação à Sociedade

Portuguesa e ao Movimento da Renascença”, de Oliveira Martins.

No começo de 1872, durante a estadia no Porto, publiquei as

“Primaveras Românticas”. Contém os meus “Juvenília”, versos dos

vinte anos, as poesias de amor e fantasia compostas na sua quase

totalidade entre 1860 e 65, que andavam dispersas por várias

publicações periódicas e que só em 1872 reuni em volume, juntamente

com mais alguma coisa posterior, do mesmo carácter e estilo.

Ainda neste ano escrevi o que considerei a minha melhor obra em

prosa: “Considerações sobre a Filosofia da História Literária

Portuguesa” e que, como já referi, esteve na origem da polémica e corte

de relações com Teófilo Braga.

Page 33: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 33

Esta polémica com Teófilo Braga surgiu quando vinha escrevendo

o livro a que chamei “Programa para os Trabalhos da Geração Nova”,

e que uma vez terminados causaram profunda impressão aos amigos

que dele foram tomando conhecimento, existindo numerosos

testemunhos em cartas que por essa época escrevi, principalmente, a

Oliveira Martins. Anunciando mesmo, no jornal “A República”, em Maio

de 1875, vim a destruir o manuscrito ao chegar o momento mais grave

da minha crise moral. Posso dizer que não era apenas um programa de

trabalhos de uma geração, mas, por assim dizer, a exposição de todo o

meu pensamento moral, político, social e filosófico: uma verdadeira

“soma” das minhas ideias.

Em 1874, um ano depois de falecer meu pai, adoeci gravemente

com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me

completamente. A forçada inacção, a perspectiva da morte vizinha, a

ruína de muitos projectos ambiciosos e uma certa acuidade de

sentimentos próprios da nevrose, puseram-me novamente e mais

imperiosamente do que nunca, em face do problema da existência. A

minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral

incompreensível.

A enfermidade não me deixava entregar a qualquer actividade (a

minha fraqueza era tal, que a menor aplicação me deixava prostrado do

cérebro) mas, ainda assim fundei, juntamente com o Batalha Reis, a

“Revista Ocidental” onde o Eça veio a publicar a primeira versão de

“O Crime do Padre Amaro”. São desta época “Os Cativos”, “Entre

Sombras”, “Os Vencidos”, a “Fada Negra” e o “Hino da Manhã” que

constituíam talvez os poemas típicos do pessimismo português e que,

por terem sido enviados em carta a Oliveira Martins, foram por ele

salvos da destruição a que eu posteriormente os condenara, e

publicados em apêndice aos “Sonetos Completos”.

Como a medicina nacional, Sousa Martins e Curry Cabral, não

conseguisse proporcionar-me qualquer alívio (começava a estar cansado

e era forçoso decidir isto – se morria ou vivia), decidi, depois de hesitar

entre Paris e Londres, ir a Paris, consultar a grande sumidade médica

daquele tempo, o Dr. Charcot, que receitou para o meu mal a

Page 34: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 34

hidroterapia declarando-me à queima-roupa, que a minha doença não

era nada na espinha, como se supunha; do que eu sofria era de

histeria – “uma doença de mulher transportada para um corpo de

homem”. Depois da minha morte outros diagnósticos se seguiriam.

Assim, instalei-me em Bellevue – uma vilória a quatro ou cinco

quilómetros de Paris – o que me proporcionou algumas digressões a

Sèvres, a Versalhes e à capital francesa, onde depois da época balnear

me demorei até Novembro de 1877.

O tratamento e a minha permanência em França proporcionaram-

me algum alívio. Escrevi alguns artigos para a revista “Dois Mundos”,

que Salomão Sáraga então publicava e dirigia em Paris.

Regressei a Lisboa confiado nas melhoras alcançadas mas, pouco

a pouco, voltei a ser vítima de insónias e a cair num estado de

abatimento, tanto mais que minha mãe tinha falecido em Lisboa, ainda

não decorrera um ano.

Voltei a Paris no Verão do ano seguinte, mas as melhoras que

então senti já não eram tão acentuadas. Além de hidroterapia em

Bellevue, tive de fazer aplicações eléctricas em Paris pelo que andei num

vai-vem maçador.

Quando em Outubro, regressei a Portugal, era bem reduzida a

minha confiança na cura.

Durante a minha estada em Bellevue conheci uma titular

francesa, a Baronesa de Saillière, minha companheira de tratamento

na casa de saúde, com quem mantive relações epistolares prolongadas,

chegando a certas promessas de casamento, cujo cumprimento estava

dependente de uma complicada acção de divórcio. Compreenda-se que é

para mim muito penoso abordar este caso, até pelas consequências

trágicas que estiveram eminentes. O Oliveira Martins e o Jaime

Batalha Reis estão bem por dentro deste assunto e, até a filha deste

último, Beatriz Cinati Batalha Reis, que entre os papéis de seu pai

encontrou o retrato da Baronesa.

Em todo o tempo que decorre desde o regresso de Paris até à

minha instalação em Vila do Conde, conheci tão pouco a perfeita saúde

do corpo, como a tranquilidade do espírito, mas aproveitava todas as

Page 35: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 35

breves melhoras que me aliviavam a doença para ler e meditar, discutir

e escrever.

Do refúgio de Vila do Conde – superação do pessimismo – à

publicação

dos “Sonetos Completos”

Em 1877 falecera no Porto Germano Vieira de Meireles, um dos

meus mais velhos amigos, redactor de “O Primeiro de Janeiro”. Com ele

costumava passar largas temporadas no Porto. Falecido

repentinamente, deixa sem recursos uma menina de pouco mais de um

ano e meio e outra que nasceu quatro meses depois.

Em Janeiro de 1880 resolvi fixar-me em Lisboa, instalando-me

com as duas órfãs e a mãe delas numa casa da Calçada de Sant’Ana,

vizinha do prédio onde morava minha irmã Ana.

Qualquer coisa estava a mudar na minha vida. A saúde, sempre

precária, é certo, melhorara, porém, graças às condições mais regulares

da minha vida doméstica. Aproximava-se o fim da “grande crise”.

Depois da edição dos “Sonetos” da Biblioteca da Renascença do

Porto, em 1881, uma colecção de 28 sonetos coligidos pelo meu velho

amigo Joaquim de Araújo, decidi sair de Lisboa, que para mim era uma

cidade que patusca, chatina, intriga, goza, explora, compra e é

comprada, vende e é vendida, e fixei residência em Vila do Conde

em companhia das minhas filhas adoptivas. Os cerca de dez anos

passados na pequena vila minhota iriam ser os mais calmos da minha

existência, e a proximidade de Oliveira Martins, no Porto, e de

Alberto Sampaio, em Famalicão, proporcionar-me-ia uma relativa

pacificação de espírito.

Instalar-me em Vila do Conde com a minha nova “família”, a

dois passos do Porto, era o que melhor quadrava ao desvanecimento

do meu negro pessimismo.

Qualquer coisa mudava no meu íntimo, em parte graças ao

remanso de uma vida que me permitia rever mais abertamente as

Page 36: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 36

minhas concepções de existência. A minha vida moral era agora

verdadeiramente a de um budista e isso se reflectia na minha poesia,

que entrava agora numa fase, mais serena e larga, ainda que de fôlego

curto, pois só produzia um ou outro raro soneto; mas esses, ao menos,

já não causavam pesadelo a quem os lia.

A minha ânsia de serenidade era intensa, e tanta, que antes de

me instalar em Vila do Conde já destruíra muitas poesias compostas

em períodos de depressão. Eram poesias lúgubres e tétricas, que não

podiam consolar ninguém e fariam mal a muita gente.

Agora, no ambiente de tranquilidade que me rodeava naquela vila

ribeirinha, debrucei-me sobre o que até aí compusera e conservara,

promovendo a publicação do que me parecia mais perdurável.

De 1883 é a edição do “Tesouro Poético da Infância”,

organizado e prefaciado por mim, uma espécie de “lira infantil”,

colhida nos Romanceiros e Cancioneiros e nos poetas brasileiros

como Castro Alves, Casimiro de Abreu e, sobretudo, Junqueira

Freire, cuja poesia me entusiasmou a ponto de o considerar um dos

primeiros poetas do século se não tivesse morrido aos 24 anos.

É neste “período de Vila do Conde” que escrevo os meus

últimos sonetos, aqueles que considerei serem os melhores, reflexo de

uma fase espiritual que representava as minhas concepções sobre a

vida e o mundo, e onde expunha as soluções intelectuais que

encontrava para ultrapassar o meu anterior estado pessimista:

“Evolução”, “Voz Interior”, “Luta”, “Redenção”, “Na Mão de Deus” e

sobretudo “Solemnia Verba”, todos eles eram para mim algo de novo –

a verdadeira poesia do futuro – fora das tendências da literatura

minha contemporânea, tendo sido compostos entre 1882 e 1885.

Precisamente neste último ano, em Março, morre a mãe das

minhas “pupilas”, obrigando-me a enviá-las para um asilo no Porto.

Grande falta me faziam as crianças, “um elemento poético e tocante

bem apreciável”.

Page 37: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 37

Exactamente um ano antes da publicação dos “Sonetos

Completos”, que Oliveira Martins iria dar à estampa em Agosto de

1886, interrompi de vez a minha lira sonetista.

Sentia esvair-se a minha inspiração poética, e por isso debruçava-

me sobre o que ficara da minha inspiração antiga. Eu entendia que o

artista e o poeta deviam cessar de produzir desde o momento em

que se sintam enfraquecidos ou perturbada a sua harmonia intima

e espontânea a faculdade criadora. Deixei-me, pois, de versejar, e

cuido ter feito bem.

Já em 1883, numa carta a Santos Valente, dizia, claramente:

“Quando se me esgotar este último veio poético e se fechar o meu ciclo,

conto reunir os meus Sonetos Completos. Afinal, é tudo quanto de mim

sobrenadará – se bem o julgo e bem me julgo”.

Também os amigos começaram a pressionar-me para que

publicasse uma colecção completa dos meus sonetos, cerca de uma

centena, da qual uma boa metade se encontrava inédita.

A edição definitiva dos “Sonetos”, publicada em 1886,

organizada e prefaciada por Oliveira Martins, obedeceu, como referi

em carta a Alberto Sampaio, ao propósito de “rever e tornar

impecáveis” muitos dos Sonetos já publicados nas edições “Sténio”

(1861) e da “Renascença” (1881), nas obras anteriores (“Primaveras

Românticas” e “Odes Modernas”) e em jornais; ou dispersos em

mãos de amigos; ao mesmo tempo tinha o propósito de formarem uma

espécie de “autobiografia de um pensamento”, “autobiografia poética”,

“memórias de uma consciência”, “memórias morais e psicológicas” –

foram expressões de que eu próprio me servi para caracterizar o meu

volume de versos.

Quando apareceu a edição dos “Sonetos Completos”, a

imprensa portuguesa manteve-se geralmente muda; os critérios

nacionais conservaram um discreto silêncio sobre a obra

“perturbadora”. Não me afligiu o silêncio da imprensa. Contava com

ele. Sabia bem quanto aquilo estava fora das tendências da literatura do

meu tempo. Uma Filosofia nova, versos obscuros, quem diabo podia

Page 38: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 38

entrar com ela? Achava, pois, que os dos jornais o melhor que tinham a

fazer era calarem-se.

Isso não obstou a que já no ano seguinte aparecesse uma edição

alemã, de cuja tradução se encarregara o Professor Wilhelm Storck,

consagrado lusófilo, que também traduzira Camões. Foi para a edição

alemã, e a pedido de Storck, que redigi a famosa “Carta

Autobiográfica”.

Ao enviar um exemplar a Wilhelm Storck, por intermédio de

Carolina Michaelis, recebi em troca uma das maiores alegrias de toda

a minha vida literária – a tradução alemã dos “Sonetos”.

Quando enviei a Storck um exemplar dos meus “Sonetos” foi

simplesmente como um testemunho daquela gratidão que todo o

escritor português devia ao admirável intérprete do nosso grande lírico.

Agora que o tradutor de Camões apreciasse os meus versos a ponto de

os julgar dignos de serem transcritos, com a mesma pena que

transcrevera os de Camões, confesso que me obrigou a invocar toda a

humildade de que era capaz para não me tornar em extremo orgulhoso.

Outras traduções foram feitas para italiano, espanhol e francês,

das quais foi incluída uma antologia na 2ª edição portuguesa dada à luz

em 1890.

Assim se encerra o meu ciclo poético, com a promessa de que as

ideias filosóficas nele expressas iriam ser desenvolvidas largamente e

em boa prosa.

De facto, foi nas “Tendências Gerais da Filosofia na segunda

metade do século XIX” que viria a expor, com carácter mais metódico

e definitivo, a minha filosofia, interpretando aí a minha evolução

intelectual mais como um diálogo com as mais representativas figuras

do pensamento contemporâneo, embora mantendo a minha autonomia

própria.

Este ensaio, escrito para mostrar o meu afecto ao amigo Eça de

Queirós, director da “Revista de Portugal”, começou a ser publicado

em Janeiro de 1890, prosseguindo em Fevereiro e Março, e eu, que em

princípio pensava escrever apenas uma coisa sumária, produzi um

estudo que, depois de devidamente ampliado, daria um livro.

Page 39: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 39

No ano de 1890, situa-se igualmente a minha última

intervenção pública, desta vez no campo político, na sequência do

“Ultimatum Inglês” de 11 de Janeiro, que obriga o governo português

a ceder o “hinterland” entre

Angola e Moçambique.

Com o governo

totalmente desautorizado,

respirava-se um clima de

quase revolução interna .

Surgiu então no Porto a

ideia de se constituir uma

Liga – A Liga Patriótica do

Norte – que erguesse uma

bandeira congregadora no

meio da desordem, e

aproveitasse o momento de

fervor patriótico para fazer

sair o País do marasmo em

que vivia.

Para liderar a Liga a comissão executiva foi a Vila do Conde

convidar-me. Diziam que não havia outro homem, e desde que me

provaram que eu era o “único possível”, entendi que não podia recusar-

me.

Ficou estabelecido que a Liga viveria fora da acção dos partidos

e seria um órgão da opinião pública pugnando por reformas

económicas, sociais e administrativas, pela moralização dos

poderes públicos, actuando como uma força moral e exigindo dos

governos, quaisquer que eles fossem, a realização dessas reformas.

O nosso maior inimigo não era o inglês; éramos nós mesmos. Declamar

contra a Inglaterra era fácil; mudarmos os defeitos gravíssimos da

nossa vida nacional seria mais difícil.

Page 40: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 40

Em torno da Liga começaram, quase desde o início, a moverem-se

intrigas políticas, logo que os vários líderes políticos pressentiram que

ela poderia chegar a ser uma força contrária aos seus próprios

interesses.

Não querendo desvirtuar o pensamento inicial que presidira à sua

fundação, nem torná-la instrumento de ambições pessoais, apresentei a

minha demissão de presidente da Liga em fins de Abril.

Eu que fora arrancado ao meu isolamento voluntário, por

entusiasmo patriótico que visava o ressurgimento nacional, regressei

a Vila do Conde decepcionado com aquilo que terá sido a minha

última ilusão.

A este propósito, permitam-me citar aqui algumas palavras dum

homem que, embora não tivesse sido meu contemporâneo, parece ter-

me conhecido bem – Jorge de Sena: “Se por vezes se sentia deprimido

ou desiludido, e se afastava da vida pública a que as suas qualidades e

a sua generosidade o levavam a envolver-se, isso terá sido porque lhe

faltavam o cinismo, a mesquinhês e a capacidade de mentir, que são

parte da vida política, e porque era evidentemente demasiado exigente,

moralmente e intelectualmente, para um país que saboreava a sua paz

liberal, após muitos anos de guerras civis, e a mantinha ao preço de

trair quaisquer ideais de democracia autêntica”.

O Suicídio

Após pedir a demissão da Liga regressei a Vila do Conde, de onde,

penso, não deveria ter saído nunca. Estava, porém, findo o retiro

vilacondense. Em Maio de 1891 desfazia a minha casa de Vila do

Conde e jantava no “Tavares” com os “Vencidos da Vida” – todos

vencedores, menos eu.

Surge então o projecto de me fixar definitivamente em S. Miguel,

juntamente com as minhas filhas adoptivas que, entretanto, internara

nas Doroteias do Porto.

Foi em 1887, durante a visita à minha ilha natal, que teria

resolvido mudar para aí a minha residência. Tive um certo prazer em

Page 41: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 41

tornar a ver a minha terra, ainda que não sei porquê, e talvez só por

instinto, pois deve haver uma relação profunda entre o homem e a

terra que o vira nascer. Ou seria talvez que este isolamento num canto

do mundo, que era já uma meia morte ou uma morte antecipada

conviria muito ao humor em que há muito me sentia.

Depois de abandonar o projecto de me fixar em Lisboa, parti para

S. Miguel a 5 de Junho de 1891.

Agora acrescia ao desejo que tinha de preparar um ambiente

social para as minhas “pupilas”, a náusea que me causara a última

experiência em Portugal. Também alimentava outra esperança: reduzir

a prosa a filosofia que incompletamente expusera na última parte

dos meus “Sonetos” e que apenas desenvolvera nas “Tendências

Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX”.

Mas, em meados de Agosto, o meu estado de saúde agravou-se

em parte devido à irregularidade do clima micaelense, mas muito

principalmente a desinteligências familiares motivadas pela presença

das filhas adoptivas que alguns membros da minha família pareciam Ia

vivendo mais exaltado do que nunca, chegando a dizer, sem rebuço,

para meu primo Sebastião Arruda: “Quando a vida não serve para

nada, nem para nós, nem para os outros, atira-se fora como um

fardo inútil”.

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Carlos Jaca 42

Assim fiz. Era uma tentação antiga: duas vezes o Oliveira

Martins me desarmou, e uma no instante em que me ia matar. E então

havia um motivo de mulher.

A 11 de Setembro de 1891, vestido excepcionalmente de preto

entrei num estabelecimento e, pretextando que morava no campo e

precisava de um revólver para afugentar algum malfeitor, comprei um

revólver que o próprio caixeiro me ensinou a manejar.

Quanto às minhas filhas adoptivas procurei, antecipadamente,

preparar-lhes o futuro sem ter recorrido a familiares.

Ao anoitecer, sentado num banco do Campo de S. Francisco,

junto ao muro que fecha a cerca do Convento da Esperança,

precisamente no local onde em relevo se encontra uma âncora e a

palavra Esperança, suicidei-me com dois tiros, sendo sepultado no dia

seguinte no cemitério de S. Joaquim de Ponta Delgada.

“Só então, e não quando escreveu o soneto que o exprime, se teria

realizado o sonho daquele paradoxal espírito, que, aspirando a vida

inteira à serenidade dos místicos, toda a agitou num permanente esforço,

de que ela contribuísse para a felicidade dos seus semelhantes, na

justiça e na liberdade. Só então se encheram de verdade os versos

admiráveis”:

Page 43: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 43

Na mão de Deus, na sua mão direita,

Descansou, afinal, meu coração;

Do palácio encantado da ilusão

Desci, a passo e passo, a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorância infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão

A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,

Que a mãe leva no colo agasalhada

E atravessa, sorrindo, vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto…

Dorme o teu sono, coração inquieto,

Dorme, nas mãos de Deus, eternamente!

Page 44: “Fazer dos Mortos Gente de Hoje”

Carlos Jaca 44

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