branca dos mortos

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    Contents

    CopyrightPrefácio

    ReconhecimentoBranca dos Mortos e os Sete Zumbis

    João, Maria e os OutrosOs três lobinhos

     A vendedora de fósforos e o vingadorCindehella e o sapatinho infernal

     A confissãoBela Incorrupta

    O monstroO cemitérioSamarapunzel

    O fim de quase todas as coisasIlustrações

    Sobre o IlustradorSobre o autor

    Sobre o Jovem Nerd

    http://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0001.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0002.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0003.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0004.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0005.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0006.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0007.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0008.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0009.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0010.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0011.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0012.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0013.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0014.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0015.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0016.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0017.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0018.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0018.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0017.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0016.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0015.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0014.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0013.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0012.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0011.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0010.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0009.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0008.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0007.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0006.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0005.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0004.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0003.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0002.htmlhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_5/OEBPS/Text/part0001.html

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    Copyright

    © Abu Fobiya

    EDITORES

    Deive Pazos Gerpe

    Alexandre OttoniREVISГO

    Jair Barbosa

    CAPA 

    Rico Mendonça

    ILUSTRAÇÕES

    © Michel Borges

    © Nerdbooks, Curitiba, PR, Brasil, 2012.

    Todos os direitos reservados. Reproduçãoproibida. www.jovemnerd.com.br

    http://www.jovemnerd.com.br/http://www.jovemnerd.com.br/

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    Prefácio

     Você acredita em contos de fadas?

    Não?

    Bom, alguma coisa me diz que até o fimdeste texto você passará a acreditar.

    Já parou para pensar o que eles signi-

    ficam, na verdade? Os contos de fadas sãonada mais do que narrativas folclóricas, dot-adas de um significado implícito, que nãoprecisam ser interpretadas ao pé da letra,

    mas que também não devem ser descartadas– faça isso e automaticamente alguns elfos egoblins morrerão a seus pés.

    Heróis, princesas mágicas, orcs e trolls

    não só existem de fato como fazem parte

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    (ativamente, às vezes) de nossas vidas. Sãocriaturas com as quais temos que lidar no diaa dia, na escola, na faculdade, no trabalho eaté mesmo no aconchego do lar. Não satis-feitas, essas figurinhas bizarras ainda seescondem dentro de nós, afinal todos temosnosso lado bruto, ogro, nossa faceta heroica,cavalheiresca, somos mentores e vilões em

    ocasiões adversas e diante de pessoasdistintas.

    No passado, esses ensinamentos – do queera bom e ruim, certo e errado – eram trans-

    mitidos a uma determinada sociedade porgrandes mitos, e os contos de fadas nas-ceram como suas versões infantis. Serviampara ensinar às crianças como se comportar

    e principalmente para mostrar a elas o quenão se devia fazer. Em vez de pedir ao filhopara não confiar em estranhos, por exemplo,já que o pequeno iria logicamente questionaro “por quê”, os pais narravam, ao invés, aclássica fábula do lobo mau, o ente perverso,

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    devorador de menininhos... e quem podedizer que eles estavam mentindo?

    Quando bem contadas, essas alegorias nos

    fazem entender a natureza humana de formamais ampla, como na cena de O Mágico deOz em que Dorothy pergunta ao Espantalhocomo ele é capaz de falar se não tem um

    cérebro. A resposta é brilhante: “Muitaspessoas sem cérebro falam um bocado, nãoacha?”

    BINGO!

    Este é precisamente o sabor de “Brancados Mortos e os sete zumbis”.

    Os contos que se revelarão nas páginas

    seguintes não se resumem a estórias para en-treter, declamadas ao redor da fogueira – sãopeças educativas, de leitura envolvente, rev-istas e adaptadas sob as influências domundo de hoje.

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    De Hans Christian Andersen a Edgar Al-lan Poe, passando por H. P. Lovecraft, NeilGaiman e os irmãos Grimm, todas essasreferências estão enfim reunidas nestacoleção de fantasia e mistério, montada apartir da mente genial (e perturbada) do(nem tão) enigmático Abu Fobiya. São ecosde um reino distante, que no entanto estão, e

    sempre estarão, mais próximos do que agente imagina.

    E agora, você acredita?

    – Eduardo Spohr

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    Reconhecimento

    Este livro se apoia sobre os ombros dosgrandes colossos do terror: Dunsany, Love-

    craft, Poe, Gaiman e, é claro, Andersen,Grimm e Perrault.

     Abu Fobiya

    São Paulo, agosto de 2012

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    Branca dos Mortos e os SeteZumbis

    Era uma vez uma linda rainha. Donade um corpo escultural, majestosos cabelosloiros e penetrantes olhos azuis, ela era con-siderada por muitos a mais bela do mundo.

    Mas, antes de ser rainha, ela era uma mul-her. E o que ela mais queria na vida era sermãe.

    Mesmo já sendo casada há anos, já tendocomido as mais exóticas flores e raízes, be-bido os mais azedos chás e até mesmo a ur-ina de animais na tentativa de gerar umfilho, ela nunca conseguira engravidar.

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    Em busca de seu grande sonho, a infelizrainha se dirigiu em segredo àquele lugar emque todas as mães alertavam os filhos parajamais irem: a floresta proibida, que diziamser repleta de monstros e almas penadas,separada do castelo por um enorme muro degranito.

    Mesmo conhecendo as lendas sobre as be-stas furiosas que ali viviam, a rainha se ar-riscou e pegou a estrada de terra batida quehá muitos anos não era usada. Enquantocavalgava freneticamente, ouvia ao seu redor

    sons inexplicáveis e horripilantes, como sus-surros, risadas e espirros.

    Nem que ela quisesse poderia tirar os ol-hos da estrada, repleta de inúmeroscadáveres de animais em diferentes estágiosde putrefação, muitos deles com uma sinistraperfuração bem no meio do crânio, tão pre-cisa que se assemelhava a um terceiro olho.

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    Seguiu pela estrada até chegar a umacabana improvisada, formada por um amon-toado de galhos, barro e excremento depássaros.

    Lá, a rainha encontrou uma velha bruxa,que tinha a pele coberta por verrugas, os ol-hos saltados para fora e longos tufos de ca-

    belos brancos que mais pareciam teias dearanha penduradas à cabeça. Há muitos emuitos anos ela havia deixado a sanidadepara trás e, com ela, qualquer noção dehigiene ou vaidade. Assim, ela exalava um

    odor azedo, que impregnava até mesmo oscabelos sedosos da mulher do rei.

    “Mas que visita mais ilustre!”, ironizou abruxa. “O que vossa majestade faz nestelugar tão perigoso?”

     As pernas da rainha tremiam, mas sua ob-stinação por um filho conseguia ser maior do

    que seu medo e gaguejando, disse:

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    “Se-sei que tens poderes ocultos. Ajuda-me a engravidar e farei qualquer coisa quedesejares! Qualquer coisa!”

     A rainha não sabia que aquelas eram asduas palavras que não se deve dizer a um de-mônio. A bruxa concordou em ajudar.

    “Mas por um preço”, alertou.

    “Dar-te-ei joias, dinheiro, títulos... O quequiseres!”, aceitou a rainha, sem pensar nasconsequências.

     A bruxa estendeu a mão e a rainha a aper-tou, achando que assim selaria o pacto. Tãologo tocou a pele fina e gelada da velha, elafui puxada, com uma força atípica para al-

    guém daquela idade, e a mão foi virada eperfurada por uma pequena agulha.

    “Aaai!”, gritou a rainha.

    O sangue escorreu para uma pequenatigela de barro.

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    “Está feito!”, disse a bruxa, esbugalhandoainda mais os olhos sobre o sangue.

    “É isso? Agora já posso engravidar?”

    “Claro que não, tola! Esse é somente omeu pagamento adiantado! Agora, precisoque busques algumas coisas para mim!Nestes dias, nem mesmo eu me atrevo na

    floresta com o que há lá fora!”

     A rainha olhou ressabiada por trás do om-bro. Então, a velha consultou um antigotomo de magia negra e fez uma lista com trêsitens:

    “Voltarás amanhã com o sangue de teuperíodo mensal, as penas de um corvo e os

    olhos de um defunto do cemitério! Mas,presta atenção: esse último ingrediente deveser colhido às 3 horas da madrugada, semmais, nem menos, ou o feitiço nãofuncionará!”

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     A mulher do rei pegou a estrada de voltapara o castelo, ouvindo aqueles sons que lhefaziam gelar a alma. Seguindo as orientaçõesda bruxa, saiu às escondidas por volta das 2horas da madrugada, para que tivesse tempode encontrar um cadáver no cemitério eextirpar-lhe os olhos no horário correto.Chegando lá, ela foi iluminando as lápides

    com uma lanterna em busca da que tivesse aaparência mais recente, quando viu umamontoado de terra fofa e granulada.

    Passou as mãos sobre o monte e concluiu

    que os parentes ainda deviam chorar poraquele sepultamento. Pegou uma pá e cavouaté encontrar o corpo de um homem, que jáfedia, mas ainda não estava decomposto.

    Enquanto enfiava-lhe uma faca dentro dasórbitas para arrancar os olhos, vomitou porduas vezes diante de tamanha atrocidade.

    “Perdoa-me, meu senhor! Perdoa-me!”,

    suplicava ela, quando foi interrompida.

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    “Ah, então deve ter sido isso...”

    Na manhã seguinte, a rainha voltou até acabana na floresta levando os olhos, seu

    próprio sangue espremido numa tigela decerâmica e as penas do corvo, único ingredi-ente fácil daquela lista.

     A velha bruxa parecia ainda mais horripil-

    ante quando abria seu sorriso com a línguapassando entre seus dois únicos dentes. Elapegou os ingredientes e fungou-os profunda-mente, como se fossem o mais perfumado

    dos vinhos.“Que delícia!”, exclamou.

    Em seguida, jogou um a um num enorme

    caldeirão com água e sua própria urina,entoando canções que jamais deveriam tersido escritas. O líquido ferveu, adquirindo acor negra da morte. Ela pegou uma conchacheia, que veio borbulhando um líquido es-

    pesso e viscoso e ordenou à rainha:

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    “Bebe! Sem fazer perguntas!”

    “Mas...”

    “Vamos, vamos, não temos o dia todo!” A mulher pegou a concha e teve que se se-

    gurar para não vomitar. Quando opensamento começou a transitar pela visita

    ao cemitério na noite anterior, ela tentoupensar em outra coisa e levou a concha àboca de uma só vez. Bebeu tudo num únicogole, que queimou sua língua e desceurasgando pela garganta como cacos de vidro.

    O líquido se remexeu em seu estômago elogo tentava voltar para cima. A rainha sepreparou para expeli-lo, mas, como se já

    houvesse imaginado, a bruxa pôs sua mãosuja e verruguenta na boca da mulher.

    “Não, não, não”, exclamou. “Tens que ficarcom o líquido na barriga até te deitares com

    teu marido no momento em que a lua cheia

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    estiver mais alta! Senão o feitiço não fun-ciona! Compreendeste?”

     A rainha forçou-se a engolir o gole de

    vômito que subia com a bile, piorando aindamais o gosto em sua boca.

    “Agora, parte!”, ordenou a velha. “Nosveremos depois do nascimento da criança,

    quando virei cobrar meu preço!”, riu.

    Naquela noite, mesmo nauseada, a rainhaesperou acordada o momento em que a luacheia brilhou mais forte no céu. Acordou orei, que por um momento achou que est-ivesse sonhando ou a mulher delirando, maslogo entrou naquela dança e ambos se am-aram como há tempos não faziam. O marido

    dormiu com um sorriso no rosto que durouaté a manhã seguinte e a esposa chorou, jásem saber se queria que o feitiço funcionasseou não.

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    Mas bastaram poucos dias para que elacomeçasse a sentir os primeiros sinais dagravidez: enjoos, uma fome animalesca euma constante vontade de se aliviar nobalde. A princípio, os sintomas foram motivode comemoração, mas a futura mãe logo per-cebeu que não eram como aqueles que suasaias sentiam quando engravidavam.

    Primeiro, foi acometida por uma febre delir-ante que a fez convulsionar. Depois, sua lín-gua passou a se retorcer, como se puxadagarganta abaixo pela garra de um bicho-

    preguiça. Seu estômago parecia ser reviradopelo nariz de um porco selvagem, as unhascaíam como se quisessem fugir das falangese de sua vergonha uma enxurrada de sanguedescia torrencialmente, explodindo em bol-

    has fétidas de fumaça preta que estupravamas narinas, batiam no pulmão e voltavampela laringe impregnando todo o palato.

    Médicos e curandeiros foram chamadospelo rei, mas não havia ninguém naquela

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    terra capaz de explicar a razão de tamanhaenfermidade. Sem esperanças, o marido le-vou o sacerdote até o castelo e lhe ordenouque fizesse os sacramentos finais da mulhere do filho que jamais nasceria.

    No ardor de seus delírios febris, a rainhaconfessou:

    “Perdoa-me, sacerdote! Estou pagando opreço porque fiz um pacto com um de-mônio”, balbuciava, semi consciente.

    “Do que estás falando, mulher?”

    “A bruxa... a bruxa que vive na floresta...”

    O rei, estarrecido por aquelas palavras,tentou aprisioná-las no porão de sua mente e

    clamou aos céus que elas fossem um simplesdelírio. E, caso fossem verdade, implorou aosdeuses para que tivessem piedade da alma daesposa.

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    Mandou seus guerreiros mais condecora-dos até a floresta atrás da bruxa, mas dentreos corajosos guerreiros, poucos foram os quenão desertaram frente aos boatos sobre ascoisas inomináveis que aconteciam além dosmuros de granito. Dos que se atreveram acumprir as ordens do rei, poucos voltaram e,os que conseguiram, disseram não ter encon-

    trado nada.Foram doze semanas de uma incomen-

    surável miséria sofrida pela rainha. No ent-anto, para a surpresa de todos, ao início da

    décima terceira, as agruras se foram porcompleto. A saúde foi reestabelecida comoque por milagre - os enjoos passaram, as un-has agora cresciam viçosas e brilhantes e o

    sangue borbulhante deu lugar a um ren-ovado apetite pelos prazeres carnais que emmuito agradou ao marido.

    “Talvez não haja bruxa alguma!”, pensou o

    rei, lembrando-se das histórias contadas por

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    seu avô, sobre uma fatídica noite na qual omal foi liberto dentro daquele mesmocastelo.

    Os meses foram passando e a gravidezseguiu de forma tranquila. A barriga enormeparecia abrigar um bezerro, e era ostentadada janela com orgulho pelos futuros pais. E,

    lá embaixo, entre seus fiéis súditos, quemmais parecia estar feliz era uma mulher en-volta num manto preto:

    “He, he, he... mal posso esperar pelo nas-

    cimento!”, riu.“Será um momento de grande alegria, não

    é mesmo?”, perguntou-lhe um camponês quetambém acenava para os regentes.

     A velha tirou o manto preto, exibindo umacabeleira loira e densa.

    “Tu não podes imaginar!”, riu.

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     A bruxa sentia-se revigorada, e aparentavaser ao menos 30 anos mais jovem. E, aindaque não fosse exatamente bela aos olhos dasociedade, podia se misturar ao povo en-quanto aguardava a chegada da criança.

    O que ela não sabia era o quão forte seriao amor daquela mãe pelo bebê que crescia

    em seu ventre. Amor que expurgou do corpoa magia negra como um alimento estragado,protegendo o pequeno feto de toda amaldade. Assim, quarenta semanas após oencontro na floresta, ao invés de uma abom-

    inação disforme como a bruxa planejara, arainha deu à luz uma linda menina, apequena Branca, que nasceu com os lábiosvermelhos como sangue, os cabelos negros

    como as penas de um corvo e a pele brancacomo os olhos de um defunto.

     Ao ver o bebê perfeitamente saudávelsendo exibido na janela do castelo, a bruxa,

    agora aparentando ser ainda mais jovem e

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    com quase todos os dentes na boca, sentiu-setraída. Voltou para sua cabana na floresta,onde fez seu feitiço mais poderoso, e o trouxena forma de uma maçã.

    “Majestade... gostaria de parabenizá-lapor sua linda filha... e aproveitar paraoferecer-te este presente!”, disse no Dia de

    Oferendas, em que todos os servos do reinolevavam presentes e dinheiro para a famíliareal.

     A rainha, sentada ao lado do rei e com a

    pequena Branca nos braços, salivou ao veraquela maçã tão apetitosa. Preparou-se paramordê-la, quando a menina começou a chor-ar e se debater histericamente.

    “O que esta menina tem?”, perguntou,passando-a para os braços do marido. Nisso,a bruxa já se dirigia à saída. O rei tentou ac-almar a filha, quando a rainha mordeu a

    maçã. Poucos segundos depois, gritos foramouvidos, que soaram como uma suave

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    melodia para a velha enquanto descia as es-cadas do castelo, às gargalhadas.

     À primeira mordida na maçã maldita, a

    rainha sentiu a língua endurecer, o corpoformigar, as pálpebras ficarem pesadas, atéque caiu num sono tão profundo que seu cor-ação não conseguia mais bombear sangue

    para o corpo. Morreu ali mesmo, sufocadaaos pés do marido, da filha e dos súditos.

    Talvez fosse consequência do feitiço, ouentão de sua lendária beleza, mas o fato é

    que seu corpo jamais apodreceu. A pelemantinha-se suave, os cabelos sedosos, atéos lábios pareciam não ter ressecado. Porisso, o rei ordenou que o corpo fosse colo-cado num belíssimo esquife de vidro, paraque ele pudesse admirar a beleza da esposamorta todos os dias de sua vida.

     A história sobre a chocante morte da

    rainha abalou a todos os súditos. Tornou-sefofoca, depois lenda e, enfim, mau agouro.

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    Ninguém ousava comentar abertamente quea rainha havia feito um pacto com uma bruxapara conceber sua filha e pagara com a pró-pria vida. Os rumores logo chegaram aosouvidos do monarca, que se lembrou dosdelírios da esposa durante o início dagravidez e das palavras que mantinha apri-sionadas para que não apodrecessem seu

    pensamento.Por mais que ele tentasse evitar, as

    recordações agarravam-se ao luto e cresciamcomo hera, infectando seu amor pela filha.

    Assim, ele acabou culpando-a pelo miserávelfim da esposa e a pequena Branca, cujosprimeiros dentes ainda lhe rasgavam as gen-givas, passou a ser tratada pior do que os pri-

    sioneiros do calabouço: vestia roupas velhas,comia apenas migalhas e dormia no chão friosem conforto nenhum.

    Os meses passaram e o rei ainda não havia

    superado a perda. Todos os dias, ele passava

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    horas olhando para o corpo intacto da esposadentro do esquife, orando para que um diaacordasse. Mas tal dia jamais chegou.

    O luto só teve fim quando o monarca viuchegar à corte uma forasteira de longos ca-belos loiros, dona de uma beleza que emmuito lembrava a de sua falecida esposa.

    Finalmente ele estava pronto para seguir adi-ante na vida: ordenou que o esquife fosse en-terrado e desposou a forasteira numa grandi-osa cerimônia, para a qual foram convidadosreis, rainhas e sábios do mundo todo.

    Mal sabia ele que estava se casando com amesma bruxa ensandecida e invejosa, agorafeita jovem, que causara todas as desgraçasem sua vida.

    Do escuro porão do castelo, Branca, a ún-ica que não tinha culpa de nada, ouvia amarcha nupcial, sem entender por que sua

    alma estava tão triste.

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    ***

     Após o casamento, a bruxa, agora feitarainha, teve a vida com que sonhara desde a

    sofrida juventude, muitas décadas antes.Vivia recebendo regalos de seu rei, conduziaà mão de ferro os rumos do reino, era tratadacom respeito e submissão por todos.

    Um dia, para provar seu amor, o reimandou que seu caçador buscasse o presentemais caro do mundo, e ele voltou com um es-pelho encantado, capaz de responder a

    qualquer pergunta. Aquele artefato mágico, que permitia à

    bruxa navegar livremente por todo o con-teúdo e o conhecimento humanos, poderia

    tê-la transformado na mais sábia e culta dasrainhas. Contudo, ela apenas o utilizava paradescobrir inutilidades, bisbilhotar a vida al-heia ou alimentar o próprio ego. Assim, to-

    dos os dias pela manhã ela perguntava ao es-pelho mágico:

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    “Espelho, espelho meu, quem é mais belado que eu?”, apenas para ouvir a respostaque lhe soava como uma canção de ninar:

    “És de todas a mais bela!”

    E foi assim durante tantos anos que arainha acabou se habituando à resposta. Atéque o espelho e todo seu conhecimento fo-

    ram deixados de lado.

    Enquanto isso, a pobre Branca levava umavida que em nada lembrava a de umaprincesa. Esvaziava os baldes de excementosno rio, esfregava o chão, buscava água nopoço. Todos lhe davam ordens, da rainha aosescravos. Todos sentiam que, de algumaforma, eram superiores a ela, pois ainda que

    ninguém tivesse coragem de admitir, nãohavia culpa em maltratar alguém que todosacreditavam ser amaldiçoado.

    Se fosse questionada, Branca sequer po-

    deria afirmar que era triste, pois em toda a

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    vida jamais tivera momentos felizes paracomparar. Mas, mesmo com tamanhaprovação de seu espírito, a menina cresciacomo uma rosa no deserto, que debocha dasadversidades que a natureza lhe impõe. Acada dia, ficava mais bonita, característicaque ao menos atenuou o tratamento cruelcom que muitos na corte lhe dispensavam.

    “Talvez ela seja mesmo filha do rei”,comentou um servo, ao notar sua beleza.

    “Talvez ela não seja maldita!”, arriscou o

    outro, sem imaginar que jamais saberiam aresposta.

    Um dia, quando o corpo de Branca já sedesabrochava em mulher, o príncipe de um

    reino distante chegou ao castelo após passardias perdido na floresta sombria. Faminto ecom sede, relatou as mesmas coisas que to-dos os viajantes que por lá se arriscavam:

    ouvira vozes, sussurros, risadas e espirrosvindos de todos os cantos, além ter

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    encontrado animais de todos os portes comuma sinistra perfuração no crânio.

    Sem tirar os olhos do príncipe, a rainha

    ouviu suas palavras, com particular interessepelos monstros que atacavam os animais:

    “Viste algum? Sabes se é um, se são vári-os?”, perguntou, intrigada.

    “Não! Atravessei a floresta a cavalo, cor-rendo sem olhar para trás, até que encontreivosso castelo.”

     A rainha estava preocupada. Mas algo aimpedia de pensar direito:

    “Por que não passas a noite aqui, meu belopríncipe? Pela manhã, estarás recuperado e

    poderás seguir viagem.”

    “Muito obrigado, majestade. Aceitareivosso presente de bom grado! Onde fica oquarto de hóspedes?”

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    “Vêde que ironia! Aqui, neste enormecastelo, não temos quartos para hóspedes.Mas não te preocupes - o rei está viajando”.

    ***

    Na manhã seguinte, o príncipe deixou oquarto da rainha. Mesmo sem ter bebidonada na noite anterior, sentia uma ressaca

    que lhe entorpecia a alma. Sem saber expli-car a razão, sabia que tinha feito algo de quese arrependeria. Mais do que depressa,pegou suas coisas e partiu.

    No pátio do castelo, viu algo que chamousua atenção. Tirando água do poço para lavaro chão, estava uma jovem maltrapilha, tãolinda que o atraiu como a lua faz com os

    vagalumes.

    “Qual é teu nome?”, perguntou o príncipe.

    Branca não respondeu. Virou-se para fu-

    gir, o príncipe a pegou pela mão e ela recuou

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    por um segundo, ao sentir a sedosa texturada pele em contato com seus dedos caleja-dos, que fez um arrepio subir até a nuca. Ol-hou para trás e apenas riu, antes de sair cor-rendo para o porão.

     Aquele seria o único momento feliz queBranca teria em toda sua vida, incluindo as

    poucas semanas miseráveis que ainda lherestavam.

    ***

    Da janela de seu quarto, ainda nua, arainha viu Branca no jardim do castelo sendocortejada pelo príncipe. Seu coração foi en-tão tomado por um sentimento ainda pior doque a inveja: a dúvida. Ela se dirigiu até a su-

    perfície empoeirada do velho espelho mági-co. Passou os dedos entre seus cabelos, rev-elando algumas raízes que começavam abranquear. E, enfim, depois de muitos anos,

    limpou o espelho com um pano e fez-lhe uma

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    pergunta para a qual não tinha mais certezada resposta:

    “Espelho, espelho meu, quem é mais bela

    do que eu?”

    Com a mesma voz grave de antes, o es-pelho respondeu:

    “Ainda és muito bela, mas há alguém cujabeleza superou a vossa. Ela tem os lábiosvermelhos como sangue, os cabelos negroscomo as penas de um corvo e a pele brancacomo os olhos de um defunto”, antes demostrar a imagem da pobre Branca es-fregando o chão do pátio.

    “Aquela pirralha! Pior para ela!”, esbrave-

    jou a rainha. “Não fosse por mim, ela sequerteria nascido! Como se atreve a ser mais belado que eu? Eu sou de todas a mais bela! EU!”

     A rainha chamou seu fiel caçador, a quem

    ordenou:

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    “Leva-a para bem longe, até as fronteirasde nosso reino. Não me importa o que faráscom ela. Mas depois quero que me tragas ocoração nesta caixa, como prova de teuêxito!” - concluiu, entregando-lhe uma caixade madeira com detalhes de ouro.

    O caçador tentou argumentar:

    “Mas, majestade, a princesa...”, quando foisilenciado com um berro histérico:

    “Se acaso falhares, tu morrerás!”, alertou arainha.

    O caçador abaixou a cabeça e foi embora.

    ***

    “Princesa?”, disse o caçador, à pobreBranca, que limpava a sujeira dos pombos dochão do pátio.

    “Ninguém me chama assim, ainda que eu

    seja a filha do rei”, respondeu Branca.

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    “Tua madrasta mandou que eu te entre-gasse um presente!”

    “Um presente, caçador?”, ela estava sur-

    presa, pois nunca havia ganhado um míserobroche de pano.

    “Sim. Queira me acompanhar, por favor!”,era a primeira vez que alguém lhe dizia essas

    duas últimas palavras.

    Curiosa, a jovem obedeceu ao caçador.Fosse em outra situação, a cena seria malv-ista por qualquer um no reino: uma garotamaltrapilha acompanhando um senhor demeia idade para além dos muros que separa-vam o castelo da floresta sombria. Mas,como se tratava da infame Branca, as pess-

    oas olhavam com desdém, algumas até lheatiravam coisas.

    “Amaldiçoada!”, gritou um, atirando umtomate.

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    “Cuidado com ela, caçador!”, sussurrou ooutro.

    “Princesa, como consegues viver com

    tamanhos insultos?”, perguntou o caçador.

    “Eu já estou acostumada... dizem que foipor minha causa que minha mãe morreu...Talvez tenha sido mesmo...” Branca era

    como um cachorro que, espancado sem sabero motivo, começa a achar que fez algo paramerecê-lo.

    Chegaram às portas da floresta sombriapouco depois, um lugar sem nada de espe-cial, com vegetação rasteira que precedia asárvores sombrias e retorcidas que se avolu-mavam logo à frente. Sem saber o que dizer,

    o caçador apontou para uma moita e disse:

    “Hã... lá está teu presente!”.

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    “Uma moita? Com flores? Mas que coisamais adorável! Talvez a madrasta não sejatão má assim, afinal!”

     A inocente Branca abaixou-se para colheras flores, quando viu a sombra do caçador seprojetar a sua frente. Ela se virou e o viuerguendo o punhal, pronto para ceifar sua

    vida.“Aaaah!”, gritou ela. “Socorro! Socorro!”

     A mão do caçador tremeu, derrubando aarma. Arrependido, ele se ajoelhou diante deBranca.

    “Princesa... por favor, perdoa-me! Tu nãomereces isto! Ela é má, invejosa! Ninguém

    pode com ela!”“Ela... ela quem?”

    “A rainha! Tua madrasta, ela é quem or-denou que te matasse! Tu precisas fugir, para

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    bem longe! Vá, fuja, menina! Para bemlonge, sem olhar para trás!”

    E, naquele instante, a vida de Branca, que

    nunca fora fácil, mudara por completo. Elacorreu assustada para a floresta proibida,sem imaginar que jamais voltaria.

    O caçador, resignado, viu a pobre princesa

    correr para o único lugar no mundo onde suavida poderia piorar. Preparou-se para voltarpara o castelo, já com um plano em mente:arrancaria o coração de um porco, sob mui-

    tos aspectos idêntico ao humano, e o ap-resentaria à rainha como se fosse o deBranca.

    Pegou seu punhal e abaixou-se, procur-

    ando pela trilha de um animal. Não tardou aencontrar uma, e passou a seguir as pegadasquase equidistantes.

    “Foi naquela direção”, pensou, enquanto

    desenhava o mapa em sua mente.

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     Alguns metros à frente, os intervalos entreas pegadas se tornaram mais espaçados.

    “Fugiu de alguma coisa”. Mas não havia

    outras pegadas ali. O que quer que o porcotivesse visto, devia ser grande o bastantepara amedrontá-lo à distância. Talvez já est-ivesse morto.

    “Tanto melhor”, concluiu o caçador,“desde que o coração esteja intacto”. Nadapoderia prepará-lo para o que veria adiante.

     A carcaça do porco ainda estava quente.Parara de respirar há poucos minutos, emconsequência da perfuração precisa em seucrânio.

    Quem – ou que quer que tivesse feitoaquilo – não o fizera para se alimentar, poisas partes nobres da carne, como as costelas,o lombo e, para quem aprecia, o rabo, es-tavam intactos. Apalpando os pelos do anim-

    al, encontrou algumas mordidas rasas, que

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    não chegaram a arrancar pedaços. As que es-tavam em melhor estado expeliam pus esangue, as piores, já eram consumidas porvermes.

    “Como é possível?”, pensou. “O animal foiatacado há poucos minutos, como pode estarem decomposição?”

    Foi quando ouviu um ronco atrás de si.Virou-se, procurando pelo predador, quepelo som não seria menor do que um javali.Mas nada viu. Do outro lado, ouviu uma ris-

    ada maligna. E, enfim, um espirro.Pela primeira vez, ele não era caçador,

    nem caça.

    Era um banquete.***

    Desesperada, a pobre Branca seguiu as or-dens do caçador e fugiu mata adentro, alheiaà sangrenta carnificina que ocorria atrás de

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    si. Tropeçando em galhos e enroscando-seem cipós e teias de aranha, não se detinhapor nada, enquanto corria e tinha as roupasdilaceradas por galhos e espinhos. Os mem-bros ardiam em carne viva, os músculos im-ploravam por piedade quando um passo emfalso fez com que tudo começasse a rodar.Água e terra entraram por sua boca, as per-

    nas giraram soltas no ar até que a cabeçabateu numa pedra e os olhos se fecharam.

    “Vou morrer”, pensou Branca, antes dedesmaiar. Mas, se a sorte tivesse lhe sorrido

    uma única vez, a pobre sequer teria vindo aomundo.

    Quando despertou, viu dois enormes olhosamarelos diante dos seus. Gritou novamente,e a coruja, revoltada, bicou-lhe a testa, quaseatingindo o olho. Observou a seu redor e es-tava completamente cercada por lobos, mor-cegos, coelhos, um alce, um porco-espinho,

    abutres e até uma tartaruga.

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    Os animais, imóveis, olhavam-na como seela lhes devesse algo. Não fosse pela respir-ação e pelo o rosnar dos lobos, parecia queestavam empalhados.

     A raposa veio e farejou suas pernas trêmu-las. Nem se deteve com o sangue que escor-ria de seus ferimentos. A coruja, agora de

    cima de um galho, mantinha as asas abertas,tentando parecer mais assustadora. E ocoelho batia os pés nervosamente no chão,com os olhos vermelhos fixos nos da jovem,apavorada com os lobos que lhe rosnavam

    mostrando os dentes.

    De repente, algo invisível chamou aatenção dos animais. Se Branca tivesse ossentidos aguçados como os da raposa ou docoelho, teria ouvido, a centenas de metrosdali, um espirro.

    Os animais bateram em retirada, e Branca

    ficou sozinha outra vez.

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    ***

    Foram apavorantes horas de caminhadafloresta adentro.

    Os sentidos de Branca, à flor da pele, adeixavam alerta a qualquer som, como folhassecas se partindo e um riacho que devia cor-rer ali por perto. Mas os sons mais aterroriz-

    antes que ela escutava eram assustadora-mente humanos, como risadas, roncos e es-pirros que ela não sabia dizer de ondevinham.

    Seus olhos já estavam anestesiados comtamanha matança que vira espalhada pelochão e pelos galhos. Em todos os lugareshavia animais com o crânio perfurado. A

    fome lhe comprimia o estômago, mas ela nãoteve coragem de comer a carne dos bichos,muitos deles em estágio avançado deputrefação.

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     A falta de alimento, bebida e sanguedeixava-a mais lenta e a adrenalina já nãoera combustível suficiente para manter aspernas em movimento.

    Finalmente, elas cederam, e Branca des-abou no chão. Nem tentou se levantar.Gritava “Por quê, por quê?” com a boca enfi-

    ada na terra, que abafava o som e eragolpeada pelos punhos. “Por que eu, por quetanta desgraça acontece comigo?”. Pediu aoscéus por um sinal, um único sinal de que ascoisas poderiam, um dia, melhorar.

    Foi quando ela ergueu a cabeça e viu, pou-cos metros a sua frente, um pequeno seixobranco. À frente dele, mais um, e mais um,formando uma trilha que levava a umapequena casa feita de pedra, no meio de umaclareira na floresta.

    “Não... não pode ser!”, disse, incrédula,

    tirando a areia dos olhos.

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    Ergueu-se rapidamente. Ao que tudo in-dicava, a casa estava abandonada, visto aquantidade de pó que se acumulava nosvidros. Na frente dela, havia um poço, deonde ela puxou um balde cheio d’água.Apesar do gosto de terra e lodo, foi a melhorbebida que tomou na vida.

    “Mas que casa mais bonita!”, pensou.“Como pode uma casa dessas ficar abandon-ada aqui, no meio da floresta?”

    Ela limpou um dos vidros com a mão e ol-

    hou o interior. Vazia. Gritou:“Ô de casa!”, mas ninguém respondeu.

    Abaixou-se e entrou pela porta, destrancada.

    Tudo estava muito bagunçado, com pratose roupas sujas espalhados pelos cantos. Asparedes eram resistentes, feitas de pedra, e aestrutura toda feita de madeira antiga. A salaera equipada com uma lareira e, num canto,

    havia um belíssimo órgão de tubos.

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    Branca pressionou levemente uma das te-clas, que enviou ar comprimido para o tubocorrespondente e soprou em lá.

    “Gostaria muito de ter aprendido a tocarpiano...” pensou, lembrando-se de sua so-frida infância.

    Subiu para inspecionar o segundo andar.

    Num pequeno quarto, havia um enorme baú,repleto de moedas de ouro e pedras precio-sas. Mas que de nada valiam ali. Já o quartoao lado possuía algo muito mais valioso para

    ela: sete pequenas camas.“Devem ser de crianças”, pensou. “Talvez

    seus pais tenham sido mortos pelos mon-stros. Talvez elas também”. Juntando três

    delas, conseguiu formar uma cama só parasi, onde caiu, exausta.

    “Eu poderia viver aqui”, pensou. “Achoque minha sorte está mudando”.

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    Ela ainda não havia aprendido.

    ***

    No castelo, a rainha já nem se questionavaquanto ao êxito do caçador. Para coroar suacovarde vitória, ela perguntou ao espelho,cheia de si:

    “Espelho, espelho meu, quem é mais belado que eu?”

    Depois de alguns segundos, o espelhodisse:

    “Por detrás das sete colinas, além dafloresta sombria, numa velha casa abandon-ada que insiste em ficar de pé, vive Branca,que ainda é a mais bela!”

     A rainha achou que o espelho estivesseenganado:

    “Não, meu fiel espelho! O caçador a

    matou!”

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    “O caçador caiu em perdição. Está morto,minha rainha!”

    “Morto? Como é possível! Mostra-me o

    corpo!”

     A imagem do espelho mudou para umasimples paisagem da floresta sombria.

    “Deves estar com algum defeito!”Então a rainha foi acometida por uma

    ideia que jamais tivera antes:

    “Mostra-me o que se esconde na florestasombria”

    “Nem mesmo eu posso revelar tamanhomistério...”

    “Aaaah! Espelho inútil, tu não me servesde nada!”, gritou a rainha raivosa, socando oespelho, que se quebrou em vários pedaços,que caíram e continuaram falando em

    uníssono:

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    “Ninguém pode saber o segredo dafloresta! Ninguém!”

    Ela pegou um dos fragmentos e disse:

    “Mostra-me a casa onde está Branca”. Aimagem mudou prontamente para a da casano meio da floresta.

    “Leva-me até ela” e todos os fragmentosresponderam juntos:

    “Como desejares, minha rainha”

     Ainda que ela sempre temera o que seescondia nas matas, seu ódio e sua vaidadeeram ainda maiores do que o medo.

    “Branca, tu não perdes por esperar! Mas...

    um momento! Como a rainha, não posso servista deixando o castelo em direção àfloresta! Certamente levantarei suspeitas...sendo assim, creio que sei o que devo fazer,ha ha ha!”

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     A bruxa desceu até o porão numa escadasecreta em espiral, conhecida apenas pelasratazanas e pelos camundongos. Lá havia umcovil improvisado, onde ela guardava livros eingredientes mágicos trazidos de sua cabanaque, se descobertos, a condenariam à mortena fogueira centenas de vezes.

    Pegou um caldeirão enferrujado, no qual,durante longas horas, preparou um feitiçoque temporariamente revelaria quem ela erapor dentro: uma bruxa velha e decrépita.

    Ela tomou a poção e, tão logo o líquidodescia por sua garganta, começou a sentirseus efeitos. A pele afinou e se enrugou,enchendo-se de verrugas horrendas. Os ol-hos se amarelaram e saltaram para fora, oscabelos e dentes caíram apodrecidos, acoluna se curvou, deixando-a corcunda efazendo a pele das tetas quase tocar o chão.E, após aquela horrenda transformação, ela

    ria como uma hiena. Olhou para o fragmento

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    de espelho em sua mão, revendo pelaprimeira vez em anos sua verdadeira forma.Tocou com os dedos as verrugas e pintas pe-ludas que lhe cobriam a pele, passou a línguaentre os dois únicos dentes da boca, escovouos finos tufos de cabelos brancos. Por maisdoentio que parecesse, ela sentia um fascínionostálgico por sua antiga forma.

    “Agora ninguém vai desconfiar destavelha! E quando der cabo de Branca, sereinovamente a mais bela de todas!Bwhahahaha!”

    Consultando um de seus antigos tomos demagia negra, ela reviu o sono da morte, a re-ceita de maçã envenenada que ela dera à an-tiga rainha. Com cuidado, seguiu as in-struções, misturando o manto da noite, oriso de uma bruxa, pó de múmia e o ingredi-ente mais poderoso de qualquer feitiço:doses cavalares de ódio. Quando terminou,

    não tinha em mãos uma simples maçã

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    envenenada. Aquilo era sua obra de arte,com a superfície brilhante e a morte puls-ando por dentro.

    “Agora começa teu sortilégio!”, riu, en-quanto via seu próprio rosto refletido nacasca perfeita e reluzente. Guardou a frutanum cesto e deixou o castelo em direção à

    floresta.***

    Em sua nova vida, Branca saía de casasomente em casos de grande necessidade. Adespensa da cozinha abandonada ainda dis-punha de muitos alimentos, como farinha,açúcar, sal e grãos, que, mesmo cheios decarunchos, podiam ser usados para preparar

    suas refeições. Por mais pobres que fossem,ainda eram infinitamente melhores do queaquelas que ela tinha nos porões do castelo.

    O poço do lado de fora fornecia água re-

    lativamente potável, que ela ainda usava

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    para limpar o chão e tirar o pó dos móveis.Em pouco tempo, o lugar começou a se pare-cer com algo que ela jamais tivera: um lar deverdade.

    Tudo correu bem nos primeiros dias. Noentanto, àquela altura, a jovem Branca jáhavia aprendido que os momentos de paz, ao

    menos em sua vida, eram passageiros comouma chuva de verão. Por mais que não escut-asse os horripilantes sons vindos da floresta,ela sabia que um dia eles viriam.

    Desmontou as camas e os móveis paraaproveitar sua madeira e, com ela, vedou to-das as janelas. Quando a madeira acabou, ar-rancou o tampo das mesas e usou até mesmolivros como tijolos improvisados.

     As únicas fontes de luz eram a porta dafrente, algumas frestas nas janelas, pelasquais ela observava atentamente o mundo

    exterior, e o buraco da chaminé, que tambémservia de posto de observação.

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    Em seu coração, desejou que os monstrosa deixassem em paz. Mas, se acaso viessem,ela estaria preparada.

    ***

     A bruxa usou o pedaço do espelho comouma bússola para se guiar pela floresta.Revisitando as árvores retorcidas e vegetação

    quebradiça, ela se recordou dos tempos emque vivera ali, à margem da sociedade e àmercê dos monstros, sentindo uma ponta desaudade.

     A verdade é que a temida floresta nemsempre fora assombrada. Inexplorada,talvez, mas isso era tudo. Quando ela semudara para lá, fugindo da cidade muitas

    décadas antes, não havia nada de muitoanormal por entre as árvores. Os fenômenosestranhos relatados por quase todos osviajantes teriam começado a ocorrer só de-

    pois de alguns anos. De sua antiga cabanaimprovisada, ela passou a escutar os animais

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    berrando e se digladiando com o que acred-itava serem monstros, que riam, espirravame roncavam o tempo todo. Até assobiavamvez por outra. Mas ela nunca, nunca haviavisto nada. Com o passar do tempo, voltou ase sentir de certa forma segura, já que oúnico indício de que os monstros realmenteexistiam eram os crânios perfurados que cos-

    tumavam aparecer na estrada.“Talvez não gostem de carne humana”, era

    o pensamento que a reconfortava.

    Continuou seguindo o espelho e, vez poroutra, encontrava corpos de animais – oupedaços deles, espalhados pelo chão ou pen-durados nos galhos, como a enorme carcaçade um urso marrom, estendida no ar como seestivesse voando. A inevitável perfuração natesta estava lá, com a diferença de que elaparecia se mover, dado o grande número devermes que se deleitavam com tão farto

    repasto.

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    “Os monstros não atacam humanos”, re-petiu como um feitiço. “Os monstros nãoatacam humanos”. Prometeu a si mesmaque, depois que matasse Branca, jamais vol-taria a pôr os pés naquele lugar maldito.

    No caminho para a casa indicado pelo es-pelho, a bruxa ouviu uma estranha com-

    posição de pancadas desordenadas, comoum batuque intermitente na madeira. Olhoupara cima e viu dezenas de galhos amarradosno topo das árvores que, com o vento, se ba-tiam e causavam aquela bizarra sinfonia.

    “Quem teria feito isso?”, perguntou-se. “Ecom qual razão?”. Ela jamais saberia aresposta.

    Caminhou mais um bocado, até que se de-parou com uma antiga mina abandonada,provavelmente de pedras preciosas. Nasparedes do lado de fora, havia símbolos inde-

    cifráveis até mesmo para ela, que estudaralínguas interditas, feitos com sangue.

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    “Como é possível eu nunca ter visto estamina aqui?”, pensou, passando reto pela en-trada sem a intenção de se deter. Mas elaficou paralisada de medo ao olhar de relancepara o interior da mina. A fenda era tão es-cura que não parecia simplesmente bloqueara luz, mas ao invés disso contaminá-la, es-palhando a sombra como sangue na água.

    Era impossível ver a profundidade, mas obafo gelado que emanava de lá era carregadode medo e injúrias que soavam como se vin-das do próprio inferno. O mal absoluto, com

    o qual nem mesmo ela teria coragem de seenvolver. Apertou o passo e seguiu emfrente. Sentiu-se observada, mas não ousouolhar para trás.

    Depois de andar por quase uma hora, elacontinuava vendo a casa no espelho, mas nãosentiu que estava fazendo progresso. A tem-peratura começava a cair e a bruxa, que hámuito já estava habituada aos mimos e aos

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    confortos da vida no palácio, resolveu fazer olongo caminho de volta.

    “Pro inferno com aquela menina. Já deve

    estar morta a uma hora destas”

    Quase uma hora se passou desde que elahavia dado meia volta, quando seupensamento foi cortado por algo que caíra

    em sua testa verruguenta. Achou que fosseuma gota de chuva, mas o que pegou entre osdedos foi um verme, que se retorcia demaneira desleixada com a barriga para cima,

    empanturrada de carne. Ela ergueu opescoço e ficou paralisada ao ver o enormeurso marrom de antes ainda sendoconsumido.

    “O quê?! Como pode ser?”, pensou, ol-hando para o pedaço do espelho, de-mandando uma explicação. Mas ele nada re-spondia. Ela correu, buscando no chão suas

    próprias pegadas para reencontrar o cam-inho para o castelo. Passou pelos galhos

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    amarrados nas árvores e depois se deparounovamente com a velha mina abandonada.

    Caso seu coração já não estivesse apodre-

    cido, a bruxa sentiria algum remorso, pediriaperdão pelos horrores que perpetrou emvida. Pois naquele momento ela confirmaraque o mal absoluto existe. Estava bem diante

    dela, na forma de sete pequenos anões putre-fatos que emergiram do interior da mina.

    Um era mais horripilante do que o outro.Ao centro, o que parecia ser o líder carregava

    uma picareta manchada de sangue, cuja pon-ta ele esfregava cinicamente no chão. O se-gundo era como um cão raivoso, com a bocaespumante. O terceiro era um catarrento queintercalava seus grunhidos com incontrolá-veis espirros que espalhavam catarro en-sanguentado por onde ele passava. O quartoparecia um chacal, cujo riso realçava asbochechas rasgadas que deixavam à mostra

    seus dentes podres. O quinto parecia uma

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    espécie de sonâmbulo, com os olhos fecha-dos, as mãos para a frente e o pescoçoquebrado, caído para o lado. O sexto talvezfosse o mais perturbador de todos, um de-pravado que andava balançando o quadril,enquanto ria e se insunuava tal qual umamacaca no cio. E o sétimo era um linguarudocom a mais horrível das mutilações: sem a

    mandíbula, sua língua ficava pendurada parafora, balançando como os testículos de umbúfalo ensandecido.

    Diante daquela visão infernal, a bruxa

    pôs-se a correr, enquanto os anões aperseguiram sem pressa, à exceção do cãoraivoso, cujo bafo ela podia sentir logo atrásde si. Cometeu o erro de virar o pescoço,

    tropeçou e bateu com tudo numa árvore,derrubando perto de si o asqueroso urso quepor pouco não a esmagou. Vermes voaramem seu rosto, varejeiras brilhantes taparamsua visão. E então o cão raivoso saltou sobreela.

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    Seu corpo se virou por puro instinto e omonstro fincou seus dentes numa rocha. Abruxa se levantou e continuou a correr, lam-entando profundamente por ter deixado ocorpo mais jovem de rainha. Mais à frente,havia um barranco que, aliado à gravidade,lhe adiantaria mais alguns metros. Saltou,girou no chão ralando toda a sua pele e

    fechou os olhos.Quando se deu por si, os anões haviam

    sumido. Não podia se dar ao luxo dedescobrir a razão. Continuou correndo por

    horas até que viu, a poucos metros, pequenacasa que vira no fragmento de espelho.

    “Branca, Branca, abre, eu te suplico!Abre!”, gritava, esmurrando na porta. “Quemestá aí?” respondeu a jovem, do outro lado.“Sou uma pobre vendedora que se perdeunessa floresta maldita, por favor, abre, osmonstros estão me perseguindo!”

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    Branca abriu a porta e a velha pratica-mente rolou para dentro. “Obrigada, muitoobrigada...” dizia, tentando recuperar ofôlego.

    “És uma vendedora?”, perguntou Branca,com a mesma inocência de sempre. “Sim,meu bem. Eu vendo maçãs... estava procur-

    ando a quem vender esta quando me perdina floresta e fui atacada por sete monstroshorríveis!”, respondeu a velha, com a voztrêmula. “Eu sempre achei que não atacas-sem humanos, mas...”

    “Achaste? Já os viste antes?”, desconfiouBranca.

    “Eu só os escutava... Tenho certeza de que

    os escutaste também”.

    “Sim! São horripilantes!”, respondeuBranca, baixando a guarda, enquanto re-parava na apetitosa maçã à qual a velha se

    referia.

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    “Mas acho que está tudo bem agora,graças a ti!”, a bruxa abriu seu sorrisoasqueroso. “Foi muita bondade tua teres mesalvado! Eu te darei essa maçã como umpequeno agradecimento!”. Mesmo tendosido salva pela enteada, a maldita não haviadesistido de seu plano.

    Branca pegou a maçã, pensando em comoseria ótimo enfim comer algo diferente.

    “Muito obrigada... nunca ninguém haviame dado nada...” disse, comovida, enquanto

    se dirigia à pia.“Não precisa me agradecer, meu bem...

    apenas coma e...”

     A frase da bruxa foi interrompida pelogolpe de uma frigideira enferrujada que ar-rancou os seus dois únicos dentes.

    “AAiii!” gritou a velha “O que foi isso?”

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    Branca a golpeou de novo. A velha se de-fendia com os braços, que batiam violenta-mente contra seu rosto.

    “Vaca! Maldita! Meretriz! Bruxa!”, gritavaBranca, que não tinha a intenção de intimid-ar, mas ferir o máximo que pudesse. Paradesviar da barreira formada pelos braços, ela

    mudou a direção dos golpes e foi direto naorelha, desorientando e, finalmente, desa-cordando sua visitante.

    “Vadia!”, disse, cuspindo e enxugando o

    suor.***

    Quando acordou, a bruxa sentiu as fibras

    da corda afundando em seus pulsos atrás desi. Os pés também estavam amarrados à ca-deira e a única coisa que podia ver era opequeno feixe de luz vindo da chaminé.

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    “O que... o que está acontecendo?” per-guntou, procurando por Branca napenumbra.

    “Quem és tu e de onde vens?” foi tudo oque ouviu.

    “Já te disse, sou uma pobre vendedoraque...”

    Uma lanterna a óleo se acendeu e um novogolpe, desta vez, com o cabo de uma vas-soura, foi sentido em sua orelha. Branca aqueria bem acordada desta vez, pois nãotinha tempo a perder.

    “AAaai!”, esperneou a velha. “Por favor, eute imploro, para de me bater! Nunca te fiz

    nada! Sou uma pobre...”“Quem és tu?”, perguntou de novo, já se

    adiantando a uma nova mentira e desferindoum golpe, agora na face verruguenta.

    “Ahhh!”

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     Ao perceber que a hóspede não abriria aboca facilmente, ela deu-lhe um pontapé,derrubando-a no chão, com cadeira e tudo.Puxando-a pelos tufos de cabelos brancos,levou a velha até a parede onde, por umafresta, ela viu os sete anões infernais seaproximando.

    “Eu consegui me manter escondida aquipor semanas! Semanas! E tu os trouxestebem à minha porta! Se não me disseresquem tu és, e o que queres de mim, vou tejogar lá fora!” ameaçou Branca, já puxando a

    bruxa pelos cabelos em direção à saída.

    “Pares! Tudo menos isto! Pares! Não memachuques mais...”

    “Como sabias meu nome? Como sabiasque eu estava aqui?”

     A velha nada disse. Branca continuouarrastando-a para a porta, quando ela final-

    mente desembuchou:

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    “Eu sou... eu sou tua madrasta!”

    Branca ficou estarrecida com aquelarevelação:

    “O quê?!”

    “É verdade... eu vim até aqui... porque...porque...”

    “Digas!”, gritou Branca, cuja fúria contidadurante anos de miséria e provação estavaprestes a explodir.

    “... porque queria te dar uma maçã en-venenada! Não suporto tua beleza, assimcomo não suportava a da tua mãe! Querotudo para mim! TUDO!”

    O punho direito de Branca, que pegou afrigideira, parecia se encher de vontade pró-pria. Ele começou a subir e a descer comoum pêndulo, amassando os ossos da velha,cujos gritos de agonia foram ouvidos pelosanões. Branca só parou quando escutou as

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    risadas e espirros perto o bastante. Correuaté uma das frestas e viu que os monstrosprocuravam um jeito de entrar na casa. Foiaté a cozinha, de onde trouxe um velhomachado. Voltou até a bruxa e fez o inima-ginável: cortou as cordas e deu-lhe a arma:

    “Não vais morrer ainda! Tu vais me ajudar

    a enfrentar estas bestas!”Há muito tempo Branca se preparara para

    aquele conflito. Destrancou a porta e voltoupara dentro, onde, durante vários minutos,

    aguardou a inevitável chegada dos anões. Oprimeiro a entrar foi o cão raivoso, que foilogo recebido com um balde de óleo fervendoque fundiu seus lábios e olhos numa únicamassa de pele.

    Enquanto agonizava de dor, os outros ad-entraram a casa. Todos igualmente ensande-cidos, avançaram contra Branca e a bruxa.

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    “Defende-te!”, gritou Branca, antes depuxar uma corda que derrubou um sacocheio de pregos sobre os invasores. O metalperfurou seu cérebro e olhos, mas em poucoos deteve. O chacal continuava com sua gar-galhada sinistra, ainda que o pescoço agoralembrasse um porta-alfinetes. Sem suportarmais aquela maldita risada, Branca avançou

    contra ele com certa satisfação pessoal. O an-ão tentou se proteger do facão e teve a mãodecepada antes que a lâmina se detivesse emseu cérebro macio.

    “Dois já foram”, pensou Branca, ingenua-mente. Foi quando, por trás de si, o anão de-pravado saltou, mas, no último instante, foiperfurado por um machado.

    “Só eu posso matar Branca!”, clamou abruxa, enterrando a lâmina no peito domonstro.

    Com sua picareta, o líder parecia ser omais perigoso. Ele rodopiava o objeto no ar,

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    arrancando lascas dos pilares de madeira eaté pedaços de seus companheiros, que pou-co pareciam se importar. Como umadomadora de circo, Branca usou a vassoura euma cadeira como escudo para conduzi-loaté o meio da sala. Quando ele estava ondeela queria, ela jogou as armas contra ele, queapenas as rebateu, rindo de sua ingenuidade.

    Mas o que ela queria era distraí-lo enquantopuxava uma corda, que virou o baú de joias emoedas, pendurado logo acima, sobre oanão.

    O baú caiu sobre a cabeça, quebrou opescoço e fincou-se na jugular. Privado desua coordenação motora, o resto do corpo doanão ficou girando ao redor do próprio eixo,

    como uma galinha que tem a cabeça enter-rada na terra.

    Os três que ainda restavam, o linguarudo,o catarrento e o sonâmbulo, foram acuando

    Branca contra a parede onde estava o órgão

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    de tubos. De frente para a morte, preferiuvirar para o outro lado, onde estava o instru-mento, e lamentou:

    “Eu queria muito tido tempo para apren-der a tocar...”

    Indefesa, calmamente, deu as costas paraseus algozes, que nada entenderam, e

    sentou-se no banquinho em frente ao te-clado. Respirou fundo, olhou para cima e,com as duas mãos, pressionou as teclas queenviaram ar comprimido para os tubos

    cheios de pólvora.Pedaços de chumbo voaram na direção

    oposta, massacrando os anões numa gravesinfonia que começava em lá, misturando ex-

    plosões e o gastronômico som dos anõessendo transformados numa pasta de sangue.

    No fim da música, Branca respirou fundoe olhou para trás. Viu o que sobrou dos an-

    ões, notando a língua do linguarudo saltando

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    no chão como um peixe fora d’água. Adiante,estava o corpo do líder, ainda rodopiandopateticamente. A bruxa, impressionada como feito de Branca, tinha os olhos arregalados.Em sua mão, estava o machado e, na ponta,o coração preto do anão depravado aindapulsando e gotejando um líquido viscoso eescuro. O chacal jazia no chão com o facão

    enterrado em seu cérebro.Branca respirou aliviada. Agora, seria

    apenas eliminar a bruxa, para poder voltar asua vida normal.

    Contudo, próximo à porta, o cão raivoso,que fora o primeiro a cair, enterrava as un-has na massa de pele que virara seus lábios.E puxava para liberar a baba espumante quese acumulara por baixo.

    Foi aí que Branca percebeu seu erro.

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    “Por... todos os santos!”, exclamou, en-quanto seu medo era lançado a altitudesexorbitantes.

     A bruxa deu um salto quando o depravadoergueu a mão, reclamando seu coração ar-rancado. Perto da porta, o cão raivoso se le-vantava, com a pele derretida rapidamente

    voltando ao estado putretato de antes, en-quanto o chacal arrancava a lâmina de seucérebro.

    Os anões não podiam ser mortos. Eles

    eram a morte.“Atrás de ti!”, gritou Branca para a bruxa.

    Mas era tarde demais para salvar amadrasta, que foi mordida no pescoço pelo

    depravado. Sua jugular foi sugada como ma-carrão e, quando o anão se preparava para osegundo bote, foi derrubado pelo cãoraivoso, que ao menos podia abrir um dos ol-

    hos e também queria seu quinhão.

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    Branca não deixou de sentir certa satis-fação ao ver a bruxa agonizando no chão en-quanto os dois anões se digladiavam por suacarne. Mas ela sabia que, se não fizesse algo,seria a próxima.

    Usando a picareta, o líder golpeava opróprio pescoço a para separá-lo do corpo. A

    pasta de sangue que se tornaram o lin-guarudo, o sonâmbulo e o catarrentocomeçava a se aglomerar em três monstrosdistintos. O cão raivoso e o chacal ainda es-murravam no chão, enquanto o depravado

    retomava seu promíscuo rebolado infernal.

    Na cozinha, Branca buscou a lanterna aóleo, com a intenção de incendiar a casa comtodos dentro. Preferia morrer queimada a serdevorada pelas bestas, quando algo aindamais sinistro a desnorteou.

    “He, he, he”, foi o que ouviu.

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    No chão, a bruxa ria, primeiro baixinho,depois de maneira histérica, descontrolada,até se erguer de uma só vez, puxada comouma marionete pelos fios do diabo.

    “He, he, he... Branca, Branca... vem para atua madrasta, vem! Vem ser a Branca dosMortos!” – o corpo, revivido, já apodrecia,

    mas se movimentava com uma agilidadedescomunal. Branca jogou a lanterna aos pésda bruxa. O objeto quicou, depois caiu e ex-plodiu em óleo e chamas, mas aquilo emnada afetou a velha tornada morta-viva.

    “Não podes nos queimar, Branca! Nãopodes nos matar! Vem, junta-se a nós! Deixaa tua querida madrasta te dar uma mordid-inha... só uma mordidinha!”, ria a bruxa, exi-bindo sua boca sem dentes.

    Os anões continuavam se aproximando, etudo o que Branca podia fazer era atirar ob-

    jetos a esmo, enquanto lágrimas de ódioescorriam em seu rosto. Pratos, panelas,

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    facas e baldes voavam. Lembrou-se de toda ador e do sofrimento que havia sido sua vida ede quanto a morte poderia lhe trazer alívio.Mas não estava disposta a se entregar facil-mente. Não daquela maneira. Não ali, noúnico lugar de paz que ela havia conhecido.

    Saltou ferozmente sobre seus algozes e,

    em especial, a bruxa, golpeando-a repetidasvezes com seu facão, até arrancar sua cabeça.

    “Ela logo vai se recompor”, pensou. “Masnão será fácil!” Pelos cabelos, agarrou a

    cabeça que ainda gargalhava, desviou dosanões famintos e correu para fora da casa.

     À frente do poço, contemplou a respon-sável por todas as desgraças de sua vida pela

    última vez:

    “Vá para o inferno!”

    E a bruxa falou, numa voz grave e

    masculina:

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    “Eu já fui e é lá que eu moro!”, antes deser impulsionada por uma força invisível emorder a mão de Branca.

    Mesmo que a boca não tivesse dentes, apobre urrou de dor, ao ter a pele esmagadapelas gengivas. Balançou a mão, bateu-a con-tra as paredes internas do poço, mas ela não

    soltava de jeito nenhum. Então, enfiou aoutra por baixo da mandíbula e fincou suasunhas no cérebro. Num espasmo, a boca ab-riu e enfim caiu no poço.

    “Maldita!”, disse, ao ver o enorme feri-mento preto na mão.

    Os anões já estavam do lado de fora dacasa, com o líder na frente, arrastando a

    cabeça com uma mão e a picareta com aoutra. Provocador, ele esfregava a ponta daarma no chão para a direita e para a es-querda, brincando com sua vítima.

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    Fraca e cansada, Branca pensou nas al-ternativas que ainda lhe restavam. Só não sejogou no poço porque sabia que a cabeça dabruxa estava lá. Então, quando se virou paraa floresta, pronta para fugir, foi derrubadapor uma enorme coruja que voava na alturade sua cabeça.

    Ela e a coruja foram ao chão. Mas, ao con-trário da jovem, a coruja sabia bem onde ir:recompôs-se e foi direto para os anões, quejá estavam sob o ataque de diversos outrosanimais. Grandes como um alce ou pequenos

    como um coelho, todos cravavam suas presasnas bestas, que se defendiam com mordidase, no caso do líder, precisos golpes de pi-careta no centro do crânio.

    Um morcego arrancou o olho regeneradodo cão raivoso com o bico e o jogou longe,antes de ser agarrado e ter sua cabeça arran-cada a mordidas. O alce derrubou o chacal e

    o depravado com seus chifres e os arrastou

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    até se chocar com uma árvore, com tamanhaforça e determinação que seu pescoço sequebrou com o impacto. A raposa e o lobomiravam direto nas jugulares, derrubando olinguarudo e o sonâmbulo. Assim, à custa davida dos animais, os anões foram sendo re-duzidos a pedaços de sangue, pus e carnetrêmula no chão.

    Foi então que Branca entendeu as car-caças espalhadas pela floresta. Quando con-frontados pelo mal em sua mais pura forma,os animais não fogem como fazem do trovão

    ou do fogo. Atacam-no ferozmente, sentem-se compelidos a destruí-lo, temendo a fúriado Criador por terem deixado que o mal seespalhasse sobre a Terra, na forma daqueles

    sete desafortunados anões que um dia en-contraram, numa mina de pedras preciosas,a porta para o inferno.

    Contudo, nem mesmo todos os animais

    daquela floresta podiam extinguir o mal de

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    forma permanente. Cada vez que um anãoera dilacerado por uma raposa ou tinha seusolhos arrancados por um morcego, ele se re-compunha em questão de horas, ou mesmo,minutos. E o terror recomeçava.

    Branca então olhou para a gangrena emsua mão direita. Os dedos já estava pretos,

    secos e quebradiços. A sua volta, as carcaçasdos animais misturavam-se aos pedaços dosanões, que tremiam como rabos de lagartixae já começavam a se juntar. Quando a laringee os pulmões do catarrento se encontraram,

    e o primeiro som que emitiram foi um es-pirro, Branca já sabia o que fazer.

     Voltou para dentro da casa, que mesmoem chamas não cedia, onde viu o corpo dis-forme e decapitado da bruxa estendido nochão. Caída junto ao corpo estava a maçãenvenenada.

    Pegou a fruta e saiu da casa. Olhou para océu, tomado por nuvens desoladoras,

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    tentando se lembrar de como seria a mãe quea bruxa tirara de si. Lembrou-se do encontrocom o príncipe, seu único momento de feli-cidade, e tentou se agarrar a ele enquantosentia o gosto surpreendentemente doce damaçã envenenada se espalhar em sua boca.

    Sentiu as pernas atrofiarem, o pescoço en-

    rijecer e as lágrimas secarem dos olhos. Seusofrimento chegava ao fim.

     Assim ela pensava.

    ***

    Logo, os pedaços dos anões sereagruparam, tornando-os as bestas de-moníacas de outrora. O linguarudo continu-

    ou balançando a língua pendurada, o lídertateava o chão à procura de seus olhos e dapicareta. Um a um, estavam de volta aoalém-morte, prontos para disseminar seuhorror pelo mundo.

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    O cão raivoso foi o primeiro a ver o corposem vida de Branca estirado no chão.Aproximou-se dela com sua baba nojenta es-pumando pela boca, cheirou as pernas e ui-vou como a besta ensandecida que era. Olíder então soltou um grunhido e todos oseguiram de volta para a floresta. Não tin-ham interesse na carne já fria daquele corpo

    sem vida.***

    Pouco tempo após a partida, passou por

    ali o desafortunado príncipe, que ainda nãohavia encontrado o caminho de seu reino.Não tinha a intenção de se deter diante da járotineira cena de animais mutilados, mas nomeio daquele pandemônio, viu o corpo desua amada, inerte.

     Aproximou-se e pôs-se de joelhos, com asmãos unidas em penitência. Tentou em vão

    reanimá-la, mas a vida já deixara aquelecorpo havia horas. Então, o príncipe

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    prometeu à amada um enterro digno daprincesa que era, despedindo-se com umsuave beijo.

    Seus lábios tocaram os de Branca, quemesmo gelados ainda ostentavam overmelho-sangue de sempre. Não tinhacomo ver os dedos gangrenados que se con-

    traíram num pequeno espasmo. Como sepuxada por um fio invisível, a mão preta dajovem se ergueu e foi lentamente até a nucado príncipe, que sentiu dentes mordiscaremseus lábios. Cada vez mais forte.

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    João, Maria e os Outros

    Ninguém, nem naquele   reino

    nem em nenhum outro, pobre ou rico, encar-nado ou desencarnado, jamais escapará aosdesígnios que ingenuamente engolfamos emilusões didáticas como “karma”,“providência” ou “justiça”. Esses mistérios,que quanto mais tarde compreender-vos,melhor será, cedo ou tarde se revelarão a to-do homem e mulher, trazendo conforto apoucos e horror para a maioria, num tempo

    em que o mundo dos sonhos estará fechadopara sempre.

    De um lado, estava uma pobre família,formada por um pai, seus filhos, João e

    Maria, frutos de seu casamento anterior, e a

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    madrasta das crianças, sua odiosa esposa. Dooutro, estava o fantasma da fome absoluta. Etudo que se punha entre eles era um saco depão velho e outro de farinha.

    “Nossa comida está quase no fim. Se aomenos não precisássemos alimentar João eMaria!”, lamentou o pai, numa noite.

     A mulher, que merecia o marido quetinha, disse erguendo as sobrancelhas:

    “Pois eu já sei como vamos resolver isso.Amanhã, ao romper da aurora, tu levarásJoão e Maria até a parte mais sombria dafloresta. Farás uma fogueira e darás metadedeste pão aos dois. Depois, dirás que vaistratar de seus afazeres e os deixará lá!”

    “Estás louca?”, disse o marido. “E se al-guém descobrir... e se o lobo aparecer?”

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    “Até parece que tu te importas com os pir-ralhos!”, ela respondeu, histérica. “Nuncadeste nem banho nem atenção a eles!”

    “Mas, ainda assim, são meus filhos!”, re-spondeu o homem, sem negar as acusações.

     A megera bateu na mesa de madeira ma-ciça, lembrança de tempos mais abastados.

    “Se não fizeres isso, serão quatro mortos emvez de dois! Trate de pegar teu machado euma lixa e faça desta mesa nossos caixões!”

    O barulho da discussão fez com que João eMaria, que dormiam no cômodo acima, acor-dassem de sobressalto. Os pequenosouviram, com detalhes, os insistentes pe-didos da madrasta. E, como toda mulher

    quando quer alguma coisa, ela não deu umminuto de sossego até que o marido cedessea seus suplícios:

    “Está bem, está bem, tu venceste! Aman-

    hã, eu levarei as crianças até a floresta, as

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    abandonarei e, então, seremos só nós dois!Combinado?”

    “Combinado!”, concordou a megera, sem

    disfarçar certa satisfação.

    Maria começou a chorar, inconsolável,agarrada a seu único brinquedo, uma bonecaimprovisada com um saco de pano:

    “Vamos morrer, João!”

    Mesmo perante as adversidades que a vidalhe impunha, João sempre fora um menino

    inventivo e curioso. A asma fazia seu peitochiar, e aparecia com frequência na forma detosse entre as palavras.

    “Não vamos... Cof! Não vamos, Maria!

    Cof! Fique... Cof! sossegada!”

    Depois que os dois adultos foram dormir,João se levantou, tomando cuidado para queseus passos não fizessem ranger as tábuas demadeira dilatada sob si. Vestiu seu

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    paletozinho e, com um leve empurrão, abriua porta e adentrou a noite. Em meio ao breuopressor, a luz da lua resplandecia empequenos seixos brancos no chão. Um a um,o menino colheu todos que podia,permitindo-se imaginar que estava colhendoas estrelas do céu.

     Voltou para casa e disse à Maria, sorrindo:“Não te aflijas, irmãzinha. Cof, cof! Vai dar

    tudo certo! Eu tenho um plano!”

    ***

     Ao raiar do dia, a madrasta levantou como usual desgosto para a vida e acordou osdois enteados aos berros:

    “Levantai-vos, seus inúteis! Vocês precis-

    am ajudar vosso pai!” Ela então deu a cada

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    criança metade de um pedaço do pão,dizendo: “Aqui está o almoço. É a única re-feição que farão hoje, portanto, não comamantes da hora!”

    O pai e os filhos partiram juntos para afloresta, silenciosa testemunha de numero-sas desgraças. Conforme andavam, João ia

    deixando cair os seixos no chão, marcando ocaminho de volta. Ao ver que o garotoconstantemente virava-se para trás, o paivoltou e o puxou pela orelha, que estaloucom o frio:

    “Anda logo, moleque! Não temos o diatodo!”

    “Perdão, papai! Cof!”, choramingou João,

    esfregando a orelha que, ao menos, estavaquente.

    Os pés das crianças, forrados apenas comsacos de pano e barbante, já formavam bol-

    has quando finalmente pararam de marchar,

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    numa clareira no meio da floresta em queelas jamais haviam estado.

    “Vou fazer uma fogueira aqui para que não

    sintam frio. Depois, irei buscar um pouco delenha!”, anunciou o pai. “Não saiam daí demaneira nenhuma, ou vos arrebento a cara,entenderam?”

     As crianças balançaram a cabeça enquantoesfregavam as mãos nos braços. Tão logoacendeu a fogueira, o pai partiu, sob os ol-hares aflitos de João e Maria.

    “Será que ele vai mesmo nos abandonaraqui?”, perguntou Maria.

    “Tomara que não, Maria... tomara que

    não.” O pobre João ainda tinha esperanças,reforçadas pelo som do machado do pai cort-ando a madeira ali perto. Talvez tudo nãopassasse de um mal entendido.

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    Ele e a irmã sentaram-se bem perto aofogo, tão perto que fez com que os piolhos fu-gissem de suas cabecinhas. Ao meio-dia,aqueceram seus pedaços de pão e comeramvorazmente. Como ainda podiam ouvir osgolpes de machado por perto, sentiram-seseguros de que o pai não os abandonara.

     Adormeceram.Quando acordaram, já era quase noite. As-

    sustados, chamaram pelo pai, sem obterresposta.

    “Ele está aqui perto!”, disse João, atento aseus sentidos. “Posso ouvir seu machado!Cof! Cof! Cof!”. Sua tosse piorava muito ànoite, em especial, se fazia frio. “Vamos

    procurá-lo! Cof, cof!”

    O irmão tomou a dianteira. Mas bastoucaminhar alguns passos para descobriremque não era um machado que ouviam, e sim

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    “Cooof, cooof!”. A tosse piorara muito.“Acho que é um lugar mais quente...Coooooooof e mais bonito do que esse”, re-spondeu João, esfregando os bracinhos deMaria.

    “Será que tem muitos doces lá?”

    O menino respondeu quase soprando:

    “Tenho certeza disso, Maria! Cooooof! Láexistem casas feitas de pão, com telhados debolo e... Coooof... janelas de açúcar... Nelas,cof, cof, cof, moram simpáticas senhorinhasque adoram cozinhar bolos e tortas para...”seu fôlego acabara ali.

    João abraçou Maria, notando o orvalho

    que congelava sobre seus cílios. O menino jáhavia perdido a esperança, até que viu re-fletida nas gotas a luz da lua que despontavano céu.

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     Apontou para a pequena esfera brilhantede ânimo renovado. Olhou para trás e viu osseixos que deixara no chão, tremeluzindocomo moedas novas, apontando lá longe ocaminho de volta.

    O menino tomou a irmã pela mão. Elarespirou fundo e o abraçou.

    “Vamos para casa!”

    ***

    O pai trilhava o caminho de volta, estran-

    hando a própria tranquilidade e o desapego àculpa. No fundo, achava que havia sido mel-hor assim, já que ele nunca tivera muito jeitocom crianças.

     Anos antes, ele fora pai de uma linda men-ina chamada Blanchette, que mil-agrosamente sobreviveu à morte da mãequando ainda estava no ventre. A história da

    bebê percorreu todo o reino, mas a pequena

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    teria morrido de forma trágica poucos anosdepois, ao se perder na floresta por im-prudência do pai.

    Perguntou-se quantos anos a menina teriase ainda estivesse viva - talvez dezoito oudezenove, não estava certo. Isso só lhemostrara que a paternidade, ao contrário do

    que julga o senso comum, não é uma habilid-ade que aflora naturalmente quando ohomem tem sua cria, mas sim um ofício parao qual já se deve ter uma predisposição, umacerta dose de talento e muita paciência, in-

    gredientes que sempre faltaram em seuquinhão.

    Sua formulação de pensamentos peculi-ares sobre a paternidade foi subitamente in-terrompida pelo barulho de grama secasendo mexida perto dali. Pelo deslocamentodo som, julgou ser um ou mais animais,talvez uma pequena manada de porcos

    selvagens fuçando o chão em busca de

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    comida. Pensando em garantir a refeição dospróximos dias, escondeu-se atrás de umaárvore, onde pacientemente aguardou suaspresas, até que teve uma visão aterradora.

    Não eram porcos selvagens que se aprox-imavam, mas uma pequena legião de serescom aparência bizarra, a pele negra como a

    noite, olhos brancos e esbugalhados, ar-rastando sacos, pás e picaretas tal qual almaspenadas. Andavam em fila com movimentoscoordenados exalando o cheiro da morte.

    O homem sentiu o pavor tomando contade si e fugiu pela floresta antes que “os out-ros”, como convenientemente os chamou,pudessem vê-lo.

     Ao chegar em casa, exasperado, contoupara a megera sobre o abandono dos filhos ea experiência assustadora que tivera no cam-inho de volta.

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    “Deves estar alucinando”, ela comentou,antes que fossem dormir sem sequer secobrirem com os lençóis da culpa.

    ***

    Na manhã seguinte, os olhos do pai se ab-riram de uma vez. Sentia-se desperto, semsaber dizer se havia dormido ou sonhado.

     As memórias do dia anterior prontamenteo alcançaram. Então percebeu que já nãoconseguia mais se lembrar do rosto dos fil-hos. Fechou os olhos e pôde ver em suamente os longos cabelos negros de Maria, se-cos, quebradiços e incapazes de refletir luz;seu vestidinho branco e surrado; a fina pen-ugem que cobria seus bracinhos; até mesmo

    as bolhas e calos de seus pezinhos sujos. DeJoão, recordava-se perfeitamente dos ca-belos castanhos cortados à faca; das so-brancelhas grossas e unificadas, herdadas de

    si; de como seus passos pareciam longos edesajeitados, levados por suas pernas

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    desnutridas, das costelas aparentes acima dabarriguinha protuberante; e, principalmente,do som de chuva que seu peito fazia quandoele respirava. Mas não conseguia montar umretrato em sua mente, como se as memóriasdos filhos lhe tivessem sido extirpadas.

    Pela primeira vez desde que abandonara

    João e Maria na floresta, o homem esboçouum choro. Que umedeceu suas pálpebras,mas não foi o suficiente para ser expulso dosolhos. Questionou-se se o que fizera fora acoisa certa. Àquela altura, algum lobo já teria

    devorado as crianças, tal qual sua primeirafilha. Com sorte, durante o sono, para quenão sofressem. E não havia nada que elepudesse fazer.

    Foi quando ouviu um barulho vindo doandar abaixo.

    ***

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    Saltou imediatamente da cama. A esposadespertou com o movimento, e ele lhe fez umsinal para que não dissesse nada. Encostou oouvido no chão, tentando decifrar o que sepassava no piso inferior. Com sorte, seria umlobo ou um gato do mato, procurando abrigodo frio, e não um homem, a mais impre-visível e perigosa das bestas.

    Seus temores logo foram confirmados pelosom de vozes falando em monossílabos,parecendo rir numa língua que não lhe erapermitido conhecer. Quem quer que fossem,

    sequer se preocupavam em ser discretos, edeixaram vários objetos se estatelarem nochão.

    “São eles... os outros! Eles devem ter meseguido!”, recordando-se da visão aterradorado dia anterior.

    Procurou pelo machado, e lembrou-se que

    o deixara no andar debaixo. Entre esperarque os invasores partissem e descer para

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    confrontá-los, ele preferiu a primeira opção,já que coragem nunca fora seu forte.

     Atentamente, ele ficou tentando com-

    preender o que se passava logo abaixo de si.Ouvia as tábuas do chão rangerem, as portasse abrirem e as vozes entoarem cânticossatânicos que lhe fizeram gelar a alma.

     A mulher cochichou:

    “Que diabos está acontecen...”

    “Cala-te!”, exaltou-se o marido, e, no

    mesmo instante, o cântico cessou.

     A ausência de som deixou-o ainda maisaflito. Rogou pelo som da porta da sala se ab-rindo, mas o que ouviu em vez disso foram

    passos sobre a escada, depois mais tábuasrangendo, denunciando a inevitável chegadados estranhos.

    O homem pensou em pular a janela, mas aqueda facilmente quebraria suas pernas.

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    Para seu absoluto pavor, ouviu alguémbatendo na porta destrancada por três vezes.Olhou para a mulher, viu o pânico nos olhosdela, que balançava o dedo negativamente eenfiava a outra mão na boca a fim de abafaros gritos que queriam explodir em suagarganta.

     A porta bateu novamente, com tamanhaforça que pequenos pedaços de madeira sedesprenderam e caíram no chão. Apavorada,a esposa se escondeu debaixo da cama. Semalternativas, o homem resolveu encarar seus

    algozes.

    Pegou o único objeto que poderia ser util-izado para defesa, um velho candelabroenferrujado. Ergueu-o com uma mão e, coma outra, abriu a porta.

    E, do outro lado, não havia ninguém.

    ***

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    Com o coração palpitando, o pai e amadrasta desceram as escadas e logo viramque tudo no andar debaixo havia sido re-virado. Os armários estavam abertos, as pan-elas e os utensílios esparramados pelo chão.Roupas jaziam penduradas sobre o órgão detubos que a madrasta comprara com o din-heiro da venda da última vaca da família.

    “Ladrões! Foram ladrões!,” apressou-se amadrasta.

    “Mas roubaram o quê? Não temos nada!”

     Vasculhando a bagunça, eles não deramfalta de nenhum objeto.

    “Ou não encontraram o que procuravam,

    ou...”“O pão!”, gritou a madrasta. “Veja se

    roubaram nosso pão!”

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    Com as mãos trêmulas, o homem abriu oarmário e logo viu que o saco de pão estavalá – mas vazio.

    “Comeram nosso pão! Os outros comeramtodo nosso pão!”, resmungava ele, exibindo osaco vazio.

    “Vamos morrer de fome!”, choramingou a

    madrasta. Eles morreriam – se tivessemsorte.

    “Tudo o que sobrou foi o saco de farinha!”constatou o homem.

     A esposa pensava em alternativas parasobreviver:

    “Podemos ao menos fazer um mingau com

    ele... Nos manterá vivos até que tu possascaçar algo!”

    “Caçar? Estás louca? Eu não entro maisnaquela floresta maldita depois do que vi on-tem! Depois do que aconteceu aqui!”

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     A mulher já bufava. O estômago se re-virava de fome após a noite em jejum, e a de-manda por alimento logo explodiu em raiva:

    “Além de inútil és louco! Não sei por quême casei contigo!”

    O homem não se fez de rogado:

    “Casaste-se comigo porque eu era rico!”,retrucou, aos berros. “Porque dava-te joias evestidos, porque cedia a teus caprichos eagora, tudo o que tenho para comer é essesaco de farinha!”

    O homem tomou o saco de farinha e o ab-raçou raivosamente. A mulher mostrou osdentes e avançou contra o marido, puxando

    o saco para si.“Me dá! Não vais comer tudo sozinho!”

    “Sai! Sai!”

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    “Me dá!” a megera cravou suas unhas nosaco e o puxou, rasgando-o e esparramandoo conteúdo que julgavam tão valioso pelochão. Uma repentina lufada de vento geladoentrou pela janela e espalhou o pó pelos ares.

    “Nãoooo!”, gritaram os dois miseravel-mente, ao ver sua última esperança de sobre-

    vivência se perder. A megera esfregava asmãos nas tábuas de madeira e as levava àboca, lambendo uma mistura de farinha epoeira que em nada saciava sua fome. Lágri-mas de ódio cravavam sulcos em seu rosto

    coberto de pó branco.

     Ao ver o estado miserável em que se en-contrava a esposa, o marido pôs a mão naconsciência e segurou-lhe os braços firm-emente, exigindo que se acalmasse.

    “Tenha calma, mulher! Nem tudo estáperdido! Podemos vender nossas roupas, as

    camas das crianças, até a boneca de Maria!Podemos mendigar na estrada, onde uma

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    boa alma haverá de nos ajudar! Não vamosmorrer de fome!”

     A megera alternava entre choros, soluços e

    risadas irônicas frente às hipóteses le-vantadas pelo marido. Seu orgulho estavadilacerado, mas ela não se daria por vencida:

    “Acho que tens razão. Vamos separar tudo

    o que temos para vender.”

    Começaram a juntar as coisas do chão. Se-pararam as panelas e os utensílios, cujo met-al poderia ser derretido e aproveitado paraalguma coisa. A mesa também poderia terum destino. A única coisa que a megera senegou a separar para a venda - e que certa-mente daria um bom dinheiro - foi o órgão

    de tubos.

    “Tem valor sentimental para mim!”,justificou.

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