a batalha dos mortos-minilivro

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LITERATURA INGLESA

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  • A BATALHA DOS MORTOS

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  • RODRIGO DE OLIVEIRA

    A BATALHA DOS MORTOS

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  • Para meu pai, Jos Antnio, e minha me, Maria de Ftima.

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  • E naqueles dias, os seres tinham couraas como couraas de ferro; e o rudo das suas asas era como o rudo de carros, quando muitos cavalos correm ao combate.

    Apocalipse (9:9) A viso da guerra

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  • SUMRIO

    11 INTRODUO

    15 CAPTULO 1 TAUBAT

    50 CAPTULO 2 O RESGATE

    99 CAPTULO 3 A BOCA DO INFERNO

    149 CAPTULO 4 O PLANO

    191 CAPTULO 5 O CERCO

    226 CAPTULO 6 O CORONEL

    250 CAPTULO 7 UMA VISITA INESPERADA

    281 CAPTULO 8 COMANDO

    299 CAPTULO 9 A SENHORA DOS MORTOS

    309 AGRADECIMENTOS

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  • 11

    INTRODUO

    IVAN TENTAVA RESPIRAR, mas cada mnima poro de oxignio alcanava seus pulmes com dificuldade extrema. A criatura diante de si o segurava fortemente pelo pescoo com sua mo seca, forte, dura como ao. Seus ps balanavam no ar, tentando inutilmente al-canar o cho.

    Ele segurava o pulso da zumbi com ambas as mos, imprimindo um esforo sobre-humano para afrouxar a presso em sua garganta. Acima de tudo, Ivan tentava ganhar tempo. No podia acreditar na for-a descomunal do ser que permanecia indiferente s suas investidas contra ele, ao seu desespero.

    A zumbi sustentava seus mais de noventa quilos com facilidade, como uma criana segura um brinquedo. Era isso que Ivan representava para ela naquele momento: um muito aguardado brinquedo. Ou trofu.

    Ivan olhou em volta, procurando algum sinal de vida. Rezava para avistar algum soldado, um dos seus companheiros de armas, mas no via ningum. Tudo indicava que no havia outros sobreviventes.

    Em todas as direes ele s enxergava zumbis. Milhares de criaturas, incontveis. Eram tantos que ocupavam todos os espaos possveis. Esta-vam entre as casas destrudas, os Urutus espatifados, os corpos de seus amigos e amigas que agora eram dilacerados pelas feras sedentas de san-gue. Todos mortos. E Ivan seria o prximo a morrer, no tinha dvida.

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  • 12

    Comeava a ver alguns dos seus comandados se levantar, renascidos do inferno e convertidos em mortos-vivos devoradores de homens.

    Todo o bairro estava em runas, com rvores e postes tombados por todos os lados. Casas, prdios, muros, nada fora poupado. At mesmo car-ros enferrujados que jaziam abandonados havia mais de um ano por aqueles lados se achavam de rodas para cima. Alguns veculos, sem donos desde o evento que transformara dois teros dos humanos em mortos--vivos, estavam completamente retorcidos como se fossem de papel.

    Mais adiante Ivan avistava peas de artilharia destrudas e um cami-nho de transporte de militares todo achatado, de cabea para baixo, com algumas rodas ainda girando teimosamente, enquanto a carroceria pega-va fogo. Uma grossa coluna de fumaa subia para o cu e um cheiro acre se espalhava ao sabor do vento. No cu, as primeiras aves carniceiras comeavam a voar em crculos, atradas pelo odor da morte.

    Ivan se obrigou a olhar para o rosto da criatura monstruosa que o segurava com fora. Tentava reunir coragem; no queria que seus ltimos momentos fossem dominados pelo absoluto terror. Ele sentia que a des-graada queria isso; ela desejava quebrar seu esprito antes de trucidar o seu corpo, e esse prazer Ivan roubaria dela.

    O mais perturbador era que se tratava de um rosto assustadoramen-te familiar. Um rosto conhecido, a face outrora bela de uma mulher. Mas, nos olhos brancos e leitosos do ser, Ivan enxergou o Abismo. No viu nada menos do que o Inferno, porque aquela criatura era a personificao do Mal. Um demnio que fora libertado sobre a Terra para esmagar o que havia sobrado da humanidade.

    Ivan se perguntou como pudera permitir que as coisas chegassem quele ponto. Se ele tivesse sido menos teimoso, se tivesse escutado os inmeros avisos. Mas no escutou ningum. Ele ignorou todos os conse-lhos, e agora aqueles que o seguiram estavam mortos. E a nica pessoa que poderia tentar salv-lo se encontrava longe dali.

    Naquele momento, morrer no seria uma tragdia. Muito pelo con-trrio, seria um imenso alvio.

    O que est esperando, sua piranha? Mate-me! Ivan gritou com imensa dificuldade, usando o pouco que restava de suas energias.

    Sua cabea girava, e ele comeava a sentir nuseas. Sabia que em breve perderia os sentidos. Estava ferido, sangrando, e no conseguia mais respirar.

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    Vendo a pattica tentativa de Ivan demonstrar coragem, a criatura grunhiu de um modo que parecia rir. Uma risada diablica, sarcstica e infernal, daquelas que se ouvem apenas em filmes de terror.

    Estela, me perdoe, Ivan pensou. A culpa toda minha. Voc tinha razo o tempo todo.

    Enfim, sua viso escureceu, e ele mergulhou na escurido.

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  • 15

    CAPTULO 1

    TAUBAT

    O GRUPO DE FUGITIVOS aguardava pacientemente o melhor mo-mento para avanar. Era noite alta, e todos sabiam que poucas pessoas, alm dos vigias, estariam acordadas naquele momento. Mesmo os ou-tros prisioneiros como eles dormiam, aps um dia estafante de traba-lho rduo.

    Isabel, uma mulher esguia, de trinta anos, ia frente, observando a movimentao dos homens encarregados de vigiar aquela parte do ptio. Seus cabelos eram escuros e encaracolados, a pele, morena clara, e os olhos, negros. Perdera as belas curvas de seu corpo desde que fora captu-rada, porm mantinha as lindas feies, um rosto com contornos fortes e cheios de personalidade.

    Eram ao todo seis pessoas. Alm de Isabel, participavam daquela ao desesperada quatro homens e mais uma mulher, que aguardavam em silncio, escondidos sombra produzida pelo galpo ao lado do ptio.

    Estavam todos dentro do Comando de Aviao do Exrcito, o gigan-tesco quartel que servia de centro de treinamento de pilotos de helicpte-ro, e que preparava soldados para misses de combate que envolviam transporte de tropas e cobertura area. Era tambm conhecido como Bri-gada Ricardo Kirk, uma homenagem ao primeiro oficial aviador da hist-ria do exrcito brasileiro, cujos restos mortais repousavam num monu-mento ali mesmo, dentro do complexo.

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  • 16

    Naquele local eram treinados pilotos, tcnicos em manuteno, lde-res de esquadres e todo o contingente de profissionais necessrio para aes de combate areo com helicpteros. Tratava-se de um complexo for-tificado que ocupava uma rea de duzentos e sessenta e quatro hectares, e que abrigava o qg do Comando de Aviao do Exrcito e o Centro de Instruo de Aviao de Taubat.

    Ficava de frente para outro ponto de referncia de Taubat, o Hotel Mazzaropi, famoso por ser considerado um dos melhores hotis-fazendas do Brasil, e que agora se achava destrudo por um incndio gigantesco ocorrido no dia da grande infestao de zumbis.

    O Comando de Aviao do Exrcito era to grande que possua trs hangares, uma torre de controle de trfego areo, um ptio de estaciona-mento de aeronaves, heliporto e at mesmo uma pista de decolagem que permitia pousos de avies de grande porte.

    Acima de tudo, o quartel era cercado em todas as direes por gros-sas grades de arame, bem como uma cobertura de arame farpado, o que tornava aquele local praticamente intransponvel para os mortos-vivos daquela regio.

    Um local que parecia ideal para sobreviver ao inferno que se instala-ra, se no fosse pelo fato de que era controlado por um grupo de psicopa-tas. Era daquele campo de concentrao que Isabel e seus companheiros tentavam fugir naquele momento. Eles sabiam dos riscos. Se fossem pegos, Emmanuel iria faz-los implorar para morrer, assim como fizera com outros que ousaram desafiar seu poder.

    Todos permaneciam em silncio, protegidos pelas sombras. O gal-po tinha mais de dez metros de altura e trinta metros de largura, com imensas portas de correr que davam acesso ao prdio amplo. Ficava pouco frente da construo onde se posicionavam os vigias armados que observavam a tudo de cima do telhado. Daquele ponto, um potente refletor alimentado por um gerador a diesel iluminava todo o ptio, mas mantinha na penumbra a lateral do galpo que servia de esconderijo para o grupo.

    Por quanto tempo mais iremos esperar? Marcelo perguntou para Isabel.

    Ele era um homem rude, com jeito de matuto. Uma pessoa criada na roa e que mal sabia ler e escrever, e se tornara o melhor amigo daquela moa, que liderava o bando.

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    Pelo tempo que for necessrio. Duvido que eles fiquem l a noite toda sem um momento sequer de distrao. No so to disciplinados assim. Antes de isso tudo comear, no passavam de dois traficantes de porta de escola. Isabel no deixava, nem por um instante, de observar os dois homens.

    Eles at podiam ser dois vagabundos l fora, mas aqui tm rifles de longo alcance, e atiram muito bem. E tm autorizao para atirar para matar Marcelo respondeu, preocupado.

    Isabel continuava vigiando. Se estivesse mais perto talvez conseguis-se captar algo que permitisse saber se eles planejavam se afastar do posto de vigilncia, mas daquela distncia era impossvel.

    Consegue captar alguma coisa daqui? Alessandra sussurrou.Ela era a outra mulher do grupo. Negra, quarenta e poucos anos,

    estatura mediana, um pouco acima do peso e to valente e turrona quan-to Isabel.

    No, nada. Precisaria estar muito mais perto. Mas tudo bem, j sabamos que estaramos no escuro, certo? Vamos seguir o plano e espe-rar o momento adequado. Isabel tentava passar segurana para os demais.

    Mas ela mesma estava apavorada. Se algum desse pela ausncia deles, iria ca-los sem piedade.

    Do ponto em que eles estavam at a cerca de proteo eram cerca de cinquenta metros de distncia, por isso escolheram tentar a fuga por aquele ponto.

    As outras opes de escapatria implicavam um espao muito maior a ser percorrido. Dali eles conseguiriam chegar at o cercado em poucos segundos. Em seguida, Marcelo se encarregaria de cortar a cerca com o alicate o mais rpido possvel, e ento correriam na direo da mata.

    O entorno do quartel, outrora bem cuidado, agora era coberto pelo mato que crescia junto cerca. Seria a nica vantagem deles; uma vez ten-do ultrapassado o cercado poderiam correr para dentro do matagal, o que dificultaria a ao dos atiradores e dos homens de Emmanuel, que, segun-do Isabel acreditava, partiriam em seu encalo.

    Todos sabiam que no era por coincidncia que Emmanuel designa-ra seus melhores atiradores para proteger aquele flanco. Podia ser a opo mais vivel para fuga, mas era tambm a mais perigosa. Se do lado de fora o capim podia servir de camuflagem, do lado de dentro tratava-se de um

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    espao aberto e bem iluminado. Se eles fossem avistados, seriam crivados de bala, sem piedade. E, caso os atiradores no os matassem, Emmanuel na certa no os perdoaria.

    Outra coisa que assustava a todos eram os zumbis. Correriam prati-camente s cegas, e ficaria cada vez mais escuro medida que se afastas-sem do quartel. E eles no faziam ideia de quantas criaturas estariam vagando naquela rea.

    O que eles sabiam era que de tempos em tempos alguns mortos-vivos se aproximavam da cerca, espiavam a movimentao e chegavam at mes-mo a rosnar para as pessoas e socar a tela de arame. Porm, esses epis-dios sempre eram breves, e a feras invariavelmente se retiravam.

    Passaram-se longas duas horas de espera sem que nada mudasse. Os dois vigias no se afastavam do seu posto de observao nem por um ins-tante sequer, e o nimo do grupo comeava a ceder.

    A cada novo sinal de que seus companheiros estavam esmorecendo, Isabel falava algumas palavras de incentivo.

    No se preocupem, tenho certeza de que tudo mera questo de tempo. Aposto que daqui a pouco eles vo querer comer alguma coisa Isabel argumentou.

    E se eles se revezarem? Alessandra franziu a testa. Os caras esto ali principalmente para garantir que no tem

    nenhum zumbi dentro do quartel. Isso ficou bem claro quando me apro-ximei de Emmanuel, outro dia. Isabel sentiu um calafrio, pois aquele homem realmente a deixava apavorada. Faz tempo que ningum tenta fugir, e os ltimos que tentaram foram punidos com a morte. Assim, eles consideram as tentativas de fuga uma preocupao do passado.

    Mesmo assim eles podem no querer deixar o posto sem ningum por medo dos zumbis Alessandra argumentou. Eu mesma morro de medo daquelas coisas, quase tanto quanto de Emmanuel.

    Eles esto mais relaxados, tenho observado isso em todos nos lti-mos tempos. Esto muito autoconfiantes pelo fato de fazer algum tempo que no sofremos nenhuma invaso. Isabel meneou a cabea. E como hoje no teve nenhum incidente, aposto que mais cedo ou mais tarde...

    Mas Isabel se interrompeu ao perceber a movimentao no telhado do prdio onde os homens faziam a vigilncia.

    Uma senhora de cabelos grisalhos, aparentando quase sessenta anos, se aproximou de ambos, com um pequeno volume embrulhado com um

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    pano de loua numa das mos e uma jarra na outra. Isabel era capaz de apostar que ela levava o jantar da dupla de vigias.

    Ateno, eu acho que esta pode ser a nossa chance! Isabel falou, animada. Ela trouxe a comida dos dois. Tenho certeza de que um no vai ficar esperando enquanto o outro come. Aposto que vo parar para comer juntos.

    Isabel tinha razo. Os dois desembrulharam os pratos e cheiraram a comida, famintos. Um era Jacinto, moreno e baixinho, com cabelos enca-racolados. O outro se chamava Nestor, era negro e magrelo, com cabelos bem curtos, quase rapados. Ao que tudo indicava, nenhum dos dois con-tava mais do que vinte e dois anos.

    Esse seu picadinho com batata o que h, dona Mariana! elo-giou Nestor, animado. Meu estmago est roncando!

    Ento, aproveita para comer, que eu trouxe bastante. Nunca vi algum comer tanto. Voc mais parece um poo sem fundo! magro de ruim! Dona Mariana sorria. Apesar da situao em que eles se encon-travam, ela simpatizava com os dois rapazes. No podia deixar de pensar tambm que era graas a pessoas como eles que havia tempos ela no se preocupava com os zumbis. Suas preocupaes se voltaram apenas para os vivos.

    Os dois fizeram mais alguns comentrios e agradeceram dona Mariana, dispensando-a em seguida. Depois, sentaram-se no cascalho que cobria o telhado, com os pratos de comida em mos; no sem antes darem uma ltima olhada para o ptio.

    O momento era aquele. agora pessoal, vamos! Isabel sussurrou. Fiquem todos juntos

    e permaneam abaixados. Marcelo, voc est com o alicate preparado?Sim, est na mo. Marcelo engoliu em seco e olhou para o telha-

    do, onde no se via ningum.Os vigias no estavam visveis daquele ponto. Era agora ou nunca.Isabel avanou devagar, adentrando o ptio iluminado, o tempo todo

    de olho no telhado do prdio vizinho, tentando enxergar a dupla de atira-dores. Mas realmente parecia que os dois se achavam entretidos com a comida. O palpite dela estava certo. O resto do grupo a seguia de perto.

    Vamos rpido! Todos juntos e em silncio! Isabel ordenou em voz baixa, avanando com cuidado na direo do cercado, com os demais logo atrs de si.

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  • 20

    Venceram rpido a pequena distncia at a cerca de arame. Isabel sacou a chave de fenda que conseguira roubar de outro prisioneiro que ajudava com a manuteno do local, e ficou vigiando enquanto Marcelo desempenhava sua tarefa. Ele comeou a cortar a grossa trama de arames que compunham a cerca.

    Marcelo se esforava para ser mais rpido, mas estava complicado. Era uma tela de arames grossos e muito difceis de cortar. Para separar o primeiro segmento ele gastou quase um minuto, e pelo visto teria que cor-tar dezenas at conseguir uma abertura grande o suficiente para que um adulto fosse capaz de passar.

    Aps minutos angustiantes, Marcelo prosseguia cortando lentamente. Os demais do grupo comeavam a se desesperar; a qualquer momento os dois vigilantes retornariam a seus postos. Assim, eles ficavam pressionan-do o pobre homem o tempo todo, o que o deixava ainda mais nervoso.

    Suas mos grossas tremiam e suavam. Em determinado momento, Marcelo chegou a deixar o alicate cair no cho, o que produziu um baque seco que fez com que todos prendessem a respirao e olhassem ao mes-mo tempo para o telhado.

    Durante segundos que pareceram horas observaram o posto de vigi-lncia, rezando para que os atiradores no voltassem. Mas ningum apa-receu, e os protestos recomearam:

    Tome cuidado, homem! Quer matar todos ns? um homem falou entre os dentes.

    Voc disse que j havia feito isso antes! Por que est demorando tanto? outro disparou, nervoso.

    Fiquem em silncio! Vocs s esto piorando as coisas! Isabel repreendeu ambos num tom um pouco mais alto, se arrependendo imediatamente.

    Mais uma vez todos olharam para cima, com medo de serem descobertos.

    Marcelo continuava tentando avanar na sua tarefa. Cada novo peda-o cortado dava-lhe mais nimo, mas era um avano lento, arrastado. O alicate no estava bem afiado, mas foi o melhor que conseguiram arran-jar. Chegaram a fazer uma verdadeira festa quando obtiveram aquela fer-ramenta sem levantar suspeitas.

    Marcelo, voc garantiu que levaria uns trs minutos. J se passa-ram dez e ainda no tem espao para nenhum de ns atravessarmos! Isabel afirmou, aflita.

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  • 21

    O desespero tomava conta dela, aquela mulher to valente se sentia como se estivesse com um alvo pintado nas costas.

    Seus olhos danavam febrilmente nas rbitas, ora olhando para o amigo, que lutava com a cerca, ora para o telhado, esperando o momento em que um dos atiradores surgiria. Se isso acontecesse, o que fazer? Isabel pensava seriamente em correr e torcer para ser abatida a tiros. Seria um destino muitssimo mais agradvel do que ter que sentir o peso da fria de Emmanuel.

    * * *

    Em seus primeiros dias presa naquele inferno, Isabel ouviu diversas histrias sobre a maldade do lder daquele bando de manacos. A mais assustadora de todas falava de como ele havia trancado um dos carcerei-ros da penitenciria na qual cumpria pena junto com centenas de zumbis, para que as criaturas devorassem o infeliz vivo.

    Isabel se perguntava se aquilo de fato ocorrera ou se era apenas uma histria horrenda arquitetada com o intuito de manter a disciplina. Ela s acreditou de verdade quando presenciou uma cena similar.

    Um homem que fora aprisionado no quartel apenas alguns dias aps a chegada de Isabel tentou fugir depois de maus-tratos inenarrveis. Ele descobriu uma parte do ptio na qual era possvel cavar um pequeno tnel passando sob a cerca, o que lhe garantiria a liberdade.

    Os guardas de Emmanuel frustraram os planos do infeliz e entrega-ram-no para o chefe sanguinrio. Um dos capangas at cogitou matar o fugitivo ali mesmo e inventar alguma desculpa, permitindo assim um final rpido e digno para o pobre coitado, mas seus companheiros no aceitaram a sugesto. No fundo, morriam de medo do que poderia lhes acontecer caso fossem descobertos. E por isso o que se seguiu foi digno de um filme de terror.

    No dia seguinte, todos foram chamados at o ptio atendendo a uma convocao urgente de Emmanuel. Todos caminharam apressados, pois sabiam que o chefe no tolerava atrasos e tinha uma verdadeira obsesso por humilhaes e castigos pblicos.

    Emmanuel era um homem de estatura mediana, cerca de cem quilos, pele de um moreno escuro, calvo e usava um cavanhaque sempre impecvel.

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  • 22

    E era conhecido por ter controlado com mo de ferro um grupo de exter-mnio que durante anos aterrorizou o abc Paulista.

    Emmanuel e sua gangue de dezenas de homens foram presos numa operao de guerra que combinou foras da polcia militar, da polcia federal, e at mesmo do exrcito.

    Emmanuel cumpria sua pena de mais de trezentos anos de cadeia no Presdio Doutor Jos Augusto Csar Salgado quando a aproximao do planeta Absinto desencadeou o apocalipse zumbi, e agora ele era o ditador do seu pequeno imprio particular. Mas naquele dia ele estava de visvel bom humor, o que deixou Isabel ainda mais temerosa do que o normal.

    O homem que todos temiam mais do que mil mortos-vivos se acha-va sobre a caamba de uma caminhonete do exrcito. Estava cercado por vrios homens armados de fuzis e escopetas, usando armas roubadas do gigantesco arsenal do quartel. Emmanuel adorava se vestir de soldado, apesar de nunca ter servido as foras armadas antes.

    Bom dia, meus queridos amigos! um prazer falar com vocs hoje, neste belo dia de sol! Emmanuel comeou, sorridente, ignorando totalmente o fato de que era uma manh nublada e um tanto fria. Que-ro dizer mais uma vez que com muita humildade que procuro adminis-trar esta nossa comunidade de sobreviventes. Sei que muitos de vocs passaram por grandes provaes para conseguir chegar at aqui, e por isso tento dar condies dignas para que todos ns possamos viver nos-sas vidas em paz.

    Isabel sempre se perguntava, ao ouvir esses discursos cuidadosa-mente escritos, se era tudo ironia ou se ele de fato acreditava nas prprias palavras. Se a segunda opo fosse verdadeira, Emmanuel era muito mais louco do que todos supunham.

    Tudo que eu peo sempre que vocs colaborem com seu traba-lho e respeito s minhas leis e ordens. Em troca, vocs sempre podero contar com meu ombro amigo e minha generosa proteo Emmanuel prosseguiu.

    Ningum sorria, e poucos se atreviam a encar-lo.Tenho certeza de que todos sabem que eu odeio ter que tomar

    decises difceis e aplicar punies a quem quer que seja. Qual pai gosta de punir os prprios filhos? Qual irmo quer ter de aplicar um corretivo no caula da famlia? Comigo no diferente, meus amigos!

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  • 23

    Ao ouvi-lo, muitos se arrepiaram.Estava bvio que o propsito daquela convocao era punir algum,

    e essa sempre era uma experincia apavorante para todos. J haviam vis-to de tudo, de homens espancados at a morte ao estupro coletivo de uma jovem, praticado na frente de todos.

    Naquela ocasio, Isabel sentiu tanto medo, dio e repulsa que assim que teve oportunidade acabou vomitando tudo que havia comido. Daque-la vez, no entanto, o espetculo seria diferente, e esse era o motivo do bom humor de Emmanuel.

    Mas infelizmente no posso permanecer indiferente a pessoas que no sabem apreciar tudo que tenho feito para manter nossa famlia a sal-vo. No posso fechar os olhos para um ato de delinquncia que poderia ter colocado as vidas de todos ns em risco Emmanuel afirmou, srio.

    Srio at demais, quase revelando o monstro que existia debaixo daquela mscara de ironia combinada com boas intenes.

    Ontem noite, nossos heroicos vigias flagraram um criminoso que cavava um tnel sob a nossa cerca. Esse bandido tentava violar nossa segu-rana para fugir, sem se importar com o fato de que milhares de zumbis poderiam ter invadido nosso osis de paz e tranquilidade Emmanuel prosseguia com seu pequeno teatro, sem se incomodar se estava sendo con-vincente ou no. Este canalha foi detido imediatamente e trazido at mim. Trata-se de um ru confesso que no demonstrou nenhum remorso por seus atos repugnantes. E desde ento tenho deliberado com meus companheiros e conselheiros sobre quais medidas devemos adotar para impedir que outros crimes similares ocorram, garantindo, assim, o bem-estar de todos ns.

    Isabel mal conseguia respirar.Foi uma deciso difcil, e me corta o corao anunci-la, mas con-

    clumos que, se ele deseja tanto ir l para fora junto com os zumbis, ento isso que acontecer Emmanuel sentenciou.

    Houve um ligeiro burburinho entre os presentes, mas durou pouco. Ningum se atreveria a discutir as ordens daquele homem e correr o ris-co de acabar sendo punido tambm.

    Logo em seguida, o infeliz que tentara fugir foi trazido pelos capan-gas de Emmanuel. Ele era alto e magro, e tinha pouco mais de vinte anos. Estava apenas de cala jeans, descalo, sem camisa e com as mos algema-das s costas. Seu nome era Tadeu, e estava visivelmente assustado, com receio do que aconteceria.

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  • 24

    O homem ficou parado diante daquela pequena assembleia de pessoas temerosas que aguardava qual seria o prximo acontecimento. Depois de alguns instantes, trouxeram um pequeno caminho ba bas-tante alto sobre o qual havia um capanga com um balde.

    O veculo rumou at um dos portes de entrada e parou rente gra-de, e o homem comeou a jogar l de cima o contedo do recipiente para o lado de fora. Estava cheio de sangue de boi, que se espalhou rapidamen-te pelo asfalto que cobria aquela rea.

    Depois disso, os homens de Emmanuel comearam a dar tiros para o alto. O barulho era seco e alto, e se propagou por vrias centenas de metros naquele espao to aberto.

    O cheiro de sangue sendo carregado pelo vento somado ao baru-lho dos disparos teve o efeito do som de sirene para o almoo. Em menos de um minuto, o primeiro zumbi surgiu e rumou na direo do porto. Assim que ele se aproximou, comeou a bater na tela de ao tentando inutilmente entrar, diante dos olhares assustados dos demais. Ele era esqueltico e tinha a pele escurecida pelo sol, cabelos ralos e dentes podres.

    Em instantes, outras criaturas comearam a chegar em grupos cada vez maiores, se acotovelando junto ao porto e prximos do caminho. Bastaram dez minutos para que se reunissem mais de cin-quenta zumbis.

    O condenado morte olhava para os mortos-vivos, petrificado. Qua-se dava para ouvir seus dentes batendo de medo, e at mesmo uma sutil mancha de urina comeou a surgir na cala jeans na altura da virilha. Ele tentava manter o controle, mas cedia rpido ao terror.

    Isabel assistia quela cena num misto de medo e piedade do rapaz apavorado. Mas tentava pensar positivo. Quem sabe ele conseguiria cor-rer e se embrenhar na mata... Ele era jovem, talvez tivesse uma chance contra um bando de zumbis lentos.

    Ela olhou em volta, tentando encontrar a nica pessoa daquele lugar capaz de se opor a Emmanuel, mas ele no estava l, decerto porque no concordava com as insanas demonstraes de poder daquele canalha.

    Emmanuel se aproximou de Tadeu e falou em tom solene:Voc foi condenado por traio e por colocar em risco a vida de

    seus camaradas. Por seus crimes o sentencio morte. Quais so as suas ltimas palavras?

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  • 25

    Tadeu olhou bem para Emmanuel e tomou uma deciso muito dif-cil: a de no se curvar diante do seu algoz. Assim, nada disse simples-mente cuspiu na cara dele.

    Emmanuel tambm no emitiu nenhum protesto, apenas limpou o rosto com a mo e mandou os homens prosseguirem com o combinado. Enquanto isso ele se voltou mais uma vez para seus expectadores.

    uma lstima, mas a punio para este homem perigoso e sem educao no seria justa se no dssemos a chance de os zumbis cumpri-rem seu papel disciplinador. Ele poderia perfeitamente fugir por ser mais rpido e depois poderia se tornar uma ameaa para todos ns, pessoas de bem. Por isso, algumas providncias sero necessrias. E um sorriso mal disfarado surgiu no rosto de Emmanuel.

    O rapaz sentenciado morte engoliu em seco, pois sabia que aquilo era um pssimo sinal.

    Um dos capangas de Emmanuel surgiu com um martelo na mo, e todos compreenderam o que aconteceria. O condenado tambm percebeu, e por fim tentou escapar. Ele fez meno de fugir e chegou a dar meia dzia de passos, mas foi logo contido por diversos membros do grupo de Emmanuel, que o arrastaram de volta para perto dos demais que apenas assistiam quele teatro sdico.

    Trs homens o seguraram firme pelo tronco e pelos braos, enquanto um deles apoiava o p esquerdo do rapaz sobre um bloco de construo, mantendo-o firmemente parado. O infeliz finalmente comeou a chorar de pnico e balbuciou algumas palavras.

    Por favor, no! Perdoe-me, no vai acontecer de novo... Tadeu engasgava com as prprias palavras.

    Voc se arrepende dos seus crimes? Emmanuel inquiriu o rapaz com suavidade.

    Sim, muito! ele respondeu cheio de esperana.E promete nunca mais comet-los? Emmanuel perguntou.Sim, prometo pela alma da minha me! Tadeu apressou-se em

    dizer.Emmanuel se virou para sua plateia e abriu os braos de forma

    dramtica.O criminoso se arrependeu sinceramente, meus amigos. Isso

    digno de admirao. Porm, na aplicao da justia palavras so insufi-cientes para apagar nossos erros... Emmanuel suspirou, com fingido pesar. Podem prosseguir.

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    O homem com o martelo bateu com violncia, esmagando os ossos do p do infeliz. O rapaz gritou com a dor aguda, enquanto vrias pessoas, incluindo Isabel, desviavam o olhar ou cobriam os rostos com as mos.

    O capanga de Emmanuel continuou a tarefa monstruosa, quebrando um dedo de cada vez. A cada novo golpe, mais gritos eram ouvidos. Ele bateu tantas vezes e com tamanha fora que o bloco de concreto que ser-via de apoio se despedaou.

    Quando enfim soltaram Tadeu, ele desabou no cho, de dor. No con-seguia ficar de p e mal conseguia respirar de tanto sofrimento. Mas o pior estava por vir.

    Os homens de Emmanuel o agarraram e o arrastaram para cima do caminho que estava prximo do porto, usando uma escada que trouxe-ram havia pouco. Puxaram para cima da carroceria do ba o infeliz, que se debatia e gritava de dor, medo e dio.

    Eu vou matar voc, Emmanuel! Maldito seja! Eu vou voltar do inferno apenas para arrancar seu corao, seu filho da puta! Tadeu esbravejava diante da massa de zumbis sedentos de carne, que agora esta-vam completamente enlouquecidos junto ao porto, observando o homem sendo segurado na beira do caminho.

    E assim, sem maiores cerimnias, os capangas de Emmanuel solta-ram as algemas e empurraram o infeliz de cima do caminho. Tadeu voou sobre a cerca e caiu no meio dos zumbis alvoroados.

    Impossibilitado de correr, o pobre homem tentou lutar com as criatu-ras, em vo. Empurrou o primeiro que se aproximou. Na sequncia, esmurrou o seguinte. Tentou at derrubar um terceiro atacante, mas em seguida uma das criaturas o atacou por trs, agarrando-o pelos cabelos e mordendo com violncia sua jugular. Puxou com tanta fora que a pele esticou demais, at se romper fazendo o sangue jorrar.

    O condenado gritou de dor novamente, com lgrimas transbordando de seus olhos. Outro zumbi mordeu seu brao, outro cravou os dentes em seu abdmen, e em questo de segundos Tadeu foi cercado e mordido por todos os lados, sentindo o sangue jorrar por todas as partes. A dor era tan-ta que ele j no conseguia mais gritar. Assim, engoliu todo o sofrimento at que, por fim, sua alma desabou em direo ao Abismo.

    Isabel comeou a chorar tambm, rezando para que aquilo acabas-se logo. Como Emmanuel se encontrava relativamente prximo, ela

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    pde captar o que ele sentia. E era pura euforia. O maldito amava o show que preparou.

    * * *

    Isabel voltou para a realidade e tentou afugentar aquelas lembranas apavorantes. Precisava manter a calma e se concentrar em fugir dali ime-diatamente. E para isso dependia de Marcelo.

    Vamos, querido, voc est indo bem Isabel incentivou, com suavidade.

    Desculpem-me, ao temperado! muito duro. Marcelo, que apertava o alicate com as duas mos, fez mais uma seo de arame se romper.

    Agora j tinham uma abertura de quase meio metro. Mais um pouco e conseguiriam se arrastar para fora.

    Depois de mais quase cinco minutos, finalmente Marcelo conseguiu uma abertura pela qual conseguiriam se esgueirar. Seria apertado e dif-cil, mas era possvel. Isabel deu um beijo no rosto do amigo e chamou o primeiro:

    Voc vai frente, Ricardo. Depois o Marcelo, o Hugo e o Plnio. Em seguida, a Alessandra, e por ltimo, eu. Fiquem atentos aos zumbis, est bem?

    Ricardo passou primeiro; ele era magro e jovem, e no teve maiores dificuldades. Mas quando Marcelo estava atravessando, ouviram um barulho vindo do meio do matagal como se algum animal estivesse reme-xendo os arbustos.

    Que diabos que... Ricardo comeou a falar quando um zumbi pavoroso, sem os lbios e sem as bochechas, surgiu.

    O morto-vivo, magro, com cerca de quarenta anos, no hesitou um segundo sequer: agarrou Ricardo pelo brao e mordeu seu ombro com for-a, rasgando a carne e deixando os msculos mostra.

    Pego de surpresa, Ricardo gritou de dor, sentindo o sangue lavar seu brao. Seus companheiros entraram em pnico diante daquela cena. Marcelo se apressou em passar logo pela cerca e comeou a bater no zum-bi, que permanecia agarrado ao brao de Ricardo, tentando abocanhar mais um naco de carne.

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    Marcelo bateu com o alicate de corte na testa da criatura, que oscilou, soltando o pobre homem, que caiu no cho, de joelhos, segurando o ombro ferido. Em seguida, desferiu mais um golpe, que rachou a cabea do morto-vivo, fazendo-o cair para trs.

    Hugo passou logo pelo buraco e agarrou Ricardo, tentando coloc-lo de p. Ele sabia que o amigo no tinha mais do que poucos minutos antes de se transformar, mas no podia simplesmente deix-lo para trs.

    Vamos, meu amigo, eu tiro voc daqui e... Hugo sussurrava para Ricardo, que mal conseguia se levantar, quando um estampido alto e seco rompeu o silncio da noite.

    O crnio de Hugo explodiu diante dos olhos atnitos de Ricardo, encharcando seu rosto de sangue e massa enceflica do companhei-ro. O homem baleado caiu estatelado como um boneco de pano desengonado.

    Alessandra e Isabel gritaram de pavor ao mesmo tempo. Isabel olhou para trs. Seu pior pesadelo virava realidade: os atiradores avistaram o grupo, e efetuavam disparos.

    Plnio acabara de ultrapassar a cerca quando um novo tiro passou zunindo sobre a sua cabea, e ele se precipitou para a mata. Alessandra estava petrificada, mas Isabel a empurrou pelo buraco na cerca s pressas. A amiga se feriu nas pontas do arame recm-cortado.

    Marcelo comeou a puxar Ricardo, tentando faz-lo se mexer, mas ele caiu no cho em convulso chegara o momento de Ricardo se despedir da humanidade e seguir seu caminho nas trevas. Tudo ao seu redor come-ou a girar, e ele sentiu um vrtice trag-lo para baixo.

    Por favor, matem-me! No me deixem assim! Ricardo implorou, mas ento no conseguiu mais falar; sua lngua enrolou dentro da boca, e os espasmos fizeram seu corpo tremer violentamente.

    Porm, Marcelo no lhe deu ouvidos.Os tiros pipocavam por todos os lados. Assim que Alessandra atra-

    vessou a cerca e se colocou de p, uma bala entrou nas suas costas, varan-do seu corao e abrindo um buraco do tamanho de uma laranja em seu peito. A mulher caiu de joelhos sem emitir um nico rudo, e depois caiu com o rosto contra o cho de terra.

    Isabel viu a amiga se estatelar, fulminada, mas no teve tempo para sentir tristeza. Ela passou pelo buraco na cerca, agarrou Marcelo pelo brao e correu para a mata, lanando um ltimo olhar para o

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    amigo que se debatia e espumava no cho. Em breve ele seria mais um morto-vivo vagando pelo mundo procura de alguma vtima; mais um dentre bilhes.

    Os dois entraram no matagal ouvindo um ltimo tiro, e depois o som estridente de uma sirene tocando, o aviso padro de que algum zumbi invadia o quartel ou algum tentava fugir. Em ambos os casos era uma mera questo de minutos para que vrios homens armados surgissem. Mas Isabel, no fundo, achava que no viriam atrs deles. No noite, e naquela mata infestada de criaturas.

    Marcelo e Isabel correram no matagal de mos dadas, tentando enxergar algo. Naquele ponto a iluminao do quartel quase no os alcan-ava; estavam correndo praticamente s cegas.

    Para onde vamos? No fao ideia de onde estamos, podemos estar correndo em crculos. Isabel olhava em volta, com medo de encontrar com outro zumbi.

    Iremos naquela direo. Est vendo aquela rvore? Marcelo apontou para um pinheiro com um galho partido. Vamos marcar aque-le lugar e seguir naquela direo. Quando chegarmos l, marcamos outro ponto de referncia e seguimos em frente, e assim por diante. Dessa for-ma no andamos em crculos.

    Isabel seguiu o amigo sem discutir, pois ele tinha muito mais expe-rincia que ela nesses assuntos. E ento Isabel comeou a sentir tristeza pelos demais companheiros. Trs estavam mortos e um corria sozinho pela mata, com medo e talvez ferido.

    Ser que Plnio conseguiu? Ser que ele fugiu, Marcelo?Isabel e Marcelo avanavam abrindo caminho pelo capim alto, sem-

    pre olhando para trs tentando ver se eram seguidos.No fao ideia, espero que sim. Acho que ele no foi atingido pelos

    tiros, e isso j uma vantagem muito grande. Marcelo parava de tem-pos em tempos para checar se seguiam na direo correta.

    Ambos estavam cansados, suados, e agora os pernilongos os estavam enlouquecendo, picando-os e zunindo por todos os lados.

    Continuaram avanando no meio da escurido, sobressaltando-se ao menor barulho. Se deparassem com algum zumbi, teriam srios proble-mas. Como arma, Isabel trazia apenas uma chave de fenda, e Marcelo, um alicate de corte; era muito pouco para o tipo de perigo que poderiam ter que enfrentar, mas precisavam seguir em frente. Eles sempre souberam

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    que era mais do que provvel que tivessem de passar por isso, mas deci-diram que valia a pena correr o risco.

    Andaram por cerca de quarenta minutos, aos poucos se acostuman-do com a escurido; j no estava to difcil enxergar para onde cami-nhavam. Tambm se sentiam mais calmos. A mata, ao que tudo indica-va, no se achava to infestada quanto supunham, pois no encontraram nenhum zumbi.

    O cheiro de capim misturado com orvalho impregnava o ar, e aquilo era, de certa forma, reconfortante.

    Estavam quase chegando ao segundo ponto de referncia quando ouviram um grito que os fez estacar. Isabel sentiu o sangue gelar nas veias; era um grito de homem vindo de algum lugar muito prximo deles, no mais do que uns trinta metros de distncia. Os dois se abaixaram e puseram-se a sussurrar:

    O que foi isso? Isabel perguntou.Algum est em apuros. Ser Plnio? Marcelo olhava em volta,

    alerta.Temos de procurar por ele, no podemos abandon-lo! Isabel se

    sentia angustiada com a possibilidade de o amigo estar em perigo.Precisamos seguir em frente, no fazemos ideia da direo de que

    veio o grito. Plnio no devia ter se afastado tanto. Ele nos deixou para trs, e agora est por conta prpria. Marcelo no parecia disposto a se arriscar pelo amigo fujo.

    De forma alguma! Todos ns estvamos com medo. Poderia ter sido eu no lugar dele, ou voc Isabel protestou.

    No podemos perder tempo, precisamos... Marcelo foi inter-rompido por outro grito bem mais prximo.

    Tambm ouviram o barulho de arbustos sendo remexidos e galhos quebrados.

    O som veio de l! Vamos! Isabel apontou na direo da origem do rudo.

    Imediatamente ela comeou a correr para aquele lado, com Marcelo nos seus calcanhares protestando enquanto tentava acompanhar a amiga.

    Em questo de segundos viram uma movimentao no meio do capim. Parecia haver algum lutando ali. Estavam prximos demais quan-do comearam a ouvir os rosnados e gemidos dos zumbis. Chegaram a uma pequena clareira no meio da mata, e ento viram a cena dantesca.

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    Plnio se debatia no cho, com um grupo de meia dzia de zumbis esfarrapados se debruando sobre ele, atacando-o. As criaturas rasgavam sua pele com as prprias mos e dentes, enquanto o sangue do pobre coi-tado jorrava contra o mato alto.

    No! Deixem-no em paz! Isabel gritou e avanou contra o grupo de mortos-vivos. O que sobrava nela em coragem faltava em bom senso.

    O primeiro zumbi era uma mulher de cabelos compridos e totalmen-te ensebados. Isabel puxou-a para trs e enfiou a chave fenda na sua nuca, penetrando at o fundo do crnio. A criatura desabou, como se fosse uma mquina desligada de repente da tomada.

    Os zumbis olharam na direo dela, mas, antes que o primeiro se levantasse, Isabel enterrou a chave de fenda no seu olho, despachando-o para o inferno tambm. Marcelo imitou-a, cravando o alicate de corte no olho de outra criatura.

    Os trs zumbis restantes abandonaram Plnio e ergueram-se, olhan-do para o homem e a mulher diante de si. Seus rostos eram caretas demo-nacas. Todos eles possuam olhos brancos como leite, e dois tinham os rostos esfacelados. Mas a aparncia de um deles no era to grotesca quanto a dos demais porque ele havia renascido fazia pouco tempo, ape-nas uma hora antes. Contudo, o rosto e a boca estavam sujos de sangue, e entre os dentes arreganhados como os de um co selvagem viam-se fiapos de carne humana.

    Ai, no... Ricardo, voc? Isabel falou ao ver o companheiro que abandonaram prpria sorte to pouco tempo antes, e que agora se trans-formara num demnio matador de homens.

    Porm, Ricardo no existia mais. A fera olhou para os dois amigos e avanou com os braos esticados na direo deles, no que foi imitado pelos outros dois zumbis.

    Marcelo, um homem forte resultado do trabalho duro do campo , agarrou Ricardo pelo brao e puxou-o, fazendo com que a criatura casse no cho, desajeitada. Enquanto isso, Isabel agarrou o zumbi que avanou contra ela e enfiou a chave de fenda no seu queixo, enfiando a pea no seu crnio. Marcelo golpeou o outro atacante na cabea, derru-bando-o. Depois, desferiu seguidos golpes at arrebentar seus miolos.

    Ambos se viraram para Ricardo, que j se levantava com o rosto dis-torcido pela fria. Essa era a natureza perturbadora dos zumbis: torna-vam-se verdadeiros manacos diante de um ser humano, sempre.

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    Ficaram os trs parados por um instante. Isabel olhava o amigo, pesa-rosa, sentindo imensa piedade dele. Soube que no conseguiria fazer o que era necessrio, e falou rapidamente com Marcelo:

    Por favor, encerre esse assunto. Vou ver Plnio, est bem? E ela se virou para o amigo cado.

    Isabel nem conseguiu ouvir a resposta de Marcelo. Quando ela girou o tronco, deu de cara com Plnio, um monstro de rosto desfigurado. O pescoo estava arrasado, as orelhas, os olhos e at mesmo o nariz foram dilacerados e arrancados fora. Quase no dava para reconhec-lo. Isabel no tinha se dado conta do tamanho do estrago que os zumbis produzi-ram. E mesmo sem enxergar nada Plnio atacou Isabel, que soltou um gri-to de terror.

    Marcelo ia comear a lutar com Ricardo quando foi pego de surpresa pelo grito da amiga, e por isso instintivamente olhou para trs. Foi o momento de distrao que Ricardo precisava. Ele agarrou o brao do ex--agricultor e mordeu com violncia, arrancando um naco de carne entre o pulso e o cotovelo. Marcelo urrou de dor e o empurrou, derrubando-o. Em seguida, se voltou para a amiga, que estava em apuros.

    Plnio avanou contra Isabel, derrubando-a no cho. Ele caiu sobre ela, desengonado, tentando mord-la a todo custo.

    Isabel empurrava o zumbi enlouquecido com toda a fora, tentando se livrar dele. Mas Plnio era pesado e muito mais forte, uma vantagem considervel naquelas circunstncias. Ela ainda segurava a chave de fen-da, mas no havia como golpear o desgraado.

    De repente, Isabel sentiu o peso sobre si aliviar. Marcelo agarra-ra Plnio e puxara-o, jogando-o de cara no cho. Ato contnuo, ele pisou vrias vezes na nuca do zumbi, esmagando sua cabea contra o piso de terra.

    Mas nem teve tempo de saborear seu triunfo, pois Ricardo o atacou pelas costas e o mordeu de novo, dessa vez rasgando sua jugular com os dentes afiados.

    Marcelo berrou de dor e agarrou seu atacante pela camisa, tentando pux-lo. Mas era intil; Ricardo se atracou com ele e tornou a mord-lo, dilacerando totalmente seu pescoo.

    Ao ver aquela cena, Isabel gritou de fria e se colocou de p num sal-to. Rodeou os dois homens e enterrou a chave de fenda na nuca de Ricardo, que desabou.

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    Sentindo o aperto de seu atacante afrouxar, Marcelo tambm caiu para a frente. Isabel jogou Ricardo de lado e ajoelhou-se ao lado do amigo ferido, que agonizava no cho.

    Meu Deus do cu, Marcelo, me perdoa! A culpa minha! Isabel colocou inutilmente a mo no pescoo do amigo, de onde o sangue jorra-va sem parar.

    Tudo bem, minha irm... A culpa no sua, voc fez a coisa certa... Marcelo balbuciou, sentindo a cabea girar. Sabia que estava indo embora. Sua vida escoava, veloz, como a areia de uma ampulheta.

    No vou conseguir! Sou incapaz de fazer isso sozinha! Isabel chorava, enquanto suas roupas e mos se encharcavam com o sangue do amigo.

    Consegue sim... importante, todas aquelas pessoas precisam de ajuda... algum tem que deter Emmanuel, voc a nica esperana delas... Marcelo falava com dificuldade.

    Marcelo, por favor, eu preciso de voc! Isabel implorou, apavorada.

    Desculpe, minha querida, agora voc ter de continuar sozinha... Pode me fazer um ltimo favor? Marcelo a olhava de forma dbil.

    Claro, meu amigo, o que voc quiser... As lgrimas caam copio-samente dos olhos dela.

    Faz aquilo de novo. to maravilhoso. to... mgico. Marcelo pediu, sorrindo.

    Isabel olhou para o amigo e no pde dizer no. Estava aflita, apa-vorada e esgotada, mas devia sua vida a ele, e no lhe negaria aquele lti-mo pedido. Por isso, ela segurou as duas mos do colega no meio do pei-to dele, fechou os olhos e fez o que Marcelo pediu, o passe de mgica que ele tanto admirava.

    Voc est pensando que eu sou forte e completamente capaz de realizar essa tarefa. Voc tem certeza de que eu consigo... e est prometen-do que tomar conta de mim l do cu... Isabel sentenciou, aos prantos. Ela se sentia agradecida pelo voto de confiana do parceiro.

    Meu Deus, minha querida, quem voc? Isso que voc faz sim-plesmente fantstico... Marcelo, maravilhado, sentia seu corpo afundar na direo do limbo.

    Foi quando Isabel ouviu, atrs de si, o som de galhos sendo pisados e arbustos sendo remexidos, o que causou sobressalto nela e em Marcelo. E

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    Isabel viu um grupo de zumbis se aproximando por diversas direes, dezenas de criaturas mortferas atradas pelo cheiro de sangue e morte daquele lugar.

    V embora! Fuja daqui e encontre ajuda! Localize algum capaz de deter aquele monstro! Marcelo gritou, no limite de suas foras.

    Eu nunca vou esquec-lo! E Isabel saiu correndo, no meio da mata, abandonando o parceiro prpria sorte.

    Isabel travou os dentes quando comeou a ouvir os gritos de dor e desespero de Marcelo, que vinham da escurido atrs de si, e correu em disparada noite adentro, limpando as lgrimas com as mos.

    * * *

    Isabel acordou cedo naquele dia, antes das seis da manh. Estava ansiosa demais para continuar dormindo. Na realidade, ela passou a noite toda pensando nos eventos que supostamente ocorreriam naque-le dia.

    Levantou-se da desconfortvel cama da cela da delegacia, que vinha lhe servindo de abrigo nos ltimos dias. Fazia quase uma semana que Isabel conseguira realizar a dramtica fuga do quartel onde estivera pre-sa durante meses.

    Recordou os momentos de terror que enfrentara, correndo pela mata no meio da escurido com criaturas cercando-a por todos os lados. Deze-nas, talvez centenas de mortos-vivos que tentaram mat-la a todo custo. No entanto, toda vez que ela pensava em desistir, as palavras de Marcelo voltavam sua cabea.

    O amigo deixara a cargo dela uma misso importante, e Isabel conti-nuaria tentando at o fim. E foi isso que lhe deu a fora necessria para sair viva daquela mata.

    Acima de tudo, Isabel pensara no seu amado, que ficara no quartel e que ela queria a todo custo reencontrar.

    Depois de horas perdida no matagal, Isabel finalmente chegou a uma estrada e correu como o vento, seguindo as placas que indicavam os bairros mais prximos do centro de Taubat. Caminhou e correu durante muito tempo, sempre procurando se esconder quando encon-trava algum zumbi.

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    Enfiou-se debaixo de carros, entrou em terrenos baldios tomados pelo mato, e at mesmo numa lixeira, para despistar os malditos mortos--vivos que infestavam no s aquela cidade como o mundo inteiro. Ela no desistiria. Isabel no tinha autorizao para desistir.

    Avanar era complicado e perigoso; por todos os lados avistava aque-les seres. E ela no dispunha de uma nica arma de verdade, apenas a chave de fenda.

    O cenrio desolador dos lugares desertos lhe causava arrepios, mas era imprescindvel prosseguir. Suas melhores opes eram as apavoran-tes ruas escuras, as vielas e os matagais. Isabel aprendia, a cada segundo, a suprimir o terror. Afinal, entregar-se ao medo seria sua runa.

    Certo dia, Isabel deparou com uma criatura no meio do mato. Um homem de terno e gravata, talvez algum empresrio que estivesse traba-lhando naquele sbado fatdico e se transformara num monstro. Ele rosnou, selvagem, com seus dentes podres e olhos brancos, e avanou contra ela.

    Isabel correu durante a noite mata a dentro, com a fera nos seus cal-canhares, e chegou, enfim, a uma grande rea descampada. O homem era forte, e pelo menos um palmo mais alto. Deveria ter uns vinte e cinco qui-los a mais que ela; portanto, um adversrio imbatvel para uma mulher assustada e munida apenas de uma ferramenta como arma.

    A perseguio durou uns trinta minutos, o que deixou Isabel morta de cansao. Sua nica vantagem era ser mais rpida. Mas o desgraado a caava de forma implacvel. E como estavam em campo aberto, ela no conseguia despist-lo.

    Ao avistar uma rvore, ela se escondeu atrs do tronco. Sentiu um mpeto de subir; duvidava que o zumbi conseguisse segui-la. Mas e depois? E se surgissem outros? A ideia de morrer de fome sobre uma rvore no estava nos seus planos.

    Isabel se apoiou no tronco, tentando respirar. Pelas suas contas no dispunha de mais do que trinta segundos de vantagem. Passado esse intervalo ela teria que recomear a correr. Mas at quando?

    Para sua sorte, e azar do zumbi, ao lado do tronco havia um longo galho cado. Ele tinha cerca de trs metros de comprimento, e o primeiro segmento media um metro e vinte de madeira pura, sem nenhum galho ou folha. E tambm no era muito grosso.

    Aquilo era perfeito. Isabel pisou no galho no ponto em que deseja-va quebr-lo e puxou com fora para cima a extremidade oposta. A

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    madeira grosseira e ressecada machucou suas mos, mas ela insistiu at a estrutura rachar.

    Olhou para trs e conferiu seu perseguidor, que estava cada vez mais prximo. Ou ela quebrava de vez aquele galho ou precisaria voltar a correr.

    Isabel virou a madeira do lado oposto, pisando sobre a parte j racha-da, e repetiu o gesto, partindo a pea em duas.

    Virou-se na direo do seu inimigo com o porrete improvisado nas mos sua espessura era a de um punho, e pesava cerca de dois quilos e meio; portanto, pesado o suficiente para causar um belo estrago, mas de fcil manuseio.

    Vem, seu puto! Vem c! Isabel gritou, reunindo sua coragem.Nas aulas de programao neurolingustica da faculdade os profes-

    sores costumavam dizer que o brado fazia a bravura florescer. Estava na hora de provar a veracidade da teoria.

    Quando o zumbi chegou a poucos passos, Isabel se adiantou, encur-tando a distncia. E desferiu um golpe lateral com toda a fora, atingindo a criatura na tmpora.

    O zumbi girou e caiu espatifado no cho, mas logo comeou a se levantar, de costas para Isabel.

    Ela no lhe deu essa chance. Vibrou um segundo golpe de cima para baixo com tanta fora que o pedao de madeira se partiu ao meio, rachan-do a cabea do zumbi e rasgando seu couro cabeludo, de onde o sangue jorrou. Ele desmoronou de novo, com a cara contra o cho.

    Com sua arma inutilizada, Isabel sacou a chave de fenda e sentou-se sobre as costas da criatura ferida, que continuava deitada. E comeou a estocar a fera com a ferramenta.

    Golpeou vrias vezes, com selvageria. Furou as costas, a nuca, os ombros e parte do rosto.

    A cada golpe descarregava um pouco da sua raiva, do seu cansao, da sua revolta por estar naquela situao miservel. Enfim, um dos golpes penetrou pela nuca dentro da caixa craniana. O zumbi estremeceu uma ltima vez, e depois parou completamente.

    Isabel ergueu sua chave de fenda ensanguentada e soltou um grito para a noite, de vitria e desafio, com o sangue escorrendo-lhe pelo pulso e antebrao. Pela primeira vez em muito tempo se sentiu menos vulner-vel. Antes de ir embora, cuspiu na criatura abatida.

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    Eu acabo com mil iguais a voc se for preciso, maldito! afirmou. E Isabel voltou a andar pela mata.

    No dia seguinte, encontrou uma casa abandonada e em condies seguras. Era uma residncia bastante humilde, com apenas trs cmodos, paredes levemente encardidas e piso bastante velho. Os mveis eram bem antigos, talvez houvessem sido comprados de segunda mo.

    Ela aproveitou para dormir um pouco, procurar comida e gua, e tambm para conseguir roupas mais quentes e secas. Mas no ficou mais do que algumas horas. To logo se sentiu mais recuperada, juntou numa mochila tudo de til que podia carregar e seguiu em frente.

    Foi um alvio quando Isabel achou um Celta abandonado com a cha-ve no contato. Jogou as coisas dentro do carro e saiu dirigindo.

    Passou por cenrios que lembravam o resultado de uma guerra. Mui-tos carros destrudos no meio da rua, muitos corpos cados nas caladas e esquinas, restos do desigual confronto entre humanos e zumbis. Havia lixo espalhado, e muito mato que crescia desordenadamente, o que confe-ria aos bairros da cidade um aspecto de total abandono.

    Em meio a todo aquele caos, Isabel caminhava pelas caladas, sempre lenta e com muito cuidado. O mais assustador, entretanto, era o silncio. Nem mesmo os pssaros cantavam mais em Taubat; o tempo parecia ter congelado naquele lugar.

    A calmaria s era rompida quando surgiam os zumbis, e eles sempre surgiam. Sozinhos ou em pequenos grupos, de tempos em tempos apare-ciam, e nesses momentos Isabel mandava a precauo s favas e acelerava o Celta da forma que dava, at deixar seus perseguidores para trs.

    Taubat era uma cidade morta.Aps muito procurar, Isabel enfim achou o que buscava. No corao

    do bairro Continental localizou uma delegacia de polcia que no estava cercada de zumbis. Parecia abandonada, mas l dentro talvez houvesse um equipamento com o qual era muito familiarizada, e que seria sua ni-ca esperana.

    Isabel estacionou o carro e seguiu at a porta da delegacia, que tentou abrir, sem sucesso. Estranhou a entrada trancada. Era capaz de apostar que aquele lugar j fora saqueado; armas eram as primeiras coisas que as pessoas procuravam naqueles dias caticos.

    Deu a volta no pequeno prdio de dois andares tentando achar uma forma de entrar, mas a porta dos fundos tambm estava trancada. Quando

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    voltou para a entrada principal, tomou um susto: havia um grupo de cer-ca de quinze zumbis subindo a rua deserta que era repleta de rvores espalhadas pelas caladas.

    Caminhavam daquele jeito desengonado, descoordenado e lento que dava a falsa sensao de serem criaturas inofensivas. Mas cada um daque-les miserveis era uma verdadeira mquina de matar, implacvel e cruel.

    Isabel ficou congelada diante da delegacia ao ver a cena aterrorizan-te. No havia como chegar at o carro antes de ser alcanada pelos mor-tos-vivos, e no dispunha de nada alm da velha chave de fenda e uma faca que conseguira na casa onde se escondera para se defender.

    Quando pensou em recuar sorrateiramente, uma das criaturas a viu, soltou um urro selvagem e comeou a mancar na direo dela, sendo ime-diatamente imitada pelas demais. Isabel entrou em pnico e correu para os fundos da delegacia.

    Ao chegar parte de trs do prdio Isabel se deu conta do erro fatal: no havia sada. Ele era cercado por muros altos cobertos de cacos de vidro e uma cerca eltrica que j no funcionava fazia muito tempo. Acha-va-se em uma armadilha letal, presa como um rato na ratoeira.

    Ela fez meno de dar a volta no prdio, mas algumas das criaturas se aproximavam pelo outro lado tambm. Seres furiosos e famintos vin-dos da esquerda e da direita. No havia chances de escapar.

    Isabel sentiu o corao disparar dentro do peito; no podia acreditar que conseguira chegar to longe para acabar daquele jeito.

    Correu at a porta dos fundos da delegacia mais uma vez; a nica esperana era entrar no prdio. Como estava trancada tambm, ela come-ou a esmurrar a porta de madeira macia, mas nada aconteceu. Ento, seu tempo se esgotou: o primeiro zumbi surgiu pela lateral do edifcio, o primeiro de muitos.

    Isabel virou-se de costas para a porta, e sacou a faca e a chave de fen-da. Podia morrer, mas no se entregaria sem luta. Venderia caro cada gota de sangue que aquelas coisas fossem arrancar de seu corpo.

    Sentiu a boca amarga e as mos se encharcarem de suor. E um medo incontrolvel que fazia o sangue gelar dentro das veias.

    Entretanto, quando a primeira fera se precipitou na sua direo, o ini-maginvel aconteceu. A porta se abriu s suas costas, e duas mos a agar-raram pelo brao e a puxaram desajeitadamente para dentro. Isabel trope-ou e bateu a cabea no cho.

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    Um homem alto e corpulento com cabelos bem ralos e grisalhos pulou por cima dela e ficou em frente da porta. Com um Taurus calibre .38 nas mos, ele comeou a disparar, explodindo os miolos do zumbi mais prximo.

    Isabel comeou a se levantar, apressada, e sentiu o mesmo par de mos ajudando-a a se erguer. Por fim, viu quem era. Tratava-se de uma senhora de cerca de sessenta e cinco anos, baixinha, rosto redondo e cabe-los completamente brancos.

    Hilton, fecha a porta! ela gritou.O homem deu um ltimo disparo, descarregando o revlver, e bateu

    a porta com violncia, trancando-a em seguida. Do lado de fora, os zum-bis comearam a esmurrar a madeira e as janelas, furiosos, tentando entrar a qualquer custo.

    Isabel, agora de p, ficou parada no pequeno cmodo que parecia ser uma espcie de copa, diante dos seus dois salvadores. Eles aparenta-vam ter mais ou menos a mesma idade, e olhavam um tanto inseguros para ela, que ainda empunhava a faca numa das mos e a chave de fen-da na outra.

    Mocinha, antes de qualquer coisa, passe isso a para c o homem ordenou, referindo-se s armas de Isabel.

    E por que eu faria isso? Isabel perguntou, dando um passo para trs arisca.

    Essa a condio para eu deixar voc ficar aqui: sem armas! Hilton respondeu em voz de comando, mostrando o revlver para ela.

    A senhora que ajudou Isabel assistia a toda a cena, assustada.Desculpe, mas seu revlver est descarregado. Eu contei os tiros

    Isabel respondeu, ferina e disposta a no se deixar intimidar.Acalme-se, menina, est tudo bem. S queremos ter certeza de que

    podemos confiar em voc. Por favor, entregue suas armas a senhora argumentou, em tom tranquilizador.

    E eu preciso ter certeza de que posso confiar em vocs Isabel disparou, ainda insegura.

    Ns a salvamos, no verdade? Isso no prova suficiente de nos-sas intenes? a senhora argumentou, enftica.

    Isabel avaliou bem aqueles dois e viu que talvez no estivesse mesmo sendo razovel. Tratava-se de um casal de idosos simpticos que

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    lembravam muito os seus avs. Mas ela realmente precisava ter certeza, e por isso fez um pedido que deixou ambos cismados.

    O senhor pode me dar sua mo por um instante? Isabel pediu, esticando a mo esquerda e segurando as armas com a direita.

    O que voc quer com isso, menina? No estou gostando disso! Hilton a encarou, desconfiado.

    uma coisa minha. Se o senhor estiver sendo sincero quando diz que de confiana, ento no tem com que se preocupar. Isabel esticou mais a mo, mas com um p sempre atrs.

    Hilton olhou para a outra mulher como se quisesse saber a opinio dela. A idosa fitou para Isabel dos ps cabea, avaliando-a. Em seguida, acenou com a cabea para ele, encorajando-o.

    Pense bem no que voc vai fazer, garota. Estou velho, mas no estou morto. Hilton esticou a mo, sempre alerta.

    Isabel hesitou por um instante, e por fim segurou a mo dele com fir-meza. Os idosos ficaram perplexos com aquela cena. O olhar de Isabel parecia longnquo, como se ela enxergasse algo que no estava ali. Aps alguns segundos, ela soltou a mo de Hilton e voltou ao normal. Cedeu e entregou a faca e a chave de fenda.

    Muito prazer, meu nome Isabel.

    * * *

    Isabel e seus anfitries sentaram-se para comer alguma coisa. No havia grandes opes, na realidade, apenas um pouco de comida enlata-da. A mulher chamava-se Scheyla, e, ao contrrio do que Isabel imaginou de imediato, ela e Hilton no formavam um casal. Eram apenas duas pes-soas que se encontraram em meio ao caos e se uniram para sobreviver.

    Comiam em silncio, ouvindo o barulho dos zumbis mexendo nas portas e janelas. O grupo de criaturas que perseguira Isabel insis-tia em no ir embora, e agora s restava rezar para que eles no conse-guissem entrar.

    H outras armas aqui? Isabel perguntou, rompendo o silncio incmodo.

    No Hilton respondeu, seco, deixando claro que no estava muito confortvel com sua visitante.

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    Infelizmente s conseguimos esse revlver que est com Hilton, querida, sinto muito. Mas eu espero que voc no precise de um aqui, acho que estamos seguros.

    Muito obrigada por me acolherem. Eu achei que estava perdida Isabel falou, sincera.

    Sim, eu sei. Hilton, pelo visto, no facilitaria as coisas.No se preocupe, querida, um prazer receb-la aqui. E Scheyla

    lanou um olhar de reprovao para Hilton.Ele percebeu e deu de ombros.Aps mais alguns instantes de silncio, Hilton decidiu parar de fin-

    gir que estava tudo bem. Ele queria uma explicao, e queria j. E se no gostasse da resposta, colocaria Isabel para fora daquele lugar nem que fos-se na marra.

    Isabel, que diabos foi aquilo? Hilton a encarou com olhar penetrante.

    Na realidade, eu procurava uma delegacia, pois precisava de aju-da. Quando vi esta aqui, achei que havia encontrado o que buscava, mas no esperava ser cercada pelos zumbis, por isso...

    Hilton, decidido a no se deixar despistar, e sem a menor pacincia para jogos, a interrompeu:

    Voc sabe muito bem que no disso que eu estou falando, no se faa de idiota!

    Isabel engoliu em seco. Scheyla ficou em silncio, olhando para o tampo da mesa de madeira descascada. Ela desaprovava a atitude do ami-go, mas tambm ficara cismada com o que Isabel havia feito, fosse l o que aquilo significasse.

    Acho que no entendi... Isabel tentava escapar da pergunta.Voc parecia disposta a cortar a minha garganta. Depois, pediu

    para segurar a minha mo, e a mudou totalmente, ficou calma, serena e est aqui posando de hspede exemplar. Quem diabos voc, e o que foi aquilo que voc fez? Hilton perguntou, com ao no olhar.

    Ah, sim, desculpe! Achei que voc estava falando de outra coisa. muito simples, eu sou psiquiatra, e usei uma tcnica criada por um estu-dioso ingls chamado Peter Ellis, que consiste em segurar as mos de uma pessoa e sentir seus batimentos cardacos. Pela pulsao eu consigo identificar se meu interlocutor est mentindo ou no, se est estressado,

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    relaxado, e assim por diante. Isabel sorriu. Parecia aliviada por ter esclarecido os fatos, e at voltou a comer.

    Ora, mesmo uma tcnica muito interessante e til, voc no con-corda, Scheyla? Hilton dirigiu para a outra mulher um sorriso estra-nho, que deixou Isabel um tanto incomodada. Diga-me, Isabel, voc aprendeu esta tcnica na faculdade?

    Sim, durante meu estgio, na realidade. Isabel mordeu um pedao de salsicha, remexendo-se, desconfortvel, na cadeira.

    Fantstico. E onde estudou? Hilton mostrava vivo interesse, porm sua expresso era um tanto enigmtica.

    Na Unitau, apesar de ser do Rio Grande do Sul. Isabel sentia a tenso crescer naquele ambiente apertado.

    B, tch, voc gacha, ento? Hilton perguntou, imitando o sotaque sulista.

    Sim, da serra gacha! Sou de Canela. Vocs conhecem? Isabel, efusiva, olhou para Scheyla tambm, tentando envolv-la na conversa.

    Sim, eu estive l alguns anos atrs. Visitei tambm Gramado, Bento Gonalves, Nova Petrpolis, Garibaldi... Hilton sorriu.

    Conheo todas essas cidades! Isabel falou, animada. Inclusi-ve o melhor vinho que tomei na minha vida foi numa vincola chamada...

    Isabel, voc acha que sou imbecil? Hilton deu um murro na mesa.Isabel se levantou de um salto, olhando em volta, assustada. No

    fazia ideia de onde eles guardaram suas armas, e Hilton j havia recarre-gado o revlver que trazia na cintura.

    Vou esclarecer uma coisa, menina: eu sou professor de psiquiatria. E sei muito bem quando algum est mentindo. Por isso, posso afirmar que no existe nenhuma tcnica que permita segurar a mo de uma pes-soa e decifrar todo o estado de esprito dela. E, s para sua informao, Peter Ellis o criador do Viagra. Quando for inventar uma mentira desse tamanho, tenha a decncia de pesquisar melhor antes.

    Scheyla tentava acalmar Hilton, em vo.Isabel pensou em correr para fora, mas isso seria estupidez. Ela con-

    tinuava ouvindo o som dos zumbis mexendo na porta, e por isso sabia que sair seria suicdio.

    Vamos! Responda o que foi aquilo ou eu lhe encho de bala! Hilton arrancou o Taurus da cintura.

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    Calma, no precisa tanto! Scheyla protestou, tentando apazi-guar a situao. Estava com um pssimo pressentimento sobre o que podia acontecer, pois Hilton j demonstrara em outras situaes que sob estresse podia ser muito explosivo.

    Isabel congelou diante do revlver. Sabia o que fazer para encerrar aquele assunto, mas morria de medo de se expor. Tinha coisas a revelar que provocavam reaes bastante diversas nas pessoas. Algumas ficavam maravilhadas, mas outras passavam a trat-la como se ela fosse a encar-nao do diabo.

    Vou contar at trs, Isabel. Estou farto das suas mentiras. Um, dois e...

    Est bem, Hilton! Calma, eu vou explicar, certo? Isabel ergueu ambas as mos em sinal de rendio.

    Muito bem. Estou esperando. Hilton continuava apontando a arma para ela.

    Voc pode me emprestar uma bala de revlver, por favor? Isabel pediu com naturalidade.

    Por que diabos voc quer isso? O que est planejando? Hilton sentia a pacincia por um fio.

    Voc quer uma explicao, no ? O que eu tenho para contar no pode ser descrito em palavras, precisa ser mostrado. Eu preciso de uma bala Isabel disse com firmeza, estendendo a mo aberta e virada para cima.

    Hilton parecia na dvida, e mais uma vez olhou para Scheyla, bus-cando aprovao. Ela tambm parecia perplexa, mas no fundo tinha uma boa sensao sobre aquela moa. Com um leve aceno, ela incentivou-o a fazer o que lhe era pedido.

    Ainda hesitante, Hilton enfiou a mo em um dos bolsos e pegou a bala de revlver, sem nunca desviar o olhar de Isabel. Em seguida, colo-cou o projtil sobre a mesa.

    Isabel se aproximou da mesa e olhou para a bala. No queria fazer aquilo, mas a experincia mostrava que era a nica forma de as pessoas acreditarem no seu dom. Seu incrvel dom.

    Ela posicionou ambas as mos espalmadas acima da bala. Olhava fixo para o objeto, como se buscasse se concentrar, sob os olhares curiosos de Hilton e Scheyla. E eis que logo em seguida o impossvel aconteceu.

    Lentamente, suavemente a bala comeou a rolar de um lado para o outro no tampo, como se estivesse enfeitiada, sob os olhares assombrados

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    dos dois idosos. Hilton ficou to perplexo que o revlver caiu da sua mo e quicou preguiosamente no cho.

    * * *

    Scheyla tentava beber a gua na nica caneca de plstico de que dis-punha quando queria matar a sede, mas estava praticamente impossvel fazer aquilo sem tremer.

    Ela segurava o copo com as duas mos, e nem assim conseguia se controlar. No era para menos; acabara de presenciar um fenmeno autn-tico, praticado por uma criatura singular.

    Hilton tambm estava perplexo. Nunca imaginou presenciar uma cena daquelas.

    Isabel os observava com tranquilidade, pois j estava acostumada com aquele tipo de reao; era sempre igual.

    Isabel, como pode? Scheyla perguntou. Isso impossvel!Bom, sou forada a discordar, no acham? Impossvel definitiva-

    mente no . Isabel sorriu.Sim, mas voc h de convir que no normal! Como pode aconte-

    cer isso? Hilton indagou, perplexo. uma longa histria, e sinceramente nem sei se tenho uma expli-

    cao satisfatria. Mas antes de contar tudo que sei eu gostaria de abordar um assunto bem mais importante. H um rdio por aqui?

    Sim, est l em cima Hilton respondeu, um pouco decepciona-do. Ele queria mesmo era falar dos dons espetaculares de Isabel. Nem mesmo os zumbis o incomodavam naquele momento.

    Podem me mostrar? Isabel se encheu de esperana. Aquela era a sua prioridade, nada mais importava.

    Os dois idosos levaram-na at uma saleta suja e abafada no segundo andar do edifcio, onde um velho rdio juntava p e teias de aranha. Exa-tamente o que ela precisava.

    Ns o tnhamos visto a, mas como no temos energia eltrica, no vai ter muita utilidade Hilton observou.

    Pelo contrrio! Meu pai era especialista em radioamador, e ele dizia que muitas delegacias possuem baterias de carro ou at mesmo nobreaks para que os comunicadores continuem funcionando em caso de

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    apago. Deve ter algo por aqui em algum lugar. E Isabel comeou a procurar em armrios e estantes.

    Hilton e Scheyla ajudaram-na na empreitada. Passados menos de dez minutos, Isabel encontrou o que desejava. Era um conjunto de quatro baterias de carros interligadas e adaptadas a uma pequena mesa com rodinhas. O conjunto acabava em uma extenso de fio de cobre grosso, e na ponta havia um transformador com duas tomadas eltricas.

    Isabel cruzou os dedos e ligou o transformador. E soltou um grito de empolgao quando a pequena luz vermelha surgiu. Aquela engenhoca gerava energia eltrica suficiente para fazer o rdio funcionar por um tempo limitado, mas teria que ser o suficiente.

    Arrastaram o equipamento e o conectaram no rdio, cujo painel, com seus diversos ponteiros e botes, logo acendeu. Agora vinha a parte mais importante, que era procurar ajuda. Em algum lugar haveria algum transmitindo, Isabel podia jurar. E isso no tinha nada a ver com seu dom fantstico, ela simplesmente acreditava que existia alguma pessoa que poderia ajudar.

    Comeou a passar vrias frequncias, uma aps a outra; e tudo con-tinuava no mais absoluto silncio. Aquilo era esperado, ela sabia que quando encontrasse algum transmitindo se sobressairia na calmaria.

    Depois de horas tentando diversas frequncias diferentes, Isabel comeava a se preocupar. Sabia que aquele aparato de baterias era uma medida paliativa, um recurso de emergncia para sanar interrupes no fornecimento de energia eltrica. No tardaria para aquilo se esgotar.

    Foi quando ela ouviu. Uma voz que se sobressaa no silncio que pai-rava sobre o mundo todo. Uma voz feminina falando de forma lmpida que fez com que Isabel saltasse na cadeira de emoo.

    Aqui do Condomnio Colinas, tem algum na escuta? Estou transmitindo da colnia de sobreviventes de So Jos dos Campos, tem alguma pessoa ouvindo? A mulher falava de forma enfadonha, demonstrando estar muitssimo entediada.

    Sim, estou ouvindo! Isabel gritou no microfone com tanta empolgao que quase deixou a pobre operadora surda.

    * * *

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    Aquele contato era o motivo de Isabel se levantar cedo. Suposta-mente o dia do resgate chegara. Fazia dois dias que ela conversara com Ariadne, a operadora de rdio da tal colnia de sobreviventes, passara o endereo de onde estavam e pedira ajuda. Ariadne lhes disse para aguentarem firme e continuarem naquela frequncia, pois ela voltaria em cinco minutos.

    Isabel, Hilton e Scheyla esperaram, apreensivos, olhando o tempo todo para o transformador cuja luz estava cada vez mais fraca, dando a entender que era mera questo de tempo para o rdio parar de funcionar. Foi quando uma voz de mulher falou com eles. Mas era uma voz diferente.

    Ariadne era simptica, mas no passava confiana, parecia ser uma pessoa insegura. Quem falou com Isabel transbordava energia e compe-tncia; era claro que se tratava de algum de liderana.

    Isabel, voc est na escuta? a mulher perguntou.Sim, estou. Com quem eu falo?Meu nome Estela. E eu irei pessoalmente resgat-los dentro de

    no mximo dois dias. Voc est me entendendo?Estou entendendo sim, Estela, voc no faz ideia do quanto rezei

    por este dia! Isabel sentia as lgrimas queimando-lhe os olhos.Vocs esto em segurana? Conseguem esperar tanto tempo?Acho que sim, Estela. Estamos cercados de mortos-vivos, mas no

    me parece que eles vo conseguir invadir este lugar to cedo.Perfeito, Isabel. Eu e meu marido, Ivan, lideramos esta comunida-

    de e iremos salvar vocs. No saiam da, combinado?Antes que Isabel pudesse responder, o rdio apagou completamente,

    e a comunicao foi cortada. Mas no fazia diferena, conseguiram o mais importante.

    E assim aguardaram dois dias, sonhando com a chegada da cavala-ria. Comiam, conversavam, faziam planos. Ser que aquele lugar para o qual seriam levados era mesmo seguro? Ser que estariam a salvo?

    Isabel narrou para seus companheiros de esconderijo os horrores vivenciados no quartel durante seu encarceramento. Os abusos sofridos, os companheiros de infortnio torturados e assassinados, o sadismo de Emmanuel. Scheyla e Hilton ouviram tudo chocados. No imaginavam que seria possvel, numa situao catica como aquela, haver um grupo de pessoas capazes de fazer tantas barbaridades.

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    S nos resta torcer para no estarmos indo para uma arapuca semelhante. Isabel exalou um suspiro.

    Mas no fundo ela sentia que era diferente. Estela parecia ser de confiana.

    De repente, ouviram um barulho grotesco de madeira sendo quebra-da, e os trs se ergueram de um salto. Aquilo s podia significar uma coi-sa: os zumbis estavam invadindo o prdio.

    Foram at a sala onde outrora funcionara a recepo da delegacia e depararam com o terrvel pesadelo. Os zumbis finalmente quebraram a janela de madeira, que ficava sempre fechada. Por aquela abertura algu-mas criaturas enfiavam as mos, tentando agarrar o que pudessem, tate-ando em volta da janela pela parte de dentro.

    Atravs do buraco, Isabel, Scheyla e Hilton viram que o grupo de criaturas aumentara sobremaneira. J passavam de cem zumbis, que se acotovelavam na frente da delegacia.

    Meu Deus, estamos perdidos!O grito de Scheyla chamou a ateno dos zumbis que se acotovela-

    vam na janela, que comearam a rosnar e grunhir, agora excitados com a viso de suas presas.

    Logo em seguida, uma das folhas da janela de madeira foi arrancada. As criaturas s no conseguiam invadir porque existia uma fina grade de metal pelo lado de dentro servindo de barreira. Mas os zumbis agora se agarravam na fina pea e puxavam juntos, com fora, fazendo as hastes oscilarem para a frente e para trs a cada novo puxo.

    Isabel comeou a olhar em volta, tentando pensar numa forma de atrasar as criaturas. Sabia que estavam perto de conseguir, tinham que resistir mais um pouco.

    Fugir do prdio era impossvel. Se sassem pela porta dos fundos, seriam obrigados a passar pela frente para chegar at a rua. E se aquelas coisas invadissem o local, no haveria nada para proteg-los.

    Teremos que nos trancar no banheiro! Isabel falou s pressas para os outros dois.

    Ficaremos encurralados! Estamos mortos! Hilton gritou, ceden-do ao desespero.

    preciso ganhar tempo. Eles vo chegar, eu tenho certeza! Isabel gritou de volta, sentindo o corao disparar.

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    E ento a primeira grade de ferro cedeu, arrancada do lugar pelas feras. A invaso comearia a qualquer momento; por aquele espao uma criatura menor j seria capaz de se esgueirar para dentro. Hilton pegou o revlver e apontou para a abertura, com as mos trmulas, mas Isabel o impediu.

    Temos poucas balas. Por favor, reserve algumas para ns mesmos. Eu me recuso a virar comida para esses bichos, prefiro a morte. Isabel tinha lgrimas nos olhos. Estava cansada de fugir, lutar, ter esperana, cair no desespero novamente num ciclo frequente. Ela queria paz.

    Mas antes que Isabel conclusse o raciocnio, a cabea de um dos zum-bis explodiu, como num passe de mgica. Uma frao de segundo depois eles ouviram um estampido de um tiro, incrivelmente distante. Todos os mortos-vivos olharam para trs, desviando a ateno do trio acuado.

    Os trs se entreolharam, mas, antes que pudessem falar alguma coisa, o mesmo fenmeno se repetiu. Outro zumbi teve a cabea des-truda, e depois um barulho distante se fez ouvir. Scheyla se sobressal-tou com aquilo.

    Passaram-se poucos segundos, e alguns zumbis que se afastaram da janela tentando localizar a origem do som j faziam meno de voltar. Porm, um dos seres teve uma perfurao que entrou nas costas e saiu no ombro direito, fazendo o sangue jorrar de tal forma que respingou dentro da recepo.

    De novo o estampido do tiro chegou depois. O zumbi girou nos cal-canhares com o impacto, mas antes que pudesse esboar uma reao seu crnio foi despedaado. A bala atravessou direto, passou pela janela e se alojou na parede do pequeno cmodo, deixando um rastro de massa enceflica.

    Por fim, o grupo de criaturas recuou totalmente e seguiu para a rua, deixando a delegacia para trs. Nada atraa mais os zumbis do que o som de um disparo.

    O que est havendo? Algum est atirando! Scheyla falou, cheia de esperana. Que arma especial essa? Por que ela atira antes e faz barulho depois?

    Pode parecer impossvel, mas eu acho que sei o que est aconte-cendo. Hilton comeava a acreditar que milagres eram reais. Algum est disparando com uma arma to potente e de uma distncia to gran-de que a bala chega antes do som. Estamos falando de um tiro a cerca de

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    um quilmetro de distncia, talvez mais! S os melhores franco-atirado-res do mundo so capazes de tal proeza.

    Quando ouviu aquilo, Isabel se aproximou da janela e avistou ao longe, bem no fim da rua, a sombra de um tanque de guerra. Ao ver aquela cena, ela teve certeza de que estavam todos salvos. O esperado casal estava ali.

    Ivan e Estela finalmente haviam chegado.

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    mos lanamentos.

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