branca dos mortos e os sete zumbis - abu fobiya

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Page 1: Branca Dos Mortos e Os Sete Zumbis - Abu Fobiya
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BrancadosMortoseosSeteZumbisFobiya,Abu

Nerdbooks(2013)

Tags: Terror

Nesta compilação de 11 histórias de terror, zumbis e psicopatas dividemespaço com fadas e animais falantes, numa sucessão de capítulos não-lineares que culminam no fim do mundo e na transformação de tudo oque o leitor julgava saber sobre os contos de fadas.

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Prefácio

Vocêacreditaemcontosdefadas?

Não?

Bom, alguma coisa me diz que até o im deste texto você passará aacreditar.

Já parou para pensar o que eles signi icam, na verdade? Os contos defadas são nada mais do que narrativas folclóricas, dotadas de umsigni icado implícito, que não precisam ser interpretadas ao pé da letra,mas que também não devem ser descartadas – faça isso eautomaticamentealgunselfosegoblinsmorrerãoaseuspés.

Heróis, princesas mágicas, orcs e trolls não só existem de fato comofazemparte (ativamente, às vezes) denossas vidas. São criaturas comasquais temosque lidarnodia adia, na escola,na faculdade,no trabalhoeatémesmonoaconchegodo lar.Não satisfeitas, essas igurinhasbizarrasainda se escondem dentro de nós, a inal todos temos nosso lado bruto,ogro, nossa faceta heroica, cavalheiresca, somos mentores e vilões emocasiõesadversasediantedepessoasdistintas.

No passado, esses ensinamentos – do que era bom e ruim, certo eerrado – eram transmitidos a uma determinada sociedade por grandesmitos,eoscontosde fadasnasceramcomosuasversões infantis.Serviampara ensinar às crianças como se comportar e principalmente paramostraraelasoquenãosedeviafazer.Emvezdepedirao ilhoparanãocon iar em estranhos, por exemplo, já que o pequeno iria logicamentequestionar o “por quê”, os pais narravam, ao invés, a clássica fábula dolobomau,oenteperverso,devoradordemenininhos...equempodedizerqueelesestavammentindo?

Quando bem contadas, essas alegorias nos fazem entender a naturezahumana de formamais ampla, como na cena de OMágico de Oz em queDorothyperguntaaoEspantalhocomoeleécapazdefalarsenãotemumcérebro. A resposta é brilhante: “Muitas pessoas sem cérebro falam umbocado,nãoacha?”

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BINGO!

Esteéprecisamenteosaborde“BrancadosMortoseossetezumbis”.

Os contos que se revelarão nas páginas seguintes não se resumem aestórias para entreter, declamadas ao redor da fogueira – são peçaseducativas, de leitura envolvente, revistas e adaptadas sob as in luênciasdomundodehoje.

De Hans Christian Andersen a Edgar Allan Poe, passando por H. P.Lovecraft, Neil Gaiman e os irmãos Grimm, todas essas referências estãoen im reunidas nesta coleção de fantasia emistério,montada a partir damentegenial(eperturbada)do(nemtão)enigmáticoAbuFobiya.Sãoecosde um reino distante, que no entanto estão, e sempre estarão, maispróximosdoqueagenteimagina.

Eagora,vocêacredita?

–EduardoSpohr

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BrancadosMortoseosSeteZumbis

Era uma vez uma linda rainha. Dona de um corpo escultural,majestosos cabelos loiros e penetrantes olhos azuis, ela era consideradapormuitosamaisbeladomundo.

Mas, antesde ser rainha, elaeraumamulher.Eoqueelamaisquerianavidaerasermãe.

Mesmojásendocasadaháanos,játendocomidoasmaisexóticas lorese raízes, bebido osmais azedos chás e atémesmo a urina de animais natentativadegerarumfilho,elanuncaconseguiraengravidar.

Em busca de seu grande sonho, a infeliz rainha se dirigiu em segredoàquelelugaremquetodasasmãesalertavamos ilhosparajamaisirem:aloresta proibida, que diziam ser repleta de monstros e almas penadas,separadadocasteloporumenormemurodegranito.

Mesmoconhecendoas lendassobreasbestasfuriosasquealiviviam,arainha se arriscouepegoua estradade terrabatidaquehámuitos anosnão era usada. Enquanto cavalgava freneticamente, ouvia ao seu redorsonsinexplicáveisehorripilantes,comosussurros,risadaseespirros.

Nem que ela quisesse poderia tirar os olhos da estrada, repleta deinúmeros cadáveres de animais em diferentes estágios de putrefação,muitos deles com uma sinistra perfuração bem no meio do crânio, tãoprecisaqueseassemelhavaaumterceiroolho.

Seguiupelaestradaatéchegaraumacabanaimprovisada,formadaporumamontoadodegalhos,barroeexcrementodepássaros.

Lá, a rainha encontrou uma velha bruxa, que tinha a pele coberta porverrugas,osolhossaltadosparaforaelongostufosdecabelosbrancosquemaispareciam teiasde aranhapenduradas à cabeça.Hámuitos emuitosanoselahaviadeixadoasanidadeparatráse,comela,qualquernoçãodehigieneouvaidade.Assim,elaexalavaumodorazedo,queimpregnavaatémesmooscabelossedososdamulherdorei.

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“Masquevisitamaisilustre!”, ironizouabruxa.“Oquevossamajestadefaznestelugartãoperigoso?”

As pernas da rainha tremiam, mas sua obstinação por um ilhoconseguiasermaiordoqueseumedoegaguejando,disse:

“Se-sei que tens poderes ocultos. Ajuda-me a engravidar e fareiqualquercoisaquedesejares!Qualquercoisa!”

Arainhanãosabiaqueaquelaseramasduaspalavrasquenãosedevedizeraumdemônio.Abruxaconcordouemajudar.

“Masporumpreço”,alertou.

“Dar-te-eijoias,dinheiro,títulos...Oquequiseres!”,aceitouarainha,sempensarnasconsequências.

A bruxa estendeu a mão e a rainha a apertou, achando que assimselariaopacto.Tãologotocouapele inaegeladadavelha,elafuipuxada,com uma força atípica para alguém daquela idade, e a mão foi virada eperfuradaporumapequenaagulha.

“Aaai!”,gritouarainha.

Osangueescorreuparaumapequenatigeladebarro.

“Está feito!”, disse a bruxa, esbugalhando aindamais os olhos sobre osangue.

“Éisso?Agorajápossoengravidar?”

“Claro que não, tola! Esse é somente o meu pagamento adiantado!Agora, preciso que busques algumas coisas para mim! Nestes dias, nemmesmoeumeatrevonaflorestacomoqueháláfora!”

A rainhaolhou ressabiadapor trásdoombro.Então, avelha consultouumantigotomodemagianegraefezumalistacomtrêsitens:

“Voltarásamanhãcomosanguedeteuperíodomensal,aspenasdeumcorvo e os olhos de um defunto do cemitério! Mas, presta atenção: esseúltimo ingrediente deve ser colhido às 3 horas damadrugada, semmais,nemmenos,ouofeitiçonãofuncionará!”

A mulher do rei pegou a estrada de volta para o castelo, ouvindoaqueles sons que lhe faziam gelar a alma. Seguindo as orientações dabruxa, saiu às escondidasporvoltadas2horasdamadrugada,paraque

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tivesse tempo de encontrar um cadáver no cemitério e extirpar-lhe osolhos no horário correto. Chegando lá, ela foi iluminando as lápides comuma lanterna embuscadaque tivesse a aparênciamais recente, quandoviuumamontoadodeterrafofaegranulada.

Passouasmãossobreomonteeconcluiuqueosparentesaindadeviamchorar por aquele sepultamento. Pegou uma pá e cavou até encontrar ocorpo de um homem, que já fedia, mas ainda não estava decomposto.Enquantoen iava-lheumafacadentrodasórbitasparaarrancarosolhos,vomitouporduasvezesdiantedetamanhaatrocidade.

“Perdoa-me, meu senhor! Perdoa-me!”, suplicava ela, quando foiinterrompida.

“Nãotepreocupes,elenãopodesentirnada!”,disseumavozaguda.

Arainhagritouequasedeixouosglobosocularescaíremnochão.Olhouparatráseteveumavisãoapavorante,deumapequenameninadecapuzvermelho.Comoseavisãojánãofosseabominável,elaaindatinhaatestaperfurada,talqualosanimaisdafloresta.

“Ahhh!”,gritouarainha.

“Desculpa, não quis assustá-la!”, respondeu a menina, inocentemente.“Pra quê a senhora precisa dos olhos?”, disse, semmudar o tom de voz,masarainhasóconseguiaberrar.

Amulheren iouosolhosnumpequenovasoesaiudali,correndo.Atrásdesi,ameninadeudeombros,tocouatestaperfuradaedisse:

“Ah,entãodevetersidoisso...”

Namanhãseguinte,arainhavoltouatéacabanana lorestalevandoosolhos, seupróprio sangueespremidonuma tigeladecerâmicaeaspenasdocorvo,únicoingredientefácildaquelalista.

Avelhabruxapareciaaindamaishorripilantequandoabriaseusorrisocom a língua passando entre seus dois únicos dentes. Ela pegou osingredientes e fungou-os profundamente, como se fossem o maisperfumadodosvinhos.

“Quedelícia!”,exclamou.

Em seguida, jogou um a um num enorme caldeirão com água e suaprópriaurina, entoando cançõesque jamaisdeveriam ter sido escritas.O

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líquido ferveu, adquirindo a cor negra da morte. Ela pegou uma conchacheia, que veio borbulhando um líquido espesso e viscoso e ordenou àrainha:

“Bebe!Semfazerperguntas!”

“Mas...”

“Vamos,vamos,nãotemosodiatodo!”

A mulher pegou a concha e teve que se segurar para não vomitar.Quandoopensamentocomeçouatransitarpelavisitaaocemitérionanoiteanterior,elatentoupensaremoutracoisaelevouaconchaàbocadeumasó vez. Bebeu tudo num único gole, que queimou sua língua e desceurasgandopelagargantacomocacosdevidro.

Olíquidoseremexeuemseuestômagoe logotentavavoltarparacima.Arainhasepreparouparaexpeli-lo,mas,comose jáhouvesseimaginado,abruxapôssuamãosujaeverruguentanabocadamulher.

“Não,não,não”,exclamou. “Tensque icarcomo líquidonabarrigaatéte deitares com teumarido nomomento emque a lua cheia estivermaisalta!Senãoofeitiçonãofunciona!Compreendeste?”

A rainha forçou-se a engolir o gole de vômito que subia com a bile,piorandoaindamaisogostoemsuaboca.

“Agora,parte!”,ordenouavelha.“Nosveremosdepoisdonascimentodacriança,quandovireicobrarmeupreço!”,riu.

Naquelanoite,mesmonauseada,arainhaesperouacordadaomomentoemque a lua cheiabrilhoumais forteno céu.Acordouo rei, queporummomentoachouqueestivesse sonhandoouamulherdelirando,mas logoentrounaqueladançaeambosseamaramcomohátemposnão faziam.Omaridodormiucomumsorrisonorostoquedurouatéamanhãseguinteeaesposachorou,jásemsabersequeriaqueofeitiçofuncionasseounão.

Masbastarampoucosdiasparaqueelacomeçasseasentirosprimeirossinaisdagravidez:enjoos,umafomeanimalescaeumaconstantevontadede se aliviar no balde. A princípio, os sintomas foram motivo decomemoração, mas a futura mãe logo percebeu que não eram comoaqueles que suas aias sentiam quando engravidavam. Primeiro, foiacometida por uma febre delirante que a fez convulsionar. Depois, sualínguapassouaseretorcer,comosepuxadagargantaabaixopelagarrade

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um bicho-preguiça. Seu estômago parecia ser revirado pelo nariz de umporcoselvagem,asunhascaíamcomosequisessemfugirdasfalangesedesua vergonha uma enxurrada de sangue descia torrencialmente,explodindoembolhasfétidasdefumaçapretaqueestupravamasnarinas,batiamnopulmãoevoltavampelalaringeimpregnandotodoopalato.

Médicos e curandeiros foram chamados pelo rei, mas não havianinguémnaquelaterracapazdeexplicararazãodetamanhaenfermidade.Sem esperanças, omarido levou o sacerdote até o castelo e lhe ordenouquefizesseossacramentosfinaisdamulheredofilhoquejamaisnasceria.

Noardordeseusdelíriosfebris,arainhaconfessou:

“Perdoa-me,sacerdote!Estoupagandoopreçoporque izumpactocomumdemônio”,balbuciava,semiconsciente.

“Doqueestásfalando,mulher?”

“Abruxa...abruxaquevivenafloresta...”

Orei,estarrecidoporaquelaspalavras,tentouaprisioná-lasnoporãodesuamente e clamouaos céusque elas fossemum simplesdelírio. E, casofossemverdade, implorouaosdeusesparaquetivessempiedadedaalmadaesposa.

Mandou seus guerreiros mais condecorados até a loresta atrás dabruxa, mas dentre os corajosos guerreiros, poucos foram os que nãodesertaramfrenteaosboatossobreascoisas inomináveisqueaconteciamalémdosmurosdegranito.Dosqueseatreveramacumprirasordensdorei, poucosvoltarame, osque conseguiram,disseramnão ter encontradonada.

Foram doze semanas de uma incomensurável miséria sofrida pelarainha.Noentanto,paraasurpresadetodos,aoiníciodadécimaterceira,as agruras se foram por completo. A saúde foi reestabelecida como quepor milagre - os enjoos passaram, as unhas agora cresciam viçosas ebrilhanteseosangueborbulhantedeulugaraumrenovadoapetitepelosprazerescarnaisqueemmuitoagradouaomarido.

“Talvez não haja bruxa alguma!”, pensou o rei, lembrando-se dashistórias contadaspor seuavô, sobreuma fatídicanoitenaqualomal foilibertodentrodaquelemesmocastelo.

Os meses foram passando e a gravidez seguiu de forma tranquila. A

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barrigaenormepareciaabrigarumbezerro,eeraostentadadajanelacomorgulho pelos futuros pais. E, lá embaixo, entre seus iéis súditos, quemmaispareciaestarfelizeraumamulherenvoltanummantopreto:

“He,he,he...malpossoesperarpelonascimento!”,riu.

“Seráummomentodegrandealegria,nãoémesmo?”,perguntou-lheumcamponêsquetambémacenavaparaosregentes.

Avelhatirouomantopreto,exibindoumacabeleiraloiraedensa.

“Tunãopodesimaginar!”,riu.

Abruxasentia-serevigorada,eaparentavaseraomenos30anosmaisjovem. E, ainda que não fosse exatamente bela aos olhos da sociedade,podiasemisturaraopovoenquantoaguardavaachegadadacriança.

O que ela não sabia era o quão forte seria o amor daquela mãe pelobebê que crescia em seu ventre. Amor que expurgou do corpo a magianegracomoumalimentoestragado,protegendoopequeno fetode todaamaldade.Assim,quarentasemanasapósoencontronafloresta,aoinvésdeumaabominaçãodisformecomoabruxaplanejara,arainhadeuàluzumalinda menina, a pequena Branca, que nasceu com os lábios vermelhoscomo sangue, os cabelos negros como as penas de um corvo e a pelebrancacomoosolhosdeumdefunto.

Ao ver o bebê perfeitamente saudável sendo exibido na janela docastelo, a bruxa, agora aparentando ser ainda mais jovem e com quasetodos os dentes na boca, sentiu-se traída. Voltou para sua cabana naloresta, onde fez seu feitiçomais poderoso, e o trouxe na forma de umamaçã.

“Majestade...gostariadeparabenizá-laporsualinda ilha...eaproveitarparaoferecer-teestepresente!”,dissenoDiadeOferendas,emquetodososservosdoreinolevavampresentesedinheiroparaafamíliareal.

A rainha, sentada ao lado do rei e com a pequena Branca nos braços,salivou ao ver aquela maçã tão apetitosa. Preparou-se para mordê-la,quandoameninacomeçouachoraresedebaterhistericamente.

“O que esta menina tem?”, perguntou, passando-a para os braços domarido. Nisso, a bruxa já se dirigia à saída. O rei tentou acalmar a ilha,quando a rainha mordeu a maçã. Poucos segundos depois, gritos foramouvidos, que soaram como uma suave melodia para a velha enquanto

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desciaasescadasdocastelo,àsgargalhadas.

À primeira mordida na maçã maldita, a rainha sentiu a línguaendurecer, o corpo formigar, as pálpebras icarem pesadas, até que caiunum sono tão profundo que seu coração não conseguia mais bombearsangue para o corpo.Morreu alimesmo, sufocada aos pés domarido, dafilhaedossúditos.

Talvez fosse consequência do feitiço, ou então de sua lendária beleza,masofatoéqueseucorpojamaisapodreceu.Apelemantinha-sesuave,oscabelos sedosos, até os lábios pareciamnão ter ressecado. Por isso, o reiordenouqueocorpo fossecolocadonumbelíssimoesquifedevidro,paraque ele pudesse admirar a beleza da esposamorta todos os dias de suavida.

Ahistória sobrea chocantemorteda rainhaabaloua todosos súditos.Tornou-se fofoca, depois lenda e, en im, mau agouro. Ninguém ousavacomentarabertamentequearainhahavia feitoumpactocomumabruxapara conceber sua ilha e pagara com a própria vida. Os rumores logochegaramaosouvidosdomonarca,queselembroudosdelíriosdaesposadurante o início da gravidez e das palavras que mantinha aprisionadasparaquenãoapodrecessemseupensamento.

Pormaisqueeletentasseevitar,asrecordaçõesagarravam-seaolutoecresciam como hera, infectando seu amor pela ilha. Assim, ele acabouculpando-a pelo miserável im da esposa e a pequena Branca, cujosprimeiros dentes ainda lhe rasgavam as gengivas, passou a ser tratadapior do que os prisioneiros do calabouço: vestia roupas velhas, comiaapenasmigalhasedormianochãofriosemconfortonenhum.

Osmesespassarameoreiaindanãohaviasuperadoaperda.Todososdias,elepassavahorasolhandoparaocorpo intactodaesposadentrodoesquife,orandoparaqueumdiaacordasse.Mastaldiajamaischegou.

O lutosó teve imquandoomonarcaviuchegaràcorteumaforasteiradelongoscabelosloiros,donadeumabelezaqueemmuitolembravaadesua falecida esposa. Finalmente ele estava pronto para seguir adiante navida:ordenouqueoesquifefosseenterradoedesposouaforasteiranumagrandiosa cerimônia, para aqual foramconvidados reis, rainhas e sábiosdomundotodo.

Malsabiaelequeestavasecasandocomamesmabruxaensandecidaeinvejosa,agorafeitajovem,quecausaratodasasdesgraçasemsuavida.

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Do escuro porão do castelo, Branca, a única que não tinha culpa denada,ouviaamarchanupcial, sementenderporque suaalmaestava tãotriste.

***

Após o casamento, a bruxa, agora feita rainha, teve a vida com quesonharadesdeasofridajuventude,muitasdécadasantes.Viviarecebendoregalosdeseurei,conduziaàmãodeferroosrumosdoreino,eratratadacomrespeitoesubmissãoportodos.

Umdia,paraprovarseuamor,oreimandouqueseucaçadorbuscasseo presentemais caro domundo, e ele voltou comumespelho encantado,capazderesponderaqualquerpergunta.

Aquele artefatomágico, que permitia à bruxa navegar livremente portodooconteúdoeoconhecimentohumanos,poderiatê-latransformadonamais sábia e culta das rainhas. Contudo, ela apenas o utilizava paradescobririnutilidades,bisbilhotaravidaalheiaoualimentaropróprioego.Assim,todososdiaspelamanhãelaperguntavaaoespelhomágico:

“Espelho, espelho meu, quem é mais bela do que eu?”, apenas paraouvirarespostaquelhesoavacomoumacançãodeninar:

“Ésdetodasamaisbela!”

E foi assim durante tantos anos que a rainha acabou se habituando àresposta. Até que o espelho e todo seu conhecimento foram deixados delado.

Enquantoisso,apobreBrancalevavaumavidaqueemnadalembravaadeumaprincesa.Esvaziavaosbaldesdeexcementosnorio,esfregavaochão, buscava água no poço. Todos lhe davam ordens, da rainha aosescravos.Todossentiamque,dealgumaforma,eramsuperioresaela,poisainda que ninguém tivesse coragem de admitir, não havia culpa emmaltrataralguémquetodosacreditavamseramaldiçoado.

Sefossequestionada,Brancasequerpoderiaa irmarqueeratriste,poisemtodaavidajamaistiveramomentosfelizesparacomparar.Mas,mesmocomtamanhaprovaçãodeseuespírito,ameninacresciacomoumarosanodeserto,quedebochadasadversidadesqueanatureza lhe impõe.Acadadia, icavamaisbonita, característicaqueaomenosatenuouo tratamentocruelcomquemuitosnacortelhedispensavam.

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“Talvez ela sejamesmo ilha do rei”, comentou um servo, ao notar suabeleza.

“Talvezelanãosejamaldita!”,arriscouooutro,semimaginarquejamaissaberiamaresposta.

Um dia, quando o corpo de Branca já se desabrochava em mulher, opríncipedeumreinodistantechegouaocasteloapóspassardiasperdidona loresta sombria. Faminto e com sede, relatou as mesmas coisas quetodos os viajantes que por lá se arriscavam: ouvira vozes, sussurros,risadaseespirrosvindosdetodososcantos,alémterencontradoanimaisdetodososportescomumasinistraperfuraçãonocrânio.

Sem tirar os olhos do príncipe, a rainha ouviu suas palavras, comparticularinteressepelosmonstrosqueatacavamosanimais:

“Vistealgum?Sabesseéum,sesãovários?”,perguntou,intrigada.

“Não!Atravessei a loresta a cavalo, correndo semolhar para trás, atéqueencontreivossocastelo.”

Arainhaestavapreocupada.Masalgoaimpediadepensardireito:

“Por que não passas a noite aqui, meu belo príncipe? Pela manhã,estarásrecuperadoepoderásseguirviagem.”

“Muito obrigado, majestade. Aceitarei vosso presente de bom grado!Ondeficaoquartodehóspedes?”

“Vêde que ironia! Aqui, neste enorme castelo, não temos quartos parahóspedes.Masnãotepreocupes-oreiestáviajando”.

***

Namanhã seguinte, o príncipe deixou o quarto da rainha.Mesmo semterbebidonadananoiteanterior,sentiaumaressacaquelheentorpeciaaalma. Sem saber explicar a razão, sabia que tinha feito algo de que searrependeria.Maisdoquedepressa,pegousuascoisasepartiu.

Nopátiodocastelo,viualgoquechamousuaatenção.Tirandoáguadopoço para lavar o chão, estava uma jovem maltrapilha, tão linda que oatraiucomoaluafazcomosvagalumes.

“Qualéteunome?”,perguntouopríncipe.

Brancanãorespondeu.Virou-separafugir,opríncipeapegoupelamão

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e ela recuou por um segundo, ao sentir a sedosa textura da pele emcontato com seus dedos calejados, que fez um arrepio subir até a nuca.Olhouparatráseapenasriu,antesdesaircorrendoparaoporão.

Aqueleseriaoúnicomomento felizqueBranca teriaem todasuavida,incluindoaspoucassemanasmiseráveisqueaindalherestavam.

***

Da janela de seu quarto, ainda nua, a rainha viu Branca no jardim docastelosendocortejadapelopríncipe.Seucoraçãofoientãotomadoporumsentimento ainda pior do que a inveja: a dúvida. Ela se dirigiu até asuper ície empoeirada do velho espelho mágico. Passou os dedos entreseus cabelos, revelando algumas raízes que começavam a branquear. E,en im,depoisdemuitosanos,limpouoespelhocomumpanoefez-lheumaperguntaparaaqualnãotinhamaiscertezadaresposta:

“Espelho,espelhomeu,quemémaisbeladoqueeu?”

Comamesmavozgravedeantes,oespelhorespondeu:

“Ainda ésmuito bela,mas há alguém cuja beleza superou a vossa. Elatemoslábiosvermelhoscomosangue,oscabelosnegroscomoaspenasdeumcorvoeapelebrancacomoosolhosdeumdefunto”,antesdemostraraimagemdapobreBrancaesfregandoochãodopátio.

“Aquela pirralha! Pior para ela!”, esbravejou a rainha. “Não fosse pormim,elasequerterianascido!Comoseatreveasermaisbeladoqueeu?Eusoudetodasamaisbela!EU!”

Arainhachamouseufielcaçador,aquemordenou:

“Leva-a para bem longe, até as fronteiras de nosso reino. Não meimporta o que farás com ela.Mas depois quero queme tragas o coraçãonestacaixa,comoprovadeteuêxito!”-concluiu,entregando-lheumacaixademadeiracomdetalhesdeouro.

Ocaçadortentouargumentar:

“Mas, majestade, a princesa...”, quando foi silenciado com um berrohistérico:

“Seacasofalhares,tumorrerás!”,alertouarainha.

Ocaçadorabaixouacabeçaefoiembora.

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***

“Princesa?”,disseocaçador,àpobreBranca,que limpavaasujeiradospombosdochãodopátio.

“Ninguémmechamaassim,aindaqueeusejaa ilhadorei”,respondeuBranca.

“Tuamadrastamandouqueeuteentregasseumpresente!”

“Umpresente,caçador?”,elaestavasurpresa,poisnuncahaviaganhadoummíserobrochedepano.

“Sim. Queira me acompanhar, por favor!”, era a primeira vez quealguémlhediziaessasduasúltimaspalavras.

Curiosa,a jovemobedeceuaocaçador.Fosseemoutrasituação,acenaseria malvista por qualquer um no reino: uma garota maltrapilhaacompanhando um senhor de meia idade para além dos muros queseparavamo casteloda loresta sombria.Mas, como se tratavada infameBranca,aspessoasolhavamcomdesdém,algumasatélheatiravamcoisas.

“Amaldiçoada!”,gritouum,atirandoumtomate.

“Cuidadocomela,caçador!”,sussurrouooutro.

“Princesa, comoconseguesviver com tamanhos insultos?”,perguntouocaçador.

“Eu já estou acostumada... dizem que foi por minha causa que minhamãemorreu... Talvez tenha sidomesmo...” Branca era como um cachorroque, espancado sem saber o motivo, começa a achar que fez algo paramerecê-lo.

Chegaram às portas da loresta sombria pouco depois, um lugar semnada de especial, com vegetação rasteira que precedia as árvoressombriaseretorcidasqueseavolumavam logoà frente.Semsaberoquedizer,ocaçadorapontouparaumamoitaedisse:

“Hã...láestáteupresente!”.

“Uma moita? Com lores? Mas que coisa mais adorável! Talvez amadrastanãosejatãomáassim,afinal!”

A inocente Branca abaixou-se para colher as lores, quando viu asombradocaçadorseprojetarasuafrente.Elaseviroueoviuerguendoo

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punhal,prontoparaceifarsuavida.

“Aaaah!”,gritouela.“Socorro!Socorro!”

A mão do caçador tremeu, derrubando a arma. Arrependido, ele seajoelhoudiantedeBranca.

“Princesa... por favor, perdoa-me! Tu não mereces isto! Ela é má,invejosa!Ninguémpodecomela!”

“Ela...elaquem?”

“A rainha! Tua madrasta, ela é quem ordenou que te matasse! Tuprecisas fugir, para bem longe! Vá, fuja, menina! Para bem longe, semolharparatrás!”

E,naquele instante,avidadeBranca,quenuncafora fácil,mudaraporcompleto.Elacorreuassustadaparaa lorestaproibida,semimaginarquejamaisvoltaria.

Ocaçador,resignado,viuapobreprincesacorrerparaoúnicolugarnomundo onde sua vida poderia piorar. Preparou-se para voltar para ocastelo,jácomumplanoemmente:arrancariaocoraçãodeumporco,sobmuitos aspectos idêntico ao humano, e o apresentaria à rainha como sefosseodeBranca.

Pegou seu punhal e abaixou-se, procurando pela trilha de um animal.Não tardou a encontrar uma, e passou a seguir as pegadas quaseequidistantes.

“Foi naquela direção”, pensou, enquanto desenhava o mapa em suamente.

Algunsmetrosàfrente,osintervalosentreaspegadassetornarammaisespaçados.

“Fugiudealgumacoisa”.Masnãohaviaoutraspegadasali.Oquequerqueoporcotivessevisto,deviasergrandeobastanteparaamedrontá-loàdistância.Talvezjáestivessemorto.

“Tantomelhor”,concluiuocaçador,“desdequeocoraçãoestejaintacto”.Nadapoderiaprepará-loparaoqueveriaadiante.

A carcaçadoporcoaindaestavaquente.Pararade respirarhápoucosminutos,emconsequênciadaperfuraçãoprecisaemseucrânio.

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Quem – ou que quer que tivesse feito aquilo – não o izera para sealimentar, pois as partes nobres da carne, como as costelas, o lombo e,para quem aprecia, o rabo, estavam intactos. Apalpando os pelos doanimal,encontroualgumasmordidasrasas,quenãochegaramaarrancarpedaços. As que estavam em melhor estado expeliam pus e sangue, aspiores,jáeramconsumidasporvermes.

“Como é possível?”, pensou. “O animal foi atacado há poucos minutos,comopodeestaremdecomposição?”

Foi quando ouviu um ronco atrás de si. Virou-se, procurando pelopredador,quepelo somnãoseriamenordoqueum javali.Masnadaviu.Dooutrolado,ouviuumarisadamaligna.E,enfim,umespirro.

Pelaprimeiravez,elenãoeracaçador,nemcaça.

Eraumbanquete.

***

Desesperada,apobreBrancaseguiuasordensdocaçadorefugiumataadentro,alheiaàsangrentacarni icinaqueocorriaatrásdesi.Tropeçandoemgalhoseenroscando-seemcipóseteiasdearanha,nãosedetinhapornada,enquantocorriaetinhaasroupasdilaceradasporgalhoseespinhos.Osmembrosardiamemcarneviva,osmúsculos imploravamporpiedadequando um passo em falso fez com que tudo começasse a rodar. Água eterra entraram por sua boca, as pernas giraram soltas no ar até que acabeçabateunumapedraeosolhossefecharam.

“Voumorrer”,pensouBranca,antesdedesmaiar.Mas,seasortetivesselhesorridoumaúnicavez,apobresequerteriavindoaomundo.

Quando despertou, viu dois enormes olhos amarelos diante dos seus.Gritounovamente,eacoruja,revoltada,bicou-lhea testa,quaseatingindoo olho. Observou a seu redor e estava completamente cercada por lobos,morcegos, coelhos, um alce, um porco-espinho, abutres e até umatartaruga.

Os animais, imóveis, olhavam-na como se ela lhes devesse algo. Nãofosse pela respiração e pelo o rosnar dos lobos, parecia que estavamempalhados.

A raposa veio e farejou suas pernas trêmulas. Nem se deteve com osangue que escorria de seus ferimentos. A coruja, agora de cima de um

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galho,mantinha as asas abertas, tentando parecermais assustadora. E ocoelho batia os pés nervosamente no chão, com os olhos vermelhos ixosnos da jovem, apavorada com os lobos que lhe rosnavam mostrando osdentes.

De repente, algo invisível chamou a atenção dos animais. Se Brancativesseossentidosaguçadoscomoosdaraposaoudocoelho,teriaouvido,acentenasdemetrosdali,umespirro.

Osanimaisbateramemretirada,eBrancaficousozinhaoutravez.

***

Foramapavoranteshorasdecaminhadaflorestaadentro.

OssentidosdeBranca,à lordapele,adeixavamalertaaqualquersom,comofolhassecassepartindoeumriachoquedeviacorreraliporperto.Masossonsmaisaterrorizantesqueelaescutavaeramassustadoramentehumanos,comorisadas,roncoseespirrosqueelanãosabiadizerdeondevinham.

Seus olhos já estavam anestesiados com tamanha matança que viraespalhadapelochãoepelosgalhos.Emtodososlugareshaviaanimaiscomo crânio perfurado. A fome lhe comprimia o estômago, mas ela não tevecoragemde comer a carnedosbichos,muitosdeles emestágio avançadodeputrefação.

Afaltadealimento,bebidaesanguedeixava-amaislentaeaadrenalinajánãoeracombustívelsuficienteparamanteraspernasemmovimento.

Finalmente, elas cederam, e Branca desabou no chão. Nem tentou selevantar. Gritava “Por quê, por quê?” com a boca en iada na terra, queabafava o som e era golpeada pelos punhos. “Por que eu, por que tantadesgraça acontece comigo?”. Pediu aos céus por um sinal, umúnico sinaldequeascoisaspoderiam,umdia,melhorar.

Foi quando ela ergueu a cabeça e viu, poucosmetros a sua frente, umpequeno seixobranco.À frentedele,maisum, emaisum, formandoumatrilha que levava a uma pequena casa feita de pedra, no meio de umaclareiranafloresta.

“Não...nãopodeser!”,disse,incrédula,tirandoaareiadosolhos.

Ergueu-se rapidamente. Ao que tudo indicava, a casa estavaabandonada, visto a quantidade de pó que se acumulava nos vidros. Na

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frente dela, havia um poço, de onde ela puxou um balde cheio d’água.Apesardogostodeterraelodo,foiamelhorbebidaquetomounavida.

“Masquecasamaisbonita!”,pensou.“Comopodeumacasadessas icarabandonadaaqui,nomeiodafloresta?”

Elalimpouumdosvidroscomamãoeolhouointerior.Vazia.Gritou:

“Ôde casa!”,masninguém respondeu.Abaixou-se e entroupelaporta,destrancada.

Tudo estava muito bagunçado, com pratos e roupas sujas espalhadospelos cantos. As paredes eram resistentes, feitas de pedra, e a estruturatodafeitademadeiraantiga.Asalaeraequipadacomumalareirae,numcanto,haviaumbelíssimoórgãodetubos.

Brancapressionoulevementeumadasteclas,queenviouarcomprimidoparaotubocorrespondenteesoprouemlá.

“Gostariamuitodeteraprendidoatocarpiano...”pensou,lembrando-sedesuasofridainfância.

Subiu para inspecionar o segundo andar. Num pequeno quarto, haviaumenormebaú, repletodemoedasdeouroepedraspreciosas.Masquedenadavaliamali.Jáoquartoaoladopossuíaalgomuitomaisvaliosoparaela:setepequenascamas.

“Devemserdecrianças”,pensou.“Talvezseuspaistenhamsidomortospelos monstros. Talvez elas também”. Juntando três delas, conseguiuformarumacamasóparasi,ondecaiu,exausta.

“Eupoderiaviveraqui”,pensou.“Achoqueminhasorteestámudando”.

Elaaindanãohaviaaprendido.

***

Nocastelo,a rainha jánemsequestionavaquantoaoêxitodocaçador.Paracoroarsuacovardevitória,elaperguntouaoespelho,cheiadesi:

“Espelho,espelhomeu,quemémaisbeladoqueeu?”

Depoisdealgunssegundos,oespelhodisse:

“Pordetrásdassetecolinas,alémda lorestasombria,numavelhacasaabandonada que insiste em icar de pé, vive Branca, que ainda é amais

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bela!”

Arainhaachouqueoespelhoestivesseenganado:

“Não,meufielespelho!Ocaçadoramatou!”

“Ocaçadorcaiuemperdição.Estámorto,minharainha!”

“Morto?Comoépossível!Mostra-meocorpo!”

A imagem do espelho mudou para uma simples paisagem da lorestasombria.

“Devesestarcomalgumdefeito!”

Entãoarainhafoiacometidaporumaideiaquejamaistiveraantes:

“Mostra-meoqueseescondenaflorestasombria”

“Nemmesmoeupossorevelartamanhomistério...”

“Aaaah! Espelho inútil, tu não me serves de nada!”, gritou a rainharaivosa,socandooespelho,quesequebrouemváriospedaços,quecaíramecontinuaramfalandoemuníssono:

“Ninguémpodesaberosegredodafloresta!Ninguém!”

Elapegouumdosfragmentosedisse:

“Mostra-me a casa onde está Branca”. A imagemmudou prontamenteparaadacasanomeiodafloresta.

“Leva-meatéela”etodososfragmentosresponderamjuntos:

“Comodesejares,minharainha”

Aindaqueela sempre temeraoque se escondianasmatas, seuódio esuavaidadeeramaindamaioresdoqueomedo.

“Branca,tunãoperdesporesperar!Mas...ummomento!Comoarainha,nãoposso ser vista deixandoo castelo emdireção à loresta! Certamentelevantarei suspeitas... sendo assim, creio que sei o que devo fazer, ha haha!”

Abruxadesceuatéoporãonumaescadasecretaemespiral,conhecidaapenas pelas ratazanas e pelos camundongos. Lá havia um covilimprovisado,ondeelaguardava livrose ingredientesmágicos trazidosde

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sua cabana que, se descobertos, a condenariam à morte na fogueiracentenasdevezes.

Pegou um caldeirão enferrujado, no qual, durante longas horas,preparou um feitiço que temporariamente revelaria quem ela era pordentro:umabruxavelhaedecrépita.

Elatomouapoçãoe,tãologoolíquidodesciaporsuagarganta,começouasentirseusefeitos.Apelea inoueseenrugou,enchendo-sedeverrugashorrendas. Os olhos se amarelaram e saltaram para fora, os cabelos edentes caíram apodrecidos, a coluna se curvou, deixando-a corcunda efazendo a pele das tetas quase tocar o chão. E, após aquela horrendatransformação,elariacomoumahiena.Olhouparaofragmentodeespelhoem sua mão, revendo pela primeira vez em anos sua verdadeira forma.Tocoucomosdedosasverrugasepintaspeludasque lhecobriamapele,passoualínguaentreosdoisúnicosdentesdaboca,escovouos inostufosdecabelosbrancos.Pormaisdoentioqueparecesse,elasentiaumfascínionostálgicoporsuaantigaforma.

“Agora ninguém vai descon iar desta velha! E quando der cabo deBranca,sereinovamenteamaisbeladetodas!Bwhahahaha!”

Consultandoumdeseusantigostomosdemagianegra,elareviuosonodamorte,areceitademaçãenvenenadaqueeladeraàantigarainha.Comcuidado,seguiuasinstruções,misturandoomantodanoite,orisodeumabruxa, pó de múmia e o ingrediente mais poderoso de qualquer feitiço:dosescavalaresdeódio.Quandoterminou,nãotinhaemmãosumasimplesmaçãenvenenada.Aquiloerasuaobradearte,comasuper íciebrilhanteeamortepulsandopordentro.

“Agora começa teu sortilégio!”, riu, enquanto via seu próprio rostore letidonacascaperfeitaereluzente.Guardouafrutanumcestoedeixouocasteloemdireçãoàfloresta.

***

Em sua nova vida, Branca saía de casa somente em casos de grandenecessidade. A despensa da cozinha abandonada ainda dispunha demuitosalimentos,comofarinha,açúcar,salegrãos,que,mesmocheiosdecarunchos, podiam ser usados para preparar suas refeições. Por maispobres que fossem, ainda eram in initamente melhores do que aquelasqueelatinhanosporõesdocastelo.

O poço do lado de fora fornecia água relativamente potável, que ela

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aindausavaparalimparochãoetiraropódosmóveis.Empoucotempo,olugar começou a se parecer com algo que ela jamais tivera: um lar deverdade.

Tudocorreubemnosprimeirosdias.Noentanto,àquelaaltura,ajovemBrancajáhaviaaprendidoqueosmomentosdepaz,aomenosemsuavida,erampassageiroscomoumachuvadeverão.Pormaisquenãoescutasseoshorripilantessonsvindosdafloresta,elasabiaqueumdiaelesviriam.

Desmontou as camas e osmóveis para aproveitar suamadeira e, comela, vedou todas as janelas.Quando amadeira acabou, arrancou o tampodasmesaseusouatémesmolivroscomotijolosimprovisados.

As únicas fontes de luz eram a porta da frente, algumas frestas nasjanelas, pelas quais ela observava atentamente o mundo exterior, e oburacodachaminé,quetambémserviadepostodeobservação.

Emseucoração,desejouqueosmonstrosadeixassemempaz.Mas, seacasoviessem,elaestariapreparada.

***

Abruxausouopedaçodoespelhocomoumabússolaparaseguiarpelaloresta.Revisitandoas árvores retorcidas e vegetaçãoquebradiça, ela serecordoudostemposemqueviveraali,àmargemdasociedadeeàmercêdosmonstros,sentindoumapontadesaudade.

A verdade é que a temida loresta nem sempre fora assombrada.Inexplorada, talvez, mas isso era tudo. Quando ela se mudara para lá,fugindodacidademuitasdécadasantes,nãohavianadademuitoanormalpor entre as árvores.Os fenômenos estranhos relatados por quase todososviajantes teriamcomeçadoaocorrer sódepoisdealgunsanos.De suaantigacabanaimprovisada,elapassouaescutarosanimaisberrandoesedigladiandocomoqueacreditavaseremmonstros,queriam,espirravameroncavam o tempo todo. Até assobiavam vez por outra. Mas ela nunca,nuncahaviavistonada.Comopassardotempo,voltouasesentirdecertaforma segura, já que o único indício de que os monstros realmenteexistiam eram os crânios perfurados que costumavam aparecer naestrada.

“Talvez não gostem de carne humana”, era o pensamento que areconfortava.

Continuou seguindo o espelho e, vez por outra, encontrava corpos de

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animais – ou pedaços deles, espalhados pelo chão ou pendurados nosgalhos,comoaenormecarcaçadeumursomarrom,estendidanoarcomose estivesse voando. A inevitável perfuração na testa estava lá, com adiferençadequeelapareciasemover,dadoograndenúmerodevermesquesedeleitavamcomtãofartorepasto.

“Os monstros não atacam humanos”, repetiu como um feitiço. “Osmonstros não atacam humanos”. Prometeu a si mesma que, depois quematasseBranca,jamaisvoltariaapôrospésnaquelelugarmaldito.

No caminho para a casa indicado pelo espelho, a bruxa ouviu umaestranha composição de pancadas desordenadas, como um batuqueintermitente na madeira. Olhou para cima e viu dezenas de galhosamarrados no topo das árvores que, com o vento, se batiam e causavamaquelabizarrasinfonia.

“Quem teria feito isso?”, perguntou-se. “E com qual razão?”. Ela jamaissaberiaaresposta.

Caminhoumais um bocado, até que se deparou com uma antigaminaabandonada,provavelmentedepedraspreciosas.Nasparedesdo ladodefora, havia símbolos indecifráveis até mesmo para ela, que estudaralínguasinterditas,feitoscomsangue.

“Comoépossíveleununcatervistoestaminaaqui?”,pensou,passandoretopelaentradasema intençãodesedeter.Masela icouparalisadademedoaoolharderelanceparao interiordamina.A fendaera tãoescuraque não parecia simplesmente bloquear a luz, mas ao invés dissocontaminá-la, espalhando a sombra como sanguena água. Era impossívelver aprofundidade,masobafogeladoqueemanavade lá era carregadodemedoe injúriasquesoavamcomosevindasdopróprio inferno.Omalabsoluto, com o qual nem mesmo ela teria coragem de se envolver.Apertouopasso e seguiu em frente. Sentiu-seobservada,masnãoousouolharparatrás.

Depois de andar por quase uma hora, ela continuava vendo a casa noespelho, mas não sentiu que estava fazendo progresso. A temperaturacomeçavaacaireabruxa,quehámuito jáestavahabituadaaosmimoseaosconfortosdavidanopalácio,resolveufazerolongocaminhodevolta.

“Pro inferno com aquela menina. Já deve estar morta a uma horadestas”

Quaseumahorasepassoudesdequeelahaviadadomeiavolta,quando

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seupensamento foi cortadoporalgoquecaíraemsua testaverruguenta.Achouque fosseumagotade chuva,masoquepegouentreosdedos foiumverme,queseretorciademaneiradesleixadacomabarrigaparacima,empanturradadecarne.Elaergueuopescoçoe icouparalisadaaoveroenormeursomarromdeantesaindasendoconsumido.

“O quê?! Comopode ser?”, pensou, olhandopara o pedaço do espelho,demandando uma explicação. Mas ele nada respondia. Ela correu,buscandonochãosuasprópriaspegadasparareencontrarocaminhoparaocastelo.Passoupelosgalhosamarradosnasárvoresedepoissedeparounovamentecomavelhaminaabandonada.

Caso seu coração já não estivesse apodrecido, a bruxa sentiria algumremorso, pediria perdão pelos horrores que perpetrou em vida. Poisnaquele momento ela con irmara que o mal absoluto existe. Estava bemdiante dela, na formade sete pequenos anões putrefatos que emergiramdointeriordamina.

Umeramaishorripilantedoqueooutro.Aocentro,oquepareciaserolíder carregava uma picareta manchada de sangue, cuja ponta eleesfregavacinicamentenochão.Osegundoeracomoumcãoraivoso,comaboca espumante. O terceiro era um catarrento que intercalava seusgrunhidos com incontroláveis espirros que espalhavam catarroensanguentadoporondeelepassava.Oquartopareciaumchacal,cujorisorealçava as bochechas rasgadas que deixavam à mostra seus dentespodres. O quinto parecia uma espécie de sonâmbulo, com os olhosfechados,asmãosparaafrenteeopescoçoquebrado,caídoparaolado.Osextotalvezfosseomaisperturbadordetodos,umdepravadoqueandavabalançandooquadril,enquantoriaeseinsunuavatalqualumamacacanocio.Eosétimoeraumlinguarudocomamaishorríveldasmutilações:semamandíbula, sua língua icavapenduradapara fora, balançando comoostestículosdeumbúfaloensandecido.

Diante daquela visão infernal, a bruxa pôs-se a correr, enquanto osanões a perseguiram sempressa, à exceção do cão raivoso, cujo bafo elapodiasentirlogoatrásdesi.Cometeuoerrodeviraropescoço,tropeçouebateu com tudo numa árvore, derrubando perto de si o asqueroso ursoque por pouco não a esmagou. Vermes voaram em seu rosto, varejeirasbrilhantestaparamsuavisão.Eentãoocãoraivososaltousobreela.

Seu corpo se virou por puro instinto e o monstro incou seus dentesnuma rocha. A bruxa se levantou e continuou a correr, lamentandoprofundamente por ter deixado o corpo mais jovem de rainha. Mais à

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frente, havia um barranco que, aliado à gravidade, lhe adiantaria maisalgunsmetros. Saltou, girou no chão ralando toda a sua pele e fechou osolhos.

Quandosedeuporsi,osanõeshaviamsumido.Nãopodiasedaraoluxodedescobrirarazão.Continuoucorrendoporhorasatéqueviu,apoucosmetros,pequenacasaqueviranofragmentodeespelho.

“Branca, Branca, abre, eu te suplico! Abre!”, gritava, esmurrando naporta. “Quemestáaí?”respondeua jovem,dooutro lado. “Souumapobrevendedora que se perdeu nessa loresta maldita, por favor, abre, osmonstrosestãomeperseguindo!”

Branca abriu a porta e a velha praticamente rolou para dentro.“Obrigada,muitoobrigada...”dizia,tentandorecuperarofôlego.

“És uma vendedora?”, perguntou Branca, com a mesma inocência desempre. “Sim, meu bem. Eu vendo maçãs... estava procurando a quemvenderestaquandomeperdina lorestae fuiatacadaporsetemonstroshorríveis!”, respondeu a velha, coma voz trêmula. “Eu sempre achei quenãoatacassemhumanos,mas...”

“Achaste?Jáosvisteantes?”,desconfiouBranca.

“Eusóosescutava...Tenhocertezadequeosescutastetambém”.

“Sim! São horripilantes!”, respondeu Branca, baixando a guarda,enquantoreparavanaapetitosamaçãàqualavelhasereferia.

“Mas acho que está tudo bem agora, graças a ti!”, a bruxa abriu seusorriso asqueroso. “Foimuita bondade tua teresme salvado! Eu te dareiessa maçã como um pequeno agradecimento!”. Mesmo tendo sido salvapelaenteada,amalditanãohaviadesistidodeseuplano.

Brancapegouamaçã,pensandoemcomoseriaótimoen imcomeralgodiferente.

“Muito obrigada... nunca ninguém havia me dado nada...” disse,comovida,enquantosedirigiaàpia.

“Nãoprecisameagradecer,meubem...apenascomae...”

A frase da bruxa foi interrompida pelo golpe de uma frigideiraenferrujadaquearrancouosseusdoisúnicosdentes.

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“AAiii!”gritouavelha“Oquefoiisso?”

Branca a golpeou de novo. A velha se defendia com os braços, quebatiamviolentamentecontraseurosto.

“Vaca! Maldita! Meretriz! Bruxa!”, gritava Branca, que não tinha aintenção de intimidar,mas ferir omáximo que pudesse. Para desviar dabarreiraformadapelosbraços,elamudouadireçãodosgolpesefoidiretonaorelha,desorientandoe,finalmente,desacordandosuavisitante.

“Vadia!”,disse,cuspindoeenxugandoosuor.

***

Quandoacordou,abruxasentiuas ibrasdacordaafundandoemseuspulsosatrásdesi.Ospéstambémestavamamarradosàcadeiraeaúnicacoisaquepodiavereraopequenofeixedeluzvindodachaminé.

“O que... o que está acontecendo?” perguntou, procurando por Brancanapenumbra.

“Queméstuedeondevens?”foitudooqueouviu.

“Játedisse,souumapobrevendedoraque...”

Umalanternaaóleoseacendeueumnovogolpe,destavez,comocabodeumavassoura,foisentidoemsuaorelha.Brancaaqueriabemacordadadestavez,poisnãotinhatempoaperder.

“AAaai!”,esperneouavelha.“Porfavor,euteimploro,parademebater!Nuncatefiznada!Souumapobre...”

“Queméstu?”,perguntoudenovo,jáseadiantandoaumanovamentiraedesferindoumgolpe,agoranafaceverruguenta.

“Ahhh!”

Ao perceber que a hóspede não abriria a boca facilmente, ela deu-lheumpontapé, derrubando-ano chão, comcadeira e tudo. Puxando-apelostufosdecabelosbrancos,levouavelhaatéaparedeonde,porumafresta,elaviuosseteanõesinfernaisseaproximando.

“Euconseguimemanterescondidaaquiporsemanas!Semanas!Etuostrouxeste bem à minha porta! Se não me disseres quem tu és, e o quequeresdemim,voutejogarláfora!”ameaçouBranca,jápuxandoabruxapeloscabelosemdireçãoàsaída.

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“Pares!Tudomenosisto!Pares!Nãomemachuquesmais...”

“Comosabiasmeunome?Comosabiasqueeuestavaaqui?”

Avelhanadadisse.Brancacontinuouarrastando-aparaaporta,quandoelafinalmentedesembuchou:

“Eusou...eusoutuamadrasta!”

Brancaficouestarrecidacomaquelarevelação:

“Oquê?!”

“Éverdade...euvimatéaqui...porque...porque...”

“Digas!”, gritou Branca, cuja fúria contida durante anos de miséria eprovaçãoestavaprestesaexplodir.

“...porquequeriatedarumamaçãenvenenada!Nãosuportotuabeleza,assimcomonãosuportavaadatuamãe!Querotudoparamim!TUDO!”

OpunhodireitodeBranca,quepegouafrigideira,pareciaseencherdevontade própria. Ele começou a subir e a descer como um pêndulo,amassando os ossos da velha, cujos gritos de agonia foramouvidos pelosanões. Branca só parou quando escutou as risadas e espirros perto obastante. Correu até uma das frestas e viu que osmonstros procuravamum jeito de entrar na casa. Foi até a cozinha, de onde trouxe um velhomachado.Voltouatéabruxaefezo inimaginável:cortouascordasedeu-lheaarma:

“Nãovaismorrerainda!Tuvaismeajudaraenfrentarestasbestas!”

HámuitotempoBrancaseprepararaparaaquelecon lito.Destrancouaporta e voltou para dentro, onde, durante vários minutos, aguardou ainevitávelchegadadosanões.Oprimeiroaentrarfoiocãoraivoso,quefoilogo recebido com um balde de óleo fervendo que fundiu seus lábios eolhosnumaúnicamassadepele.

Enquanto agonizava de dor, os outros adentraram a casa. Todosigualmenteensandecidos,avançaramcontraBrancaeabruxa.

“Defende-te!”, gritouBranca, antes de puxar uma corda que derrubouumsacocheiodepregossobreosinvasores.Ometalperfurouseucérebroeolhos,masempoucoosdeteve.Ochacalcontinuavacomsuagargalhadasinistra, ainda que o pescoço agora lembrasse um porta-al inetes. Sem

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suportarmaisaquelamalditarisada,Brancaavançoucontraelecomcertasatisfação pessoal. O anão tentou se proteger do facão e teve a mãodecepadaantesquealâminasedetivesseemseucérebromacio.

“Dois já foram”,pensouBranca, ingenuamente.Foiquando,por trásdesi,oanãodepravadosaltou,mas,noúltimoinstante, foiperfuradoporummachado.

“Só eu possomatar Branca!”, clamou a bruxa, enterrando a lâmina nopeitodomonstro.

Com sua picareta, o líder parecia ser omais perigoso. Ele rodopiava oobjeto no ar, arrancando lascas dos pilares demadeira e até pedaços deseuscompanheiros,quepoucopareciamseimportar.Comoumadomadorade circo, Branca usou a vassoura e uma cadeira como escudo paraconduzi-loatéomeiodasala.Quandoeleestavaondeelaqueria,elajogouasarmascontraele,queapenasasrebateu,rindodesuaingenuidade.Maso que ela queria era distraí-lo enquanto puxava uma corda, que virou obaúdejoiasemoedas,penduradologoacima,sobreoanão.

O baú caiu sobre a cabeça, quebrou o pescoço e incou-se na jugular.Privado de sua coordenação motora, o resto do corpo do anão icougirando ao redor do próprio eixo, como uma galinha que tem a cabeçaenterradanaterra.

Os três que ainda restavam, o linguarudo, o catarrento e o sonâmbulo,foramacuandoBrancacontraaparedeondeestavaoórgãode tubos.Defrente para a morte, preferiu virar para o outro lado, onde estava oinstrumento,elamentou:

“Euqueriamuitotidotempoparaaprenderatocar...”

Indefesa, calmamente, deu as costas para seus algozes, que nadaentenderam, e sentou-se no banquinho em frente ao teclado. Respiroufundo, olhou para cima e, com as duas mãos, pressionou as teclas queenviaramarcomprimidoparaostuboscheiosdepólvora.

Pedaços de chumbo voaram na direção oposta,massacrando os anõesnuma grave sinfonia que começava em lá, misturando explosões e ogastronômicosomdosanõessendotransformadosnumapastadesangue.

No imdamúsica, Branca respirou fundo e olhou para trás. Viu o quesobroudosanões,notandoa línguado linguarudosaltandonochãocomoumpeixe fora d’água. Adiante, estava o corpo do líder, ainda rodopiando

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pateticamente. A bruxa, impressionada com o feito de Branca, tinha osolhos arregalados. Em suamão, estava omachado e, na ponta, o coraçãopretodoanãodepravadoaindapulsandoegotejandoumlíquidoviscosoeescuro.Ochacaljazianochãocomofacãoenterradoemseucérebro.

Branca respirou aliviada. Agora, seria apenas eliminar a bruxa, parapodervoltarasuavidanormal.

Contudo, próximo à porta, o cão raivoso, que fora o primeiro a cair,enterrava as unhas na massa de pele que virara seus lábios. E puxavaparaliberarababaespumantequeseacumularaporbaixo.

FoiaíqueBrancapercebeuseuerro.

“Por... todos os santos!”, exclamou, enquanto seu medo era lançado aaltitudesexorbitantes.

Abruxadeuum salto quandoodepravado ergueu amão, reclamandoseu coração arrancado. Perto da porta, o cão raivoso se levantava, com apele derretida rapidamente voltando ao estado putretato de antes,enquantoochacalarrancavaalâminadeseucérebro.

Osanõesnãopodiamsermortos.Eleseramamorte.

“Atrás de ti!”, gritou Branca para a bruxa.Mas era tarde demais parasalvaramadrasta,quefoimordidanopescoçopelodepravado.Suajugularfoisugadacomomacarrãoe,quandooanãosepreparavaparaosegundobote, foi derrubado pelo cão raivoso, que ao menos podia abrir um dosolhosetambémqueriaseuquinhão.

Brancanãodeixoudesentircertasatisfaçãoaoverabruxaagonizandono chão enquanto os dois anões se digladiavam por sua carne. Mas elasabiaque,senãofizessealgo,seriaapróxima.

Usandoapicareta, o lídergolpeavaoprópriopescoçoapara separá-lodocorpo.Apastadesanguequesetornaramolinguarudo,osonâmbuloeo catarrento começava a se aglomerar em trêsmonstros distintos. O cãoraivoso e o chacal ainda esmurravam no chão, enquanto o depravadoretomavaseupromíscuoreboladoinfernal.

Na cozinha, Branca buscou a lanterna a óleo, com a intenção deincendiar a casa com todos dentro. Preferia morrer queimada a serdevoradapelasbestas,quandoalgoaindamaissinistroadesnorteou.

“He,he,he”,foioqueouviu.

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No chão, a bruxa ria, primeiro baixinho, depois de maneira histérica,descontrolada,atéseerguerdeumasóvez,puxadacomoumamarionetepelosfiosdodiabo.

“He,he,he...Branca,Branca...vemparaatuamadrasta,vem!VemseraBrancadosMortos!”–ocorpo,revivido,jáapodrecia,massemovimentavacomumaagilidadedescomunal.Brancajogoualanternaaospésdabruxa.Oobjetoquicou,depois caiue explodiuemóleoe chamas,masaquiloemnadaafetouavelhatornadamorta-viva.

“Nãopodesnosqueimar,Branca!Nãopodesnosmatar!Vem,junta-seanós! Deixa a tua querida madrasta te dar uma mordidinha... só umamordidinha!”,riaabruxa,exibindosuabocasemdentes.

Osanõescontinuavamseaproximando,etudooqueBrancapodiafazerera atirar objetos a esmo, enquanto lágrimas de ódio escorriam em seurosto.Pratos,panelas, facasebaldesvoavam.Lembrou-sedetodaadoredo sofrimento que havia sido sua vida e de quanto a morte poderia lhetrazer alívio. Mas não estava disposta a se entregar facilmente. Nãodaquelamaneira.Nãoali,noúnicolugardepazqueelahaviaconhecido.

Saltou ferozmente sobre seus algozes e, em especial, a bruxa,golpeando-arepetidasvezescomseufacão,atéarrancarsuacabeça.

“Ela logovai se recompor”,pensou. “Masnão será fácil!”Pelos cabelos,agarrou a cabeça que ainda gargalhava, desviou dos anões famintos ecorreuparaforadacasa.

À frentedopoço, contemploua responsávelpor todasasdesgraçasdesuavidapelaúltimavez:

“Váparaoinferno!”

Eabruxafalou,numavozgraveemasculina:

“Eujáfuieéláqueeumoro!”,antesdeserimpulsionadaporumaforçainvisívelemorderamãodeBranca.

Mesmo que a boca não tivesse dentes, a pobre urrou de dor, ao ter apeleesmagadapelasgengivas.Balançouamão,bateu-acontraasparedesinternas do poço, mas ela não soltava de jeito nenhum. Então, en iou aoutra por baixo da mandíbula e incou suas unhas no cérebro. Numespasmo,abocaabriueenfimcaiunopoço.

“Maldita!”,disse,aoveroenormeferimentopretonamão.

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Os anões já estavam do lado de fora da casa, com o líder na frente,arrastandoa cabeça comumamãoe apicareta comaoutra. Provocador,ele esfregava apontada armano chãopara adireita epara a esquerda,brincandocomsuavítima.

Fraca e cansada, Branca pensou nas alternativas que ainda lherestavam. Só não se jogou no poço porque sabia que a cabeça da bruxaestava lá. Então, quando se virou para a loresta, pronta para fugir, foiderrubadaporumaenormecorujaquevoavanaalturadesuacabeça.

Elaeacorujaforamaochão.Mas,aocontráriodajovem,acorujasabiabemondeir:recompôs-seefoidiretoparaosanões,quejáestavamsoboataque de diversos outros animais. Grandes como um alce ou pequenoscomoumcoelho,todoscravavamsuaspresasnasbestas,quesedefendiamcommordidase,nocasodolíder,precisosgolpesdepicaretanocentrodocrânio.

Ummorcegoarrancouoolhoregeneradodocãoraivosocomobicoeojogoulonge,antesdeseragarradoetersuacabeçaarrancadaamordidas.Oalcederrubouochacaleodepravadocomseuschifreseosarrastouatése chocar com uma árvore, com tamanha força e determinação que seupescoçosequebroucomo impacto.Araposaeo lobomiravamdiretonasjugulares,derrubandoolinguarudoeosonâmbulo.Assim,àcustadavidadosanimais,osanões foramsendoreduzidosapedaçosdesangue,pusecarnetrêmulanochão.

Foi então que Branca entendeu as carcaças espalhadas pela loresta.Quando confrontados pelo mal em sua mais pura forma, os animais nãofogemcomofazemdotrovãooudofogo.Atacam-noferozmente,sentem-secompelidosadestruí-lo,temendoafúriadoCriadorporteremdeixadoqueomalseespalhassesobreaTerra,naformadaquelessetedesafortunadosanões que umdia encontraram, numamina de pedras preciosas, a portaparaoinferno.

Contudo, nem mesmo todos os animais daquela loresta podiamextinguir o mal de forma permanente. Cada vez que um anão eradilacerado por uma raposa ou tinha seus olhos arrancados por ummorcego,eleserecompunhaemquestãodehoras,oumesmo,minutos.Eoterrorrecomeçava.

Branca então olhou para a gangrena em suamão direita. Os dedos jáestava pretos, secos e quebradiços. A sua volta, as carcaças dos animaismisturavam-se aos pedaços dos anões, que tremiam como rabos de

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lagartixa e já começavam a se juntar. Quando a laringe e os pulmões docatarrentoseencontraram,eoprimeirosomqueemitiramfoiumespirro,Brancajásabiaoquefazer.

Voltouparadentrodacasa,quemesmoemchamasnãocedia,ondeviuocorpodisformeedecapitadodabruxaestendidonochão.Caídajuntoaocorpoestavaamaçãenvenenada.

Pegou a fruta e saiu da casa. Olhou para o céu, tomado por nuvensdesoladoras,tentandoselembrardecomoseriaamãequeabruxatirarade si. Lembrou-se do encontro com o príncipe, seu único momento defelicidade, e tentou se agarrar a ele enquanto sentia o gostosurpreendentementedocedamaçãenvenenadaseespalharemsuaboca.

Sentiuaspernasatro iarem,opescoçoenrijecereas lágrimassecaremdosolhos.Seusofrimentochegavaaofim.

Assimelapensava.

***

Logo, os pedaços dos anões se reagruparam, tornando-os as bestasdemoníacas de outrora. O linguarudo continuou balançando a línguapendurada, o líder tateava o chão à procura de seus olhos e da picareta.Um a um, estavam de volta ao além-morte, prontos para disseminar seuhorrorpelomundo.

Ocãoraivoso foioprimeiroaverocorposemvidadeBrancaestiradono chão.Aproximou-se dela com sua babanojenta espumandopela boca,cheirouaspernaseuivoucomoabestaensandecidaqueera.Olíderentãosoltouumgrunhidoetodososeguiramdevoltaparaafloresta.Nãotinhaminteressenacarnejáfriadaquelecorposemvida.

***

Pouco tempo após a partida, passou por ali o desafortunado príncipe,que ainda não havia encontrado o caminho de seu reino. Não tinha aintençãodesedeterdiantedajárotineiracenadeanimaismutilados,masnomeiodaquelepandemônio,viuocorpodesuaamada,inerte.

Aproximou-se e pôs-se de joelhos, com asmãos unidas em penitência.Tentouemvãoreanimá-la,masavidajádeixaraaquelecorpohaviahoras.Então, o príncipe prometeu à amada um enterro digno da princesa queera,despedindo-secomumsuavebeijo.

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SeuslábiostocaramosdeBranca,quemesmogeladosaindaostentavamovermelho-sanguedesempre.Nãotinhacomoverosdedosgangrenadosque se contraíram num pequeno espasmo. Como se puxada por um ioinvisível, amãopretada jovem se ergueu e foi lentamente até a nucadopríncipe,quesentiudentesmordiscaremseuslábios.Cadavezmaisforte.

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João,MariaeosOutros

Ninguém,nemnaquelereinonememnenhumoutro,pobreou rico, encarnado ou desencarnado, jamais escapará aos desígnios queingenuamente engolfamos em ilusões didáticas como “karma”,“providência” ou “justiça”. Esses mistérios, que quanto mais tardecompreender-vos,melhorserá,cedooutardeserevelarãoatodohomememulher, trazendo conforto a poucos e horror para amaioria, num tempoemqueomundodossonhosestaráfechadoparasempre.

Deumlado,estavaumapobrefamília, formadaporumpai,seus ilhos,JoãoeMaria,frutosdeseucasamentoanterior,eamadrastadascrianças,sua odiosa esposa. Do outro, estava o fantasma da fome absoluta. E tudoquesepunhaentreeleseraumsacodepãovelhoeoutrodefarinha.

“Nossa comida está quase no im. Se ao menos não precisássemosalimentarJoãoeMaria!”,lamentouopai,numanoite.

A mulher, que merecia o marido que tinha, disse erguendo assobrancelhas:

“Poiseujáseicomovamosresolverisso.Amanhã,aoromperdaaurora,tu levarás João eMaria até a partemais sombria da loresta. Farás umafogueira edarásmetadedestepãoaosdois.Depois, dirásquevais tratardeseusafazereseosdeixarálá!”

“Estás louca?”, disse o marido. “E se alguém descobrir... e se o loboaparecer?”

“Até parece que tu te importas com os pirralhos!”, ela respondeu,histérica.“Nuncadestenembanhonematençãoaeles!”

“Mas,aindaassim,sãomeus ilhos!”,respondeuohomem,semnegarasacusações.

Amegerabateunamesademadeiramaciça,lembrançadetemposmaisabastados.“Senão izeresisso,serãoquatromortosemvezdedois!Tratedepegarteumachadoeumalixaefaçadestamesanossoscaixões!”

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O barulho da discussão fez com que João e Maria, que dormiam nocômodo acima, acordassem de sobressalto. Os pequenos ouviram, comdetalhes,osinsistentespedidosdamadrasta.E,comotodamulherquandoquer alguma coisa, ela não deu umminuto de sossego até que omaridocedesseaseussuplícios:

“Estábem,estábem, tuvenceste!Amanhã,eu levareias criançasatéafloresta,asabandonareie,então,seremossónósdois!Combinado?”

“Combinado!”,concordouamegera,semdisfarçarcertasatisfação.

Mariacomeçouachorar, inconsolável,agarradaaseuúnicobrinquedo,umabonecaimprovisadacomumsacodepano:

“Vamosmorrer,João!”

Mesmoperante as adversidades que a vida lhe impunha, João semprefora um menino inventivo e curioso. A asma fazia seu peito chiar, eapareciacomfrequêncianaformadetosseentreaspalavras.

“Nãovamos...Cof!Nãovamos,Maria!Cof!Fique...Cof!sossegada!”

Depois que os dois adultos foram dormir, João se levantou, tomandocuidadoparaque seuspassosnão izessemrangeras tábuasdemadeiradilatada sob si. Vestiu seu paletozinho e, comum leve empurrão, abriu aporta e adentrou a noite. Em meio ao breu opressor, a luz da luaresplandecia em pequenos seixos brancos no chão. Um a um, o meninocolheu todos que podia, permitindo-se imaginar que estava colhendo asestrelasdocéu.

VoltouparacasaedisseàMaria,sorrindo:

“Não te a lijas, irmãzinha. Cof, cof! Vai dar tudo certo! Eu tenho umplano!”

***

Aoraiardodia,amadrastalevantoucomousualdesgostoparaavidaeacordouosdoisenteadosaosberros:

“Levantai-vos,seusinúteis!Vocêsprecisamajudarvossopai!”Elaentãodeu a cada criança metade de um pedaço do pão, dizendo: “Aqui está o

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almoço. É a única refeição que farão hoje, portanto, não comam antes dahora!”

Opai e os ilhospartiram juntospara a loresta, silenciosa testemunhade numerosas desgraças. Conforme andavam, João ia deixando cair osseixos no chão, marcando o caminho de volta. Ao ver que o garotoconstantementevirava-separatrás,opaivoltoueopuxoupelaorelha,queestaloucomofrio:

“Andalogo,moleque!Nãotemosodiatodo!”

“Perdão, papai! Cof!”, choramingou João, esfregando a orelha que, aomenos,estavaquente.

Ospésdascrianças, forradosapenascomsacosdepanoebarbante, jáformavambolhasquando inalmentepararamdemarchar,numaclareiranomeiodaflorestaemqueelasjamaishaviamestado.

“Vou fazer uma fogueira aqui para que não sintam frio. Depois, ireibuscar um pouco de lenha!”, anunciou o pai. “Não saiam daí demaneiranenhuma,ouvosarrebentoacara,entenderam?”

As crianças balançaram a cabeça enquanto esfregavam as mãos nosbraços.Tãologoacendeuafogueira,opaipartiu,sobosolharesa litosdeJoãoeMaria.

“Seráqueelevaimesmonosabandonaraqui?”,perguntouMaria.

“Tomara que não, Maria... tomara que não.” O pobre João ainda tinhaesperanças,reforçadaspelosomdomachadodopaicortandoamadeiraaliperto.Talveztudonãopassassedeummalentendido.

Eleea irmãsentaram-sebempertoaofogo,tãopertoquefezcomqueos piolhos fugissem de suas cabecinhas. Ao meio-dia, aqueceram seuspedaços de pão e comeram vorazmente. Como ainda podiam ouvir osgolpes de machado por perto, sentiram-se seguros de que o pai não osabandonara.

Adormeceram.

Quandoacordaram, jáeraquasenoite.Assustados,chamarampelopai,semobterresposta.

“Ele está aqui perto!”, disse João, atento a seus sentidos. “Posso ouvirseumachado!Cof!Cof!Cof!”.Suatossepioravamuitoànoite,emespecial,

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sefaziafrio.“Vamosprocurá-lo!Cof,cof!”

O irmão tomou a dianteira. Mas bastou caminhar alguns passos paradescobriremquenãoeraummachadoqueouviam,esimumgalhoqueopaiprenderanumaárvoreequeoventofaziabaterparaláeparacá.

As crianças icaram desesperadas enquanto, àquela altura, o pai jáestava bem longe, quase chegando em casa, ansioso por se aquecer nalareira.

O fogo jáconsumiraamadeiraeMariacomeçouachorar lágrimasquecongelavam ainda em seu rosto. Tremendo freneticamente, perguntou aoirmão:

“Elenosabandonoumesmo,João?”

Semfôlegopararesponder,eleapenasgesticulouemnegativa.

Apobremeninaabraçouoirmão.Encaixouacabeçaembaixodoqueixodeleeouviuochiadodeseupeito.

“João,comotuachasqueéocéu?”

“Cooof, cooof!”. A tosse piorara muito. “Acho que é um lugar maisquente... Coooooooof e mais bonito do que esse”, respondeu João,esfregandoosbracinhosdeMaria.

“Seráquetemmuitosdoceslá?”

Omeninorespondeuquasesoprando:

“Tenho certeza disso, Maria! Cooooof! Lá existem casas feitas de pão,com telhados de bolo e... Coooof... janelas de açúcar... Nelas, cof, cof, cof,moramsimpáticassenhorinhasqueadoramcozinharbolosetortaspara...”seufôlegoacabaraali.

JoãoabraçouMaria,notandooorvalhoquecongelavasobreseuscílios.Omenino já havia perdido a esperança, até que viu re letida nas gotas aluzdaluaquedespontavanocéu.

Apontou para a pequena esfera brilhante de ânimo renovado. Olhouparatráseviuosseixosquedeixaranochão,tremeluzindocomomoedasnovas,apontandolálongeocaminhodevolta.

Omeninotomouairmãpelamão.Elarespiroufundoeoabraçou.

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“Vamosparacasa!”

***

Opaitrilhavaocaminhodevolta,estranhandoaprópriatranquilidadeeodesapegoàculpa.Nofundo,achavaquehaviasidomelhorassim, jáqueelenuncativeramuitojeitocomcrianças.

Anosantes,ele forapaideuma lindameninachamadaBlanchette,quemilagrosamente sobreviveu à morte da mãe quando ainda estava noventre. A história da bebê percorreu todo o reino, mas a pequena teriamorridodeformatrágicapoucosanosdepois,aoseperderna lorestaporimprudênciadopai.

Perguntou-se quantos anos a menina teria se ainda estivesse viva -talvez dezoito ou dezenove, não estava certo. Isso só lhemostrara que apaternidade, ao contrário do que julga o senso comum, não é umahabilidade que a lora naturalmente quando o homem tem sua cria, massimumo ícioparaoqualjásedeveterumapredisposição,umacertadosede talento e muita paciência, ingredientes que sempre faltaram em seuquinhão.

Sua formulação de pensamentos peculiares sobre a paternidade foisubitamenteinterrompidapelobarulhodegramasecasendomexidapertodali.Pelodeslocamentodosom,julgouserumoumaisanimais,talvezumapequenamanadadeporcosselvagensfuçandoochãoembuscadecomida.Pensandoemgarantirarefeiçãodospróximosdias,escondeu-seatrásdeumaárvore,ondepacientementeaguardousuaspresas,atéqueteveumavisãoaterradora.

Não eram porcos selvagens que se aproximavam, mas uma pequenalegião de seres com aparência bizarra, a pele negra como a noite, olhosbrancos e esbugalhados, arrastando sacos, pás e picaretas tal qual almaspenadas. Andavam em ila com movimentos coordenados exalando ocheirodamorte.

Ohomemsentiuopavortomandocontadesiefugiupela lorestaantesque“osoutros”,comoconvenientementeoschamou,pudessemvê-lo.

Ao chegar em casa, exasperado, contou para a megera sobre oabandonodos ilhoseaexperiênciaassustadoraquetiveranocaminhodevolta.

“Deves estar alucinando”, ela comentou, antes que fossemdormir sem

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sequersecobriremcomoslençóisdaculpa.

***

Namanhã seguinte, os olhos do pai se abriram de uma vez. Sentia-sedesperto,semsaberdizersehaviadormidoousonhado.

As memórias do dia anterior prontamente o alcançaram. Entãopercebeuquejánãoconseguiamaisselembrardorostodos ilhos.Fechouos olhos e pôde ver em sua mente os longos cabelos negros de Maria,secos, quebradiços e incapazes de re letir luz; seu vestidinho branco esurrado;afinapenugemquecobriaseusbracinhos;atémesmoasbolhasecalos de seus pezinhos sujos. De João, recordava-se perfeitamente doscabelos castanhos cortadosà faca;das sobrancelhasgrossaseuni icadas,herdadas de si; de como seus passos pareciam longos e desajeitados,levados por suas pernas desnutridas, das costelas aparentes acima dabarriguinha protuberante; e, principalmente, do som de chuva que seupeitofaziaquandoelerespirava.Masnãoconseguiamontarumretratoemsuamente,comoseasmemóriasdosfilhoslhetivessemsidoextirpadas.

Pela primeira vez desde que abandonara João e Maria na loresta, ohomem esboçou um choro. Que umedeceu suas pálpebras,mas não foi osu icienteparaserexpulsodosolhos.Questionou-seseoque izeraforaacoisacerta.Àquelaaltura,algumlobojáteriadevoradoascrianças,talqualsuaprimeira ilha. Comsorte, duranteo sono, paraquenão sofressem.Enãohavianadaqueelepudessefazer.

Foiquandoouviuumbarulhovindodoandarabaixo.

***

Saltouimediatamentedacama.Aesposadespertoucomomovimento,eele lhe fez um sinal para que não dissesse nada. Encostou o ouvido nochão,tentandodecifraroquesepassavanopisoinferior.Comsorte,seriaumloboouumgatodomato,procurandoabrigodofrio,enãoumhomem,amaisimprevisíveleperigosadasbestas.

Seus temores logo foram con irmados pelo som de vozes falando emmonossílabos, parecendo rir numa língua que não lhe era permitidoconhecer. Quem quer que fossem, sequer se preocupavam em serdiscretos,edeixaramváriosobjetosseestatelaremnochão.

“São eles... os outros! Eles devem ter me seguido!”, recordando-se davisãoaterradoradodiaanterior.

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Procuroupelomachado,e lembrou-sequeodeixaranoandardebaixo.Entreesperarqueosinvasorespartissemedescerparaconfrontá-los,elepreferiuaprimeiraopção,jáquecoragemnuncaforaseuforte.

Atentamente, ele icou tentando compreender o que se passava logoabaixodesi.Ouviaastábuasdochãorangerem,asportasseabriremeasvozesentoaremcânticossatânicosquelhefizeramgelaraalma.

Amulhercochichou:

“Quediabosestáacontecen...”

“Cala-te!”,exaltou-seomarido,e,nomesmoinstante,ocânticocessou.

Aausênciadesomdeixou-oaindamaisa lito.Rogoupelosomdaportada sala se abrindo,mas o que ouviu em vez disso foram passos sobre aescada, depois mais tábuas rangendo, denunciando a inevitável chegadadosestranhos.

Ohomempensouempulara janela,masaqueda facilmentequebrariasuas pernas. Para seu absoluto pavor, ouviu alguém batendo na portadestrancada por três vezes. Olhou para amulher, viu o pânico nos olhosdela,quebalançavaodedonegativamenteeen iavaaoutramãonabocaafimdeabafarosgritosquequeriamexplodiremsuagarganta.

Aportabateunovamente,comtamanhaforçaquepequenospedaçosdemadeira se desprenderam e caíram no chão. Apavorada, a esposa seescondeu debaixo da cama. Sem alternativas, o homem resolveu encararseusalgozes.

Pegou o único objeto que poderia ser utilizado para defesa, um velhocandelabro enferrujado. Ergueu-o com umamão e, com a outra, abriu aporta.

E,dooutrolado,nãohavianinguém.

***

Com o coração palpitando, o pai e a madrasta desceram as escadas elogo viram que tudo no andar debaixo havia sido revirado. Os armáriosestavam abertos, as panelas e os utensílios esparramados pelo chão.Roupas jaziam penduradas sobre o órgão de tubos que a madrastacompraracomodinheirodavendadaúltimavacadafamília.

“Ladrões!Foramladrões!,”apressou-seamadrasta.

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“Masroubaramoquê?Nãotemosnada!”

Vasculhandoabagunça,elesnãoderamfaltadenenhumobjeto.

“Ounãoencontraramoqueprocuravam,ou...”

“Opão!”,gritouamadrasta.“Vejaseroubaramnossopão!”

Comasmãostrêmulas,ohomemabriuoarmárioe logoviuqueosacodepãoestavalá–masvazio.

“Comeramnossopão!Osoutroscomeramtodonossopão!”,resmungavaele,exibindoosacovazio.

“Vamosmorrer de fome!”, choramingou amadrasta. Elesmorreriam –setivessemsorte.

“Tudooquesobroufoiosacodefarinha!”constatouohomem.

Aesposapensavaemalternativasparasobreviver:

“Podemos aomenos fazer ummingau comele... Nosmanterá vivos atéquetupossascaçaralgo!”

“Caçar?Estás louca?Eunãoentromaisnaquela lorestamalditadepoisdoqueviontem!Depoisdoqueaconteceuaqui!”

Amulher já bufava. O estômago se revirava de fome após a noite emjejum,eademandaporalimentologoexplodiuemraiva:

“Alémdeinútiléslouco!Nãoseiporquêmecaseicontigo!”

Ohomemnãosefezderogado:

“Casaste-se comigoporqueeu era rico!”, retrucou, aosberros. “Porquedava-tejoiasevestidos,porquecediaateuscaprichoseagora,tudooquetenhoparacomeréessesacodefarinha!”

Ohomemtomouosacodefarinhaeoabraçouraivosamente.Amulhermostrouosdenteseavançoucontraomarido,puxandoosacoparasi.

“Medá!Nãovaiscomertudosozinho!”

“Sai!Sai!”

“Medá!”amegeracravousuasunhasnosacoeopuxou, rasgando-oeesparramando o conteúdo que julgavam tão valioso pelo chão. Uma

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repentinalufadadeventogeladoentroupelajanelaeespalhouopópelosares.

“Nãoooo!”, gritaram os dois miseravelmente, ao ver sua últimaesperança de sobrevivência se perder. Amegera esfregava asmãos nastábuasdemadeiraeaslevavaàboca,lambendoumamisturadefarinhaepoeiraqueemnada saciava sua fome.Lágrimasdeódio cravavamsulcosemseurostocobertodepóbranco.

Aoveroestadomiserávelemqueseencontravaaesposa,omaridopôsamãonaconsciênciaesegurou-lheosbraços irmemente,exigindoqueseacalmasse.

“Tenhacalma,mulher!Nemtudoestáperdido!Podemosvendernossasroupas,ascamasdascrianças,atéabonecadeMaria!Podemosmendigarnaestrada,ondeumaboaalmahaverádenosajudar!Nãovamosmorrerdefome!”

A megera alternava entre choros, soluços e risadas irônicas frente àshipóteses levantadaspelomarido. Seuorgulho estavadilacerado,mas elanãosedariaporvencida:

“Achoquetensrazão.Vamosseparartudooquetemosparavender.”

Começaram a juntar as coisas do chão. Separaram as panelas e osutensílios, cujo metal poderia ser derretido e aproveitado para algumacoisa.Amesatambémpoderiaterumdestino.Aúnicacoisaqueamegerase negou a separar para a venda - e que certamente daria um bomdinheiro-foioórgãodetubos.

“Temvalorsentimentalparamim!”,justificou.

“Massequersabestocar!”,retrucouohomem,jásemforçasparaaqueladiscussão.

“Oórgãoeunãovendo!”,exaltou-seaesposa.

Depoisdeseparartodososobjetos,subiramparaoquartodascrianças.

***

“VisteabonecadeMaria?”,perguntouohomem,aovasculharoquartodosfilhosembuscadealgumobjetoquepudessetervalor.

“Nãoestoucerta,mascreioqueelaa levouparaa loresta!”, recordou-

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se a madrasta, abrindo os armários vazios por repetidas vezes, como sealgodenovofossemagicamenteaparecerdentrodeles.

O homem então abriu um velho baú, onde eram guardadas as roupasdascrianças,e,sobreostrapos,encontrouabonecadepano.Pegou-aparaver se teria algum valor – e reparou que estavamais pesada do que selembrava.

“Que estranho!”, pensou. Apertou-a e sentiu algo mole e gelado porbaixo do pano. Puxou o tecido da cabeça e gritou, apavorado, ao ver osdentesa iadoseasórbitas forradascomvermesconsumindoumgatoemavançadoestadodedecomposição.

“AAAAHHHH!”

Jogouobrinquedomacabronochão.Osvermesvoaramcomoimpacto,eforamarremessadoscontrasuapeleesuasroupas.

“Masqueinferno!Oqueaquelameninafez?Colocouumgatodentrodaboneca? Que nojo!”, disse a madrasta. O mau cheiro se espalhou pelocômodo, o homem balançou as mãos sobre as roupas para se livrar dosvermes.

“Voupegaráguadopoçoparamelavar!”,disse,enojado.

Desceu as escadas, praguejando e esbofeteando a própria cara paraderrubarosvermesgrudadosnorosto.Aochegarnoandartérreo,sentiuabrisageladavindodeforaenotouquehaviaalgodeerrado.

Aportaestavaaberta.

Sobreochãocobertopelafarinha,haviapegadasdecrianças.

***

Sehouvessetidoalgumpesadelo,opaisesentiriamelhor,poisaomenossaberia que dormira. Mas, pela segunda vez consecutiva, ele fechara osolhosaosedeitare,quandoosabriu,anoitejáhaviadadolugaraodia.Osraios de sol banhavam as copas das árvores, os pássaros cantavam e osanimais saíamdesuas tocas, revigorados.Omesmonãopodiaserditodohomem,quesentiaosmembrospesaremeacabeçadoer.

Olhou para a esposa que ainda dormia ao seu lado, encolhida emposição fetal por causa da fome e do frio. Perguntou-se por que ela nãoteria fechado a janela, por onde um curioso pombo entrou para então

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pousarsobreseuspés.

A avepouco fezdapresençadoshumanos e começoua ciscar sobreofinolençol.

O pai nada entendeu quando outros pombos imitaram o primeiro einvadiramoquartocomoumenxamedeabelhas.Finalmenteeleviuque,sobreo lençol, estavamgenerosospedaçosdepãovelhoe seco,omesmoque fora roubado na primeira noite e que agora fazia os pombos sedigladiarem.

Amegeraacordoucomobarulho:

“Portodosossantos,oqueestáacontecendo?”

Tentou, com o marido, assustar os animais, mas eles estavam tãofamintos que batiam as asas e logo voltavam, espalhando penas, pão epulgas sobreo casal.Bicavamdesesperados tudooqueviampela frente.Comiamopãoeatémesmoa ibradoslençóisepedaçosdasroupas,enãotardou até que passassem a bicar os humanos, experimentando pelaprimeiravezosprazeresquesóosabutresatéentãodesfrutavam.

“Aahhh!”, gritou a megera, balançando os braços no ar. Tentou selevantarefugir,enquantoomaridorolouparaochão,easavespassaramabicaras costasea cabeçadeambos.Umadelas, certeira, atingiuoolhodireito damulher e sorveu dele um io branco e úmido que despertou ointeresse das outras aves, que deixaram de lado as migalhas frente aorepastomaisapetitoso.

“Acuda-me! Acuda-me!”, gritava a mulher, em desespero. O homempegou um travesseiro e começou a brandí-lo no ar, mas as aves eramtantasque era como se ele tentassedispersarumanuvemdegafanhotoscomumpunhal.

A madrasta desceu as escadas rolando, sendo seguida pelas avesesfomeadas, que lhe arrancavam pedaços de pele e tufos inteiros decabelo. O olho sangrava torrencialmente, o que apeteceu ainda mais ospombos, e ela saiu correndoda casa, deixandouma trilha vermelhaparatrás. E, ainda que achasse que poderia escapar de seu destino, ele andadevagar,masnuncasecansa.Seucastigoestavalongedeterminar:umdiaamegerasentirianapeletodoosofrimentoquecausou.

Jáohomemseviusozinhonacasa,semsaberoquefazer.Ospássarosperderam o interesse nele e uma sensação de segurança tão vã quanto

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breve se instalou. Logo começou a ouvir passos vindos de baixo,acompanhadosnãoporcântigosproibidos,masgritosdedoreagonia.

O medo, o desespero e a fome disputavam a tapa cada um de seuspensamentos.Concluiuquepreferiaencararosperigosda lorestaa icarali,emmeioaosinvasoresinvisíveis,aosbrinquedosforradoscomanimaismortoseaospássarosassassinos.

Desceu as escadas correndo, com amão sobre os olhos, tentando nãoveroquesepassavanaprópriacasa.Levantouamãosomenteosu icienteparaverochão,enelepôdeverpegadasdepésinvisíveissendoformadasnafarinha.Semcompreendernemseimportar,pegouomachadolargadonumcantoefugiudesesperadoparaafloresta.

Dascopasdasárvores,oscorvosvoaramcomosetivessemescutadoumtrovão. No chão, roedores se escondiam em suas tocas e até mesmopredadores como lobos bateram em retirada, ao presenciarem o homemrumandoafoitomataadentro.Aopassarporuma inapontedecordasquecruzavao rio,peixes começarama submergir, abrindoe fechandoabocanumaagonizantebuscadeoxigênio.

Quando não tinha mais forças para fugir, sentou-se sobre uma pedrapararecuperaro fôlego.Foiquandosedeucontadeque,comomachadoque tinha em mãos, poderia por um im de initivo àquela experiênciaassustadora.Eo impensável logoseapoderoudesuamente,escorreuatéseubraçoeirradiouseupunho.

Teria que ser um golpe poderoso e certeiro. Ergueu a arma no ar,fechou os olhos e mirou a própria cabeça, mas a razão ou instinto logofalaram mais alto: a distância era por demais curta para uma morteinstantânea.Perfuraroprópriocrâniocomomachadopoderianãomatá-loepior,deixar-lhea cabeçaabertaparaquedemôniospudessementrareassombrá-loaindamais.

Então mudou de estratégia. Pressionou a lâmina contra o pulso,tentandoimaginaraforçaqueprecisariaparacortarasveiasdospulsosegozar de uma morte indolor. Apoiou a arma entre os joelhos, ergueu ospunhosacimada cabeçaepreparou-separadilacerá-los contra a lâmina.Desceu os braços com tudo, quando seumovimento e seu espírito foramdesmontadosporumavozcavernosaqueirrompeuatrásdesi:

“Estásperdido!”

***

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Ohomemcaiunochão,gritando,engatinhandodecostasesparramandoasfolhassecascomospés,balbuciandotalqualumbebêapavorado.

Fechou os olhos, achando que fosse repentinamente acordar em suacamae,quandoosabriudenovo,elesaindaestavamlá:osoutros,osseresque vira no dia que abandonara os ilhos, a poucos palmos de si. Contouum, dois, três, sete seres diminutos como crianças infernais, com a pelepreta como carvão, olhos brancos saltados para fora, dentes encravadosem gengivas podres que exalavam um odor acre que ele sentia dali. Umgrito emergiu do fundo de sua alma e a mão negra de um dos seres seaproximoudeseurosto:

“Calma!”,disse,comamesmavozqueeleouviraantes.“Estátudobem!”

Nãoeraoqueeleimaginavaouvir.

“Desculpe-nos”, disse um deles, de óculos, tirando a foligem do rosto,revelando a pele branca e enrugadapor baixo. “Somosmineradores, nãoqueríamosassustar-te.Estásperdido?”

“Mineradores. Simples mineradores anões”, pensou, aliviado, ao vernelesumoásisdesanidade.

“Não...eumoro...eumoroaquiperto!”respondeu.“Desculpai-me.Équeestafloresta...”

“É assusta... assusta... atchim!”, um dos anões assoava o nariz.“Assustadora.Masficatranquilo,nãohánadadeanormalnela.”

“Podes nos acompanhar se quiseres!”, disse um outro de falamacia eumtantoafeminada.

“Estás maluco!”, gritou o outro, rispidamente. “Não seremos babá deninguém!Alémdomais,elepodemuitobemserumladrãoatrásdenossaspedraspreciosas!”,prosseguiu,rangendoosdentes.

“Não, eu... só estava descansando um pouco. Já vou-me embora”,disfarçou.

“Então,tudobem!Vamos,rapazes!”disseolíderdogrupo.“Precisamosdescansar,foiumlongodia.Boasorte!”

Antesdepartir,oanãovirou-seefezumaúltimapergunta:

“Apropósito,sabesseporaquiháalgumacasaparavender?Moramos

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nacidadeegostaríamosdeficarmaispertodenossamina.”

“Nãofalesobreamina!”,cochicouooutroanãomaisenervado.

Ohomemapenasbalançouacabeçanegativamente,eoanãoagradeceumostrando os dentes podres. Ao ver os sete homenzinhos zarparem,assobiando uma canção antiga, o pai se deu conta de que “os outros”tinhamenfim,umaexplicaçãológica.

“Talvez minha mente estivesse me pregando peças”, re letiu,imaginando que as horripilantes experiências dos últimos dias nãopassassemdealucinação.

O raciocínio lhe deu certo alento, e a pesada respiração aos poucos seacalmou.

Adormeceu.

***

Quando abriu os olhos novamente, estranhou o amontoado de lenhaqueimadaea fogueiraextintadiantedesi.Levantou-sedesobressaltoaoperceber que não fora ali que adormecera. Pois ele conheciamuito bemaquelelugar.

Sentiu uma presença atrás de si, uma respiração ofegante e asmática,seguidadeumatossegutural.

“Cooooooooof,cof,cof!”

Instintivamente,virouopescoçoderelanceeteveumabrevevisãoquejogou sua alma num abismo. Seu rosto se contorceu num choroaterrorizado,enãotevecoragemdeolharnovamente.Saiucorrendo,comonuncanavida,epassouaouvirsussurrosdecriançasvindosde todososlados, rindo e debochando dele em idiomas profanos. No chão, as folhassecasseremexiamcomosepésinvisíveisdançassemsobreelas,pequenaspedras lhe eram arremessadas nas costas e um cheiro de leite azedotomouoar,sobrecarregandodehorrorseuscincosentidos.

Semteroquefazer,semterondeseesconder,omiserávelgolpeavaosgalhos e arbustos com o machado enquanto corria, praguejandomonossílabos. Mas agora, mesmo com seus gritos histéricos, os animaispareciam não se assustar - os coelhos não fugiam, os esquilos buscavamnozes e os corvos apenas o acompanharam comos olhos. Nada tinham atemer–poissabiamqueaquelehomemjáestavamorto.

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Quando o corpo não suportava mais tanto esforço, ele simplesmenterolounochão,virou-sedecostasecomeçouagolpearoarcomchutestalqual uma criança birrenta. Ao perceber que não estava atingindo aninguém,girouomachadocomtudoe,numurrogutural,arremessou-oàscegas,numaúltima tentativade fazer calaraqueles sussurrosmalditos.Aarmarodopiounoar,numsibiloferozquefindounumsomsecoeabrupto.

Ossonsfinalmentesilenciaram.

“Perdoai-me”, ele chorou. “Perdoai-me”, repetiu com os lábioscontorcidos, expulsando o ar de dentro de si. “Me perdoem por tê-losabandonadona loresta...”aotentarselembrarosnomesdos ilhos,deu-secontadequeosespaçosemsuamenteestavamembranco.NuncamaiselediriaBlanchette,ouJoão,ouMaria.

Ergueuopescoço,procurandoomachadoencrustadonaárvore,enadaencontrou.

Entãoescutououtrobarulhoseco.

TUC!

E outro, e mais outro, numa sinfonia enlouquecedora, composta pelosgritosdoventoeporaquelabatidainfernal:

TUC-TUC!TUC-TUC-TUC!

Olhou a seu redor e deparou-se com dezenas de galhos de árvoresamarradosporcordassendogolpeadospelovento, formandoumperfeitocírculoemvoltadesi.

Eossussurrosvoltaram,primeirobaixinhos,depoisgritosinfernaisqueoxingavamehumilhavam,zombandodeseustraumas,berrando-lheseuspecados.Aalmaqueriafugirdali,masocorpojáhaviadesistido.Fincouasunhas no chão, arrastando-se por cem, duzentos metros durante longosminutosemqueatéaluzdosoloabandonara,deixando-oàmercêdanoiteedeseusinquisitoresinvisíveis.

A escuridão revelou uma trilha formada por pequenos seixos brancosno chão, que resplandeciam à luz da lua. E lá no im da trilha, viu umresquíciodeesperança–acasinhanomeiodonadaondemoravacomosilhoseaesposa.Elesorriualiviado,eseguiua trilha,porondecaminhouduranteincontáveisdias.

Masacasapareciacadavezmaislonge.Mesmoquandoquisparar,não

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pôde, as pernas se moviam sozinhas, e o levaram para além do rio dasdoresedoinfortúnioconhecidocomoAqueronte.Lá,obarqueiroCharonoolhou de cima a baixo e não permitiu que subisse a bordo de seu barco,pois nem as portas do inferno lhe seriam abertas. O homem continuouandando, vendo a casa no horizonte, sem poder descansar, os pés logoviraramumapastadepuseinfecçãoe,quandoacarnefoicompletamenteconsumida pelos vermes, os ossos continuaram andando sozinhos, seesfarelandopoucoapouco,debaixoparacima,atéquesobrasseapenasaalma penada do pai que por três vezes recusou a maior das dádivasenviadapelocéu,condenadoabuscar,atéosdiasdehoje,ocaminhoparacasa.

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OsTrêsLobinhos

Existe uma lenda, que toda mãe loba conta a seus ilhotes,sobre uma época em que os lobos reinavam soberanos pela Terra.Predadores poderosos que eram, mantinham os outros animais sob umrígido controle, guardavam os tesouros da natureza e reportavam-sediretamenteaninguémsenãoosprópriosdeuses.

Porém,umdia,sobainjustaacusaçãodequeestavamcrescendoforadocontrole e devorando toda a Criação, os celestes proibiram os lobos decomeremosoutrosanimais,emespecial,aquelesmaisfracos,sempresasederarainteligência,comoosporcoseoshumanos.Todoloboqueviolassealeiestariacondenadoamorrerdemaneiradivinamentedolorosa.

Temendo o castigo, os lobos obedeceram, e seu glorioso tempo foisucedido por uma era de fome e comiseração em que praticamentedesapareceram. Para sobreviver, muitos se tornaram fracos e pequenos,sombrasinfantilizadasdagrandezadeoutrora,eforamchamadosdecães.Outros tiveram seu espírito partido e, em meio à fome, passaram a sealimentarderestosputrefatosqueoutrospredadoresdeixavamparatrás.Estesforamchamadosdehienas,quenãoriamderegozijo,esimporqueodesesperoseavizinhaàhisteria.

Enquanto isso, para a revolta dos lobos, os porcos e os humanoscresciam, engordavam, construíam casas, cidades, pontes, fornicavam einfestavamomundocomnadaalémdesujeiraedevassidão.

Danumerosapopulaçãodelobos,restouapenasumpunhadodebestasraquíticas e famintas, reclusas na loresta, aguardando o dia em que aarbitrariedadedosdeuseslheslibertaria,enfim,dofardodeviver.

Masnem todo lobohavia se conformado. Indignadosde tantover seusparentes de inharem até a morte, três pequenos e corajosos irmãosresolveramserebelarcontraalei.

O primeiro quis comer a carne de um porco, que fugiu e se escondeunumacasaintransponívelcomoumaobsessão.Doladodedentro,oporcoeseus irmãosgordosepreguiçosos caçoavamdoesfomeado lobinho,quetentou entrar pela chaminé, mas caiu dentro de um caldeirão cheio de

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azeite fervente.Morreu em agonia, virado numa grandemassa de pele ecarnecobertadebolhas.

O segundo atacou uma criança humana que caminhava sozinha pelaloresta.Logodepoisdedevorá-la,opobreteveabarrigaabertaporoutrohumano,quedelatirouamenina,aquemosdeusescertamentesorriram,poissaíravivaeinteira.Enquantoolobinho,pobrelobinho,agonizouatéamortesóporquetiverafome.

Oterceiroeraomais fracodetodos,masodestinodeseus irmãosnãolheassustara.Pelocontrário,deu-lheaindamais forçasparaenfrentarosdeuses. Perto de si, ele ouviu a voz aguda de um ilhote de humanos,gritando: “O lobo, o lobo!”. Achou que havia sido avistado e se escondeuatrás de uma moita. Logo em seguida, uma multidão de gordos veiosocorreromenino,quecaiunagargalhada,poissóqueriapregar-lhesumapeça.

Olobinhosentiudesprezoporaquelavisão,quepormaisduasocasiõesse repetiu. Desprovido de honra e respeito, qualidades inerentes a todolobodesdequenasce,omeninodebochavadoshumanosmaisvelhos,quequeriam apenas protegê-lo. Mas protegê-lo de quê? Os lobos estavampraticamenteextintos,enquantoaquelaraçapeladaeignoranteestupravaa natureza, mijava nos rios, assassinava animais e se espalhava pelomundocomopulgassobreumcadávernafloresta.

Pelaquartavez,eleouviuomeninogritar: “O lobo,o lobo!”.Mas fartosdaquelabrincadeira,oshumanosnãoseimportaram.Espreitandoatrásdesuamoita, o pequeno lobo espumou de raiva. Ainda que soubesse que ocastigoeracerto,nãotevedúvidas:saltoudiretosobreopeitodomenino,mordeu-lhe a jugular, e não apenas o devorou, mas o fez com raiva eorgulho.

Instantesdepois,aoversomenteapoçadesangueeossosabaixodesi,rosnouparaocéuaguardandopeladerradeiradesgraçaeuivou:“Eu izoque iz porque tinha fome, e de nada me arrependo! Disseram-nos queestávamos destruindo a Criação,mas emminha barriga jaz o verdadeiroculpado! Jogai-me um raio, mandai o dilúvio, rompei a terra sob minhaspatas, castigai-me com essa ilusão que chamais de justiça, mas a vós,“deuses”, cuja sabedoria extinguiu meu povo, eu repito: de nada mearrependo!”.

O bravo lobinho aguardou o castigo de olhos fechados.Mas não veio oraio,nemodilúvio,tampoucoaterrasepartiudebaixodesi.

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Ao invésdeamaldiçoado,o lobinhosedescobriurecobertodebênçãos.Talvez os deuses concordassem com ele, e os humanos, aomenos algunsdeles, nãomerecessem regalias especiais. Sentiu a carnemacia derreterem seu estômago enquanto revigorava-lhe os músculos, sentiu a línguaquebradiça se refrescar no sangue quente e doce, cujo sabor seharmonizavacomoutroqueseespalhavaporsuaboca:odopecado.

Finalmente o lobinho descobriu como salvar seu povo. Voltou para atoca correndoe ensinou seuspais e irmãos a se espreitarpelas sombrasdasmatase lorestas,depoisvilasecidades,quartosedebaixodascamas,farejandoo cheiro acredamentira e do cinismo, quediferenciamos quepodemsercomidosdoscadavezmaisrarosprotegidospelosdeuses.

Acomidados lobosnovamente icou fartaeelesvoltaramaprosperar.Nãodamaneiragrandiosadeoutrora,poisissolevatempo.“Eenquantoasareias do tempo caem”, todamãe loba conta aos ilhotes, “aos poucos seesgota a era dos homens, soterrados pelos próprios vícios, enquantoressurgeoverdadeirocaminho:ocaminhodoslobos.”

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AVendedoradeFósforoseoVingador

Umanovaerade trevas havia abatera-se sobre aquele reino. Ofriosecocongelararios,queimaraplantaçõeseafastaraosanimais.Afomeatingirapraticamentetodos,quemerarico, icarapobreequemerapobrejámorrerahámuitotempo.

Ante os resmungos esfomeados dos ilhos, tornou-se mais do querotineiro que pais igualmente esfomeados os abandonassem na lorestaparaabreviarseusofrimento.Oscasossetornaramtãofrequentesque,sefossem punidos, os calabouços do castelo transbordariam de corposesqueléticos e de culpa. Por isso, o rei resolveu fazer vista grossa aoverdadeiroinfanticídioqueseabateusobreseusdomínios.

Porém, em alguns casos, parece que os deuses ou espíritos seadiantaram quanto ao castigo dos homens. Todo pai e todamãe ouviramfalar da casa na loresta que icou abandonada durantemuitos emuitosanos até ser adquirida pormineradores anões, que foram corajosos - outolos - o bastante para comprar comuma lasca de pedra preciosa a casaquemuitosjulgavamsermaldita.Nela,umcasaldecriançasviviacomopaieamadrastae,apósserabandonadona loresta,voltouparaassombrá-losdasmaneirasmaishorripilantes.

Outrahistóriaquecontamésobreumsegundocasalqueabandonouosilhos anos depois, desta vez, sete, com idades entre 7 e 10 anos, nocoraçãoda loresta.Acuriosacontagemdá-seaofatodeque,dentretodos,somenteosétimonãotinhagêmeos.Osmeninosnuncamais foramvistos,masospaisreportarampesadeloshorríveiseacontecimentosbizarrosemsuacasa,comoportassebatendosemventoeobjetoscomocoposebulesse movendo sozinhos. Os pais fugiram da casa, depois do reino, foramparar em lugares a muitas léguas de distância até no topo de umamontanha, mas, onde quer que fossem, eram sempre assombrados porumavoz cavernosaqueos visitava todas asnoites.Não se sabeoque foifeitodeles,masérazoávelpensarque tenhamseatiradodopenhascodasanidade,semesperançadevoltar.

Ashistóriaspassaramaganharforçaentreosquetinham ilhos-aideia

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de abandoná-los passou a ser aindamais assustadora do quemorrer defome.Oúltimocasodequesetemnotíciafoidetodosomaisapavoranteeaomenos serviu para sepultar de vez, pelo bemoupelomal, a hediondapráticanaquelereino.

Eraoúltimodiadoano,masasfamíliaspoucotinhamacomemorar,eospróximosdozemesesprometiamseraindamaiscruéis.Aceiaseresumiaarestosdepãoenviadospelorei,easpessoastentavamseaqueceremsuascasascompalhaoutraposvelhos.

Ninguém em sã consciência sairia no frio daquela noite, muito menosenviariaaúnicafilha.Masfoiexatamenteissoqueaquelepaifez:

“Só vais voltar para casa depois de vender todos esses fósforos! Seapareceres aqui sem dinheiro, vais levar uma surra que vai doer até aoutravida!”,berrou,exalandoseubafoalcoólicopeloar.

A pobre menininha saiu de casa aos prantos, com roupas velhas eesburacadas que em nada a protegiam do frio cortante. Em seus pés,calçava um par de chinelos velhos que pertenciam à avó, mas eram tãograndesquea izeramtropeçareen iaracarananeve.Resolveuguardaroschinelosnoaventaleospéslogomudaramdecor,primeiroazul,depoisroxo.

Odiainteiropassouenadadapobremeninavenderumfósforosequer.Faminta,tremendodefrio,eraaprópriaimagemdamisériasearrastando.Queriavoltarparacasaque,apesardetãogeladaquantoarua,aomenostinhaparedesqueaprotegeriamdasafiadaslâminasdevento.

Agachou-se e encolheu-se sobre as duas pernas, mas o contato com ochãosófezofrioaumentar.Comasmãosquasedormentes,teveaideiadeacenderumfósforoparaseaquecer.Certamenteopai icariafurioso,maso desespero naquela hora era maior que o medo. Pegou um palito e oriscou contra a parede, produzindo uma pequena chama quente que lheencheu de esperanças. Protegeu a chama como se ela fosse um anjoenviado pelos deuses, mas ela logo se extinguiu, deixando apenas umpedaço de madeira gelada em seus dedos. Riscou outro e, nos brevessegundos em que a chama dançou, imaginou-se aquecida, comendo umdeliciosogansoassado,preparadopelaavó,numanoitedeano-novo.Aboavelhinha ainda montara uma formosa árvore de natal, repleta de doces,maçãs e ameixas. Quando estava pronta para lhe dar um presente hámuitodesejado,umabonecadeporcelana,achamaseextinguiu.

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Apequenavendedorade fósforosmorreuali, comumsorrisono rostoque icoucongeladono tempo.O corpo foi encontradonoprimeirodiadoano.Aspessoas,jáavizinhadascomatragédia,poucoseabalaram.Quandosoubedanotícia,opai sequerdeu importânciae só foi se livrardocorpoporquequeriapegardevoltaseusfósforos.

Aovasculharoaventaldafilhamorta,encontrouacaixa,vazia.

***

No dia seguinte, ao insistir em abrir sua pequena venda naquelestemposdeescassez,umvelhocomercianterecebeuumasenhoratrazendoumpunhadodemoedas.Queria comprar fósforos, alegandoque todosospalitosdesuacasahaviamsumido.

“Que absurdo!”, comentou o vendedor. “Nesta época de miséria, aspessoasroubaremumasàsoutras!”

Ele vasculhava asmercadorias numa prateleira, em busca da caixa defósforos que provavelmente seria a única venda do dia. Encontrou o queprocurava,masviuqueelaestavamaislevedoqueodecostume.

“Vazia?”

Pegououtra,depoisoutracaixa,eemnenhumahaviaumúnicofósforo.

“Osfósforos...foramroubados!”

Portodaacidade,ofenômenoserepetiu.Inexplicavelmente,osfósforosdetodasascasasdesapareceram,comomágica,sim,masumtipodiferentede ilusão, que não se importava emdeixar vestígios: se os fósforos eramescondidos numa gaveta, ela era encontrada aberta à chave, vazia. Seestavamdentrodeumsaco,eleeradeixadoparatrás.Umamulherrelatouque,ao tentarriscarumpalito,ele foiarrancadodesuamãoporalgo tãovelozqueelasequerpôdever.Apavorada, jogouospalitosparaoareseescondeue,aovoltar, todoshaviamsumido.Outracriançaa irmoudepésjuntosque viraum fósforo se levantar e sair tranquilamenteporta afora.Mas nemmesmo as pessoas dementemais aberta puderam dar créditoàqueletestemunhoabsurdo.

E foi assimdurante vários dias, até quemais nenhum fósforo pudesseserencontradonacidade.Ofrioeodesesperoseagravaram,masnacasadaquelehomem,quejánãotinhanadaepoucoseimportavacomamorte

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dafilhaháumasemana,tudopermanecianormal.

Comofazia todasasnoites,opaidapequenavendedorade fósforos foise deitar, embriagado, debaixo de alguns trapos. Tão logo o fez, os ratosquedividiamacasacomelesaíramàspressas,assimcomoasbaratas.E,conforme eles deixavam o local em busca de segurança, outro tipo devisitantesentrava.

Noiteadentro,umaum,ospalitoseramjogadospelasfrestasda janelaou por debaixo da porta, numa evolução lenta mas constante, formandopequenas dunas de fósforos pelo chão da casa. Um ninho de pólvora emadeiraseformouaoredordohomemdeitado.Eleabriuabocaesentiuonarizcoçarquandodoispalitos foramcuidadosamentecolocadosemsuasnarinas,comacabeçaparafora.

Amanhã já se aproximava quando, embalado nomais profundo sono,elesaltoudacama,comosbraçoseaspernastremendo,aoouvirumavozgraveecavernosaquefeztremerasfinasparedesdemadeira:

“DESGRAÇADO,TUAFILHAESTAVAACORDADAQUANDOMORREU!”

Desnorteado,ohomemdemoroualgunssegundosaentenderporqueoarentravacomdi iculdadeemsuasnarinas.Tocouosfósforosen iadosemseunariz,mas,antesquepudessetirá-los,umfósforoacesosaltounoareespalhousuachamapelabarba.

“NÃOTERÁSOPRIVILÉGIODEMORREREMTEUSONO!”,gritouavoz.

Naquele instante, o fósforo aceso caiu e uma onda de luz, fogo e caloriluminouacasadohomem,queviuainevitabilidadedamortenosmilharese milhares de fósforos que explodiam no chão, nas paredes e no teto,consumindovorazmenteamadeira,suasroupasesuapele.

Os vizinhos logo viram o incêndio e, tentando conter a tragédia, foramparaafrentedacasaenelajogarambaldesepásdeneve.Osgritosforamouvidospor todaa rua e logoumamultidãohavia se acumuladono local,fosseparaajudar,paraseaquecerou,emseuâmago,aplaudira tragédiaalheia.

Foi quando a porta da casa arrebentou numa explosão, seguida pelaatormentadoraimagemdohomempegandofogo,balançandoosbraçosnoar em desespero, tentando inutilmente se livrar das chamas que seagarravam a ele como demônios e só foram extintas depois que omiserávelrolounochão,derretendoaneve,deixandoumatrilhadevapor

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até se chocar contra uma árvore, parando com o rosto carbonizado edisformeparacima.

Mas,pormaisperturbadoraquefosseaquela imagem,elaumdiaseriaesquecida, ou ao menos diluída frente às memórias, tragédias evicissitudes da vida. Já o que aconteceu a seguir, icaria gravado parasemprenamentedospresentes,comoumaviolência,umacicatriz,queasassombrariapelosanosdoporvirebalizariacadaumdeseusatosfuturos.Uma voz monstruosa, que parecia vinda das profundezas do inferno,misturada aos vapores d’água exalados pelo corpo carbonizado e ao somdaschamasqueaindadançavamnacasa,gritou:

“ISSOÉOQUEACONTECEÀQUELESQUEABANDONAMSEUSFILHOS!”

A histeria tomou conta dos pensamentos de cada um dos presentes.Ninguémmais se importou com o que acontecia ali. Alguns fugiram parasuas casas, outros subiram em árvores, alguns até se jogaram no riocongelado. A quantidade de testemunhas era tamanha que não restoudúvidassobreaveracidadedahistória,eassimseespalhoualendadequeas crianças daquele reino eram vigiadas por um fantasma invisível, umespíritovingadore,apartirdaqueledia,maisnenhumafoiabandonada.

O corpo carbonizado do pai permaneceu no mesmo lugar durantemeses,atéqueoinverno inalmentepassasseeelepudessesedecomporeserdevoradopor vermese animais.Ninguém teve coragemde tocá-lo. Jáno lugar onde foi encontrada a pequena vendedora de fósforos, umaestátuafoierguida.

***

Mesesdepoisdatragédia,voltouàcidadeesentou-seaospésdaestátuadavendedorade fósforos.Ali sentia confortoepazdeespírito.Pois sabiaque,aomenosnaquelereino,ninguémmaismaltratariaumacriança,comoseuspaishaviamfeitoconsigoeseusseisirmãos.

Olhouparaostranseuntes,quecaminhavampelaruamirandoaestátuade rabode olho, com respeito e umapontadademedo, especialmente osinfelizes que testemunharam o grito naquela noite. Ele olhava para eles,elesolhavamdevolta,eofatodequenãopodiamenxergá-lolhedavaumasaborosasensaçãodepoder,quecompensava,emmuito,aslimitaçõesqueavidalheimpusera.

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Riudosapelidosqueganhouapartirdaquelanoite.

Nãoeraumespírito,tampoucoinvisível.

Era apenas pequeno como um polegar. Com a sensação de devercumprido,calçousuasbotasepartiu,seteléguasacadapasso,paralongedaquelelugarmaldito.

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CindehellaeoSapatinhoInfernal

Eraumavez um rico e brilhantemédico que precisou criar sualinda ilha, Cindehella, após a trágica morte da esposa. Sentindo-se hámuito sozinho, ele contraiu matrimônio com uma esganada megera cujopassado sempre fora uma incógnita – incluindo as circunstâncias quelevaramàperdade seu olhodireito. Ela era daquelas quenãopartilhamsequerumpãovelho, e tinha aindaduas ilhasmimadas,mal-educadas efeiosas:GriseldaeAnastácia.

Comamortedomédico,emumepisódioquenuncafoibemesclarecido,amegera tomoupossede todaa sua riqueza, epassoua criarCindehellajunto de suas ilhas. Mas ao contrário delas, que recebiam mil mimos epresentes, Cindehella era tratada como se fosse menos que um serhumano.Dormianosótão,eraobrigadaacomerrestoseacuidardacasaedasirmãs.Nosdiasfrios,nemmesmoaschamaseramcompartilhadascomela, que só podia se aquecer sentando-se em meio às cinzas da lareiradepois que o fogo se apagava. Por isso, acabou ganhando o maldosoapelidode“gataborralheira”.

“Gataborralheira,fazasopa,lavaalouça,passaaroupa!”,gritavauma.

“Maisdepressa!”,berravaaoutra.

“Cindehella!”,continuavaamadrasta.

Pobre Cindehella. Em seu sótão apertado, atravessado pelas vigas demadeira que sustentavam o telhado, sofria com in iltrações de água esequertinhaumajanela.Suaúnicacompanhiaeramcamundongos,queelacostumava alimentar em segredo, e uma pequena coleção de livros.Naquela época, livros eram muito, muito caros, e os dez manuais demedicinaqueopaihavia lhedeixadovaliamosu icienteparaseadquirirumapequenacasa.

Com aqueles livros, Cindehella se interessou pelo corpo humano, seushumores, seus luidos e como eles eram in luenciados pelos quatroelementos quando combinados em elixires. Vaidosa como toda jovem,aprendeuporcontaprópriaamisturaringredientescomosebodeanimais,

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raízesefolhasparacriarloçõesquedeixavamseucabelobrilhanteepelesedosa. Assim, crescia cada dia mais bela, mesmo quando confrontadapelasvicissitudesqueavidalheimpunha.

A verdade é que, tivesse tido a oportunidade, e se esta fosse umahistória feliz, Cindehella poderia ter seguido os passos do pai, ou seaventuradonodesconhecidocampodaalquimia,eassimcontribuídoparaoavançodaciência.

Masestanãoéumahistóriafeliz.

***

Cindehella trabalhava como uma escrava, em dias que se repetiamtediosamente e esmagavam seus sonhos, enquanto via a madrasta e asilhascorroeremtodaa riquezadeixadapelopai.Empoucosanos, tudooquetinhamfoireduzidoàcasaondemoravam.E,mesmobatendoàportadamiséria, aorgulhosamadrastamantinhaapompa, comprando tudodobomedomelhorparaasfilhas,cadavezmaismimadas.

Quando todo o dinheiro se acabou, ela tomouda enteada os dez livrosdeixadospelomaridoeresolveuvendê-los.Cindehella,quejamaishaviasequeixadoquandoasjoias,osmóveiseasroupasseforam,tentoudissuadiramegera:

“Por favor,madrasta,nãovendeos livros! Sãoaúltimacoisaque restademeupai!”

“Oras,mastuésmuitomal-agradecidamesmo!Depoisdetudooque izparatesustentardurantetodosessesanos!Agora,vaivarrerochão,estácheiodepó!Malcriada!”

Assim, a madrasta vendeu os livros por uma polpuda quantia, quepoderiamantê-lasbemalimentadasporanos.Porém,aoinvésdecomprarcomida, ela preferiu ir a uma loja e comprar presentes: um colar depérolas para Griselda e um luxuosíssimo vestido para Anastácia. Voltoupara casa feliz da vida e logo entregou os mimos para as ilhas, queterminavam de jantar na cozinha enquanto, no banheiro, Cindehellarecolhiaosdejetosdosbaldesparajogá-losnorio.

Aoverseunovocolardepérolas,Griseldadisse,chupandoobagaçodeumalaranja:

“É horrível! Um lixo! Não vou usar de jeito nenhum, ele não combina

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comnenhumademinhasroupas!”

“Masfilhinha...eugasteimetadedodinheiroquetínhamoscomele!”

“Eoque izestecomaoutrametade?”perguntouAnastácia,palitandoosdentescomaespinhadeumpeixe.

“Veja,compreiestelindovestidoparati!”

“Mamãe, ele não combina com nenhuma das minhas joias! Jamaispoderiausá-lo!”

Cindehella escutou a tudo aquilo com o coração partido. Chorando deraiva, derrubou os baldes com o conteúdo dos penicos no chão dobanheiro.Amãeeas ilhasseassustaramcomobarulho,ejásedirigiramaela,praguejando:

“Suagataborralheira,oquefizeste?Suaburra!”,gritouGriselda.

“Comopodessertãonojentaerepugnante?”perguntouAnastácia.

“Limpa toda essa sujeira imediatamente!”, ordenou a madrasta. “Ouicarássemcomidaportrêsdias!”,ameaçou,referindo-setãosomenteaosrestosdebolo,pãoeleitequeCindehellapodiacomer.

Apobrerespiroufundo,pegouumrodoepôs-sealimparasujeira.

***

Foram horas até que Cindehella limpasse toda a sujeira do chão dobanheiro.Mas o cheiro que impregnou amadeira das paredes ainda lhecausava náuseas. Ela sabia que precisava fazer algo, do contrário,certamenteteriaqueescutarberroslogoqueacordasse.

Lembrou-se entãode um livro que lera, com recomendações para queos médicos pudessem se livrar do eventual cheiro de defuntos em suasroupas. Foi até a cozinha e misturou bagaço de laranja e limõesespremidoscomágua,queusouparaconcluirseuserviço.

“Sabia que aqueles livros seriam úteis um dia!”, riu, recuperando umpoucoobomhumor.

Jápassavadameia-noitequandoobanheiroestava inalmente limpoecom um agradável aroma cítrico. As pernas lhe doíam, e tudo o que elaqueriaeradormiremseusótão.

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“Não teesqueçasdearrumara cozinha!”, gritouamadrasta, fazendoalimpezadaórbitavaziadoolhoperdidoemseuquarto.

Semsequeixar,Cindehellavoltouàcozinha,ondeumapilhade louçaaesperava.Foiquandoviuqueospresentesdadospelamadrastaàs ilhasaindajaziamsobreamesa.

“Comopodemsertãomimadas?Estespresentescustaramoquerestouda fortuna de meu pai!”, lamentou, enquanto lágrimas de indignaçãovoltavamavisitarsuasbochechas.

Tãologoterminouoserviço,pegouocolareovestidoeosguardounumbaú em seu sótão. Esperava que ao menos pudesse revendê-los pararecompraroslivrosdopai.

***

Umdia,amadrastacaolhasoubequeoreifariaumbaileparaencontraruma esposa para seu ilho. E ali viu uma oportunidade para retomar osdiasderiqueza:

“Griselda,Anastácia,soubestesdaboanova?Oreiorganizaráumbaile,ondeopríncipeescolheráamoçacomquem irásecasar!Todasnoreinoestãoconvidadas!”

“Mamãe,euqueroir!Euquero!”,disseramjuntas.

“Poisasduasirão!Etenhocertezadequeopríncipeseencantarácomaomenosuma!Ou,quemsabe,ambas?”,riuamadrasta.

AimagemqueseprojetounamentedeCindehellalhecausouasco.

“Mal posso esperarpara conhecer o castelo!”, comentou, deslumbrada,Griselda.

FoientãoqueCindehellasedeucontadequepoucasvezesdurantesuasofridavidaelahaviaidoatéocentrodacidade,ondeficavaocastelo:

“Madrasta... se eu terminar os meus afazeres, será que eu tambémpoderiairaobaile?”

“Tu?Nobaile?”,caçoouGriselda.“Maltrapilhadestejeito?”

“Nuncadeixariamqueentrasses!”,riuAnastácia.

“Cindehella, não seja ridícula. Teu lugar é aqui, limpando a casa. Vai

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procuraroquefazer,antesqueeuarrume!”,ameaçouamadrasta.

ApobreCindehellanadahaviafeitopararecebertamanhodesaforodamadrasta e das ilhas. Tentava em vão compreender que crime teriacometidoparasercondenadaatãoseverapena,semimaginarquearazãopara seu sofrimento aparecia diante de si toda vez que se olhava noespelho.

Averdadeéqueamadrastatinhainveja.

PoiselasabiaqueCindehellaeradetodasamaisbela.

***

Durante dias, Cindehella ouvia a excitação de Griselda e Anastácia emrelação ao baile. Por um instante, chegou a temer que elas procurassempelocolarepelovestidoescondidosemseubaú,mas,mimadasqueeram,sequerderamfaltadospresentes.

“O que achas que deverei fazer quando for princesa?”, perguntouGriselda.

“Há! Só podes estar brincando! Eu serei princesa! Eu!”, resmungouAnastácia.

“Tunemsabesoquefazumaprincesa!”,retrucouairmã.

“Etu?Sabes?”

Enquantoesfregavaochão,Cindehellasefezomesmoquestionamento.Certamente,avidadeumaprincesaseriamuitodiferentedasua.

“Princesastêmpoder!”,especulouGriselda.

“Edinheiro!Muitodinheiro!”, interrompeuamadrasta. “Épor issoqueumadevósduasterásquesecasarcomopríncipe!Paraquetenhamosdevoltatodanossariqueza...emuitomais!”

“Emuitomais!”,riramasfilhas,inescrupulosascomoamãe.

“Princesastêmdinheiro...”repetiuCindehella,mentalmente.“Apostoqueprincesas podem ter os livros que quiserem... e estudar tudo aquilo quedesejarem!Seaomenoseupudesseiraobaile...seaomenostivesseumachance,umaúnicachance...”

***

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Uma das tarefas domésticas mais ultrajantes para Cindehella era terqueajudarGriseldaeAnastáciaabanharseuscorpos lácidosecheiosdefurúnculos.Tinhaque lhes esfregar as costas,procurar lêndeasepiolhosatémesmocortarasunhaseapararosbigodes.Maselapreferiafazerissoapartilharcomasirmãsosmiraculososelixiresquecriava,quedeixavamseuscabelostãosedososesuapeletãomacia.

“Esta água estámuito fria, Cindehella!”, queixou-seGriselda, durante obanho,nodiadobailereal.

“Eaminhaestámuitoquente!”,completouAnastácia.

Emvão,Cindehellatentoutrocaraságuasdosbaldesdasirmãs:

“Não sejas preguiçosa! Vai já esquentar a minha água e esfriar a deAnastácia!Oras!”,resmungouGriselda.

“Como quiseres, Griselda... como quiseres!”, respondeu Cindehella, jásaindocombaldesdemadeira.

Logoqueeladeixouobanheiro,Griseldaperguntou:

“Comopodeumagataborralheiracomoela ter cabelos tãobonitos?Osmeusestãosemprequebradiços,ensebadosecobertosporcaspa!”

“Tens sorte, pois basta usares um chapéu para disfarçar!”, comentouAnastácia. “Já eu, nada posso fazer para ocultar estas espinhas e estespêlosqueinsistememcresceremmeurosto!Argh!”

Depois do banho, Cindehella ainda as ajudou a se vestir, quandoGriseldalhecomentou:

“Sabes, Cindehella, pensando bem, acho que tu deverias ir ao baileconosco...”

Apobrelogocaiunaqueleembuste:

“Éverdade?Etufalariascomtuamãe,Griselda?”

“Mas é claro... a inal de contas, certamente precisarei de alguém paralimparabostadoscavalosdeminhacarruagem!”

“Ha,ha,ha!”,riuAnastácia.

AvontadequeCindehella tevenaquelahora foideperfuraro tímpanodeGriselda comapresilha feitadeossoque tinha emmãos.Visualizouo

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objeto penetrar o crânio e derrubar um delicioso io de sangue sobre opescoço. Imaginou-se retirando-o para, em seguida, en iá-lo no olho dairmã.

Mas Cindehella era uma boa alma. Calmamente, usou a presilha paraprenderoscabelosdelademaneiraimpecável.

“Maisalgumacoisa,Griselda?Anastácia?”

“Não,podeirproteusótãozinho,gataborralheira”,respondeuGriselda.

“Gatabostadeira,vocêquerdizer,nãoé?”,riuAnastácia.

“Ha,ha,ha!Essafoiboa,“gatabostadeira”.

A gata bost... borralheira simplesmente deu as costas e saiu, passandopelamadrasta,quenãosepreocupouemconteroriso.

“Vaisficaraquisozinha,enquantovamosaobaile!”,riramasduas.

“Vamosmeninas! A carruagem está nos esperando!”, convocou amãe.“Estaseráumanoiteparaselembrar!”

Elanãofaziaideia.

***

Cindehellaouviu,dosótão,acarruagemchegarpara levaras irmãseamadrasta para o baile. Desceu as velhas escadas de madeira e olhou,escondidaatrásdacortina,astrêssendorecebidaspelococheiro.

AcarruagemlogopartiueCindehellafoiparaoladodeforadacasa.Aomenos, com as três fora, tinha um pouco de paz. Sentou-se no quintal epôs-seachorar.

“Eu queria tanto... queria tanto ir ao baile... não é justo! Eu fariaqualquercoisapara...”

“Poisdissesteaspalavrascertas,meubem!”,disseumavoz,cujadireçãoelanãosoubeindicar.

Aquelavoz lhefezsentirumterrívelcalafrio.Olhouparaos lados,paradentrodacasa,enadaencontrou.

“Quemestásaí?”

“Sópossoaparecerseassimordenares...”,respondeuavoz.

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“Poiseuordenoqueapareças!”, respondeuCindehella, sem imaginaroerroquecometia.

Tão logoterminoua frase,olhouparao ladoealiviuuma iguraocultapelassombras,comdoispontosbrilhantesquepareciamserolhos.

“Aaaah!”,gritouCindehella.

“Calma, meu bem... não vou te fazer mal!”, respondeu a igura,caminhandoemdireçãoaCindehella,erevelando-sesernadamaisdoqueuma assustadora senhorinha apoiada numa bengala. Sua corcunda adeixavaaindamaisbaixa,apeleeracobertade rugaseenegrecidapelosanos,onarizpontudocomoobicodeumtucanoeosdedoslongose inoscomoasraízesdeumaárvore.Vestiaaindaummantovermelho,porcimadeimundostraposremendados.

“Estouaquiparaajudar-te”,disseasenhorinha. “Tenhocertezadequeconhecesalenda...”

Cindehellaestavaassustada,masselembroudashistóriasqueopailhecontavaparadormirquandoaindaeracriança.Ingenuamente,perguntou:

“Serápossível...quesejasminhafada-madrinha?”

“Eutenhomuitosnomes”,respondeuasenhorinha.

“Eviesteaquiparameajudar?”

“Sim,meubem!Vimaquipararealizartodososteussonhos!Diz-me...oquegostariasqueeufizesse?”

“Eu... eu gostaria muito de ir ao baile hoje à noite. Mas não posso irmaltrapilhaassim...”

“Maséclaro,meubem...tuafadamaldi...madrinhaestáaquiparaisso!”

Com uma lexibilidade atípica para uma senhora daquela idade, a ditafadaseabaixoue,usandosuabengala,traçouumcírculoperfeitonochãoem volta de si. Depois, saltou para fora e acrescentou alguns riscos nocentro, que logo se uniram numa estrela, e pediu que Cindehella pisassesobreosímboloformado.Elaobedeceu,quandoafadaenfimdisse:

“Primeiro, precisarás de um coche! Aquela abóbora podre ali há deservir!”e,comumsimplesgesto, fezcomqueumaabóbora jáapodrecidanochãosetransformassenumaelegantecarruagemdourada.

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“Minhanossa!Issoéincrível!”,disseCindehella,admirada.

“Enãoétudo!Precisastambémdecavalos...ealguémparaguiar-teatéo baile!”. Apontando novamente a bengala, localizou cinco camundongosmortosháalgumashoras,presosemarmadilhas.Quatrodelessetornaramelegantesgaranhõescomdentesbrilhantesealinhadose,oquinto, tomouformahumanaeganhoutrajesdecocheiro.

“E...porúltimo...”apontouabengalaparaaprópriaCindehella.Debaixode si, o círculo com a estrela no centro brilhou, antes de magicamentetransformar os trapos que vestia num maravilhoso vestido. O dorsoacentuavaseufartobustoeeraincrustadocompedraspreciosas.Asaiadeiníssimos iosdeprataedetalhesdeouroparecia tervidaprópria,eeraincrivelmenteleve,comosefossefeitadenuvem.

“É... é lindo! Muito, muito obrigada!” Cindehella estava radiante,observando cada detalhe do vestido, tão perfeito que sequer podia verondeestavamascosturas.Esticouapernaparaafrenteeviuquecalçavabelíssimos sapatinhos de cristal, tão confortáveis e de medidas tãoperfeitasquepareciamtersidomoldadosapartirdeseusprópriospés.

“Sãodeslumbrantes!”

“Agora, vai..” disse a fada,numavozestranhamentegrave.Pigarreouecorrigiu-senumtomirritantementeagudo:“Vai,meubem.Étarde,obaileaespera!”

O cocheiro a tomou pelamão e a ajudou a entrar. Cindehella, que nãocabiaemsidetantaalegria,sentou-senoaveludadobancodacarruagem,balançando as pernas de excitação. O veículo começou a se mover, elaacenou para a fada do lado de fora, cujas palavras foram abafadas pelotrotardoscavalos:

“Às doze badaladas, a magia cessará, e eu virei cobrar meu favor!”,concluiuafada,antesdedesaparecernassombras.

“Obrigada. Muito obrigada!”, concordava Cindehella, sem nada terentendido.Estavafelizdemaisparapensarcomclareza.Emseuestômago,sentiacomoseummilhãodeinsetospeçonhentosestivessemvoando.

***

No castelo, a cerimônia para a escolha da nova princesa já haviacomeçado. O rei observava o ilho que, sentado ao trono, desdenhava da

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imensa ilademoçasbemvestidas a sua frente.Elas lheeramoferecidascomo pedaços de carne num banquete: moças brancas, moças negras,moças amarelas, moças quentes, moças frias, moças cheirosas, moçascarecas,moçascabeludas.Aúnicareaçãodopríncipeerataparosbocejoscomapontadosdedos.Eopobrerei começouasentiraquele temorquetodopai tempelo ilho aomenosumavezna vida: o deque estenão lhedarianetos.

LogochegouacarruagemdeCindehella, impressionandoatémesmoosguardas.Ococheiroabriuaportaeestendeuamãoparaajudaramoçaasair do veículo. Ela desceu e observou, estupefata, a belíssima escada decristalquelevavaaocastelo.Emseusdegrausreluzentes,jovensrejeitadaspelopríncipeeramconsoladaspelasmães,antesdeseremenxotadascomomendigaspelosguardasreais.Malsabiamelasqueaqueleeraseudiadesorte.

Cindehellasubiuosdegrauscorrendo:

“Mal posso esperar para conhecer o príncipe!” – saltitava habilmentenosfiníssimossaltosdossapatinhos.

Não só o rei,mas todos os presentes, homens emulheres, sentiram-seatraídosimediatamentepelobrilhodajovemqueadentrouocastelo.

“Queméaquelamoça?”-perguntouoreiaogrão-duque.

“Nuncaaviantes,majestade!Maispareceumsonho!”

Cindehella olhava, deslumbrada, para as paredes de cristal quesustentavamoteto.Esteerarepletodeadornosdeouro,queemolduravammomentos sagrados ilustrados por pintores imortais. O tapete em quepisava era tão macio que se fazia sentir através de seus sapatinhos decristal. Garçons, melhor vestidos do que muitos dos convidados, serviambebidastãocarasquantoaslágrimasdosanjoscelestes.

Foi então que Cindehella ouviu seu estômago se queixar da fome,pressionado pelo justíssimo vestido.Haviamuitas horas desde que izerasuaúltimarefeição:umquebradiçopedaçodeboloseco.Nemprecisouerguer a mão: foi logo rodeada por quatro garçons, oferecendo-lhebandejascobertaspordocesqueerampequenasrelíquias.

Lembrou-se das aulas de etiqueta de Griselda e Anastácia que elaaproveitavaparaassistirenquanto limpavaacasa.Mesmo faminta,pegousóumapequenapéroladechocolateenvoltaempétalasderosas.Provoue

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achoubemsemgraça,quandoen imolhounadireçãodotronoeviu,pelaprimeiravez,opríncipe.Tãobeloe tãomásculo, tinhaapelemassageadapelosconfortosdavidaeoscabelostãoarrumadosquepareciamtersidopenteadosumaum.

“Céus...eleétãobonito!”,admirou-seCindehella.

Era como se o ar entre os dois tivesse se convertido em eletricidade,capaz de reduzir todas as concorrentes de Cindehella a corposhorrivelmente carbonizados. Do alto, o rei arregalou os olhos, antes debaternapalmadamãodogrão-duquecomasuaprópria.

TãologopôsseusolhossobCindehella,opríncipese levantou.GriseldaeAnastáciacomentaramcomamãe:

“Queméela,mamãe?Deondeelavem?Éaprincesadealgumreino?”

“Nãosei...maselameparecefamiliar”,comentouamadrasta, intrigada,incapazdereconheceraenteadacomroupastãoelegantes.

O ilhodoreicaminhouatéCindehella.Asmãosdelatremiamdeemoçãoquando ele gentilmente tocou a direita. Naquele momento congelado notempo, o mundo inteiro silenciou. Todos no baile, besti icados,testemunharam a inevitabilidade daquele amor, tão certeiro e sonoroquantooencontrodeumcorvomortocomochão.

Dançaram uma valsa suave, tocada por um pianista até pouco tempodesconhecido, contratado pelo rei especialmente para aquela ocasião.Olhavam-se com a ternura de velhos adúlteros, bailavam como sehouvessem ensaiado aqueles passos pormeses a io. Não trocaram umaúnicapalavra.Nemonomedelaopríncipeperguntou–obrilhonosolhoseraoidiomanoqualeledeclamouqueadesejava,eela,pudica,consentiu,antes de se entregar ardentemente àquela inebriante paixão e a trocarprimeiro jurasdeamoredepois,nomessujos, tapas,gemidosesussurrosque se derramaram num grito extasiado clamando por deuses há muitoesquecidos.

Opianistatocouosúltimosacordesdavalsa,queenterraramdevezasesperanças de todas as outras moças do baile. Muitas já reconheciam aderrota, como as irmãs Griselda e Anastácia, que ainda tentaram levardocesparacasa,masforamrepreendidasporumpigarrodogarçom.

Chegou então omomento comque Cindehella há tanto sonhava e peloqual tudo daria. O príncipe tocou levemente seu queixo e o ergueu. Ela

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fechouosolhosesentiuoslábiossetocarem,ganharemvidaecomeçaremsua própria dança. Os braços de Cindehella amoleceram, seu corpo icoumaisleveeseuespíritoergueuvoo.

E,então,orelógiosoouaprimeirabadaladadameia-noite.

Aofinaldadécima-segunda,nãohaveriamaislugarnoinferno.

***

Começoucomumasensaçãocapilarqueopríncipesentiuemsuaboca.Deolhosfechados,eleachouquefosseum iodecabeloseenroscandonatransbordantedançadaslínguas.Abriuosolhoseafastouorosto,quandoviuapequenapatadaaranhaseprojetarparaforadabocadeCindehella.

Semcontrole sobreopróprio corpo, a jovemse ajoelhou comoqueixoerguido e a boca aberta, dando livre acesso a uma nuvem preta dearanhas,pulgasevarejeirasquesaiudedentrodesi.Famintos,osinsetossaltavam em direção aos convidados, devorando suas peles, olhos emúsculosemfraçõesdesegundos.

Do ladodefora,oscavalos,ococheiroeaprópriacarruagemsofreramtransformações ainda mais assombrosas. As patas dos cavalos seincendiaram com um fogo azul e gelado, de suas costas, surgiram asaslamejantese,desuaboca,caninosa iados.Pisoteavam,edilaceravamcomosdentesosconvidadosquetentavamfugir.Ococheiroperdeusuaformaereta e elegante, tornando-se um ser corcunda de pele ensebada, quesaltounasentranhasdeumadesesperadaGriseldaquesaíracorrendodosalão.

Elelhearrancouosintestinoscomosefossemcomidanumadespensae,desvairado, girou-os no ar. Sangue e excremento voaram nos olhos deAnastácia, que continuou gritandomesmo depois de ter sido cortada emduaspartespelaasaflamejantedeumdoscavalos.

A carruagem imediatamente apodrecera, tornando-se uma gigantescamassa preta de vermes que semoviamdemaneira tão ordenada quantoum cardume de sardinhas. A massa asquerosa saltou para um lado,passando através de um bloco de dez pessoas em direção ao castelo,deixandoapenasoesqueletocarbonizadoemseucaminho.

Dentro do salão, o pianista puxou com as mãos as próprias orelhas,arrancando todaapeledorostocomoamembranadeuma linguiçacrua.Emcarneviva, ele riahistericamenteenquantobatia comviolênciae sem

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nenhumcritérionasteclasdemarfim.

Apenasseisbadaladashaviamsoadoatéentão.

***

Os vermes, os cavalos e o cocheiro maldito adentraram o salão, ondeterminaram de matar ou mutilar a maioria dos presentes. Não haviaracionalidade alguma em seus atos nem propósito na matança. Giravam,davamcoices,cuspiamfogoemijavamácidoemquemestivesseporperto.

Domezanino,opaidopríncipeobservavaparalisadoàóperadehorroremqueseubailehaviasetransformado.Farejandoseumedo,umanuvemde insetos saltou em sua direção e ele puxou o grão-duque, usando seucorpo como escudo. Ouviu o grito de dor do pobre servo, que teve osori ícios e poros invadidos por pulgas até explodir em uma massa desangue que encharcou o rei. Achou que ao menos sobreviveria e, sementender a razão, viu que o piso do andar térreo se aproximavarapidamente. Espatifou-se sem sequer perceber que seu corpo foracortadoaomeiopelasasasdeumdoscavalos.

Nosalãoabaixo,alâminadesanguenochãojácobriaosdedosdopédopríncipe. O cocheiro avançou para cima dele em direção ao pescoço. Eleergueu os braços para inutilmente se proteger, e então soou a décima-segundabadalada.

Oherdeirodo tronoabriuosolhos,querendoacordardeumpesadelo.Para sua surpresa, não viu nenhuma besta. Sumiram de repente, mas ocheiro de sangue e gordura humana comprovavam que o pesadelo forareal. Os corpos se amontoavam no chão, os sobreviventes, incluindo oprópriopríncipeeamadrasta,teriammedodefecharosolhos-ouoolho,nocasodela-paraorestodesuasvidasmiseráveis.

Àfrentedopríncipe,Cindehella,aindadejoelhos,fecharaaboca.Abriuos olhos, acordando do transe, e sequer conseguiu reagir à apoteóticasanguinolência que a cercava e impregnava seu vestido. Instintivamente,saltouparaolado,quandoopríncipesedirigiuaelatentandoagarrarseupescoço:

“Bruxa!”gritouorapaz,antesdeescorregarnosangueecair,enchendoabocadehemoglobinaaindaquente.

***

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Semnenhuma lembrança do que ocorrera durante as doze badaladas,Cindehella se levantou e correu em direção à porta. Sentiu o peso dovestido, agora encharcado de sangue, atrasá-la. Continuou sua fugaenquanto rasgava suas roupas, guiada pelo nojo e o instinto desobrevivência.Aosairdosalão, estavacompletamentenua, àexceçãodospés.Desceuasescadascomopríncipeensandecidoatrásdesi.

“Eleestápossuídopelodemônio!”,pensou.Nãopodiaestarmaiserrada.Procurou sua carruagem, seus cavalos, mas tudo o que viu foramesqueletos carbonizados e corpos mutilados, como uma Griselda sem asentranhasemetadedocorpodeAnastácia.

“Aaaah!”,berrou,empânico.Masnãopodiaparar.Opríncipevinhalogoatrás,gritandoparaospoucosguardasquehaviamsobrevivido.

Os sapatinhos de salto alto tornavam di ícil correr, mas ela não podiaperder tempo. Então, saltando sobre o pé esquerdo, jogou o direito paratráseagarrouocalcanharcomamãoparaarrancarocalçado.Conseguiu,masperdeuoequilíbrioerolouosdegrausatéochãoarenosologoabaixo.

Ergueu-se sem demora. Estava exausta, mas os anos de trabalhodoméstico haviam tornado seu corpo resistente. No rosto, no pescoço esobreosseios,osuorescorriacravandosulcosnosanguequejácoagulava.Jogou-senomeiodasárvores,sentindoamadeiraeasfolhasarranharemsuapele,edeláseembrenhounomato.

***

Trajando apenas o sapatinho no pé esquerdo, Cindehella fugia pelaloresta. Quando seus músculos já gritavam de agonia, ela teve que seesconder atrás de uma moita para recuperar o fôlego. E ali, no frio damadrugada, escondida de tudo e de todos, ela inalmente se permitiuchorar.

“Oque... oqueaconteceu?Euestavadançando tão feliz comopríncipequandoorelógio...”

Tentandose lembrardoocorrido,elareviveuemsuamenteasúltimashorasantesdobaile.Oencontrocomafada,odesenhonochão,amágica,eaquelaspalavrasditasquandoelajáestavanacarruagem.Lembrou-sedequetinhaalgoavercommeia-noite...eumpreçoaserpago.

“Minhanossa...seráqueaculpa...aculpafoiminha?”

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Adúvidaperfurou seu coração. Teria sido ela a responsável pelomaishorrendo e imperdoável dos crimes? Ao menos, pensou ter um álibiperfeito – ninguém tinha motivos para descon iar que ela, uma simplesserviçal, havia ido ao baile. Lembrou-se então do sapatinho que haviadeixadoparatrásetirouoqueaindavestiaparajogá-loraivosamentenumrioquealipassava.

“Setivealgoavercomisso,ninguémjamaissaberá!Ninguém!”

Entrou na água para lavar o sangue do corpo. Para manter asaparências,resolveuvoltarparaacasadamadrasta,esgueirando-sepelosbecos escuros e pelas ruas desertas. Foi vista por um ou outro cidadão,que,seestavaàruanaquelahora,boagentenãodeviaser.

Tão logo chegou em casa, subiu as escadas em direção ao sótão. Nasparedes, os retratos das falecidas Griselda e Anastácia pareciam olharparaela.Trancou-seeusoutoalhasvelhaspara limparosanguegrudadoemseuscabeloslouros.

Enfiouacabeçanovelhotravesseiro,gritandopelafada:

“Oquefoiquetufizeste?!Oquefoiquetufizeste?”

Nãohouveresposta.Fechouosolhosegritou,tentandoexpurgaraquelanoite da existência. Era impossível dormir. Mas o corpo simplesmentedesligou.

***

Cindehellatentou ingirnaturalidadequando,poucashorasantesdosolnascer,amadrastavoltouparacasa,sozinha.Apósalgunsminutosouvindoo choro lamurioso, resolveu descer e perguntar cinicamente o que haviaacontecido.

“Oh, Cindehella, o horror... o horror! Minhas ilhas... minhas tão belasfilhas...”

A madrasta não conseguia terminar uma única frase. Cindehella lhetrouxe um copo d’água e descobriu en im o que havia ocorrido duranteseu transe. A megera lhe contou, com riqueza de detalhes, tudo sobre amisteriosa moça que apareceu no baile e cativou o príncipe, antes detransformar o baile num abominável pandemônio. Todas aquelasrevelaçõesiamaospoucoslherevivendoasmemórias,comoumsonhoqueé lembrado durante o dia. Nem mais precisou ingir espanto. Pôs-se a

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chorar junto à madrinha, num misto de culpa e medo, quando foisurpreendidaporpalavrasquejamaisesperavaouvir:

“Cindehella... minha menina... eu te tratei mal a vida inteira. Agora, éstudooquemeresta”,disseamadrasta,antesdeabraçá-la.

Eamegera,quenuncahavialheditoumapalavradeternura,tevequese contentar comseu colo após a repentinaperdadasduas ilhas. Comamadrasta em seus braços, Cindehella tentava ignorar o sentimento desatisfaçãoqueaospoucosafloravaemseupeito.

***

Maiscalma,amadrastalhecontouque,segundoaspoucastestemunhasque haviam sobrevivido, ninguém sabia a identidade da bela jovem quelevaraamorteparadentrodocastelo.

“Enãohánenhumapistaqueleveatéela?”,perguntouCindehella.

“Somenteumsapatinhodecristal,quecaiunaescadaria...”, lamentouamadrasta.

Aoouvir aquelaspalavras, a gataborralheira respirou aliviadapor terselivradodaúnicaprovaqueaincriminaria.Agoratinhacerteza:levariaosegredoparaomundodosmortos.

“Vamos... temosmuitooquefazer”,convocouamadrasta,subindoparaoquartodas ilhas.Precisavacoletarroupaseobjetospessoaisqueseriamcremadosnapiracoletivadasvítimasdaquelafatídicanoite.

Cindehella a seguiu e icou parada na porta, observando o choro damadrasta se intercalar com risos de saudade. Numa ternura que poucasvezesexibira,amegeracheiravaroupasquelogoseencharcavamcomaslágrimas:

“Este vestidinho eu comprei pra Anastácia! Paguei uma fortuna e elanuncausou!”, riu,mostrandoapeça. “EstechapeuzinhoGriseldausouemsuaprimeiramissa!”

Eassimiarevivendoainfânciaeajuventudedasfilhas.

“Cindehella, viste o colar azul de Griselda? Aquele, que compreirecentemente,juntoaovestidodeAnastácia.”

“Sim,madrasta.Voubuscá-los,estão...nalavanderia”,disfarçou.

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Subiu as escadas atéo sótão e encarounovamenteoolhar reprovadornos retratos de Griselda e Anastácia. Riu por dentro e mostrou-lhes alíngua,poissabiaquenãohavianadaqueasfalecidaspoderiamfazer.

Abriuseubaúembuscadocolaredovestidoquehaviaescondido.Masteve uma visão que a fez saltar para trás: lá estava, nomeio das roupassurradas, sobreo vestidodeAnastácia e enrolado ao colardeGriselda, opéesquerdodomalditosapatinhodecristal.Alémdasmanchasdesangueseco,tinhaágualamacentaelododorio.

“Nãoépossível!”

Doquartodasirmãs,amadrastachamavaporela:

“Cindehella,achasteocolareovestido?”

“Hã... sim, madrasta! Já estou indo!”, disse, pegando as peças dasfalecidas. Precisava se livrar do sapatinho,mas lá não havia sequer umajanela.Chutou-oparabaixodacama,elerodopiouebateunaparede.

“Jáestouindo!”

***

Uma enorme pira foi montada em frente ao castelo, onde foramqueimadosospedaçosdecorposvarridosdochãoouatémesmoraspadosdas paredes do salão. A madrasta estava inconsolável nos braços deCindehella,quesóderelancepôdeveropríncipenajanela.

Nocastelo,o ilhodoreiseguravaosapatinhodecristal,relembrandoopesadelo da noite anterior. Lembrou-se do pobre pai, cujo corpo forapartidoaomeioporumdosdemônios.

“Vou encontrar a responsável por toda essa desgraça, meu pai! Euprometo!”

Prontamente, convocou a guarda real e seus guerreiros maiscondecorados,aquemdeuordensexpressas:

“Todas as estradas icarão fechadas até segunda ordem. Depois dofuneral, os soldados deverão acompanhar as mulheres até suas casas emontarguardaemsuasportas.Então,vósvisitareisas casas,umaauma,experimentando o sapatinho de cristal em todas as mulheres, velhas ounovas, ricas ou pobres, vivas ou mortas, até que a dona dele sejaencontrada!”

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A ordem se espalhou pelo reino como o fogo numa cabeleira. Ossoldados acompanharam as mulheres até suas casas, de onde foramproibidas de sair. Barricadas foram montadas nas estradas, cachorros eadivinhosforamcolocadosaserviçodopríncipe.

Estivessenaquelereino,adonadosapatinhoseriaencontrada.

***

Cindehella e a madrasta foram acompanhadas até sua casa por umsoldadoque,tãologoentraram,montouguardanaporta.

“Mas isso é um absurdo!”, resmungou a megera. Nem me deixaramchorarporminhasfilhas!Nãopodemnosmanterprisioneiras!”

ApreocupaçãodeCindehellaiamuitoalémdesualiberdade.Sabiaque,seo sapatinhodecristal fosse colocadoemseupé, ela seria condenadaàfogueiranomesmoinstante.

“Hámuitooquefazernacasa...vouvoltaraminhastarefas.”

“Cindehella, és tão trabalhadora. Nem mesmo neste momento de lutoinfinitodeixasdefazerteusafazeres.”

“Não faço mais do que minha obrigação, madrasta... é o mínimo quepossofazerdepoisdagrandeperdaquetiveste.”

Amegera, amaciada pelo luto, arrependeu-se de sua atitude quanto aCindehella:

“Porfavor...nãomechamesmaisassim.Apartirdehoje...queroquemechamesdemamãe.”

“Comoquiseres...mamãe!”,disseCindehella,abraçandoacaolha.

Derelance,olhoupela janela.Naesquinadesuarua,viuumabarreirasendomontada. Olhou para o outro lado, e o serviço já estava pronto. E,algumascasasàfrente,viuossoldadosbateremnaporta:

“Abre!Sãoordensdopríncipe!”

Nãohaviacomofugirdali.Sequisessesobreviver,precisariaselivrardeseupé inoedelicado.Pensou,pensouepensou,atéqueselembroudeumcapítulonumdoslivrosdopai.

“Vai descansar, mamãe. Eu vou preparar algo para comeres”, disse,

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tocandoosombrosdamadrasta.

“Obrigada,Cindehella.Filha”

Tão logo amegera foi se deitar, Cindehella foi correndo à cozinha. Lá,pegou:

Umacolher

Umcopocheiod’água

Umpotedesal

Umafrigideira

Umagarrafadeconhaque

Umcutelo

Voltouparaseusótãoelásentou-sesobreospés.Olhouparaopoteemsuamãoedeuinícioaseudesesperadoplano.

Encheuacolhercomosale,sempensarduasvezes,levou-aàboca,queprontamente reagiu àquele ultraje despejando largas quantidades desaliva que se mesclaram à substância, formando uma asquerosa pastabrancaqueescorreupelocantodaboca.Oslábiosealínguacomeçaramaarder,eos inosgrãospassaramporentreosdenteschegandoaarranharagengivaefazê-laagonizarcomtamanhainsanidade.

Com o rosto se retorcendo, ela engoliu tudo, espalhando aquelasensação horrível garganta abaixo. Resistiu bravamente a ingerir a águadocopo.Eantesquepudessesearrepender, repetiupormaisumavezoinsuportávelprocesso.

Emumquartodehora,osguardaschegariam.

***

Minutos após amacabra ingestão, a língua e os lábios ardiam como semarcados a ferro em brasa. A saliva ainda lhe descia insuportavelmentesalgada, quando ela sentiu uma explosiva vontade de urinar. Mascontorceu as pernas, prendeu a respiração e tensionou os músculos doabdome, tentando aliviar a massacrante tensão em sua bexiga. Elaprecisariaretertodoolíquidoquepudessesequisessesobreviveràquelanoite.

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Os rins, inchados, irradiaram sua agonia pelas costas. O coraçãocomeçou a palpitar, a respiração a icar di ícil. Ela podia sentir, em seurosto,naspontasdosdedos,nospéspressionadosdebaixodesi,ocorposeinchando, sobrecarregado com tanto sódio, a lito por expeli-lo pela urinaqueperigosamentecomeçavaacontaminarseusistemacirculatório.

Se pudesse enxergar através dos próprios órgãos, ela teria visto osvasos da bexiga se racharem com tanta pressão. A agonia beirava oinsuportável.Dofundodesuamente,oinstintodesobrevivência,quetantohaviasidotestadonasúltimashoras,tentoucomoderradeiraalternativasedisfarçar de argumento lógico: o de que, se liberasse somente parte daurina, a tensão na bexiga seria parcialmente aliviada. E, ouvindo aqueleargumentosemsentido,Cindehellaaliviou-sealimesmo,sentadasobreosprópriospés.Primeirofoiumleveesguicho,queobviamentenãopodiasercontroladoeprecedeuumdilúvioquenteeacrequeseespalhoupelochãoesubiuporsuasroupas.

Enxugou-seomelhorquepodiaeen im,tomouaágua,quealivioupartedesuaagonizantesede.Então,pegouafrigideira,oconhaqueeocutelo.

Ossoldadosjádeixavamacasadovizinho.

***

“Madame, comoéde vosso conhecimento...” disse o soldado à portadacasadamadrasta,acompanhadodemaisdois,–“...algoterrívelsesucedeunanoitedeontem.”

“Sim, eu soube, nobre soldado. Tive duas enormes perdas, minhasqueridas Griselda e Anastácia. Espero que encontrem logo a responsávelporessaterrívelatrocidade!”

“Estamos nos esforçando para isso, madame. E contamos com vossacolaboração.Podei,porgentileza,experimentarestesapatinhodecristal?”

Cindehella calmamente se sentou e levantou a saia. Tentou calçar osapatinho,maselemalpassavapelosseusdedosinchados.

“Não serve. Partamos para a próxima casa!”, ordenou o soldado.“Obrigadoporvossainestimávelajuda,madame!”

“Nãohádequê.”

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Ossoldadossepreparavamparasair,quandoCindehellaobservou:

“Esperemumminuto...”

“Sim,madame?”

“Observandobemesse sapatinho... oh,minhanossa! Eu acho... eu achoqueseidequemé!”

Ossoldadoslogoarregalaramosolhos.

“Por aqui!”, disse Cindehella, levando-os para o quarto da madrasta,gesticulandoparaquefizessemsilêncio.

Ao adentraremno aposento, os soldados viram amegera desacordadasobreacama,comooutropardosapatinhodecristalemseupéesquerdo.

“Ela chegou ontem à noite, toda ensanguentada” disse, exibindo asmanchasdesanguesobreastoalhas.“Mandouqueeulimpassetudoenãodissessenadaaninguéme,desdeentão,estádesacordada.Morridemedo,masgraçasaoscéus,vocêsestãoaqui!”

“É ela! É ela! A dona do sapatinho! Prendam-na!”, gritou o soldado,ensandecido.

Os soldados levaram a madrasta, desacordada, para a carruagem doladodefora.Aoveracena,osvizinhospassaramagritar,acendertochaseperseguiroveículo,clamandoporjustiça:

“A caolhaé amoçadobaile!A caolhaé amoçadobaile!Queimem-na!Queimem-naviva!”

***

Cindehellaviuosguardas levaremamadrastacomumasatisfaçãoquejamaistiveranavida.Atrásdesi,osvizinhosjáateavamfogonacasa,quequeimariacomasprovasdeseucrime:afrigideirausadaparanocautearamegera,ocuteloutilizadoparadecepardoisdeseusdedoseumpedaçodocalcanhar,eoconhaqueusadoparaesterilizaroferimento.

Tão logo recuperou a consciência, a madrasta contou uma história naqual o enfurecido príncipe jamais acreditaria. Sem que pudesseargumentar,foiqueimadavivanafrentedetodososcidadãosquehaviamperdidoalguémnafatídicanoitedobaile.

JáCindehella,livrepelaprimeiraveznavida,passouabatalharporsua

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sobrevivêncianasruas.Passouacometerpequenosfurtos,amendigarporcomida e, vez por outra, a trabalhar de casa em casa como faxineira eserviçal. Levou muitos e muitos anos até que teve dinheiro o su icienteparareadquiriroslivrosdopai,epreferiufazê-loemvezdecomprarumacasa.

Com eles, desvendou outros segredos do corpo humano. E tornou-seainda mais faminta pelo conhecimento. Estudou alquimia, astrologia, atéque um dia descobriu as artes ocultas. Quando se deu conta, os anos jáhaviamlevadosuabeleza.Oscabelosseesbranquiçarameapelesecobriude verrugas comoum tronco úmido cheio de cogumelos. E, àquela alturada vida, depois de tanta desgraça emiséria, a sanidade passou a ser umfardo incômodo que sua corcunda não podia mais carregar. Mesmomorandodebaixodaponte,elasabiaqueumdiavoltariaaserdetodasamaisbela.

Danoitemaismágicadesuavida,guardouapenasaúnicapalavraditapelopríncipe:

“Bruxa”.

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Aconfissão

Tardedanoite.Tempo, dinheiro e prestígio eram coisas que aquele velho tinha em

abundância. Graças a seus feitos, era respeitado por todo o reino, dafamília real aos mais humildes lenhadores. Durante os longos meses deinverno que massacraram aquela terra, sua casa era uma das únicas areceber queijos, frutos e aves frescas enviadas pelo governo. Qualquercoisaquequisesseobterali,desdeumsimplespedaçodepãoàsterrasdoprópriorei,jáseviaquitadapelagratidãoquetodoslhedeviam.

Mesmosendotãoafortunado,ovelhosesentiaaindamaisvaziodoquenostemposdepobrezaemaismiseráveldoqueosvendedoresdefósforosquemorriamdefriopelasruas.Pois,desdequeperderaoúnico ilho,suavida se transformara numa tediosa espera por notícias que jamaischegavam,oupelofim,oqueviesseprimeiro.

Quisodestinoenviá-losemcomitiva.

O velho ouviu batidas vindas do andar térreo. Pegou sua antigalamparinapara iluminaro caminho,desceueabriuaportaparaoxerife,quedissesemcerimônia:

“Senhor...creioqueoencontramos!”

Omaltratadocoraçãodovelhodisparou.Elearrumouosóculosnorosto,franziuatestaeperguntou:

“Comosabeisqueéele?”

“Fizemos o que mandaste. Apenas seguimos a trilha de sangue, atéencontrarmosumapobreviúva,cujomaridoforaassassinado.Apartirdorelato da desamparada mulher, pudemos encontrar o suspeito, e ele seentregousemamenorresistência.Contudo...”

“Contudooquê?”

“...háalgoquenãoencaixanahistória.Pois,alémdestecrimehorrendo,

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eleaindaconfessououtro,semsequertersidoquestionado.Simplesmentedesatouafalar,demaneirasádica,satisfeita,atéprazerosa.Certamentetelembrasdapobremeninadoscachinhosdourados...”

“Claro”, respondeu o velho, lamentando-se. “A pobrezinha que foidevoradaporursos!”

“Pois bem, segundo o... hã, suspeito, não se tratou de um simplesacidente,masdeumaaçãopremeditada!”

Ovelho,queamavacrianças,tirouosóculoseesfregouosolhos.

“Céus!”

“Infelizmente,meurelatonãoacabaaqui.Osuspeitoa irmaaindaestarligado a diversos outros crimes, especialmente fraudes, como a dos setegigantessupostamenteassassinados.Mas,em todosmeusanosdepolícia,achodi ícil crerqueumúnicoserhumano,que temnomáximo19ou20anos, tenha sido capazde acumular tamanho currículo deperversidades,pormaisendemoniadoqueseja!”

“Tunãooconheces,caroxerife!Nãosabesoqueelefezcomigonemdoqueécapaz!”,disseovelho,pegandoseucasacoeseuchapéu.“Vamosatélá,tenhocontasaajustar!”

Oxerifelevouovelhoatéocalabouço,ondeospiorestiposencontradosnoreinoeramaprisionados.Assassinos,charlatõeseadoradoresdodiabodividiam seus claustros com baratas, ratazanas e sócios corruptos,aguardandoaexecuçãoempraçapúblicaquetantoapeteciaoscidadãos.

Cadapassoporaquelescorredoresabafadoseúmidoseraumatorturapara o velho. Mas sem sombra de dúvida ele preferia icar preso ali aencarar o que veria a seguir. Dentro de um claustro, amarrado a umacadeira estava um rapazmagro, de tezmorena como um pinheiro, olhosazuisecabeloslisosenegros,encharcadospelosuorquelhecaíasobreosolhos.

“Euassumodaqui,xerife.Vaidescansar”,ordenouovelho.

“Porfavor,lembra-tedonossoacordo!”,pediuoxerife,tirandodobolsoumenormemolhodechaves.Abriuasgradesdoclaustroeovelhoentrou,acompanhado por dois guardas. Virou-se e fez sinal para que saíssemtambém.Elesolharamparaochefeembuscadeaprovação,edeixaramoanciãoasóscomosuspeito.

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Olhou para o rapaz amarrado diante de si. Durante váriosminutos, asgoteiras e a respiração eramosúnicos sonsque se ouvia.As lembrançasdosdias felizesao ladodo ilho inundaramsuamente,maseleconteveaslágrimas,prendendoarespiração.Esfregandoamãonatesta,disse:

“Oquehouvecommeufilho?”

Nenhumaresposta.

Acadapalavra,ovelhoelevavaotomdevoz:

“Oquehouvecommeufilho!?”

Nada.

Ovelhopercebeuqueerainútilgritar.

“Quediabosestástentandofazer?”

O rapaz jogou a cabeça para trás,mas estava apenas tentando tirar afranjamolhadadesuordafrentedosolhos.Tornouabaixaroqueixo.

“Tu não vais escapar desta vez. Finalmente vais responder por todastuasfraudesecrimes.”

Silêncio.

“Opobregigante.Eleerameuamigo.Etusubistenumpédefeijãoatéacasadele,sóparamatá-lo?”

Orapazjogouacabeçaparatrás,encarouovelhoefinalmentedisse:

“Sim! Mas, antes disso, resolvi roubar todo o ouro que o desgraçadopossuía!”. Elemal cabia em si. “Depois roubei sua galinha que botava osovosdeouro.Precisodizeroqueeufizcomela?”

“Maldito, a galinha era um presente dos céus para os homens, quepoderiapôr imà fomequeháanosassolanosso reino!Oque tuamentedeturpadafez?Tuaabristequerendoosovos?”

“Abrir? Mas é claro que não! Desde quando me importo com ouro?Primeiro, eu quebrei-lhe o pescoço, e deleitei-me ao vê-la girardesesperadameteno chão ao redor dopróprio eixo.Depois, en iei-a numburacoe,emseguida,ateeifogo,hahaha!”

“Ateoufogo?Queespéciedeserhumanoéstu?”

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“Oras,tubemsabesarespostaparaessapergunta!”

A fúria do velho estava prestes a transbordar. Ele sentia seu coraçãopalpitando,obraçoformigando,sabiaqueuminfartoseaproximava,mas,no fundodeseuser,elenãose importavamais.Viveroumorrernaquelanoiteeraindiferente.

“Eameninadoscachinhosdourados?Tambémfostetu?”

“Não. Aomenos, não exatamente. Quemmatou a intrometida foram osursos. Eu apenas disse a ela o que encontraria na casa: três pratos demingau,trêscadeiras, trêscamaseninguémparaimportuná-la.Quandoapirralhaentrou,eusóalerteiosursosqueelaestavalá,ha,ha,ha!”

“Eaamigadela?”

“Ah, a do capuz vermelho?Menininha irritante. Nãome admira que opaidelatenhadeixado-asozinhanafloresta!”

“Oquefizestecomela?”

“Eu?Eunão iznada.Masnadapossodizerpeloloboqueseguiuminhadica,ha,ha,ha!”

“Miserável, comopodes rir de uma situação dessas? Será possível quenãotenscoração!?”

“Ha, ha, ha”, gargalhou o rapaz, histericamente. “Logo TU vens meperguntarisso?”

Mais do que a con issão dos crimes, aquelas palavras izeram o velhoinalmenteperderocontrole.Cerrouopunhodireitoedesferiuumgolpenorostodosuspeito,queurroucuspindosangueedentes.

Do corredor, os guardas se prepararam para entrar, mas foramimpedidospeloxerife.

“Issoéentreeles!”,censurou.

O velho desferiu outro golpe, depois mais outro e mais outro, até setornarem incontáveis como as lágrimas que inalmente se libertaram edesceramfuriosamenteporseurosto.

“Tuqueriaschamarminhaatenção?”

“Naverdade,sim,euquer...”

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“Poisconseguiste!Conseguiste!Miserável!Maníaco!Assassino!”,berrouovelho,massacrandoorapaz.

Por mais que o esmurrasse repetidamente, o velho sentia como seestivessenumsonho,enenhumdossocossaíacomaforçaquere letiaseuperturbado estado de espírito. E, pior, nada era capaz de tirar o sorrisocínicodosuspeito,queomantinhamesmodepoisdeperderosdentesdafrente.

Sem se importar com o que fora acordado com o xerife, de que nãomataria o suspeito, o velho agarrou-opelas cordas e empurrou com tudoparaolado,emcimadeumapoça.Emseguida,chutou-lheoestômagoeoviuagonizarembuscadeoxigênioenquantoaáguasujaespirravaemsuaboca.

“Desgraçado!Porquefazesisso?Porquê?PORQUÊ?!”

Então,osuspeitodisseaspalavrasqueecoariamnamentedovelhoatésuamorte:

“PORQUEEUTEODEIO!”

Tão logo ele as pronunciou, seu sorriso cínico desapareceu e eledesabouachorar.Aslágrimasqueescorriamdeseusolhosazuisnãoeramderemorso,poisissoeraalgoquenãosentiadesdeodiaemqueperderaogrilodesuaconsciência.Eramlágrimasdederrota,envergonhadaspelonarizquecresciaemseurostoejáatingiaquaseumpalmo.Dentretantascon issõeshorripilanteseverdadeiras,elecontouaúnicamentiradaquelanoite,amaiormentiraqueumfilhopoderiacontaraopai.

O velho Gepeto deixou o claustro, consternado. Agradeceu ao xerife epediuqueseassegurassedequeosuspeitojamaisdeixariaaquelelocal.

Voltouasuaoficina.Foiencontradomortonodiaseguinte.

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BelaIncorrupta

RobertPhillipsWest, estudante de medicina na mitológicauniversidadedeMiskatonic,nuncaaceitaraofatodequeamorteéoúnicodesfecho possível no livro dos homens. Filho de um rico construtor deferrovias, desde pequeno desenvolveu ummórbido interesse pelamortequeassustaraospaiseinevitavelmenteolevouaestudarocorpohumano.Entrou na universidade, onde realizou experimentos abomináveis comcadáveres, baseados em sua crença de que o corpo humano funciona talqualumamáquinaeque,munidodaspeçasedoscombustíveisadequados,elepoderiaprolongarindefinidamenteoperíododavida.

Os experimentos do jovem deixaram boquiabertos os professores dauniversidade, com resultados inquestionávels em cadáveres, tais quaisespasmos e até mesmo olhos se abrindo, após a injeção de um luidomiraculoso de sua invenção. Mas os anos de 1900 ainda não estavampreparados para tamanho salto na ciência, ameaçado pela crença dealguns cientistas e, principalmente, da Igreja, de que o corpo reanimadoera desprovido do faz-de-conta conhecido como alma. Assim, osexperimentos de West foram interrompidos, seu acesso aos cadáveresproibido e, en im, sua matrícula na conceituada universidade cancelada.Contudo,apurgaçãodomundoacadêmicojamaisseriaumimpeditivoparao obcecadoWest. Durante quase desesseis anos, com a ajuda de RandyCarter,umcolegadocurso,ojovemdecabelosloiroseolhosazuisrealizouexperimentossecretosnosfundosdesuamansão,visandonadamaisnadamenosqueodesbravamentodamorte, amais longínqua e inevitável dasfronteiras.

Tudo o que ele precisava eram cadáveres ainda frescos e, mesmopagandopolpudasquantiasemsubornosacoveirosemédicos,di icilmenteeleconseguiacorposemtalestado.Essesempreforaseugrandecalcanhardeaquilesjáque,pormaisquetenhadesempenhadoavançosnotáveisnocampodareanimação,eleaprenderaaduraspenasqueatécnicadeveriaserexecutadapreferencialmentepoucosminutosapósoóbito,soboriscodecriarbestasmovidassomentepelo instintoapósadecomposiçãoinicialdo tecido cerebral. Por diversas vezes, West inadvertidamente criou em

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seu laboratório improvisado o quepovos comoosmbundu chamaramdenzumbe, os haitianos zonbi, e, os ocidentais, zumbis. Mas, para West, oscorpos que se reanimavam desprovidos de consciência e famintos porcarnehumanatinhamsomenteumnomepossível:fracasso.

A jornada em busca da reanimação de cadáveres o levou a transitarpelo meio- io da sanidade, e ele foi visto pela última vez rondando oscemitériosdeBostonnoanode1921,certamentebuscandonovoscorpospara seus inomináveis experimentos. Àquela época, o amigo e assistenteRandy Carter já havia se afastado, temendo a gradual insanidade que seapoderava de West. E o fato de que ele sempre se queixara de que sesentiavigiadolevouCarteraespecularsobreseuassassínio.

Casosoubessedoquerealmenteacontecera,oex-amigojamaisdormirianovamente.

A verdade é que, após sucessivas falhas em seus experimentos, Westconcluiuquesuatécnicadereanimação,queconsistiaeminjetarseu luidona veia dos cadáveres, era absolutamente perfeita, pois em 100% doscasoseracapazdereanimarosmortos.Contudo,elacareciadeumabasemaissólida,umaetapapreparatória.Fazia-senecessáriofrearorelógiodadecomposição enquanto sua técnica agia sobre o corpo. Durante asdécadas seguintes a seu suposto desaparecimento, West empregou aenorme fortuna deixada pelo pai, morto em circunstâncias misteriosas,para viajar em segredo a diferentes localidades da Ásia, Índia e Europa,disposto a desvendar o mistério que orbita os mais antagônicos cultos ereligiões: a incorruptibilidade, condição que, segundo se crê, mantémcadáveres intactos, sem qualquer sinal de decomposição senão umpequenoressecamentodapele,duranteséculos.

Nas proximidades de Yamagata, no norte do Japão,West ouviu relatosdecorposdemongesbudistasmortosháduzentosoutrezentosanosque,sentados em posição de lótus jamais se decompuseram. Todo seu ser seencheu de euforia comparável somente a sua decepção ao desvendar talenigma. Os chamados Sokushinbutsu, ou budas vivos, como eramconhecidososmonges, tãosomentecausavamasprópriasmortesatravésda inanição, que livrava os corpos de gordura, enquanto ingeriamquantidadesgraduaisdevenenoscapazesdelentamenteseacumularnostecidoseinibiraaçãodebactériasevermesapósoóbito.

No Vietnã,West descobriu a história de Vuc Khac Minh, outro mongebudistamortoem1639emposiçãodelótus,duranteumajornadade100diasdepráticameditativa.Seucorpoforaencontradopelosoutrosmonges

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intacto, e assim permanecera pelos três séculos seguintes.Mas pouco desobrenatural havia no fenômeno. Especula-se que seu extraordinárioestado de conservação se deveu a uma combinação de sais mineraisencontradosemsuapeleque,emcontatocomagorduradotecidoadiposo,teriamse tornadoumaespéciede sabão fatoque,pormaispeculiarquefosse,nãoserviaaospropósitosdeWest.Eleprecisavadeumcorpomorto,conservadoecomostecidosintactos.

Já na França, ele viu de perto o corpo da freira Bernadete Soubirous,que durante os 40 anos desde suamorte fora exumada duas vezes, semqueninguémpudesseexplicara suposta incorruptibilidadede seu corpo.Essahistória, edezenasdeoutrascolecionadas, sobre lamas, santoseatémesmo camponeses comuns cujos corpos não se decompunham, levaramWestacrerque,mesmocomuma farsaaquieacolá, a incorruptibilidadeera um fenômeno raro,mas real. Fosse ele capaz de desvendá-la, teria achaveparaareanimação.

Foi na cidade de Düsseldorf, de uma Alemanha arrasada pela guerra,queWest descobriu amais notável ocorrência do fenômeno. O corpo deuma jovemde identidade incógnita, conhecida comoBela Incorrupta, foraencontradoporcamponeseshámaisde100anos,enterradadentrodeumesquife de vidro. A relíquia fora julgada perdida após um bombardeio àcidade, mas foi encontrada intacta pelos americanos debaixo dosescombrosdeumaigreja.

Ainda que muitos fenômenos de incorruptibilidade desa iassem opensamento cientí ico, todoselespareciammeras fraudes se comparadosaocorpodeBela.Apeleaindaerarosada,cobertaporuma inacamadadesebo. Os cabelos, sedosos, brilhavam como se recém-lavados, e os lábiosaindaestavamlevementeumedecidos.

West precisava daquele corpo, guardado numa base de ocupaçãoamericana. E os anos roubando cadáveres em morgues e cemitérioshaviam lhe dado o treinamento necessário para orquestrar um roubo decomplexidade ilarmônica. Usando o resto da fortuna deixada pelo pai,subornouguardas, soldadoseumassassino,quedeucabodeuma jovemde traços parecidos com os da morta. Na calada da noite, ele trocou oscorposelevouoesquifenumcaminhãomilitarparaavelhacasadecampocompradadeumlavrador.

A casa pouco interessava aWest,mas seu porão largo era tudo o queprecisava. Lá ele levou o corpo, determinado a prosseguir seusexperimentos.Daqueleporão,ouosdoissairiamvivos,ounenhum.

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Talvez tenha sido a excitação ou o esforço por ter carregado o corpoescadasabaixo,mas tão logodesceuaoporão, sentiuumapontadaagudanocoração,seguidaporumformigamentoemtodooladodireitodocorpo.Aindaquenãoacreditasseemcéuemuitomenoseminferno,docontráriojamais executaria seus experimentos profanos, rogou a quem quer queestivesseouvindo-opormaistempo.

Apressou-se em sua pesquisa. Deitou o corpo numa mesa de cirurgiaimprovisadaelogopuxouapálpebraesquerdada inada.Acórneaestavabrilhante como se ainda vivesse, e não turva como é da natureza dosoutros cadáveres. Tocou-a levemente, estava úmida, e em seguidaperfurou-a lentamente com uma seringa, extraindo um líquido negro eviscoso que vazou pelo buraco e murchou o globo ocular, maculandopermanentemente sua magní ica feição. A perfuração abriu o apetite dacuriosidade de West e ele introduziu uma pequena faca dentro dacavidadeósseaecutucouoolhoatéextraí-lo.

Suas mãos desprotegidas já estavam manchadas de preto. Esticou acamadademúsculoegordurarosaqueenvolviaoolhoe icouestupefatopor eles ainda estarem úmidos. Uma nova perfuração fez com que umlíquido transparente conhecido comohumor aquoso vazasse, e não havianada nele que indicasse ter sido extraído de um corpo enterrado hácentenas de anos. Durante longas horas, ele dissecou cuidadosamente ascamadas do olho, numerosas como as de uma cebola e frescas como elejamaisviraantes.No imdotrabalho,inconclusivo,tevevontadedeextrairnovos órgãos,mas foi vencido pelo sono. Dormiu alimesmo, com o rostodeitadosobosviscososlíquidosoculares.

Outro fenômeno incrível deixaria West estupefato: ao acordar no diaseguinte, reparou que os líquidos haviam secado e o olho já sedecompunha em ritmoacelerado.Oquequerque fosse responsável pelaincorruptibilidade estava intrinsecamente ligado ao corpo, e ele concluiuqueseguircomadissecação implicariaemperderseubelíssimoevaliosoobjetodeestudos.

Nos meses que se seguiram, West realizou experimentos maiscomedidos em Bela. Pela primeira vez na vida, sentiu remorso, ao olharparao rostomaculadoda jovem, semoolhoesquerdo.Usandoumpoucode barro, moldou uma esfera e a inseriu na cavidade ocular, fechou apálpebra e recuperou, em parte, sua beleza original. Contanto que apálpebranãofosseerguida,ajovempareciatalqualhaviasidoencontrada,o que trouxe uma sensação de alívio para West. Por mais que

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desconhecesse,de tantoolharparaBela,elecomeçouanutrirporelaumsentimento de proteção, talvez até carinho, se seu abominável coraçãofossecapazdetanto.

A cada novo experimento, ele arrancava pequenos nacos de pele etecido, e, depois demuito relutar, extraiu-lhe a tíbia esquerda, enquantopediamildesculpasaocorpoinerte.Nolugardasmutilações,osanguenãoescorria,mas formava-seumapequenavermelhidão, talqualocorriacomoutroscorposincorruptosexumadosporcientistas.

QuaseumanosepassoudesdequeWestroubaraocorpo.Alémdenãoterconseguidoavançaremseusestudos,as frequentespontadasnopeitoindicavamqueotempoparaexperimentosestavano im.Masseomistérioda incorruptibilidadedocorpoestavaalémdeseualcance,poroutro ladoele tinha em suasmãos o cadávermais bem preservado que já vira. Aoavaliar o estado dos outros tecidos, não havia razões para duvidar que ocerebralgozassedamesmasaúde.

Durantequaseumanoite,elepreparoudepoisdemuitosanosseufluidomaldito. Ao terminar, injetou o líquido no braço incrivelmente macio damoça, atéquea substâncianegra transbordassepelopequenoburacodaagulha. Pacientemente, ele falou em com sua voz arranhada e um tantogagasobrecomoBelalhetrariafamaefortunaumavezqueelerevelasseao mundo o êxito de seus experimentos. De como o corpo docente daUniversidade deMiskatonic e até mesmo seumelhor amigo e assistente,Randy Carter, voltariam correndo de joelhos quando o luido estivessepresenteemtodasassalasdecirurgiadomundo,prontoparareanimarosrecém-mortos. E no dia em que seu coração inalmente falhasse, ela, suaamadaBela,seriaquemlhetrariadevoltacomatécnicamiraculosa,paraque juntos gozassemdeumavida livrede julgamentos edas amarrasdamorte.

Por váriosminutos, ele observou atentamente o rosto corado de Bela,esperando o momento de ser surpreendido com a abertura de seu beloolho azul. Mais uma vez, lamentou-se por ter arrancado o olho, a tíbia ealgunsdedos,maselahaveriadeentenderquandoacordasse.

Horas sepassaram.Ele tentouaindauma segundadosedo luido, semefeito. O fantasma do fracasso logo jogou sua sombra sobre West e,enfurecido, ele socou o peito do corpo sem vida da moça por repetidasvezes, gritou-lhe que despertasse, desa iou-a a abrir a boca e tentardevorarseucérebrocomoseusexperimentosanteriores izeram,maselapermaneciaimutávelcomoomaisbelodosquadros.

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West virou-se de costas e foi até a porta. Apoiou-se sobre o batente ecomeçouachorarderaiva.Dedicaraanosdesuavidaaencontraraquelebelocorpoatrásdesi,eoutrostantosadesenvolverseufluidoreanimador.Anosquelhecustaramabrilhantecarreira,aherançadeixadapelopaieajuventude.Agora, sem recursos para sequer voltar para casa, sempoderpraticar medicina e dado como morto em sua terra natal, restava-lheapenas esperar pelo próximo ataque do coração, que já se anunciavaatravésdeumfamiliarformigamentonobraço.

Voltou-separaBelaetocou-lhesuavementeorosto.Aproximou-see,emseuouvido,agradeceu-lhepelaajudaemseusexperimentos.Elesabiaqueamorteseaproximava,masdisseque,jáquenãoconseguiralhetrazerdevoltaàvida,eleaomenospoderiadar-lhealgo.

Vestiu-acomseusbelostrajesdeprincesa.Escreveuumacarta,emquedetalhoucomriquezadedetalhesaautópsiaparcialrealizadanoolho,nosdedosena tíbia, semespeci icarareal razãopelaqualo izera.Esperavaque o corpo pudesse ser estudado pelas gerações futuras e deixou seulaboratórioimprovisado.Numadelegaciadacidade,eleconfessouorouboque deixara o exército americano e toda a Alemanha boquiaberta, eindicou com precisão sua localização, antes de sofrer um derramefulminantequeodeixouemcomaduranteseusderradeirosdezoitomeses.

Areapariçãodocorpo incorrupto logoganhouaspáginasde jornaisdomundo todo e ele foi transportado para universidades e laboratórios portodaaEuropaparaaveriguação.ÀexceçãodasmutilaçõespromovidasporWest,emaisalgumasquevieramaserfeitaspeloscientistas,aqueleeraocadáverperfeitodeumajovemdevinteepoucosanos,emmelhorestadodoqueodemuitasqueaindaviviam.

De volta à Alemanha, o corpo foi novamente colocado num esquife devidro,destavez,blindado,paraserexibidonoMuseuGemäldegalerie,emBerlim. Durante todo resto do século XX, ele foi visitado diariamente pormilhõesdecristãos, iéisecuriosos,quediziamqueseusimplesvislumbreera capaz de curar enfermidades. Contudo, inexiste qualquer fato quecomproveatese.

Ocorpofoinovamenteroubadomisteriosamentenoanode1982,numasequênciacinematográ icadecrimese fraudesexecutadoscomperfeição.Contudo,oesquifevoltouaaparecerdoisanosdepois,abordodeumnavioabandonadonacostadacidadedeNice,França,aparentementeintacto,deondefoidevolvidoaopovoalemão.

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Com a segurança reforçada, comparável somente àquela que foimontada para proteger a Mona Lisa, Bela Incorrupta agora recebe seusvisitantesprotegidaporumpequeno exército.Mas, ao olharpara o rostosedosoe tranquiloda jovemqueatravessouséculossemsedecompor,osiéis cheios de pedidos e esperanças sequer imaginam a horripilantehistóriaportrásdocaixãotransparente.NãosabemqueapobreBelaouvesuas preces, escuta e sente tudo o que se passa consigo e a sua volta,incapaz de se mover ou se fazer ouvir desde que mordera uma maçãenvenenada,em1598.

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Omonstro

QuandonumanoiteeuliaumtomointerditoEscritoasanguesujoemidiomasancestraisOuviumbaternaportaseguidodeumgritoQueatirouminh’almaemfossasabissaisEeuindaguei:quemés,porquemeperturbais?EdosversosdoCorvodeAllanPoeFizmanuaisparaestesquetestemunhaisAcriaturaadentrouemeolhouConsumiuporcompletominhapazEeuclamei:“Piedade,anjoscelestiais!”ViummonstrodisformecujafeiuracongelaComoserascunhadaporDeusemtraçosbanaisJuntoscompunhamumaabomináveltelaPinceladapelodiabocomsangueeaguarrásEacriaturadisse:“Ouve,meurapaz!”DesdepequenoomundoeurondoNumabuscavãpormeusiguaisMeucrimeecastigomaishediondoFoinascercomfeiçõeschacaisEeledisse:“Nãosoudodiaboocapataz!”“Aomeverrecém-nascido,minhamãecaiuduraMeupaidesconfiado,observouossinaisFurioso,logolhedeuumabelasurraAoconcluircasosextraconjugaisEelechorou:“Emnadaeulembravameuspais!”FugidecasaeencontreiabrigoJuntoadoiscolegasfraternaisMaslogoostrêscorremosperigo

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DoisdisparosforamfataisEeleorou:“Quedescansemempaz!”AolongeestavaoatiradorAsbalasvoavamzás-trásFiz-medemortoemmeioaohorrorBanhadoemsanguedechacinastaisEocaçadorcuspiu:“Aquiomalditojaz!”Aoanoitecer,viumacasadecadenteHabitadaporumavelhaincapazAdentreiocurralsorrateiramenteEdeitei-mejuntoaosanimaisEavelhaouviu“aus”,“uis”e“ais”PoisnemcãonemcabrasuportamminhafeiçãoPelosdeusesescarradasoubanidoemseusportaisFilhododemônioouassombração,viveréminhamaldiçãoAscoisasbelasencontramemmimseusfuneraisEeledisse:“Nuncafiznadademais!”PorondepassocausoespantoContudonãoqueroolharparatrásSemedeixaresficaremqualquercantoSereideteusescravosmaisleaisEeugritei:“JAMAIS!”PeloDeusqueambostememos!TeexpulsodemeusumbraisVaidestilartuadiscórdiaeteusvenenosEmtuasprofundezasinfernais!Eeledisse:“Arrepender-te,umdiavais!”Abismado,vipartiraquelaferaQueolhouparatrásedisseaspalavrasfinais

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EentãocompreendioqueabestaeraMonstroouassombraçãosãocoisasirreais!Eeledisse:“Souumpato...enadamais.”

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OCemitério

Dizemque,das3às4damadrugada,osespíritosestãolivrespara fazer o que bem entenderem. Às 3 horas, 3 minutos e 3 segundosdaquelanoite, o rapaz, sentado sobreuma lápide semnome, apenas comumamarcação de ano, observava os lamuriosos fantasmas que visitavamaquelecemitérioesquecido.

Elemesmofalecerahápouco,demaneiratãorepentinaque,nãotivessevisto o próprio corpo no chão, como pescoço rompido, o galho quebradologo ao lado e o cavalo partindo para a liberdade, teria certeza de queaindarespirava.Tantoquepunhaamãonopeitoeosentiasubiredescer,tocava a lápide debaixo de si e sentia sua textura gelada e arenosa,baforava suavemente e via a névoa branca surgir. E o pescoço partidoaindadoía,permanentementecurvadoparaadireita.

Foi quando chegou um outro fantasma, que pela lógica não era nemnovo nem velho,mas ainda ostentava a aparência do tempo em que eraencarnado:adeumvelhomagro,careca,comopescoçocobertoporpintaspretas que cresciamdescontroladamente. Doença oumaldição, ele já nãose importava hámuito tempo. Fora enterrado naquelemesmo cemitério,décadas antes, e nele vira chegar amaior parte de seus descendentes econhecidos.

“Ésnovoporaqui,nãoés?”,perguntouovelhofantasma.

“Creioquesim...”,respondeuorapaz.

“Estásesperandoalguém?”

“Sim,comosabes?”

“Todosaquiesperamporalguém.Oualgumacoisa.Umanoiva,um ilho,umaherança,umsegredo.”

“É!”, desconversou o rapaz, sem querer entrar em detalhes sobre suavida-oumorte.

“Vê aquela sem um olho e com o pé direito gangrenado?”, apontou o

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velho.“Estáatéhojeàesperadaenteada,dequemquersevingar.Vaiterqueesperarumbocado...”

Apontoupara outro, umvelho gordo comumespesso bigode, trajandovesteselegantes,aomenosnametadedocorpoqueaindapossuía.

“Aquele ali foi rei. Está esperando pelo ilho, que enlouqueceu e foipararemoutrolugar.Nãocreioquevenhaparacá.”

Outrodesgraçadoeraumhomemcomocorpoemchamasque,pormaisqueserevirassenochão,elasjamaisseapagavam:

“Aqueleali...tsc.Aqueleestáesperandosuavezdeirembora.Masnemno inferno há lugar para homens como ele! Terá que esperar muito atéqueaschamasseapaguem!”

“Eaquela?”,perguntouorapaz,apontandoparaoquepareciaserumagarota,defeiçõesdilaceradasalémdoreconhecimento.Sentadaemfrenteaumalápide,elatraziaumcestopenduradonobraçocujosossosestavamexpostos.

“Vemaquitodasasnoites,lamentar-sesobreotúmulodaavó!”

“Ecomoainfelizacabouassim?”

“Ah,tudizes,osmachucados?Bem,cadadiaéumacoisa.Daúltimavez,eladisseque foiatacadaporumtigre!Pelanaturezados ferimentos -eleapontouparaamandíbulapenduradadoladodireito,opedaçodocérebroexpostodomesmoladoeasentranhasesparramadaspelochão-nãoousoduvidar!”

Ofantasmainexperienteolhouparabaixo,tentandoevitaraquelavisãogrotescaatémesmoparaosespíritos.

Contentou-se então de que cair do cavalo ao menos fora uma morterápidaeindolor.

“Quemaneirahorríveldemorrer!”

Ovelhofantasmaapenasriu.

A jovementãoenxugouas lágrimaseo sanguedo rostoemseucapuz.Puxou a pele solta da mandíbula e a remendou do outro lado do rosto,antesdevoltaraabrirefecharabocafazendoestalaroosso.Abaixou-seerecolheuas tripasdochão,en iando-asdisplicentementebarrigaadentro.

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Segurouumnacodepeleabaixodas costelas e, quandoo soltou,o tecidoestavaaomenosremendado,comosefeitodefarinhaeágua,deformaqueseus órgãos internos nãomais caíssem para fora. Partiu, carregando seucestodedocesecantarolandoumacançãodeninar.

“Adeus,vovó!”,disse,acenando.

Oespíritodorapazachavaquejátinhavistodetudo,eficousurpresoaoverajovemcaminharrumoàsaídadocemitério.Quandoelasevirouparadarumaúltimaolhadaparaotúmulodaavó,seurostoantesdilaceradojáseaproximavadanormalidade.

“Seu tolo. Ela não é como nós!”, gargalhou o velho fantasma. “Anda demãos dadas com a desgraça antes mesmo de ter nascido. Passou diassufocandodentrodoventredamãemorta,e,quandomenina, foiengolidaporumloboedepoisretiradavivadedentrodele.Desdeentão,jáseatiroudepenhascos,decepouasprópriasmãos,banhou-seemácido,engoliuumcopocheiodeal inetes,enfrentouursos,bruxase legiões infernais.Aindaassim, o espírito da morte se recusa a levá-la. Dos que visitam estecemitériotodasasnoites,agarotadocapuzvermelhoéaúnicaqueaindavive,sozinha,semjamaispodermorrer.”

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Samarapunzel

Existeumlugarsecreto,emquepoucosseatrevemapisar,onde se encontram reunidas todas as histórias já contadas, numa vastacoletâneadevolumesque,seen ileirados,dariamavoltanãoapenasnestemundocomo tambémnodos sonhos.Daascensãoequedadaespéciedemacacos conhecida como homem, aos contos há muito enterrados emKadath, tudooque foi e seráestá registrado,paraumpropósitoquenãocabeaoleitorconhecer.

Todos os volumes encontram-se abertos, numa sala em que não háportanemfechadura.Contudo,certashistóriasque láseencontramestãoprotegidas não por correntes, tampouco cadeados, mas por páginasescritas em idiomas asquerosos para impedir que seu conteúdo malditoespalhe-se como a varíola e cubra de chagas as almas daqueles que asleremouescutarem,defogueiraemfogueira,vilaemvila,reinoemreino,atéosdiasdeumtempofuturoquecomsortenãotestemunharei.

Naquelanoite, a luz deminha vela tremitava, fazendodançar as letrasquelentamenteescorriamdeminhapena.Comasaúdefrágil,abaladapelaescarlatina, alternava períodos de melhora com recaídas sofridas,acompanhadas demuita febre e uma vexatória descamação da pele quemeimpediadesairàluzdodia.

Meuúnicoamigoerameuirmão,Jacob,cujoo ícioofaziaviajarareinosdistantes, de onde frequentemente trazia notícias sobre maravilhas edesgraças que se acometiam em outras pradarias. E era Jacob (malditoseja)quemnaquelanoitebatiafreneticamenteàportademinhacasa.

“Abre,Wilhelm!Abre!”,gritava.

Tãoprontamentequantominhadoençapermitia,atendiaseussuplícios.Abriaportae logoviopavorestampadoemseurostocomose talhadoafaca.

“Oquefoi,Jacob?Oquehouve?”

“Oh,Wilhelm,meuqueridoirmão,ohorror,ohorror!”,foitudooqueeleconseguiu dizer. Dei-lhe um copo d’água, ele continuou afobado,

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perguntou-me que horas eram, eu não fazia ideia, mas julgava ser porvoltadas11horasdanoite.Então,Jacobpôs-seadiscorrersobreaúltimaviagem que izera, à procura de tomos e mistérios perdidos e na qualencontrou algo extraordinariamente terrível, poderoso e letal: umahistória.

“Quehistóriafoiessa?”,perguntei-lhe.“Ondealeste?”

“Nãoali,Wilhelm!MefoicontadapormeuamigoHans,queaouviudeCharles,talqualumacorrentemaldita!”

“Eoqueacontecenessahistória?”,perguntei-lhesemsaberoerroqueestava cometendo. Então Jacobpôs asmãos sobremeus cotovelos, olhou-me ixamenteenarrou,emtomdepenitência,osfatoshorrendosquelerásaseguir.

***

EraumavezumameninachamadaSamarapunzel,umnomequenãosepodiadizerqueera feio,mas tambémnãoeradosmaiscomuns.Elaviviasozinhanumatorrenomeiodeumvaledesolador,tãoaltaquantoalançadeumgigantefincadanosolo.

Maior que a torre só mesmo a vasta cabeleira negra da menina, que,quandocolocadadoladodeforadajanela,estendia-seatéochão.Repletosde piolhos e carrapatos, os cabelos eram utilizados como a extensão deseusbraços,ecomeleselahabilmentelaçavaobjetosdistantes,exercitava-seepuxavaamãe,únicapessoaaquemconhecia,quandoelachegavaaospésdatorreegritava:

“Samarapunzel,jogateuscabelos!”

Ameninajogavaoscabeloseamãe,sempretrajandoummantobrancoimpecavelmente limpo, os escalava habilmente até chegar ao topo. Comofazia todososdias, ela trazia consigo frutas,doceseomaior interessedamenina,livros:

“Acho que vais gostar deste! Fala de como uma princesa amaldiçoadaquase destruiu o reino com seus poderes, e acabou derrotada pelomaisimprovável dos guerreiros!”, disse, entregando-lhe uma de suas históriasfavoritas.

“Obrigada,mamãe!”

Amenina logo se pôs a ler o espesso tomo, comasmãos tremendode

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empolgação.

“Seráqueomalvencenestahistória?”,perguntousemtirarosolhosdaspáginas.

“Omalnuncavence, Samarapunzel!”, respondeuamãe, comênfaseno“nunca”.

Sem ter o que fazer nem com quem conversar, a menina passava amaiorpartedotempolendo,solitária,imersaemhistóriascapazesdelevá-laavidasemundosdistantes,deempossá-ladeconhecimentosancestraiseidiomasperdidos.

“Sãoaúnicacoisacapazdeviverparasempre!”,repetiaamãe,emsuasvisitasdiárias.

Ironicamente, a menina que tanto gostava de histórias era totalmentealheia a sua própria. Presa no topo da torre desde que se conhecia porgente,nãotinhacontatocomoutrossereshumanos.Omundoeratãovastoquanto a única janela da construção lhe permitia enxergar. E amãe nãopoupariaesforçosparaqueassimpermanecesse.

***

Tudo começara anos antes, quando um marido dedicado cuidava daesposagrávida.Muitopobres,elesviviamnumacabananaencostadeummorro,daqual erapossível verumapequena casa, robusta e imponente,cercadaporummurodepedrasquesequertinhaumportão.

A únicamoradora da casa era umamulher que tinha por volta de 30anos.Sempreenvoltanummantobranco,comosolhos tristesdequemjánão esperava mais nada do mundo, ela passava os dias vigiando umaformosaplantaçãoderapunzéisquecresciaemseuquintal.

Ouvia-semuitos boatos sobre a dita, despertados pelo inegável fato deque ela raramente saía de casa. Podia-se escalar uma árvore a qualquerhora do dia ou da noite, e olhar para além da redoma de pedras, e comcerteza quase que absoluta veria-se a mulher de branco, imóvel. Quasequeabsolutaporque,segundodiziam,vezporoutraelaeravistavisitandoaslápidesdeumantigocemitério,oquesófaziaaumentarosrumoresdequeelatinhapartecomooculto.

Naquelaépoca,eassimoéatéosdiasdehojeemterraspoucoletradas,nãoerasábiodeixardeatenderaosdesejosdeumamulher,especialmente

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seelaestivessegrávida.E,paraa infelicidadedohomem,suaesposaquisjustamenteprovardosrapunzéisquecresciamnapropriedadedavizinha.

Temendo pela vida da esposa, ele escalou uma árvore em frente aomuro de pedras que circundava a plantação, onde aguardoupacientemente a hora em que a dona da casa deixaria seu posto pararepousar.

Maselapareciaser incansável.Diaenoiteenadadaesganadatirarosolhos dos rapunzéis. Vez por outra, ela parecia estar falando sozinha,gesticulandoeloquentemente,àsvezesdiscutindo,àsvezesrindocomoseestivesse falando com espíritos, o que deixava o homem ainda maisapreensivo.

Teve uma ideia. Pegou seu machado e cortou um galho, depois oarremessou longe,mirando o telhado da casa. Feito o barulho, ele imitouumuivo,paraqueamulherpensassequeumloboentraraemseuterreno.Oplanodeucertoeelaselevantou,perturbada.Foiveri icarosfundosdacasa e, tão logoo fez, ohomempulouomuroe colheualgumas folhasderapunzel.Chispouantesqueadonapercebesseevoltouparacasafelizdavida.

***

“Masquerapunzéisdeliciosos!”,exclamouaesposa,antesdedevorá-loscom uma voracidade que assustara ao próprio marido. Depois de seempanturrar verdadeiramente, o desejo foi saciado e ambos puderamdormirtranquilos.

Contudo, dentro de poucos dias, a mulher começou a sentir enjoosviolentos, muito piores do que as grávidas normalmente sentem. Garraspareciam esganar seu ventre, seu coração palpitava, até mesmo ospulmões, que costumam passar despercebidos pela maior parte da vidadaspessoas,agonizavampedindoporclemência.

Omaridoentão chamoucurandeirosque, senãoeramosmelhores, aomenoseramosqueseusuadodinheiropoderiapagar.Masnenhumdelesfoicapazdedizerquemalacometiasuaesposa,nemaomenosaliviarseusofrimento. Pois os sintomas mais evidentes, como os vômitos fétidos, adiarreia explosiva e a vermelhidão sangrenta da pele eram inutilmenteremediados enquanto a verdadeira causa, omal absoluto,matava tudo oquehaviadebomdentrodamulher.

“Isso não é doença!”, arriscou um curandeiro. “Isso é maldição!”,

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completou,tomandoorumodecasa.

“Maldição? Então... então foi culpa da bruxa de branco!”, concluiu omarido. “A desgraçada amaldiçoou o rapunzel só para que ninguémpudessecomê-lo!”

Desenganado, crente de que perderia a esposa e o ilho, pegou seumachadoefoitercomadonadaplantação.

***

Pela primeira vez em décadas, a mulher de branco viu algummovimento no quadro imutável que observava todos os dias. A ponta domachado brilhou por cima do muro e em seguida, as mãos do homemsurgiram,atéquedespontaramsuacabeçaeseusombros.Desajeitado,elesevirouejogouopesodocorpoparaooutrolado,caindosobreascostas,comomachadoemmãos.

Alerta, a dona da casa logo pegou um punhal prateado e encarou ointruso.Eleseassustoucomaagilidadeincomumdamulher,pôs-sedepéeagarroufirmementeaarma:

“Bruxa, bruxa, bruxa maldita e desgraçada, o que izeste com minhaesposa?”

A mulher já calculava o ângulo correto para atingir o estômago doinvasorcomopunhal.

“Doqueestásfalando?”

“Ela está morrendo!”, berrou o homem, em tom de con issão. “Minhaesposa, que carrega em seu ventre meu ilho, está morrendo depois decomerdoteumalditorapunzel!”

Amulherentãogelou,descrentedoqueouvira:

“Estásdizendoquedestedorapunzelparatuamulhergrávidacomer?”.Pronunciouaúltimapalavrajágritando.

“Si-sim...”,balbuciouohomem.“Estavamtãoviçososebelosqueelanãopôdeconterseusdesejos!Elanãoteveculpa!Nãosabesquenãosepodeignorarosdesejosdeumagrávida?Nãosabes?”.Eleapontouparaoladoeelafinalmentedeufaltadealgumasfolhas.

“Teugrande idiota!”gritouamulher. “Tuquenãosabesoque izestes!

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Tua esposa e o mundo correm um grande perigo! Para que achas queservemosmuros?Paraqueachasquepassoodiaavigiarestaplantação?”

Ohomemsecalou.

“Idiota”,elarepetiuportrêsvezes.“Colocastetudoaperder!”

“Mas eu não entendo!”. O pobre estava desnorteado. “Do que estásfalando?Oquefaráscomminhaesposa?”

“Teugrandetolo,eunãotenhoomenorinteresseemtuaesposa,ounamortedela!Porquehaveriadeter?Tudooquefaçoháquasedoisséculosécuidardestacasaevigiaresteterrenoamaldiçoado,ondeanteshaviaumpoçoqueocultavaummalancestral!”

“Dois...séculos?Então...ésmesmoumabruxa?”

“Bruxa?Éclaroquenão!”,retrucouamulher,ofendida.Edebochousemdeixarclarosediziaaverdade:“Abruxaestámortahámuitosanos,e foienterradabemdebaixodeti!”

O homem saltou como se o chão lhe desse um choque. A mulher debrancoesboçouumriso,masagravidadedasituaçãolheimpedia.

“Quero que voltes para tua casa e trates de tua esposa, para que elasobrevivaàgravidez.Seissoocorrereobebênascervivo,tuotrarásparaqueeucuidedele!”

“Cuide? O que quer dizer?”, perguntou o homem, de olho no punhalprateadoqueelaaindacarregava.

A mulher não respondeu. Farta daquele intruso, mandou-o embora,prometendovisitaraeleeaesposacasoelasobrevivesseàgravidez.Antesdepularoaltomurodepedras,ohomemvirou-seeperguntou:

“Porquê?Porquefazesisto?”

Depoisdealgunsinstantesemsilêncio,elaselamuriou:

“Porquesóeupossofazê-lo!”

***

Agravidezdaesposaprogrediucomdoresemisériasincessantesatéofimdaderradeiraquadragésimasemana.

Comosejásoubesseahoradoparto,amulherdebrancofoiatéacasa

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deleseajudouapobregrávidaadarà luzumamenina,muitocabeludaechorona,quenãoeranembonitanemfeia,nãodiferindomuitodetodososoutrosbebês.Poucoantesdeexalarseuúltimosuspiro,amãemoribundapediuqueacriançafossebatizadadeRapunzel,porcontadosdesejosqueelativeraduranteagravidez.

Contudo, a dona da plantação tinha outros planos. Pois ela sabia decoisas das quais, se os pais sonhassem, enlouqueceriam com absolutacerteza.Temendoqueacriançafossepossuídapelodemônio,quischamá-ladeSamara,ou, “protegidaporDeus”.Opai,desolado,propôsummeio-termo que honrasse ao pedido da esposamorta. Assim, surgiu um nomedi ícil e peculiar, “Samarapunzel”. A menina foi deixada aos cuidados damulher de branco, que prometeu fazer de tudo para livrá-la de suaherançamaldita.

***

Ao chegar em casa com o bebê, o primeiro impulso damulher foi darcabodesuavidacomopunhalprateado.Chegouaempunharaarma,mas,aoolharparao rostovermelhoe tranquiloda criança, comseusolhinhosfechadosesuasbochechasinchadas,resolveulhedarumachance.

Conforme os dias se passavam, o bebê se desenvolvia de maneiraabsolutamentenormal.Comia,chorava,dormiaedefecava,numarepetitivarotinaqueaomenosdeucertanovidadeàvidadamulher,que,entreumcuidadoeoutro,tentavaatodocustonãoseafeiçoaràmenina.

Mas não houve jeito: os encantos involuntários da pequenaSamarapunzeldespertaramdentrodelaumasensaçãodedever,oinstintoprotetor que faz parte de toda mulher. Então, passou a tratar a criançacomose fosse sanguede seu sangueeempouco tempo, já a chamavadefilha,aindaquejamaisescondessedelaqueforaadotada.

Por mais que tentasse se convencer de que Samarapunzel era umamenina normal, em seu âmago ela temia pela possibilidade de estarenganada.Semsaberdireitoaquemqueriaproteger-omundooua ilha-levou-a para o topo de uma enorme torre erigida no meio do nada. Aconstrução era tão alta que desa iaria o mais preparado dos atletas, e oúnicoacessoaotoposedavapormeiodeumafrágilescadademadeiradolado de fora. Naquela torre, Samarapunzel passou a maior parte de suaexistência.

Amulherdebrancotentavadarà ilhaumavidaminimamentenormal.

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Preparava-lherefeições,faziabrincadeiraseliahistóriasparadormir,quelogodespertaramuminteressequaseobsessivonamenina,especialmenteas que envolviam algum tipo de tragédia. Samarapunzel tinha particularpreferência por aquelas conhecidas como “contos de fadas”, escritas comsangueaolongodosséculos,queretratavamcruelmentedesgraçascomoaque envolvia os sete pequenos anões infernais perseguindo uma pobrejovemnafloresta.

“Certamente é só uma fase!”, pensou a mãe adotiva, que até tentoutrazer livros comassuntosmais alegres, que foramapenas rabiscadosourasgadospelafilha.

Conforme os anos iam se passando, amulher de branco notava que, àexceção do peculiar gosto literário, não havia absolutamente nada nadesabrochantepersonalidadedameninaque lertasse comoprofano.Aocontrário,acriançaeradonadeumaingenuidadeangelical.Acreditavaemtudoeaceitavaasdesculpasmaisestapafúrdias,comoquandoperguntavaarazãopelaqualestavapresaali:

“Mamãe,porquenãopossosairdesta...”

Arespostavinhaantesmesmoqueaindagaçãoterminasse:

“Porque infelizmente ésmuito,muito feia, Samarapunzel.Nãodigoqueésfeiacomoodiaboporquetenhomedoqueelevenhamepuxaropédenoite, ofendido. Horrorosa como um defunto errante, talvez? Acho queseriapouco.Repugnante,asquerosa,ultrajantesãoadjetivosquesomariamapenasaquartametadedotamanhode tua feiura.Sealguminfelizpuserosolhosem ti, cairámortode sustonomesmo instante e levaráohorroraté a outra vida! Só eu, que sou tua mãe, consigo suportar tamanhosortilégio. Por essa razão, minha ilha, tu jamais, jamais!, poderás deixarestatorre.”

“Quelástima!”,respondiaamenina.

Curiosotambémeraofatodecomoseuscabelosnegroscresciamaumavelocidadeassombrosa.Seolhadoscomatenção,erapossívelveraspontasse mexendo lentamente como minhocas fora da terra, esticando-se erumando para baixo. Quando cortados na raiz, então, o crescimento eraaindamaisevidentee,empoucosdiasjáestavamquasetocandoochão.

“Aomenos, posso usá-los para escalar a torre e queimar a escada demadeira! Dessa forma, será garantido que ninguém entrará ou sairádaqui!”Assim,amãequeimouaescadaecriouohábitodediariamenteir

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até o pé da torre e gritar “Samarapunzel, joga teus cabelos!”, para entãoescalá-losevisitarafilha.

Outra característica que chamava a atenção era o jeito com queSamarapunzel chorava. Desde que fora capaz de expelir lágrimas, porvolta dos 3 meses de vida, elas saíam com uma forte coloração preta,chegandoamancharorostoeasroupasdamenina.

“Não deve ser tão incomum assim!”, e amãe continuava tentando nãoenxergaroóbvio,rogandoparaquetodooamoreocarinhocomosquaiscercavaafilhapudessemeliminaromalancestralquenelaresidia.

Malsabiaamulherdebrancoqueissoeraimpossíveldocontrário,estahistória terminaria aqui, e não da forma trágica que se desenrolará naspáginasseguintes.

***

Durante toda sua infância, a pequena Samarapunzel teve uma vidatranquila no topo da torre. Para manter sua mente ocupada, a mãe lhetrazia livros cada vez mais grossos, que a deleitavam durante dias e amantinhamviajandopelomundodossonhos,enquantoasquestõessobreavidarealeseutrancafiamentoeramindefinidamentepostergadas.

Entreumahistóriaeoutra,osanosforamsepassando.Otempo,sempretão rigoroso com o sexo feminino, parecia termisericórdia damulher debranco,eelanãoenvelheceuumdiasequer.JánapequenaSamarapunzel,as transformações foram notáveis e generosas, e a menina mirrada deoutrora um dia desabrochou numa jovem de formas voluptuosas, queironicamentenãoconheciaoprópriorosto,poisamãejamaislhetrouxeraumúnicoespelho.

“Elescertamentesepartiriamnahora!”,eraaexplicaçãoquedava.

A partir da adolescência, Samarapunzel passou a demonstrar talentosque, de certa forma, trouxeram alívio ao espírito da mãe, por residiremtranquilamente dentro dos limites da normalidade. A jovem era umaesplêndida dançarina e movia-se com a graça de uma pétala ao vento.Também tinha jeito com a arrumação da casa, facilitada e muito com ahabilidade que ela tinha com os cabelos. E era ainda uma cozinheira demãocheia,especialmentededocescomomaçãscaramelizadas.Porúltimo,tinha uma voz capaz de acalmar tormentas e quando não estava lendo,passavaasmanhãscantandoadocicadasmelodiasnajanela.

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Um dia, o ilho de um rei passou próximo ao vale onde se escondia atorre e ouviu aquela canção tãobemdesenhadaqueparoupara escutar.Curioso, quis conhecer adonada voz, circulou a construção embuscadeuma porta ou uma escada, mas nada encontrou. Retornou a seu palácio,intrigado e, julgando sua descoberta ser um tesouro, resolveu guardarsegredo.

AvozdeSamarapunzelcomoveraseucoraçãotãointensamentequeelepassou a visitar o vale todos asmanhãs, só para ouvi-la cantar. E, aindaque tivesse acesso a todas as mulheres e eunucos que quisesse em seuharém particular, dentro dele só crescia o desejo de conhecer a donadaquelavozmaravilhosa.

Umdia,aoseaproximardovale,eleviuqueoutrapessoapartilhavaseusegredo.Amulherdemantobrancoestava lá,aospésdatorre,eo jovempríncipeseescondeuatrásdeumamoitaparaespiá-la.

Coma impressãodequeestava sendovigiada, amulherolhouparaoslados,descon iada.Orapazentãofezumagrotescaimitaçãodeumgatodomato, num miado estridente e desa inado, que surpreendentemente,convenceuamulher.Elaentãoriudesimesma,convencidadequeestavasozinha,egritouparaoalto:

“Samarapunzel,jogateuscabelos!”

Logo veio de cima uma massa negra de cabelos, deslizando comoserpentespelasparedes,eamulherosescaloucomnotáveldesenvolturaaté chegar ao topo. O príncipe observou a tudo estupefato. Ele en imdescobriracomoconheceradonadavozqueroubaraseucoração.

Aguardoupacientementedurantehoras,atéque,quaseaoanoitecer,oscabelos foramnovamente jogados para fora, por onde amulher deslizou.Tão logoseuspéstocaramochão,elaacenouparacima,sedespedindo,epartiuligeira,prometendoretornarnodiaseguintedemanhã.

“Éagora!”,pensouopríncipe.“Nãotereioutraoportunidade!”

Limpandoopigarrodagarganta,eletentoudizernumavozaguda:

“Samarapunzel,jogateuscabelos!”

Eentãoouviuumavozvindadoalto:

“Mamãe?”

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“Olvidei-medealgo!”,disfarçou.Acrescenteescuridãonãopermitiavernemquemestavanoaltonemquemestavaaospésda torre.Comoantes,os cabelos desceram, e ele se segurou neles para subir, notando que amulher de branco fazia a tarefa parecer muito mais fácil. Com muitoesforço, conseguiu chegar no topo, exausto. Assim que viu que não setratava de sua mãe, Samarapunzel, deu um grito e saltou para trás. Orapaz, ainda pendurado por seus cabelos, quase se desequilibrou, masconseguiuseagarraraoparapeitoeenfimsejogouparadentro,exausto.

“Porfavor... ique...calma!Eunão...nãoquerotefazermal...juro!”,disse,tentandorecuperarofôlego.

Samarapunzelsentiu-sepetri icadacomapresençadoestranho.Correuparaumcantodasalaeescondeuo rostocompletamentesobacabeleiranegra.

“Queméstu?Oquefazesaqui?!”

Opríncipe,aindaapoiavaasmãossobreosjoelhos:

“Eusou...opríncipe!”

Aúltimapalavra fezo coraçãode Samarapunzelpulsarmais forte.Umpríncipe, como o das histórias que ela lia, bem em sua frente. O rapazprosseguiu:

“Eu andava a cavalo quando ouvi tua linda voz, cantando aqui do alto.Nãopoderiadescansarumdiasequersenãopusessemeusolhosemti!”

Samarapunzel imediatamente lembrou-se das histórias que a mãe lhecontavasobresuafeiura.Abriuumapequenafendasobreoolhoesquerdoe,porela,admirouabelezaea juventudedopríncipe.Eraaprimeiravezque ela via um homem e, com o vislumbre, desabrocharam sensaçõesestranhascomoumarrepiopor todoocorpo,especialmentena regiãodopescoço e atrás das orelhas. As mãos e pernas tremiam e suavam,convergindoparaseubaixoventre.Então,opríncipedisseaquiloqueelarogavaparanãoouvir:

“Porfavor,deixa-meverteurosto!”

Elapermaneceuquieta.

“Porfavor”,insistiu.

Samarapunzelentãorespondeu:

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“Dejeitonenhum.Tunãopodesmeolhar!Ninguémpode!”

“Porquê?”

“Porquesouhorrorosa!Éporissoqueminhamãemeescondeuaquinatorre!”

O príncipe não contava com aquela hipótese. Mas, dando uma boaolhadanocorpodeSamarapunzel,resolveuinsistir.

“Nãopossocrerqueadonadevoztãomelodiosasejafeia!E,aindaquefossses... tenho certezadeque tensoutrasqualidades! Por favor,mostra-meteurosto!”

Ajovemvirou-sedecostas.

“Não!Dejeitonenhum!Vaiembora!”

“Por favor”aspalavrassaídamdabocado jovemcomoumaprece: “Euteimploro,deixa-meverteurosto!Porfavor!”

Ao ouvir a voz aveludada do príncipe, tão calma e sedutora,Samarapunzelsentiuquepoderiacon iarnele.Virou-see,aindadequeixoabaixado,delicadamentepuxouoscabelosquelhecobriamorosto.

“Sóumpouco...”,disseenvergonhada.

Emseussonhosmaisdesvairados,opríncipejamaispoderiaimaginaroqueveriaaseguir.

***

Osolhosdopríncipesearregalaram.Suabocaseabriu,comoseaalmaquisessesairporali,eumagritanteparalisiatomoucontadesuaspernas.Asuafrente,estavaSamarapunzel,mostrandopelaprimeiravezorostoaalguémquenãofossesuamãeadotiva.

“O que foi? O que foi?”, perguntou a garota, voltando a ocultar o rostosoboscabelos.

Opríncipepermaneceuemsilêncio.

“Eu sabia, eu sabia! Sou horrorosa!”, começou a choramingar. “Mamãediziaaverdade,eudeviatê-laescutado!”

Passadoochoqueinicial,oprínciperecuperouosmovimentosdorosto,fechouamandíbula,estalando-a,ebalbuciou:

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“Não...não!Tués...tués...”

“Sou o quê?” Samarapunzel estava intrigada: “Não posso ser tão feiaassim”

“Eu conheci muitasmulheres emminha vida! Mas tu... és de todas... amaisbela!”,disseopríncipe,curvandootroncorespeitosamente.

Oherdeirodo tronoentãoabriuumabolsaque traziaede lá tirouumespelho, acessório caríssimoquealguémde seugarbo sempre carregava.Entregou-oàSamarapunzelque,pelaprimeiravezdesdequenascera,viuseu re lexo e icou igualmente besti icada com sua própria beleza. A tezera clara, livrede imperfeições,macia comoumapétalade rosa.Osolhosnegroseramcomoosdeumaferaenjaulada,ebrilhavamcomselvageriaemistério.Onarizeraperfeitocomoumpoema,eeladeslizouodedosobreele,sentindo-oa inareterminarnumapontinhaduraedelicada.Osdentesserevelaramnumsorriso,perfeitamentealinhadossob lábioscarnudosevermelhoscomoodesejo.

“Não sou horrorosa! Sou de todas a mais bela... sou de todas a maisbela!”, repetiu como um mantra que, estranhamente, lhe soou familiar.“Masentãoporqueminhamãesempremedissequeeuerahorrorosa?”

“Decerto,elateminvejadetuabeleza!”

Samarapunzel deixou escorrer uma lágrima, negra como seus cabelos.No re lexo atrás de si, viu o príncipe estranhar o fenômeno, para emseguida tocá-la nos ombros e acariciar delicadamente as mangas de seuvestido branco. Ela enxugou os olhos, borrando de preto sua bochecha.Virou-see,subitamente,sentiuoslábiosdorapazcolidiremcontraosseus.

Ajovemhavialidosobrepríncipesencantadosebeijosnoslivrosqueamãe trazia,mas jamais imaginava que fosse algo como aquilo. As línguasdançavam, os pelos se eriçavam e ela sentiu crescendodentro de si umavontade incontrolável, como uma fome ancestral, um desejo ardente dedevoraropríncipevivo.

“Será que isso é o amor?”, pensou. Ela afastou os lábios e, antes quepudesseabrirabocaparaengolfar-lheacabeça,orapazpuxou-adevoltae,comumahabilidadequepareciamágica,arrancou-lheovestidobrancousandoapenasumamão.

E Samarapunzel descobriu que havia muitas maneiras de saciar suafome.

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***

Minutosdepois,aindaemêxtase,Samarapunzelolhava ixamenteparaoteto. Seuspensamentosestavam tranquilos comoa cortinade sedasendoacariciadapelovento.Aseulado,oprínciperoncavanu.Tocou-lheopeitofrio e envolveu-o em seus braços antes de mordiscar-lhe o pescoço. Orapaz abriuos olhos e, porum instante, achou estar sendodevoradopormambasnegras,maseramsóoscabelosdeSamarapunzelcobrindo-lheotorso. Achou curiosa a predileção da jovem pormordidas, especialmenteapóselaterlheconfessadoquejamaissedeitaracomninguém.Mas,comocadaumtemsuasmanias,eessasnãosediscutementrequatroparedes,opríncipe entrou novamente naquela dança. Ele a mordeu de leve nopescoço,eelacravousuasunhasnascostasdele.Elealambeunaorelha,eelasearrepioutoda,cerrouopunhoesocou-lheosombrosduasvezes.Elearregalouosolhose,antesquealguémsaíssemachucado,pôs-seemcimada amante e a acalmou damaneira que só um príncipe sabe fazer. Pele,músculo e ossos se chocaram violentamente; o som da cama batendocontraaparedeexpulsavaasaranhasebaratasdetrásdosmóveis.Eleachamavapornomespoucoortodoxoseelarespondiacomurrosancestrais.Tãologoelepercebeuqueasunhasdelaseaproximavamnovamente,deu-lhe um tapa na cara, agarrou-lhe os punhos e tascou-lhe um beijo,inundando-acomoêxtasequeporfimacalmousuabestainterior.

Adormeceram, completamente exaustos. Perto dali, os predadoresnoturnosdescobriamsuasorelhas.

O ritual violento se repetiu por mais três, quatro, oito vezes naquelamesma noite, nem se lembravam ao certo. Muitas também foram asmordidaseescoriaçõesqueopríncipeteriaqueesconderemseucorpo.

“Selvagem,estamenina”,pensou.

***

Comoeradeseesperar,osdoisjovenscombinaramquepassariamasevertodasasnoites, jáque,duranteodia,amulherdebrancoestava lá.Ebastava o sol se pôr para que o príncipe saísse detrás da moita,assobiando,cantarolandoesaltitando“Samarapunzel,jogateuscabelos”.Eelajogava,eelesubia,eelesriam,bebiam,sebatiameseamavamatéosolocupar seu lugar no céu. Nos poucos momentos em que as bocas nãoestavam grudadas, eles trocavam juras de amor, e o príncipe se gabavapara Samarapunzel sobre o reluzente castelo em que ele vivia além dasmontanhas.

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“Quando poderei visitá-lo?”, ela sempre perguntava. “Um dia”, elerespondia antes de novamente tomá-la em seus braços. E seus únicosvizinhos, os animais, logo migraram para áreas mais tranquilas esilenciosas, deixando a noite como única testemunha da violenta sinfoniadaqueleamor.

Durante os meses que se sucederam, Samarapunzel sentiu-segenuinamentefelizpelaprimeiraveznavida.Aalegriareluzentecomqueelalimpavaacasa,cozinhavaefaziasuastarefasnãopassoudespercebidapelamãe:

“Estás bem-humorada hoje, Samarapunzel!”, comentou-lhe numamanhã.

“Éaalegriadetever,mamãe!”

“Estáscoradahoje,Samarapunzel!”,comentounaoutra.

“Éaalegriadeteouvir,mamãe!”

“Estás...verde,Samarapunzel?”,reparounumaoutra.

Ameninaentãopôsamãosobreabocae correuparapegarum jarrodecerâmica,ondevomitouumasubstânciaverdeeborbulhantemisturadacomcabelos.Amãeveioemseuauxílio,masantesqueelachegasseperto,jogouolíquidoasquerosopelajanela.

“Oquefoi,minhafilha?Seráquecomestealgoestragado?”

“Achoque sim,mamãe...mas jápassou!”, respondeu, engolindoogostoamargo.

Semdaradevidaimportânciaaofato,amãepreparou-lheumabebidaearrumou-separapartir:

“Bom, tomaumpoucode leite e icarásboa!Amanhãdemanhãvenhovisitar-te novamente.” Beijou-lhe a testa e pediu-lhe que descesse oscabelos.

Lá debaixo, a mulher acenou para Samarapunzel, e não reparou nagrama que acabara de secar em contato com o líquido que foraarremessadopelajanela.

***

Quandoopríncipeavisitou,naquelamesmanoite,osenjoosvoltarama

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atormentar Samarapunzel. Os jovens acharam por bem não fazerdemasiado esforço ísico, e icaram apenas abraçados, com ele lhecontando como era in initamente rico e afortunado, descrevendo uma aumasuasviagens,seuscavalos,suaspropriedades,terraseplantações,atéque amenina caiuno sono, sonhando comodia emque conheceria tudoaquilo.

Comooprínciperogaraaosdeusespersistentementedurantesemanas,os enjoos de Samarapunzel cessaram, e as noites de esbórnia voltaramcom tudo.Até que, durante as idas e vindas de uma acalorada sessãodeamor entrelaçado e pegajoso, o atento rapaz não pôde deixar de repararnoventreligeiramenteavolumadonocorpotãoesbeltodaamante.Deteve-se por um instante, e seu suor frio caiu direto sobre a retina deSamarapunzel.

“Oquefoi?”,elaperguntou,enxugandooolho.“Algodeerrado?”

“Não, não... está tudo bem!”, dizia, já se levantando da cama. “Masprecisoir!Meupai...orei...precisademim!”

“Masosolnemnasceuainda!”

“Poisé,masprecisoacordarcedoamanhã!”,disse,pulandonumpésó,enquantocalçavaasbotas.“Adeus,digo...podesdescerteuscabelos?”

EassimaingênuaSamarapunzelofez.

“Nos vemos amanhã...?”, disse ela, numa entonação dúbia, respondidaporumsorrisoamarelodopríncipe.

Orapazchegouaochãoepôs-seagaloparseugaranhãoemdireçãoaoamanhecer.

“Oquehouvecomele?”,perguntou-seSamarapunzel.

Para a surpresa da jovem, o amante não apareceu na noite seguinte.Nemnaoutra.Naterceira,Samarapunzelsequerseimportouemesperá-lona janela. As lágrimas pretas escorriam de seus olhos emancharam seutravesseiro.Agarrou-seaeleegolpeouacamahistericamente,semsedarconta de que seus cabelos se erguiam do chão. “Por quê?”, gritou, e oscabelos chicoteavam as paredes. “Por quê?” e os vasos e quadros foramestraçalhadospelafúriacapilar.

Elaaindaofegavaraivosamentequandosedeucontadadestruiçãoquecausaranoquarto.Os cabelosagitavam-se comsua respiração,movendo-

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se sutilmente como serpentes. O fenômeno não a assustou, ao contrário,pareceu-lhe estranhamente natural, como um bebê que percebe pelaprimeiravezaprópriamão.

Umtentáculoformadopeloscabelosveionadireçãodeseurosto,comose tivesse vontadeprópria. Enrolado a ele, estava o espelhodeixadopelopríncipe, no qual Samarapunzel olhou novamente sua beleza re letida,antesdearremessaroartefatocontraaparede.

Foi quando ela ouviu umbarulho grave vindo de dentro de si, como omugido de uma besta. Tocou o baixo ventre, sentiu a estranhamovimentaçãodentrodeseucorpoearealidadeeraaospoucosdespejadaemseuser.

Amãeadotiva jamais lheensinarasobreatragédiadoamor, tampoucosobre o milagre da vida. Mas a natureza se encarregou de tudo,inundando-a com sensações que ela jamais sentira antes. Sua bocasalivava, seu coração pulsavamais forte, sua respiração estava ofegante,seus órgãos internos mudavam de lugar... pressionados pelos oitopequenosmembrosquecresciamdentrodesi.

Eelanãosoubedizerse forasua imaginaçãoounão,maso fatoéque,entre um barulho e outro vindo de sua barriga, sílabas arrastadas sefizeramouvir:

“Ma...mãe?”

***

Não tardou até que as drásticas transformações no corpo esguio deSamarapunzel se mostrassem evidentes sob seus inos vestidos brancos.Quandopercebeuquealgoestavaacontecendo,amãelheperguntou:

“Samarapunzel,porqueteuspeitosestãotãoinchados?”

“Éporquetomeimuitoleite,mamãe!”,disfarçouumaprimeiravez.

“Eporquetuabarrigaestátãogrande?”

“É porque teus doces estavammuito gostosos ontem,mamãe!”, tentouumasegunda.

Masamãesabiaquesóhaviaumdocenomundocapazdefazeraquilocom uma mulher. Aproximou-se da ilha, puxou a saia para cima e nemprecisoutocarapeleesticadasobreadurabarrigaparaperceberoóbvio

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quehádiaslheeraescancarado:

“Estás grávida?” gritou, ultrajada. “Meninamalvada! Como pudestemeenganar,comopudestementirparamim,depoisdetudooquefizporti?”

Samarapunzel nada disse. Puxou o vestido de volta e, como fazia emsituaçõescomoaquela,escondeuorostosoboscabelos.

“Digas, como... com quem tu te deitaste? Quem é o pai da criança?!”,gritava a mãe, inutilmente. Samarapunzel permanecia em silêncio,encarandoochão,soterradapelanegracabeleira.

Amulhernãosefezderogadaeapuxoupelosombros:

“Olhaparamimquandofalocontigo!Soutuamãe!”

Então,Samarapunzelaagarroupelosbraçoseolhouemseusolhos:

“Nãosoutuafilha!Enãoéumacriança.Sãoduas!”

Amulhersentiuosbraçosqueimaremaotoquedagarota,exalandoumafumaça escura. Pela primeira vez em muitas décadas, ela sentiu orevigorantevenenodomedopercorrersuasveias.Uivoudedor,eteveseuser invadidopelo horror ao ver os cabelos da jovem se erguereme seusolhosseremtomadosporumbreusepucral,escurocomoamorte.

“Não!Não!”,elaberrou.

Comosedespertadeum transepelogrito, Samarapunzelolhouparaorosto apavorado da mãe e teve um breve lampejo de lucidez. Soltou osbraços da mulher e correu para um canto da sala, onde novamente seescondeusobseuscabelos,agoraestáticos,securvouesepôsachoraraslágrimasnegras:

“Oh...oque foiqueeu iz?”,perguntou-se,olhandoparaasmãos,agoravermelhas,aindaesfumaçantes.“Oqueestáacontecendocomigo?Perdoa-me,mamãe!Perdoa-me!Eunãoquismachucá-la,eujuro!”

Amulher olhou para seus braçosmarcados e para a ilha, sem sabercomo reagir. Ambas estavam genuinamente apavoradas com tamanhasrevelações.

“Estou tãoconfusa,mamãe...”, choramingoua jovem,numtombeirandoo infantil. A mulher de branco aproximou-se devagar, receosa por umsegundoataque,edeteve-seatrásdeumacadeira,quepoderiausarcomo

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escudoouarmacasofossenecessário.

Durante intermináveis minutos, Samarapunzel apenas chorava esoluçava.Entãoamãeperguntou:

“Queméorapaz?”

Relutante,elarespondeu:

“Éopríncipequemoranocasteloalémdasmontanhas.”

“Tuoamas?”

“Sim... eu o amo,mamãe!”, respondeu a garota, aos prantos. “Mas ele...elemedeixou!”

“Príncipes! São todos iguais, mesmo!”, pensou a mãe, que logo se deuconta de que aquilo em nada importava. Compadecida, tomou a ilha nosbraçose apazigou seu choro. Lágrimas tambémescorreramde seu rosto,masporummotivobemdiferente.

***

Durante longashoras, amulherdebrancoouviu a ilha confessar comconstrangedora riqueza de detalhes tudo o que se passara desde achegada do príncipe. Das noites violentamente calorosas às promessasinsípidas,culminandonosumiçovergonhoso,o longorelato fezcomqueamãepercebesseque,mesmoisoladadomundo,Samarapunzelnãopoderiaserprivadadesuapróprianatureza.Eraumajovemmulher,comdesejoseanseios que cresceriam cada vez mais, até se tornarem incontroláveis...exatamente como a herança maldita que ela trazia desde que suaverdadeiramãecomeraorapunzelamaldiçoado.

A mulher apenas olhava para a ilha, que voltou a esconder o rostodebaixodoscabelos,emsilêncio.Cadauma icoucircundandoosprópriospensamentos, repetindo palavras e ensaiando frases que levavam a umbeco sem saída. Quando viu que não havia mais nada a fazer, a mulherpegouseucestoesepreparouparapartir:

“Voltareiamanhã”,disse.“Entãodecidiremosoquefazer.”

Ela pôs amão no parapeito da janela e Samarapunzel estendeu-lhe oscabelos,semdeixardenotarnascicatrizesemseusbraços.

“Perdoa-me...mamãe!”,disse,quasenummiado.

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Amulherapenasolhouparaa ilhaedesceu.Ao tocaro solo,não tevecoragem de olhar para cima, e sentiu o olhar de Samarapunzel aacompanhá-laatéqueadentrassenafloresta.

Quando estava longe o su iciente da torre, olhou para os braços einalmente libertou as lágrimas que há anos queriam sair, aguardando odiaemqueseumaiortemorseriacon irmado:Samarapunzeleramesmoareencarnaçãodomal.

Pelaprimeiraveznavida, lamentou tero coraçãomoleenão terdadocabodelaquandoaindaeraumbebê.Agora,mataragarota,juntoàsduascriasmalditasqueelatraziaemseuventre,seriacomoperfuraroprópriocoração.Eelabemsabiaoquantoissodoía.

“Não posso me deter com sentimentalismo!”, pensou. “O mundo corregrandeperigo!”

Voltou para casa às pressas, abriu um antigo baú, de onde tirou seupunhalprateado,determinadaanãorepetirseuerro.

Enquantoisso,Samarapunzelobservavaomundodajaneladesuatorre.A barriga - que repentinamente parecia muito maior - agora se punhaentreelaeoparapeito.Comreceiodeincomodarosbebês,afastou-se.Foiquandosentiuumpequenosolavanconoventre.

“Umchute?”,eladeixouescorrerumalágrimanegradeemoção.“Vocêsjáestãochutando?”

Depois daquele pontapé, veio um segundo, provavelmente, do outroirmão.

“Paraijácomisso,monstrinhos”,elariu.

O que Samarapunzel não esperava era ser obedecida. Os movimentoscessarameela,encantada,comentou:

“Tãopequenosejáentendemoqueeudigo?”

Umasurpresaaindamaioraaguardava.Avozqueachavaterouvidonanoite anterior, agora se fazia muito mais compreensível, ainda queparecesseserpronunciadadeumagargantaborbulhanteeasquerosa:

“Entendemos...muitas...coisas,ma...mãe...”

Foi o maior susto de sua vida. Ela virou-se para o lado, procurou a

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origemdosom,enadaencontrou.

“So...mosnós,ma...mãe...teusfi...lhos!”

“Eunão...eunãoacredito!”,disse,levandoamãoàboca.

“Sim,somosnós...queremosmuito teco...nhe... cer,mascorremosgra...ve pe... ri... go!”, disse uma segunda voz, mais aguda e igualmenteassustadora.

“Comoassim?”

“A velha guardiã... amulher deman... to bran... co! Ela não é quemdizser!Elaquermatar-te,mamãe.Nãopo...desdei...xar!Nãopodesdei...xar,se...nãomorreremos jun... tos!Estamoscommedo,muito...medo!”,diziaaoutra.

“Oquê?Minhamãe?Maselanunca...”

“Tubemsa...besqueelanãoé tuamãe!Elaé fal... sa,cheiadesortilé...gios! Pren... deu-te aqui nesta torre por... que tem in... veja da tua bele...za!”,disseavozmaisgrave.

“Pretendetematarama...nhãdemanhãcomumpu...nhalpra...teado!”,completouaoutra,antesqueambasentoassememuníssono:“Proteje-nos,mamãe!Proteje-nos!Nãotemosmuito...muito...”

“Filhos? O que houve?”, Samarapunzel tocava a barriga, mas as vozeshaviamsecalado.

Osestranhosfenômenosocorridosdesdeoiníciodagravidezaospoucoslhe traziam umamelhor compreensão de quem ela realmente era e doquepoderiaser.

Ternamente,elatocouabarrigaefechouosolhos:

“Mamãevaiprotegê-los,filhinhos!Mamãepromete!”

Muito longedali, no sétimo círculodo inferno, alémdo vale Flegetonte,as almas penadas ouviram uma risada que assombraria seus pesadelos,casoaindalhesfossepermitidodormir.

***

Quando o sol nasceu no dia seguinte, Samarapunzel olhou para abarriga e viu que ela já estavamuitomaior, como se estivesse prestes a

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dar à luz. Levantou-se comdi iculdade e lembrou-se das vozes dos ilhosnanoiteanterior.

“Filhos?Filhinhos?”,cochichoucomamãonabarriga.

Em vez das vozes arrastadas da noite anterior, ouviu uma outra bemfamiliardoladodeforadatorre:

“Samarapunzel,jogueseuscabelos!”

Comosempre,ajovemobedeceueamulhersubiu.Tãologoadentrouatorre,nãopôdedeixardenotarocrescimentoanormaldabarrigadafilha:

“Céus, tua barriga está enorme, Samarapunzel! Parece que cresceu deontemparahoje!”

“É,eunotei,mamãe.Achoqueéporquesãogêmeos...sabe,ontemsentiosbebêschutandopelaprimeiravez!”

“Nãomedigas”,disseamulher,ajeitandoomantobranco.Emsuabolsa,ela trazia o punhal de prata. Estava disposta a terminar com aquilo damaneiramaisrápidapossível.

Samarapunzel deu-lhe as costas, falando enquanto caminhavaarrastandoseuscabelos:

“Verdade!Foiummomentomuitoespecial...”

Amulhertirouopunhaldabolsa.

“Enãosabesoquemais!”

“Oque,minhafilha?”

“Elesfalaram!”

“Nãomedigas!Efalaramoquê?”

Samarapunzelvirou-sederepente.Amulhertentouesconderopunhal,massabiaqueajovemoviraderelance.

“Falaram-me muitas coisas! A propósito, para que é esse punhal quetrouxeste?”

Amulherdisfarçoueguardouopunhalnabolsa.

“Punhal? Imagine,minha ilha.Éapenasumpente,umvelhopenteque

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ganheideminhaavó!”

“Éverdade.Devoteralucinadoporcontadagravidez,nãoé?”

Riu,eamulhersósoubeimitarogestonervosamente.

Samarapunzelsedeteve,virouopescoçoparatráseencontrouosolhosdamãe.Voltouacaminhar,dizendo:

“Sabes, agora que também estou prestes a ser mãe, dou-me conta detudooque izestepormim!Aindamaisporeutersidoadotada,enãosertuafilhaverdadeira!”

“Ora,Samarapunzel...sabesquenossocoraçãoéigual,independentedosangue que circula nele!”. Depois de pronunciar a frase, sentiu certoressentimentoporterdito“sangue”.

“Claro,eusei,mamãe!Masoque izestepormimfoimuitomaisdoquesimplesmente adotarumaórfã.Deste-me carinho, um lar. Ensinaste-mealer,eensinaste-meopoderdashistórias.”

“Sãooúnicojeitodeviverparasempre!”,completouamãe.

“Tens razão, mamãe! E disso eu jamais me esquecerei. Dentre outrasliçõesimportantes,comoporexemplo,anãofalarcomestranhos.Contudo,acho isso curioso, como eu falaria com estranhos se trancaste-me aquiquandoeueraapenasumbebê?”

“Eunãopretendiamantê-lapresapara...”

“Não, não,mamãe. Nãome entendasmal. Sei que tua preocupação foigenuína.Nãoqueroqueteexpliques!”

“Eusóqueriaprotegê-la...”

Samarapunzelsorriu.

As pernas da mulher tremiam. As paredes suavam, os quadros e aspanelasseagitavamnervosamente.

“Tambémme ensinaste a dizer sempre a verdade, e pretendo ensinarisso ameus ilhos! Apenas acho irônico que tenhasmentido paramim avidainteira!”

“Eu nunca mentiria para...”, a mulher tentou se defender. Sem quepudesse notar, a caminhada de Samarapunzel a envolvera num círculo

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formadopeloslongoscabelosnegros.Querepentinamentecomeçaramasemover tal qual serpentes, enrolando-se nas pernas, nos braços e nopescoçodamulher.Osusto fezcomqueelapulassepara trás,mas jáeratarde:estavairremediavelmentepresa.

“O que estás fazendo? Solta-me! Solta-me!”, gritou a pobre mulher,reencontrando-secomomedomaiscedodoqueimaginara.Tentoulevaramãoatéabolsa,masoutraserpentedecabeloslheagarrouopulso.

Instalou-sealiumverdadeiropandemônio.Panelaseacessóriosvoaram,ricocheteando nas paredes. Os livros se abriram e suas páginas serasgaramsozinhas;antesdeseincendiarememplenoar,eosalimentosdadespensaimediatamenteapodreceram.

Samarapunzelgritavanumafúriainfernal:

“Achavas que poderias me manter presa aqui para sempre? Dissestequesouhorrorosa,masagoraseidetodaaverdade!Tensinvejademinhabelezaedemeupoder!”

Ajovemaproximou-sedamãecomosbraçoseretosparaafrente.Suasunhas estavam tingidas com omesmo preto profundo que agora tomavaseusolhos.Masomaisapavorantefoiatransformaçãoqueabocasofrera,enchendo-sededentescomoumpredadormarinho,com ileirase ileirasdecaninosafiados.

“Pensasquepodesmachucaramimouameusbebês?PENSAS?”,gritou,enquantoaboca se abria aproporções aterradoras, capazesde engolir acabeçadesuavítima.

Apobremulhersentiuobafodamorte,ababafétidapingou-lheorostoe,então,seumundosetransformounoápicedohorror.Foidevoradavivapelacriaturaqueprotegeraehaviajuradodestruir.

***

Depois de fazer sua refeição, Samarapunzel viu-se envolta numa poçadesanguequesubiaporseuscabelosepelovestidobranco.Abriuabocaeliberouumanuvemdegasesfétidosesentiuausualmovimentaçãoemseuventre:

“Estais felizes, não estais? Agora a maldita não pode mais vos fazermal...”

Elasentiuospontapésagolpearemcommaisforça.

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“O que foi? Ainda tendes fome? Pois acho que já está na hora deconhecerdes o papai!”, e gargalhou demaneira que só pode ser descritacomonojenta.

Os cabelos em volta de si voltaram a se mover, agora como grandesgarras que ergueram seu corpo no ar. Saíram pela janela e, tal qual aspatas de uma aranha peçonhenta, foram rapidamente levandoSamarapunzel para a liberdade, pronta para espalhar seu horror pelomundo,semninguémqueapudesseimpedir.

Ondequerqueaspatasdecabelotocassem,avidaardiaeagonizavaatésecar. Bastou que Samarapunzel seguisse as montanhas para encontrar,alémdelas,oreluzentecastelodescritotãoeloquentementepelopríncipe.

***

Naqueledia,opríncipeacordaracoma levezadeespíritoquesomenteasvassalasdeseuharémparticularpoderiamlheproporcionar.Levantou-seefoiprontamentevestidoebanhadopelascriadas,quandoouviugritosvindosdoladodeforadopalácio.

“O que foi isso?”, perguntou ao eunuco que vigiava a porta. Ele sóergueu as sobrancelhas antes de olhar pela janela e soltar um grito dehorror.

“Algum protesto de camponeses”, pensou o príncipe. “O que será quequeremagora?Trabalharmenosainda?”

Para seu infortúnio, não eram trabalhadores querendo sua cabeça.Dirigiu-se até a janela, empurrouo eunuco e reagiude formaaindamaishistérica ao ver uma formabizarra, umamistura demulher grávida comaranha, cujaspataspretaseasquerosaseram feitasde tentáculosnegrosquesaíamdesuacabeçaemutilavam,semcritério,ospobrestranseuntesqueporalipassavam.

Comosepudessesentiroolhardoamantesobresi,Samarapunzelvirouo pescoço em direção à janela e abriu a bocarra, exibindo as ileiras dedentes. O príncipe caiu para trás e saiu correndo e tropeçandopateticamenteentreas jovensnuas,etão logochegouàporta,sentiuumapontadanas costas. Inclinouopescoçoparao ladodireito e suaprimeirareação foi se admirar com a ausência de dor no ombro atravessado porumalâminanegra.

Depénajanela,Samarapunzelria.Comumpensamento,otentáculode

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cabelos arrastou o príncipe entre as mulheres apavoradas até seus pés.Agoraagonizandodedor,eleolhouparacimaeviuaimensabarriga,queseagitavanervosamente.

“Crianças,estánahoradeconhecerdesopapai!”,riuacriatura.

Samarapunzel avançou sobre o príncipe. Agarrou-lhe os braços,queimando-oscomotoque,eoergueuatéaalturadesuacabeça.Abriuaboca,exibindosuas intermináveis ileirasdecaninos,que foiseesticando,esticando, esticando e icou tão grande que estava prestes a engolir orapazinteiro.

Derepente,omonstrosedeteveesecontorceudedor.

“Oque...oqueestáacontecendo?”,Samarapunzelpôsasmãosnoventre.

“Não!Nãoestánahoraainda!Crianças!Meusfilhos!”

A boca grotesca voltou rapidamente ao tamanho humano, e as mãostentaramconterosmovimentosespásmicosdabarriga,queseremexiatalqual um saco de batatas. Foi quandoumponto prateado surgiu no baixoventreedespontounumalâminaquecortouacarneeapeledebaixoparacima,expondosuascamadasvermelhaseamareladas,derrubandoórgãos,libertando uma nuvem negra de insetos e vermes, sangue e mistério e,enfim,amãeadotivadeSamarapunzel,aindaviva.

Amulher agora tinha omanto totalmente vermelho. Limpou o sanguedos olhos e da boca, para em seguida, cuspir sobre o corpo aberto daaberraçãoedosdoisfilhosquejamaisnasceriam.

“Queriassaberparaqueeraopunhal,Samarapunzel?Épara tecortarmelhor!”

***

As imagens ainda estavam cauterizadas nas pupilas cegas e nasmemóriasdopríncipe.

Pelos quase sete dias seguintes, o miserável agonizou, enquanto suapeleeraremendadaeseusmembrosnecrosadosextirpados.Emesmoqueencharcassemsuasnarinascométer,elecontinuavaseremoendoemseuleito, balançando os tocos onde antes começavam suas pernas e braços,suplicandocomoolharquelhetirassemdabocaopedaçodemadeiracujaúnicafinalidadeeradesviarofocodesuadorduranteasamputações.

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Asrisadasqueomiserávelsoltavaenquantoseucorpoeraremendadosó puderam ser encaradas pelos médicos como espasmos involuntários.Assimquepôde,umcompadecidoenfermeiroretirouamadeirababadadopaciente que, para sua surpresa, não perguntou se icaria bem nemsuplicouporumamorterápida,comoeradeseesperar.Ao invésdisso,opríncipesussurrouemseuouvido:

“Enfermeiro...precisocontar-teumahistória...”

***

Jacobterminaraseurelatoquandoosprimeirosraiosdesoliluminaramseu semblante choroso. Atônito, eu me perguntava como meu irmãopudera conceber chiste tão fantasioso, que, confesso, causara-meassombroemalgunsmomentoserisosemoutros.

“Eute imploro,Wilhelm!”.Estranhamente,aspalavrasagoraerambempronunciadas, semnervosismo, como as de quemaceita o luto. “Acredita,nãoapenasháverdadenessaspalavras, como tambémvidaedanação.AmeninaSamarapunzelvivenelas,espalha-sedecontoemconto,eagoratu,meu amado irmão, tens sete dias para contar essa terrível história aalguém!”

“E se eu não o izer?”, perguntei a Jacob, em tom de deboche. Aslágrimas agora escorriam sob um miado infantil que logo me deixounervoso.

“E se eu não o izer?!”, repeti elevando o tom de voz. Ele se levantou,esbarrandoemmeusmóveiselivros,implorando-meporperdão.Saiupelaportaafobado,talqualentrou,edaesquina,parouegritouduaspalavrasquejogaramminhaalmanumabismoinfinito:

“Tumorrerás!”

Desdequeouvi aquela história, temovermeu re lexonumespelhooumesmonumasimplespoçad’água.Pois semprequeo faço, vejo, atrásdemim,aapavoranteimagemdeSamarapunzel,maispertoacadadia.Desdequeouviaquelahistória,foi-menegadaachavedomundodossonhose,aodeitar-me à noite, sou levado à esquina onde me violentam os maisterríveispesadelos.Vejorelancesdeumpassadoremoto,umbailemalditoregidopordemônios,umapobresenhoratendoopémutilado,umarainhamorta, anõesmonstruososperseguindoumabela jovem, visito os portõesdo inferno,confraternizo-mecomseuan itriãoe,en im,olhoparabaixoevejoquenãotenhomaiscorpo,souumacabeçaarrancadaejogadadentro

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deumpoçoque se fechaacimademim, engolfando-meem trevas,masénas trevas que o mal loresce, e como a árvore que mesmo sem ver ousentir sabe que é uma árvore, sou um pé de rapunzelmaldito prestes atransmutar omal na única forma em que ele não pode ser extinto: a deumahistória.

E, ao leitor, eu suplico por perdão. Pois ao contrário de Jacob,maldito,malditoseja,ouHanseCharlesantesdele,nãotenhomuitosamigosevivorecluso numa cabana a escrever meus contos. Essa é a história deSamarapunzel, tal qual foi-me contada há quase sete dias e, abençoadoseja,seráesmagadapelasmaravilhasdofuturoeterminaráesquecidanosporõesdotempo.Masseacasoaspalavrasde Jacobforemverdadeiras,eeu não ouso dizer que não, e por uma terrível infelicidade chegaste atéestaslinhas,jásabesoquetensquefazersequiseresviver.

W.Grimm

Berlin,dezembrode1859.

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OFimdeQuaseTodasasCoisas

Duranteamaiorpartedotempoemquevagouaesmopelocosmo,oplanetaconhecidocomoTerranãoteverelevo,cheiroenemcor,semelhante a uma grande e vazia esfera de gra ite, com super íciesperfeitamenteplanaseentediantes.

Preso àsmemórias da época em que as areias do tempo ainda caíam,Charon costumava visitar aquele planeta esquecido e sentar-se no vazio,igual a todos os outros vazios, por onde um dia passou o rio Estige. Foiquando uma ninfa curiosa, vinda de alguma estrela ou sonho perto dali,aproximou-se e perguntou ao ancião o que ele fazia num lugar tãodesolado.

Charon contou-lheque sentia faltadoshomens.Àexceçãode registrosemvolumeshámuitoperdidos,hápoucasevidênciasdequeeles tenhamrealmente existido. Mas Charon, por ter transportado cada um deles emseu barco, do primeiro ao último, pelos rios Estige e Aqueronte até asportasdoHades,eraumdospoucosqueaindaseimportavaemlembrar.

“Tãopequenosetãofrágeis.Erampoucomaisdoqueumamontoadodetecidos, ossos e pouca consciência”, descreveu. “Mas por breve instantereinaramsobreseresmuitomaispoderososedignos.”

Contou-lhe sobre suas emoções, tão únicas e efêmeras, riu de suascriações,vistascomomerosdebochespelosdeuses,erigidascombaseeminterpretaçõesobtusasdesuasleis.

A visitante icou estupefata ante os relatos de espécie tão notável, quedesapareceudeformatãorepentina,comoseosdeusesquisessemapagá-la de seus livros. Ao lado de Charon, a ninfa percorreu a lisa esfera degra ite,tentandoimaginarondeoutrorahouvecidades, lorestasesonhos.E emmeio a todo aquele vazio histérico, Charon apontou o dedo para aúnicaconstruçãoremanescente:

“É uma casa”, disse o barqueiro. “Coisas inomináveis aconteceram aí.Personagens e feitos que por milênios inspiraram pesadelos. Foram-seseushabitantes,vieramosoutros,foi-seafloresta,vieramascidades,foi-seomundo, vieram os demônios, foi-se o tempo, veio o nada. E, da era dos

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homens,estapequenacasafoitudooquerestou.”

Aninfaseaproximoudaconstruçãoetocouasparedesesbranquiçadas,feitas de barro e pedra amontoados sobre lascas de árvores. Abaixou-separapassarpelapequenaportaredonda,eobservouointeriorrepletodeobjetos de formas indecifráveis. Depois de alguns instantes em silêncio,perguntou:“Diga-me,barqueiro,qualonomedohomemqueconstruiutalmaravilha,capazderesistiraotempo,aoventoeaofim?”

“Homem?”, riu Charon. “Não foi um homem quem construiu esta casa.Foiumporco.”