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FASCISMOUM ALERTA

FASCISMOUM ALERTA

Madeleine Albrightcom Bill Woodward

TraduçãoAna Glória Lucas

PrefácioJaime Gama

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.Reprodução proibida por todos e quaisquer meios.

A presente edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

© 2018, Madeleine AlbrightPublicado com o acordo de Harper, uma chancela de HarperCollins Publishers.Direitos para esta edição:Clube do Autor, S. A.Avenida António Augusto de Aguiar, 108 – 6.º1050-019 Lisboa, PortugalTel. 21 414 93 00 / Fax: 21 414 17 [email protected]

Título original: Fascism – a warningAutor: Madeleine AlbrightTradução: Ana Glória LucasRevisão: Silvina de SousaPaginação: Gráfica 99Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. (Portugal)

ISBN: 978-989-724-446-9Depósito legal: 445 244/181.ª edição: Outubro, 2018

www.clubedoautor.pt

Às vítimas do fascismo no passado como no presente

e a todos os que combatem o fascismo nos outros e em si próprios

Todas as épocas têm o seu fascismo.

Primo Levi

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ÍNDICE

Prefácio à edição portuguesa, por Jaime Gama ............ 13

um Uma doutrina de ira e medo ........................................... 17

dois Mussolini e o maior espetáculo da Terra ....................... 33

três Hitler, «o bárbaro» ............................................................ 49

quatro O Pacto de Aço .................................................................. 65

cinco A vitória dos Césares ........................................................ 77

seis A queda .............................................................................. 89

sete Ditadura da democracia .................................................. 107

oito Regresso ao genocídio nos Balcãs ................................... 125

nove Democracia, uma arte difícil ........................................... 139

dez Presidente vitalício ........................................................... 153

onze Na fronteira da tirania ...................................................... 171

doze O homem do KGB ............................................................ 191

treze O calcanhar de Aquiles da Europa ................................. 207

catorze O líder omnipresente ........................................................ 229

quinze Os perigos da presidência americana ............................ 251

dezasseis Pesadelos e ameaças à democracia ................................. 273

dezassete As perguntas certas para o futuro .................................. 291

Agradecimentos ................................................................ 307

Notas ................................................................................... 311

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PREFÁCIO

EXPERIÊNCIA E SABEDORIA POR JAIME GAMA

Poucas pessoas devem ter tido na Administração americana um percurso tão seguro como o de Madeleine Albright. A gra-duação académica na Universidade de Colúmbia cedo a levaria à assessoria no Congresso e à entrada no Conselho Nacional de Segurança pela mão de Zbigniew Brzezinski, durante a Presi-dência Carter. A posterior passagem pela Universidade de Georgetown impulsionaria um regresso de altos voos com a vitória de Bill Clinton, primeiro na chefia da representação norte -americana nas Nações Unidas e, de 1997 a 2001, como a primeira secretária de Estado da história governativa dos EUA. Profundamente mergulhada nas temáticas da segurança nacio-nal e internacional, bem como da política externa, aliando conhecimento teórico e experiência efetiva, não admira que se tivesse tornado uma referência sólida das opções do seu país para esta área de grande sensibilidade e relevância, merecedora de enorme respeito e consideração no espetro bipartidário da política norte -americana.

Mas Madeleine Albright é bastante mais do que o seu currí-culo oficial.

Nascida em 1937 em Praga, acabaria por emigrar aos onze anos para os Estados Unidos, depois de a sua família, em espe-cial o seu pai, um diplomata da Checoslováquia, ter vivido

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sucessivamente a invasão alemã e o golpe comunista e se ter visto forçado ao exílio em Denver. O peso do Holocausto far--se -ia sentir sobre esta família de modo especial, pois muitos dos seus parentes acabariam por ter um fim trágico nos campos da morte. Sem ter tido uma educação judaica estrita, antes aca-bando por se aproximar do catolicismo e do episcopalianismo, Madeleine Albright faria o percurso académico integrador na sociedade norte -americana típico de uma família ilustrada europeia forçada pelo peso dos acontecimentos históricos à grande aventura da emigração e à adoção de uma outra Pátria no Novo Mundo, ou melhor, nas Universidades do Novo Mundo.

Não admira, por isso, que a autora deste ensaio, depois de várias obras publicadas em torno da sua carreira oficial e da sua trajetória humana, como Madam Secretary ou Prague Winter, venha agora debruçar -se, com espírito crítico e interrogativo, mas sem nunca perder a serenidade ensaística e a confiança metodológica, sobre algumas da temáticas mais preocupantes da vida internacional e da sociedade norte -americana.

A arquitetura internacional construída em grande parte com inspiração norte -americana no final da Segunda Guerra Mundial, e que enquadrou a Guerra Fria e o seu fim, encontra -se hoje fortemente erosionada. O sistema das Nações Unidas e os seus vários subsistemas, bem como as diversas alianças regionais que o completavam, exprimem, quando muito, escassos pode-res de uma ordem internacional que não consegue afirmar o primado do direito internacional e das suas instituições sobre as áreas mais relevantes da vida dos países. Sistema imperfeito ou residual, é confrontado por poderes de Estado com ambi-ções geopolíticas emergentes, por atores não estatais com forte potencial de violência, por redes opacas de criminalidade e por fluxos migratórios irregulares. Radicalismos políticos de toda

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a ordem fanatizam franjas da sociedade e não raro as municiam mais com a efetividade dos armamentos do que com a sonori-dade dos argumentos. A noção, quiçá utópica, de que um mul-tilateralismo sistémico acabaria por resolver todos os problemas do mundo de hoje acabou por dar lugar à constatação de que prevalecem as condutas unilaterais e os jogos de força.

As grandes famílias políticas saídas da Guerra Fria, por seu lado, são paulatinamente substituídas por correntes de opinião, movimentos e lideranças que, usando a persistência de ques-tões económicas, sociais, culturais e institucionais, direcio-nando a mensagem para problemas fulcrais como a insegurança e a criminalidade, a desindustrialização e o desemprego, a ameaça migratória, a corrupção, os privilégios de casta das eli-tes instaladas ou a perda de representação nacional pelo risco da sua subalternização face a poderes fácticos e burocráticos supranacionais, logram desarticular os paradigmas políticos da ordem liberal -democrática e conseguem introduzir verdadeiras zonas cinzentas de irracionalidade opinativa e de protesto.

De novo, o autoritarismo volta a ter um potencial de apoio.

No caso dos Estados Unidos, percebe -se que o problema seja duplamente preocupante. Com os últimos resultados presi-denciais, não só o modelo de comunidade internacional, mas também a dimensão dos próprios valores políticos liberal--democráticos tradicionalmente praticados no país, passaram a ter um lugar secundário, em detrimento de pontos de vista mais radicados na lógica dos extremos políticos. Ordem inter-nacional e ordem constitucional sofrem hoje nos EUA a cons-tante flagelação de disruptores nunca antes imagináveis, que, paradoxalmente, se irmanam com variadíssimos, inesperados e surpreendentes pontos de apoio no plano interno e externo.

Madeleine Albright, aquela que há anos conheço, é tudo menos uma panfletária. Faz parte do «mainstream Washington»,

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onde coabitaram e coabitam grandes figuras do Partido Democrata e do Partido Republicano. Aprecio nela, desde que a conheci como representante dos Estados Unidos na ONU, o sentido do realismo temperado pelos valores democráticos do nosso tempo. Aprendi com ela o uso contido que um grande país pode fazer da sua enorme força e o contributo que serenamente pode dar para uma ordem internacional fundada no direito e na legitimidade de instituições sérias. Continuo a beneficiar da troca de ideias com ela e vários outros colegas ex -ministros dos Negócios Estrangeiros possibilitada pelo Aspen Institute e por outros espaços de consulta em que, com regularidade, nos temos encontrado ao longo dos últimos anos, desligados do exercício de funções executivas. Recordo o dia memorável da celebra-ção dos seus oitenta anos, com o casal Clinton e o ainda lúcido e participativo Zbigniew Brzezinski, entre tantas e tantas figu-ras ali presentes daquelas que ajudaram a moldar uns Estados Unidos à altura da sua responsabilidade mundial.

Fascismo – Um Alerta, a obra agora editada em português, não é, estou certo, e como a própria autora sublinha, o manifesto radical de alguém à procura de espaço público na fraturada sociedade dos Estados Unidos do tempo presente. É, antes, o apelo responsável de quem não desistiu de ver uma comuni-dade internacional assente em equilíbrios e uns Estados Unidos norteados por valores genuinamente democráticos.

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UMA DOUTRINA DE IRA E MEDO

No dia em que os fascistas alteraram pela primeira vez o sen-tido da minha vida, eu mal dominava a arte do caminhar. Foi a 15 de março de 1939. Batalhões de tropas de assalto alemãs invadiram a minha Checoslováquia natal, escoltaram Adolf Hitler até ao Castelo de Praga e empurraram a Europa para o limiar da Segunda Guerra Mundial. Depois de passarmos dez dias escondidos, os meus pais e eu fugimos para Londres. Aí unimo -nos a exilados de toda a Europa no auxílio ao esforço de guerra dos Aliados, esperando ansiosamente pelo fim daquela provação.

Quando, ao fim de seis penosos anos, os nazis se renderam, regressámos a casa cheios de esperança, ansiosos por construir uma nova vida num país livre. O meu pai prosseguiu a carreira no Serviço Diplomático checoslovaco e, durante um breve período, tudo correu bem. Depois, em 1948, o nosso país caiu sob o domínio dos comunistas. A democracia acabou e, uma vez mais, a minha família viu -se forçada a partir para o exílio. No Dia do Armistício, chegámos aos Estados Unidos, onde, sob o olhar atento da Estátua da Liberdade, fomos acolhidos como refugiados. Para nos proteger, e para que a minha vida, a da minha irmã, Kathy, e a do meu irmão, John, se assemelhassem o mais possível à normalidade, os meus pais não nos disseram o que só viríamos a saber décadas mais tarde: que três dos nossos

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avós e numerosas tias, tios e primos estiveram entre os milhões de judeus que morreram no ato supremo do fascismo – o Holocausto.

Tinha onze anos quando cheguei aos Estados Unidos, sem outra ambição que não fosse tornar -me uma adolescente ame-ricana típica. Livrei -me do sotaque europeu, li pilhas de livros de banda desenhada, colei o ouvido a um transístor e viciei -me em pastilha elástica. Fiz tudo o que podia para me integrar, mas não conseguia ignorar que, na nossa época, mesmo as decisões tomadas a grande distância podiam marcar a dife-rença entre a vida e a morte. Quando entrei para o liceu, criei um clube de assuntos internacionais, nomeei -me presidente e suscitava discussões sobre todos os temas, desde o titismo até ao conceito de satyagraha («A força que nasce da verdade e do amor») de Gandhi.1

Os meus pais prezavam as liberdades que encontrámos no nosso país de adoção. O meu pai, que rapidamente se estabele-ceu como professor na Universidade de Denver, escrevia livros acerca dos perigos da tirania e preocupava -se por os norte--americanos estarem tão habituados à liberdade – tão «muito, muito livres», escreveu ele – que pudessem tomar a democracia como garantida. Depois de formar família, a minha mãe telefonava -me todos os 4 de Julho, para ter a certeza de que os netos cantavam canções patrióticas e tinham ido ao desfile.

Nos Estados Unidos existe alguma tendência para romanti-zar os anos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial – para imaginar uma época de inocência azul -celeste em que toda a gente concordava que a América era grande, que todas as famílias tinham o sustento garantido, os eletrodomésticos de último modelo, filhos acima da média e uma perspetiva cor--de -rosa da vida. De facto, durante a Guerra Fria viveu -se numa ansiedade incessante em que a sombra persistente do fascismo foi escurecida por outro tipo de nuvem. Nos meus anos de

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adolescente, devido aos ensaios atómicos, o elemento radioa-tivo estrôncio 90 foi encontrado nos dentes dos bebés a um nível cinquenta vezes superior ao normal. Quase todas as pequenas cidades tinham um responsável pela defesa civil que incentivava a construção de abrigos atómicos nos quintais, aprovisionados com vegetais enlatados, jogos de Monopólio e cigarros. Nas grandes cidades, davam às crianças placas de metal com o nome inscrito, para facilitar a identificação no caso de acontecer o pior.

Quando cresci, segui as pegadas do meu pai e tornei -me professora. Entre as minhas especialidades, contava -se a Europa de Leste, onde os países eram desvalorizados como sendo saté-lites de um sol totalitário e onde se pensava, de um modo geral, que nada de interessante ali acontecia nem nada de importante lá mudaria alguma vez. O sonho de Marx de um paraíso para os trabalhadores tinha degenerado num pesadelo orwelliano; a submissão era o bem mais valorizado, os informadores vigia-vam todos os quarteirões, países inteiros viviam atrás de bar-reiras de arame farpado e os governos insistiam em que o pior era o melhor e que o preto era branco.

Depois, as mudanças aconteceram a uma velocidade sur-preendente. Em junho de 1989, as reivindicações de décadas dos trabalhadores dos estaleiros e a inspiração de um papa nascido em Wadowice resultaram numa governação democrá-tica na Polónia. Em outubro desse ano, a Hungria tornou -se uma república democrática e, no princípio de novembro, abriu -se a brecha no Muro de Berlim. Nesses dias mila-grosos, as televisões divulgavam todas as manhãs notícias sobre acontecimentos que pareciam impossíveis havia muito. Ainda recordo imagens dos momentos decisivos, na minha Checoslováquia natal, da Revolução de Veludo, assim cha-mada porque foi levada a cabo sem o estalar generalizado de cabeças ou de tiros. Aconteceu numa tarde gélida de finais

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de novembro. Na histórica Praça Venceslau, em Praga, uma multidão de trezentas mil pessoas agitava alegremente chaves, para simular o dobre de finados do Governo comunista. Numa varanda sobranceira à multidão, estava Václav Havel, o cora-joso dramaturgo que, seis meses antes, era um preso de cons-ciência e, cinco semanas depois, tornava -se presidente de uma Checoslováquia livre.

Nesse instante, fui uma das muitas pessoas que sentiram que a democracia tinha ultrapassado a sua prova mais difícil. A outrora poderosa URSS, fragilizada pela debilidade econó-mica e pela saturação ideológica, estilhaçou -se como uma jarra que caísse em chão de pedra, libertando a Ucrânia, o Cáucaso, as repúblicas bálticas e a Ásia Central. A corrida aos armamen-tos nucleares acalmou sem que nenhum de nós fosse feito em pedaços. No Oriente, a Coreia do Sul, as Filipinas e a Indonésia livraram -se de ditadores há muitos anos no Poder. No Ocidente, os governantes militares da América Latina cederam o lugar a presidentes eleitos. Em África, a libertação de Nelson Mandela – outro preso que se tornou presidente – gerou esperanças de um renascimento regional. Em todo o globo, os países que mereciam a etiqueta de «democracia» aumentaram de trinta e cinco para mais de cem.

Em janeiro de 1991, George H. W. Bush afirmou ao Con-gresso que «o fim da Guerra Fria tinha sido uma vitória para toda a humanidade (…) e a liderança da América foi determi-nante para o tornar possível».2 Do outro lado do Atlântico, acrescentou Havel, «a Europa está a tentar criar um tipo de ordem historicamente novo através do processo de unificação, (…) uma Europa onde ninguém mais poderoso seja capaz de aniquilar alguém menos poderoso, onde nunca mais seja pos-sível resolver disputas pela força».3

Hoje, volvido mais de um quarto de século, temos de per-guntar o que aconteceu a essa visão inspiradora; porque parece

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estar a desvanecer -se em vez de se tornar mais nítida? Porque está atualmente, de acordo com a Freedom House, a democra-cia «sob ataque e em retirada»?4 Porque estão tantas pessoas em lugares de poder a tentar minar a confiança da opinião pública nas eleições, nos tribunais, nos meios de comunicação e – questão essencial do futuro da Terra – na ciência? Porque se permitiu que se abrissem brechas tão perigosas entre ricos e pobres, cidadãos urbanos e rurais, os que têm cursos superiores e os que não têm? Porque abdicaram os Estados Unidos – pelo menos temporariamente – da liderança dos assuntos mundiais? E porque estamos, já bem entrados no século xxi, de novo a falar de fascismo?

Uma razão, francamente, é Donald Trump. Se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado que estava quase cica-trizada, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o penso e remexer na crosta.

Para a classe política de Washington, D. C. – republicanos, democratas ou independentes –, a eleição de Trump foi tão surpreendente que teria levado um ator de filmes mudos dos velhos tempos a agarrar no chapéu com as duas mãos, arrancá--lo da cabeça, dar um salto e cair de costas. Os Estados Unidos tiveram antes presidentes imperfeitos; de facto, nunca tivemos nenhum de outro tipo, mas nunca tivemos na era moderna um chefe do poder executivo cujas declarações e atos estivessem tanto em contradição com os ideais democráticos.

Desde a fase inicial da sua campanha e até chegar à Sala Oval, Donald Trump tem tratado cruelmente as instituições e os princípios que constituem os alicerces de um Governo aberto. Durante este processo, baixou sistematicamente o nível do discurso político nos EUA, demonstrou um desrespeito espantoso pelos factos, difamou os antecessores, ameaçou

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«trancar» os rivais políticos, referiu os jornalistas da corrente dominante como «o inimigo do povo americano»,5 propagou falsidades acerca da integridade do processo eleitoral dos EUA, promoveu irrefletidamente políticas económicas e comerciais nacionalistas, insultou os imigrantes e os países de onde são oriundos e alimentou uma intolerância paranoica para com os seguidores de uma das principais religiões mundiais.

Para os funcionários de outros países com tendências auto-cráticas, estas explosões são ouro sobre azul. Em vez de con-frontar as forças antidemocráticas, Trump é um conforto para elas – serve -lhes de justificação. Nas minhas viagens, ouço sem-pre as mesmas perguntas: se o presidente dos Estados Unidos diz que a imprensa mente constantemente, como pode Vladimir Putin ser criticado por fazer a mesma afirmação? Se Trump insiste em que os juízes não são isentos e que o sistema criminal americano é «motivo de troça»,6 o que impede um líder auto-crático como Duterte, das Filipinas, de desacreditar o seu sis-tema judicial? Se Trump acusa de traição os políticos da oposição pelo simples facto de não aplaudirem as suas palavras, que ido-neidade tem a América para protestar contra o encarceramento de presos de consciência noutros países? Se o dirigente do país mais poderoso do mundo encara a vida como uma luta em que vale tudo para alcançar os objetivos, em que qualquer país só pode vencer à custa de outro, quem empunhará o estandarte da colaboração internacional quando os problemas mais delicados não podem ser resolvidos de outra maneira?

Os dirigentes nacionais têm o dever de servir os melhores interesses dos seus países; isto é um lugar -comum. Quando Donald Trump fala em «colocar a América primeiro», está a afirmar o óbvio. Nenhum político sério propôs pôr a América em segundo lugar. O problema não reside no objetivo. O que distingue Trump de todos os presidentes desde o deplorável trio Harding, Coolidge e Hoover é a sua conceção de como

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melhor defender os interesses da América. Trump concebe o mundo como um campo de batalha em que todos os países estão apostados em dominar os outros; em que as nações con-correm entre si como promotores imobiliários para arruinar os rivais e espremer dos negócios cada centavo de lucro.

Dada a sua experiência de vida, podemos compreender que Trump pense assim, e existem sem dúvida na diplomacia e no comércio internacionais casos em que é evidente uma clara separação entre vencedor e vencido. No entanto, pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos têm defendido o ponto de vista de que as vitórias são natural-mente mais fáceis de obter e de manter através da concertação do que se as nações agirem sozinhas.

A geração de Franklin Roosevelt e Harry Truman argumen-tava que os Estados conseguiriam melhores resultados pro-movendo a segurança, a prosperidade e a liberdade partilhadas. O Plano Marshall de 1947, por exemplo, baseou -se no reco-nhecimento de que a economia americana estagnaria se não existissem mercados europeus capazes de comprar o que os agricultores e os fabricantes dos EUA  tinham para vender. Significava isto que a forma de colocar a América em primeiro lugar era ajudando os parceiros europeus (e asiáticos) a recons-truir e a desenvolver economias próprias dinâmicas. O mesmo pensamento conduziu ao Programa Ponto Quatro de Truman, que colocava a assistência técnica dos EUA ao dispor da América Latina, África e Médio Oriente. Uma abordagem semelhante proporcionou -nos bons resultados no domínio da segurança. Os presidentes desde Roosevelt até Obama procuraram ajudar os aliados a proteger -se e a participar na defesa coletiva contra perigos comuns. Não fizemos isto com espírito caritativo, mas porque aprendemos da maneira mais difícil que os problemas no estrangeiro, se não forem resolvidos, podem, sem que passe muito tempo, colocar -nos em perigo.