fascículo 2 todo dia É dia de Índio - vdl.ufc.brsites\1\dia de Índio final.pdf · cial tanto...

48
Geovani Jacó de Freitas Ivo Sousa Max Maranhão Piorsky Aires Ricardo Weibe Nascimento Costa RESPEITAR AS DIVERSIDADES E COMBATER AS DESIGUALDADES TODO DIA É DIA DE ÍNDIO Fascículo 2 Expressão Gráfica e Editora Fortaleza, 2009

Upload: duongnhan

Post on 09-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

Geovani Jacó de FreitasIvo Sousa

Max Maranhão Piorsky Aires Ricardo Weibe Nascimento Costa

RESPEITAR AS DIVERSIDADESE COMBATER AS DESIGUALDADES

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Fascículo 2

Expressão Gráfica e EditoraFortaleza,

2009

Page 2: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Secretária de Educação BásicaMaria do Pilar Lacerda Almeida e Silva

Diretor de Políticas de Formação, Materiais Didáticose de Tecnologias para a Educação Básica

Marcelo Soares Pereira da Silva

Coordenadora Geral de Formação de ProfessoresHelena Costa Lopes de Freitas

Coordenadora do Humanas Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada

Maria Neyara de Oliveira Araújo

Universidade Federal do Ceará (UFC)Reitor

Jesualdo Pereira Farias

Comitê Gestor Humanas

Profa. Dra. Maria Neyara de Oliveira Araú[email protected]

Prof. Dr. José Aires de Castro [email protected]

Projeto GráficoRubens Martins

CapaRubens Martins

Ficha CatalográficaFrancisca Danielle Guedes

Gráfica e EditoraExpressão Gráfica e Editora

F862r

Respeitar as diversidades e combater as desigualdades. Fascículo 2 – Todo dia é dia de índio. / Geovani Jacó de Freitas, Ivo Sousa, Max Maranhão Piorsky Aires, Ricardo Weibe Nascimento Costa. – Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda., 2009.

48p. 21 x 29,7 cm. Inclui bibliografia, videografia e indicações de vídeos.

1. Índios - Lutas e resistência 2. Constituição dos direitos do índio 3. Índios no Brasil 4. Índios no Ceará 4. Educação indígena 5. Tapebas – índios hiper-reais I - Título CDD 305.8981

Page 3: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

Apresentação .....................................................................................................................5

1 O TAPEBA HIPER-REAL ............................................................................................131.1 Introdução ..................................................................................................................131.2 Ambivalências ..........................................................................................................151.3 Considerações Finais ................................................................................................19Referências Bibliográficas ..............................................................................................20Para Saber Mais ...............................................................................................................21Para Refletir ......................................................................................................................22

2 ´´TODO DIA É DIA DE ÍNDIO`` ...............................................................................232.1 Os povos indígenas numa visão contemporânea .................................................252.2 A luta atual dos Povos Indígenas Brasileiros ........................................................262.3 Avanço Da Constituição Federal Ampliando Efetivamente Os Direitos Dos Po-vos Indígenas Do Brasil ..................................................................................................292.4 Convenção Nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais ...............................302.5 Novos princípios para a garantia dos direitos dos povos indígenas no Mundo: Declaração das Nações Unidas sobre direitos dos Povos Indígenas. ......................312.6 Os povos indígenas no Ceará ..................................................................................322.7 Outras lutas dos povos indígenas do Brasil: diagnóstico da educação ............33Bibliografia .......................................................................................................................35Para Saber Mais ...............................................................................................................36Questões Para Reflexão ..................................................................................................38

3 QUEM TEM OLHOS QUE OUÇA .............................................................................393.1 2008. Mucuripe, barraca de camarão. Fortaleza – Será que Freud explica? .....393.4 2000. Praça José de Alencar, Fortaleza ...................................................................413.5 Angu, só com caroço, ou a ficção dos anos oitenta ..............................................423.6 Em tempo de caju não se colhe manga. .................................................................443.7 “Só é real o que convém à Realeza” .......................................................................45Bibliografia .......................................................................................................................45Videografia .......................................................................................................................45Vídeos Indicados .............................................................................................................45Para Refletir ......................................................................................................................46

Page 4: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para
Page 5: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“5”

APRESENTAÇÃO

Geovani Jacó de Freitas1

Caros(as) professores(as), este Fascículo, intitulado Todo dia é dia de índio, nos faz recobrarmos célebre canção da música plural brasileira, gravada no final do século passado, que nos fazia cantar “todo dia era dia de índio...” Estamos, caro(a) leitor(a), diante de dois títulos referentes a duas obras, de estilos diferentes, elabo-radas em tempos diferentes, que remetem a uma mesma problemática, mas com uma sutil diferença em seus títulos. Enquanto no da canção o verbo ser está no passado, o deste Fascículo está no presente.

Este pequeno detalhe traz algum sentido para pensarmos relacionalmente o presente e o passado do Brasil, sobretudo se focarmos a história dos índios após a chegada do colonizador europeu nestas terras? O que nos revelam o passado e o presente dos índios no Brasil contemporâneo para aprofundarmos a compreensão do que seja respeito à diversidade e combate às desigualdades no País?

Este Fascículo ousa assumir este desafio e esta provocação. Ele é o segundo de um conjunto de cinco fascículos que compõe o curso Respeitar as Diversidades e combater as Desigualdades. A tarefa a que ele se propõe é de trazer-lhes, de modo reflexivo, incursões históricas e atuais sobre a trajetória dos povos indígenas no Brasil, o processo de como foram postos à margem da sociedade, tanto do ponto de vista objetivo quanto simbólico e que lutas e resistências estão travando, hoje, para se firmarem como atores políticos portadores de direito sociais.

Objetivamente, a história se nos revela como palco sucessivo de massacres de índios no Brasil, expressos pela contínua perda dos seus territórios e pelo ge-nocídio a que foram submetidos. Do ponto de vista cultural, opera-se, ainda nos dias atuais, o massacre simbólico operado pelos pontos de vista e práticas sociais dominantes. A visão do colonizador europeu, de base etnocêntrica, não só produ-ziu como reproduziu e legitimou “verdades naturais” que justificaram, e ainda justificam a empresa colonizadora de ontem e hoje.

O esforço da negação histórica imposto pelas elites brancas, mediante o uso da força ou do convencimento, produziu uma “historiografia oficial” sobre o índio brasileiro e o manteve apartado do projeto de construção da nação Brasil. É a con-testação desta “verdade histórica, política e culturalmente construída” que povos indígenas em todo o Brasil se auto-afirmam e contestam as versões históricas cor-rentes, buscando recuperar o seu devido lugar nessa história.

Mediante esforços de uma nova historiografia, índios e cientistas humanos e

1 Graduado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba, mestre em Sociologia Rural, pela Universidade Federal da Paraíba e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. É professor do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência – LEV, da UFC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada para as Humanidades – HUMANAS/UFC, organiza e apresenta a presente coleção.

Page 6: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“6”

sociais buscam recontar a história do índio no Brasil sob novo ângulo, a do próprio índio e da sua diversidade de povos, línguas e culturas. Este movimento político e intelectual vem revelando, não sem lutas e conflitos, o protaganismo dos índios em todo o território nacional e, em particular, no estado do Ceará.

Que lutas são estas e que novos significados e agentes sociais entram em cena nesta busca de contar uma nova história, tendo o índio como um sujeito de direi-tos? Para nos ajudar nesta empreitada intelectual, este Fascículo conta com a par-ticipação de três convidados especiamente chamados para iniciar a provocação: o antropólogo e professor Max Maranhão; o antropólogo e artista plástico Ivo Souza; e a liderança indígena e professor da rede de Ensino Básico Weibe Tapeba.

Os percursos diversos de cada um destes convidados, e a diversidade de idéias e provocações que nos trazem, revelam-se pelas suas narrativas instigantes para que você, professor(a), ao aceitar o convite para estas reflexões, tenha a feliz oportunidade de pôr a teoria em movimento com a realidade local e, com isto, adentrar com clarividência nas armadilhas que o senso comum nos oferece em troca de comodidade intelectual.

E tem mais. As narrativas aqui trazidas pelos nossos convidados, além de nos brindar com ferramentas teóricas, nos levam ao irremediável, ou seja, nos põem no campo da desconstrução de verdades pré-fabricadas e cristalizadas como naturais. Neste aspecto, os campos simbólico e político dos pré-conceitos, sobretudo do pré-conceito racial e étnico e das relações sociais que dele emanam, se nos apresenta como algo pré-construído e sem história. A desnaturalização deste processo só nos será possível mediante a prática crítica e reflexiva, mediante uma atitude provoca-dora de rupturas no plano simbólico e cognitivo. Lembrando o pensador indiano Homi Bahbha, para sair desta armadilha do pré-concebido, é necessário serrar o próprio galho onde estamos sentados.

É neste esforço de preencher os ditos “vazios cognitivos” da historiografia ofi-cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para as Humanidades, HUMANAS/UFC, tem investido em suas atividades pedagógicas no campo da formação continuada de professores.

O Núcleo é parte de uma Rede Nacional de Formação Continuada de Profes-sores da Educação Básica2, com apoio do MEC. O desafio deste Núcleo é o de reali-zar experimentos e ações formativas na área das Ciências Humanas que aproxime o conhecimento científico e as ferramentas de sua produção, acumulados pelas universidades, e o ensino realizado nas escolas públicas de Educação Básica.

2 A Rede é constituída por dezenove centros localizados em �niversidades Públicas e Comunitá-A Rede é constituída por dezenove centros localizados em Universidades Públicas e Comunitá-rias, distribuídas em todo o País, e abrange as áreas de Alfabetização e Linguagem, Matemática e Ciências, Ciências Humanas e Sociais, Arte e Educação Física e Avaliação da Educação. O Núcleo Humanas/�FC compõe a área das Ciências Humanas e Sociais, tecendo um fio da trama desta Rede juntamente com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (P�C-MG). Para aprofundamento desta questão, confira a publicação Trabalho, de-senvolvimento e educação: processos sociais e ação docente. Guia didático-metodológico. ARAÚJO, M. N de O.; BRITO, A. R. de S .; FILHO, J. A de C. (Orgs.). Fortaleza: Tiprogresso, 2007.

Page 7: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“7”

Esta perspectiva do HUMANAS/UFC implica em reconhecer que a formação de professores das escolas públicas do Ensino Básico não deve ser traduzida pela prática de reciclagens isoladas, mas pretendida e realizada, primeiramente, como uma política pública de formação continuada que resulte no alargamento e circu-lação dos conhecimentos produzidos pelas Ciências Humanas e Sociais, associa-dos aos saberes locais, experimentados de maneira crítica e reflexiva.

A formação continuada desenvolvida pelo Humanas, nesta perspectiva, bus-ca o fortalecimento do professor como agente produtor de conhecimentos e não apenas como reprodutor deles. Professores que, tomados pelo prazer de aprender, sejam capazes de também ensinar e, com este desejo mútuo, tomem como matéria-prima das matérias ensinadas, a beleza e a força das transformações que podemos operar com o encontro de teorias gerais, produzidas pela ciência, com o mundo e as experiências significativas, dos professores, tanto no plano individual quanto no coletivo.

A atitude reflexiva do professor-aprendente impõe-se como uma prática peda-gógica essencial nesta proposta de formação continuada de professor do ensino básico. Acreditamos que o confronto criativo entre teoria e empiria, entre pensa-mento e ação, entre verdades cristalizadas e as possibilidades de desconstrução delas, configura-se como espaço de recriação e de produção de saberes mais com-petentes e focados no que a dinâmica da vida na sala de aula e do seu entorno exige para descobrir o que é e acertar no que é fundamental. Este acerto é condição sine qua non para o ato de aprender e de ensinar.

Pensamos que a ação reflexiva como um método na formação continuada, propõe-se a agir diretamente no modus operandi do professor como agente produ-tor de conhecimentos, ou seja, a formação como experimento de oportunidades de acesso a ferramentas teórico-metodológicas visando à qualificação do saber-fazer do professor em formação e do próprio aluno em sala de aula, e à superação da di-cotomia teoria versus prática e da teoria versus metodologia, equívocos epistemoló-gicos produtores da perversa separação entre trabalhadores intelectuais pensantes e trabalhadores intelectuais executantes.

Nas demais produções teórico-metodológicas já publicadas pelo Núcleo Hu-manas3, voltadas para você, professor(a) do Ensino Básico, tem destaque a idéia

3 As publicações expressam as temáticas desenvolvidas na formação, consoante aos eixos teórico-metodológicos dos cursos. No curso Trabalho, Desenvolvimento e Educação, foram produzidos 3 fascículos, versando sobre as três categorias centrais: Fascículo 1: TRABALHO: um conceito para a construção da aprendizagem, de autoria de Maria Neyara de Oliveira Araújo; Fascículo 2: DESENVOL-VIMENTO: uma proposta para a emancipação social, de autoria de Maria Iara de Araújo; e Fascículo 3: EDUCAÇÃO; uma política para a construção da cidadania, de autoria de Francisco Alencar Mota. Para a temática seguinte, intitulada MAPAS, MEMÓRIAS E MENTES: espaço, tempo e conhecimento nas ações humanas, foram publicados três fascículos: Fascículo 1: MAPAS: o mundo está nas mãos e nas mentes de quem busca conhecê-lo, de autoria de Maria Florice Raposo Pereira; Fascículo 2: MEMÓRIAS: as mãos, as mentes e o mundo, de autoria de Frederico de Castro Neves; Fascículo 3: MENTES: nas mãos de quem procura conhecimento está o mundo, de autoria de Milena Marcintha A. Braz, Joannes Paulus S. Forte e Adalberto Ximenes. Os dois conjuntos de fascículos são acompanhados por guias teórico-metodológicos orientadores do seu uso.

Page 8: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“8”

de “no chão da escola”, professores(as) enfrentam, a todo o momento, situações cotidianas das mais simples às mais complexas, sem que possam fugir delas e que por elas são requeridos(as) a agir. Acreditamos que mediante uma prática reflexiva que integre experiências acumuladas tanto pelos agentes locais, quanto pelo co-nhecimento produzido pelas Ciências Humanas e Sociais, tais situações não ape-nas serão mais bem compreendidas como superadas, em parte ou no todo.

O foco do Humanas: o conhecimento das Humanidades

Dito isto, é possível compreender mais claramente o foco do Humanas: a for-mação do professor na área de conhecimento das Humanidades, articulando, no conteúdo de seus processos formativos, contribuições teóricas e metodológicas da Filosofia, da Economia, das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, e Ciência Política), da Psicologia, da Literatura e das Artes em geral como instrumentais de mediação do conhecimento sobre as realidades global e local, o dentro e o fora da escola, de modo que resulte, para os professores, três processos intelectuais e polí-ticos irredutíveis entre si: saber conhecer, saber pensar e saber intervir.

As trilhas deste caminho assumidas pela formação continuada de professores do Núcleo Humanas, são balizadas pelo referencial teórico-metodológico anco-rado na temática geral Trabalho, Desenvolvimento e Educação: processos sociais e ação docente - (TDE).

O aprofundamento destas três categorias gerais visa à compreensão teórica mais ampla de que a escola é um “espaço socialmente contextualizado, onde se en-trecruzam diferentes dimensões da experiência do conhecimento” e que deve ser compreendido sob uma perspectiva relacional e histórica, não dissociada destas categorias significativas para a interpretação da sociedade moderna.

Tendo estes eixos basilares como ponto de partida teórico, a formação conti-nuada do Humanas propõe-se a pensar a escola como produto de relações sociais mais amplas, ao mesmo tempo em que como produtoras e reprodutoras de rea-lidades sociais locais só compreensíveis pela apreensão histórico-dialética destas realidades, fundadas na diversidade e nas diferenças de atores, de práticas e de significados sociais.

O diálogo entre o geral e particular, entre o global anunciado pela análise dos três processos acima referidos e o local, revelado pelas relações cotidianas engen-dradas no interior desses processos, será apreendido ao nos debruçarmos sobre os significados do espaço, do tempo e do conhecimento, aspectos mediante os quais a ação cotidiana do professor se dá em sua plenitude.

A compreensão da relação espaço, tempo e cultura como esteio da ação coti-diana dos professores e da escola é a tarefa dos conteúdos propostos pela trilogia Mapas, Memórias e Mentes, cuja intenção é possibilitar, ao professor, uma reflexão sobre as conexões históricas e sociais da escola e das próprias histórias e trajetórias

Page 9: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“9”

sociais de cada um – dos professores e dos alunos – com o conjunto das trans-formações da sociedade brasileira e dos desafios postos por estas relações. O co-nhecimento será válido na medida em que vislumbre a superação do pensamento subalterno e das intolerâncias e das desigualdades sociais, culturais, de gênero, de sexo, de raça e das mazelas sociais deles decorrentes.

A escola e o direito à diversidade

É na mesma perspectiva teórica e metodológica do reconhecimento da com-plexidade do real, que exige, igualmente, um pensamento complexo e não linear sobre ele, que apresentamos o curso Respeitar as diversidades e combater as desigual-dades, a ser realizado pelo Núcleo Humanas junto aos professores da Rede pública do Ensino Fundamental.

Que questões esta problematização nos revelam, à luz das Ciências Humanas e Sociais e das nossas práticas cotidianas? Como estas se imbricam nos padrões normativos dominantes, e convivem, ora como artefatos, ora como artífices da produção dessas diferenças e desses lugares advindos da situação dos agentes, nomeados por critérios diferenciadores dos sexos masculino e feminino, de raça, de etnia, de orientação sexual, de pertencimentos geográficos, entre outras formas classificatórias de pessoas ou grupos sociais?

Para dialogar com estas diferentes implicações, o Curso contempla cinco te-mas que se inter-relacionam pela complexidade teórica e política que os unem: 1) África Mãe Preta, abordando conceitos de raça, racismo e lutas sociais; 2) Todo dia é dia de índio, que busca recobrar a história dos povos indígenas no País e as estra-tégias de afirmação de seus processos identificatórios; 3) Terra, Trabalho e Pão, que traz ao debate o processo histórico de ocupação das terras no Brasil, os diferentes modos e acepções sobre o valor e uso da terra pelos diferentes segmentos sociais, culminado com a politização da luta pela terra e da educação no e para o campo como elementos afirmadores de direitos e de justiça sociais; 4) A Cidade que Devora, nos convida a refletir sobre o estágio atual do desenvolvimento das cidades, o es-trangulamento de suas relações advindo das desigualdades sociais que ela encerra, culminando, daí, modalidades diferenciadas de violências urbanas na atualidade e suas expressões particulares no interior das escolas; e 5) Deus é Menino e Menina, que nos traz à reflexão a imposição histórica da normatividade padronizada às possibilidades de expressão da diversidade sexual, produzindo violências física e simbólica na medida em que a intolerância e a incapacidade de viver esta diver-sidade geram formas discriminatórias, como a homofobia e demais preconceitos, sobre grupos identificados como fora dos padrões sociais dominantes.

O conjunto destas temáticas nos descortina, sob diferentes ângulos, a cons-trução social da realidade mediada pelo estudo histórico das mentalidades e das

Page 10: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“10”

práticas políticas e culturais dos agentes e das classes sociais, ao mesmo tempo, nos interpela a mergulhar, criticamente, no nosso cotidiano ordinário, vivido por todos nós, professores e cidadãos, no interior das escolas e nos demais espaços de convivência social dos quais a escola nos parece uma síntese de suas contradi-ções.

O presente curso tem como material didático, portanto, estas cinco conferên-cias temáticas, gravadas em DVD, e cinco fascículos temáticos correspondentes, constituídos, cada qual, com três artigos escritos pelos expositores de cada confe-rência temática, consoante ao conteúdo exposto.

As atividades previstas do curso, em cada município, serão acompanhadas por professores tutores, já formados pelo Núcleo Humanas, que atuarão como me-diadores das atividades pedagógicas, que se realizam intercaladas entre atividades presenciais e não presenciais. As presenciais, com a mediação direta do monitor, se realizam mediante o uso de dos vídeos-conferência a cada encontro, seguido de debates e reflexões sobre os conteúdos apresentados. Ainda neste processo, o monitor intermedia a socialização dos resultados dos estudos realizados no pro-cesso de trabalho em Células4, e dá orientação teórico-metodológica voltada para a elaboração de projetos de intervenção dos grupos em seus locais de trabalho ou na comunidade em que vivem.).

Como atividades não presenciais, são considerados os encontros sistemáticos de estudos dos grupos de trabalho, mediados pelas referidas Células, dos quais resultam: a) produção de textos relacionados às temáticas específicas a que o pro-fessor é convidado a refletir; e b) elaboração de projetos e encaminhamento deles às possíveis instituições de apoio e fomento a essas iniciativas. Estes projetos de in-tervenção são formulados pelos(as) professores(as), agrupados(as) pela própria di-nâmica das Células e que, conclamados por meio desta formação a uma disposição intelectual e política em relação à adoção de atitudes de combate às desigualdades e pelo respeito às diferenças, possam agir de modo qualificado nos seus espaços de trabalho, de reflexão e de vida.

Todo dia é dia de índio - um convite à históriados povos indígenas do Brasil e do Ceará.

Após apresentação ampla do Curso e do Humanas, convidamos o leitor para apreciar o Fascículo 2 do Curso, composto por três artigos que se complemetam: o primeiro tem como título O Tapeba Hiper-Real, escrito por Max Maranhão, seguido do artigo “Todo dia é dia de índio”, de autoria de Ricardo Weibe Nascimento (Weibe Tapeba) e, por último, o artigo Quem tem olhos que ouça, escrito por Ivo Sousa.

4 O trabalho em Células contempla três dimensões, a saber: troca de conhecimentos entre os mem-O trabalho em Células contempla três dimensões, a saber: troca de conhecimentos entre os mem-bros dos grupos (estudos em grupos dos fascículos no local dos participantes); socialização dos resul-tados dos estudos em plenária; formulação e proposição de projetos de intervenção na comunidade escolar ou fora dela, inspirados nas temáticas e problemas estudados.

Page 11: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“11”

As questões trazidas por este conjunto de reflexões nos fazem pensar nas suti-lezas cotidianas do pensamento quando nos referimos aos índios e a tantos outros segmentos sociais, considerados pela sociedade estabelecida como “diferentes”. Índios, eles existem? A pergunta lhe parece impertinente ou fere o óbvio?

Ora, toda pergunta requer uma resposta. Ao respondermos que sim, tipo “ín-dio existe, claro!”, este fascículo nos remeterá a uma reflexão: já nos perguntamos, de maneira verdadeiramente reflexiva, sobre qual imagem de índio foi desenhada pelo imaginário social no nosso pensamento? Mas se respondermos que “índio não existe, ou melhor, que existe lá bem longe, nas matas fechadas do Amazonas, mas aqui, não!,” também seremos interpelados pelas questões deste Fascículo – quem disse que eles não existem? Em que bases argumentativas esta afirmação se sustenta?

Bem, aqui começa o que interessa à nossa reflexão, promovida pelos três au-tores deste Fascículo. Suas proposições nos fazem refletir o modo como a história do Brasil foi contada e como novos atores políticos subalternos emergem com o seu protagonismo social e político, visando à (re)constução da história dos povos desta nação Brasil. Assim vimos ao refletirmos os conteúdos da temática “África Mãe-Preta”, assim também nos apercebereremos com as práticas sociais e políti-cas dos índios brasileiros na atualidade: a busca de reconquistar os seus direitos de existência material e simbólica, cujo maior desafio é o de contar a “verdadeira história” de seus povos.

Esta luta, retomada há quase trinta anos, depara-se com uma diversidade de visões sociais sobre o índio, num planetário de ambivalências classificatórias entre o “índio”, o “não índio” e os “aculturados”. As reflexões são provocativas. Cos-tumamos dizer, ao ver um outro: “Tem cara de índio”. Eis que vem a provocação: “Tem cara de índio, por que não é índio?” Sobre qual índio falamos? A despeito desta pergunta, os textos deste fascículo nos dão as possibilidades para serrar o próprio galho de nossas representações: O“brabo”?, O “guardião do paraíso (o ide-alizado por nossas fantasias romancescas) ou o aculturado, aquele que parece mas não é? Estas questões afloram a cada página brindada por este Fascículo à nossa reflexão.

Como veremos ao longo dos artigos, no estado do Ceará são 13 povos indí-genas organizados, presentes em 15 municípios. Isto não quer dizer que sempre foram reconhecidos, o que nos remete a um dos eixos principais deste curso: o res-peito aos direitos individuais e coletivos. A história revela que, assim como os ne-gros e demais categorias subalternas, os povos indígenas no País têm, ainda, como luta fundamental, a legitimação dos seus direitos, sobretudo o direito à diferença e à sua existência como povo autônomo produtor e produto de culturas específicas ao mesmo com o direito de serem integrados à sociedade, sem que isto ateste a sua dissolução como índio.

Page 12: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“12”

Este desafio está longe de ser resolvido enquanto visões e práticas sociais não aprenderem a ver e encontrar o índio de carne e osso e não como uma miragem perdida em um passado longínquo. As questões aqui referidas no Fascículo nos remetem a pensar, inexoravelmente, no direito à diferença. Mas, como nos cha-mam à atenção as reflexões aqui expostas, enquanto perdurar no nosso modo de sentir, pensar e agir a “incapacidade de aceitar o diferente”, seremos inaptos de apreender a existência de um “índio real,” diferente da imagem ideal do índio “autêntico”, incrustada no nosso imaginário, como um índio “hiper-real”, ou seja, além das possibilidades do próprio real vivido.

Como dissemos no Fascículo 1, reafirmamos, do mesmo modo, o nosso con-vite final: agora é com vocês, professores e professoras!

Page 13: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“13”

Max Maranhão Piorsky Aires5

1.1 Introdução

Por volta da primeira metade dos anos 1980, a Arquidiocese de Fortaleza ini-ciou as suas ações junto aos tapeba. Neste empreendimento, uma estratégia mere-ce destaque: a intervenção de ordem cultural que procurou “resgatar” a memória e cultura indígena (BARRETO FILHO, 1994; AIRES, 2003), esse mito do indigenismo heróico que acreditou poder salvar os Tapebas do suposto processo de acultura-ção. Na prática, eram feitas incursões de pesquisas, de pequeno ou maior porte, em que os resultados materializavam-se na produção de múltiplos gêneros dis-cursivos, tais como fotografias, vídeos, cartazes, folders, cartas públicas, livretos, livros, mapas, documentos internos com circulação restrita, pesquisa documental e bibliográfica que tinham a intenção de constituir conhecimento sobre os tapeba. A maioria desse material foi elaborada entre os anos de 1985 e início da década de 1990, período do indigenismo6, local que corresponde aos momentos iniciais do processo de emergência étnica dos Tapebas e constituição do campo de ação indi-genista no Ceará (BARRETO FILHO, 1994; VALLE, 1994).

As pesquisas aconteciam no contexto de disputa pela terra que requeria, nas fases iniciais do processo de identificação e demarcação, “a apresentação de evi-dências históricas sobre a antiguidade do território” e que sobre ele “os índios exerçam de modo estável e regular uma ‘ocupação tradicional’, isto é, que utilizem

5 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará, e doutorado pela mesma instituição. Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará (UECE), curso de Ciências Sociais/Antropologia. Realizou trabalho de campo com os índios Tapeba, abordando as es-colas "diferenciadas". O interesse de pesquisa atual centra-se no movimento de professores indígenas como um desdobramento importante do movimento indígena no Ceará. Procura explorar etnografi-camente a constituição dessa classe de sujeito (o professor indígena) em meio a um conjunto de agen-tes e situações novas decorrentes de um ideário e ações vinculados à "educação escolar indígena" no Brasil e América Latina. Endereço eletrônico: [email protected] �tilizo Indigenismo no sentido amplo do termo: "... como um complexo edifício ideológico construído sobre diferenças étnicas, uma obra que nunca se completa. É uma Babel de conjunções e disjunções erigida com uma grande variedade de ingredientes que vão desde políticas oficiais, postu-ras religiosas e laicas sobre o destino dos povos indígenas, de construções antropológicas ou imagens jornalísticas a manifestações dos próprios índios face à sociedade dominante. A minha definição de Indigenismo não se restringe, portanto, ao indigenismo oficial. É, ao contrário, um Indigenismo com I maiúsculo para marcar um recorte bem mais amplo do que o oficialismo indigenista e para seguir o emaranhado de trilhas deixadas na consciência e no inconsciente coletivos por multidões de tran-seuntes que se acotovelam na paisagem do campo interétnico." (RAMOS, 1998, p. 8-9).

O Tapeba Hiper-real

Page 14: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“14”

tal território segundo ‘seus usos e costumes” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999; 2000, p. 20-22). Se levarmos em conta a especificidade da situação histórica das po-pulações indígenas no Nordeste brasileiro, marcada pelo ressurgimento das iden-tidades indígenas, “não há como falar em território indígena no sentido atual em que empregamos o termo e que os próprios índios contemporâneos reivindicam” (2000, p. 21). No entanto, no campo da disputa simbólica, estes saberes foram con-cebidos como indispensáveis, pois, dentre outras coisas, procuravam responder às questões postas pelas exigências legais e pelos argumentos da elite local de que os tapeba não são índios, por essa razão a maioria dos textos e imagens produzidos versava sobre assuntos relacionados “à história do Ceará e da ocupação autóctone e colonial da área onde hoje se situa o município de Caucaia” pretendendo “atestar a continuidade histórica dos tapeba com as populações pré-colombianas e a ime-morialidade da ocupação” do território a partir da produção de consensos sobre os tapebas (BARRETO FILHO, 19927, 1994, p. 20).

�ma das principais estratégias discursivas da Arquidiocese era afirmar pe-rante o público que o “povo tapeba existe”8. Irei chamar esta tática de orientalismo (SAID, 1996), pois implicava na criação de um índio fabricado, como diria Ramos (1995), um índio hiper-real, mais real que o índio real, na medida em que foram moldadas uma “cultura”, uma “história” indígena e uma geografia imaginativa (SAID, 1996) para que os tapeba correspondessem às representações da popula-ção não-indígena. Esta relação entre índios e os agenciamentos das mais diversas organizações não é simplesmente um exercício de imaginação, mas “é uma rela-ção de poder, de dominação, de graus variados de uma complexa hegemonia [...] que apresentou um “consenso”, um “conhecimento verdadeiro” sobre os tapeba” (SAID, 1990, p.17). Esta relação de dominação que pretendia “resgatar” e afirmar a existência da população tapeba possuía um cunho educativo, ou uma pedago-gia que apresentou uma indianidade idealizada em que “o índio deve continuar correspondendo à imagem daquilo que se quer preservar”, “mesmo ao preço de relações autoritárias e, sempre, reducionistas” (GALLOIS, 1992, p.127).

Nesse texto procurei explorar de que modo os tapeba foram orientalizados pela Arquidiocese e, em menor medida, por outros agentes; tais representações devem ser pensadas levando-se em conta outros inúmeros processos e situações especí-

7 Não disponho de uma versão do trabalho em que apareça a paginação do texto original, por essa razão no decorrer do texto não indicarei o número da página consultada.8 Os títulos dos documentos são um exemplo dessa estratégia, tal como a carta dirigida à população local intitulada Povo de Caucaia. Existem Índios no Ceará. Os tapebas ainda resistem, de 11 de julho de 1986. No decorrer do texto, apresento exemplos que procuram comprovar a minha afirmação, no entanto, por ora, cito um relatório da Arquidiocese e um de seus esforços: “A segunda vertente do trabalho compreende toda uma série de con-tatos com a população envolvente dos Municípios de Caucaia e Fortaleza, no sentido de demonstrar o direito dos índios tapeba a terem suas terras devolvidas e demarcadas pelo Poder Público, bem como de afastar e destruir os argumentos apresentados de que aquela população não é indígena...” (ARQUIDIOCESE, s.d.).

Page 15: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“15”

ficas, como fiz noutra ocasião (AIRES, 2007). Aqui, proponho-me explorar de que modo uma imagem idealizada dos tapeba foi produzida.

1.2 Ambivalências9

�m dos primeiros atos para a deflagração do processo jurídico-administrativo de regularização fundiária da Terra Indígena Tapeba foi o envio de uma carta, em 1985, ao presidente do Brasil, ao presidente da FUNAI e ao Ministério da Refor-ma e Desenvolvimento Agrário, solicitando “terra pra nós morar e plantar”, “um posto médico, escola para os índios” (apud O POVO, 1985). A Carta apresentou os tapeba como “índios”, como um “povo”, uma “nação”, portanto, sujeito de direi-tos e abrindo a possibilidade da deflagração do processo jurídico-administrativo de reconhecimento da Terra Indígena10, o que de fato aconteceu. Com transcri-ções de falas, o texto apresentou os tapeba como um povo sofrido (“os tapebas sofrido”, “Aí vivemo lutando e sofrendo pela vida”, “passa fome” etc.) e assinalou duas causas para o sofrimento: (a) as dificuldades de ordem socioeconômica oca-sionada pela negação do direito à terra, saúde e educação e, também, (b) aquilo que chamarei de as transformações culturais experimentadas pelos tapebas. Mais à frente explico-as. Na carta, há referência à morte de Perna-de-Pau, tido como um ancestral importante, e depreende-se que a morte do líder indígena foi o tema para o qual convergiram as duas causas de sofrimento a que o texto alude. A morte de Perna-de-Pau foi o motivo pelo qual os tapeba ficaram “sem terra” (“Depois que ele morreu fiquemo sem terra”), pois ela “foi invadida” e os índios “despejado[s] pelos branco[s]” situação que trouxe dificuldades de ordem socioeconômica. A morte do “chefe” político, do “último cacique”, ocasionou de uma maneira geral não somente a perda do território, mas a perda de direitos (“sem terra”, “sem saú-de, sem escola”) e de uma situação liminar vivido pelo grupo indígena (“Depois que ele morreu fiquemo sem terra. Foi invadida. Então nós fumo andar pelo mato. Fumo despejado pelos branco”, “fomo pra mata virgem com todas as criança”, “perambulando sem comida”), em outras palavras, sugerindo um certo estado de desorganização social e cultural experimentado pelos tapeba.

Os temas da morte de Perna-de-Pau, de uma população em estado de desor-ganização social ou aculturada e dos modos de subsistência, bem como outros, vão se consolidado nos documentos produzidos posteriormente, como foi o caso dos textos Conversas com os Tapeba e 2ª Conversas com Os Tapeba, ambos elaborados

9 "1. estado, condição ou caráter do que é ambivalente, do que apresenta dois componentes ou valores de sentidos opostos ou não 2. Derivação: por extensão de sentido; existência simultânea, e com a mesma intensidade, de dois sentimentos ou duas idéias com relação a uma mesma coisa e que se opõem mutuamente" (HOUAISS, 2001)10 Categoria empregada pela Fundação Nacional do Índio nos processos de regularização fundi-Categoria empregada pela Fundação Nacional do Índio nos processos de regularização fundi-ária.

Page 16: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“16”

ainda no mesmo ano de 1985. No texto, montado com transcrições de trechos de entrevistas, os índios de Caucaia foram vinculados a determinados espaços geo-gráficos (matas e rios) e a uma dimensão clássica da definição antropológica de cultura, os modos de subsistência (“Caça dos Tapebas”, “A Pesca no Rio Ceará” e “Andar no Mato”), e a detenção de um saber etnobotânico (“A Medicina Tapeba”), todos tidos como atividades, saberes e estilos de vida associados aos tapeba.

Noutro esforço educativo da Arquidiocese, cartazes foram elaborados com a finalidade didática de auxiliar nas apresentações públicas dos tapeba em que o material era empregado para explicar a “verdadeira história” dos índios nas ex-posições orais que aconteciam nas reuniões da Associação das Comunidades do Rio Ceará, ou mesmo em eventos na capital cearense. Os cartazes empregaram o tempo verbal no passado (“A gente tinha um jeito próprio”), sugerindo perdas culturais, e, ao mesmo tempo, afirmam que os tapeba mantiveram certos aspectos de sua organização social:

Sofrimento. A nossa salvação foi continuar diferente dos brancos poderosos, forasteiros de Caucaia. A gente tinha um jeito próprio de andar - falar - pescar - caçar - casar - construir casa - amar - se divertir - comer - dormir - andar. Por causa do sofrimento, os mais velhos tinham medo de contar para nós o que havia aconte-cido. Humilhavam a gente por isso. Mas não sabe que até valeu essa humilhação!... Assim a gente não se misturou totalmente com os que não eram índios. (apud BARRETO FILHO, 1992)11

O “sofrimento” e a “mistura” foram outros temas recorrentes nos documen-tos. O primeiro, causado pela situação de opressão vivida (“humilhação” ou a menção à “invasão das terras”), após a morte de Perna-de-Pau, e, o segundo tema, a “mistura”, apontava para um saber que foi se cristalizando a respeito dos tapeba: a de que os índios não conseguiram manter de maneira eficiente mecanismos de transmissão cultural que assegurassem a manutenção de uma memória coletiva em virtude do “sofrimento”, do “medo” que “os mais velhos tinham” (“Por causa do sofrimento, os mais velhos tinham medo de contar para nós o que havia acon-tecido”) e da miscigenação, ocasionando, enfim, um processo de perdas culturais (“A gente tinha um jeito próprio”) e, por outro lado, a afirmação de que, apesar da “mistura” e dos seus efeitos corruptivos e degenerativos, “a gente não se misturou totalmente”. Num outro texto os tapeba foram concebidos como descaracterizados culturalmente e com uma “perda de memória tribal sofrida pelos remanescentes” (GOMES apud BARRETO FILHO, 1992)12

Outro tema encontrado nos cartazes tratava da composição étnica do alde-amento de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, que foi apresentado como formado por três ou quatro etnias (“Na aldeia juntaram índios de três ou quatro

11 Texto disponível sem paginação legível.Texto disponível sem paginação legível.12 Texto disponível sem paginação legível.Texto disponível sem paginação legível.

Page 17: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“17”

nações: Potiguara - Tremembé - Cariri e talvez Jucá”). Os temas das etnias que de-ram origem aos tapeba estavam presentes nos primeiros esforços de compreensão etno-histórica provenientes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)13, do Minis-tério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD)14 e da Arquidiocese. Apresentarei a seguir o documento elaborado pelo MIRAD (Cf. ROLA, 1986), com a assessoria da Arquidiocese. Inicialmente o texto procurou, num único parágrafo de cinco linhas, apontar aspectos históricos de Caucaia, “antiga Vila Nova de Sou-re”, afirmando que lá existiam e existem índios, pois o local “onde vivem os Tape-ba” foi “um aldeamento estabelecido pelos jesuítas”, em 1759; os tapeba, de acordo com o texto, descendem destes índios aldeados. Em seguida, retoma o tema da dispersão e desorganização dos tapeba, nesse caso sem apontar a causa, “após lon-go processo de dispersão e desorganização”, os índios voltaram a “se reunificar”, sendo o momento-chave o envio da carta mencionada anteriormente (ROLA, 1986, p. 1). Num tópico intitulado “Aspectos da situação da vida e da cultura”, os tapeba foram apresentados, ao mesmo tempo, como uma população culturalmente seme-lhante à população regional, mas também que “preservou” regras matrimoniais sem vivenciar plenamente o processo de aculturação (ROLA, 1986, p. 5-6)

Encontra-se também noutro trecho referência à “preservação” de aspectos re-lacionados aos “antepassados”. O documento afirmava que, “apesar da estreita convivência com os brancos, os Tapeba mantêm uma série de valores e costumes dos seus ancestrais” (IDEM, p. 1), como por exemplo: “pescam peixes com as mãos; constroem canoas sem proa, movidas com varas; fazem o que chamam de quixó espécie de armadilha para pegar animais do mato (caça); transformam a palha de carnaúba em pincéis, vassouras, espanadores, surrão, uru, chapéu, esteira e bolsa para guardar farinha”. E para “curar” “utilizam-se de ervas e poções.” (ROLA, 1986, p.6 - sublinhado no original). Um desenho que associou os tapeba à pesca no rio Ceará tornou-se uma espécie de logomarca da Associação das Comunida-des do Rio Ceará. As declarações públicas da elite local também contribuíam para as representações sobre os tapeba, os discursos põem em dúvida a existência de índios em Caucaia, argumentando que no Município há “proliferação de favelas” em geral compostas por indivíduos que representam

[...] o estrato Social e Racial médio do Cearense de baixa ren-da. Ali há brancos, caboclos, mestiços e possivelmente alguns descendentes remotos de índios, mas totalmente aculturados.(...) uma comunidade ‘Sui generis’, pois fala e entende a língua portuguesa como qualquer um de nós, não sabe uma só palavra do idioma indígena, está perfeitamente integrada na comunida-

13  Documentos de autoria de Jussara Vieira Gomes: Breve informação sobre os ín-dios do município de Caucaia, Estado do Ceará e Relatório sobre os índios do município de Caucaia, Estado do Ceará.14  Relatório de Viagem ao Município de Caucaia – Ceará – Rita Heloísa de Almeida. Informação Técnica n. 71 – caracterização atual dos Tapeba – Elia Menezes Rola.

Page 18: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“18”

de nacional, desconhece a cultura e tradição indígena, e que se instalou no local nos últimos dez (10) anos, oriunda de todos os recantos do Ceará (COELHO, 1988)15.

Logomarca da Associação das Comunidades do Rio Ceará

As idéias de índios miseráveis, sem memória e aculturados podiam ser tam-bém atestadas mediante a leitura do texto de apresentação que compõe o livreto A Medicina dos Tapebas (1988). O livro contém duas apresentações; na assinada pela equipe da Arquidiocese, os tapeba foram representados como uma população “em estado de miséria latente” em que “costumes e saberes estão pouco a pouco de-saparecendo”, mas que “ainda alguns praticam”. Na outra apresentação, escrita pelos presidentes da Associação, o presidente do “Lado dos Brancos” e do “Lado dos Tapeba”, o texto vinculou a “medicina tapeba” à “história” e à “cultura” e à preocupação “em não deixar morrer” a “ciência” (ARQ�IDIOCESE, 1988).

No ano seguinte, a Arquidiocese produziu também um pequeno texto chama-do de Crenças e Pensares do Povo Tapeba (ARQ�IDIOCESE, 1989). O texto apresen-tava frases de indivíduos com idade maior que 50 anos e foi elaborado mediante transcrição de entrevistas que abordavam concepções de “Deus”, “alma”, “demô-nio”, “morte” e “superstições”. O documento, nos parágrafos iniciais, retomou o tema da morte de Perna-de-Pau e deixava transparecer a imagem de uma popula-ção sem liderança (sem cacique) - e sem pajé - mais uma vez concebendo um estado

15 Segundo Barreto Filho (1994, p.22), a autora do argumento original parece ser a Depu-tada Estadual Maria Lúcia Correa que deu a seguinte declaração ao jornal O Povo: "Nunca existiu índios Tapebas. O que existe é um grupo de descendentes de um caboclo conhecido pela alcunha de “Perna-de-Pau” que habitou na área de Caucaia no início do século e que teria vivido maritalmente com duas irmãs, o que gerou um grupo racial fechado que foi habitar nas proximidades da Lagoa do Babaçu, na estrada da localidade de Garrote, a oeste da sede da antiga Soure, hoje Caucaia (O Povo, 17.08.87, "Política", p. 04. "Maria Lúcia vê fantasia na origem dos índios Tapeba. Contesta demarcação das terras e teme provocação de conflitos").” O documento consultado não consta paginação.

Page 19: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“19”

de desorganização social, talvez, sugere o texto, por ser “dispersa” espacialmente e “outros fatores mais”.

Faço analogia entre os discursos produzidos pela Arquidiocese e outros agen-tes com a afirmação de Bahbha (1998, p.105) de que o discurso colonial depende do “conceito de fixidez na construção ideológica da alteridade” como um “modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também de-sordem, degeneração e repetição demoníaca”. É esta ambivalência que oscila entre a apresentação dos tapeba como “índios que existem”, com uma “cultura” locali-zada espacialmente e “história” fixadas pelos não-índios, e de “aculturados”, que este período produziu. Esta ambivalência nos discursos e nas condutas foi constru-ída num período em que a própria Arquidiocese tentava se livrar das representa-ções que diziam que os tapeba não eram índios e provavelmente de suas próprias crenças, que, ao vincular os tapeba a certos estilos de vida, demonstravam também a sua própria dificuldade em identificá-los como uma população indígena.

1.3 Considerações Finais

Em todos estes documentos – a carta da Arquidiocese, os cartazes, os peque-nos textos apresentando resultados das pesquisas sobre as crenças dos tapeba, os relatórios do MIRAD e FUNAI etc. – observou-se uma convergência em torno de temas e representações recorrentes que foram se cristalizando sobre os tapeba: (1) os tapeba possuíam uma “cultura” definida por intermédio das atividades de sobrevivência (caça e pesca), a confecção do artesanato e o domínio de determi-nados saberes e, a uma só vez, foram também concebidos como uma população “descaracterizada”, uma “nação mestiça”, “misturada”, enfim, em processo de aculturação; (2) esta “cultura” estava espacialmente localizada mediante práticas representacionais que encarceravam os tapeba num espaço geográfico (as matas, perto dos rios) (G�PTA & FERG�SON, 1992); e (3) possuíam também uma “his-tória” (as histórias sobre Perna-de-Pau, os tapeba explorados e sofridos, a origem da tribo etc.).

As representações elaboradas pela Arquidiocese e outros agentes definiam os tapeba como índios sofridos, miseráveis, em estado de desorganização social e cul-tural, aculturados e sem memória coletiva, miscigenados culturalmente e racial-mente. Um conjunto de temas foi objeto de polêmicas que colocavam em oposição sistemática enunciados que diziam que os tapeba não eram índios porque mora-vam em “favelas” ou no meio urbano e que conheciam e falavam a língua portu-guesa, não possuíam uma “tradição”, nem “língua indígena”, desconhecendo a “cultura e tradição indígena”. Por outro lado, a Arquidiocese, apesar de operar com representações semelhantes, procurou intervir na situação fazendo o trabalho do “resgate” e produzindo uma “cultura”, uma “história” e uma “geografia” para os tapeba.

Page 20: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“20”

Os índios, segundo a Igreja, embora com semelhanças culturais em relação à população regional e do processo de aculturação, não estavam integrados ou tinham deixado de ser índios, mas para que isso voltasse à tona era preciso “res-gatar” a “verdadeira história e memória”. Era preciso, como diziam os textos, re-vitalizar o que “restou” ou “sobrou” da “cultura”, apesar de aculturados, este pro-cesso não teria sido completado plenamente. O trabalho do resgate tentou então recuperar os saberes tradicionais, procurando também, vincular os índios às ati-vidades econômicas havidas como originais, conectou-os a ambientes geográficos não-urbanos, a objetos materiais que indicavam a sobrevivência de uma “cultura” indígena. Tudo isso imaginado como se pudesse chegar, por meio da revitalização da cultura, bem próximo a um índio autêntico, imaginado como o índio originário, um tapeba hiper-real.

Referências Bibliográficas

AIRES, Max Maranhão Piorsky. Visibilidade, estratégias políticas e colonialismo: as demandas por uma escola para os índios Tapeba. Notícias de antropologia y ar-queologia. (Edição especial: Educación y Antropología II), Argentina, v. II, 2003.

________. Aprendendo a ser “índio” tapeba. Anais do III Seminário Cultura Relações de Gênero e Memória, Paraná, 2005.

________. De aculturados a índios com cultura: os tapebas e a produção de textos em zonas de contato. Anais do II Encontro de Ciências Sociais do Ceará, Sobral, 2007.

BARRETO FILHO, Henyo T. Tapebas, tapebanos e pernas-de-pau: etnogênese como processo social e luta simbólica. Rio de Janeiro, 1992 (Dissertação de mestrado –Universidade Federal do Rio de Janeiro).

________. Tapebas, tepebanos e pernas-de-pau de Caucaia, Ceará: da etnogénesis como processo social e luta simbólica. Série Antropologia, n.165, DAN/UNB, Brasil, 1994.

BHABHA, Homi. O Local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de L. Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:: Ed. UFMG, 1998.

GALLOIS, Dominique. De Arredio a isolado: perspectivas de autonomia para os povos indígenas recém-contactados. In: GRUPIONNI, Luís. D. B. (org.). Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 121-134.

Page 21: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“21”

GUPTA, A. & FERGUSON, J. Beyond “culture”: space, identity, and the politics of difference. Cultural Anthropology 7: 6-23, 1992.

PACHECO DE OLIVEIRA, João. Uma Etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana-Estudos de Antropologia So-cial. 4 (1): 47-77, abr., 1998.

________. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.

________.Três teses equivocadas sobre o indigenismo (em especial sobre os índios do nordeste). In: ESPÍRITO SANTO, Marco Antônio. (Org.). Política Indigenista Leste e Nordeste Brasileiro. Brasília: 2000, p. 17-26.

RAMOS, Alcida R. A O índio hiper-real. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Estu-dos Sociais, n. 28, ano 10, 1995. p. 5-14.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

VALLE, Carlos Guilherme. Experiência e Semântica entre os Tremembé do Ceará. . In: João Pacheco de Oliveira. (Org.). A Viagem da Volta: Etnicidade, Política e Re-elaboração Cultural. 2 ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. p. 281-341.

Para Saber Mais

a) Livros, textos e artigos

O livro A questão indígena na sala de aula: subsídios para professores de 1° e 2° graus, organizados por Aracy Lopes da Silva e Luis Grupioni, pode ser uma boa introdução ao tema das sociedades indígenas no Brasil.

Para conhecer um pouco sobre os tapeba e, também, de que modo os profes-sores indígenas atuam como protagonistas na esfera pública, redefinindo os sen-tidos de tapeba aculturados, consultar os textos de Henyo Barreto Filho (1994), disponível na internet, e Max Maranhão P. Aires (2007)

Ver também:Enciclopédia dos Povos Indígenas http://www.socioambiental.org/pib/portu-

gues/quonqua/cadapovo.shtm Tapeba – Centro de Produção Cultural www.tapeba.com.br

Page 22: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“22”

b) Listas eletrônicas de discussão

Temática Indígena no Ceará (TEMINCE) http://br.groups.yahoo.com/group/temince/) Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI) http://br.groups.yahoo.

com/group/anaind/)

c) Vídeos

Biblioteca Virtual da Língua Portuguesa http://www.bibvirt.futuro.usp.br/videos/tv_escola/pluralidade_cultural

Para Refletir

Visite o site Tapeba – Centro de Produção Cultural ( www.tapeba.com.br) e compare as afirmações produzidas pela Arquidiocese (ou outros atores) e as imagens ou textos veiculados pelos tapeba.

Page 23: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“23”

Ricardo Weibe Nascimento Costa (Weibe Tapeba)16

Os povos indígenas Brasileiros assumem cada vez mais o papel de protago-nistas na construção de uma outra História, atuando em diversos campos de par-ticipação democrática, bem como na construção de políticas indigenistas, tratando de seus interesses sob uma perspectiva de luta traçada pelo reconhecimento dos direitos coletivos acerca do direito aos territórios tradicionais indígenas, da diver-sidade étnica e cultural e de uma ampla visibilidade as nossas formas próprias de organização social, costumes, crenças e tradições.

Os povos indígenas do Brasil, historicamente, têm sofrido violações de seus direitos. Como sabemos, a terra que hoje se chama Brasil, na época da chegada da colonização européia, era povoada por aproximadamente seis milhões de indíge-nas, pertencentes a diversos povos, cada um com suas línguas e particularidades culturais diferentes. No entanto, a ganância dos “não índios”, em sugar toda ri-queza de nossas terras e de trazer impactos incalculáveis à nossa natureza, quase dizimou a população indígena brasileira. De milhões restaram poucas dezenas de milhares resistindo às mazelas da sociedade, esta, por sua vez, agindo mediante ganâncias individuais para justificar a truculência cometida contra nossos povos em nome do “Progresso”.

As armas usadas pela colonização européia foram as mais cruéis e brutais possíveis, pois se usou da inocência e ingenuidade de muitos de nossos povos an-tepassados para exterminá-los ou reduzir, em sua maioria, os encantos e as formas próprias de reprodução de conhecimento, de auto-governo e de povos autônomos que sempre fomos.

O direito à diferença foi, sem dúvida alguma, o aspecto mais abalado, tendo

16 Índio do Povo Tapeba, município de Caucaia. Residente na Aldeia Lagoa dos Tapeba, foi um dos coordenadores e cursista do Curso de Formação para Professores Indígenas do Ceará, parceria entre APROINT/SEDUC/FUNAI/MEC/UFC. É diretor da Escola Índios Tapeba, que agrupa mais quatro escolas; vice-presidente da Associação dos Professores Indígenas – APROINT; presidente da Associação das Comunidades dos Índios Tapeba de Caucaia – ACITA; membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena do Ceará; coorde-nador Geral da Organização Estadual dos Professores Indígenas do Ceará – OPRINCE; membro da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena – CNPIM e membro da Comissão Nacional de Políticas Indigenistas – CNPI. Endereço eletrônico: [email protected]

“Todo dia é dia de Índio”

Page 24: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“24”

em vista todas as intervenções negativas que os europeus realizaram. Por conta de nossos povos cultuarem “deuses” diferentes da sociedade ocidental e de não seguirem o padrão religioso dos colonizadores, nos taxaram de animais ou seres desalmados. Por não vivermos definindo tarefas cotidianas da época sob o tempo cronometrado e por tirarmos da natureza não mais do que seria necessário para o sustento de nossas aldeias, nos taxaram de preguiçosos. Tais aspectos, menciona-dos na “História oficial” escrita por eles, os europeus, que é contada até hoje, foi considerada meramente como motivo para que se pudesse obter uma sociedade homogênea, tendo como pilar o extermínio de nossos povos indígenas para a cons-trução do Brasil. Caçar e matar índio, naquela época, para os homens que sempre criaram leis que pudessem reger seus sistemas de organização, foi simplesmente legal. �ma guerra injusta – as perseguições e caçada a índios –, na história, ficou conhecida como “Guerra Justa”. Os fatos narrados até aqui mostram todas as con-tradições adotadas pelos colonizadores e invasores do Brasil.

Os vários mecanismos de extermínio contra os indígenas no Brasil foram di-versos e a não aceitação, por parte dos indígenas, das imposições trazidas por um novo sistema de organização, coordenado por Portugal, impulsionou a persegui-ção e a dizimação de diversas nações indígenas constituídas. A guerra injusta com armas de fogo foi o grande trunfo para que a Coroa portuguesa pudesse instalar aqui, de forma bem sucedida, uma colônia que pudesse produzir bastante matéria-prima. Assim sendo, consideramos os conflitos armados um dos mais importantes instrumentos que causaram o genocídio e etnocídio contra nossos povos.

Outro fator que devemos levar em consideração foi, sem dúvida, a atuação da Igreja Católica na implantação de colônias jesuítas ou de aldeamentos, com o in-tuito de implantar o catolicismo; de compreensão das línguas indígenas e de seus costumes para que, daí, Portugal pudesse se apropriar desse patrimônio cultural em vista à manipulação dessas populações, com o pretexto de criar uma sociedade sem males e sem diferenças. Tirar nossos povos de seus locais de origem e iniciar um processo de delimitação de seus espaços de ocupação, de forma repressora, tornando-os reduzidos, subtraiu de nossos povos parte de nossas identidades. Muitos desses povos indígenas, que antes viviam e ocupavam seus espaços tradi-cionais de forma nômade, tiveram que se fixar em locais definidos pela Igreja.

Diante de todas as informações coletadas até o momento atual e da trajetó-ria vivenciada pelos resistentes povos indígenas brasileiros, não podemos admitir que a História oficial do Brasil, contada como pano de fundo, possa excluir os verdadeiros donos da terra e principais protagonistas da história do País, já que inúmeras pesquisas arqueológicas produzidas, no Brasil, assinalam a ocupação do território brasileiro por populações paleoíndias há mais de 12 mil anos. Os pesqui-sadores acreditam, hoje, que houve várias etapas no processo de dispersão huma-na pelos territórios que ocuparam para estarem da forma que estão atualmente,

Page 25: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“25”

pois as novas descobertas arqueológicas questionam os dados que cercam antigas interpretações do povoamento americano, como a migração asiática pelo Estreito de Behring (FUNARI e NOELLI, 2005).

Há várias estimativas sobre o montante da população indígena à época da conquista, tendo cada autor adotado um método próprio de cálculo (área ocu-pada por aldeia, densidade da população, etc.). Julian Steward, no Handbook of South American Indians calculou em 1.500.000 os índios que habitavam o Brasil (STEWARD, 1949). William Denevan projetou a existência de quase 5.000.000 de índios na Amazônia (BETHELL, 1998, p. 130-131), sendo reduzida posteriormente essa projeção para cerca de 3.600.000 (HEMMING, 1978). O contágio por doenças, como a varíola, o sarampo e a tuberculose, dizimava, rapidamente, grupos intei-ros, sofrimento testemunhado por jesuítas como José de Anchieta e Manoel da Nó-brega, mas, o dado que mais amplamente foi divulgado sugeria que a população indígena do Brasil pudesse se aproximar de 6 milhões de indígenas.

O poder desarticulador das doenças pode ser exemplificado com a epidemia de varíola que, entre 1562-1565, em poucos meses, matou mais de 30.000 índios na Bahia (HEMMING, 1978, p. 144). O padre José de Anchieta descreveu o que ocorreu:

No mesmo ano de 1562, por justos juízos de Deus, sobreveio uma grande doença aos índios e escravos dos portugueses, e com isto grande fome, em que morreu muita gente, e dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos portugue-ses a se fazer escravos, vendendo-se por um prato de farinha, e outros diziam, que lhes pusessem ferretes, que queriam ser es-cravos: foi tão grande a morte que deu neste gentio, que se dizia, que entre escravos e índios forros morreriam 30.000 no espaço de 2 ou 3 meses. (ANCHIETA, 1933, p. 356).

2.1 Os povos indígenas numa visão contemporânea

Os povos indígenas brasileiros, ao longo do tempo, vêm sendo vistos pela sociedade brasileira de formas diversas, sem que se garanta, em nenhuma dessas visões, o reconhecimento da diversidade étnica e cultural mediante os potenciais presentes em cada povo. Há uma visão, extremamente estereotipada, presente em vários meios de divulgação da “figura indígena” no Brasil, principalmente em li-vros, revistas, novelas e filmes, que, a retratam como bárbaros, com seus corpos nus e enfeitados, passando uma imagem da cultura indígena que não lhe garante o direito de evoluir ou se transformar, propagando, no inconsciente da população, a visão de que as culturas indígenas são iguais e são estáticas. Outra visão do índio Brasileiro, também presente em várias ferramentas educativas, ou meios de comu-nicação, traz a figura dos povos indígenas relacionada, sempre, ao tempo passado, como se os povos indígenas tivessem desaparecido completamente e a “História

Page 26: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“26”

Oficial” continua negando a presença desses povos até os dias atuais. Outra visão, ainda, da sociedade acerca dos povos indígenas aponta a cultura destes como ten-do colaborado para a formação do povo brasileiro, na área da culinária, habitação, utensílios domésticos, brincadeiras, histórias, contos e lendas.

A visão mais genérica dos índios brasileiros atribui a existência desses povos apenas ligada ao dia 19 de Abril, definido como “Dia do Índio”. Neste dia, escolas, creches e outras instituições homenageiam o índio da ficção, algumas se esfor-çam, inclusive, para levar uma representação de algum povo, para ali realizarem apresentações artísticas e culturais. Ao final, um ato de assistencialismo puro é realizado. São concedidos aos grupos doações em alimentos, roupas usadas e brin-quedos. Esse dia não tem funcionalidade sequer de abrigar reflexões sociais acerca dos direitos dos povos indígenas. Passado o dia 19 de abril, o Brasil se volta para a mesma sociedade alienada e um governo que nunca conseguiu valorizar nossos povos e nossas diferenças.

2.2 A luta atual dos povos indígenas brasileiros

A luta atual dos povos indígenas é pouco discutida pelo atual governo bra-sileiro e pouco reconhecida pela sociedade presente. A luta pauta-se pelo princí-pio elementar do respeito à diferença, ao cultivo da diversidade, à polifonia de tradições e opiniões e da tolerância, como tantos preconizam no presente. Como denominador comum que aproxima os quase 220 povos indígenas –falantes de 180 línguas, com cerca de 734 mil indivíduos (0,4% da população brasileira), referidos pelo IBGE (Censo de 2000), como “indígenas” – há a violência da colonização euro-péia, sob seus variados aspectos históricos aqui já descritos, até as mais adocicadas formas de proteção engendradas pelo republicano (e colonialista) Estado brasilei-ro contemporâneo.

Se reconhecermos hoje, em textos de caráter primordialmente programático e em tom de crítica, que a realidade da vida social nos 13 povos indígenas no Ceará é a das diferenças socioculturais – ainda que estas se dêem em planos cognitivos muito distintos e em escalas também variadas de lugar para lugar –, e que é preciso fazer do conflito de posições a matéria de um outro dia-a-dia, tenso e instável, mas rico em vida e em possibilidades para um novo fazer escolar, na prática, estamos muito longe de “amar as divergências” e de construir as aproximações provisórias possíveis entre mundos simbólicos apartados. Que fique claro: não é apenas uma espécie de mea culpa bem-intencionada e posturas simpáticas e pueris que porão termo às práticas geradas por estruturas de dominação colonial de longo prazo, e de produção das diferenças socioculturais, estas consideradas como signo de infe-rioridade. Tal enunciação prescritiva da busca de “novas posturas” mal disfarça o exercício da violência (adocicada que seja), única causa de uma “verdade” também

Page 27: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“27”

única e totalitária. É preciso ir bem mais adiante. É, portanto, desproporcional, à luz da visão ocidental, ligar esse número a

uma população que não supera os 0,4% da população brasileira, sendo pertencente a povos indígenas, se não considerássemos a importância de se haver espaço su-ficiente para a reprodução física e cultural desses povos. Tais números não conse-guem refletir a realidade territorial, por exemplo, da região do Nordeste brasileiro. Muitos dos povos indígenas desta região, fortemente resistem às ações truculentas do poder capitalista e cotidianamente enfrentam as ações do suposto crescimento econômico que se dá a qualquer custo, sem que se leve em consideração a presença de povos originários de suas áreas tradicionais. A usurpação das terras indígenas no Nordeste deu-se fortemente e a recuperação e demarcação dessas áreas como territórios indígenas são, sem dúvida, um dos principais desafios enfrentados pelo movimento indígena brasileiro contemporâneo.

Não é de se estranhar por que os maiores empreendimentos de interesse na-cional vêm afetando diretamente as áreas de influência e ocupação das populações indígenas no Brasil. Devemos entender que a maioria desses empreendimentos carece de áreas que possibilitem potenciais de instalação, constituído de grandes rios, florestas e áreas propícias para o cultivo de plantações. Não é ainda de se estranhar que essas reservas de recursos naturais se localizem justamente nos ter-ritórios indígenas. As áreas habitadas pela sociedade não-indígena já não mais oferecem condições estruturais para instalação desses empreendimentos. Água potável e em abundância já não existe mais. Assim, o Estado chega até as reservas indígenas construindo barragens, desviando os cursos naturais dos rios e insti-tuindo transposições de águas para gerar o tal “Desenvolvimento Econômico” que beneficia apenas uma pequena parcela da sociedade.

É necessário ter áreas imensas de florestas virgens para alimentar as grandes indústrias, como matéria-prima para combustão em fábricas e outras utilidades, para que o crescimento do País não seja afetado. Assim, nossas áreas são constan-temente cortadas por BR’s, ferrovias, gasodutos e linhas de transmissão ou barra-gens. Desta maneira, os dias vão se passando e nossos povos pagando a conta por simplesmente respeitar a natureza, preservando e vivendo permanentemente em harmonia com o meio ambiente, que é a nossa casa. Pagamos a conta por não des-matar, por não fazer queimadas e não poluir.

Não podemos, portanto, aceitar que nossas terras continuem sendo usurpa-das com o pretexto do suposto crescimento. Não é irracional acabar com as matas, poluir nosso ar e nossas águas que garantem a qualidade de vida da população? Como podemos ter qualidade de vida sem água boa para consumir e locais puros para morar?

No Brasil, a diversidade étnica, ainda muito forte, é pouco valorizada pelas

Page 28: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“28”

políticas governamentais. A redução de muitos territórios indígenas e o crescimen-to desordenado das cidades leva muitas nações indígenas ao risco social.

A desnutrição, o suicídio, o alcoolismo, uso de drogas, má qualidade na ali-mentação e moradia já fazem parte do cotidiano de muitas etnias. Muitas dessas culturas estão fragilizadas, muitas línguas desaparecendo, muitos costumes sendo esquecidos. Os Valores desses povos são diminuídos pelo poder devastador do pensamento monopolista.

Para combater todas estas mazelas, o movimento indígena brasileiro vem adotando a postura de denunciar todas essas violações que afetam nossos povos indígenas.

A política da tutela já não existe mais. Nossas lideranças se empoderam e for-talecem nosso protagonismo com vistas à obtenção do respeito à nossa diversidade e à implementação dos direitos indígenas construídos pelos “brancos”, presentes num amplo conjunto de leis e normas do sistema jurídico brasileiro nas três instân-cias de governo e em pactos internacionais dos quais o Brasil se torna signatário.

O Estado brasileiro, ironicamente, instituiu um dos mais belos conjuntos de leis do mundo que assegura os direitos das populações indígenas em todas as áreas do Direito. Todavia, este mesmo Estado é, contraditoriamente, o principal violador dessas leis. Os instrumentos de defesa desses direitos são inoperantes. Deste modo, o Movimento vem criando iniciativas inovadoras e fortalecendo as bandeiras de lutas de nossos povos visando à garantia e à defesa dos direitos esta-belecidos na legislação brasileira.

Nosso Movimento vem ocupando espaços políticos importantes com vistas a estabelecer uma relação de diálogo junto ao governo, numa tentativa de apresentar as demandas dos povos indígenas e de levar uma visão humanizada da importân-cia da convivência harmoniosa entre Homem e Natureza.

Chegará um belo dia: o dos povos indígenas reinarem em nosso País. Chegará o belo dia em que as indústrias e as fábricas já não mais terão forças de exterminar nossas casas e nossas matas;.

Chegará o dia em que nossos povos serão inteiramente respeitados como po-vos diferentes e como guardiões do nosso futuro.

Chegará o belo dia em que nossas matas e nossos animais ecoarão mais fortes do que os sons das grandes cidades.

Chegará o dia que os governantes deste País acordarão para realidade e vol-tar-se-ão para a defesa real de nosso território, criando mecanismos eficientes de preservação e de medidas sustentáveis para que o “bendito crescimento” continue acontecendo sem afetar, negativamente, nossas vidas e nossa natureza.

Chegará o belo dia em que a luz do sol e as nuvens brancas encherão de cores nosso céu, em substituição à poluição das grandes cidades.

Chegará o dia em que a paz reinará entre todos os povos, cessando as guerras e criando correntes e laços de amizade, fraternidade e respeito em meio a toda

Page 29: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“29”

humanidade.Chegará o belo dia em que nossas vidas terão mais sentido e isso só será pos-

sível se um dia o Brasil for “O Brasil de nós, Povos Indígenas...”.

2.3 Avanço da Constituição Federal ampliando, efetivamente, os direitos dos povos indígenas do Brasil

Constituição da República Federativa do Brasil – 1988Título VIII – Da Ordem Social

Capítulo VIII – Dos Índios

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, lín-guas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as im-prescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéti-cos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunida-des afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os di-reitos sobre elas, imprescindíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referen-dum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

Page 30: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“30”

2.4 Convenção Nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este ar-tigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da �nião, segundo o que dis-puser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indeni-zação ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174,

§§ 3º e 4º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Minis-tério Público em todos os atos do processo..........................Ato das disposições constitucionais transitórias.........................Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cin-co anos a partir da promulgação da Constituição...........................Brasília, 05 de outubro de 1988.Ulysses Guimarães

Parte 1 – Política GeralArtigo 1º

1 A presente convenção aplica-se:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que es-tejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabele-

Page 31: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“31”

2.5 Novos princípios para a garantia dos direitos dos povos indígenas no Mun-do: Declaração das Nações Unidas sobre direitos dos Povos Indígenas.

No último dia 13 de setembro de 2007, depois de 22 anos de intensas dis-cussões com poucas exceções, foi aprovada a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Estima-se que haja mais de 370 milhões de indígenas no mundo, pertencentes a aproximadamente cinco mil povos diferentes, em pelo menos 70 países. Representantes desses povos negociaram, particularmente desde 1985, junto com especialistas e representantes dos governos, o conteúdo deste im-portante instrumento.

Apesar de resistências de última hora, que implicaram em colocar algumas restrições aos direitos reconhecidos, a Declaração afirma, dentre outros, o direito dos Povos Indígenas à livre determinação, isto é, o direito a decidirem livremente o seu presente e futuro, de acordo com os seus próprios mecanismos de decisão e organização; o direito à terra, territórios e recursos naturais, considerando a sua dimensão cultural e espiritual; o direito a utilizarem os seus próprios sistemas ju-rídicos e formas de acesso à justiça; e o direito de manter, desenvolver e transmitir as suas culturas e crenças.

A preocupação no momento é a respeito da implementação deste valioso ins-trumento face à tradicional indiferença e falta de vontade política dos Estados em dirimir as suas dívidas sociais com os Povos Indígenas, não obstante a intenção da Declaração de acabar com todo e qualquer tipo de discriminação e marginalização desses povos. Contudo, esperamos, particularmente do Estado brasileiro, empe-nho no cumprimento destas normas que ele mesmo ajudou a aprovar.

Além de possuir um texto avançado, a Declaração é, sem dúvida, um instru-mento que reflete o conjunto das reivindicações atuais dos Povos Indígenas em todo o mundo acerca da melhoria de suas relações com os Estados nacionais. Este processo, em princípio, não deverá retroceder, devendo os Estados incorporarem

cimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

2 A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

3 A utilização do termo “povos” na presente Convenção não deverá ser inter-pretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.

Page 32: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“32”

esses avanços em suas legislações nacionais e adotar o conjunto destas medidas para que todas as esferas de governo garantam esses direitos, observando o caráter progressivo dos direitos humanos.

Ser índio é ser parte da terra, das águas, do ar, do fogo, ou seja, da nature-za. É perceber que somos apenas parte e não tudo. É saber reconhecer que temos de viver harmoniosamente com ela, preservando nossas matas, cultivando nossos costumes e praticando nossa cultura. A importância de ser índio só se pronuncia quando entendemos qual a nossa real missão dentro de nossa família, de nossa comunidade e do nosso povo. Só conseguimos lutar contra posseiros, políticos especuladores ou qualquer outro inimigo, se aprendermos que nossa luta é uma luta de todos, e que só podemos ganhar se lutarmos juntos. É simplesmente com-preender que nossa aldeia precisa de cada um de nós.

2.6 Os povos indígenas no Ceará17

O Nordeste brasileiro, como sabemos, foi a região que mais sofreu com a colo-nização européia. Os resultados desta devastadora ação, para os povos indígenas desta região, foram a dizimação de grande parte das nações indígenas e a redução das culturas aqui existentes.

No Ceará, inúmeros documentos fazem menção à existência de aproximada-mente 22 povos indígenas no início da colonização desta região. Destes, inúmeros foram extintos.

Como forma de resistência às ações truculentas da colonização, vários povos se submeteram a viverem escondidos, em locais de difícil acesso e a deixar de falar as línguas maternas vivas, na época, para não serem totalmente extermina-dos. No ano de 1863, a província do Ceará, dá como extinta a população indígena daqui. Desse ano até 1980, os povos indígenas passaram por um período de invisi-bilidade étnica, como forma de resistir. Já nos anos 1980, o cenário político muda, com o apoio da igreja e de departamentos da universidade e de outros setores dos movimentos sociais organizados, o Movimento Indígena cearense ganha impulso através da iniciativa do povo Tapeba. Atualmente, são 13 povos indígenas orga-nizados, presentes em 15 municípios do Ceará. São eles: Tapeba, Tremembé, Pita-guary. Jenipapo-Kanindé, Kanindé, Potiguara, Tabajara, Kalabassa, Kariri, Anacé, Tubiba-Tapuia, Gavião e Tupinambá.

As organizações responsáveis por organizar o movimento indígena estadual são: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME, Coordenação das Organizações e Povos Indígenas do Ceará – COPICE, Organização dos Professores Indígenas do Ceará – OPRINCE e

17  A sessão do texto que aqui apresentamos acerca desta temática está referida no Folheto de Pesquisa Histórica, publicado como produto do Projeto Historiando os Tapeba, Cf. Weibe Tapeba, 2007.

Page 33: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“33”

Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará - AMICE

2.7 Outras lutas dos povos indígenas do Brasil: diagnóstico da educação

No Brasil, desde o século XVI, a oferta de programas de educação escolar às comunidades indígenas esteve pautada pela catequização, civilização e integração forçada dos índios à sociedade nacional. Dos missionários jesuítas aos positivistas do Serviço de Proteção aos Índios, do ensino catequético ao ensino bilíngüe, a tô-nica foi uma só: negar a diferença, assimilar os índios, fazer com que eles se trans-formassem em algo diferente do que eram. Nesse processo, a instituição da escola entre grupos indígenas serviu de instrumento de imposição de valores alheios e negação de identidades e culturas diferenciadas.

Só em anos recentes este quadro começou a mudar. Grupos organizados da sociedade civil passaram a trabalhar junto com comunidades indígenas, buscando alternativas à submissão desses grupos, como a garantia de seus territórios e for-mas menos violentas de relacionamento e convivência com a sociedade nacional. A escola entre grupos indígenas ganhou, então, um novo significado e um novo sentido, como meio para assegurar o acesso a conhecimentos gerais sem precisar negar as especificidades culturais e a identidade indígena. Diferentes experiên-cias surgiram em várias regiões do Brasil, construindo projetos educacionais es-pecíficos à realidade sociocultural e histórica de determinados grupos indígenas, praticando a interculturalidade e o bilingüismo e adequando-se ao seu projeto de futuro.

O tamanho reduzido da população indígena, sua dispersão e heterogeneida-de tornam particularmente difícil a implementação de uma política educacional adequada. Por isso mesmo, é de particular importância o fato de a Constituição Federal ter assegurado o direito das sociedades indígenas a uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe, o que vem sendo regulamentado em vários textos legais. Só desta forma se assegurará não apenas sua sobrevivên-cia física, mas também étnica dessas sociedades, resgatando a dívida social que o Brasil acumulou em relação aos habitantes originais do território.

A transferência da responsabilidade pela educação indígena da Fundação Nacional do Índio para o Ministério da Educação não representou apenas uma mudança do órgão federal gerenciador do processo. Representou também uma mudança em termos de execução: se antes as escolas indígenas eram mantidas pela FUNAI (ou por secretarias estaduais e municipais de educação, através de convênios firmados com o órgão indigenista oficial), agora cabe aos Estados assu-mirem tal tarefa. A estadualização das escolas indígenas, e, em alguns casos, sua municipalização, ocorreram sem a criação de mecanismos que assegurassem certa uniformidade de ações que garantissem a especificidade destas escolas. A estadu-alização assim conduzida não representou um processo de instituição de parce-

Page 34: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“34”

rias entre órgãos governamentais e entidades ou organizações da sociedade civil, compartilhando uma mesma concepção sobre o processo educativo a ser oferecido para as comunidades indígenas, mas sim uma simples transferência de atribuições e responsabilidades. Com a transferência de responsabilidades da FUNAI para o MEC, e deste para as secretarias estaduais de educação, criou-se uma situação de acefalia no processo de gerenciamento global da assistência educacional aos povos indígenas.

Não há, hoje, uma clara distribuição de responsabilidades entre a União, os Estados e os Municípios, o que dificulta a implementação de uma política nacional que assegure a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngüe às comunidades indígenas.

Há também a necessidade de regularizarmos juridicamente as escolas indíge-nas, contemplando as experiências bem sucedidas em curso e reorientando outras para que elaborem regimentos, calendários, currículos, materiais didático-pedagó-gicos e conteúdos programáticos adaptados às particularidades étnico-culturais e lingüísticas próprias a cada povo indígena. (Fonte: Lei No 10.172 de 9 de Janeiro de 2001.)

De acordo com dados recentes, a modalidade da Educação Escolar Indígena no Brasil é a modalidade que mais cresce anualmente, em termos de alunos ma-triculados e abertura de novas escolas, superando em cerca de 10% a matrícula nacional nos demais estabelecimentos de ensino da Educação Básica no País, mos-trando que os povos indígenas estão cada vez mais preocupados com a instrução dos membros das aldeias indígenas.

O estado do Ceará iniciou a educação escolar indígena no ano de 1990, me-diante iniciativa do Povo Tapeba, com o objetivo de, além de ofertar uma educação diferenciada, combater de forma mais presente, todas as ações de preconceito e discriminação sofridas pelos alunos de nossas aldeias, que estudavam nas escolas convencionais das proximidades de nossas comunidades.

Atualmente, quase todos os povos indígenas do estado do Ceará já estão im-plementando a educação escolar indígena no interior de suas aldeias. Essa moda-lidade vem contribuindo significativamente para o fortalecimento do movimento indígena estadual, bem como para a manutenção da identidade ético-cultural de cada povo indígena do Ceará.

Escolas indígenas segundo a esfera administrativa e situação dos alunos indígenas por modalidade de ensino

Esferaadministrativa

Número deescolas Porcentagem

Estaduais 1.083 46,6%Municipais 1.219 52,5%Particulares 22 0,9%

Total 2.324 100%

Page 35: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“35”

Modalidades/ Níveis de ensino Número de estudantesEducação infantil 18.583

Séries iniciais do Ensino Fundamental 104.573Quatro últimas séries do Ensino Fundamental 24.251

Ensino Médio 4.749Educação de Jovens e Adultos 11.862

Ensino Superior 2.000Total 166.518

Bibliografia

O índio brasileiro: O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje – Série Vias dos sabres – Coleção educação para todos;

Convenção Internacional do Trabalho– OIT nº 169 - Sobre direito dos Povos Indí-genas e Tribais;

Constituição Federal de 1988

Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas

Historiando os Tapeba – Folheto de pesquisa histórica – Realização: Projeto His-toriando;

Povos Indígenas do Ceará – Organização, memória e luta. Realização: Memorial Cultura Cearense / Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura / Instituto de Arte e Cultura do Ceará / Secretaria de Cultura do Ceará. Fortaleza: S/D

Page 36: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“36”

Para Saber Mais

Há bastante variedade de informações sobre esta temática. Abaixo, apresenta-mos tanto fontes referidas na internet, quanto outras publicações nacionais e fora do Brasil.

“Em 1967, o SPI1 foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FU-NAI) sem, no entanto, ter ocorrido mudança na política tutelar e na falta de sensibilidade aos direitos culturais específicos dos povos indígenas.

O novo órgão indigenista continuou centralizando toda a ação do gover-no junto aos povos indígenas, sem nenhum controle e participação destes, o que só começaria a mudar a partir de 1988, com a promulgação da nova Cons-tituição Federal que aboliu o monopólio do órgão indigenista na defesa e na regulação dos direitos indígenas, superando a idéia preconceituosa da sua in-capacidade. Aos povos indígenas foi reconhecido o protagonismo político na garantia e na efetivação dos seus direitos e a participação no desenvolvimento de políticas públicas de seu interesse. Com isto, inúmeros órgãos governamen-tais e não-governamentais passaram a atuar nos diversos campos da ação in-digenista, o que permitiu o surgimento de programas específicos gerenciados por diferentes instituições.

Entre as políticas setoriais, destaca-se a de atenção à saúde dos índios, or-ganizada anteriormente pela FUNAI, caracterizada pela ação vertical das cha-madas Equipes Volantes de Saúde (EVS) que, sediadas em espaços urbanos, realizavam deslocamentos periódicos às aldeias, onde atendiam às demandas espontâneas dos índios doentes. Segundo a médica e antropóloga Luisa Gar-nello, as equipes de saúde da FUNAI mantiveram-se, em geral, distantes das discussões sobre atenção primária à saúde, e suas práticas não incorporaram nem os avanços simples, baratos e eficazes de cuidados primários de saúde e nem os novos modelos de assistência, pautados na prevenção de doenças e na organização de sistemas locais de saúde. Assim permaneceu até 1991, quando ocorreu a transferência da gestão da saúde indígena da FUNAI para o Minis-tério da Saúde.

A implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DISEIs) teve início em 1991, com o Decreto n. 23 do governo Collor, e consolidou- se com a Lei Arouca que, em 1999, regulamentou as atribuições ministeriais para a implantação de um sistema de atenção diferenciada à saúde a ser prestada aos

1 Serviço de Proteção ao Índio. (Nota do editor, cf. LUCIANO, Gersem dos Santos – Baniwa. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Coleção Educação para todos. Brasília, DF: SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2006, p.35).

Page 37: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“37”

índios. Este sistema estava baseado na “distritalização” sanitária, sob a respon-sabilidade do Ministério da Saúde, e seria estabelecido pela Fundação Nacio-nal de Saúde (FUNASA). Foram implantados 34 DISEIs, distribuídos por todas as regiões do País.”

Fonte direta: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf

Mapa de distribuição dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas do Brasil. Fonte: LUCIANO, Gersem dos Santos – Baniwa. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indíge-nas no Brasil de hoje. Coleção Educação para todos. Brasília, DF: SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2006, p.178.

BESSA FREIRE, J. Ribamar. Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.

DIAS DA SILVA, R. Helena. A Autonomia como Valor e a Articulação de Possibilida-des: um estudo do movimento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, a partir dos seus encontros anuais. Quito-Equador: Abya Yala, 1998.

GARNELO, Luiza. Os Povos Indígenas e a Construção das Políticas. In: ISA, Po-vos Indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental (ISA), 1996/2000.

Page 38: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“38”

LUCIANO, Gersem. Projeto é como Branco Trabalha – as lideranças que se virem para aprender e nos ensinar: experiências dos povos indígenas do alto rio Negro. Dissertação de mestrado em Antropologia Social – Universidade de Brasília: abril de 2006.

MATOS, M. H. O. O Processo de Criação e Consolidação do Movimento Pan-Indígena no Brasil. Dissertação de mestrado em antropologia social – Universidade de Brasília, 1997.

PACHECO DE OLIVEIRA, João (org.). A Viagem da Volta: etnicidade,política e reelaboração cultural no Nordeste Indígena. 2.ed. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / LACED, 2004.

SCHRODER, Peter. Economia indígena. Situação atual e problemas relacionados a projetos indígenas de comercialização na Amazônia Legal. Recife: Ed. Universitá-ria UFPE, 2003.

BARROSO-HOFFMANN, M. (orgs.) Estado e Povos Indígenas: bases para uma nova. política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa/Laced, 2002

Questões Para Reflexão

1. O que fazer para que o estado do Ceará consiga absorver as culturas dos povos indígenas como parte importante do patrimônio histórico e cultural de nosso Estado?2. Sabendo que nas três esferas que compõem o Estado Brasileiro (Executivo, Judiciário e o Legislativo) não há representantes de povos indígenas com con-dições de mudar a situação atual destes povos, principalmente no que diz res-peito à violação contra os direitos indígenas, o que nós, povos indígenas, pode-mos esperar do governo brasileiro para que esta situação possa se reverter?

Page 39: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“39”

Ivo Sousa1

3.1 2008. Mucuripe, barraca de camarão. Fortaleza – Será que Freud explica?

Conversa de mesa de bar. Enquanto não chega o camarão alho-e-óleo, com-prado no box da praia dos botes, que está sendo preparado pelo barraqueiro do lado, no sorver da cerveja gelada.

Entra em pauta a origem indígena de um dos presentes, e isso rende, por provocação de outro, discussão para se apurar critérios de indianidade no Ceará. Confesso que este assunto tende a exaurir minha pouca paciência, me deixando, às vezes, quase irritado.

É que, sempre parece confuso tentarmos definir esse “sujeito”, aparentemente simples: o índio. Olhamos ao nosso redor e esbarramos no aspecto do fenótipo. Cara de índio? Com certeza. Por que não é índio? Mas a vovó era índia. Sua bisavó foi “pega à dente de cachorro2”, e amansada posteriormente. Coisa do passado. Aliás, o bisavô era lá das bandas de Portugal, José Fulano de Sousa. Antes índio, hoje não mais.

Conversa que traz, em seu bojo, um cuidado quase traumático. Determina-mos, muitas vezes, um modelo de índio idealizado e começamos nos afastando dele pelos contrários. Andava nu, nós não. Vivia na mata, nós não. Achamos este tema carregado de “dor na alma”. Parecemos um filho da criada da “casa grande” escondendo a culpa do senhor pelo estupro que lhe pôs no mundo. “Pecado quase original” que precisa ser redimido pelo batismo em águas européias cristãs. Uma mácula na alma e na carne dessa população, como empecilho a aspirações à casa real. A mãe se deixou violentar, foi usada. A questão posta parece ser: por que de-fendemos e, até aspiramos a condição de “branco”, dos que aqui chegaram e não dos que aqui estavam? (aqui precisamos do divã psicanalítico)

Tema muitas vezes proibido. �ma necessidade de deixá-lo no passado, lugar de onde nunca deveria sair... a não ser “resgatado” numa roupagem romântica-cristã- folclórica de “donos de um paraíso perdido” e membros de uma sociedade que já foi (e se foi!). E hoje, brasileiros!

1 Bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da �niver-sidade de São Paulo – �SP, 1995. Videomaker, Fotógrafo, Designer Gráfico e Artista Plástico. Endere-ço eletrônico: [email protected] Vulgata recorrente no discurso da população cearense, como alusão à descendência indígena.

Quem Tem olhos Que ouça

Page 40: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“40”

3.2 1986. Macambira, Poranga – CE

De prosa com um casal de animadores da Comunidade Eclesial de Base3, na região da Macambira, constatando a existência de pinturas rupestres nas proximi-dades, começamos a assuntar sobre a presença indígena na região. De pronto, o senhor nos respondeu que ele mesmo já ouviu falar da existência desses gigantes de outros tempos. Até viu uma índia, numa viagem que havia feito recentemente a Fortaleza. Ouvidos atentos, na escuta, ele nos foi contando. “São, assim, gente como nós. Só que de um tamanho enorme. Só as canelas vêm aqui (leva a mão até à sua cintura). Umas pernas grossas que só vendo. Também pudera, pra andar tanto, tinha que ser assim. Essa mesmo, tomava banho de manhã, na praia, em Fortaleza e à tardinha já tava na bica do Ipu, se banhando de novo”, provavelmente para tirar o sal.

Confessamos nossa frustração imediata na (des) qualidade da informação. Essa estorinha permanece na nossa mente, até hoje, me fazendo pensar no papel desse “índio-mítico” na formação do Povo Cearense.

3.3 1500 (?). Margens Do Atlântico. O que viria a ser o Brasil.Um (in)feliz acaso, ou Índio: uma obra romântica ou não, mas de ficção.

Pra não qualificarmos a ação do bravo navegador de má fé, falemos de uma certa pressa de chegar, ou ainda, lapso de inteligência. Talvez pela fadiga da via-gem.

Em mares dantes navegados, surgem a naus. Em terra, os daqui, olhavam – talvez assustados, talvez curiosos – os de lá. Verdadeiros “castelos” cortando as águas. Os de lá – cansados, com fome, doentes... Provavelmente, com raiva daque-la vida e, até do chefe, o bravo navegante – olhavam, e só viam terra. O capitão, aliviado, comunicava: “terra à vista” (graças a deus. Deus católico, claro!) Tinha que ser a terra das especiarias, a riqueza prometida: “As Índias”. Assim sendo, seus habitantes seriam, sem sombra de dúvidas, “os índios”. Equívoco que parece perdurar até os dias atuais. O nome pegou. Nome aceito, fica ainda a ausência do plural. Eram vários Povos e ainda o são hoje. Claro que não foram considerados “povos”. Nus, sem língua (que o Navegante entendesse), sem Deus (ou cruz?). Não podiam ser gente! Por sorte, o Navegante não estava só. Trazia com ele um padre, e este, munido do amor de Deus, batizou esses seres, forneceu-lhes vestes para cobrirem suas vergonhas, organizou escolas, missões para não precisarem andar à toa, feito bichos do mato. Maridos para as mulheres que sobraram nos aldeamentos. É que, a maioria dos homens morreu por não aceitar aquele tipo de vida, e muitos outros fugiram para depois tentarem re-aparecer no “vale a pena

3 Grupo religioso, militante da Teologia da Libertação da Igreja Católica.

Page 41: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“41”

ver de novo”. E assim, por engano, o Brasil foi “descoberto”, deu lucro. Tentaram encobrir os “índios”.

A coisa pode não ter sido assim tão simples. Falam de revoltas. Realizaram-se alianças. O Estado fez leis/decretos. A perspectiva estatal sempre foi a emancipa-ção. Em 1759, com Marquês de Pombal, os aldeamentos foram transformados em vilas. Os índios teriam se miscigenados. São, como que, promovidos a brancos. No Ceará, um relatório da Assembléia Legislativa Provincial, de 1863, nos dá a notícia: “...Já não existem aqui índios aldeados ou bravios. Das antigas tribus de Tabajaras, Cariris e Pitaguaris, que habitavam a província, uma parte foi destruída, outra imigrou...” (Documentário As Caravelas passam, 2002).

Era a tentativa, por parte do Estado, de resolver o problema das terras antes ocupadas pelos índios. Considerados “misturados”, perdiam o direito às suas ter-ras e estas ficavam, oficialmente, livres.

Esta perspectiva só vem mudar com a Constituição de 1988, mediante a qual as “comunidades indígenas” passam a se constituir como sujeitos coletivos de di-reitos coletivos, interrompendo, assim, o projeto de “desindianização” no Estado brasileiro (VIVEIROS DE CASTRO, 2006).

3.4 2000. Praça José de Alencar, Fortaleza.

Duas formas de ver o índio, que são três: Durante entrevistas realizadas junto a transeuntes no centro da Cidade, por

ocasião das comemorações dos 500 anos de Brasil, para produção do Vídeo “as caravelas passam”. Constatamos três maneiras de se pensar o índio presentes no discurso da população.

O BRABO“Vivem lá no alto da Amazônia, comem carne crua, andam nus... têm até

aqueles que comem gente.”Qualificação atribuindo ao índio a categoria do bicho do mato, brabo, andan-

do nu, comendo cru, tentativa de afastar, de nós, qualquer possibilidade de per-tença a essa situação. Um atraso de vida na linha evolutiva da raça humana, um passado que nos deforma a imagem de ser gente.

GUARDIÃO DO PARAÍSO (folclórico-romântico-cristão)Projeção inadequada dos valores cristãos, aos índios. O sonho de um paraíso

perdido. Uma sociedade igualitária, homens e mulheres vivendo harmoniosamen-te. Comendo os frutos da natureza, vivendo da caça e da pesca. Uma socieda-de igualitária. Com excesso de bondade romântica-cristã, os índios são, também, desqualificados da possibilidade de ser gente, para assumir uma posição de anjo. �ma visão ingênua que descarta os conflitos entre povos, as disputas, os avanços tecnológicos... É o céu católico. Logo, não existe.

Page 42: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“42”

O ACULTURADOÉ aquele que perdeu - “hoje anda de jeans, tem até celular”. É a crença na so-

ciedade da perda (eram assim.... não são mais). O contato não trouxe nada de bom, só desgraça. �ma visão de cultura como algo imutável, petrificada, não cumulati-va. Pensamento onde, nós, sabemos o que é bom pra eles. Eles, sujeitos ingênuos, não possuem capacidade de discernimento. São os coitadinhos ludibriados pela sociedade de consumo. Por isso não querem mais o paraíso. São os degredados filhos de... Logo, não são mais índios.

3.5 Angu, só com caroço, ou a ficção dos anos oitenta

Os anos 1980, aqui no Ceará inaugurou o re-aparecimento indígena. Situação de aceitação não muito fácil para nossa população que, cremos, portadora de um verdadeiro trauma ancestral. Os Povos indígenas dão às caras re-inventando cul-tura, organizando-se (de forma bastante competente) politicamente, construindo uma teia de aliados (ONGs, Igrejas, Partidos etc.) e, assim, conquistam direitos até então negados pelo Estado brasileiro.Terra, saúde, escola, cultura. Este fato parece incomodar, não só os que se dizem donos das terras reivindicadas pelos povos indígenas, mas, também, parcela da população que, incapaz de aceitar o diferente, nega a possibilidade de existência de “um índio” que não corresponde aos arqué-tipos alojados nas suas cabeças.

Algumas possibilidades para superação desta mentalidade podem ser encon-tradas no método antropológico. Esta disciplina pode nos oferecer algumas ferra-mentas eficazes para nos ajudar para superação dessa situação de desconfiança do senso-comum, presente até mesmo no meio acadêmico. Uma chave para sairmos dessa armadilha é tentar abrir a nossa mente para um diálogo com o que nos pare-ce estranho. Trazer o que qualificamos de exótico e diferente para o confronto com nosso jeito de viver e de pensar. Seria como tentarmos comer aquela verdura que nunca quisemos. É nos abrirmos para provar o tempero que não é o da nossa ma-mãe. Conversarmos, de igual para igual, com o diferente, qualquer diferente que seja. Tentarmos buscar o que nos torna semelhante. A nossa natureza humana.

Uma batalha contra o etnocentrismo, essa “visão de mundo onde o nosso gru-po é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos atra-vés de nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimento de estranheza, medo, hostilidade etc.” (ROCHA, 1989, p. 7).

Volta e meia esbarramos na pergunta: o que é índio, ou quem é índio? E as-sumindo que tal questionamento já vem carregado de delírios, de necessidades traumáticas, muitas vezes. Vamos apreender o que os antropólogos nos dizem a respeito dessa chamada “identidade étnica”.

Page 43: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“43”

Geralmente, o primeiro critério, agarrado na busca de resposta, é o Biológico – Racial. Assim, índio seria alguém descendente “puro” de uma população pré-co-lombiana. Embora seja este o critério vigente no senso comum até hoje, é impossí-vel pensar uma situação de completo isolamento de uma população. No caso bra-sileiro, a situação de contato levou a uma verdadeira mistura (miscigenação), fruto de alianças entre os “brancos” aqui chegados e os povos nativos, os ditos “índios”. Os casamentos sugeridos pelos senhores de terra e promovidos pelo Estado, a po-lítica de aldeamento. E, por fim, a Lei de Terras (1850), com a qual várias aldeias foram declaradas extintas, deixando livres as terras ocupadas pelos aldeados. A partir de 1840, a identidade desses povos passou a ser questionada e o critério de mestiçagem será usado para descaracterizar os índios (CUNHA, 1986).

Um outro critério que substitui o de raça é o de cultura. Isso se dá depois da Segunda Guerra Mundial. Tal critério parece até dar conta do problema, no entan-to, é preciso atenção para compreender a cultura como conseqüência da organiza-ção de um grupo e que esta não tem que ser necessariamente a cultura ancestral.

Enfim, o critério vigente: o de grupo étnico. “Forma de organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados como tais pelos ou-tros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias da mesma ordem” (BARTH apud CUNHA, 1986, p. 116).

A identificação de um grupo indígena está baseada na auto-identificação e na identificação da sociedade envolvente. Interesses de negação, por parte dessa so-ciedade, de determinados grupos, poderão acontecer e grupos podem se recolher, ocultando sua identidade. Isso não quer dizer que esta desaparece da consciência do grupo ou da sociedade em questão. “Teve o tempo de nós calar. Agora é o tem-po de nós falar” (pajé Luiz Caboco, Tremembé da Varjota – Almofala-CE).

Este critério, o de grupo étnico, aceito e defendido pelos “especialistas” – os antropólogos – também o é pelo Estado. A lei (6001/73) define: índio é todo aquele que pertence a uma comunidade indígena. Faz parte de uma legislação especial dotando-o de deveres e direitos específicos, garantidos por políticas e programas governamentais através do órgão indigenista oficial – F�NAI (Fundação Nacional do Índio).

O problema se dá no confronto deste termo técnico com a mentalidade do senso-comum que se arraiga, inclusive, nos domínios do científico: imagem ar-quetípica do índio da mata, de tecnologia rudimentar, com belos cocares de pena, portadores de uma religião diferente da nossa. Modelo fácil de encaixar a região amazônica, mas que causa dificuldade para apreender os índios em região mais urbana, portanto, próximo a nós. Como os índios concretos não se encaixam nos nossos modelos mentais, nos arvoramos ao direito de classificá-los como não mais índios. No máximo, como remanescentes de uma cultura perdida.

Contrariando estas crenças, aqui no Ceará, desde a década de 1980, esses po-vos vem “dando as caras” como sujeitos políticos coletivos em busca, de forma

Page 44: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“44”

muito competente, de seus direitos e nos forçando a repensar o “mito da primitivi-dade”, contrariando a verve do senso-comum, inclusive abrindo, pelo lado de fora, as portas das universidades.

3.6 Em tempo de caju não se colhe manga

Nos idos dos anos setenta do século passado, o governo militar, querendo implementar sua ação de ocupação da Amazônia, vê necessidade de “emancipar” os índios que ali viviam. Claro, tirar do Estado a responsabilidade com aquelas populações. Um processo de “desindianização” jurídica.

O tiro estatal saiu pela culatra. Os índios começaram a se organizar; os antro-pólogos, chamados pelo governo para deliberarem quem é índio, assumem uma postura contrária à do Estado. Passam a promover recenseamentos, assessorar gru-pos indígenas e suas associações que começaram a surgir. Nascem as Comissões e ONGs que encabeçam um movimento pró-indios. Os próprios Índios começam a se organizar em resposta ao Estado, num movimento de reafirmação étnica.

Bom notar que esse rebuliço se dá na região amazônica onde ser índio parecia quase inquestionável, ao menos, na nossa filiação arquetípica de índios da mata. Ainda nem estamos vislumbrando as “etnias emergentes” do Nordeste, fato que virá acontecer na década seguinte, aqui no Ceará.

Emancipação sempre foi a filosofia do Estado brasileiro. Mesmo os índios iso-lados, do mato, eram vistos como “estavam índios” que viriam, um dia, a ser cida-dãos de fato: brasileiros de CPF e tudo.

Entidades e pessoas que estavam “do lado” dos índios começaram campanha em vista a dar visibilidade à questão. Os índios começaram a se organizar e buscar ações eficazes para saltarem da gaveta do folclore brasileiro para a condição de “agentes” políticos. Nessa época é que surgem as lideranças políticas indígenas no cenário nacional (Mário Juruna, Airton Krenak). Estava aberta a época do “orgulho índio”. O tempo da vergonha acabara, ser índio, agora, valia “a pena”.

A Constituição de 1988 deu um basta a esse projeto emancipador do Estado, reconhecendo as “comunidades indígenas” como sujeitos coletivos de direitos co-letivos. Mesmo não sendo o ideal, foi uma virada e tanto. Fica estabelecido, então, que só existe o indivíduo índio porque existe uma comunidade indígena. A perten-ça a uma comunidade é fundamental. O direito é do coletivo.

Isso pode dar conta daquela preocupação “tem gente por aí fingindo ser índio pra ganhar terra”. Assim sendo, voltar a assumir uma identidade “quase esqueci-da” começou a fazer sentido para muitos grupos.

Foi esse cenário que veio propiciar uma verdadeira explosão de indianidade reprimida. Aqui no Ceará, final de 1980, os Tapeba puxaram o cordão. Vieram os Tremembé, os Pitaguary, os Jenipapo, Kanindé, Tabajara, Potiguara e por aí vai. Já

Page 45: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“45”

somam mais de uma dezena de povos organizados em Associações local e esta-dual, em. Assembléias regionais e estadual. Muitos parceiros. Isso mostra a com-petência política destes povos e sua capacidade de negociação com o Estado e a Sociedade Nacional.

3.7 “Só é real o que convém à Realeza”

Acreditamos que, sob o mote da “invenção cultural”, estes povos, de forma legítima, vêm produzindo e negociando, entre eles e conosco, esta nova imagem do índio cearense atual.

Antes que entre em cheque a concepção de realidade, chamamos a atenção para a definição apresentada pelo compositor pernambucano, Lenine, na música UMBIGO: “só é real o que convém à realeza”.

Assim, faz-se urgente acreditarmos na realidade construída pelos próprios índios, deixando que eles vivam sua autonomia, nos colocando no lugar de mais um interlocutor e não “produtor” de sua realidade.

Bibliografia

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Povos Indígenas no Brasil 2001-2005. ISA – Insti-tuto Socioambiental, São Paulo: 2006, p.41-49.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Editora Brasiliense/EDUSP, 1896.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Editora Brasi-liense, 1989.

Videografia

As Caravelas Passam. BETA/NTSC 23 minutos. Documentário em vídeo sobre Iden-tidade Indígena no Ceará e Nordeste. Direção: Ivo Sousa e Marcos Passerini. Rea-lização: Instituto Nosso Chão, 2002.

Vídeos Indicados

Torém.SVHS/NTSC 23 minutos. Documentário em vídeo sobre a Dança do Torém, ritual dos Índios Tremembé de Almofala. Direção: Ivo Sousa e Alex Ratts. Realização Instituto Nosso Chão e Toá, 1994.

Page 46: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para

TODO DIAÉ DIA DE ÍNDIO

Respeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

“46”

Os Tremembé de AlmaFala. BETA/NTSC 23 minutos. Documentário em vídeo sobre os Tremembé de Almofala no Ceará - Nordeste do Brasil. Direção: Ivo Sousa. Realização: Departamento de Geografia da �niversidade Federal do Ceará – UFC e Instituto Nosso Chão, 2001.

As Caravelas Passam. BETA/NTSC 23 minutos. Documentário em vídeo so-bre Identidade Indígena no Ceará e Nordeste. Direção: Ivo Sousa e Marcos Passerini. Realização: Instituto Nosso Chão, 2002.

Para Refletir

1. No texto, faço menção à expressão: “a bisavó foi pega à dente de cachorro”? Você já ouviu alguma vez esta expressão, ou outra equivalente? Discuta sobre o sentido dessas expressões correntes e sobre o significado que elas transmi-tem para as novas gerações.2. Qual a imagem de índio que você tem na sua cabeça? Anime os alunos a projetarem, mediante o uso de linguagens visuais, a imagem que eles também têm construído sobre o índio. Utilize o vídeo “As caravelas passam” e desen-volva com eles, e consigo próprio, uma análise comparativa entre as imagens cristalizadas e o pensamento dos entrevistados no filme. Abra discussão cole-tiva em sala de aula e na comunidade.

Page 47: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para
Page 48: Fascículo 2 TODO DIA É DIA DE ÍNDIO - vdl.ufc.brSites\1\Dia de Índio FINAL.pdf · cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para