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Fantasia Romântica: a possível subversão do RPG Blue Rose In: V SIMPÓSIO DO LABORATÓRIO DA REPRESENTAÇÃO SENSÍVEL, 2006, Rio de Janeiro. V Simpósio do Laboratório da Representação Sensível. Rio de Janeiro: Laboratório da Representação Sensível - Puc-Rio Carlos Klimick, Mestre em Design, Doutorando em Literatura Brasileira 1 Palavras chave: Role Playing Game; inovação; originalidade; Roland Barthes. Resumo: os Jogos de Representação (RPG: Role Playing Games) vivem o desejo contemporâneo da inovação. Contudo, apesar do apuro técnico presente nas estruturas narrativas e nas imagens a elas associadas, nota-se nelas uma forte persistência temática. Neste artigo trato da possibilidade de inovação dos cenários de RPG jogando com os signos e estereótipos presentes nessas e outras formas narrativas dentro do seu ambiente mais tradicional: a Fantasia. O recente RPG norte-americano “Blue Rose” é apresentado como exemplo dessa estratégia ao trazer para o mundo dos role playing games a “Fantasia Romântica”. Keywords: Role Playing Game; innovation; originality; Roland Barthes. Abstract: The Role Playing Games live the current desire for innovation. But, in spite of the technical excellence present in the narrative structures and its associated images, once can see in them a strong thematic persistence. In this article I point out the possibility of innovation in RPG settings by playing with symbols and stereotypes present in these and other narrative forms in its most traditional setting: Fantasy. The recent American RPG Blue Rose is presented as an example of this strategy since it introduces the Romantic Fantasy to the world of the role playing games. Introdução Os Jogos de Representação (RPG: Role Playing Games) vivem o desejo contemporâneo da inovação. Contudo, apesar do apuro técnico presente nas estruturas narrativas e nas imagens a elas associadas, nota-se uma forte persistência temática: fala- se das mesmas coisas. E ao se falar, arrasta-se estereótipos de difícil combate. Renovações inócuas, com cenários que não relacionam ou que apenas mascaram um novo terminam por motivar a criação de pequenas variações do tradicional numa estratégia de marketing que pode ser chamada de “eu também”. Neste artigo trato da possibilidade de inovação dos ambientes dos Role Playing Games jogando com os signos e estereótipos presentes nessas e outras formas narrativas dentro do seu ambiente mais tradicional: a Fantasia. O recente RPG norte-americano “Blue Rose” é apresentado como exemplo dessa estratégia ao trazer para o mundo dos role playing games a “Fantasia Romântica”. RPG: Role Playing Game 1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq.

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Fantasia Romântica: a possível subversão do RPG Blue RoseIn: V SIMPÓSIO DO LABORATÓRIO DA REPRESENTAÇÃO SENSÍVEL,

2006, Rio de Janeiro. V Simpósio do Laboratório da Representação Sensível. Rio deJaneiro: Laboratório da Representação Sensível - Puc-Rio

Carlos Klimick, Mestre em Design, Doutorando em Literatura Brasileira1

Palavras chave: Role Playing Game; inovação; originalidade; Roland Barthes.

Resumo: os Jogos de Representação (RPG: Role Playing Games) vivem o desejocontemporâneo da inovação. Contudo, apesar do apuro técnico presente nas estruturasnarrativas e nas imagens a elas associadas, nota-se nelas uma forte persistência temática.Neste artigo trato da possibilidade de inovação dos cenários de RPG jogando com ossignos e estereótipos presentes nessas e outras formas narrativas dentro do seu ambientemais tradicional: a Fantasia. O recente RPG norte-americano “Blue Rose” é apresentadocomo exemplo dessa estratégia ao trazer para o mundo dos role playing games a“Fantasia Romântica”.

Keywords: Role Playing Game; innovation; originality; Roland Barthes.

Abstract: The Role Playing Games live the current desire for innovation. But, in spite ofthe technical excellence present in the narrative structures and its associated images,once can see in them a strong thematic persistence. In this article I point out thepossibility of innovation in RPG settings by playing with symbols and stereotypespresent in these and other narrative forms in its most traditional setting: Fantasy. Therecent American RPG Blue Rose is presented as an example of this strategy since itintroduces the Romantic Fantasy to the world of the role playing games.

Introdução

Os Jogos de Representação (RPG: Role Playing Games) vivem o desejocontemporâneo da inovação. Contudo, apesar do apuro técnico presente nas estruturasnarrativas e nas imagens a elas associadas, nota-se uma forte persistência temática: fala-se das mesmas coisas. E ao se falar, arrasta-se estereótipos de difícil combate.Renovações inócuas, com cenários que não relacionam ou que apenas mascaram umnovo terminam por motivar a criação de pequenas variações do tradicional numaestratégia de marketing que pode ser chamada de “eu também”. Neste artigo trato dapossibilidade de inovação dos ambientes dos Role Playing Games jogando com ossignos e estereótipos presentes nessas e outras formas narrativas dentro do seu ambientemais tradicional: a Fantasia. O recente RPG norte-americano “Blue Rose” é apresentadocomo exemplo dessa estratégia ao trazer para o mundo dos role playing games a“Fantasia Romântica”.

RPG: Role Playing Game

1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq.

A principal editora de RPGs do Brasil, a Devir Editora, estima que existam hojecerca de 500 mil praticantes de RPG em atividade. Anualmente, é organizado em SãoPaulo um evento chamado “Encontro Internacional de RPG” reunindo cerca de 12 milpessoas. Apesar de ter conquistado algum espaço na mídia, os Role Playing Gamesainda são pouco conhecidos, algumas vezes levando a mal-entendidos. Um provérbiosabiamente afirma que às vezes algum conhecimento é pior do que nenhum.

Eu pesquisei os RPGs em minha dissertação de mestrado em Design Didático naPUC-Rio, defendida em 2003, chegando a algumas conclusões sobre suas característicase componentes e sua relação com a narratividade. Pelos motivos acima expostos, creioser adequado começar este artigo com uma explanação sobre os RPGs.

Role Playing Game: características e componentes

No Brasil, ao contrário dos países de fala hispânica ou francesa, convencionou-sea referência ao RPG em inglês, como Role-Playing Game. Há diversas teorias sobre oporque disso, desde um anglicismo americanófilo que torna cada vez mais corrente ouso de termos em inglês em nosso país até as dificuldades de tradução do termo playque em inglês tem os sentidos de “brincar”, “jogar” e “interpretar” para o RPG. Quandohá uma necessidade de uma tradução, vem crescendo a adesão ao termo “Jogo deRepresentação”. Em minha dissertação, traduzi RPG como “Jogo de Interpretação dePersonagens”, mas recentemente aderi ao “Jogo de Representação” para facilitar oentendimento sobre as histórias interativas através de uma certa identidadeterminológica e porque “representação”, no sentido usado por Todorov, é bem aplicávelaos RPGs. “REPRESENTAÇÃO é o aparecimento de uma imagem mental no usuáriodos signos. Esta depende do grau de abstração que as diferentes camadas do vocabuláriopossuem”.(Todorov, 2001, pg. 103) Se vamos propor alguns deslizamentos barthesianosao longo do caminho, precisamos ter um chão sobre o qual deslizar.

O RPG é uma forma de narrativa que se diferencia das narrativas linearestradicionais tendo surgido nos EUA em 1974 a partir dos jogos de guerra quesimulavam batalhas em tabuleiros. David Arneson e Gary Gygax, fãs do universofantástico concebido pelo professor inglês J.R.R. Tolkien, cuja obra mais famosa é “OSenhor dos Anéis” 2, criaram um cenário similar para as primeiras aventuras.Inicialmente, as histórias eram muito simples: invadir as catacumbas, matar os monstrose pegar o tesouro. A terminologia dessa primeira fase do RPG contaminou-se comtermos oriundos dos Jogos de Guerra: "Mestre do Jogo"; "Aventura"; "Campanha" etc.Quase todos os cenários criados eram de "fantasia medieval". Em sua fase atual, há umagrande diversidade de cenários (fantasia; terror; histórico; aventura etc.) e o RPG passoua ser aplicado para outros fins além do entretenimento. Surgiram outros termos como"Narrador"; "História"; "Crônica"; etc. Mas, como funciona o RPG?

2 TOLKIEN, J.R.R. The Lord of the Rings. Trilogia de livros (The Fellowship of the Ring; The Two

Towers; The Return of the King). Os dois primeiros foram publicados em 1954 e o terceiro em 1955 naInglaterra. O livro descreve uma história épica em um cenário de inspiração medieval européia em queheróis de diferentes raças (humanos, elfos, anões e hobbits) se unem para enfrentar o maligno Sauron. Atrilogia foi adaptada para o cinema em três filmes nos anos de 2001, 2002 e 2003.

No RPG, os praticantes criam suaspersonagens que participam de históriasparcialmente contadas por um Mestre doJogo (também chamado de Narrador). Nolivro (ou qualquer que seja o suporte) deRPG se encontra parcialmente descritoum cenário, no qual se passarão ashistórias. As personagens criadas pelos“jogadores” e pelo Mestre serãocoerentes com o cenário: bandeirantes eíndios num cenário de Brasil colonial;cavaleiros e alquimistas num cenário deEuropa Medieval, etc. A história começaa ser contada pelo Mestre, mas os“jogadores” são livres para decidir o quesuas personagens falam e fazem nahistória. Assim, os rumos da história sãofreqüentemente alterados pelas ações daspersonagens, sendo na verdade umahistória contada em conjunto pelo Mestree “jogadores”.

É papel do MJ preparar a história,representar personagens não interpretadaspelos jogadores e coordenar as açõesdurante a prática de RPG.

A ilustração acima representa a situação ‘tradicional do início de uma sessão deRPG. O Mestre está sentado à cabeceira da mesa, orientando os jogadores quepreencherão as fichas de suas personagens. As fichas contêm características daspersonagens como “Força”, “Inteligência”, “Vigor”, “Sorte” e habilidades como“Xadrez”, “Biologia”, “Furtividade”, “Luta Desarmada”. Mestres e jogadoresrepresentam as ações de suas personagens descrevendo-as e enunciam suas falas demodo direto ou indireto. As dúvidas sobre os resultados das ações das personagens dosjogadores, quando há possibilidade de falha ou sucesso parcial, são resolvidas pelosistema de regras. Este é um ponto em que podem ocorrer debates entre Mestre ejogadores sobre a interpretação das regras.

Existem duas variantes para a prática de RPG acima, chamada de “RPG de mesa”ou “table-top RPG”, que são o LARPG e o “play by e-mail”

LARPG é uma sigla para “Live-Action Role-Playing Game”, neste formato o RPGse aproxima do “teatro de improviso”. Os jogadores recebem junto com as fichas depersonagens um roteiro com objetivos a serem alcançados durante a sessão. Se elescriaram a ficha antes, recebem apenas o roteiro com os objetivos. A trama é articuladade forma que os objetivos das diferentes personagens se entrecruzem de formacooperativa ou competitiva. É reservado um espaço para a sessão de jogo, sendo comumos jogadores buscarem um nível de caracterização para comporem suas personagens.Devido à dificuldade de movimentar o grupo por diferentes espaços, as tramascostumam se passar em um único local, simulando eventos públicos ou “um bar ondetudo acontece”.

O “play by e-mail” é basicamente quando a interação entre mestres e jogadoresocorre via internet: por troca de e-mails ou em tempo real através de softwares que

permitem um ambiente compartilhado em que todos podem ver na telainstantaneamente o que os outros estão digitando. As mensagens tendem a ser maiscurtas e objetivas.

O termo “jogo”, no contexto do RPG, não se refere à disputa, mas à interação, aopróprio ato de representar uma personagem. Os participantes de uma sessão de RPG,mestre/narrador e "jogadores" cooperam entre si em vez de competir, sendo este um dosprincipais motivos do termo "jogo" ser questionado por profissionais de RPG emrelação à sua prática. Lembremos que a palavra play em inglês tem entre seussignificados "jogar", "interpretar" e "brincar", permitindo um "jogo de sentido" dedifícil tradução para o português. Ao expor suas dificuldades de traduzir do termo jeuno texto Aula, de Roland Barthes, Leyla Perrone-Moisés (in: BARTHES, 1977:82-85)esclarece o próprio conceito de “jogo” que, dentro da teoria e prática barthesianasconsiste de uma atividade ao mesmo tempo sem finalidade senão o próprio jogo e deuma tática de crítica às cristalizações da linguagem, característica que aproxima este“jogo”, então, do teatro, do “faz-de-conta”.

Para fins de formulação teórica, considerei em minha pesquisa de mestrado quatrocaracterísticas do RPG que o distinguem, em termos de suporte e fruição, de outrasmaneiras de se contar uma história: socialização; interatividade; narrativa;hipermídia. (Klimick, 2003)

O aspecto de socialização é enfatizado por diversos autores. Segundo FlavioAndrade3 (1997), o RPG permite ao jogador exercitar sua fantasia e torná-la aceitávelem seu meio. Isso, por si só, dá ao jogo um grande papel como elemento socializante,pois, ao sentir-se aceito, o jogador começa a se despir de suas inibições e se expor maisà sociedade. Sônia Rodrigues4 define RPG como uma atividade “com sentido e funçãosocial” em que ficção é produzida em grupo e manifesta oralmente. (Rodrigues, 2004:63) Andréa Pavão5 destaca também o aspecto construção coletiva de narrativas em quehá formação de comunidades de leitores. (Pavão, 2004:75) Robin Law, conceituadodesigner de jogos americano e autor de um livro sobre técnicas para Mestres de RPG,observa que o objetivo principal da prática de RPG é de que todos se divirtam,enfatizando a necessidade da busca de equilíbrio entre os gostos e desejos de todos osparticipantes, mestres e jogadores. (Law, 2002) Este aspecto de socialização do RPG é,vital para a cooperação e para as convenções sobre os limites das intervenções dosjogadores.

Arlindo Machado (1997), por sua vez, define interatividade através de termoscomo autonomia, criatividade e imprevisibilidade. Na linguagem interativa, espera-seuma ou mais respostas autônomas, difíceis de se prever, situação esta presente atravésdas decisões dos praticantes em relação às atuações de suas personagens numa sessão deRPG.

Júlio Plaza define hipermídia como "uma forma combinatória e interativa demultimídia, onde o processo de leitura é designado pela metáfora de “navegação” dentrode um mar de textos polifônicos que se justapõem, tangenciam e dialogam entre eles.”

3 Flavio Andrade. Nascido em 69, é formado em publicidade e jornalismo pela PUC-Rio. Além da co-autoria do Desafio dos Bandeirantes e da linha de RPG's da Akritó Editora, atuou nela como editor ediagramador. Trabalhou com RPG aplicado à educação de 1996 a 2001.

4 Sônia Rodrigues é doutora em literatura pela PUC-Rio, onde pesquisou a literatura infantil deMonteiro Lobato no mestrado e o Roleplaying Game norte-americano no doutorado. Sua pesquisa dedoutorado foi a primeira no Brasil a ter o RPG como objeto de estudo. Sônia é escritora e co-autora dojogo de criar histórias “Autoria”.

5 Andréa Pavão é mestre e doutora em Educação pela PUC-Rio, docente da Universidade Estadualdo Rio de Janeiro e coordenadora de oficinas de leitura e escrita. Pesquisou o RPG em sua dissertaçãode mestrado a partir da qual escreveu o livro “A aventura da leitura e da escrita entre Mestres de RPG”.

(Plaza, 2003:25). O RPG pode então ser visto como uma narrativa hipermidiática (textoescrito, imagens e a narração do Mestre e representação das personagens pelosjogadores), onde a disponibilidade instantânea de possibilidades articulatórias permiteuma reconfiguração constante da obra através das intervenções de cada participante. Oselementos presentes no livro básico e na própria prática do RPG(ilustrações, textos,linguagem corporal e verbal) são "janelas" ou "links" de informação para o jogadorsobre a ambientação onde serão construídas suas próprias histórias.

Narrativa será entendida nesta tese no sentido proposto por Paul Ricoeur dentroda sua análise da Poética de Aristóteles. A narrativa é o “o quê” da atividade mimética,da imitação criativa da ação. É o mythos, a organização dinâmica dos eventos.Muniz Sodré6 define narrativa como um “discurso capaz de evocar, através da sucessãotemporal e encadeada de fatos, um mundo dado como real ou imaginário, situado numtempo e num espaço determinados. (...) Como uma imagem, a narrativa põe diante denossos olhos, nos apresenta, um mundo”. (Sodré, 1988: 75)[grifos do autor]

O processo narrativo, bem como a apresentação dos suportes do RPG , secaracteriza pelas colagens, apropriações e reinterpretações (Bettocchi, 2002). O termo“pilhagem narrativa” é usado por Sônia Rodrigues (Rodrigues, 2004: 127) paradescrever este processo de construção narrativa, cujas histórias e imagens sãoconfiguradas a partir de elementos de outras histórias e de outras imagens, apropriadasde autores que não são citados, aproximando-o da narrativa oral “sem dono”.

Diferentemente de uma narrativa tradicional, um RPG oferece uma "ambientação"a partir da qual os jogadores constroem, coletivamente, suas próprias histórias epersonagens. Isto quer dizer que um suporte de RPG, impresso, eletrônico ou oral, nãotem por objetivo oferecer histórias completas, fechadas, prontas - ainda que possamexistir exemplos de histórias e personagens nos livros de RPG e até mesmo romancespassados na ambientação. O que encontramos são possibilidades autônomas eimprevisíveis, que se realizam em cada momento de jogo através da interação entremestres e jogadores.

As narrativas no RPG são, neste contexto, escolhas feitas por mestres e jogadores,o que reservaria aos autores do jogo o papel de facilitadores destas escolhas de autoriacoletiva.

Considerei também, para fins conceituais, que o RPG possui componentes quedenotam sua prática.

O cenário apresenta um mundo, um período histórico, uma situação social, umgrupo social. Portanto, inclui questões tais como quem são as pessoas e organizaçõesmais importantes daquele ambiente, se a magia é real ou não, se existem seres racionaisalém dos humanos etc. Tudo isto importa porque as personagens apresentadas e criadastêm de ser coerentes com o cenário.

A personagem no RPG é a interface entre o jogador e o jogo, pois através dela“vivencia-se”, mais do que se acompanha, a história. Pode-se dizer que sem a atuaçãodas personagens, a prática do RPG não acontece. Como no RPG há continuidade, aspersonagens podem viver várias histórias, evoluindo a cada aventura, aumentando suascapacidades de atuação. Cabe observar que numa sessão de RPG também há aspersonagens do Mestre que interagem com as personagens dos jogadores.

No RPG, as regras compõem um sistema de simulação de realidade. Quando seutiliza o termo simulação de realidade no jogo de representação, está-se referindo nãoao sentido de logro ou falsidade, mas ao sentido de modelo. Robin Law propõe que as

6 Professor –titular do Depto. de Comunicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

regras existem para dar aos jogadores um grau de controle sobre os eventos no jogo, oupelo menos para evitar que o controle do Mestre sobre os eventos seja absoluto. Porisso, é importante que o Mestre as respeite mesmo que elas permitam que os jogadoresarruínem seu roteiro cuidadosamente elaborado. (Law, 2002: 27)

Os enredos compõem-se de um conjunto de situações-chave (nós narrativos) apartir das quais a história se movimenta. Tanto este desenrolar quanto o desfecho dahistória são imprevisíveis devido as interações entre as personagens do Mestre e dosJogadores.

Ambientação: uma combinação de cenário, personagem, enredo e clima,fornecendo os elementos para as histórias de uma proposta específica de RPG. O climaseria uma maneira de jogar tanto o cenário quanto os enredos. Façamos um paralelocom o cinema: pode-se, por exemplo, jogar um enredo de fantasia com clima dramático(Ladyhawk: O Feitiço de Áquila), ou um cenário de terror com clima de ação (Blade),ou um cenário de ficção-científica com clima noir (Blade Runner, Gattaca) etc. Comose trata de personagens heróicas, o clima predominante nos enredos e cenários de RPG éo de aventura. Por ser um modo de jogar, pode-se dizer que o clima seria uma ponteentre código e repertório.

A atuação do Mestre de Jogo é considerada fundamental para o sucesso de umasessão de RPG. Robin Law chega a afirmar que os esforços dos designers de jogossobre textos e regras representam cerca de 30% da equação para que um grupo depessoas vivencie uma boa experiência numa sessão de RPG. A participação do Mestre,ou Narrador e dos jogadores é vital, pois os “livros de regras são tanto RPGs quantoroteiros são filmes”. (Law, 2002: 2). Sônia Rodrigues e Andréa Pavão tambémdestacam a importância do Mestre do Jogo para a qualidade das narrativas geradas.

Podemos observar também uma tradição nas narrativas dos livros de RPG nasfases do RPG identificadas por Bettocchi7 (2002, p: 40-49) em sua dissertação demestrado.

Basicamente, Bettocchi faz uma relação entre a produção de jogos levantada porFábio Amâncio (1997) entre 1974 e 1997 e as gerações de mestres e jogadoresidentificadas por Andréa Pavão (1999), trazendo uma classificação das três fases deprodução do RPG brasileiro e americano com base na visualidade, diversidade de regrase cenários. Os RPGs de 1a fase (EUA: 1974/77; Brasil: 1991) têm uma visualidadeinspirada em ilustrações de fábulas e contos de fadas do final do século XIX e início doXX, em quadrinhos que abordam temas de fantasia como "Príncipe Valente" e "Conan",e na obra de ilustradores como Frank Frazetta, Boris Vallejo entre outros. Encontramosuma homogeneidade de estilo de ilustração, onde o cenário é a fantasia medieval e ossistemas de regras são quantitativos com personagens agrupadas em classe/nível, onde aclasse corresponde à sua ocupação e o nível ao seu desenvolvimento. Na 2a fase (EUA:1977/1991; Brasil: 1991/1993) temos a introdução de influências vindas dos quadrinhosde diversos gêneros e dos mangás, além do cinema na visualidade. Há uma diversidadede cenários com a entrada da ficção científica e os sistemas "genéricos" que podem serusados em qualquer cenário. Existem produções que se concentram nas regras e outrasnas "ambientações". A diversidade de cenários traz uma diversidade de estilos deilustração, como o mangá, por exemplo. Outras técnicas, como a fotografia, também sãousadas, mas há uma unidade de estilo visual dentro de cada livro. A 3a fase (EUA:1992; Brasil: 1994) abre com o RPG Vampire: The Masquerade 2nd ed. que traz um

7 Eliane Bettocchi. Mestre em Design pela PUC-Rio. Ilustradora de RPG desde 1991, é a primeira

autora do gênero no Brasil. Pesquisa o tema desde 2000, possuindo vários artigos publicados.Atualmente faz doutorado em Design na PUC-Rio tendo RPG como objeto de estudo.

sistema de regras flexível, centrado nas personagens, ambientação e narrativa, assimcomo a possibilidade de jogar com monstros (vampiros) como heróis trágicos. Avisualidade apresenta uma miscelânea de estilos e técnicas diferentes dentro da mesmapublicação, algo que não tinha sido feito até então. É perceptível a influência dosquadrinhos para adultos, como a linha Vertigo americana, cinema, televisão evideogames. O livro é recheado de textos que se aproximam do literário com poemas enarrativas em 1a pessoa, apresentando elementos do cenário.

A Fantasia nos RPGs e seus estereótipos

Sônia Rodrigues conceitua o RPG como uma forma específica de narrativa demassa que tem como objetivo central o entretenimento de seus participantes, seu triunfo,seu objeto de desejo é a narrativa criada. O seu texto de escolha seria o do prazer,segundo Barthes, e o da narrativa épica. (Rodrigues, 2004). Robin Law, por sua vez,afirma que os RPGs se baseiam nos gêneros da cultura pop por duas razões: eles sãofáceis de se entender e a grande maioria das pessoas os conhece e gosta deles. Lawafirma que os estereótipos então se tornam úteis para os ambientes narrativos deroleplaying porque ajudam os jogadores a imaginar o mundo fictício em que se passa ahistória e pressupor que tipos de ações são possíveis naquela ambientação. Afamiliaridade é reconfortante. “Quanto mais o cenário se parecer com algo que elesconhecem do entretenimento popular, maior será a chance de que eles possam seconectar a uma fantasia pré-existente que sempre quiseram desfrutar”. (Law, 2002: 9).Ele denomina essa característica de acessibilidade (accessibility). Lembremos que osjogadores de RPG estão lá para relaxar se divertindo e as narrativas são geradas deforma oral e espontaneamente. Para Law o apreço aos estereótipos variageograficamente. Os franceses aceitariam mais facilmente ambientações inovadoras,enquanto os norte-americanos só abririam mão de seus amados estereótipos “quandoestes são arrancados de suas mãos mortas”.

O RPG comercial, como as demais narrativas de massa, tem de atender asdemandas do mercado.

Law destaca então que a Fantasia tende a ser mais popular nos círculos de RPG doque na grande mídia por possibilitar vários estilos de roleplaying para os jogadores,agradando tanto os que preferem desafios estratégicos como os que privilegiam ahistória e a interpretação como também os que apenas querem criar personagenspoderosos para derrotar monstros enormes. Além disso, a Fantasia permitiria incluirfacilmente elementos de outros gêneros na narrativa. Por exemplo, um vírus decomputador de um ambiente de ficção científica poderia se tornar uma “praga místicaque destrói objetos mágicos”. Os “replicantes” do filme de ficção científica “BladeRunner” poderiam se tornar fugitivos de experimentos realizados por um poderosofeiticeiro maligno, ou de uma guilda de feiticeiros para tornar a analogia mais próximade uma corporação. Mas, de que fantasia estamos falando?

Robin Law denomina a “Fantasia” utilizada nos RPGs de “power fantasy” queseria igualmente presente em filmes e outros jogos. Power fantasies permitem que osjogadores criem personagens muito mais competentes e poderosos do que eles, capazesde grandes feitos e com boas chances de derrotar seus inimigos. Esse estilo deambientação traz uma visão otimista de mundo que é muito popular nos EUA por seharmonizar bem com a mitologia nacional norte-americana. Apesar de Law não definiro que entende por “mitologia”, podemos apreender pelo contexto em que ele utiliza

termo que é uma combinação de valores e versões que se aproxima do mito barthesiano.Law afirma que a power fantasy está muito ligada ao conceito do herói como invencíveldos EUA, sendo menos popular na Inglaterra onde o conceito de heroísmo está maisligado à perseverança diante de grandes obstáculos e adversidades do que à vitória.

No Brasil é comum a utilização do jargão “fantasia medieval” para se definir oque comumente se entende por Fantasia nos RPGS. Refere-se a um cenário em queexistem povos de diferentes raças (normalmente humanos, elfos, anões ehobbits/halflings/pequeninos) em que heróis como cavaleiros, magos, sacerdotes,bardos e ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos. As histórias sãonormalmente chamadas de aventuras e sua estrutura clássica é simples: enfrentar omonstro, salvar as pessoas indefesas, princesas ou não, e colher a recompensa,normalmente sob a forma de tesouros.8 A magia e os seres sobrenaturais são presentes.O ambiente costuma ser inspirado no imaginário da Idade Média européia, comcastelos, tavernas, vilarejos, nobres, dragões etc. Foi o primeiro tipo de cenário dosRPGs e até hoje é um dos mais populares.

Bráulio Tavares, escritor e pesquisador brasileiro de literatura fantástica, apresentao conceito de Fantasia Heróica no prefácio do romance “A Sombra dos Homens – ASaga de Tajarê: Livro 1”. “A Fantasia Heróica é uma subdivisão da literatura fantástica,e tem um visível intercâmbio de temas e de estruturas com as narrativas queclassificamos como Mitos, Lendas, Épicos, etc. Em grande parte destas formas denarrativa, o interesse principal é contar as peripécias em que se envolve um herói”.(Tavares, In Causo, 2004: 13). O Herói seria alguém capaz de feitos extraordinários,personificando traços humanos como força e bravura, caso de Sansão, esperteza, casode Ulisses, ou até pureza (Sir Galahad). Eu também acrescentaria as personagens Frodoe Sam do romance “O Senhor dos Anéis” como heróis relutantes que personificamperseverança, dever e amizade. O Herói também pode personificar um arquétipo socialem que uma comunidade ou nação tenta ver refletidos certos elementos com os quais seidentifica. Os pilares modernos da Fantasia Heróica seriam dois autores: J.R.R. Tolkiene Robert E. Howard. O livro “Senhor dos Anéis”, de Tolkien, traz como já vimos umcenário de “fantasia medieval” onde ocorre uma batalha épica contra o mal e com fortepresença de heróis relutantes reagindo ao avanço das forças das trevas. Howard éconhecido pela sua criação mais bem sucedida: Conan, o Bárbaro, cujas aventuras sãotemas de romances, histórias em quadrinhos, desenhos animados, dois filmes e até umasérie de TV. Conan é um herói pró-ativo em vez de relutante, que parte para enfrentaroponentes e conquistar vitórias.

É importante observar que apesar da obra de Tolkien ser uma das matrizes da“Fantasia Heróica” esta é uma apropriação realizada pela Doxa. O conceito de Fantasiapara Tolkien é bem diferente, tratando-se, resumidamente, da criação de um MundoImaginário com consistência de realidade. No artigo que publicamos no Simpósio doLARS do ano passado, “Fantasia e Êxtase: um exercício de resistência através daforma”, Eliane Bettocchi e eu propusemos uma aproximação entre os conceitos de“Fantasia” de Tolkien e de “Escritura” para Barthes em que ambos são vistos como umlogro da Doxa por um deslizamento pela forma. Neste artigo não estou trabalhando como conceito de Fantasia de Tolkien.

Tavares alerta para o risco das mesmas situações acontecerem em aventuras quemal disfarçam um enredo que se repete tediosamente, trazendo pouca satisfação.

8 Aproximando-se da estrutura dos contos de fadas conforme proposto por Vladimir Propp na

“Morfologia do Conto Maravilhoso”. Aproximação esta já identificada por Sônia Rodrigues em sua tese dedoutorado.

Acredito ser possível observar uma grande similaridade entre os três conceitos,visto a proximidade com o épico encontrada nos RPGs e nessas definições de Fantasia.Lembremos que quase sempre as personagens dos jogadores de RPG são definidascomo “heróis”. Assim, nos RPGs norte-americanos jogados pelos brasileiros, e emmuitos criados por brasileiros, haveria uma predominância das ambientações de“(Power) Fantasia Medieval Heróica” que chamarei neste artigo de “FantasiaHeróica”: as personagens dos jogadores são heróis capazes de grandes feitos, quevivem aventuras de estilo épico num ambiente medieval inspirado em Tolkien masnormalmente com a pró-atividade do Conan de Howard. Há uma clara preferência dagrande maioria dos jogadores por finais felizes e personagens vitoriosos pelo que pudeobservar em 14 anos de atuação na área como jogador, mestre, autor e pesquisador deRPGs.

Esse predomínio da Fantasia Heróica é tão grande que muitos videogames quenão tem as características dos RPGs se apresentam como se o fossem simplesmente porter um cenário de jogo nesse estilo. Mas, esse poder da Fantasia Heróica é, como todopoder segundo Barthes, insidioso. Ele não se manifesta apenas no fato da grandemaioria dos RPGs trazerem ambientações expressamente de Fantasia Heróica, eletambém contamina jogos que se propõe a apresentar outras ambientações. O exemplomais visível seria o do RPG “Vampiro: a Máscara, 2ª ed.”. Este livro, que abre a 3ª fasedos RPGs, traz expressa uma proposta das personagens dos jogadores como “heróistrágicos”,vampiros destinados a uma luta desesperada para manter sua humanidadeenquanto buscam manter sua humanidade. A ênfase seria na interpretação, numambiente sombrio, pessimista, em que a catarse do final trágico seria o desfecho maiscomum para as personagens dos jogadores. Apesar de seu grande sucesso inicial,Vampiro atravessou um problema. Com o tempo, vários profissionais do meio de RPG(designers, editores, autores etc.) perceberam que a maioria dos RPGistas (jogadores emestres) passaram a usar os elementos do cenário de Vampiro para jogar aventuras deFantasia Heróica com outra roupagem. Em resumo, voltaram a criar histórias em que oobjetivo era derrotar os monstros e coletar o tesouro. O fenômeno tornou-se assunto dedebates e conversas entre os profissionais do ramo, originando risadas tristes ou alegres.O caso talvez seja similar ao raciocínio de que o filme “Guerra nas Estrelas – EpisódioIV: uma Nova Esperança” é uma história em que um camponês descobre através de ummago que é na verdade filho de um grande cavaleiro. Ele recebe então a espada de seupai para desafiar o cavaleiro negro que mantém prisioneira uma princesa numa fortalezasinistra. Um conto de cavalaria com outra roupagem.

Vemos então que a Fantasia Heróica é mais do que um ambiente de RPG,é ummodo de perceber, de entender o que é RPG que condiciona a forma como ele évivenciado por vários grupos, independentemente do cenário proposto. Estariaentranhada, sob certo ponto de vista, na linguagem da comunidade social dos RPGistas.

Faz-se necessário explicar o que entendo por “linguagem de RPG”. Dentro dacultura brasileira, podemos faltar de culturas que caracterizam determinadascomunidades sociais: cultura carioca, cultura bahiana, cultura do surf, culturaacadêmica. Podemos raciocinar que linguagem e cultura estão intimamente ligadas,sendo este ponto de vista compartilhado por pesquisadores de semiótica como LúciaMaria Santaella e de antropologia como Clifford Geertz, que vê a cultura como umarede de significados. Seguindo este raciocínio, podemos afirmar que há uma cultura domeio de RPG evidenciada por seu jargão e eventos sociais, a qual deve corresponderuma linguagem própria que se relaciona com a linguagem brasileira.

Esta linguagem de RPG, com seus códigos para estruturas narrativas e imagens(que de certa forma também são narrativas), estaria fortemente condicionada pelosestereótipos da Fantasia Heróica.

Barthes: entre a banalidade e a originalidade está o espaço vital da Literatura

No prefácio dos “Ensaios Críticos” que acompanham a edição brasileira de“Crítica e Verdade” Barthes discorre sobre as possibilidades de variação da literatura.Ele cita como exemplo uma carta de pêsames para um amigo que perdeu um entequerido. Se ele apenas escrever “meus pêsames”, o que seria uma mensagem clara edireta de seus sentimentos, ele acabaria passando uma mensagem de secura, deformalidade, que não é sua intenção. Para poder demonstrar seu afeto para com oamigo, Barthes se vê obrigado a variar seu texto, a ser original, indireto. Isso ocorreporque a linguagem traz atrelada a si outras mensagem que tornam a primeiramensagem falsa. A mensagem primeira pura é utópica porque só posso falar dentro deuma língua que traz as linguagens dos outros. Para ser mais exato, mais verdadeiro, épreciso ser mais indireto e não mais espontâneo, pois a espontaneidade é a seara doestereótipo. É preciso planejamento para ser mais verdadeiro.

Barthes observa que essas variações ocorrem dentro de um campo depossibilidades que no caso da literatura corresponderia a literaridade procurada pelosformalistas russos. Um campo que oscila entre a originalidade e a banalidade.

A originalidade é o preço que o escritor deve pagar pela esperança de seracolhido, e não apenas compreendido, pelo leitor. É a chance de afeto, de estabeleceruma relação.

Barthes ressalta que nascemos em meio a uma linguagem já estabelecida, criadapor outros em que o real já foi por vezes demais nomeado. O desafio do escritor não éentão criar palavras do vento, pois sua matéria prima é o nomeado e não o inominável,mas arrancar uma fala segunda dos visgos da fala primeira que entranham o mundo.Como diz Barthes:

“Ouve-se freqüentemente dizer que a arte tem por encargo exprimir o inexprimível: é o contrárioque se deve dizer (sem nenhuma intenção de paradoxo): toda a tarefa da arte é inexprimir o exprimível,retirar da língua do mundo, que é a pobre e poderosa língua das paixões, uma outra fala, uma fala exata”.(Barthes, 1966/1970/2003, pg. 22) [grifos do autor, negrito meu]

É justamente no já nomeado da linguagem, no fascismo da língua que nos obriga adizer que se insere a Doxa, o “desde sempre”, o estereótipo, o discurso arrogante dopoder. Um adversário difícil que cria antolhos nos usuários de modo que só vêem ummodo de ver, e conseqüentemente dizer, as coisas, sem perceber que a única fala traz

“É porque há uma angústia da banalidade (angústia para a literatura, de sua própria morte) que aliteratura não cessa de codificar, ao sabor de sua história, suas informações segundas (suaconotação) e de inscrevê-las no interior de certas margens de segurança. Assim vemos as escolase as épocas fixarem para a comunicação literária uma zona vigiada, limitada por um lado pelaobrigação de uma linguagem “variada” e de outro pelo encerramento dessa variação sob forma deum corpo reconhecido de figuras; essa zona – vital – se chama retórica, e sua dupla função é deevitar que a literatura se transforme em signo da banalidade (se ela for demasiadamente direta) eem signo da originalidade (se ela for demasiadamente indireta). As fronteiras da retórica podemalargar-se ou diminuir, do gongorismo à escritura “branca’, mas é certo que a retórica, que não émais que a técnica da informação exata, está ligada não somente a toda literatura, mas ainda atoda comunicação, desde que ela quer fazer entender ao outro que o reconhecemos: a retórica é adimensão amorosa da escritura”. (Barthes, 1966/1970/2003, pg. 20/21) [grifos do autor]

diversas outras em seu bojo. A desejável multiplicidade decai diante das forças deasserção, obrigar a dizer, e repetição, naturalizando o que é uma escolha, da Doxa.

O que fazer então? Barthes desconfia da transgressão, visto não haver um fora dalinguagem e que há exterioridade de qualquer linguagem em relação à outra éinsustentável. A solução seria jogar com os signos para trapacear a infiltração do poder,subvertendo. Uma semiologia que cria, acrescenta, em vez de apenas analisar, jogandocom os textos do Imaginário. O combate se faz no campo da forma, logrando a Doxa.(Barthes: 2002 [1977]).

Blue Rose: O possível logro da “Fantasia Romântica”

Robin Law ao discorrer sobre a criação de ambientações por parte dos mestres dejogo ressalta que essas devem buscar um equilíbrio entre a originalidade e aacessibilidade. Não faz sentido um grande esforço para criar um cenário que no finaldas contas é muito similar a cenários já publicados. Seria melhor então que o Mestre seesforçasse para criar suas aventuras a partir de um cenário pré-existente, acrescentandosuas tramas e personagens. Por outro lado, também não faz sentido criar algo tãooriginal que os jogadores tenham que receber muita informação para compreender ecom o qual tenham grandes dificuldades em se identificar. Uma opção para o sucesso,segundo Law seria a justaposição incomum de elementos conhecidos.

Creio que a ambientação do recém-lançado RPG estadunidense “Blue Rose”alcança este equilíbrio entre originalidade e acessibilidade com sua proposta de“Fantasia Romântica”.

A acessibilidade está presente na relação com um novo gênero de romances defantasia trazidos pelas mãos de uma nova geração de autores, com forte presençafeminina, em meados dos anos 1980. Enquanto na Fantasia Heróica de Tolkien eHoward heróis solitários, ou em pequenos grupos, realizam grandes feitos e partem emgrandes venturas para obter poder e glória ou proteger o mundo de alguma ameaça, ashistórias da Fantasia Romântica tem um tom bem diferente. Nessas histórias, aspersonagens principais podem começar como solitárias ou proscritas, mas encontramum lugar na sociedade, geralmente como membros de algum grupo proeminente ouorganização proeminente que parte em aventuras para proteger pessoas comuns doperigo. O desenvolvimento de uma sensação de comunidade, de pertencimento eencontrar companheiros é um dos temas principais desses romances. As sociedadesapresentadas são normalmente altamente igualitárias, livres de sexismo e homofobia.Culturas e indivíduos que trazem esses preconceitos são ignorantes que eventualmentepercebem seu erro ao longo de uma série de livros ou inimigos a serem derrotados. Anatureza é vista como uma força positiva, havendo uma preocupação em preservarambientes selvagens como florestas e pradarias e seus animais. A magia normalmentetambém é apresentada sob a forma de dons naturais, ao invés das escolas de magia daFantasia Heróica. A corrupção pela ganância por poder ou desejo de vingança também éum tema.

O que chama a atenção em Blue Rose, em relação, por exemplo, ao RPGDungeons&Dragons, o primeiro RPG criado e que estabeleceu a Fantasia Heróica paraesta forma narrativa, é a ênfase que o primeiro traz nos relacionamentos daspersonagens. Tanto o aspecto comunitário quanto o sentido mais corriqueiro do adjetivo“Romântico” da Fantasia recebem destaque.

Além da Introdução do livro estabelecer os parâmetros da Fantasia Romântica, aimportância do romance e da reputação das personagens é destacada mais à frente na

descrição da ambientação e no capítulo do Mestre do Jogo nas seções que tratam dasRecompensas, Considerações de Cenário e Interpretação Romântica. A título decomparação, no “Livro do Mestre” de Dungeons&Dragons (Dungeon Máster Guide),interesses românticos e reputação recebem um ou dois parágrafos cada, em Blue Roserecebem seis páginas. A narrativa visual acompanha a escrita, apresentando inclusiveuma audaciosa ilustração na seção Interpretação Romântica em que vemos três casais:um casal gay, um casal heterossexual e um casal de lésbicas. Para um meio tão agarradoaos seus clichês como é o do RPG estadunidense, foi um risco calculado.

Ilustração por Eliane Bettocchi. © Green Ronin Publishing

Do ponto de vista barthesiano a inclusão da variação romântica pode ser umaestratégia válida para se desviar da Doxa trazendo o novo. O discurso apaixonado eromântico ainda se encontra um tanto menosprezado, abandonado pelo poder em algunsmeios. Foi por esse motivo que Barthes o recuperou em “Fragmentos do DiscursoAmoroso” ao observar a solidão do discurso amoroso:

Vejo então a possibilidade de trazer uma inovação para o meio do RPG através deuma subversão em sua ambientação mais tradicional e poderosa, a Fantasia Heróica.Através da substituição de um exaltado adjetivo, por outro que causa estranheza,deslocam-se muitos substantivos.

“Tal discurso talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não ésustentado por ninguém; é completamente ignorado, é completamente relegado pelas linguagensexistentes, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também deseus mecanismos (ciência, saberes, artes).” (Barthes, 2003 [1977]: XV)

Com certeza podem-se fazer várias críticas à minha proposta. Antevejo pelomenos duas: o discurso amoroso já não se encontra tão desprezado como na época emque Barthes escreveu o texto acima, haja visto a força atual das comédias românticas nocinema comercial (mainstream) estadunidense. Além disso, apesar da tradiçãohomofóbica anglo-saxã dos EUA, pode-se ver uma tentativa de cooptar oshomossexuais através de filmes e seriados de TV em que gays e lésbicas assumidosvivem felizes valores do american way of life. Dir-se-ia que após a criação do “negrorepublicano”, como o juiz Clarence Thomas e a secretária de estado Condolezza Rice,está para surgir o “homossexual republicano”.

Observo que o discurso amoroso tem pouca presença na linguagem de RPG norte-americana cujos estereótipos imagéticos tendem a enfatizar mais uma erotização dofeminino, merecendo pouco destaque no texto escrito. O discurso homossexual é aindamenos presente. Assim, em relação ao mainstream desse meio marcado pelo amor aseus clichês, como destaca Robin Law, ambos os discursos trazem um deslizar pelaforma, uma nova forma de ver e jogar RPG.

Mas, mesmo dentro do meio de RPG esses discursos não acabarão sendoapreendidos pela Doxa como parecem estar sendo apreendidos em outras formasnarrativas? Provavelmente. A Doxa tende a apreender e domar as inovações que aquestionam, discursos que antes moviam pela estranheza tendem a assumir a arroganteasserção que solidifica e por fim cristaliza. Barthes se deslocava continuamente,“mitólogo”, “estruturalista”, “novo crítico”, “semiólogo”, justamente para evitar serapreendido pela Doxa. Pode chegar o tempo que ambientações como a de Blue Rosetornem-se comuns e novas inovações se façam necessárias.

Mas, a recepção do jogo parece indicar que essa hora ainda não chegou. SteveKenson, game designer responsável pelo desenvolvimento de Blue Rose, declarou ementrevista durante a GenCon9 de 2006 que a equipe que criou este RPG tinha umaproposta consciente de inovação trazendo o pouco usual tema romântico para oambiente dos RPGs de Fantasia, mas de forma que os RPGistas pudessem entender e seidentificar com a ambientação proposta. Até agora, a maioria dos jogadores e mestres seinteressou mais pelas novidades apresentadas no sistema de regras de Blue Rose diantedo padrão sistema D20 da indústria de RPG. Contudo, um pequeno, mas razoável grupotambém se interessou pela novidade da ambientação, justificando a publicação de doissuplementos. Resta agora aguardar para ver qual será o desenvolvimento desta novalinha de RPGs. A Fantasia Romântica se estabelecerá como alternativa, emergirá para omainstream, será ignorada ou, talvez a pior opção, corrompida e devorada pela FantasiaHeróica?

Bibliografia

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9 GenCon Indy: maior convenção de hobby games que ocorre anualmente em Indianápolis, EUA.

Tem como carro-chefe os RPGs. Seu público anual varai em torno de 35.000 pessoas.

________________. Fragmentos do Discurso Amoroso. Tradução: Márcia ValériaMartinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [1977]CRAWFORD, Jeremy; ELLIOT, Dawn; KENSON, Steve; SNEAD, John. Blue Rose:the Role Playing Game of Romantic Fantasy. EUA: Green Ronin Publishing, 2005.LAW, Robin. Robin's Laws of good game mastering. EUA: Steve Jackson Games,2002PAVÃO, Andréa. A Leitura na Escola: Problemas e Soluções. In Anais do I SimpósioRPG & Educação. São Paulo: Devir, 2004. [2002]PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes, o Saber com Sabor. São Paulo: EditoraBrasiliense, 1983.RODRIGUES, Sônia. Roleplaying Game e a pedagogia da imaginação no Brasil:primeira tese de doutorado no Brasil sobre o roleplaying game. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2004.SODRÉ, Muniz. Best-Seller: a Literatura de Mercado. Série Princípios. São Paulo,Editora Ática: 1988.TAVARES, Bráulio. O Herói e as Sombras do Mundo. In CAUSO, Roberto de Sousa.A Sombra dos Homens: a Saga de Tajarê: Livro I. São Paulo: Devir, 2005. (pg. 13-18)