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  • 1. FALA SILO Recompilao de opinies, comentrios e conferncias 1969 - 1995 Agradecimentos, A publicao desta primeira edio em portugus de Fala Silo foi possvel graas ao trabalho de muitas pessoas, que durante muitos meses, contriburam com seu talento traduzindo do idioma Espanhol original e revisando os diferentes textos. Entre os muitos que colaboraram para este trabalho, gostaramos de mencionar particularmente os esforos de Valdir Silveira, Andrea Medina, Rodolfo LoBianco, Tami Bresciani, Darym Dayan Zarate Aldana, Peter de S Ferreira, Tatiana Mariano, Monica Braga, Inara Cunha, Vanessa Marinho, Marcio Gonalves, Maximiliano Garca, Gilda Regalino, Lilian Severo e Mariana Ferreira, que fizeram que esta compilao de opinies, comentrios e conferncias de Silo esteja disponvel pela primeira vez integralmente em portugus. Os editores AO LEITOR Este livro d conta do exposto oralmente por Silo ao longo de quase trs dcadas. Permitimos-nos incluir algumas notas esclarecedoras. Uma destas aparece na primeira exposio de 4 de maio de 1969. Com ela pretendemos informar sobre as circunstncias que rodearam este ato pblico no qual Silo assentou as bases de seu pensamento. A Segunda se encontrar encabeando a exposio de 27 de setembro de 1981. A terceira corresponde ao explicado por quem o precedera no uso da palavra em 6 de junho de 1986. O recurso das notas antepostas, e no ao p da pgina ou ao

2. final do livro, responde idia de apresentar ao leitor um contexto que, de outro modo, poderia ser omitido. Exclumos todo o dito por Silo ante aos meios de difuso. Uma recompilao abundante desse tipo de material exige um tratamento diferente ao usado no presente trabalho. As explicaes que agora apresentamos so transcries de notas e gravaes de udio e vdeo. Os recompiladores OPINIES, COMENTRIOS E PARTICIPAO EM ATOS PBLICOS A CURA DO SOFRIMENTO Punta de Vacas. Mendoza, Argentina. 4 de Maio de 1969 Notas: 1 - A ditadura militar argentina tinha proibido a realizao de todo e qualquer ato pblico nas cidades. Por conseguinte, escolheu-se uma paragem desolada, conhecida como Punta de Vacas, nos limites do Chile e da Argentina. Desde muito cedo as autoridades controlaram as rotas de acesso. Distinguiam-se ninhos de metralhadoras, veculos militares e homens armados. Para aceder ao local era necessrio exibir documentao e dados pessoais, o que criou alguns conflitos com a Imprensa internacional. Num magnfico cenrio de montes nevados, Silo comeou a sua alocuo perante um auditrio de duzentas pessoas. O dia era frio e ensolarado. Por volta das 12h. tudo tinha acabado. 2 - Esta a primeira interveno pblica de Silo. Com uma envolvente mais ou menos potica, explica-se que o conhecimento mais importante para a vida (a real sabedoria) no coincide com o conhecimento de livros, de leis universais, etc., mas sim que uma questo de experincia pessoal, ntima. O conhecimento mais importante para a vida est referido compreenso do sofrimento e sua superao. Em seguida, expe-se uma tese muito simples, em vrias partes: 1. Comea-se por distinguir entre a dor fsica e os seus derivados, sustentando que podem retroceder graas ao avano da cincia e da justia, diferena do sofrimento mental que no pode ser eliminado por elas; 2. Sofre-se por trs vias: a da percepo, a da recordao e a da imaginao; 3. O sofrimento denuncia um estado de violncia; 4. A violncia tem como raiz o desejo; 5. O desejo tem diferentes graus e formas. Atendendo a isto (pela meditao interna), pode-se progredir. Assim: 6. O desejo (quanto mais grosseiros so os desejos) motiva a violncia, que no fica no interior das pessoas, antes contamina o meio de relao; 7. Observam-se diferentes formas de violncia e no somente a primria, que a violncia fsica; 8. necessrio contar com uma 3. conduta simples que oriente a vida (cumpre com mandamentos simples): aprender a levar a paz, a alegria e sobretudo a esperana. Concluso: a cincia e a justia so necessrias para vencer a dor na espcie humana. A superao dos desejos primitivos imprescindvel para vencer o sofrimento mental. Se vieste escutar um homem de quem se supe que transmite a sabedoria, enganaste-te no caminho, porque a real sabedoria no se transmite por meio de livros nem de discursos; a real sabedoria est no fundo da tua conscincia como o amor verdadeiro est no fundo do teu corao. Se vieste empurrado pelos caluniadores e os hipcritas para escutar este homem, a fim de que o que escutas te sirva depois como argumento contra ele, enganaste-te no caminho, porque este homem no est aqui para te pedir nada, nem para te usar, porque no precisa de ti. Escutas um homem desconhecedor das leis que regem o Universo, desconhecedor das leis da Histria, ignorante das relaes que regem os povos. Este homem dirige-se tua conscincia a muita distncia das cidades e das suas ambies enfermas. L nas cidades, onde cada dia um af truncado pela morte, onde ao amor sucede o dio, onde ao perdo sucede a vingana; l nas cidades dos homens ricos e pobres; l nos imensos campos dos homens, pousou um manto de sofrimento e de tristeza. Sofres quando a dor morde o teu corpo. Sofres quando a fome se apodera do teu corpo. Mas no sofres s pela dor imediata do teu corpo, pela fome do teu corpo. Sofres tambm pelas consequncias das enfermidades do teu corpo. Deves distinguir dois tipos de sofrimento. H um sofrimento que se produz em ti merc da doena (e esse sofrimento pode retroceder graas ao avano da cincia, assim como a fome pode retroceder, mas graas ao imprio da justia). H outro tipo de sofrimento que no depende da doena do teu corpo, mas que deriva dela: se ests impedido, se no podes ver, ou se no ouves, sofres; mas ainda que este sofrimento derive do corpo, ou das doenas do teu corpo, tal sofrimento da tua mente. H um tipo de sofrimento que no pode retroceder frente ao avano da cincia nem frente ao avano da justia. Esse tipo de sofrimento, que estritamente da tua mente, retrocede frente f, frente alegria de viver, frente ao amor. Deves saber que este sofrimento est sempre baseado na violncia que h na tua prpria conscincia. Sofres porque temes perder o que tens, ou pelo que j perdeste, ou pelo que desesperas alcanar. Sofres porque no tens, ou porque sentes temor em geral... Eis os grandes inimigos do homem: o temor doena, o temor pobreza, o temor morte, o temor solido. Todos estes so sofrimentos prprios da tua mente; todos eles denunciam a violncia interna, a violncia que h na tua mente. Repara que essa violncia deriva sempre do desejo. Quanto mais violento um homem, mais grosseiros so os seus desejos. Gostaria de te propr uma histria que aconteceu h muito tempo. Existiu um viajante que teve que fazer uma longa travessia. Ento, atou o seu animal a uma carroa e empreendeu uma longa marcha rumo a um longnquo destino e com um limite fixo de tempo. Ao animal chamou-lhe Necessidade, carroa Desejo, a uma roda chamou-lhe Prazer e outra Dor. Assim ento, o viajante levava a sua carroa para a direita e para a esquerda, mas sempre rumo ao seu destino. Quanto mais velozmente andava a carroa, mais rapidamente se moviam as rodas do Prazer e da Dor, ligadas como estavam pelo mesmo eixo e transportando como estavam a carroa do Desejo. Como a viagem era muito longa, o nosso viajante aborrecia-se. Decidiu ento decor-la, ornament-la com muitas belezas, e assim foi fazendo. Porm, quanto mais embelezou a carroa do Desejo mais pesado se tornou para a Necessidade. De tal maneira que nas curvas e nas encostas empinadas, o pobre animal desfalecia, no podendo arrastar a carroa do Desejo. Nos caminhos arenosos as rodas do Prazer e do Sofrimento enterravam-se no solo. Assim, desesperou 4. um dia o viajante porque era muito longo o caminho e estava muito longe do seu destino. Decidiu meditar sobre o problema nessa noite e, ao faz-lo, escutou o relincho do seu velho amigo. Compreendendo a mensagem, na manh seguinte desbaratou a ornamentao da carroa, aliviou-a dos seus pesos e muito cedo levou o seu animal a trote, avanando rumo ao seu destino. No entanto, tinha perdido um tempo que j era irrecupervel. Na noite seguinte, voltou a meditar e compreendeu, por um novo aviso do seu amigo, que tinha agora de acometer uma tarefa duplamente difcil porque significava o seu desprendimento. Muito de madrugada, sacrificou a carroa do Desejo. certo que ao faz-lo perdeu a roda do Prazer, mas com ela tambm a roda do Sofrimento. Montou o animal da Necessidade e, em cima do seu lombo, meteu-se a galope pelas verdes pradarias at chegar ao seu destino. Repara como o desejo te pode encurralar. H desejos de diferente qualidade. H desejos mais grosseiros e h desejos mais elevados. Eleva o desejo, supera o desejo, purifica o desejo, que havers certamente de sacrificar com isso a roda do prazer, mas tambm a roda do sofrimento. A violncia no homem, movida pelos desejos, no fica s como doena na sua conscincia, antes atua no mundo dos outros homens, exercitando-se com o resto das pessoas. No creias que falo de violncia referindo-me apenas ao fato armado da guerra, em que uns homens destroam outros homens. Essa uma forma de violncia fsica. H uma violncia econmica: a violncia econmica aquela que te faz explorar outro; a violncia econmica d-se quando roubas outro, quando j no s irmo do outro, mas sim ave de rapina para o teu irmo. H, alm disso, uma violncia racial: achas que no exercitas a violncia quando persegues outro que de uma raa diferente da tua, achas que no exerces violncia quando o difamas por ser de uma raa diferente da tua? H uma violncia religiosa: achas que no exercitas a violncia quando no ds trabalho, ou fechas as portas, ou despedes algum, por no ser da tua mesma religio? Achas que no violncia cercar aquele que no comunga os teus princpios por meio da difamao; cerc-lo na sua famlia, cerc-lo entre a sua gente querida, porque no comunga a tua religio? H outras formas de violncia que so as impostas pela moral filistia. Tu queres impor a tua forma de vida a outro, tu deves impor a tua vocao a outro... mas quem te disse que s um exemplo que se deve seguir? Quem te disse que podes impor uma forma de vida porque a ti te apraz? Onde est o molde e onde est o tipo para que tu o imponhas?... Eis outra forma de violncia. S podes acabar com a violncia em ti e nos outros e no mundo que te rodeia pela f interior e pela meditao interior. No h falsas portas para acabar com a violncia. Este mundo est prestes a explodir e no h forma de acabar com a violncia! No procures falsas portas! No h poltica que possa solucionar este af de violncia enlouquecido. No h partido nem movimento no planeta que possa acabar com a violncia no mundo... Dizem-me que os jovens em diferente latitudes esto a procurar falsas portas para sair da violncia e do sofrimento interior. Procuram a droga como soluo. No procures falsas portas para acabar com a violncia. Irmo meu: cumpre com mandamentos simples, como so simples estas pedras e esta neve e este sol que nos bendiz. Leva a paz em ti e leva-a aos outros. Irmo meu: alm, na Histria, est o ser humano mostrando o rosto do sofrimento, olha esse rosto do sofrimento... mas recorda que necessrio seguir adiante e que necessrio aprender a rir e que necessrio aprender a amar. A ti, irmo meu, lano esta esperana, esta esperana de alegria, esta esperana de amor, para que eleves o teu corao e eleves o teu esprito, e para que no te esqueas de elevar o teu corpo. AAO VLIDA Las Palmas de Gran Canaria. Espanha. 29 de Setembro de 1978 5. Conversa diante de um grupo de estudos. Qual a ao vlida? A esta pergunta se respondeu, ou se tratou de responder, de distintos modos e quase sempre levando em conta a bondade ou a maldade da ao. Tratou-se de responder ao vlido da ao. Quer dizer, deram-se respostas ao que desde antigamente tem sido conhecido como o tico ou o moral. Durante muitos anos nos preocupamos em consultar a respeito do que era o moral, do que era o imoral, o bom e o mau. Mas, basicamente, nos interessou saber o que era o vlido na ao. Foram nos respondendo de distintos modos. Houve respostas religiosas, houve respostas jurdicas, houve respostas ideolgicas. Em todas essas respostas nos diziam que as pessoas deviam fazer as coisas de um modo e tambm evitar fazer as coisas de outro modo. Para ns era muito importante obter uma clara resposta sobre este ponto. Era de muita importncia em relao atividade humana que, segundo tenha uma direo ou tenha outra, desenvolve tambm uma forma de vida distinta. Tudo se acomoda na vida humana segundo a direo. Se minha direo a futuro de um tipo, meu presente se acomoda tambm a ele. De modo que estas perguntas em torno ao vlido, ao invlido, ao bom, ao mau, afetam no s o futuro do ser humano, mas tambm seu presente. Afetam no s o indivduo, afetam os conjuntos humanos, afetam os povos. Diferentes posturas religiosas davam sua soluo. Assim, para os crentes de determinadas religies, havia que cumprir com certas leis, com certos preceitos inspirados por Deus. Isso era vlido para os crentes dessas religies. E mais: distintas religies davam distintos preceitos. Algumas indicavam que no se deviam realizar determinadas aes para evitar certo retorno dos acontecimentos; outras religies o indicavam para evitar um inferno. s vezes no coincidiam tampouco estas religies que a princpio eram universais; no coincidiam em seus preceitos e em seus mandatos. Porm, o mais preocupante de tudo isto, consistia em que ocorria em reas do mundo onde muitssimos desses habitantes no podiam cumprir, ainda querendo de muito boa f, no podiam cumprir com esses preceitos porque no os sentiam. De maneira que os no crentes (que tambm para as religies so filhos de Deus), no podiam cumprir esses mandatos, como se tivessem sido abandonados pela mo de Deus. Uma religio, se universal, deve s-lo no porque ocupe geograficamente o mundo. Basicamente, deve ser universal porque ocupe o corao do ser humano, independentemente de sua condio, independentemente de sua latitude. Assim, as religies, em sua resposta tica, nos apresentavam certas dificuldades. Consultamos ento outros formadores de conduta: os sistemas jurdicos. Estes so formadores, so moldadores de conduta. Os sistemas jurdicos estabelecem de algum modo aquilo que se deve fazer ou se deve evitar no comportamento de relao, no comportamento social. Existem cdigos de todo o tipo para regulamentar as relaes. H at cdigos penais, que prevem a punio para determinados delitos, ou seja, para comportamentos considerados no sociais, ou associais, ou antisociais. Os sistemas jurdicos tambm trataram de dar sua resposta conduta humana, no que se refere ao bom ou mau comportamento. E assim como as religies deram sua resposta, e est bem para seus crentes, tambm os sistemas jurdicos deram sua resposta, e est bem para um momento histrico dado, est bem para um tipo de organizao social, mas nada dizem ao indivduo que deve cumprir com uma determinada conduta. Porque as pessoas razoveis sem dvida advertem que interessante que exista uma regulamentao da conduta social a fim de evitar um caos total. Mas esta uma tcnica de organizao social, no uma justificativa da moral. E por certo que segundo seu desenvolvimento e segundo sua concepo, as distintas comunidades humanas tm normas de conduta juridicamente regulamentadas, que s vezes se opem. Os sistemas jurdicos no tm valides universal. Servem para um momento, para um tipo de estrutura, mas no servem para todos os seres humanos, nem servem para todos os momentos e todas as latitudes; e, o mais importante de tudo, nada dizem ao indivduo sobre o bom e do mau. Tambm consultamos as ideologias. As ideologias so mais amigas dos desenvolvimentos e bastante mais vistosas em suas explicaes que os chatos sistemas legais, ou talvez os preceitos e as 6. leis trazidas das alturas. Algumas doutrinas explicavam que o ser humano uma espcie de animal de rapina, um ser que se desenvolve a custa de tudo e que deve abrir caminho apesar de tudo, apesar inclusive dos outros seres humanos. Uma espcie de vontade de poderio a que est por trs dessa moral. De algum modo essa moral, que pode parecer romntica, todavia s valoriza o xito, e nada diz ao indivduo em relao ao fato de que as coisas lhe saiam mal em suas pretenses de vontade de poderio. H outro tipo de ideologia que nos diz: porque tudo na natureza est em evoluo e o prprio ser humano produto desta evoluo, e o ser humano o reflexo das condies que se do em um momento dado, seu comportamento vai mostrar o tipo de sociedade em que vive. Assim, uma classe vai ter um tipo de moral e outra vai ter outro tipo de moral. Desta maneira, a moral est determinada pelas condies objetivas, pelas relaes sociais e pelo modo de produo. No h que preocupar-se muito pelo que algum faz o que mecanicamente est impulsionado a fazer, ainda que, por razes publicitrias, se fale da moral de uma classe e da moral de outra. Limitando-nos ao desenvolvimento mecnico, eu fao o que fao porque estou impulsionado em tal sentido. Onde est o bom e onde est o mau?... H somente um choque mecnico de partculas em marcha. Outras singulares ideologias nos diziam coisas como estas: a moral uma presso social que serve para conter a fora dos impulsos e esta conteno que efetua uma espcie de super- conscincia, esta compreenso que faz no caldeiro da conscincia permite que aqueles impulsos bsicos se vo sublimando, vo tomando certa direo... De modo que nosso pobre amigo, que v passar uns e outros com suas ideologias, senta-se rpido na calada e diz: o que que eu devo fazer, porque aqui me pressiona um conjunto social, eu tenho impulsos e parece que estes se podem aperfeioar, sempre quando for engenhoso. De outro modo, ou me coloco no sof do psicanalista ou terminarei neurtico. Assim, a moral, em realidade, uma forma de controle destas presses que, todavia, s vezes transbordam do caldeiro. Outras ideologias, tambm psicolgicas, explicaram o bom e o mau segundo a adaptao. Uma moral de conduta adaptativa, algo que permite encaixar em um conjunto e, na medida em que algum se desencaixa desse conjunto, tem problemas. Assim que mais vale andar direitinho e encaixar-se bem no conjunto. A moral nos diz o que o bom e o que o mau de acordo com a adaptao que deve estabelecer o indivduo, de acordo com o encaixe que o indivduo tenha em seu meio. E est bem... outra ideologia. Mas nas pocas das grandes fadigas culturais, como ocorreu j repetidamente em outras civilizaes, surgem as respostas curtas, imediatas, a respeito do que se deve fazer e do que no se deve fazer. Estou me referindo s chamadas escolas morais de decadncia. Em distintas culturas (j em seu fim), surgem espcies de moralistas que muito rapidamente tratam de acomodar seus comportamentos como melhor podem, a fim de dar uma direo a sua vida. Esto alguns que dizem mais ou menos isto: A vida no tem nenhum sentido, e como no tem nenhum sentido, posso fazer o que quiser... se posso. Outros dizem: Como a vida no tem muito sentido, devo fazer aquelas coisas que me satisfazem, que me fazem sentir bem, s custas de todos os outros. Finalmente, alguns afirmam: J que estou em uma m situao e at a prpria vida sofrimento, devo fazer as coisas guardando certas formas, certo desinteresse, certa impassibilidade. Devo fazer as coisas como um estico. Assim se chama esta ltima escola da decadncia: as escola esticas. Por trs destas escolas, ainda que sejam respostas de emergncia, h tambm ideologia. Esta, parece, a ideologia bsica de que tudo perdeu sentido e se responde de urgncia a essa perda de sentido. Atualmente, por exemplo, pretende-se justificar a ao com uma teoria do absurdo, onde aparece de contrabando o compromisso. Ocorre que estou comprometido com algo e portanto devo cumprir. Trata-se de uma espcie de coao bancria. difcil compreender que se possa estabelecer um compromisso se o mundo em que vivo absurdo e termina no nada. Por outro lado, isto no outorga nenhuma convico a quem declama tal postura. 7. Assim, as religies, os sistemas jurdicos, os sistemas ideolgicos, as escolas morais da decadncia, trabalharam para dar resposta a este srio problema da conduta, para estabelecer uma moral, para estabelecer uma tica, porque todos eles alertaram para a importncia que tem a justficativa ou no justificativa de um ato. Qual a base da ao vlida? A base da ao vlida no est dada pelas ideologias, nem pelos mandamentos religiosos, nem pelas crenas, nem pela regulamentao social. Ainda que todas estas coisas sejam de muita importncia, a base da ao vlida no est dada por nenhuma delas, seno que est dada pelo registro interno da ao. H uma diferena fundamental entre a valorizao que parece provir do exterior e esta valorizao que se faz da ao pelo registro que o ser humano tem do que precisamente faz. E qual o registro da ao vlida? O registro da ao vlida aquele que se experimenta como unitivo; aquele que d ao mesmo tempo sensao de crescimento interno e , por ltimo, aquele que se deseja repetir porque tem sabor de continuidade no tempo. Examinaremos estes aspectos de modo separado. O registro de unidade interna por um lado e a continuidade no tempo por outro lado. Frente a uma situao difcil, posso eu responder de um modo ou de outro. Se sou provocado, por exemplo, posso responder violentamente e frente a essa irritao que me produz o estmulo externo e esta tenso que me provoca, posso distender-me, posso reagir violentamente e ao faz-lo experimentar uma sensao de alvio. Distendo-me. Assim pois, aparentemente, cumpriu-se a primeira condio da ao vlida: frente a um estmulo irritante, tiro-o da frente, e ao faz-lo distendo-me, e ao distender-me tenho um registro unitivo. A ao vlida no pode justificar-se simplesmente pela distenso nesse instante, porque no se continua no tempo, mas produz o contrrio. No momento A produzo a distenso ao reagir do modo comentado; no momento B no estou nada de acordo com o que fiz. Isto me produz contradio. Essa distenso no unitiva enquanto o momento posterior contradisser o primeiro. necessrio que cumpra, alm disso, com o requisito da unidade no tempo, sem apresentar fissuras, sem apresentar contradio. Poderamos apresentar numerosos exemplos onde isto da ao vlida para um instante e no para o seguinte e o sujeito no pode, cabalmente, tratar de prolongar esse tipo de atitude, porque no registra unidade, mas contradio. Porm, h outro ponto: o do registro de uma espcie de sensao de crescimento interno. H numerosas aes que todos efetuamos durante o dia, determinadas tenses que aliviamos distendendo. Estas no so aes que tenham a ver com a moral. Ns as realizamos e nos distendemos e nos provoca um certo prazer, mas a ficam. E se novamente surgisse uma tenso, novamente a descarregaramos como essa espcie de efeito condensador, onde sobe uma carga e, ao chegar a certos limites, se descarrega. E assim, com este efeito condensador de carregar e descarregar, nos d a impresso de que estivramos metidos em uma eterna roda de repetio de atos, onde no momento em que se produz esta descarga de tenso, a sensao resulta prazerosa, mas nos deixa um estranho sabor de perceber que se a vida fosse simplesmente isso, uma roda de repeties, de prazeres e dores; esta no passaria do absurdo. E hoje, diante desta tenso, provoco esta descarga. E amanh do mesmo modo... sucedendo-se a roda das aes, como o dia e a noite, continuamente, independentemente de toda inteno humana, independente de toda escolha humana. H aes, todavia, que talvez muito poucas vezes realizamos em nossas vidas. So aes que nos do grande unidade no momento. So aes que nos do, alm disso, o registro de que algo melhorou em ns quando fizemos isso. E so aes que nos do uma proposta a futuro, no sentido de que se pudssemos repeti-las algo iria melhorando. So aes que nos do unidade, sensao de crescimento interno, e continuidade no tempo. Esses so os registros da ao vlida. 8. Ns nunca dissemos que isto seja melhor ou pior, ou que se deva obrigatoriamente fazer: damos as propostas e os sistemas de registros que correspondem a essas propostas. Falamos das aes que criam unidade ou criam contradio. E, por ltimo, falamos do aperfeioamento da ao vlida, pela repetio desses atos. Como que para fechar um sistema de registros de aes vlidas, dissemos: Se repetes teus atos de unidade interna, nada poder deter-te. Este ltimo fala no s do registro de unidade, da sensao de crescimento, da continuidade no tempo. Isso fala do melhoramento da ao vlida. Porque, claro, nem todas as coisas nos saem bem nas tentativas. Muitas vezes tratamos de fazer coisas interessantes e no saem to bem. Nos damos conta que essas coisas podem melhorar. Tambm a ao vlida pode aperfeioar-se. A repetio daqueles atos que do unidade e crescimento e continuidade no tempo, constituem o melhoramento da prpria ao vlida. Isto possvel. Ns, em princpios muito gerais, demos os registros da ao vlida. H um princpio maior, conhecido como A Regra de Ouro. Este princpio diz assim: trata os outros como gostaria de ser tratado. Este princpio no coisa nova, tem milnios. Suportou o passo do tempo em distintas regies, em distintas culturas. um princpio universalmente vlido. Tem se formulado de distintas maneiras; foi considerado por seu aspecto negativo, dizendo algo assim como: No faas a outros o que no queres que faam a ti. outro enfoque da mesma idia. Ou ento se disse: Ama a teu prximo como a ti mesmo. outro enfoque. Claro, no exatamente o mesmo que dizer trata os outros como gostaria de ser tratado. E est bem, e h muito tempo se fala deste princpio. o maior dos princpios morais. o maior dos princpios da ao vlida. Mas, como quero que tratem a mim? Porque se d por certo que ser bom tratar os demais como eu gostaria que tratassem a mim mesmo. E como quero que me tratem? Terei que responder a isso dizendo que se me tratam de um modo me fazem mal e, se me tratam de outro, me fazem bem. Terei que responder a respeito do bom e do mau. Terei que voltar eterna roda de definir a ao vlida, segundo uma ou outra teoria, segundo uma ou outra religio. Para mim ser uma boa coisa, para outra pessoa no ser o mesmo. E no faltar algum que tratar muito mal a outro, aplicando o mesmo princpio; porque ocorre que gostaria que o tratassem mal. Est muito bem este Princpio que fala assim do tratamento do outro, segundo o bom para mim, mas ser melhor saber o que bom para mim. Desse modo, nos interessa ir base da ao vlida, e a base da ao vlida est no registro que se obtm dela. Se digo: devo tratar os outros como gostaria de ser tratado, imediatamente me pergunto: por que?. Haver algum processo em mim mesmo, haver alguma forma no funcionamento da mente que cria problemas em mim quando trato mal os outros. E como pode ser esse funcionamento? Se eu vejo algum numa condio muito ruim, ou vejo algum que levou um corte, ou uma ferido, algo ressoa em mim. Como pode ressoar em mim algo que est ocorrendo a outro? quase mgico! Ocorre que algum sofre um acidente e experimento quase fisicamente o registro do acidente no outro. Vocs so estudiosos desses fenmenos, sabem bem que a toda percepo corresponde uma imagem, e compreendem que algumas imagens podem tensionar certos pontos, enquanto outras podem distend-los. Se a toda percepo vai correspondendo uma representao e dessa representao se tem, por sua vez, registro, isto , uma nova sensao, ento no to difcil entender como, ao perceber um fenmeno, e ao corresponder-se a imagem interna com esse fenmeno (ao mobilizar esta imagem), tenha por sua vez sensao em distintas partes de meu corpo ou de meu intracorpo, que se modificaram por ao da imagem anterior. Sinto-me identificado quando algum sofre um corte, porque percepo visual de tal fenmeno corresponde um disparo de imagem visual, e correlativamente um disparo de imagens cinestsicas e tteis das quais, alm disso, tenho uma nova sensao que termina provocando em mim o registro do corte do outro. No ser bom que trate eu aos demais de maneira m, porque ao efetuar este tipo de atividade tenho o correspondente registro. Falaremos quase tecnicamente. Para isso vamos simular o funcionamento de circuitos por passos, ainda quando saibamos que a estrutura da conscincia procede como uma totalidade. Bem, uma 9. coisa o primeiro circuito que corresponde percepo, representao, nova tomada da representao e sensao interna. E outra o segundo circuito, que tem a ver com a ao, e que significa algo assim: de toda ao que lano ao mundo, tenho tambm registro interno. Essa tomada de realimentao , por exemplo, a que me permite aprender fazendo coisas. Se no houvesse em mim uma tomada de realimentao dos movimentos que estou fazendo, jamais poderia aperfeio- los. Eu aprendo a escrever mquina por repetio, isto , vou gravando atos entre acerto e erro. Posso gravar atos unicamente se os realizo. De tal modo que a partir do fazer que tenho registro. Permitam-me uma divagao. H um preconceito grande que s vezes tem invadido o campo da pedagogia. Segundo esta crena, aprende-se por pensar em vez de fazer. Certamente, aprende-se porque se tem a recepo de dados, mas tais dados no ficam simplesmente memorizados, mas que sempre correspondem a uma imagem que, por sua vez, mobiliza uma nova atividade: compara, rechaa, etc., e isto mostra a contnua atividade da conscincia e no uma suposta passividade na qual se alojam simplesmente os dados. Esta realimentao a que nos permite dizer: me equivoquei de tecla. Assim vou registrando a sensao do acerto e do erro; assim vou aperfeioando o registro do acerto, assim se vai fluidificando, e assim se vai automatizando a correta ao do escrever mquina. Estamos falando de um segundo circuito. O primeiro se referia dor no outro que eu registro em mim; o segundo circuito fala do registro que tenho da ao que produzo. Vocs conhecem as diferenas que existem entre os atos chamados catrticos e os atos transferenciais. Os atos catrticos referem-se basicamente s descargas de tenses e a ficam. Os atos transferenciais, diversamente, permitem transladar cargas internas, integrar contedos e facilitar o bom funcionamento psquico. Sabemos que ali onde h ilhas de contedos mentais, contedos que no se comunicam entre si, h dificuldades para a conscincia. Se se pensa em uma direo, por exemplo, mas se sente em outra e, finalmente se atua em outra diferente, compreendemos que isto no encaixa e que o registro no pleno. Parece que unicamente quando temos pontes entre os contedos internos, o funcionamento psquico se integra e permite avanar uns passos mais. Conhecem-se tcnicas transferenciais muito teis que mobilizam e transformam determinadas imagens problemticas. Um exemplo desta tcnica est apresentada em forma literria nas Experincias Guiadas. Mas tambm sabemos que ao, e no s o trabalho das imagens, pode operar fenmenos transferenciais e fenmenos autotransferenciais. No ser o mesmo um tipo de ao que outra. Haver aes que permitam integrar contedos internos e haver aes tremendamente desintegradoras. Determinadas aes produzem no ser humano tal carga de pesar, tal arrependimento e diviso interna, tal profundo desasossego, que esta pessoa jamais gostaria de voltar a repeti-las. E, desafortunadamente, ficaram tais aes ligadas ao passado. Ainda que no se repetissem tais aes no futuro, seguiriam pressionando desde o passado sem serem resolvidas, sem rendio, sem permitir que a conscincia translade, transfira, integre seus contedos e permita ao sujeito essa sensao de crescimento interno da qual falamos anteriormente. No indiferente a ao que se realiza no mundo. H aes das quais se tm registro de unidade e aes que do registro de contradio, de desintegrao. Se se estuda isto cuidadosamente, luz do que se sabe em matria de fenmenos catrticos e transferenciais, este assunto (da ao no mundo, no que se refere integrao e desenvolvimento dos contedos), ficar muito mais claro. Mas, desde logo, toda esta simulao dos circuitos para compreender o significado da ao vlida um tema complicado. Entretanto, nosso amigo segue dizendo: E eu, que fao?. Ns registramos como unitivo e valioso levar a esse que est sentado na calada (sem referncia em sua vida), estas coisas que minimamente conhecemos, mas em palavras e em fatos simples. Se ningum faz isto por ele, ns o faremos (como tantas outras coisas que permitiro superar a dor e o sofrimento). Ao proceder assim, trabalharemos tambm para ns mesmos. 10. SOBRE O ENIGMA DA PERCEPO Las Palmas de Gran Canaria. Espanha. 1 de Outubro de 1978 Palestra informal ante um grupo de estudos. H 2.500 anos, em uma aula magistral de Psicologia Descritiva, Buda desenvolveu um dos problemas mais importantes referidos percepo, conscincia observadora da percepo, baseando-se em um mtodo de registros. Este tipo de Psicologia muito diferente da Psicologia oficial ocidental que trabalha mais com explicaes a respeito dos fenmenos. Tomem um tratado de Psicologia e vero como, dado um fenmeno, em seguida organizam uma quantidade de explicaes sobre o fenmeno, mas quanto ao fenmeno mesmo no do seu correto registro. Assim sendo, as correntes psicolgicas (a medida que se modificam com o passar do tempo suas concepes e seus dados, medida que se ampliam ou se reduzem seus conhecimentos), vo explicando os fenmenos psquicos de modo diferente. Assim, se tomamos um tratado de Psicologia de 100 anos, vamos encontrar uma quantidade de ingenuidades ali, que hoje no se pode admitir. Este tipo de Psicologia sem centro prprio, depende em grande parte do aporte de outras cincias. Uma explicao neurofisiolgica dos fenmenos de conscincia interessante e um avano. Em pouco tempo vamos nos encontrar com outra mais complexa. De todo modo, o conhecimento avana quanto explicao; mas quanto descrio do fenmeno em si, tais explicaes no tiram nem somam nada. Sem dvida, uma correta descrio feita h 2.500 anos, nos permite assistir apario do fenmeno mental, exatamente como se tivesse acontecido hoje. Do mesmo modo, uma correta descrio dada hoje, servir sem dvida para muito tempo mais adiante. Este tipo de Psicologia descritiva, no explicativa (salvo quando a explicao incompreensvel), se baseia em registros similares para todos aqueles que seguem a descrio. como se estas descries tornaram contemporneos a todos os homens, ainda que estivessem muito separados no tempo e, assim, os fazem tambm conterrneos ainda que estejam muito separados em latitude. Tal tipo de Psicologia , alm disso, um gesto de aproximao a todas as culturas (por diferentes que elas sejam), porque no enaltece as diferenas nem pretende impor o esquema prprio de uma cultura a todas as outras. Este tipo de Psicologia acerca dos seres humanos, no os diferencia. , portanto, um bom aporte compreenso. Chegando a nosso tema. Ao que parece, Buda estava reunido com um conjunto de especialistas e na forma de dilogo desenvolveu o que foi conhecido posteriormente como O enigma da Percepo. Prontamente, Buda levantou sua mo e perguntou a um de seus discpulos mais notveis: - Que vs, Ananda? Com seu estilo sbrio, Buda perguntava e respondia cada vez com preciso... Ananda era muito mais exuberante em seus desenvolvimentos. Por conseguinte, Ananda disse: -Oh!, Nobre Senhor,! Vejo a mo do Iluminado que est diante de mim e que se fecha. - Muito bem, Ananda. Onde vs a mo, e desde onde? - Oh!, Mestre, vejo a mo de meu nobre Senhor que se fecha e mostra o punho. Vejo-a, claro, fora de mim e desde mim - Muito bem, Ananda. Com que vs a mo? 11. - bviamente, Mestre, que vejo a mo exatamente com meus olhos. - Diga-me, Ananda, a percepo est nos seus olhos? - Com certeza, Venervel Mestre. - E diga-me, Ananda, que acontece quando fecha as plpebras? - Nobre Mestre, quando fecho as plpebras desaparece a percepo. - Isso, Ananda, impossvel. Por acaso, Ananda, quando se escurece este quarto e vai vendo cada vez menos, vai desaparecendo a percepo? - Exato, Mestre. - E por acaso, Ananda, quando esta habitao fica s escuras e, sem dvida, tu ests com os olhos abertos e no vs nada, desapareceu a percepo? - Oh!, Nobre Mestre, eu sou teu primo! Lembra que nos educamos juntos e que tu me querias bem quando pequeno, de maneira que no me confundas! - Ananda: se escurece o quarto no vejo os objetos mas meus olhos continuam funcionando. Assim, se h luz atrs de minhas plpebras, vejo passar essa luz, e se h total escurido fica isto s escuras: de modo que no desaparece a percepo pelo feito de fechar as plpebras. Diga-me, Ananda, se a percepo est no olho, e tu imaginas que v minha mo, de onde a v? - Ser, Senhor, que vejo tua mo imaginando-a tambm desde meu olho. - Que queres dizer, Ananda? Que a imaginao est no olho? Isso no possvel. Se a imaginao estivesse no olho, e tu imaginaras a mo dentro de tua cabea, teria que dar volta em teu olho para trs para ver a mo que est dentro de tua cabea. Tal coisa no possvel. De maneira que ters que reconhecer que a imaginao no est no olho. Onde est ento? - Ser - disse Ananda -, que tanto a viso como a imaginao no esto no olho mas esto atrs do olho. E ao estar atrs do olho, quando imagino posso ver atrs, e quando vejo, quando percebo, posso ver o que h diante do olho. - No segundo caso, Ananda, no verias os objetos, mas verias o olho... E assim seguindo com este tipo de dilogo. Com O Enigma da Percepo, vo se complicando os registros, vo se apresentando aparentes solues, mas tambm vo se dando cada vez objees, mais fortes at que finalmente Ananda, muito comovido, pede a Buda uma adequada explicao de como esta historia da viso, da imaginao, e da conscincia em geral. E se Buda muito restrito nas descries, em suas explicaes comea a dar enormes voltas, e assim, vai se encerrando este captulo contido no Surangama Sutra, um dos tratados mais interessantes destes estudiosos. Quando mostramos a mo, vemos a mo fora e desde dentro. Quer dizer que o objeto nos aparece num lugar diferente do ponto de observao do objeto. Se meu ponto de observao estivesse fora, no poderia ter noo do que vejo. Por conseguinte, o ponto de observao deve estar dentro e no fora e o objeto deve estar fora e no dentro. Mas se, ao contrrio, imagino a mo dentro da minha cabea, sucede que tanto a imagem como o ponto de observao esto dentro. No primeiro caso, na mo que vejo fora desde dentro, pareceria que o ponto de observao coincidiria aproximadamente com o olho. No segundo caso, quando a mo est dentro, o ponto de observao no coincide com o olho; j que se represento a mo dentro de minha cabea, posso v-la desde meu olho para dentro, desde a parte posterior da minha cabea para dentro. Posso tambm ver minha mo desde cima, desde baixo, e assim, desde muitos lugares. dizer, que tratando-se de uma representao e no de uma percepo, o ponto de observao varia. Portanto, o ponto de observao, no que a representao faz, no est fixo ao olho. 12. Se imagino agora minha mo que est no centro de minha cabea saindo para trs, sigo imaginando minha mo desde dentro de minha cabea, ainda que represente minha mo fora dela. Podia pensar-se que o ponto de observao em algum momento sai de minha cabea. Tal coisa no possvel. Se imagino a mim mesmo, por exemplo, me olhando desde minha frente, posso representar para mim a este que me olha, desde aqui, desde onde estou. Tambm posso chegar a imaginar meu aspecto como se fosse visto desde l, desde aquele que me olha. Sem dvida, ainda quando me coloque na imagem do que est a frente de mim, tenho o registro desde mim, desde onde estou. No posso dizer do mesmo modo, que quando me olho no espelho, me vejo dentro do espelho ou me sinto dentro do espelho. Eu estou aqui olhando-me ali, e no estou ali, olhando-me aqui. Algum poderia confundir-se e crer que por enfrentar a representao de si mesmo, ali est posto o ponto de observao; e nem neste caso, tal coisa possvel. Em determinados casos experimentais (cmara de silncio, por exemplo), ao diminuir certos registros perceptivos, se perde a noo do Eu. E ao perder-se a noo do Eu, ao no ter referncia do limite ttil se tem s vezes a impresso de que se est fora daqui, e inclusive que desde ali se v a s mesmo. Mas se cuidadosamente se toma o registro, vai observar que essa projeo ttil cenestsica, de todas maneiras no pe o registro fora de ningum sem que essa pessoa no tenha exata noo do ponto de registro pelo qual tenha perdido seus limites. Assim pois, vejo a mo fora de mim desde mim, ou bem, vejo a mo em mim e dentro de mim no caso de imagin-la. Aparentemente, se trata do mesmo espao. H um espao no qual se posicionam os objetos que observo, ao qual posso chamar espao de percepo. Mas tambm h um espao de onde se posicionam os objetos de representao, que no coincide com o espao de percepo. Os objetos que se posicionam nestes diferentes espaos, tm caractersticas diferentes. Se observo a mo vejo que est a uma determinada distncia de meu olho. Vejo que est mais perto que outros objetos, e mais longe talvez que outros. Vejo que a mo, a sua forma, corresponde uma cor. E ainda que imagine outras coisas em torno da minha mo, a percepo se impe. Agora imagino a minha mo. Minha mo pode estar diante ou atrs de um objeto. Imediatamente posso mudar de posicionamento. Minha mo pode fazer-se muito pequena ou pode cobrir praticamente o campo de minha representao. A forma de minha mo pode variar e pode mudar sua cor. Assim pois, o posicionamento do objeto mental no espao de representao se modifica dependendo de minhas operaes mentais, enquanto o posicionamento dos objetos no espao externo, se modifica tambm mas no dependendo de minhas operaes mentais. Por muito que eu pense que essa pilastra se desloca, enquanto representao tal coisa possvel, mas perceptualmente tem sua permanncia. H, pois, diferenas grandes entre o objeto representado e o objeto percebido. E h grandes diferenas tambm entre o espao de percepo e o de representao. Mas agora sucede que fecho as plpebras e represento minha mo. Est bem se represento minha mo dentro da minha cabea. Mas quando fecho as plpebras e lembro da minha mo que estava fora da minha cabea, de onde represento minha mo agora que me lembro dela? Represento-a dentro da minha cabea?. No, represento-a fora da minha cabea. E, como ao recordar os objetos que vejo, como ao record-los, posso recordr-los agora ali de onde estavam, quer dizer, posicionar- los em um espao externo? Porque recordar um objeto externo que se posicione dentro da minha cabea aceitvel; mas isto de recordar um objeto que no est dentro da minha cabea seno fora dela, sendo que minhas plpebras esto fechadas e no as vejo, que tipo de espao estou vendo? Ou bem os objetos que recordo esto dentro da minha cabea, e creio v-los fora, ou bem ao fechar as plpebras e recordar os objetos, minha mente vai para fora de meu espao interno e chega ao espao externo. Tal coisa no possvel. Distingo bem entre objetos internos e externos. Distingo bem entre o espao de percepo e o espao de representao; mas os registros se confundem quando represento os objetos no lugar onde esto, quer dizer: fora de minha representao interna. Como distingo entre um objeto que est representado no interior da minha cabea, de um objeto que est representado ou lembrado fora da minha cabea? Distingo-o porque tenho noo do limite da minha cabea. E o que que pe o limite? O limite est posto pela sensao ttil, e a sensao 13. ttil de minhas plpebras que me faz distinguir o objeto que est representado dentro, ou fora. Se assim, o objeto representado fora no necessariamente est fora, e sim posicionado na parte mais superficial de meu espao de representao, o que me d o registro traduzido a imagem visual, de que est fora. Mas a diferena de limite tctil e no visual. To poderosa a representao que inclusive modifica a percepo. Se vocs vem este telo atrs e imaginam-o muito perto de seus olhos, vo ver que ao olhar novamente o telo real, precisam de um tempo para que se acomode a viso. dizer: vocs imaginam que o telo est muito perto de seus olhos, e ao imagin-lo seu olho se acomoda ao telo imaginado e no ao real. Ou o contrrio, se vocs imaginam que vem atravs do telo um edificio que pudesse existir atrs, e logo olham o telo novamente, de novo o olho se acomoda; e se acomoda porque antes se desacomodou; e se desacomodou porque o olho ps a distncia de acordo com a imagem e no com a percepo. A imagem, a representao, acomoda inclusive a percepo. Se isto assim, os dados da percepo podem modificar-se seriamente de acordo com a representao que esteja atuando. Poderia, por exemplo, suceder que nosso sistema de representao acomodara ao mundo em geral de um modo no to exato a como ns cremos que . Sobretudo considerando que s vezes os fenmenos que se posicionam no espao de representao no coincidem com os fenmenos do espao de percepo. E sabendo que os fenmenos de representao modificam a percepo, a percepo pode estar alterada de acordo com o sistema de representao. E ao dizer alterada no falo de casos particulares de alterao, e sim da percepo em geral. Isto de enormes conseqncias porque se minha representao corresponde a um determinado sistema de crenas seguramente estarei modificando minha viso e minha perspectiva sobre o mundo externo da percepo. Posso orientar meu corpo at os objetos graas a percepo. Mas tambm posso orientar meu corpo at os objetos graas a representao. Se o objeto em lugar de estar representado fora, estivesse representado dentro da minha cabea, no poderia orientar minha atividade at o objeto. Quando estou em viglia e com os olhos abertos, meu ponto de observao coincide com o olho; e no s com o olho seno com todos os sentidos externos. Mas quando meu nvel de conscincia abaixa, meu ponto de observao vai para dentro. Isto assim porque medida que diminui o nvel de conscincia, diminui o alcance de percepo dos sentidos externos e aumenta o registro dos sentidos internos. Portanto, o ponto de vista (que no seno estrutura de dados de memria e de dados de percepo, ao diminuir os dados de percepo externos e aumentar os internos), se desloca para dentro. Este ponto de vista se desloca para dentro na queda dos nveis de conscincia, cumprindo com a funo de que a imagem do sonho no dispare sua carga e mova ao corpo at o mundo externo. Se todas as imagems que surgem em meus sonhos mobilizassem atividade no mundo, o sonho no serviria para muita coisa no que diz respeito recomposio das atividades. A menos que me encontre em uma situao sonamblica, ou de sonho alterado, de onde falo, me movo, me agito, por ltimo me levanto e me ponho a andar. Isto possvel porque o ponto de vista, em lugar de haver-se internalizado, se mantm avanando seguindo as representaes. Se por problemas com meus prprios contedos, meu ponto de vista expulso at a periferia, ou por estmulos externos meu ponto de vista chamado at a periferia (ainda que esteja em situao de sonho), minhas imagems tendem a estar posicionadas no ponto mais externo do espao de representao e, portanto, a disparar seus sinais at o mundo externo. Quando o sonho se faz profundo, o ponto de observao cai para dentro, as imagems se internalizam e a estrutura em geral do espao de representao se modifica. Deste modo, quando estou em viglia, vejo as coisas desde mim mas no me vejo a mim, enquanto que durante o sonho, imagino ver a mim mesmo. Em ocasies, tambm nos sonhos, muitas pessoas no se vem a si mesmas, mas vem um modo parecido a como percebem o mundo na vida diria. Isto assim porque seu ponto de vista est deslocado at os limites da representao. Seu sonho no tranquilo. Mas se o ponto de vista cai para dentro, me vejo a mim mesmo quando me represento em sonhos, desde fora. E no que minha imagem esteja fora da minha cabea. que meu ponto de observao correu para dentro e 14. observo na tela o filme da representao onde apareo eu mesmo. Mas no vou percebendo o mundo desde mim como na viglia, e sim que me vejo realizando determinadas operaes. Isto mesmo sucede com a memria antiga. Se vocs se recordam de vocs mesmos aos 2 anos de idade, ou aos 3, ou aos 4, no se recordan de vocs vendo os objetos desde vocs, mas se vem a vocs mesmos fazendo coisas ou entre determinados objetos. A memria antiga em relao a imagems, como a representao no nvel de sonho profundo, separa em profundidade o ponto de vista. Este ponto de vista no nada mais que o eu. O eu se move, o eu se posiciona em uma profundidade ou em outra do espao de representao, desde o eu se observa o mundo, desde o eu se observam as prprias representaes. O eu varivel, o eu adequa representaes e o eu modifica percepes segundo o exemplo que temos visto. Quando represento imagems que se posicionam em uma profundidade ou em outra profundidade, por exemplo, quando imagino que deso escadas at as profundidades, ou quando imagino que subo escadas se observo meu olho verei que meu olho abaixa, ou meu olho sobe. Quer dizer, ainda que o olho esteja de sobra, porque no tem que ver nenhum objeto externo, o olho vai seguindo as representaes como as percebe. Se eu imagino minha casa que est l, meu olho tende a ir at l. E se meu olho no fosse at l, de todos modos minha representao corresponde a esse lugar do espao. Inversamente, se imagino minha casa no outro ponto. Este olho que sobe e abaixa seguindo as imagems, vai se encontrando com diferentes objetos. Porque, segundo parece, essa tela de representao onde olha o eu, esto conectados todos os sistemas de impulsos do prprio corpo. De maneira que em uma rea do espao de representao h impulsos de uma parte do corpo, em outra rea outros impulsos e assim sucessivamente. E vocs sabem que estes impulsos se traduzem, se deformam, se transformam. En um exemplo muito conhecido se aponta o seguinte. Nosso sujeito comea a descer em suas imagems. O faz por uma espcie de tubo e em sua descida se encontra, rapidamente, com uma forte resistncia. Essa resistncia uma cabea de gato muito grande, que o impede de seguir descendo no tubo. Para poder passar acaricia o pescoo do gato. Ele, nessa imagem, acaricia a pescoo do gato, e o gato rapidamente diminui. Simultaneamente, ele registra uma distenso em seu pescoo, e ento, passa pelo tubo. Quer dizer que o gato no seno, nesse caso, a alegorizao de uma tenso no pescoo do prprio sujeito. Ao produzir a distenso, ento o sistema de sinal dessa imagem alegorizada como gato, se modifica, diminui a resistncia, e nosso amigo desce. Em outro caso, um sujeito comea a descer em sua representao. L, nas profundidades, se encontra de repente com um senhor que lhe d uma pequena pedra escura. Nosso amigo comea a subir e chega at um plano mdio, digamos, mais ou menos habitual, cotidiano, ainda que representado. Vem outro senhor e lhe d um objeto diferente, mas de forma parecida ao objeto que viu l embaixo. Segue subindo at as alturas. Vai subindo em direo s montanhas, se perde nas nuvens, e l se encontra com uma espcie de anjo ou algo parecido, que lhe d um objeto mais radiante, mais claro, mas com caractersticas similares. Nos 3 casos, nosso amigo observa o objeto em um ponto preciso do espao de representao. O mesmo objeto no aparece em um ponto aqui, em outro ali, em outro l, mas segundo o plano pelo qual se desloca, o objeto aparece na metade do plano, um pouco corrido at a esquerda. E claro, nosso amigo tem, e logo o recorda, uma vrtebra artificial que d sinal, ainda que ele habitualmente no o perceba sempre do mesmo modo, e sempre traduzindo-se este sinal como uma imagem. De maneira que os sistemas de alegorizao, transformam os sinais do intracorpo e os traduzem como imagems em diferentes pontos do espao de representao. No que o olho ao subir e abaixar torne a observar o que sucede no intracorpo. No se meteu o olho dentro do esfago mas chegou at a tela de representao o sinal de tenso, sem que o olho tenha chegado at este ponto. Assim pois, se descendo, vou tomando contato com tradues de diferente nvel do intracorpo. Isto no quer dizer que meu olho vai se introduzindo em minhas vsceras, e traduzindo o que vejo. 15. A medida que se desce no espao de representao, este vai escurecendo. A medida que se sobe no espao de representao, este vai clareando, segundo conhecem vocs repetidamente. Esta escurido na descida e claridade para cima, tem a ver em realidade com dois fenmenos: um, o distanciamento dos centros pticos; outro, com o habitual sistema de idealizao e o habitual sistema de percepo onde temos associada luz do sol no cu, etc., a falta de luz nas profundidades. Isto, sem dvida se modifica em lugares em que a neve est quase continuamente caindo e o cu escuro, como descrevemos habitantes de zonas muito geladas e enevoadas. Por outro lado, h objetos nas alturas que so escuros, ainda quando o espao de representao esteja mais iluminado e h objetos que so claros nas profundidades do espao de representao. Sem dvida, h pontos limites tanto na subida quanto na descida no espao de representao. Mas isto, motivo de outras descries. Vimos 14 assuntos: o 1 tratou a respeito da colocao do ponto de vista com respeito ao objeto que estava fora; o 2, o ponto de vista se o objeto est dentro; o 3, se ponto de vista se colocava atrs; o 4, tratou sobre o falso ponto de vista que parecia deslocar-se, se um se representava a si mesmo desde sua frente; o 5 mostrou que passava com os objetos posicionados no espao de representao em sua parte mais externa. O 6, as diferenas entre o espao de representao do de fora e do de dentro, destacadas por essa barreira tctil que colocavam olhos; o 7 ponto tratou a respeito da modificao da percepo pela representao; no 8 ponto vimos o que sucedia quando se posicionava um objeto no interior e se tratava de operar com o corpo; no 9 ponto vimos a modificao do espao de representao quando atuvamos a nvel viglico; o 10 ponto tratou sobre a modificao do espao de representao quando atuvamos a nvel de sonho; no ponto 11 vimos que sucedia com os objetos correspondentes ao espao interno; no ponto 12, falamos do espao de representao e vimos que este espao estava relacionado com distintos pontos do intracorpo e surgia esse espao de representao como uma espcie de tela no ponto 13 vimos que subindo nas imagems no espao de representao, este tendia a iluminar-se; no ponto 14 vimos, finalmente, que descendo com as imagens no espao de representao, este tendia a escurecer, ainda que admita vrias excees. Daqui para frente, podem ser extradas uma infinidade de conseqncias. O SENTIDO DA VIDA Cidade de Mxico, Mxico. 10 de Outubro de 1980 Intercmbio com um grupo de estudos. Agradeo a oportunidade que me do de discutir com vocs alguns pontos de vista referentes a aspectos relevantes de nossa concepo sobre a vida humana. Digo discutir porque isto no ser um discurso, mas sim um intercmbio. Um primeiro ponto de vista a considerar aquele ao que aponta toda nossa proposta. Nosso objeto de estudo o mesmo objeto que estudam as cincias? Se se tratasse do mesmo, as cincias precisamente teriam a ltima palavra. Nosso interesse est posto na existncia humana, mas no na existncia humana como fato biolgico ou social (j que com respeito a esse ponto h cincias que lhe dedicam seu esforo), mas sim na existncia humana como registro cotidiano, como registro dirio pessoal. Porque ainda que algum se pergunte pelo fenmeno social e histrico que constitutivo do ser humano, esse algum far tal pergunta a partir de sua vida cotidiana; o far a partir de sua situao; o far impulsionado 16. por seus desejos, suas angstias, suas necessidades, seus amores, seus dios; o far impulsionado por suas frustraes, seus xitos; o far a partir de algo anterior estatstica e teorizao; o far a partir da prpria vida. E, o que o comum e, ao mesmo tempo, o particular em toda existncia humana? A busca da felicidade e a superao da dor e do sofrimento so o comum e o particular de toda existncia humana. a verdade registrvel para todos e para cada um dos seres humanos. No entanto, que felicidade essa que aspira o ser humano? Ela o que o ser humano cr. Esta afirmao, um tanto surpreendente, se baseia no fato de que as pessoas se orientam em direo a imagens ou ideais de felicidade diferentes. mais, o ideal de felicidade muda com a situao histrica, social e pessoal. Disso concluiremos que o ser humano busca o que cr que o far feliz, e de acordo com isso, o que cr que o afastar do sofrimento e da dor. Dado a aspirao de felicidade, aparecero as resistncias da dor e do sofrimento. Como podero vencer-se estas resistncias? Antes devemos perguntar-nos pela natureza das mesmas. A dor para ns um fato fsico. Todos temos experincias disso. um fato sensorial, corporal. A fome, as inclemncias naturais, a doena, a velhice, produzem dor. E esse o ponto em que ns diferenciamos de fenmenos que nada tem a ver com o sensorial. Unicamente o progresso da sociedade e da cincia o que faz retroceder a dor. E esse o campo especfico no que podem desenvolver seus melhores esforos os reformadores sociais, os cientistas e sobretudo os mesmos povos geradores do progresso do qual se nutrem tais reformadores e tais cientistas. O sofrimento, em troca, de natureza mental. No um fato sensorial do mesmo tipo da dor. A frustrao, o ressentimento, so estados dos quais tambm temos experincia, e que no podemos localizar em um rgo especfico, ou em um conjunto deles. Como que embora sendo de natureza diferente atuam entre si a dor e o sofrimento? certo que a dor motiva tambm ao sofrimento. Em tal sentido, o progresso social e o progresso da cincia fazem retroceder um aspecto do sofrimento. Mas especificamente, onde encontraremos a soluo para fazer retroceder o sofrimento? Encontraremos isto no sentido da vida, e no existe reforma nem avano cientfico que afaste o sofrimento que d a frustrao, o ressentimento, o temor morte, e o temor em geral. O sentido da vida uma direo ao futuro que d coerncia vida, que permite enquadrar suas atividades e que a justifica plenamente. luz do sentido at a dor em seu componente mental e o sofrimento em geral, retrocedem e se diminuem interpretados como experincias superveis. Ento, quais so as fontes do sofrimento humano? So as que produzem contradio. Sofre-se por viver situaes contraditrias, mas tambm se sofre por recordar situaes contraditrias e por imaginar situaes contraditrias. Estas fontes de sofrimento tem sido chamadas as trs vias do sofrimento, e elas podem modificar- se de acordo com o estado em que se encontre o ser humano a respeito do sentido da vida. Teremos que examinar brevemente estas trs vias para em seguida falar do significado e da importncia do sentido da vida. (Pergunta pouco audvel na gravao) claro que os agrupamentos humanos, por exemplo, so estudados pela sociologia. Assim como as cincias podem estudar os astros ou os microorganismos. Tambm a biologia, a anatomia e a fisiologia, estudam o corpo humano a partir de diferentes pontos de vista. A Psicologia estuda o comportamento psquico. Todos estes que estudam (os estudiosos e os cientistas), no estudam sua prpria existncia. No existe uma cincia que estude a prpria existncia. A cincia nada diz a respeito da situao que acontece a uma pessoa quando chega a sua casa e ali recebe uma porta na cara, um maltrato, ou uma carcia. 17. Ns nos interessamos, justamente, pela situao da existncia humana, e por isso no incumbncia nossa as discusses que possa ter a cincia. E tambm observamos que a cincia tem srios enganos, srias dificuldades para definir o que passa na existncia. O que ocorre na existncia humana; qual a natureza da vida humana com respeito ao sentido; qual a natureza do sofrimento e da dor; qual a natureza da felicidade; qual a natureza da busca da felicidade. Estes so objetos de nosso estudo, de nosso interesse. A partir desse ponto de vista se poderia dizer que ns temos uma posio frente existncia, uma posio frente vida, e no uma cincia referida a estas coisas. (Pergunta pouco audvel na gravao) claro que ns temos posto nfase nisto que as pessoas buscam, aquilo que crem que a felicidade. O ponto est no fato de que se cr em uma coisa e amanh se cr em outra. Se examinarmos em ns mesmos o que acreditvamos que era felicidade aos doze anos e no dia de hoje, veremos a mudana de perspectiva; assim mesmo se consultamos dez pessoas, continuaremos vendo essa diversidade de ponto de vista. Na idade mdia se tinha uma idia geral da felicidade distinta poca da revoluo industrial, e em geral os povos e os indivduos variam em sua busca pela felicidade. No est de nenhum modo claro a felicidade enquanto objeto. Parece que no existiu tal objeto. mais um estado de nimo que se busca e no um objeto tangvel. s vezes isto se confunde numa determinada forma de propaganda que apresenta um sabo como a prpria felicidade. Desde j, todos compreendemos que, na realidade, se est tratando de descrever um estado, o estado de felicidade, mas no tanto o objeto porque no existe tal objeto que ns saibamos. Por conseguinte, no est claro que coisa seja o estado de felicidade. Nunca se o definiu convenientemente. uma espcie de escamoteio que se tem feito, e de nenhum modo ficou claro para as pessoas. Bem, assim que seguiremos avanando assim a menos que haja alguma outra pergunta... (Pergunta pouco audvel na gravao.) Esta ltima pergunta com respeito ao progresso da dor e do sofrimento. Como que se vai superando a dor com o progresso da sociedade e da cincia e o sofrimento no se supera paralelamente? Existem pessoas que sustentam que o ser humano no avanou para nada. bvio que o ser humano tem avanado na sua conquista cientfica, na sua conquista da natureza, no seu desenvolvimento. Est bem, h desenvolvimentos das civilizaes que so desiguais, de acordo, existem problemas de todo tipo, mas o ser humano e sua civilizao avanaram. Isso evidente. Recordem vocs outras pocas onde uma bactria fazia estragos, e hoje uma droga fornecida a tempo soluciona o problema rapidamente. Meia Europa sucumbiu em um momento por uma epidemia de clera. Isso foi superado. Velhas e novas doenas so combatidas e seguramente sero derrotadas. As coisas mudaram e mudaram muito. Mas claro que em matria de sofrimento uma pessoa de cinco mil anos atrs e uma pessoa da atualidade, registram e sofrem as mesmas decepes, registram e sofrem temores, registram e sofrem ressentimentos. O registram e o sofrem como se para eles no houvesse existido histria, como se nesse campo cada ser humano fosse o primeiro ser humano. A dor vai retrocedendo com aqueles avanos, mas o sofrimento no se modificou no ser humano, no se tiveram respostas adequadas com respeito a isso. E nesse sentido h uma coisa desigual. Mas, como poderamos dizer que o ser humano no avanou? Talvez porque tenha avanado o suficiente hoje se esteja fazendo este tipo de perguntas e tambm por isso se esteja tratando de dar resposta a essas interrogaes que, provavelmente em outra poca, no haja sido necessrio fazer. As trs vias do sofrimento no so apenas trs vias necessrias para a existncia humana, mas que foram distorcidas em seu funcionamento normal. Tratarei de me explicar. 18. Tanto a sensao do que agora vivo e percebo, como a memria do que vivi e a imaginao do que poderia viver, so vias necessrias existncia humana. Restrinjamos algumas destas funes e a existncia se desarticular. Acabemos com a memria e perderemos at o prprio manejo de nosso corpo. Eliminemos a sensao e perderemos a regulagem do mesmo. Detenhamos a imaginao e no poderemos nos orientar em nenhuma direo. Estas trs vias que so necessrias a vida, podem ser distorcidas em seu funcionamento convertendo-se em inimigas da vida, em portadoras de sofrimento. Sim, sofremos cotidianamente pelo que percebemos, pelo que recordamos e pelo que imaginamos. Dissemos em outras oportunidades que se sofre por viver em uma situao contraditria tal como a de querer fazer coisas que se opem entre si. Tambm sofremos pelo medo de no conseguir o que desejamos no futuro, ou pelo medo de perder o que temos. E, a partir da, sofremos pelo que perdemos, pelo que no conseguimos, por aquilo que j sofremos antes, por aquela humilhao, aquele castigo, aquela dor fsica que ficou no passado, por aquela traio, por aquela injustia, por aquela vergonha. E esses fantasmas que chegam do passado so vividos por ns como se fossem fatos presentes. Eles, que so as fontes do rancor, do ressentimento e da frustrao, condicionam nosso futuro e fazem perder a f em ns mesmos. Discutamos o problema das trs vias do sofrimento. Se as trs vias so as que possibilitam a vida, como que se foram distorcendo? Supe-se que se o homem vai buscando a felicidade, devia ir adequando-se para ir manejando estas trs vias a seu favor. Mas, como que de repente essas trs vias so precisamente suas principais inimigas? Parece ser que no momento em que se ampliou a conscincia do ser humano, quando ainda no era um ser muito definido, parece ser que ali mesmo, ao ampliar-se sua imaginao, ao ampliar-se sua memria e sua recordao histrica, ao ampliar-se sua percepo do mundo em que vivia, nesse mesmo momento, ao ampliar-se uma funo surgiu a resistncia. Tal qual acontece nas funes internas. Como quando tratamos de mover-nos em uma atividade nova, encontramos resistncia. Do mesmo modo que se encontra resistncia na natureza. No mesmo instante que chove e cai gua e vai pelos rios e encontra resistncia a sua passagem, nessa vitria das resistncias chega finalmente aos mares. O ser humano em seu desenvolvimento, vai encontrando resistncias. E ao encontrar resistncias se fortalece, e ao fortalecer-se integra dificuldades, e ao integr-las as supera. E ento todo este sofrimento que foi surgindo no ser humano em seu desenvolvimento, foi tambm um fortalecimento do ser humano por cima de tudo isso. De modo que em etapas anteriores isto do sofrimento contribuiu ao desenvolvimento, no sentido de criar condies justamente para super-lo. Ns no aspiramos ao sofrimento. Ns aspiramos a reconciliar-nos inclusive com nossa espcie, que tanto tem sofrido, e graas qual ns podemos fazer novos desdobramentos. No foi intil o sofrimento do homem primitivo. No foi intil o sofrimento de geraes e geraes que estiveram limitadas por essas condies. Nosso agradecimento para aqueles que nos antecederam contudo seu sofrimento, porque graas a eles podemos tentar novas libertaes. Este o ponto a respeito de como o sofrimento no nasceu subitamente, mas sim com o desenvolvimento e a ampliao do homem. Mas claro que ns no aspiramos, como seres humanos, a seguir sofrendo, mas sim avanar sobre essas resistncias integrando um novo caminho neste desenvolvimento. Mas dissemos que encontraremos a soluo para o problema do sofrimento no sentido da vida, e definimos esse sentido como a direo ao futuro que d coerncia, que permite enquadrar atividades e que justifica plenamente a existncia. Esta direo ao futuro de mxima importncia posto que, segundo examinamos, se esta via da imaginao cortada, esta via do projeto, esta via do futuro, a existncia humana perde a direo e isso fonte de inesgotvel sofrimento. 19. claro para todos que a morte aparece como o mximo sofrimento do futuro. claro, nessa perspectiva, que a vida tem carter de algo provisrio. E claro que, nesse contexto, toda construo humana uma intil construo rumo ao nada. Por isso, talvez, distanciar o olhar do fato da morte tenha permitido mudar a vida como se a morte no existisse... Quem pensa que tudo termina para si com a morte, poder animar-se com a idia de que ser lembrado por suas esplndidas aes, que no se esquecero dele seus entes queridos ou, talvez, as geraes futuras. E, ainda que isto fosse assim, todos caminhariam finalmente rumo a um nada absurdo que interromperia toda lembrana. Tambm se poderia pensar que o que algum faz na vida no nada mais que responder s necessidades do melhor modo possvel. Pois bem, j se acabaro essas necessidades com a morte e haver perdido sentido toda luta por sair do reino da necessidade. E se poder dizer que a vida pessoal carece de importncia na vida humana, que portanto a morte pessoal no tem significado. Se fosse este o caso, tampouco teria significado a vida nem as aes pessoais. No se justificaria nenhuma lei, nenhum compromisso, e no haveria, em essncia, maiores diferenas entre as aes benficas e as malvadas. Nada tem sentido se tudo termina com a morte. E, se esse o caso, o nico recurso possvel para transitar pela vida, animar-se com sentidos provisrios, com direes provisrias s quais aplicar nossa energia e nossa ao. Tal o que sucede habitualmente, mas para isso necessrio proceder negando a realidade da morte, necessrio fazer como se ela no existisse. Se algum perguntado que sentido tem a vida para ele, provavelmente responder por sua famlia, ou pelo prximo, ou por uma determinada causa que segundo ele justifique a existncia. E, esses sentidos provisrios, havero de conferir-lhe direo para enfrentar a existncia, mas logo que surjam problemas com os entes queridos, logo que se produza uma desiluso com a causa adotada, logo que algo se modifique no sentido escolhido, o absurdo e a desorientao voltaro por sua presa. Por ltimo, sucede com os sentidos ou as direes provisrias da vida que no caso de alcanar-se j perdem referncia e, portanto, deixam de ser teis para mais adiante e, no caso de no se alcanar, deixam de ser teis como referncia. certo que aps o fracasso de um sentido provisrio sempre fica a alternativa de por um novo sentido provisrio, talvez em oposio ao que fracassou. Assim, de sentido em sentido se vai apagando, medida que passam os anos, todo rastro de coerncia e com isso aumenta a contradio e, portanto, o sofrimento. A vida no tem sentido se tudo termina com a morte. Mas, certo que tudo termina com a morte? certo que no se pode conseguir uma direo definitiva que no varie com os acidentes da vida?, como se situa o ser humano frente ao problema de que tudo termina com a morte? Examinemos, logo aps discutir o que foi dito at aqui. (Intervalo e discusso) Assim como destacamos as trs vias do sofrimento observamos tambm cinco estados com referncia ao problema da morte e a transcendncia. Nestes cinco estados se pode situar qualquer pessoa. Existe um estado em que uma pessoa tem evidncia incontestvel dada por prpria experincia, no por educao ou ambiente. Para ela evidente que a vida um trnsito e que a morte um escasso acidente. Outros tem a crena de que o ser humano vai a no sei que transcendncia, e esta crena a tm dada por educao, dada pelo ambiente, no por algo sentido, experimentado, no por algo evidente para eles, mas sim por algo que lhes ensinaram e que eles aceitam sem experincia alguma. Existe um terceiro tipo de posio frente ao sentido da vida e o daquelas pessoas desejosas de ter uma f ou ter uma experincia. Os senhores devem ter-se encontrado com muitas pessoas que dizem: Se eu pudesse acreditar em certas coisas, minha vida seria diferente. Existem muitos 20. exemplos a mo. Pessoas s quais lhes ocorreram muitos acidentes, muitas desgraas, e que superaram esses acidentes, essas desgraas, porque ou tem f ou tem um registro de que tudo isto, por transitrio ou provisrio, no o prprio esgotamento da vida mas em todo caso uma prova, uma resistncia que de algum modo faz crescer no conhecimento. Inclusive podem haver encontrado pessoas que aceitem o sofrimento como um recurso de aprendizagem. No que procurem o sofrimento (no como outros, que parece que tiveram uma especial fixao pelo sofrimento). Estamos falando daqueles que simplesmente, quando se d tal coisa, tiram o melhor partido dela. Pessoas que no andam buscando o sofrimento, todo o contrrio, mas sim que dada a situao o assimilam, o integram e o superam. Bem. Existem pessoas, ento, que se situam nesse estado: no tem f, no tem nenhuma crena, mas desejaram ter algo que lhes desse nimo e desse direo a sua vida. Sim, essas pessoas existem. Existem tambm aqueles que suspeitam intelectualmente a possibilidade de que exista um futuro depois da morte, que exista uma transcendncia. Simplesmente o consideram possvel e no tm nenhuma experincia de transcendncia nem tampouco tm nenhum tipo de f, nem tampouco aspiram a ter experincia nem a ter f. Seguramente conhecem essas pessoas. E h, por ltimo, aqueles que negam toda a possibilidade de transcendncia. Tambm os senhores reconhecero aqui pessoas, e provavelmente entre vocs existem muitos, que pensam assim. De maneira que com diferentes variantes cada um pode efetivamente situar-se como aqueles que tm evidncia e para eles indubitvel isto da transcendncia, ou bem como aqueles que tm f porque assim a assimilaram quando pequenos, ou bem aqueles outros que quiseram ter uma experincia ou uma f, ou aqueles outros mais que a consideram uma possibilidade intelectual sem causar-se maiores problemas, e estes outros que a negam. Mas aqui no terminamos com o ponto de localizao frente ao problema da transcendncia. Existe, ao que parece, diferentes profundidades nisto de situar-se frente ao problema da transcendncia. Existem os que inclusive dizem que tem uma f, o afirmam, mas isto que dizem no corresponde ao que efetivamente experimentam. Ns no dizemos que eles mentem, mas sim que isto dito superficialmente. Dizem ter uma f, mas amanh podem no t-la. Assim que observamos diferentes graus de profundidade nestas cinco posturas e, portanto, na mobilidade ou na firme convico com relao ao que se postula. Conhecemos pessoas que eram grandes devotas, crentes de uma f, e ao morrer um familiar, ao morrer um ente querido, desapareceu toda a f que diziam ter e caram no pior dos sem sentidos. Essa f era uma f de superfcie, uma f de fachada, uma f perifrica. Por outro lado, aqueles outros que superaram grandes catstrofes e afirmaram precisamente sua f, tudo lhes resultou diferente. Conhecemos pessoas que estavam convencidas da inexistncia total da transcendncia. Algum morre e desaparece. Dizendo assim, eles tinham f em que tudo se acabava com a morte. claro que em alguma ocasio, caminhando perto de um cemitrio apressaram o passo e se sentiram inquietos... como se compatibiliza tudo isto com a certa convico de que tudo termina com a morte? Desse modo, existem pessoas que inclusive na negao da transcendncia esto localizadas em uma situao muito superficial. Deste modo, algum pode situar-se em qualquer destes estados, mas tambm pode situar-se em distintas profundidades. Em certas pocas de nossa vida acreditamos em uma coisa a respeito da transcendncia, e logo em outra. Mudou, isto instvel. Isto no algo esttico. No somente em pocas distintas de nossa vida mas tambm em situaes. Muda nossa situao e muda nossa crena com respeito ao problema da transcendncia. E mais: muda de um dia para o outro. s vezes pela manh estou acreditando numa determinada coisa, e pela tarde no. E isto que parece ser de suma importncia porque orienta a vida humana, algo demasiado varivel. E ao fim provocar um desconcerto na vida cotidiana. 21. Nesses cinco estados e graus se coloca o ser humano, mas qual deveria ser a correta colocao? Existe por acaso uma correta colocao, ou estamos simplesmente descrevendo problemas sem dar soluo? Podemos sugerir qual a melhor colocao frente ao problema? Alguns dizem que a f algo que est ou no est nas pessoas, que brota ou que no brota. Mas observem esse estado de conscincia. Algum pode no ter f em absoluto, mas tambm pode desejar, sem f e sem experincia, obter isso. Pode inclusive compreender intelectualmente que tal coisa interessante, que pode valer a pena orientar-se nessa direo. Pois bem, quando isso comea a acontecer porque algo j est se manifestando nessa direo. Os que alcanam essa f ou experincia transcendente, ainda que no possam defini-la em termos precisos como no se pode definir o amor, reconhecero a necessidade de orientar a outros nesse sentido, mas jamais trataro de impor sua paisagem a quem no a reconhea. E assim, coerentemente com o enunciado, declaro ante vocs minha f e minha certeza de experincia a respeito de que a morte no detm o futuro, que a morte, pelo contrrio, modifica o estado provisrio de nossa existncia para lan-la em direo transcendncia imortal. E no imponho minha certeza nem minha f, e convivo com aqueles que se encontram em estados diferentes a respeito do sentido, mas me obrigo a oferecer solidariamente a mensagem que reconheo fazer feliz e livre o ser humano. Por nenhum motivo descarto minha responsabilidade de expressar minhas verdades ainda que estas fossem discutveis por quem experimenta a provisoriedade da vida e o absurdo da morte. Por outro lado, jamais pergunto a outros por suas crenas particulares e, em todo caso, ainda que defino com clareza minha posio a respeito deste ponto, proclamo para todo ser humano a liberdade de acreditar ou no em Deus e a liberdade de crer ou no na imortalidade. Entre milhares e milhares de mulheres e homens que lado a lado, solidariamente, trabalham conosco, se somam ateus e crentes, pessoas com dvidas e com certezas e a ningum se pergunta por sua f e tudo se d como orientao para que decidam por si mesmos a via que melhor esclarea o sentido de suas vidas. No corajoso deixar de proclamar as prprias certezas, mas indigno da verdadeira solidariedade tratar de imp-las. O VOLUNTRIO Cidade de Mxico, Mxico. 11 de Outubro de 1980 Comentrios (durante um intervalo) perante um grupo de estudos. Ao que parece, muitas pessoas que atuam em nosso movimento tm antecedentes de voluntariedade e no de voluntarismo, que so dois conceitos diferentes. Aparentemente existem muitos assistentes sociais, enfermeiras, professores, pessoas que, embora desenvolvendo atividades remuneradas, no se sentem de, modo nenhum, compensados com a remunerao que recebem pela atividade que desempenham. certo que se lhes pagam mal iro protestar mais do que os outros para que sejam melhor remunerados, mas a orientao bsica de suas atividades no termina neles mesmos, mas direcionada para fora; depois vir, por problemas do cotidiano e outras razes, a necessidade de receberem remunerao por seu trabalho. Mas essas pessoas ainda que lhes paguem mal tm forte tendncia a ensinar coisas. O que que nos querem dizer? E os outros profissionais 22. que desenvolvem este tipo de atividade e no recebem nada por isso? No nosso Movimento existem muitas pessoas com antecedentes deste tipo. H aquele que organizou um clube de bairro, aquele que quando era novo montou uma equipe de qualquer coisa... Vm ao nosso Movimento e muitos deles so os que pem tudo em marcha. Outros no. Outros vm em outras condies e buscando outras coisas, mas quando entendem o significado deste trabalho, afastam-se. Assim muitos so os que atuam em nosso trabalho, extraindo dele um sentido de justia interna. Colocam-se em atividade com a mesma tendncia e experincias das atividades que j haviam executado antes. Pode observ-los, h muitos exemplos. No sei como ser aqui, mas em todas as partes do mundo numerosos amigos nossos tm essas caractersticas e coincidem, em geral, com os que pem em marcha coisas. Eles tm na sua biografia antecedentes deste tipo. Mas porque razo algumas pessoas fazem as coisas transcendendo o efeito imediato da ao desinteressada? O que se passa em suas cabeas para agirem de modo to estranho? Do ponto de vista das sociedades consumistas, essa uma forma atpica de agir. Todo aquele que nasceu e cresceu recebendo o impacto e a difuso de uma estrutura consumista, tende a ver o mundo no sentido da nutrio pessoal. Ele pensar que sendo um consumidor ter que tragar coisas. E como uma espcie de grande estmago que deve ser enchido. De forma alguma ele pensa que alguma coisa deva sair dele e dir: - j sai bastante de mim, para que tenha direito a muitos bens de consumo. J no dedico tantas horas ao meu trabalho no escritrio, e pago com meu tempo todo tempo em que deixo de consumir para trabalhar no sistema? Efetivamente, isso bem razovel. Ele, sua maneira, troca horas de trabalho, horas/homem, por remunerao. Ele no pe a tnica do seu trabalho na atividade que desempenha no mundo, considera isto um mal necessrio para que o circuito acabe em si mesmo. Assim esto montados os sistemas de um signo e outro signo. A coisa a mesma: o consumidor. A populao est ficando neurtica, porque h um circuito de entrada e outro de sada. E se cortarmos o circuito de sada iremos gerar vrios problemas. Mas o fato que a maioria das pessoas est nesta histria de receber e, ao propagar a ideologia do receber, no conseguem explicar como podem existir pessoas que fazem as coisas sem receber nada em troca. Do ponto de vista do consumismo, isto extremamente suspeito. Porque motivo algum iria atuar sem receber o pagamento equivalente ao seu esforo? Essa suspeita, na realidade, revela um pssimo conhecimento do ser humano. Os que suspeitam disto, tm compreendido a utilidade em termos de dinheiro, e no a utilidade vital e psicolgica. Por causa disto no faltam pessoas que, com elevado nvel de vida e com todos os seus problemas resolvidos, se atiram pela janela ou vivem alcoolizado, drogado ou, em um momento de insanidade, assassina seu vizinho. Ns reivindicamos publicamente algo que est desprestigiado. Reivindicamos aquele que salta da sua cama porque se est incendiando uma casa prxima. Ele rapidamente pe a roupa, seu capacete e sai correndo para apagar o incndio. Quando volta (s seis da manh, cheio de fumaa, chamuscado, com feridas) sua mulher do corao atira-lhe pratos na cara, dizendo: Quanto te pagam por isso? Vais chegar tarde ao trabalho e criar-nos um problema por causa das tuas manias!. Saindo ele de casa, o apontaro dizendo: Sim, esse o bombeiro voluntrio. Uma espcie de idiota frente aos outros que sentindo-se to bem consigo mesmos, atiram-se pela janela. Normalmente, os bombeiros voluntrios no se atiram pela janela. Quer dizer que eles, do seu modo, empiricamente, encontraram uma forma de aplicar sua energia em direo ao mundo. Eles no s tem podido lanar-se catarticamente a certas atividades (tambm os outros podem faz-lo atravs do esporte, atravs da confrontao, atravs de muitssimas operaes) como tambm podem fazer algo mais. Eles podem, diferena de outras pessoas, fazer algo muito mais importante: pr um significado interno no mundo. E nesse caso, cumprem uma funo empiricamente transferencial. Esto a compondo contedos que partem deles para o mundo e no esto respondendo a estmulos convencionais. muito diferente aquele que est obrigado a fazer determinadas coisas em troca de uma remunerao, do que este outro que parte do seu mundo interno para o mundo externo e nele se expressa. Nele, voluntariamente, plasma contedos que no 23. esto nada claros, nem para si mesmos e s vezes procura compreend-los com palavras como solidariedade sem entender qual o significado profundo de tal vocbulo. E mais: este pobre voluntrio, que cada vez que chega sua casa lhe atiram pratos e gozam-no, vai acabar por pensar que ele efetivamente uma espcie de estpido e vai concluir: sempre me acontece isto. E nem falar se ao invs de um voluntrio for uma voluntria. Nesta sociedade, a coisa grave ainda. No fim estes voluntrios acabam humilhados e assimilados pelo sistema porque ningum lhes explicou como tudo isto acontece. Eles sabem que so diferentes dos outros, mas no podem se dar explicaes sobre o que fazem. E se pegamos neles e lhes dizemos: bom, vamos l ver o que que vocs ganham, vo balbuciar e encolher os ombros como se tivessem que ocultar alguma coisa vergonhosa. Ningum os esclareceu, ningum lhes deu as ferramentas suficientes para se auto- explicarem e explicarem a outros, porque o enorme potencial que tm verte ao mundo sem esperar retribuio. E isso, desde j, extraordinrio. ATO PBLICO Pavilho dos Sportes. Madri, Espanha. 27 de Setembro de 1981 Nota: Convidado pela Comunidade para o Desenvolvimento Humano de distintos pases, Silo empreendeu uma gira de difuso participando em vrios eventos pblicos. Suas exposies forom acompanhadas pelas de seus amigos Bittiandra Aiyyappa, Saky Binudin, Petur Gudjonsson, Nicole Myers, Salvatore Puledda e Danny Zuckerbrot. O ncleo das idias apresentadas por Silo em Madri se repetiu em Barcelona, Reykjavik, Frankfurt, Copenhague, Milo, Colombo, Paris e Cidade do Mxico. Neste livro se incluem somente as intervenes nos atos pblicos de Madri e Bombaim. Faz tempo me disseram: por que no explicas o que pensas? Ento expliquei. Depois disso, outros disseram: no tens direito de explicar o que pensas, ento me calei. Passaram doze anos e novamente me disseram por que no explicas o que pensas? Assim que o farei novamente, sabendo de antemo que outra vez se dir: no tens direito de explicar o que pensas. Nada novo se disse ento; nada novo se dir hoje E bem, que se disse ento? Se disse: sem f interna h temor, o temor produz sofrimento, o sofrimento produz violncia, a violncia produz destruio; portanto a f interna evita a destruio. Nossos amigos falaram hoje sobre o temor, o sofrimento, a violncia e o niilismo como mximo expoente de destruio. Tambm falaram sobre a f em si mesmos, nos demais e no futuro. Disseram que necessrio modificar a direo destrutiva que tomam os acontecimentos mudando o sentido dos atos humanos. Alm disso, e como coisa fundamental, disseram como fazer tudo isto; de modo que nada novo se agregar hoje. Somente gostaria de fazer trs reflexes. Uma sobre o direito que nos assiste para explicar nosso ponto de vista; outra sobre como chegamos a esta situao de crise total e por ltimo, aquela que nos permita tomar uma resoluo imediata e operar uma mudana de direo em nossas vidas. Esta resoluo deveria concluir com um compromisso em todo aquele que esteja de acordo com o dito. 24. Pois bem! Que direito nos assiste para explicar nosso ponto de vista e obrar em consequncia? Em primero lugar, nos assiste o direito de diagnosticar o mal atual de acordo com nossos elementos de juzo, ainda que no coincidam com os estabelecidos. Em tal sentido dizemos que ningum tem direito a impedir novas interpretaces baseando-se em verdades absolutas. E a respeito de nossa ao, por que haveria de ser ofensiva para outros sendo que no interferimos em suas atividades? Se em algum lugar do mundo se impede ou se deforma o que dizemos e o que fazemos, ns poderemos dizer que a existe m f, absolutismo e mentira. Por que no deixar que a verdade corra livremente e que as pessoas livremente informadas possam elegir o que lhes parea razovel? E ento! Por que fazemos o que fazemos? Responderei em poucas palavras: fazemos como supremo ato moral. Nossa moral se baseia neste princpio: trata os demais como queres que te tratem. E se como indivduos queremos o melhor para ns, estamos exigidos por este imperativo moral a dar a outros o melhor. Quem so os outros? Os outros so os mais prximos, e ali onde cheguem minhas possibilidades reais de dar e de modificar, ai est meu prximo; e se minha possibilidade de dar e de modificar chegarem a todo o mundo, o mundo seria meu proximo. Mas, seria um despropsito preocupar-me declamativamente pelo mundo se minhas possibilidades reais chegarem s at meu vizinho. Por isso, h uma exigncia mnima em nosso ato moral e a de esclarecer ou agir cada qual em seu mbito imediato. E contrrio esta moral no faz-lo, asfixiando-se num individualismo sem sada. Esta moral d uma direo precisa s nossas aes e, alm disso, fixa claramente a quem esto dirigidas. E quando falamos de moral nos referimos a um ato livre, possibilidade de faz-lo ou no faz-lo e dizemos que este ato est por cima de toda necessidade e toda mecanicidade. Este nosso ato livre, nosso ato moral: trata os demais como queres que te tratem. E nenhuma teoria, nenhuma desculpa est por cima deste ato livre e moral. No nossa moral a que est em crise, so outras morais que esto em crise, no a nossa. Nossa moral no se refere a coisas, a objetos, a sistemas, nossa moral se refere direo dos atos humanos. Mas h outro ponto que devo tratar agora e se refere situao de crise a que chegamos. Como sucedeu tudo isto e quem foram os culpados? No farei disso uma anlise convencional. Aqui no haver cincia nem estatstica. Colocarei em imagens que cheguem no corao de cada qual. Sucedeu h muito tempo que floresceu a vida humana neste planeta. Ento, e com o correr dos milnios, os povos foram crescendo separadamente e houve um tempo para nascer, um tempo para gozar, um tempo para sofrer e um tempo para morrer. Indivduos e povos, construindo, foram substituindo-se at que herdaram por fim a terra. E dominaram as guas do mar e voaram mais velozes que o vento e atravessaram as montanhas e com vozes de tormenta e luz de sol mostraram seu poder. Ento viram de muito longe seu planeta azul, amvel protetor velado por suas nuvens. Que energia moveu tudo? Que motor ps o ser humano na histria, seno a rebelio contra a morte? Porque j desde antigo, a morte como sombra acompanhou seu passo. E tambm desde antigo entrou nele e quis ganhar seu corao. Aquilo que no princpio foi continua luta movida pelas necessidades prprias da vida, depois foi luta movida por temor e por desejo. Dois caminhos se abriram: o caminho do sim e o caminho do no. Ento, todo pensamento, todo sentimento e toda ao, foram conturbados pela dvida do sim e do no. O sim criou tudo aquilo que fez superar o sofrimento. O no agregou dor ao sofrimento. Nenhuma pessoa, ou relao, ou organizao ficou livre de seu interno sim e de seu interno no. Depois os povos separados foram ligando-se e, por fim, as civilizaes ficaram conectadas; o sim e o no de todas as lnguas invadiram de maneira simultnea os ltimos cantos do planeta. Como vencer o ser humano a sua sombra? Por acaso fugindo dela? Por acaso enfrentando-a em incoerente luta? Se o motor da histria a rebelio contra a morte, rebela-te agora contra a frustao e a vingana. Deixa, por primeira vez na histria de buscar culpados. Uns e outros so responsveis do que uma vez fizeram, mas ningum culpado do que sucedeu. Tomara que neste juzo universal se possa declarar: no existem culpados, e se estabelea como obrigao moral para cada ser 25. humano, reconciliar-se com seu prprio passado. Isso comear aqui hoje em ti e sers responsvel de que isto continue entre aqueles que te rodeiam, assim at chegar ao ltimo rinco da Terra. Se a direo de tua vida nao tem mudado, necessitas faz-lo; mas se j mudou necessitas fortalec-la. Para que tudo isso seja possvel, acompanha-me em um ato livre, valente e profundo que seja ademais uma reconciliao. Vai at teus pais, at seu ser amado, teus companheiros, amigos e inimi