fabiÃo - definir performance é um falso problema

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Doutora em Estudos da Performance pela New York University, Fabião fala na entrevista a seguir sobre alguns aspectos que permeiam sua pesquisa: a relação da performance com as artes e como o conceito desestabiliza uma idéia preconcebida entre o performer-ativo e espectador-passivo

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  • Definir Performance um falso problema ENTREVISTA COM ELEONORA FABIO

    Publicado em 9 de julho de 2009

    Doutora em Estudos da Performance pela New York University, Fabio fala na entrevista a seguir sobre alguns aspectos que permeiam sua pesquisa: a relao da performance com as artes e como o conceito desestabiliza uma idia preconcebida entre o performer-ativo e espectador-passivo

    O conceito de performance ligado arte bem escorregadio e, por outro lado, existe uma viso mais senso comum do termo bem limitadora. O que realmente performance? Existe um conceito mais fechado do termo?

    A performance uma prtica artstica que se desenvolve como gnero ao longo da segunda metade do sculo XX, ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial e suas catstrofes correlatas. Digo se desenvolve como gnero pois muitos historiadores defendem a idia de que as origens das prticas performativas so mais remotas. Alguns prope que a performance tem suas razes fincadas nos movimentos de vanguarda do incio do sculo (dadasmo, surrealismo etc.). Outros sugerem que a performance to antiga quanto o ritual. importante enfatizar que a noo de performance como a conhecemos hoje aparece por volta dos anos 1960, quando inmeras manifestaes artsticas - que no podiam ser classificadas como teatro, dana, pintura, escultura ou qualquer outro gnero previamente conhecido - comeam a acontecer simultaneamente pelo mundo afora. A performance surge no cenrio ps-guerra como uma denncia, uma resposta e uma proposta. Gosto de colocar a performance em perspectiva histrica e relativizar sua origem ao invs de buscar defini-la ou enquadr-la teoricamente. A estratgia da performance resistir a definies. Ela trata justamente de desnortear classificaes, de desconstruir modos tradicionais de produo e recepo artstica. um expoente da arte contempornea porque suspende certezas sobre o que seja obra de arte, espectador e artista ao lanar perguntas desconcertantemente fundamentais como: o que arte? o que move a arte? o qu a arte move? qu arte move? Enquanto gnero, a performance no fixa formas espaciais ou temporais, no utiliza mdias ou materiais especficos, nem estabelece modos de recepo ou critrios de documentao. Alguns performers trabalham em espaos pblicos, outros em galerias ou demais espaos destinados fruio artstica, outros em seus prprios estdios ou casas, enquanto outros preferem espaos rurais. O mesmo sobre a temporalidade da performance: h peas com durao de um ano enquanto outras duram horas, minutos

  • ou mesmo segundos. Quanto s mdias e materiais utilizados pelos artistas, a diversidade tambm grande. Quanto recepo da performance, tambm impera a indeterminao: alguns artistas performam para espectadores (que tornam-se cmplices ou testemunhas de seus feitos), outros com os espectadores (que tornam-se assistentes e at mesmo co-realizadores do evento), e outros sem espectadores (e optam por documentar ou no as aes realizadas). H tambm aqueles artistas que criam proposies para serem realizadas no por eles, mas pelos prprios espectadores. Ou ainda, numa verso radicalmente diferente, aqueles que contratam e pagam pessoas para performar suas propostas. Trocando em midos: tentar definir a performance no apenas contraditrio ou redutor, mesmo impossvel. Definir performance um falso problema. Porm, claro, h fatores comuns entre peas de performance. Sobretudo a nfase no corpo como tema e matria. Me restrinjo a destacar algumas tendncias gerais: o desmonte de mecnicas clssicas do espetculo, a desconstruo da representao, o desinteresse pela fico, a investigao dos limites entre arte e no-arte, a investigao das capacidades psicofsicas do performer, a criao de dramaturgias pessoais e/ou auto-biogrficas, a nfase nas polticas de identidade e em discusses polticas em geral atravs do corpo e as experimentaes em torno das qualidades de presena do espectador.

    Qual a relao entre performance e arte, j que performance, de certa forma, est ligada a manifestaes distintas de arte? At que ponto a arte devedora de uma concepo de performance, e vice-versa?

    A hibridao de gneros uma das principais caractersticas da performance. Alis, esta possibilidade de fuso ampla, geral e irrestrita de materiais e procedimentos uma das principais caractersticas no apenas da performance mas da produo artstica contempornea. No estudo da terica de teatro alem Erika-Fischer-Lichte, intitulado O Poder Transformador da Performance (The Transformative Power of Performance), ela prope que desde o incio dos anos 1960, a arte ocidental experimenta o que chama de performative turn. Segundo Fischer-Lichte, esta virada performativa inclui todos os gneros artsticos -cujas fronteiras tornam-se mais fluidas - alm de dar origem a performance art propriamente dita. Nas artes visuais, a action painting, a body art, as instalaes e as obras de site specific so exemplos deste carter performativo. Na msica, experimentaes em torno de temas como msica cnica, msica visual, teatro instrumental tambm so exemplos. No teatro, o interesse crescente pela desconstruo da narrativa e da fico em favor da incluso do espectador numa cena cada vez mais porosa outro trao performativo marcante. De modo geral o performative turn aponta para a seguinte tendncia: o crescente desinteresse pela noo de obra de arte enquanto resultado final do trabalho do artista a ser absorvido e interpretado pelo espectador e, em contrapartida, a crescente valorizao do evento que inclui o espectador como elemento constitutivo.

    Sua pesquisa parte do princpio de uma desestabilizao na relao performer-espectador, principalmente de uma dicotomia bastante difundida da idia de um performer ativo e um espectador passivo. De que modo seus trabalhos e pesquisas se propem a buscar uma colaborao entre esses dois agentes?

    Para te responder vou comentar resumidamente uma performance - Aes Cariocas - que realizei faz pouco tempo no Largo da Carioca [uma das praas mais movimentadas do Centro do Rio de Janeiro]. Para realizar a primeira Ao Carioca, levo para o Largo duas cadeiras da cozinha da minha casa, um bloco formato A2 e uma caneta pilot. Quando chego no local escolhido do Largo, tiro o sapato, coloco uma cadeira diante da

  • outra, escrevo no bloco converso sobre qualquer assunto, levanto o cartaz e espero. No primeiro dia no fazia idia do que iria acontecer. Minha motivao era muito clara: dialogar com meus concidados, tentar recuperar meu interesse e amor pela cidade onde cresci e que, por conta da corrupo poltica e da truculncia criminosa, tornou-se uma violenta cultura do medo. Para reagir contra minha prostrao e frustrao resolvi ir para a rua, conversar com quem quisesse conversar comigo, criar uma performance em que a receptividade fosse a chave dramatrgica. Fato que, logo depois de erguer o cartaz, quase imediatamente depois, uma pessoa sentou-se comigo. E assim sucessivamente. Vrias pessoas, todo tipo de gente, tantas conversas e assuntos que precisaria de pginas e pginas para descrever. No final de cada dia - permanecia cerca de quatro horas na rua e por vezes mais de uma hora com cada pessoa - estava eufrica, totalmente eletrizada, no exatamente pela ocupao de um espao, mas pela abertura de uma dimenso, uma dimenso performativa; energizada pelo reencontro com a cidade e com a minha prpria cidadania; energizada por podermos criar juntos, atravs do dilogo, e na medida de nossas micro-percepes e micro-polticas, novas possibilidades para ns, a arte e a cidade.

    Falando sobre o contedo do mdulo Dana e Performance, existe uma aproximao maior entre performance e dana do que em relao a outras manifestaes artsticas? Como o conceito de performance se insere no panorama da dana contempornea?

    Existe uma aproximao maior apenas na medida em que a dana sempre valorizou o corpo. O que no quer dizer que a dana tenha sempre valorizado um corpo que pensa ou um pensamento sobre criao de corpo e de mundo. Aqui lembro do terico da dana Andr Lepecki, de seu trabalho voltado para o desenvolvimento de uma dana-que-se-pensa, uma dana capaz de reconhecer e rearticular as foras sociais, polticas e ideolgicas que a condicionam. Desde os anos 1960, danarinos e coregrafos interessados em repensar as possibilidades da dana vm se perguntando o qu os move, e no simplesmente como mover-se. Foi numa entrevista com Pina Bausch [bailarina e coregrafa recm falecida] que li esta articulao esclarecedora. Muitos dos ensaios desde a criao da companhia em Wuppertal nos anos 1970, desenvolviam-se em torno de perguntas que ela fazia aos danarinos que, para respond-las, lanavam mos de todos os seus recursos expressivos (se necessrio inclusive a voz e a palavra). Bausch opta por trabalhar com danarinos mais velhos, opinativos, corpos marcados, etnias diversas, agentes muito diferentes da etrea bailarina clssica. Corpos que, sob a direo de Bausch, absorveram e transformaram as lies de ballet para criar o hbrido dana-teatro, movimento que abriu caminho para as atuais pesquisas da dana contempornea. Seja de maneira consciente ou no, a dana contempornea fortemente inspirada pela performance. A dana contempornea prope uma reviso radical da definio tradicional de dana - mover-se ritmicamente acompanhando uma msica e, em geral, seguindo uma seqncia de passos. Em muita dana contempornea no se encontrar passos, nem msica e, talvez, sequer movimento (se compreendido exclusivamente como deslocamento no espao). Em contrapartida, a materialidade dos corpos, o desvendamento das convenes cnicas, as ticas relacionais e as polticas de identidade sero temas possivelmente evocados atravs de pesquisas que podem envolver desde lingstica, novas tecnologias e arquitetura at fsica, biologia e filosofia. Como a performance sugere, no interessa neste momento definir o que a dana contempornea, mas perguntar em cada aqui e a cada agora, o que queremos que dana seja. Cada espetculo ser pois uma resposta momentnea para esta questo recorrente.

  • FBIO FREIREReprter

    Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907

    Definir Performance um falso problema